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Augusto, A. F. - o Neoliberalismo Religioso e Aristocrático de Von Mises
Augusto, A. F. - o Neoliberalismo Religioso e Aristocrático de Von Mises
Resumo
A
tese defendida no artigo é de que o neoliberalismo de von
Mises fundamenta-se em uma filosofia de inspiração religiosa
e aristocrática. Defende-se que a teoria de von Mises contém
um comprometimento com uma ontologia de dois mundos, inspirada
pela filosofia de Tomás de Aquino. Tal ontologia de natureza religiosa
ganha caráter secular com o argumento aristocrático, presente em sua
teoria da história, sua visão da democracia e do funcionamento dos
mercados. Conclui-se que o neoliberalismo de von Mises baseia-se em
argumentos da reação feudal à ascensão do capitalismo, com o fim de
preservar e justificar este último.
Abstract
This paper defends that von Mises’ neoliberalism is grounded on a
ANDRÉ GUIMARÃES religious and aristocratic philosophy. It is maintained that von Mises’
AUGUSTO theory includes a commitment with an ontology of two worlds,
Professor do Departamento
de Economia da Universidade inspired by Thomas Aquinas. This religious ontology became secular
Federal Fluminense e pesqui- through the aristocratic argument comprised in von Mises theory
sador do Núcleo Interdisci-
plinar de Estudos e Pesquisas of history, political theory and his conception of markets. In the
sobre Marx e o Marxismo
(NIEP-Marx/UFF). conclusion it is indicated that von Mises’ neoliberalism is based on the
allegations made by the feudal reaction to the encontrada de forma mais acabada nos circuitos
raise of capitalism, but to support and justify dos autodenominados libertários americanos,
the last. organizados em torno do von Mises Institute.
Keywords: von Mises, neoliberalism, religion, A sagrada aliança do neoliberalismo ganhou
aristocracy. visibilidade recentemente no Brasil em mani-
festações de rua, mas é encontrada nos últimos
tempos, de forma cotidiana, na imprensa, em
pregações religiosas e no discurso de vários
O neoliberalismo muitas vezes é identificado políticos. A questão que move o artigo é se tal
com o conjunto de políticas estabelecidas a par- aliança, aparentemente incoerente, encontra
tir dos anos 1980 nos governos Reagan e Tha- sentido e fundamentação na ideologia neolibe-
tcher e difundidas nas décadas seguintes. Ou- ral em sua corrente austríaca.
tras vezes, o neoliberalismo, como corrente de É na obra de Ludwig von Mises que a expressão
pensamento, é identificado como tendo origem mais pura dos fundamentos da argumentação
na fundação da Sociedade de Mont Pèlerin, em neoliberal pode ser encontrada.1 O lançamento
1947. Reunindo nomes como Hayek, von Mises, do Liberalismo de von Mises em alemão em 1927
Karl Popper e Milton Friedman, a Sociedade de e em inglês em 1962 assinala o nascimento da
Mont Pèlerin era o think tank do qual sairiam ideologia – termo que o próprio von Mises usa
os princípios que fundamentariam as políticas para definir o liberalismo (von Mises, 1985, p.
econômicas nos anos 1980. 192) – neoliberal. No livro, von Mises propõe
O ponto de partida deste artigo é a constatação uma renovação do liberalismo, cunhando o
de um alinhamento ideológico e político entre termo “neoliberalismo” em distinção ao “antigo
o fundamentalismo religioso, a apologia neoli- liberalismo” (ibidem, p. 27).
beral da sociedade de mercado e as defesas de O artigo não tratará dos argumentos de nature-
formas aristocráticas de governo – da monar- za estritamente econômica do neoliberalismo,
quia à ditadura fascista das elites. Essa “sagrada mas de seus pressupostos. A tese defendida no
aliança”, visível no apoio de Hayek e Friedman artigo é de que o neoliberalismo de von Mises
à ditadura de Pinochet e na encíclica Cente- fundamenta-se em uma argumentação anti-ilu-
simus Annus (1991) de João Paulo II, pode ser minista de natureza religiosa e aristocrática.
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não dependem dos fins dos agentes, incluindo igual capacidade de utilizar os meios. Além dis-
a ação dos outros agentes (Kotarbinsky, 1983, so, afirma que os homens têm um fim último
p. 6). Para se chegar à conclusão neoliberal de em comum em todas as suas ações. Mas esse
von Mises é necessária uma hipótese adicional fim comum é a felicidade, entendida tauto-
sobre a interação de agentes, e pressupor que as logicamente como a satisfação de um desejo.
ações não são conflitantes. Tais hipóteses não Ou seja, é meramente formal, sem conteúdo
estão contidas na premissa do conceito formal definido.
de ação.
Sendo os fins substantivamente desiguais e
Uma forma de se chegar à coordenação dos fins livremente determinados pelas vontades dos
de diferentes indivíduos, partindo do mesmo indivíduos, nada impede que a realização dos
conceito de ação, é pressupor um fim último fins de alguns seja obstáculo para a realização
que seja comum a todos os indivíduos. Mas isso dos fins de outros. Isso pode ocorrer quando
não impede que diferentes indivíduos bus- os trabalhadores buscam aumento de salários
quem esse mesmo fim com meios conflitantes. e os capitalistas buscam diminuir os salários
Portanto, é preciso o pressuposto adicional de como meio de aumentar ou manter os lucros,
que só há uma única maneira de buscar o fim ou quando vários indivíduos desejam o mesmo
último comum a todos e que todos podem fazer bem que não está disponível para todos.
igual uso desses meios. Isso significaria afirmar
Nesses casos, von Mises tem que incluir a pre-
que os homens são igualmente dotados das mes-
missa de uma ordem espontânea que tornaria
mas capacidades. A esse pressuposto pode ser
compatíveis, no longo prazo, as ações movidas
dado conteúdo substantivo com a igual capaci-
pelas vontades autodeterminadas. A ordem
dade de maximização e perfeito conhecimento,
espontânea não está contida no conceito formal
embora isso não seja necessário.
de ação e só é possível a realização de todos os
Esses pressupostos adicionais ao conceito fins após uma longa travessia em que é neces-
formal de ação não estão presentes no argumen- sário fazer “sacrifícios”. Nessa travessia, alguns,
to neoliberal de von Mises. O autor nega que de facto, nunca terão seus desejos realizados.
os homens sejam maximizadores capazes de Adicionalmente, é necessário incluir premissas
conhecer antecipadamente o resultado de suas substantivas sobre a economia para se concluir
ações. Assim, os homens não teriam a raciona- que a divisão do trabalho e a propriedade priva-
lidade perfeita que levaria ao melhor uso dos da dos meios de produção levam a essa ordem
meios e à consecução dos fins. De forma geral, espontânea.
von Mises pressupõe que os homens não têm
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ficos. Em termos kantianos, uma teoria cien- Como distinguir a lógica da ação em relação
tífica explanatória não pode ser deduzida de à lógica do comportamento automático ou da
conceitos a priori, mas deve incluir elementos natureza, se não por meio da experiência? Von
a posteriori retirados da experiência. Assim, as Mises afirma que essas categorias são fruto da
mesmas categorias a priori podem resultar em “reflexão sobre a essência da ação” (ibidem, p.
teorias científicas diferentes (ibidem, p. 59). Do 58). Se por tal reflexão faz-se referência à in-
ponto de vista kantiano, von Mises conflagra as trospecção, esta se constitui a partir de uma
condições para a ciência com a própria ciência experiência subjetiva. Sendo subjetiva, sua
ao dar a ação o status de categoria a priori. realidade deve ser validada intersubjetivamente.
A validade intersubjetiva de experiências sub-
O caráter a priori do conceito de ação em von
jetivas, por sua vez, implica uma experiência
Mises também não é defensável com base na
objetiva comum. Como von Mises nega catego-
lógica pura em termos kantianos. As categorias
ricamente que a realidade dos a priori se funde
lógicas kantianas – quantidade, qualidade,
em qualquer experiência, é plausível supor que
relação, modalidade – seriam puramente inte-
a categoria da ação de von Mises seja inferida a
lectuais, sem qualquer referência à experiência
partir de compromissos ontológicos implícitos
(Young, 1992, p. 101-103). Essas categorias dizem
que são explicitados na seção seguinte.
respeito à forma do pensamento sobre qualquer
coisa e não ao seu conteúdo (ibidem, p. 105-106),
sendo válidos para qualquer ciência indepen- 2. Ontologia finalista e de dois mundos
dente de seu objeto. Von Mises defende que os A princípio pode-se negar a existência de com-
conceitos a priori da praxeologia – finalidade, prometimentos ontológicos na praxeologia de
meios, vontade, razão – não se referem ao “con- von Mises, alegando que este apresenta apenas
teúdo material” das ações, mas apenas à sua argumentos sobre como conhecemos o mundo,
forma. Contudo, ao contrário das categorias ló- argumentos de natureza epistemológica. Von
gicas kantianas, eles não se referem à forma do Mises adota um argumento cético, apontando
pensamento sobre qualquer coisa, mas à forma para a limitação de nosso conhecimento sobre a
da ação enquanto distinta de outras coisas. Von origem das ideias (ibidem, p. 29-30).
Mises é claro ao distinguir a ação, por exemplo,
O argumento cético sobre a origem das ideias,
de um comportamento automático (von Mises,
no entanto, não impede von Mises de afirmar
1990, p. 33).
que estas “são geradas por algum processo des-
conhecido no corpo humano” (von Mises, 2007,
92
Deste modo, a causalidade é um produto da Mises defende, ainda, que toda mudança se
estrutura lógica da mente humana. origina de uma causa e, consequentemente, que
a conduta humana é dirigida pela causalidade
Von Mises compromete-se com uma ontologia
(ibidem, p. 177). No caso da ação humana, no
de “dois mundos diferentes” e na qual “nenhu-
entanto, essa causa é a vontade, algo subjetivo
ma ponte liga esses dois mundos” (von Mises,
que não possui causas. Admitindo que tudo se
1990, p. 29). Para esse economista, a ação hu-
origina de uma causa, a vontade só pode ser
mana é homogênea com a razão e é um pro-
causa de si mesma. A vontade é a causa primei-
duto desta (ibidem, p. 58). A razão, por sua vez,
ra, o motor não movido da ação humana.
parece se identificar com a estrutura lógica da
mente humana. Como a ação é tomada como Deste modo, von Mises reduz toda causalidade
sendo idêntica à razão, a praxeologia funda-se no que se refere ao mundo humano às finalida-
na razão pensando a razão. O caráter a priori des dos agentes. Nos termos das quatro causas
das premissas da praxeologia é ontologicamen- aristotélicas, a causa material da ação, aquilo
te justificado por sua origem em um “mundo de que ela é feita, é a estrutura lógica da mente,
diferente” do mundo material dos sentidos, o uma substância imaterial. O que dá a forma
mundo da mente imaterial. específica de uma ação sua causa formal, nos
termos de Aristóteles, é o fim determinado que
Para von Mises, não é possível estabelecer
ela busca, e este é escolhido de acordo com a
qualquer tipo de relação causal na direção do
vontade autodeterminada dos agentes. O que
mundo da matéria para o mundo da mente,
gera a ação, sua causa eficiente, são as finalida-
embora, como será visto adiante, ele viola esse
des dos agentes; do mesmo modo, as mudanças
pressuposto em pelo menos uma ocasião. Mas a
no mundo material são causadas pelas finalida-
direção contrária é admitida. Von Mises afirma
des dos agentes. Ao admitir que a causalidade
categoricamente, e de forma não condiciona-
é um produto da mente humana, ao colocar a
da pelo estado de nosso conhecimento, que as
causa material das ações em uma substância
ideias e pensamentos “produzem mudanças nas
imaterial e ao conflagrar as outras causas com a
coisas tangíveis e materiais” (von Mises, 2007,
causa final, von Mises assume um compromis-
p. 96).
so ontológico com um mundo humano regido
Von Mises, de facto, atribui um valor ontológico
exclusivamente pela teleologia.
maior à teleologia em relação à causalidade. O
A ordem espontânea é também um tipo de
autor admite que teleologia é uma espécie de
teleologia transposta da mente dos indivíduos
causa, que ele designa como “causa final”. Von
94
acima dos indivíduos ou para uma causa social a ordem espontânea gerada pelo mercado é o
objetiva da ideologia, von Mises admite que a resultado de uma “divisão mentalmente calcula-
origem de uma ideia só pode estar em outras da do trabalho entre os vários empresários” (von
ideias. Mas isso levaria ao regresso infinito e o Mises, 2009, p. 39). Deste modo, a teleologia
ponto de chegada dessa causação de ideias por social reproduz a finalidade de alguns indiví-
ideias é a mente de um indivíduo ou de alguns duos, os empresários. A causa final da história
indivíduos (ibidem). A ideia surgida na mente é constituída pelos fins que alguns indivíduos
de um indivíduo se torna aceitável por outros e buscam. No caso do capitalismo, trata-se dos
assim se transforma em ideologia. (ibidem) fins buscados pelos empresários como causa
final da reprodução econômica.
A causação das ideologias pelas ideias de um
indivíduo restringe a liberdade entendida como Poder-se-ia alegar que a ordem espontânea da
o exercício da vontade sem constrangimentos. história não é teleológica, mas sim um processo
Alguns indivíduos têm sua ação guiada por ide- evolucionário análogo ao da evolução biológica.
ologia preexistente e que não é produto da sua Mas não só as evidências textuais negam tal
escolha. Mas se a liberdade da ação é entendida analogia, como isso incluiria von Mises na ide-
como exercício de uma vontade autodetermina- ologia à qual dedicou toda sua vida a combater,
da, nem todos os indivíduos são livres. o materialismo. Quando trata das origens das
ideias, von Mises rejeita explicitamente as ana-
As afirmações de von Mises levam à proposição
logias biológicas do contágio propostas pelas
de uma teleologia na história. Se são as ideo-
explicações materialistas como uma “compa-
logias que guiam as ações dos indivíduos, se
ração superficial e que não explica nada” (von
na história não há nada além dessas ideias e se
Mises, 2007, p. 99).
as ideologias originam-se da mente de um ou
alguns indivíduos, são as finalidades destes que Fica por explicar o motivo de algumas ideias
determinam a história. Assim, o capitalismo surgirem em alguns indivíduos e não em outros
teria sido um produto teleológico da mente dos e como elas são aceitas se transformando em
economistas e “o que é comumente chamado de ideologia. A explicação da aceitação e da origem
‘revolução industrial’ foi o resultado da revo- das ideias leva a um outro elemento fundamen-
lução ideológica efetuada pelas doutrinas dos tal na ontologia de von Mises: a desigualdade
economistas” (von Mises, 1990, p. 14). natural dos homens e a superioridade de uns
em relação aos outros. Trata-se aqui do argu-
O mesmo tipo de teleologia social está presen-
mento aristocrático que será tratado de forma
te no debate sobre o cálculo socialista. Aqui
96
irrefutáveis e não passiveis de prova. Assim, Aqui se trata das ciências a priori – a matemá-
argumenta Aquino, para conhecer as verdades tica e a lógica. Já a metafísica, lida com coisas
autoevidentes “não é necessário um esforço de “que podem existir sem a matéria, como ocorre
investigação” (Aquino, 1990, p. 34) e “Ninguém claramente com coisas imateriais” (ibidem).
pode admitir mentalmente o oposto do que é
Von Mises admite que as ciências naturais se
autoevidente” (Aquino, 1947, p. 12).
utilizam da experiência, mas o mesmo seria
A fundamentação dada por Aquino ao cará- impossível para as ciências do homem. Assim,
ter autoevidente dos princípios primeiros é a as premissas da praxeologia “São como a lógica
mesma dada por von Mises ao caráter a priori e a matemática aprioristas” (von Mises, p. 48),
das premissas da praxeologia. Tais premissas o que implicaria um compromisso ontológico
são resultados de uma “reflexão sobre a essên- com a mente como algo que se situa como uma
cia da ação” (von Mises, 1990, p. 58). O sentido “matéria inteligível comum”, distinta da “maté-
da reflexão pode ser entendido como um ato ria sensível”.
puramente mental sem referente nas ações
A praxeologia de von Mises também está próxi-
realmente existentes. Sendo essa “essência da
ma dos argumentos de Tomás de Aquino sobre
ação” independente dos atos pelos quais qual-
a alma. Aquino reconhecia a existência de seres
quer ação realmente existe, sua fundamentação
corpóreos e seres espirituais (Aquino, 1947, p.
é metafísica.3
342) e de substâncias intelectivas separadas das
A scientia tomista depende da natureza do que substâncias corpóreas (Aquino, 2008, p. 26-27),
é conhecido. No caso das coisas naturais, a ma- analogamente à divisão entre o mundo material
téria faz parte de usa própria definição (Aquino, e o da mente imaterial em von Mises. Como a
1947, p. 573) e seu conhecimento depende da mente em von Mises, a alma humana em Aqui-
“matéria sensível em comum” (ibidem, p. 575), no é uma substância incorpórea: “É necessário
embora não da individual. Trata-se aqui da “fi- dizer que aquilo que é o princípio da atividade
losofia da natureza”, cujos princípios primeiros intelectual, aquilo que chamamos da alma hu-
devem ser obtidos indutivamente a partir dos mana, é um princípio incorpóreo e subsistente”
sentidos. Os objetos matemáticos, por sua vez. (Aquino, 1947, p. 482).
“podem ser abstraídos pelo intelecto da matéria
Mas o homem não é um ser puramente espi-
sensível”, “podem ser considerados à parte das
ritual em Aquino. Para Aquino o homem “é
qualidades sensíveis”, mas não podem ser abs-
composto de uma substância corpórea e outra
traídos da “matéria inteligível comum” (ibidem).
espiritual”, corpo e alma, sendo assim um “ser
98
coisas existentes no mundo humano, e as fina- ele não exclui que suas ideias neoliberais façam
lidades da ação humana são criadas ex nihilo (a os outros mais felizes.
partir do nada) como no ato da criação divina.
As ideias das quais von Mises magnanimamen-
A vontade humana é a causa final não causada
te pretende libertar os homens são as ideias do
do mundo humano, um análogo da vontade
materialismo. Von Mises entende por materia-
divina.
lismo uma ontologia que atribui as origens de
Ademais, ao afirmar que as premissas da praxe- todas as características humanas a processos
ologia são incontestáveis lógica e empiricamen- físicos e biológicos (von Mises, 2007, p. 94). A
te, von Mises dá a ela o mesmo status da ver- partir dessa definição estreita, o materialismo é
dade revelada por Deus. Causaria espanto em identificado com o fisicalismo e com o mecani-
qualquer pessoa capaz de um raciocínio lógico cismo. Esse último se refere não só à analogia
mínimo a falácia contida no argumento de que do homem com a máquina, mas ao determinis-
tal teoria possa se proclamar “acima de disputas mo causal estendido da natureza ao homem.
de partidos e facções”, quando ela mesma se
Von Mises só reconhece a causalidade de tipo
constitui como uma facção, ou “indiferente aos
mecânico: ele rejeita explicitamente a causali-
conflitos de todas as escolas de dogmatismo”
dade probabilística (von Mises, 1962, p. 93); não
(ibidem, p. 43), quando ela mesma proclama seu
considera a dialética de Marx, atribuindo a ele
dogmatismo.
o estrito mecanicismo; e desconhece a causali-
A motivação explícita de von Mises para a dade complexa do materialismo emergentista
formulação da praxeologia e para o argumento que se desenvolveu nos últimos anos.
liberal deduzido a partir dela é a evidência mais
O alvo imediato do ataque ao materialismo é
forte de sua fonte religiosa. Em sua cruzada
obviamente o marxismo. Mas von Mises vai
pelo neoliberalismo, von Mises afirma que
mais longe em sua cruzada contra o materia-
a libertação das pessoas da “doutrinação” do
lismo, atingindo o positivismo e o Iluminismo.
marxismo e do “progressivismo” será decidida
Todos são tidos como essencialmente o mesmo
“pelas questões fundamentais da epistemologia
materialismo. Desta forma, o materialismo que
e teoria do conhecimento” (von Mises, 1990a, p.
von Mises ataca pode ser classificado como um
206). Note-se de passagem que isso contradiz a
espantalho.
afirmação de von Mises de que “Ninguém tem
Sendo o materialismo uma ontologia, sua
condições de determinar o que faria alguém
contraposição deveria ser feita no mesmo plano
mais feliz” (von Mises, 1990, p. 24), uma vez que
ontológico. Von Mises não o faz explicitamen-
100
como ontologia social se é admitida a existên- de von Mises, uma vez que as diferenças entre
cia de seres superiores no mundo terreno da indivíduos ou grupos humanos não implica
sociedade. O argumento aristocrático é o ponto necessariamente a superioridade in toto de uns
fundamental dos comprometimentos ontológi- sobre outros. Para deduzir a suposta superiori-
cos de von Mises. dade das diferenças, von Mises inclui um juízo
de valor implícito.
102
tir o racismo biológico como ponto de partida, sua destruição e se comprazem no orgulho
von Mises afirma, no mínimo, a compatibili- extravagante de sua civilização” (ibidem, p. 332).
dade de sua teoria da história com as políticas Tais afirmações de von Mises, em que pese sua
racistas. Se a teoria da história de von Mises recusa em se pronunciar sobre políticas racistas,
não deve se pronunciar sobre tais pressupostos não deixam de ser uma defesa implícita de tais
biológicos, se o mundo da mente humana é políticas.
separado do mundo material no qual se in-
O racismo é apenas a faceta mais repugnante do
cluem os fatos biológicos e se, de acordo com
argumento aristocrático de von Mises. A defesa
von Mises, a história afirma a “superioridade da
das diferenças naturais e da superioridade de
raça branca”, resta apenas uma teoria racista da
alguns em relação a outros estende-se da relação
história no autor. Livre dos fatos biológicos, os
entre as supostas “raças” para a relação entre
“fatos da história”, segundo von Mises, corro-
governantes e governados na política e entre
boram que “até o momento” se estabeleceu a
indivíduos na economia.
“superioridade da raça branca”.
Segundo von Mises, a defesa Iluminista da
Ao colocar de forma cética o argumento do
democracia baseava-se na defesa da superio-
racismo biológico e ao mesmo tempo afirmar
ridade intelectual e moral do povo frente aos
a superioridade de uma suposta “raça” sobre
monarcas e à aristocracia. (von Mises, 1985, p.
as outras na história, a refutação da teoria das
42) Von Mises vê na defesa da democracia pelo
raças pela biologia – algo já estabelecido hoje –
liberalismo antigo um equívoco, pois “o povo
não levaria à negação de políticas racistas. Sob
é a soma de todos os cidadãos individuais; e se
esse aspecto, o racismo contido na teoria de von
alguns indivíduos não são inteligentes e nobres,
Mises revela-se ainda mais profundo e pernicio-
então todos juntos também não o são” (ibidem).
so que o racismo biológico. O racismo cultural,
Com base nisso, von Mises defende a democra-
característico da extrema direita contemporâ-
cia como “o governo dos melhores”, ainda que
nea, é uma conclusão implícita no argumento
os melhores aqui sejam aqueles capazes de con-
de von Mises.4
vencer os outros de que são qualificados para
A manutenção da civilização capitalista, que governar. (ibidem, p. 42-43)
seria um feito da “raça branca” segundo von
Outra diferença apontada por von Mises entre
Mises, implicaria políticas racistas que con-
o liberalismo clássico e o neoliberalismo é a
tivessem os “não-caucasianos” que “odeiam e
concepção da evolução histórica. O liberalismo
desprezam o homem branco”, que “planejam
clássico acreditava em uma evolução progressi-
104
von Mises está mais próximo de Malthus na natural, não pode ser atribuída ao mérito, mas
defesa da necessidade econômica da aristocra- a uma predestinação. Em segundo lugar, os em-
cia e distante das advertências do liberal Adam preendedores parecem fugir do conceito formal
Smith contra a prodigalidade dos ricos. de ação como livre exercício da vontade, pois
suas vontades são determinadas pelo público,
De acordo com von Mises, a origem da de-
identificado por von Mises com os consumido-
sigualdade econômica está na desigualdade
res. Assim, von Mises, em um artifício de retóri-
natural. Alguns se beneficiam mais da proprie-
ca, coloca aparentemente os empreendedores
dade privada que outros, têm uma renda maior
não como homens que exercem a sua vontade
que outros e consomem bens de luxo por serem
autodeterminada, mas como subordinados a
naturalmente mais capacitados que outros. São
um mestre, à massa dos consumidores. (von
predestinados pela natureza a serem proprie-
Mises, 1990a, p. 22)
tários e ricos. O argumento de von Mises com
relação à origem natural da desigualdade eco- Os artifícios de retórica para a apologia do
nômica, no entanto, é ocultado pela aparente neoliberalismo não são capazes de ocultar o
defesa da soberania do consumidor. argumento aristocrático de von Mises. Apa-
rentemente, uma economia de mercado seria
Von Mises afirma que na economia de mercado
uma democracia governada pelas massas. A
são os consumidores que selecionam os vence-
democracia de mercado, afirma von Mises, é
dores no mercado. Os lucros “derivam sempre
“aquela em que cada centavo significa um voto”
de uma correta previsão da situação futura”
(ibidem, p. 81). Como os empreendedores que
(von Mises, 1990, p. 928-929); portanto aqueles
detêm a propriedade dos meios de produção e
que conseguem se manter como proprietários
têm uma renda maior também são consumido-
são os naturalmente mais bem-dotados em suas
res, a retórica da soberania do consumidor é a
capacidades mentais. Mas estes estariam subor-
retórica de um populismo elitista.5 Aqueles que
dinados à vontade dos consumidores. Von Mises
são predestinados por sua maior capacidade na-
afirma que “é o consumidor que faz algumas
tural de antecipar os desejos dos consumidores
pessoas ricas e outras pobres” (von Mises, 1990a,
têm um “voto” de maior peso na “democracia
p. 50), e os que obtêm lucros são os que “estão
do mercado”. A democracia do mercado é uma
em condições de atender as necessidades mais
democracia aristocrática, um oximoro.
urgentes do público” (von Mises, 1990, p. 927).
O populismo elitista de von Mises no que se
Tal capacidade de “atender as necessidades” do
refere à “democracia do mercado” é explicitado
público, sendo oriunda de uma desigualdade
106
composta pelos homens naturalmente “superio- ler Engelbert Dollfuss, chanceler da Áustria
res” que o fazem. em 1933, após se aliar à Itália então governada
pelo partido fascista de Mussolini, dissolver o
A teoria formal da ação ganha assim um
parlamento e governar com bases em leis emer-
conteúdo preciso e definido com o argumento
genciais; ou seja, após estabelecer uma ditadura
aristocrático de von Mises. A vontade da elite
temporária de elite.
predestinada é autodeterminada. As massas de-
vem se contentar em mudar seu modo de vida
“voluntariamente” induzidos pela elite; caso 6. Considerações finais: o neoliberalis-
as massas persistam na ignorância, só resta às mo como reação
elites induzirem coercitivamente a mudança em Demonstrou-se nesse artigo que o neoliberalis-
seu modo de vida. Um comportamento voluntá- mo de von Mises fundamenta-se em uma onto-
rio induzido não é um comportamento auto- logia religiosa e em argumentos aristocráticos.
determinado, mas a vontade das massas tem Pode parecer estranho a fusão do liberalismo
como causa a vontade das elites. No liberalismo com o pensamento religioso e aristocrático. No
de von Mises, apenas as elites têm sua vontade plano ideológico, o liberalismo combateu o pen-
autodeterminada, apenas elas são livres. Sua samento aristocrático e religioso durante o alvo-
defesa da liberdade é a defesa da liberdade de recer do pleno desenvolvimento do capitalismo
alguns induzirem a vontade de outros, pela no século XVIII, a despeito das diferenças que
coerção física quando necessário. se possam observar entre a ideologia e a prática.
O argumento aristocrático de von Mises é com- É preciso assinalar que o neoliberalismo de von
pletamente compatível com uma ditadura de Mises é orientado pela obsessiva cruzada contra
elite, mesmo que essa deva se manter somente tudo que ele identificava como socialismo. O
durante o “tempo necessário” para mudar o “tudo” que identifica, de facto, como socialis-
pensamento “das massas” (von Mises, 1985, p. mo é qualquer coisa que seja minimamente
45). Cabe observar que a defesa que von Mises favorável aos trabalhadores, mesmo dentro dos
faz de uma “ditadura temporária de elite” não marcos do capitalismo e da democracia liberal.
é apenas teórica. Em 1934, von Mises tornou- A natureza da ameaça ao capitalismo mudou, já
-se membro da Frente Patriótica austríaca, com não é mais o clero e a nobreza, mas os trabalha-
a carteira número 28632 (Hülsmann, 2007, p. dores ou, como denomina von Mises, “a massa”.
677, n. 149). A Frente Patriótica foi estabelecida Pode se entender isso a partir da natureza polí-
como partido único da Áustria pelo chance- tica da contraposição de von Mises ao materia-
108
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