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O NEOLIBERALISMO RELIGIOSO E

ARISTOCRÁTICO DE VON MISES

Resumo

A
tese defendida no artigo é de que o neoliberalismo de von
Mises fundamenta-se em uma filosofia de inspiração religiosa
e aristocrática. Defende-se que a teoria de von Mises contém
um comprometimento com uma ontologia de dois mundos, inspirada
pela filosofia de Tomás de Aquino. Tal ontologia de natureza religiosa
ganha caráter secular com o argumento aristocrático, presente em sua
teoria da história, sua visão da democracia e do funcionamento dos
mercados. Conclui-se que o neoliberalismo de von Mises baseia-se em
argumentos da reação feudal à ascensão do capitalismo, com o fim de
preservar e justificar este último.

Palavras-chave: von Mises; neoliberalismo; religião; aristocracia.

Classificação JEL: B25; B11; B00.

Abstract
This paper defends that von Mises’ neoliberalism is grounded on a
ANDRÉ GUIMARÃES religious and aristocratic philosophy. It is maintained that von Mises’
AUGUSTO theory includes a commitment with an ontology of two worlds,
Professor do Departamento
de Economia da Universidade inspired by Thomas Aquinas. This religious ontology became secular
Federal Fluminense e pesqui- through the aristocratic argument comprised in von Mises theory
sador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos e Pesquisas of history, political theory and his conception of markets. In the
sobre Marx e o Marxismo
(NIEP-Marx/UFF). conclusion it is indicated that von Mises’ neoliberalism is based on the
allegations made by the feudal reaction to the encontrada de forma mais acabada nos circuitos
raise of capitalism, but to support and justify dos autodenominados libertários americanos,
the last. organizados em torno do von Mises Institute.
Keywords: von Mises, neoliberalism, religion, A sagrada aliança do neoliberalismo ganhou
aristocracy. visibilidade recentemente no Brasil em mani-
festações de rua, mas é encontrada nos últimos
tempos, de forma cotidiana, na imprensa, em
pregações religiosas e no discurso de vários
O neoliberalismo muitas vezes é identificado políticos. A questão que move o artigo é se tal
com o conjunto de políticas estabelecidas a par- aliança, aparentemente incoerente, encontra
tir dos anos 1980 nos governos Reagan e Tha- sentido e fundamentação na ideologia neolibe-
tcher e difundidas nas décadas seguintes. Ou- ral em sua corrente austríaca.
tras vezes, o neoliberalismo, como corrente de É na obra de Ludwig von Mises que a expressão
pensamento, é identificado como tendo origem mais pura dos fundamentos da argumentação
na fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em neoliberal pode ser encontrada.1 O lançamento
1947. Reunindo nomes como Hayek, von Mises, do Liberalismo de von Mises em alemão em 1927
Karl Popper e Milton Friedman, a Sociedade de e em inglês em 1962 assinala o nascimento da
Mont Pèlerin era o think tank do qual sairiam ideologia – termo que o próprio von Mises usa
os princípios que fundamentariam as políticas para definir o liberalismo (von Mises, 1985, p.
econômicas nos anos 1980. 192) – neoliberal. No livro, von Mises propõe
O ponto de partida deste artigo é a constatação uma renovação do liberalismo, cunhando o
de um alinhamento ideológico e político entre termo “neoliberalismo” em distinção ao “antigo
o fundamentalismo religioso, a apologia neoli- liberalismo” (ibidem, p. 27).
beral da sociedade de mercado e as defesas de O artigo não tratará dos argumentos de nature-
formas aristocráticas de governo – da monar- za estritamente econômica do neoliberalismo,
quia à ditadura fascista das elites. Essa “sagrada mas de seus pressupostos. A tese defendida no
aliança”, visível no apoio de Hayek e Friedman artigo é de que o neoliberalismo de von Mises
à ditadura de Pinochet e na encíclica Cente- fundamenta-se em uma argumentação anti-ilu-
simus Annus (1991) de João Paulo II, pode ser minista de natureza religiosa e aristocrática.

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1. Praxeologia e comprometimentos Os fins são tidos como irredutíveis e não são
ontológicos passíveis de análise. Como ciência subjetivista,
Para compreender o neoliberalismo de von Mi- não caberia à praxeologia pronunciar-se sobre
ses, é necessário partir da estrutura de sua argu- os melhores fins. Os fins seriam resultado de
mentação. Tal estrutura pode ser compreendida uma escolha, um exercício da vontade autode-
a partir dos escritos epistemológicos do autor, terminada. A única aplicação prática da pra-
nos quais este visa, por um lado, fundamentar xeologia seria a de recomendar os meios mais
a apologia da propriedade privada dos meios de adequados para a obtenção dos fins (ibidem, p.
produção e, por outro, atacar o materialismo, 34).
especialmente o marxismo. A despeito das afirmações categóricas de von
O dualismo metodológico é defendido por von Mises, suas conclusões inferidas do conceito
Mises (von Mises, 2007, p. 1), distinguindo entre de ação e as justificativas para o seu caráter a
as ciências físicas, que lidam com a matéria, e priori estão longe de serem “claras e evidentes”.
as ciências humanas. Essas últimas são deri- Primeiramente, as conclusões que von Mises
vadas de uma ciência geral da ação humana, a alegadamente retira do conceito geral de ação
praxeologia. As proposições básicas da praxe- não estão contidas necessariamente neste. Em
ologia “antecedem qualquer definição real ou segundo lugar, o caráter a priori dessas premis-
nominal. São categorias finais, impossíveis de sas apresenta vários problemas, se tomado em
serem analisadas” (von Mises, 1990, p. 51); “Não termos puramente epistemológicos.
estão sujeitas a verificação com base na experi- O conceito de ação apresentado pelo econo-
ência e nos fatos” (ibidem, p. 48) nem “derivam mista austríaco não é suficiente para se deri-
da experiência” (ibidem). var sua defesa do liberalismo, por exemplo. A
A praxeologia é puramente dedutiva; as conclu- definição da ação como um comportamento em
sões já estão contidas nas premissas. As inferên- que os homens usam meios para atingir fins
cias da praxeologia são tautológicas e analíticas não contém a conclusão de que a propriedade
e “Sua função é tornar claro e evidente o que privada dos meios de produção organizada pelo
antes era obscuro e desconhecido” (ibidem, p. mercado e sem nenhuma interferência coletiva é
56). Sua premissa é o conceito de ação. Segundo a única configuração possível para o desenvolvi-
von Mises, a ação é um comportamento pro- mento da civilização.
positado, que se caracteriza pelo “emprego de Em toda ação, a busca dos fins realiza-se por
meios para atingir fins” (ibidem, p. 22). meio de atos em que se utilizam meios que

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não dependem dos fins dos agentes, incluindo igual capacidade de utilizar os meios. Além dis-
a ação dos outros agentes (Kotarbinsky, 1983, so, afirma que os homens têm um fim último
p. 6). Para se chegar à conclusão neoliberal de em comum em todas as suas ações. Mas esse
von Mises é necessária uma hipótese adicional fim comum é a felicidade, entendida tauto-
sobre a interação de agentes, e pressupor que as logicamente como a satisfação de um desejo.
ações não são conflitantes. Tais hipóteses não Ou seja, é meramente formal, sem conteúdo
estão contidas na premissa do conceito formal definido.
de ação.
Sendo os fins substantivamente desiguais e
Uma forma de se chegar à coordenação dos fins livremente determinados pelas vontades dos
de diferentes indivíduos, partindo do mesmo indivíduos, nada impede que a realização dos
conceito de ação, é pressupor um fim último fins de alguns seja obstáculo para a realização
que seja comum a todos os indivíduos. Mas isso dos fins de outros. Isso pode ocorrer quando
não impede que diferentes indivíduos bus- os trabalhadores buscam aumento de salários
quem esse mesmo fim com meios conflitantes. e os capitalistas buscam diminuir os salários
Portanto, é preciso o pressuposto adicional de como meio de aumentar ou manter os lucros,
que só há uma única maneira de buscar o fim ou quando vários indivíduos desejam o mesmo
último comum a todos e que todos podem fazer bem que não está disponível para todos.
igual uso desses meios. Isso significaria afirmar
Nesses casos, von Mises tem que incluir a pre-
que os homens são igualmente dotados das mes-
missa de uma ordem espontânea que tornaria
mas capacidades. A esse pressuposto pode ser
compatíveis, no longo prazo, as ações movidas
dado conteúdo substantivo com a igual capaci-
pelas vontades autodeterminadas. A ordem
dade de maximização e perfeito conhecimento,
espontânea não está contida no conceito formal
embora isso não seja necessário.
de ação e só é possível a realização de todos os
Esses pressupostos adicionais ao conceito fins após uma longa travessia em que é neces-
formal de ação não estão presentes no argumen- sário fazer “sacrifícios”. Nessa travessia, alguns,
to neoliberal de von Mises. O autor nega que de facto, nunca terão seus desejos realizados.
os homens sejam maximizadores capazes de Adicionalmente, é necessário incluir premissas
conhecer antecipadamente o resultado de suas substantivas sobre a economia para se concluir
ações. Assim, os homens não teriam a raciona- que a divisão do trabalho e a propriedade priva-
lidade perfeita que levaria ao melhor uso dos da dos meios de produção levam a essa ordem
meios e à consecução dos fins. De forma geral, espontânea.
von Mises pressupõe que os homens não têm

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Pode se exemplificar a necessidade de premissas rias para que este ganhe conteúdo; em outros
adicionais ao conceito formal de ação para se termos, requer pressupostos que não são apenas
chegar às conclusões neoliberais de von Mises lógicos, mas pressupostos ontológicos, sobre a
com o debate sobre o cálculo socialista, onde os constituição da realidade. O mesmo conceito
dois lados partiam do mesmo conceito formal formal de ação com conteúdos derivados de
de ação. O principal opositor de von Mises no pressupostos ontológicos diferentes leva a con-
debate, Oscar Lange, afirmava que o socialismo clusões diferentes e até mesmo opostas.
era “uma tentativa de aplicar o princípio da A necessidade de pressupostos ontológicos na
racionalidade econômica não somente a uma praxeologia de von Mises pode ser observa-
questão ou empresa particular, mas à economia da também em sua defesa do caráter a priori
nacional como um todo” (Lange, 1983, p. 364). do seu conceito de ação. Von Mises defende o
De acordo com Lange, os instrumentos da método a priori na ciência da ação humana a
praxeologia aplicada, como a pesquisa opera- partir do conhecido problema da indução. Tal
cional e a teoria da programação, são instru- problema consiste na impossibilidade de se reti-
mentos de planejamento que visam o melhor rar generalizações de caráter universal a partir
uso dos meios para atingir os fins. Seu objetivo do conhecimento empírico, posto que este nun-
é a eficiência no uso dos meios. No socialismo, ca esgota todas as instâncias do universal.
afirma Lange, estes instrumentos são aplicados Invocando Kant, von Mises afirma que todo co-
à economia nacional (ibidem, p. 367). Partindo nhecimento é condicionado por categorias que
do conceito formal de ação e adicionando a este antecedem a experiência, categorias a priori
a existência de fins últimos comuns a todos (von Mises, 1962, p. 12). Aqui von Mises recorre
os homens e a igual capacidade de utilizar os à “regularidade na sucessão de eventos” como
meios sob a hipótese da maximização, Oscar categoria a priori necessária para toda teoria.
Lange deriva o planejamento socialista. A estrutura lógica imutável da mente humana
Não é objeto desse artigo retomar o debate do seria uma regularidade pressuposta para a pra-
cálculo socialista. O ponto central aqui é de que xeologia (ibidem, p. 16).
a impossibilidade de derivar apenas as conclu- O apelo de von Mises a Kant é enganoso. Como
sões neoliberais do conceito formal de ação não argumenta Barota (1996), os conceitos a priori
é o resultado de uma inconsistência lógica no de Kant referem-se às condições epistemoló-
argumento de von Mises. O conceito formal de gicas para a realização da ciência. Conceitos a
ação requer determinadas condições necessá- priori são transcendentais e distintos dos cientí-

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ficos. Em termos kantianos, uma teoria cien- Como distinguir a lógica da ação em relação
tífica explanatória não pode ser deduzida de à lógica do comportamento automático ou da
conceitos a priori, mas deve incluir elementos natureza, se não por meio da experiência? Von
a posteriori retirados da experiência. Assim, as Mises afirma que essas categorias são fruto da
mesmas categorias a priori podem resultar em “reflexão sobre a essência da ação” (ibidem, p.
teorias científicas diferentes (ibidem, p. 59). Do 58). Se por tal reflexão faz-se referência à in-
ponto de vista kantiano, von Mises conflagra as trospecção, esta se constitui a partir de uma
condições para a ciência com a própria ciência experiência subjetiva. Sendo subjetiva, sua
ao dar a ação o status de categoria a priori. realidade deve ser validada intersubjetivamente.
A validade intersubjetiva de experiências sub-
O caráter a priori do conceito de ação em von
jetivas, por sua vez, implica uma experiência
Mises também não é defensável com base na
objetiva comum. Como von Mises nega catego-
lógica pura em termos kantianos. As categorias
ricamente que a realidade dos a priori se funde
lógicas kantianas – quantidade, qualidade,
em qualquer experiência, é plausível supor que
relação, modalidade – seriam puramente inte-
a categoria da ação de von Mises seja inferida a
lectuais, sem qualquer referência à experiência
partir de compromissos ontológicos implícitos
(Young, 1992, p. 101-103). Essas categorias dizem
que são explicitados na seção seguinte.
respeito à forma do pensamento sobre qualquer
coisa e não ao seu conteúdo (ibidem, p. 105-106),
sendo válidos para qualquer ciência indepen- 2. Ontologia finalista e de dois mundos
dente de seu objeto. Von Mises defende que os A princípio pode-se negar a existência de com-
conceitos a priori da praxeologia – finalidade, prometimentos ontológicos na praxeologia de
meios, vontade, razão – não se referem ao “con- von Mises, alegando que este apresenta apenas
teúdo material” das ações, mas apenas à sua argumentos sobre como conhecemos o mundo,
forma. Contudo, ao contrário das categorias ló- argumentos de natureza epistemológica. Von
gicas kantianas, eles não se referem à forma do Mises adota um argumento cético, apontando
pensamento sobre qualquer coisa, mas à forma para a limitação de nosso conhecimento sobre a
da ação enquanto distinta de outras coisas. Von origem das ideias (ibidem, p. 29-30).
Mises é claro ao distinguir a ação, por exemplo,
O argumento cético sobre a origem das ideias,
de um comportamento automático (von Mises,
no entanto, não impede von Mises de afirmar
1990, p. 33).
que estas “são geradas por algum processo des-
conhecido no corpo humano” (von Mises, 2007,

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p. 97). Deste modo, ele admite que a mente duos, o que Kotarbinsky (1983, p. 11) denominou
depende do corpo humano, algo material, para de “ação absoluta”. Desta forma, as finalida-
existir. Mas os pensamentos e ideias produzidos des da ação são produtos puros da mente dos
pela “estrutura lógica da mente” são “intangí- indivíduos. O ceticismo metodológico garante
veis e imateriais” (ibidem, p. 95) e a “Mente ou apenas uma negação sobre a origem e o funcio-
razão é posta em contraste com a matéria” (von namento dos fins, mas não justifica a afirma-
Mises, 1962, p. 11). ção de von Mises. Esta só pode ser justificada
assumindo-se o compromisso ontológico de que
Com uma justificativa epistemológica, von
a ação é um produto apenas da mente “intangí-
Mises assume comprometimentos de caráter on-
vel” e “imaterial”. Isso fica claro quando afirma
tológico.2 Apesar de admitir que a mente atua a
que mesmo a satisfação de necessidades biológi-
partir de processos materiais gerados no corpo,
cas e a preservação da vida são um resultado da
com a justificativa do ceticismo epistemológico
escolha (von Mises, 1990, p. 31).
compromete-se ontologicamente com uma subs-
tância imaterial e intangível, a mente. Em sua Mas se a ação é “o comportamento total do
argumentação, a mente funciona independente homem” (ibidem, p. 22), ela não pode se resumir
de qualquer restrição material objetiva provinda à escolha de um fim. Aqui pode se argumentar
do ambiente físico e social. Sua teoria da ação que os fatores distintos da mente “imaterial”
é a mais explícita expressão desse comprometi- teriam efeito causal na consecução dos fins
mento ontológico. através da busca dos meios. Em outros termos,
se os constrangimentos materiais estão ausentes
Embora von Mises não afirme nada sobre o
na “ação absoluta”, eles estão presentes nos atos
conteúdo dos fins visados pela ação, afirma
pelos quais essa ação se efetiva. Desta forma, o
algo sobre sua causa: “O que faz alguém sentir-
reconhecimento de causalidades materiais seria
-se desconfortável, ou menos desconfortável, é
um condicionante da ação e, portanto, parte de
estabelecido a partir de critérios decorrentes de
sua explicação.
sua própria vontade e julgamento, de sua ava-
liação pessoal e subjetiva” (von Mises, 1990, p. No entanto, von Mises afirma que o reconheci-
24). A ação não passa de uma “manifestação da mento correto de uma relação causal supõe que
vontade” e, portanto, da escolha incondicionada os fins foram atingidos (ibidem, p. 36). Não só se
dos fins (ibidem, p. 23). trata de um “círculo vicioso”, como von Mises
admite, mas a própria causalidade é entendida
A ação tal como formulada por von Mises con-
como um “a priori” (von Mises, 1962, p. 20).
siste nos atos que dependem apenas dos indiví-

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Deste modo, a causalidade é um produto da Mises defende, ainda, que toda mudança se
estrutura lógica da mente humana. origina de uma causa e, consequentemente, que
a conduta humana é dirigida pela causalidade
Von Mises compromete-se com uma ontologia
(ibidem, p. 177). No caso da ação humana, no
de “dois mundos diferentes” e na qual “nenhu-
entanto, essa causa é a vontade, algo subjetivo
ma ponte liga esses dois mundos” (von Mises,
que não possui causas. Admitindo que tudo se
1990, p. 29). Para esse economista, a ação hu-
origina de uma causa, a vontade só pode ser
mana é homogênea com a razão e é um pro-
causa de si mesma. A vontade é a causa primei-
duto desta (ibidem, p. 58). A razão, por sua vez,
ra, o motor não movido da ação humana.
parece se identificar com a estrutura lógica da
mente humana. Como a ação é tomada como Deste modo, von Mises reduz toda causalidade
sendo idêntica à razão, a praxeologia funda-se no que se refere ao mundo humano às finalida-
na razão pensando a razão. O caráter a priori des dos agentes. Nos termos das quatro causas
das premissas da praxeologia é ontologicamen- aristotélicas, a causa material da ação, aquilo
te justificado por sua origem em um “mundo de que ela é feita, é a estrutura lógica da mente,
diferente” do mundo material dos sentidos, o uma substância imaterial. O que dá a forma
mundo da mente imaterial. específica de uma ação sua causa formal, nos
termos de Aristóteles, é o fim determinado que
Para von Mises, não é possível estabelecer
ela busca, e este é escolhido de acordo com a
qualquer tipo de relação causal na direção do
vontade autodeterminada dos agentes. O que
mundo da matéria para o mundo da mente,
gera a ação, sua causa eficiente, são as finalida-
embora, como será visto adiante, ele viola esse
des dos agentes; do mesmo modo, as mudanças
pressuposto em pelo menos uma ocasião. Mas a
no mundo material são causadas pelas finalida-
direção contrária é admitida. Von Mises afirma
des dos agentes. Ao admitir que a causalidade
categoricamente, e de forma não condiciona-
é um produto da mente humana, ao colocar a
da pelo estado de nosso conhecimento, que as
causa material das ações em uma substância
ideias e pensamentos “produzem mudanças nas
imaterial e ao conflagrar as outras causas com a
coisas tangíveis e materiais” (von Mises, 2007,
causa final, von Mises assume um compromis-
p. 96).
so ontológico com um mundo humano regido
Von Mises, de facto, atribui um valor ontológico
exclusivamente pela teleologia.
maior à teleologia em relação à causalidade. O
A ordem espontânea é também um tipo de
autor admite que teleologia é uma espécie de
teleologia transposta da mente dos indivíduos
causa, que ele designa como “causa final”. Von

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para a sociedade como um todo. Tal teleologia teoria da história pode ser resumida em sua
refere-se primeiramente à criação de uma ordem afirmação de que “Não há nada para a história
social a partir de ideias dos indivíduos, de suas além das ideias das pessoas e as finalidades que
finalidades. Em diversos momentos, von Mises elas procuravam motivadas por essas ideias”
admite que a ordem social é criada de acordo (von Mises, 2007, p. 161). Assim, a história per-
com as finalidades, senão de todos os indivídu- tence ao mundo imaterial da mente humana.
os – e não poderia sê-lo, pois não existem fins
Mas von Mises admite algo que parece peculiar
comuns –, pelo menos de alguns indivíduos.
perante suas afirmações de que as finalidades
Em alguns momentos, von Mises é dúbio ao
são causadas unicamente pela vontade não
supor que essa finalidade pode visar algo ainda
causada dos indivíduos. Admitindo que todo
por vir; em outros, visa manter o que já existe.
indivíduo nasce em sociedade, este é “imbuído”
O comprometimento ontológico de von Mises
com “ideias preexistentes”, que ele pode modi-
com uma teleologia social pode ser observado
ficar ou não, e “suas ações são guiadas por ideo-
em sua teoria da história.
logias que ele adquiriu através de seu ambiente”
(ibidem, p. 160)
3. A teoria da história de von Mises Isso significaria admitir que as finalidades dos
Pertencendo ao campo da ação humana, a his- indivíduos não se originam de sua vontade in-
tória não estaria sujeita ao mesmo método das condicionada, mas são causadas por ideologias
ciências naturais, segundo von Mises. Não seria preexistentes. Sendo a escolha causada, ela não
possível, portanto, extrair leis gerais a partir da pode ser a causa primeira e a pessoa não tem
observação de fatos históricos. Mais do que isso, “liberdade para fazer o que quer” (von Mises,
sendo a história um produto da mente humana, 2009, p. 27). Desta forma, seria admitida a exis-
os homens “estão livres para recorrer a interpre- tência de uma causa social para as ideias dos
tações bastante arbitrárias” (von Mises, 1990, indivíduos. Por outro lado, se as ideologias “são
p. 47-48) quando se trata de eventos históricos. produtos da mente humana” (von Mises, 2007,
Assim, só é admissível uma história que seja p. 160), isso implicaria em admitir a existência
inferida dos a priori praxeológicos. de uma “mente humana” acima dos indivíduos
Mais do que a coerência com seu método a prio- humanos.
ri, mesmo quando em desacordo com as evidên- Von Mises apresenta uma solução para esses
cias históricas, a teoria da história de von Mises problemas mantendo-se coerente com sua pra-
revela seus comprometimentos ontológicos. Sua xeologia. Em lugar de apelar para uma mente

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acima dos indivíduos ou para uma causa social a ordem espontânea gerada pelo mercado é o
objetiva da ideologia, von Mises admite que a resultado de uma “divisão mentalmente calcula-
origem de uma ideia só pode estar em outras da do trabalho entre os vários empresários” (von
ideias. Mas isso levaria ao regresso infinito e o Mises, 2009, p. 39). Deste modo, a teleologia
ponto de chegada dessa causação de ideias por social reproduz a finalidade de alguns indiví-
ideias é a mente de um indivíduo ou de alguns duos, os empresários. A causa final da história
indivíduos (ibidem). A ideia surgida na mente é constituída pelos fins que alguns indivíduos
de um indivíduo se torna aceitável por outros e buscam. No caso do capitalismo, trata-se dos
assim se transforma em ideologia. (ibidem) fins buscados pelos empresários como causa
final da reprodução econômica.
A causação das ideologias pelas ideias de um
indivíduo restringe a liberdade entendida como Poder-se-ia alegar que a ordem espontânea da
o exercício da vontade sem constrangimentos. história não é teleológica, mas sim um processo
Alguns indivíduos têm sua ação guiada por ide- evolucionário análogo ao da evolução biológica.
ologia preexistente e que não é produto da sua Mas não só as evidências textuais negam tal
escolha. Mas se a liberdade da ação é entendida analogia, como isso incluiria von Mises na ide-
como exercício de uma vontade autodetermina- ologia à qual dedicou toda sua vida a combater,
da, nem todos os indivíduos são livres. o materialismo. Quando trata das origens das
ideias, von Mises rejeita explicitamente as ana-
As afirmações de von Mises levam à proposição
logias biológicas do contágio propostas pelas
de uma teleologia na história. Se são as ideo-
explicações materialistas como uma “compa-
logias que guiam as ações dos indivíduos, se
ração superficial e que não explica nada” (von
na história não há nada além dessas ideias e se
Mises, 2007, p. 99).
as ideologias originam-se da mente de um ou
alguns indivíduos, são as finalidades destes que Fica por explicar o motivo de algumas ideias
determinam a história. Assim, o capitalismo surgirem em alguns indivíduos e não em outros
teria sido um produto teleológico da mente dos e como elas são aceitas se transformando em
economistas e “o que é comumente chamado de ideologia. A explicação da aceitação e da origem
‘revolução industrial’ foi o resultado da revo- das ideias leva a um outro elemento fundamen-
lução ideológica efetuada pelas doutrinas dos tal na ontologia de von Mises: a desigualdade
economistas” (von Mises, 1990, p. 14). natural dos homens e a superioridade de uns
em relação aos outros. Trata-se aqui do argu-
O mesmo tipo de teleologia social está presen-
mento aristocrático que será tratado de forma
te no debate sobre o cálculo socialista. Aqui

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mais detalhada adiante. Tal argumento supõe para provar outras verdades” (Aquino, 1947 p. 8).
que alguns são naturalmente predestinados a Segundo Tomás de Aquino, “Os princípios de
terem ideias vencedoras e outros a aceitá-las. qualquer ciência ou são autoevidentes em si ou
redutíveis às conclusões de uma ciência supe-
Assim, von Mises tem um comprometimento
rior” (ibidem).
ontológico com a existência de dois mundos,
com a existência de uma substância imaterial, Os princípios da argumentação são autoevi-
com uma teleologia social e com a predestina- dentes, significando que “seu conhecimento
ção dos indivíduos. Conforme argumentaremos é naturalmente implantado em nós” (ibidem,
na próxima seção, as raízes desses comprometi- p. 12). Aquino argumenta que algo pode ser
mentos ontológicos podem ser encontradas em autoevidente em si ou em si e para nós. Uma
uma ontologia de origem religiosa. proposição é autoevidente para todos “quando”,
sendo seus termos conhecidos, imediatamente
se “conhecem”, ou quando nelas “algo se predica
4. Crítica ao materialismo e ontologia
de si mesmo, como homem é homem, ou se o
religiosa
predicado delas está incluído na definição do
Os comprometimentos ontológicos de von
sujeito, como homem é animal” (Aquino, 1990,
Mises têm origem e natureza religiosa, e suas
p. 34) ou, de outra forma, “quando o predicado
raízes podem ser encontradas na filosofia aris-
está incluído na essência do sujeito” (Aquino,
totélica reinterpretada em termos religiosos por
1947, p. 13).
Tomás de Aquino. Tal proximidade é bastante
plausível, uma vez que o ensino no Império Mas uma proposição pode ser autoevidente em
Austro-húngaro era dirigido pela Igreja Cató- si, mas não para nós quando “não sabemos o
lica, fundamentando-se na filosofia tomista. significado e o sujeito da preposição” (ibidem, p.
(Hülsmann, 2002, p. li) 12). Quando a essência que se predica do sujei-
to é desconhecida, é “necessário demonstrar a
A praxeologia de von Mises atende a todos os
preposição por algo que é conhecido por nós”
critérios da ciência no sentido estrito (scientia
(ibidem, p. 13) uma vez que, argumenta Aqui-
scire simpliciter) de Tomás de Aquino. Para
no citando Boécio “Existem alguns conceitos
Aquino a scientia é o conhecimento completo
mentais que são autoevidentes somente para os
e certo da verdade de algo. (Mac Donald, 1993,
instruídos” (ibidem, p. 13)
p. 162) Como na praxeologia de von Mises, a
scientia “não argumenta para provar seus prin- O caráter autoevidente das premissas, ou
cípios, mas argumenta a partir dos princípios princípios primeiros da argumentação, as torna

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irrefutáveis e não passiveis de prova. Assim, Aqui se trata das ciências a priori – a matemá-
argumenta Aquino, para conhecer as verdades tica e a lógica. Já a metafísica, lida com coisas
autoevidentes “não é necessário um esforço de “que podem existir sem a matéria, como ocorre
investigação” (Aquino, 1990, p. 34) e “Ninguém claramente com coisas imateriais” (ibidem).
pode admitir mentalmente o oposto do que é
Von Mises admite que as ciências naturais se
autoevidente” (Aquino, 1947, p. 12).
utilizam da experiência, mas o mesmo seria
A fundamentação dada por Aquino ao cará- impossível para as ciências do homem. Assim,
ter autoevidente dos princípios primeiros é a as premissas da praxeologia “São como a lógica
mesma dada por von Mises ao caráter a priori e a matemática aprioristas” (von Mises, p. 48),
das premissas da praxeologia. Tais premissas o que implicaria um compromisso ontológico
são resultados de uma “reflexão sobre a essên- com a mente como algo que se situa como uma
cia da ação” (von Mises, 1990, p. 58). O sentido “matéria inteligível comum”, distinta da “maté-
da reflexão pode ser entendido como um ato ria sensível”.
puramente mental sem referente nas ações
A praxeologia de von Mises também está próxi-
realmente existentes. Sendo essa “essência da
ma dos argumentos de Tomás de Aquino sobre
ação” independente dos atos pelos quais qual-
a alma. Aquino reconhecia a existência de seres
quer ação realmente existe, sua fundamentação
corpóreos e seres espirituais (Aquino, 1947, p.
é metafísica.3
342) e de substâncias intelectivas separadas das
A scientia tomista depende da natureza do que substâncias corpóreas (Aquino, 2008, p. 26-27),
é conhecido. No caso das coisas naturais, a ma- analogamente à divisão entre o mundo material
téria faz parte de usa própria definição (Aquino, e o da mente imaterial em von Mises. Como a
1947, p. 573) e seu conhecimento depende da mente em von Mises, a alma humana em Aqui-
“matéria sensível em comum” (ibidem, p. 575), no é uma substância incorpórea: “É necessário
embora não da individual. Trata-se aqui da “fi- dizer que aquilo que é o princípio da atividade
losofia da natureza”, cujos princípios primeiros intelectual, aquilo que chamamos da alma hu-
devem ser obtidos indutivamente a partir dos mana, é um princípio incorpóreo e subsistente”
sentidos. Os objetos matemáticos, por sua vez. (Aquino, 1947, p. 482).
“podem ser abstraídos pelo intelecto da matéria
Mas o homem não é um ser puramente espi-
sensível”, “podem ser considerados à parte das
ritual em Aquino. Para Aquino o homem “é
qualidades sensíveis”, mas não podem ser abs-
composto de uma substância corpórea e outra
traídos da “matéria inteligível comum” (ibidem).
espiritual”, corpo e alma, sendo assim um “ser

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limítrofe” entre as coisas materiais e as pura- do bem de Tomás de Aquino, pois, para este,
mente espirituais. As teses praxeológicas de von “porque o bem é de vários tipos”, “a vontade
Mises sobre a mente humana que funciona em não é determinada necessariamente por um”
um corpo mas não depende dele em nenhum e a capacidade da vontade “não é submetida a
sentido causal levam a inferir a presença de uma qualquer bem individual” (ibidem, p. 550). Se os
noção do homem como um ser composto de bens são de vários tipos e o que é desejado é o
duas substâncias separadas, como em Aquino. bem, por definição, pode se inferir a conclusão
de que a finalidade da ação é indeterminada.
A praxeologia de von Mises poderia ser remetida
diretamente à ética aristotélica. Von Mises, da Também com relação à vontade autodetermi-
mesma forma que Aristóteles e Aquino, afirma nada, von Mises se aproxima de Aquino. A
que o fim último do homem é a felicidade. Mas vontade é autodeterminada em Aquino, como
Aristóteles dá um sentido ético à felicidade em von Mises, pelo menos em suas primeiras
como fim último que todos os seres humanos de- obras (Kretzman, 1993, p. 147). Nas obras pos-
veriam buscar e analisa o sentido do termo felici- teriores, Aquino afirma que a vontade move a
dade para inferir dele um conteúdo determinado ação em direção ao fim que é determinado pelo
como bem comum (MacInerny, 1993, p. 200). intelecto. Assim a vontade é determinada pelo
intelecto apenas como causa final, mas não
Para Aquino a felicidade é identificada com
como causa eficiente (Aquino, 1990, p. 132). No
o bem e deus é o bem supremo. Se o fim é o
entanto, no argumento de Aquino, resta uma
objeto da vontade, o fim tem o aspecto de um
vontade indeterminada, pois quer a si mesmo e
desejo, e todas as coisas desejam o bem (Aqui-
a todas as coisas (ibidem, p. 133-135), que se iden-
no, 1947, p. 32), este é fim último de todas as
tifica com a própria essência do volente (ibidem,
ações. Para Aquino, deus é o bem último e a
p. 132-133) e que não tem nenhuma causa fora
felicidade plena só pode ser obtida quando o
de si (ibidem, p. 147): a vontade divina. Pode-se
homem coloca deus como fim último.
inferir que, sob esse aspecto, a ação humana na
Aqui von Mises difere tanto de Aristóteles como praxeologia de von Mises é formalmente idênti-
de Aquino, pois a felicidade é definida subjeti- ca à ação divina em Aquino.
vamente pelos indivíduos, ou seja, é informal e
De modo geral, a explicação de von Mises para
indeterminada. Mas em um ponto pelo menos
as transformações na sociedade são análogas à
ela se aproxima mais da ética tomista do que
criação divina. O intelecto puramente imaterial
da aristotélica. Primeiramente, sem o elemento
é, para von Mises, a causa eficiente e final das
teológico, a felicidade de von Mises se aproxima

98
coisas existentes no mundo humano, e as fina- ele não exclui que suas ideias neoliberais façam
lidades da ação humana são criadas ex nihilo (a os outros mais felizes.
partir do nada) como no ato da criação divina.
As ideias das quais von Mises magnanimamen-
A vontade humana é a causa final não causada
te pretende libertar os homens são as ideias do
do mundo humano, um análogo da vontade
materialismo. Von Mises entende por materia-
divina.
lismo uma ontologia que atribui as origens de
Ademais, ao afirmar que as premissas da praxe- todas as características humanas a processos
ologia são incontestáveis lógica e empiricamen- físicos e biológicos (von Mises, 2007, p. 94). A
te, von Mises dá a ela o mesmo status da ver- partir dessa definição estreita, o materialismo é
dade revelada por Deus. Causaria espanto em identificado com o fisicalismo e com o mecani-
qualquer pessoa capaz de um raciocínio lógico cismo. Esse último se refere não só à analogia
mínimo a falácia contida no argumento de que do homem com a máquina, mas ao determinis-
tal teoria possa se proclamar “acima de disputas mo causal estendido da natureza ao homem.
de partidos e facções”, quando ela mesma se
Von Mises só reconhece a causalidade de tipo
constitui como uma facção, ou “indiferente aos
mecânico: ele rejeita explicitamente a causali-
conflitos de todas as escolas de dogmatismo”
dade probabilística (von Mises, 1962, p. 93); não
(ibidem, p. 43), quando ela mesma proclama seu
considera a dialética de Marx, atribuindo a ele
dogmatismo.
o estrito mecanicismo; e desconhece a causali-
A motivação explícita de von Mises para a dade complexa do materialismo emergentista
formulação da praxeologia e para o argumento que se desenvolveu nos últimos anos.
liberal deduzido a partir dela é a evidência mais
O alvo imediato do ataque ao materialismo é
forte de sua fonte religiosa. Em sua cruzada
obviamente o marxismo. Mas von Mises vai
pelo neoliberalismo, von Mises afirma que
mais longe em sua cruzada contra o materia-
a libertação das pessoas da “doutrinação” do
lismo, atingindo o positivismo e o Iluminismo.
marxismo e do “progressivismo” será decidida
Todos são tidos como essencialmente o mesmo
“pelas questões fundamentais da epistemologia
materialismo. Desta forma, o materialismo que
e teoria do conhecimento” (von Mises, 1990a, p.
von Mises ataca pode ser classificado como um
206). Note-se de passagem que isso contradiz a
espantalho.
afirmação de von Mises de que “Ninguém tem
Sendo o materialismo uma ontologia, sua
condições de determinar o que faria alguém
contraposição deveria ser feita no mesmo plano
mais feliz” (von Mises, 1990, p. 24), uma vez que
ontológico. Von Mises não o faz explicitamen-

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te, apresentando o ceticismo epistemológico das finalidades, os atos pelos quais a ação se
como contraponto ao materialismo. Segundo realiza devem contar com causas eficientes
ele o materialismo foi incapaz de explicar como de natureza externa à mente dos indivíduos,
eventos materiais produzem eventos mentais. A independente de tais causas serem conhecidas.
possibilidade de o problema ser o determinismo Portanto, von Mises só pode se contrapor ao
mecânico e não o materialismo não é aventada que ele entende por ontologia materialista ado-
em nenhum momento por von Mises, uma vez tando o comprometimento com uma ontologia
que identifica superficialmente os dois. não materialista, de origem religiosa. Isso se
evidencia na posição que assume na disputa
Seu ceticismo epistemológico levaria logica-
entre materialismo e religião.
mente à conclusão de que se não podemos
falar como causas materiais levam a eventos Von Mises afirma que a ontologiamaterialista
mentais, também não poderíamos falar que surgiu como uma contraposição à ontologia
eventos mentais não têm causas materiais. Mas religiosa dos dois mundos (von Mises, 2007, p.
von Mises não tem o hábito de se calar sobre 99). Nesse ponto, von Mises assume claramente
o que ele mesmo afirma não poder ser dito. o partido da religião contra o materialismo:
Admitindo que não sabemos o que faz a mente “[…] é impossível para o raciocínio a priori
operar, não há nenhuma razão para admitir a e para as ciências naturais refutar de forma
separação entre o “corpo material” e a “mente convincente os refinados dogmas religiosos.
intangível”. O próprio ceticismo epistemológico […] críticas elaboradas não afetam o núcleo da
põe em suspeita essa separação, posto que ela é fé” (ibidem, p. 100). Em seguida, afirma que a
“realizada pela própria mente” (ibidem, p. 11). Se popularidade do materialismo se deveu a moti-
não sabemos as causas da operação da mente, vações políticas, decorrentes do envolvimento
também não sabemos se a separação é real. Ou da Igreja com a aristocracia do antigo regime. É
seja, o ceticismo epistemológico não justifica o uma hipótese bastante plausível, portanto, que
realismo dos pressupostos apriorísticos da ação. von Mises tenha recorrido aos referidos dogmas
para se contrapor ao materialismo.
Por outro lado, a ação executada por um corpo
material em um mundo em que há coisas ma- Mas os comprometimentos ontológicos de natu-
teriais e outros homens com corpo e mente se reza religiosa de von Mises não podem ganhar
relacionando em sociedade não pode ser atribu- um caráter mundano sem o argumento aristo-
ída apenas à mente e à vontade dos indivíduos. crático. Uma ontologia religiosa que prescinde
Mesmo admitindo o ceticismo sobre as origens de um Ser absoluto sobrenatural torna-se viável

100
como ontologia social se é admitida a existên- de von Mises, uma vez que as diferenças entre
cia de seres superiores no mundo terreno da indivíduos ou grupos humanos não implica
sociedade. O argumento aristocrático é o ponto necessariamente a superioridade in toto de uns
fundamental dos comprometimentos ontológi- sobre outros. Para deduzir a suposta superiori-
cos de von Mises. dade das diferenças, von Mises inclui um juízo
de valor implícito.

5. O argumento aristocrático Não é possível inferir essa desigualdade do con-


Von Mises admite que o liberalismo clássico ceito formal de ação de von Mises. Além disso,
fundava-se na igualdade natural de todos os ao contrário de Smith, von Mises não apresenta
homens; as desigualdades seriam fruto das evidências empíricas capazes de comprovar sua
condições sociais. Esse argumento do liberalis- afirmação. Sendo uma diferença natural, isso
mo clássico encontra-se em Adam Smith, por seria violar seus princípios, pois se refere ao
exemplo. Ao tratar da divisão do trabalho, Smi- mundo da matéria. Se há desigualdade natural
th admite que todos os homens têm as mesmas em capacidades mentais, isso significaria admi-
capacidades e que não há diferença natural en- tir um efeito causal da matéria sobre a mente
tre um filósofo e um carregador. Smith recorre imaterial.
à comparação entre pessoas antes e depois da A aparente contradição entre a negação ab-
idade de trabalhar e entre países com divisão do soluta do materialismo e a explicação das
trabalho pouco desenvolvida e mais desenvolvi- diferenças naturais dos homens com base em
da para validar sua afirmação de que as diferen- “fatos biológicos” pode ser entendida como um
ças de capacidades são causadas pela divisão do resultado de comprometimentos ontológicos de
trabalho (Smith, 1985, p. 483). natureza religiosa sem uma teologia. Sem uma
Von Mises afirma que os homens são natural- teologia, não se pode apelar para a providên-
mente desiguais e que, mesmo entre irmãos, há cia divina para justificar a existência de uma
desigualdade de capacidades físicas e mentais predestinação dos indivíduos. Tal predestinação
(von Mises, 1985, p. 27). Afirma também o cará- é incompatível também com a proclamação da
ter hierárquico dessa diferença, sentenciando livre escolha movida pela vontade não causada.
que a partir da desigualdade natural, “Podemos Assim, resta apenas a violação de um princípio
– sem nenhum juízo de valor – distinguir entre epistemológico para manter um compromisso
homens superiores e inferiores” (von Mises, ontológico.
1990a, p. 21). Note-se a falácia no argumento

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 101


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Von Mises mobiliza explicitamente o argu- “mais bem-sucedidas que outras na busca das
mento da causa biológica em sua defesa da finalidades de todos os homens” (ibidem, p. 333).
desigualdade natural dos homens (von Mises, Deste modo, von Mises afirma que “a moder-
2007, p. 327-328). Deste modo, afirma sobre os na civilização é um feito dos homens brancos”
indivíduos que “as capacidades mentais que (ibidem, p. 334). Cabe assinalar que esse é mais
circunscrevem as potencialidades de seus atos um aspecto do caráter teleológico da teoria da
mentais e de sua personalidade” são herdadas história de von Mises.
de seus pais, e que “há uma correlação entre a
Mas von Mises sustenta que a teoria “racial”
estrutura corporal e as características mentais”
biológica e a superioridade da “raça branca” no
(ibidem). Von Mises fundamenta a diferença en-
atual momento da história não justificam as
tre “o gênio e o idiota” nos “fatos da biologia e
doutrinas políticas racistas (ibidem). Não have-
da história” (ibidem, p. 331). Mas, como veremos
ria, segundo ele, como garantir que a suposta
a seguir, “os fatos da biologia” são descartados
superioridade da “raça branca” permanecerá
pelo autor austríaco com base no ceticismo
no futuro, pois isso só seria garantido por uma
epistemológico.
descoberta biológica “de características anatô-
Para justificar com os “fatos da biologia” a di- micas dos membros das raças não-caucasianas
ferença natural dos homens, von Mises assume que contivessem naturalmente suas faculdades
uma teoria biológica das “raças”. Afirma que mentais”, o que segundo ele não teria aconteci-
“a espécie humana é subdividida em grupos do até aquele momento (ibidem, p. 336).
raciais com distintas caraterísticas biológicas
Von Mises, no entanto, afirma que não é seu
hereditárias. A experiência histórica não impe-
objeto na discussão da história “a análise dos
de o pressuposto de que alguns grupos raciais
problemas controversos da pureza racial e da
são mais bem-dotados que outras raças para
miscigenação”, nem “investigar os méritos do
conceber ideias mais sensatas” (ibidem, p. 161).
programa político do racismo” (ibidem). Dessa
Von Mises assevera que é possível conceber que forma, embora assumindo o racismo biológico
determinadas “raças” possam alcançar o nível como um dado a priori, posto que não calcado
cultural de outras pelo processo de evolução em qualquer evidência além de afirmações va-
biológica (ibidem). Mas a evolução biológica das gas, von Mises livra-se de ter que fundamentar
“raças” dar-se-ia em uma direção pré-determi- sua teoria da história na biologia.
nada para o nível alcançado pelas “raças” que
Apesar de descartar as políticas racistas como
produziram “ideias mais sensatas” e que foram
consequência de sua teoria da história, ao admi-

102
tir o racismo biológico como ponto de partida, sua destruição e se comprazem no orgulho
von Mises afirma, no mínimo, a compatibili- extravagante de sua civilização” (ibidem, p. 332).
dade de sua teoria da história com as políticas Tais afirmações de von Mises, em que pese sua
racistas. Se a teoria da história de von Mises recusa em se pronunciar sobre políticas racistas,
não deve se pronunciar sobre tais pressupostos não deixam de ser uma defesa implícita de tais
biológicos, se o mundo da mente humana é políticas.
separado do mundo material no qual se in-
O racismo é apenas a faceta mais repugnante do
cluem os fatos biológicos e se, de acordo com
argumento aristocrático de von Mises. A defesa
von Mises, a história afirma a “superioridade da
das diferenças naturais e da superioridade de
raça branca”, resta apenas uma teoria racista da
alguns em relação a outros estende-se da relação
história no autor. Livre dos fatos biológicos, os
entre as supostas “raças” para a relação entre
“fatos da história”, segundo von Mises, corro-
governantes e governados na política e entre
boram que “até o momento” se estabeleceu a
indivíduos na economia.
“superioridade da raça branca”.
Segundo von Mises, a defesa Iluminista da
Ao colocar de forma cética o argumento do
democracia baseava-se na defesa da superio-
racismo biológico e ao mesmo tempo afirmar
ridade intelectual e moral do povo frente aos
a superioridade de uma suposta “raça” sobre
monarcas e à aristocracia. (von Mises, 1985, p.
as outras na história, a refutação da teoria das
42) Von Mises vê na defesa da democracia pelo
raças pela biologia – algo já estabelecido hoje –
liberalismo antigo um equívoco, pois “o povo
não levaria à negação de políticas racistas. Sob
é a soma de todos os cidadãos individuais; e se
esse aspecto, o racismo contido na teoria de von
alguns indivíduos não são inteligentes e nobres,
Mises revela-se ainda mais profundo e pernicio-
então todos juntos também não o são” (ibidem).
so que o racismo biológico. O racismo cultural,
Com base nisso, von Mises defende a democra-
característico da extrema direita contemporâ-
cia como “o governo dos melhores”, ainda que
nea, é uma conclusão implícita no argumento
os melhores aqui sejam aqueles capazes de con-
de von Mises.4
vencer os outros de que são qualificados para
A manutenção da civilização capitalista, que governar. (ibidem, p. 42-43)
seria um feito da “raça branca” segundo von
Outra diferença apontada por von Mises entre
Mises, implicaria políticas racistas que con-
o liberalismo clássico e o neoliberalismo é a
tivessem os “não-caucasianos” que “odeiam e
concepção da evolução histórica. O liberalismo
desprezam o homem branco”, que “planejam
clássico acreditava em uma evolução progressi-

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 103


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va, iluminada pela razão e pelo conhecimento, melhores. Tal tarefa inglória das pobres elites
que levaria a sociedade a se conformar aos prin- estaria sempre fadada ao fracasso pela ignorân-
cípios do liberalismo, supostamente naturais e cia “natural” das massas. A democracia política
derivados da razão. (ibidem, p. 157) O liberalis- liberal nunca é uma democracia perfeita em um
mo clássico defendia essa progressão da aplica- argumento aristocrático. A democracia perfeita
ção de seus princípios com base na igualdade para as elites deve ser buscada em outro lugar e
natural das capacidades intelectuais de todos. não na política. É na economia neoliberal que o
(ibidem) governo dos supostamente melhores poderia se
dar sem amarras.
Aqui o argumento da desigualdade natural é
mobilizado por von Mises para contrapor-se ao Von Mises defende a desigualdade da pro-
argumento do liberalismo clássico, afirmando priedade como a única forma de aumentar o
que “as massas carecem da capacidade de pen- produto e o bem-estar material. Deste modo, a
sar logicamente” (ibidem). Von Mises acrescenta manutenção da propriedade privada não repre-
que o programa do liberalismo não poderia sentaria a manutenção de um privilégio, argu-
se realizar por uma evolução natural, porque menta von Mises, mas “uma instituição social
mesmo que a sua suposta racionalidade fosse para o bem e o benefício de todos, mesmo que
reconhecida, “os ganhos momentâneos” decor- esta seja especialmente agradável e vantajosa
rentes de “vantagens especiais” pareceriam mais para alguns” (ibidem, p. 30). Ou seja, a desi-
importantes que os “ganhos maiores e duradou- gualdade beneficiaria a todos, mas beneficiaria
ros que devem ser adiados” (ibidem). Von Mises mais alguns do que outros. Sendo natural, essa
atribui isso à falta de “força de vontade”, que, desigualdade não constituiria um privilégio,
ao lado da “incapacidade intelectual da maioria mas uma predestinação.
das pessoas” (ibidem), as impediria de suporta-
A mesma lógica de argumentação se dá em
rem o “sacrifício provisório que toda ação social
relação à desigualdade na distribuição da renda.
demanda” (ibidem, p. 158).
Novamente, o argumento é subordinado à
Claro está que se alguns são naturalmente mais eficiência econômica, entendida no sentido de
capazes que outros, alguns são predestinados proporcionar o crescimento do produto (ibidem,
a governar. Mas a democracia política liberal p. 31). Von Mises vai mais longe nesse ponto, ao
é um incômodo para o argumento aristocráti- defender o consumo de luxo como um indutor
co. Os “melhores” devem convencer as massas de inovações tecnológicas e, portanto, do cresci-
“intelectualmente incapazes” de que são os mento econômico (ibidem, p. 32). Deste modo,

104
von Mises está mais próximo de Malthus na natural, não pode ser atribuída ao mérito, mas
defesa da necessidade econômica da aristocra- a uma predestinação. Em segundo lugar, os em-
cia e distante das advertências do liberal Adam preendedores parecem fugir do conceito formal
Smith contra a prodigalidade dos ricos. de ação como livre exercício da vontade, pois
suas vontades são determinadas pelo público,
De acordo com von Mises, a origem da de-
identificado por von Mises com os consumido-
sigualdade econômica está na desigualdade
res. Assim, von Mises, em um artifício de retóri-
natural. Alguns se beneficiam mais da proprie-
ca, coloca aparentemente os empreendedores
dade privada que outros, têm uma renda maior
não como homens que exercem a sua vontade
que outros e consomem bens de luxo por serem
autodeterminada, mas como subordinados a
naturalmente mais capacitados que outros. São
um mestre, à massa dos consumidores. (von
predestinados pela natureza a serem proprie-
Mises, 1990a, p. 22)
tários e ricos. O argumento de von Mises com
relação à origem natural da desigualdade eco- Os artifícios de retórica para a apologia do
nômica, no entanto, é ocultado pela aparente neoliberalismo não são capazes de ocultar o
defesa da soberania do consumidor. argumento aristocrático de von Mises. Apa-
rentemente, uma economia de mercado seria
Von Mises afirma que na economia de mercado
uma democracia governada pelas massas. A
são os consumidores que selecionam os vence-
democracia de mercado, afirma von Mises, é
dores no mercado. Os lucros “derivam sempre
“aquela em que cada centavo significa um voto”
de uma correta previsão da situação futura”
(ibidem, p. 81). Como os empreendedores que
(von Mises, 1990, p. 928-929); portanto aqueles
detêm a propriedade dos meios de produção e
que conseguem se manter como proprietários
têm uma renda maior também são consumido-
são os naturalmente mais bem-dotados em suas
res, a retórica da soberania do consumidor é a
capacidades mentais. Mas estes estariam subor-
retórica de um populismo elitista.5 Aqueles que
dinados à vontade dos consumidores. Von Mises
são predestinados por sua maior capacidade na-
afirma que “é o consumidor que faz algumas
tural de antecipar os desejos dos consumidores
pessoas ricas e outras pobres” (von Mises, 1990a,
têm um “voto” de maior peso na “democracia
p. 50), e os que obtêm lucros são os que “estão
do mercado”. A democracia do mercado é uma
em condições de atender as necessidades mais
democracia aristocrática, um oximoro.
urgentes do público” (von Mises, 1990, p. 927).
O populismo elitista de von Mises no que se
Tal capacidade de “atender as necessidades” do
refere à “democracia do mercado” é explicitado
público, sendo oriunda de uma desigualdade

REVISTA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ECONOMIA POLÍTICA 105


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quando confrontado com a afirmação de que duos que compõem as elites só pode se dar no
“as massas carecem da capacidade de pensar restrito limite dos naturalmente predestinados
logicamente” (von Mises, 1985, p. 157). Sendo co- a fazer parte da elite.
erente com os argumentos de von Mises, como
Com o argumento da circulação das elites, von
os consumidores são a massa da economia,
Mises avança o argumento do caráter merito-
estes careceriam de tal capacidade e, portanto,
crático do capitalismo. Cada um só pode “cul-
uma economia de mercado em que os consumi-
par a si mesmo” se não chega à elite. (ibidem, p.
dores são os mestres seria irracional. O argu-
35) Mas sendo as capacidades humanas natu-
mento aristocrático da superioridade natural
ralmente diferentes e hierárquicas, segundo o
das elites, portanto, deve “corrigir” a soberania
próprio autor, ninguém poderia culpar a si mes-
das massas. Von Mises afirma que os “consu-
mo pelas dotações que a natureza lhe deu. O
midores como seres humanos são dados ao
argumento meritocrático só ganha coerência se
erro” (von Mises, 1990a, p. 28) e “é dever da elite
for tido como uma “lição” das elites superiores
induzi-los a alterar seu modo de vida ‘volunta-
sobre o “modo de vida” das massas inferiores,
riamente’” (ibidem).
isto é, a aceitação “voluntariamente induzida”
Mais a elite econômica é formada pelos em- de sua condição material inferior.
preendedores, cujo voto no mercado tem maior
O argumento aristocrático dá sentido a pontos
peso. Assim, quem deve ensinar as massas dos
aparentemente obscuros da teoria da história de
consumidores qual deve ser o modo de vida cor-
von Mises. As “boas ideias” tornam-se ideolo-
reto são os empreendedores – ou seja, os capi-
gia quando a elite predestinada pela natureza
talistas. Obviamente, a vontade das massas dos
cumpre o seu dever de “induzir as massas a
consumidores nesse caso não é autodetermina-
alterar voluntariamente seu modo de vida” (von
da, mas induzida. Sua liberdade é a liberdade
Mises, 1990a, p. 28). Embora von Mises afirme
de ser manipulado pelas elites. Não há dúvida
uma raiz biológica para a superioridade na-
sobre quem é o “mestre” e “soberano” na econo-
tural das elites, não é um mecanismo análogo
mia de mercado.
ao biológico que define o caminho da história.
Von Mises mobiliza aqui o argumento de Pareto O mecanismo que explica o desenvolvimento
de que no capitalismo as elites estão em con- histórico para von Mises é de natureza religiosa
tínua mudança. (von Mises, 2009, p. 34) No e aristocrática. Sem uma teologia não é mais o
entanto, se as desigualdades de capacidades Ser espiritual superior que guia a história na
são naturais, a mudança contínua dos indiví- direção definida por sua vontade, mas a elite

106
composta pelos homens naturalmente “superio- ler Engelbert Dollfuss, chanceler da Áustria
res” que o fazem. em 1933, após se aliar à Itália então governada
pelo partido fascista de Mussolini, dissolver o
A teoria formal da ação ganha assim um
parlamento e governar com bases em leis emer-
conteúdo preciso e definido com o argumento
genciais; ou seja, após estabelecer uma ditadura
aristocrático de von Mises. A vontade da elite
temporária de elite.
predestinada é autodeterminada. As massas de-
vem se contentar em mudar seu modo de vida
“voluntariamente” induzidos pela elite; caso 6. Considerações finais: o neoliberalis-
as massas persistam na ignorância, só resta às mo como reação
elites induzirem coercitivamente a mudança em Demonstrou-se nesse artigo que o neoliberalis-
seu modo de vida. Um comportamento voluntá- mo de von Mises fundamenta-se em uma onto-
rio induzido não é um comportamento auto- logia religiosa e em argumentos aristocráticos.
determinado, mas a vontade das massas tem Pode parecer estranho a fusão do liberalismo
como causa a vontade das elites. No liberalismo com o pensamento religioso e aristocrático. No
de von Mises, apenas as elites têm sua vontade plano ideológico, o liberalismo combateu o pen-
autodeterminada, apenas elas são livres. Sua samento aristocrático e religioso durante o alvo-
defesa da liberdade é a defesa da liberdade de recer do pleno desenvolvimento do capitalismo
alguns induzirem a vontade de outros, pela no século XVIII, a despeito das diferenças que
coerção física quando necessário. se possam observar entre a ideologia e a prática.
O argumento aristocrático de von Mises é com- É preciso assinalar que o neoliberalismo de von
pletamente compatível com uma ditadura de Mises é orientado pela obsessiva cruzada contra
elite, mesmo que essa deva se manter somente tudo que ele identificava como socialismo. O
durante o “tempo necessário” para mudar o “tudo” que identifica, de facto, como socialis-
pensamento “das massas” (von Mises, 1985, p. mo é qualquer coisa que seja minimamente
45). Cabe observar que a defesa que von Mises favorável aos trabalhadores, mesmo dentro dos
faz de uma “ditadura temporária de elite” não marcos do capitalismo e da democracia liberal.
é apenas teórica. Em 1934, von Mises tornou- A natureza da ameaça ao capitalismo mudou, já
-se membro da Frente Patriótica austríaca, com não é mais o clero e a nobreza, mas os trabalha-
a carteira número 28632 (Hülsmann, 2007, p. dores ou, como denomina von Mises, “a massa”.
677, n. 149). A Frente Patriótica foi estabelecida Pode se entender isso a partir da natureza polí-
como partido único da Áustria pelo chance- tica da contraposição de von Mises ao materia-

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lismo. Já no período iluminista, o materialismo também na “teologia da prosperidade” pente-
continha elementos perigosos para a manuten- costal. Ademais, o neoliberalismo é defendido
ção da ordem capitalista; mas como ele comba- com um fervor religioso que deixa seus adeptos
tia o “Ancién Regime”, ainda era aceitável. Von imunes à contestação empírica e à argumenta-
Mises afirma que o materialismo se sustentou ção lógica.
a partir de meados do século XIX por motivos
Da mesma forma, a defesa da igualdade natural
políticos. Essa observação não é meramente
dos homens já não serve mais à manutenção do
casual; na verdade, o materialismo tornou-se
capitalismo. No século XVIII, os defensores do
perigoso para a manutenção da ordem capitalis-
capitalismo tinham na nobreza que se via como
ta a partir do momento que se tornou materia-
naturalmente superior aos “comuns” um ini-
lismo histórico. A partir daí, qualquer mate-
migo a ser combatido. Agora, são os “comuns”,
rialismo deve ser combatido pelos partidários
isto é, os trabalhadores, que representam a
da ordem – e von Mises é um de seus maiores
maior ameaça à manutenção do capitalismo.
aficionados.
A nova aristocracia já não é mais a nobreza
Para combater o materialismo, os neoliberais proprietária de terras, mas os empreendedores –
buscam fundamentos na ideologia da reação leia-se os capitalistas –, a suposta “raça” branca
feudal à ascensão do capitalismo. A ideologia de e os intelectuais neoliberais.
natureza religiosa, qualquer que seja a deno-
A oposição ideológica entre a democracia
minação desta, cumpre um papel fundamen-
liberal e o absolutismo transforma-se em uma
tal na cruzada neoliberal. A religião não só é
bizarra síntese na democracia aristocrática,
potencialmente capaz de induzir uma mudança
no populismo elitista. A igualdade natural é
“voluntária” no comportamento das massas,
substituída pela suposta superioridade e pela
como mobiliza argumentos justificados apenas
predestinação natural da nova aristocracia. O
pelo sentimento da fé, “irrefutáveis pela evidên-
argumento aristocrático serve às autodenomi-
cia empírica”. Visto sob esse prisma, é possível
nadas elites para induzir os trabalhadores a se
entender que a defesa radical do neoliberalismo
conformarem voluntariamente com sua condi-
venha acompanhada não simplesmente da tole-
ção. Se o céu das elites não é alcançado pelas
rância religiosa de Voltaire, mas do fundamen-
massas terrenas, restaria a essas a autodeprecia-
talismo religioso de Joseph de Maistre.6 Mas se
ção induzida.
trata não apenas de uma aliança, consagrada na
encíclica Centesimus Annus (1991) de João Paulo
II, mas de uma verdadeira fusão encontrada

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Bibliografia ________. Theory and history. An interpretation of social
and economic evolution. Auburn: Ludwig von Mises Institu-
AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. Covilhã: LusoSofia te, 2007.
Press, 2008.
________. Ação humana: um tratado de Economia. Rio
AQUINO, Tomás de. Suma contra os gentios. São Lourenço de de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.
Brides: Escola Superior de Teologia; Porto Alegre: Livraria
Sulina Editora, 1990. ________. Economic freedom and interventionism. An
anthology of articles and essays. GRAVIES, B. (ed.). Indiana-
AQUINO, Tomás de. Summa theologica. Digital edition, Public polis: Liberty Fund, 1990a.
Domain. Disponível em: <http://www.ccel.org/ccel/aquinas/
summa.html>. Benziger: Bros Edition, 1947. ________. Liberalism. In the classical tradition. San
Francisco: Cobden Press, 1985.
BAROTA, P. “A neo-kantian critique of von Mises’s Epistemo-
logy”, Economics and Philosophy, vol. 12, n. 1, Abril 1996. ________. The ultimate foundation of economic method.
Princenton: D. Van Nostrand, 1962.
ECO, U. Ur-Fascism. New York Review of books, 22 de junho
de 1995. YOUNG, M. “Functions of though and the syntheses of intui-
tions”. In: GUYER, P. Cambridge companion to Kant. Cambrid-
HÜLSMANN. J. G. “Introduction”. In: VON MISES, L. Episte- ge: Cambridge University Press, 1992.
mological problems of economics. Auburn: von Mises Institute,
2002.

________. Mises The Last Knight of Liberalism. Auburn:


von Mises Institute, 2007. Notas
1. A primeira obra de von Mises que visa a reconstrução
KOTARBINSKY, T. “The goal of an act and the task of the e renovação do Liberalismo é “Liberalismus” publicado em
agent”. In: GARSPARSKY, W. & PSZCZOLOWSKI, T. (eds). Alemão em 1927. Os argumentos referentes à teoria do conhe-
Praxeological studies. Polish Contributions to the Science of cimento e a praxeologia ainda não estavam elaborados nessa
Efficient Action. Boston: Dreidel, 1983. primeira obra e foram desenvolvidos no livro “Nationalekono-
mie”, escrito entre 1934 e 1939 e publicado em alemão em 1940.
KRETZMAN, N. “Philosophy of mind”. In: KRETZMAN, N. Uma versão modificada desse livro aparece em inglês em 1949
& STUMP, E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: no livro Human action, mas a substância dos argumentos são
Cambridge University Press, 1993. mantidos. Em obras posteriores, como em Theory and history
(1957) e The ultimate foundation of economic science (1962), von
LANGE, O. “The importance of praxiology for political eco-
Mises aplica e desenvolve para questões especificas o conteú-
nomy”. In: KRETZMAN, N. & STUMP, E. Cambridge compa-
do dos argumentos contido em Human action. A aplicação e
nion to Aquinas. Cambridge: Cambridge University Press, 1993.
desenvolvimento dos argumentos de Human action aparecem
MAC DONALD, S. “Theory of Knowledge”. In: KRETZMAN, também na série de palestras proferidas em 1958 na Argentina
N. & STUMP, E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: e posteriormente publicas sob o título de “As seis lições”.
Cambridge University Press, 1993.
Pode-se afirmar, portanto, que os elementos mais substanciais
MACIERNY, R. “Ethics”. In: KRETZMAN, N. & STUMP, da constituição do neoliberalismo de von Mises deram-se no
E. Cambridge companion to Aquinas. Cambridge: Cambridge período entre guerras. Embora haja reelaborações, aplicações
University Press, 1993. e desenvolvimentos em obras posteriores a esse período seus
argumentos metodológicos, sua defesa do liberalismo e o
NEW YORK TIMES. “Rand Paul’s Mixed Inheritance”, 25 argumento aristocrático permanecem como uma constante.
de janeiro de 2014. Disponível em: <http://www.nytimes. Muitos argumentos são repetidos em várias obras, muitas ve-
com/2014/01/26/us/politics/rand-pauls-mixed-inheritance. zes literalmente, outras com adições ou omissões. A crítica ao
html?_r=0>. Acessado em: 24/09/2015. otimismo do “velho liberalismo” em relação às massas contida
em “Liberalismo” de 1927, por exemplo, reaparece modificado
SMITH, A. “Lectures on jurisprudence” In: Glasgow editon em alguns detalhes em todas as edições de “Ação humana”. Do
of the works and correspondence, Vol. 5. Indianapolis: Liberty mesmo modo, os argumentos sobre a praxeologia e a história
Fund, 1982. contidos em “Ação humana” reaparecem desenvolvidos mas
não substancialmente modificados em “Theory and history” e
VON MISES, L. As seis lições. São Paulo: Instituto Ludwig von em “The ultimate foundation of economic science”.
Mises Brasil, 2009.

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2. Qualquer afirmação de natureza epistemológica, isso é 6. Joseph de Maistre (1753-1821), jurista nascido no reino de
sobre como conhecemos algo, supõe um comprometimento Savóia. Foi um feroz oponente do Iluminismo e da revolução
ontológico, isto é, uma afirmação sobre o que conhecemos. francesa, apologista do cristianismo e referência do pensamen-
Mesmo o ceticismo epistemológico, ao asseverar que nada to conservador. Há pelo menos uma referência elogiosa de von
podemos afirmar sobre o que conhecemos independente Mises a de Maistre e outros autores anti-iluministas: “foram
do próprio ato de conhecer, faz uma afirmação sobre o que pensadores como Burke e Haller, Bonald e de Maistre que cha-
conhecemos. maram a atenção para o problema que os liberais não haviam
percebido. Foram eles que souberam avaliar o pensamento
3. Tecnicamente a metafísica é entendida como a ciência das massas mais realisticamente do que seus adversários” (von
das categorias, que compreende a ontologia – a ciência do ser Mises, 1990, p. 1177)
enquanto ser – como um de seus ramos. Mas se a partir de
Kant a ontologia é entendida em sua relação com a episte-
mologia como se referindo ao que conhecemos, é possível
fazer uma distinção em relação ao que se assevera sobre o que
conhecemos. Em uma ontologia realista o que conhecemos é o
existente. Em uma ontologia realista afirma-se que conhece-
mos aquilo que o existente é – sua essência ou quididade – e
que somente é algo, ou seja, têm uma essência, aquilo que
existe. Essência e existência não existem em dois mundos
separados, trata-se de uma ontologia da imanência. Já a meta-
física assevera que podemos conhecer a essência independente
da existência. Assim afirma Aquino: “Efetivamente posso
conceber o que é o homem ou a fênix e apesar disso ignorar
se existem entre as coisas da natureza. Logo é evidente que o
ser se distingue da essência ou da quididade, exceto se existir
alguma coisa cuja quididade seja o ser” (Aquino, 2008, p. 30)
Deste modo, afirma-se uma ontologia de dois mundos, um
referente às essências, metafísico – aqui significando além do
existente, transcendente – e outro o mundo existente.

4. Em que pese as muitas mediações entre as práticas e afir-


mações de adeptos da teoria de um autor, é possível ilustrar
a compatibilidade entre as teorias de von Mises e o racismo
com a postura de seus difusores contemporâneos, reunidos
no von Mises Institute dos EUA. Lee Rockwell Jr., um dos
fundadores do von Mises Institute, exalta a resistência dos es-
tados do sul dos EUA à legislação dos direitos civis, e Murray
Rothbard, outro fundador do von Mises Institute, aprovou o
“populismo de direita” de David Duke, membro da Klu Klux
Klan e um dos maiores defensores da “supremacia branca” nos
EUA (New York Times, 25 de janeiro de 2014).

5. Trata-se aqui de uma analogia com o populismo de elite


característico do fascismo universal, de acordo com Umberto
Eco. Tal analogia é relevante, pois se defende nesse artigo
que o neoliberalismo é uma ideologia aristocrática, da mesma
forma que o fascismo, de acordo com a caracterização de
Eco. Segundo a retórica do populismo de elite, qualquer um
poderia fazer parte da elite, mas para haver elite deve haver
“inferiores” e a participação no grupo de elite baseia-se no
“desprezo pelo mais fraco”, reforçando um sentido do elitismo
de massas. (Eco, 1995, p. 7)

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