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Aborto: é possível ser “pró-vida” e “pró-escolha” ao mesmo tempo?


Carl Sagan & Ann Druyan1 2

A humanidade gosta de pensar em termos de opostos extremos.


Tende a formular suas crenças em termos de “ou isso ou aquilo”,
polos entre os quais não reconhece possibilidades intermediárias.
Quando forçada a reconhecer que os extremos não são praticáveis,
ainda sustenta que são possíveis na teoria, mas que em assuntos
práticos as circunstâncias nos compelem a abrir mão de algumas
posições.

John Dewey, Experience and Education, I (1938)

A questão fora resolvida havia anos. Os tribunais decidiram o caminho do meio.

Pensava-se que a luta havia acabado. Ao invés disso o que temos são ataques, bombas

e intimidação, assassinato de trabalhadores em clínicas que fazem abortos, prisões,

lobby intenso, drama legislativo, audiências públicas, decisões dos supremos tribunais,

grandes partidos políticos quase se definindo inteiramente através desta questão, e

religiosos ameaçando políticos à perdição. Militantes disparam acusações de hipocrisia

e assassinato. A defesa da Constituição e a vontade de Deus são igualmente invocadas.

Argumentos duvidosos são repetidos como certezas. As facções em disputa

reivindicam a ciência para sustentar suas posições. Famílias se dividem, maridos e

esposas decidem não discutir sobre o tema, amigos de longa data não mais se falam.

Políticos consultam as pesquisas de opinião para saber o que dizem suas consciências.

No meio de tanta gritaria fica difícil para os adversários se escutarem. As opiniões se

polarizam. As mentes de fecham.

1
Artigo publicado pela primeira vez na revista Parade com o título de “A questão do aborto: uma busca
por respostas” em 22 de Abril de 1990.
2
Tradução livre por Marília Moschkovich. Contato marilia@mulheralternativa.net.

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É errado abortar uma gravidez? Sempre? Às vezes? Nunca? Como decidir?

Escrevemos este artigo para melhor compreender que visões disputam tais questões e

para ver se nós mesmos encontramos uma posição que nos satisfaça. Não haveria um

caminho do meio? Foi preciso pesar os argumentos de ambos os lados em relação a

sua consistência e propor exemplos-teste, alguns destes puramente hipotéticos. Se em

alguns destes testes parecemos ir muito longe, pedimos aos leitores e leitoras que

sejam pacientes conosco – estamos tentando forçar as várias posições até seu limite

para ver sua fragilidade e onde falham.

Em momentos contemplativos praticamente todos nós reconhecemos que a

questão não é unilateral. Muitos militantes de divergentes pontos de vista, ao que

parece, sentem certa inquietação e dificuldade ao confrontarem o que está por trás

dos argumentos de seus opositores. (Isto acontece em parte porque tais confrontos

são evitados) O assunto certamente toca questões profundas: Quais são nossas

responsabilidades para uns com os outros? Devemos permitir que o Estado se

intrometa nos aspectos mais íntimos e pessoais de nossas vidas? Quais são as

fronteiras da liberdade? O que significa sermos humanos?

Dos muitos pontos de vista que existem de fato, é largamente sustentado –

especialmente na mídia que raramente encontra tempo e boa vontade para fazer

distinções mais finas – que só existem dois: “pró-escolha” e “pró-vida”. Assim é que

estes dois campos de batalha centrais gostam de se chamar e é assim que os

chamaremos aqui. Na caracterização mais simplificada, um “pró-escolha” defenderia

que a decisão de abortar deve ser feita unicamente pela mulher; o Estado não tem o

direito de interferir. Um “pró-vida” defenderia que, desde o momento da concepção, o

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embrião ou feto estão vivos; que essa vida nos impõe uma obrigação moral de

preservá-la; e que o aborto é análogo a um assassinato. Ambos os nomes – “pró-

escolha” e “pró-vida” – foram escolhidos tendo em vista influenciar as opiniões

daqueles que ainda não têm uma opinião sobre o assunto. Poucas pessoas gostariam

de ser colocadas no lado contrário à liberdade de escolha ou contrário à vida. De fato,

liberdade e vida são dois dos nossos valores mais caros e aqui eles parecem estar

fundamentalmente em conflito.

Vamos considerar essas duas posições absolutistas uma por vez. Um bebê

recém-nascido é certamente o mesmo ser que era antes de seu nascimento. Há

evidências sólidas de que um feto no final da gravidez responde ao som – inclusive

música, mas em especial à voz da mãe. Pode chupar o próprio dedo ou dar uma

cambalhota. Ocasionalmente gera padrões de ondas cerebrais de um adulto. Algumas

pessoas dizem se lembrarem do próprio nascimento ou mesmo do ambiente uterino.

Talvez haja pensamento no útero. É difícil conseguir sustentar a ideia de que a

transformação em pessoa aconteça abruptamente no momento do nascimento. Por

que, então, seria crime matar uma criança no dia seguinte a seu nascimento, mas não

no dia anterior?

Na prática isto não é muito importante: menos de 1% dos abortos registrados

nos Estados Unidos são realizados nos últimos três meses de gravidez (e, olhando mais

de perto, a maioria dos registros nestas condições são na verdade abortos não-

provocados ou erros de cálculo na hora de determinar quando o aborto ocorreu). Mas

abortos no terceiro trimestre permitem testar o limite do ponto de vista pró-escolha.

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O direito inalienável de uma mulher ao próprio corpo englobaria o direito de matar um

feto próximo ao nascimento, que é idêntico a um bebê recém-nascido?

Acreditamos que a maioria dos apoiadores da liberdade reprodutiva encontre-se

perturbada de vez em quando por esta questão. Ao mesmo tempo, relutam em

levantá-la por que ela é o começo de um caminho perigoso. Afinal, se um aborto não

poderia ser provocado ao nono mês de gravidez, por que deveria ser permitido no

oitavo, sétimo, sexto...? Reconhecendo que o Estado possa interferir na gravidez em

algum momento não seguiria que o Estado pode intervir a todo e qualquer momento?

Isto nos faz pensar num quadro de legisladores predominantemente homens e

muito influentes dizendo às mulheres pobres que elas devem sustentar sozinhas filhos,

para o que elas não têm condições materiais; forçando adolescentes a criar filhos, para

o que elas não têm condições emocionais; dizendo às mulheres que desejam uma

carreira que elas têm de desistir de seus sonhos, ficar em casa e criar bebês; e, pior de

tudo, condenando vítimas de estupro e incesto a carregarem e cuidarem dos

resultados destes episódios 3. Proibições legislativas da prática de aborto levantam a

suspeita de que seu objetivo seria, na verdade, controlar a independência e a

sexualidade das mulheres. Por que os legisladores deveriam ter qualquer direito de

dizer às mulheres o que fazer com seus corpos? Ser tolhida de toda sua liberdade

reprodutiva é humilhante. As mulheres estão fartas de serem manipuladas.

Mesmo assim, por consenso, todos achamos que deve haver proibições e

punições para assassinatos. Não seria muito convincente se a defesa de um assassino

3
Dois dos pró-vida mais enérgicos de todos os tempos foram Hitler e Stalin – que assim que subiram ao
poder criminalizaram os abortos permitidos em lei. Mussolini, Ceausescu e incontáveis outros ditadores
e tiranos nacionalistas também o fizeram. Claro que isso não é, em si, um argumento pró-escolha, mas
nos deixa alertas para a possibilidade de que ser contra o aborto nem sempre significa ser
comprometido verdadeiramente com a vida humana.

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fosse alegar que aquela questão é somente entre ele e sua vítima e que não é da conta

do governo. Se matar um feto é realmente o mesmo que matar um ser humano, não

seria dever do Estado fazer algo contra isso? De fato, uma das funções Estado é, em

tese, proteger os mais fracos dos mais fortes.

Se não nos opusermos ao aborto em algum estágio da gravidez, não existe o

risco de estarmos desconsiderando toda uma categoria de seres humanos como se

não fossem dignos de proteção e respeito? Essa desconsideração não é justamente o

que funda o sexismo, o racismo, o nacionalismo e o fanatismo religioso? As pessoas

que se dedicam a lutar contra estas injustiças não deveriam então tomar um cuidado

imenso para não sustentar outra?

Não existe direito à vida em qualquer sociedade na Terra hoje, nem nunca existiu

em qualquer outra época (com algumas raras exceções, como os Jains na Índia):

criamos animais para abate; destruímos florestas; poluímos rios e lagos até que peixes

não mais possam viver; matamos alces e veados por esporte, leopardos por suas peles

e baleias por fertilizante; deixamos golfinhos se enroscarem, agonizantes, em redes

para pesca de atum; espancamos filhotes de foca até a morte; tornamos uma espécie

extinta a cada dia. Todas estas plantas e animais estão tão vivos quanto nós. O que se

está supostamente discutindo e protegendo, então, não é a vida, mas sim a vida

humana.

Mesmo com essa proteção, assim definida, o assassinato tornou-se lugar-

comum, e financiamos guerras cujos números de mortos são tão terríveis que temos

medo de considera-los profundamente. (Aliás, assassinatos em massa promovidos pelo

Estado são geralmente justificados redefinindo nossos oponentes – por sua raça,

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nacionalidade, religião ou ideologia – como menos do que humanos) Essa proteção,

esse suposto direito à vida, esquece-se de que 40 mil crianças abaixo dos cinco anos de

idade morrem todos os dias em nosso planeta, em decorrência de fome, desidratação,

doenças e negligência que poderiam ser facilmente evitadas.

Aqueles que reivindicam “direito à vida” não estão a favor de qualquer tipo de

vida, mas particular e especificamente, da vida humana. Estes, como os pró-escolha,

precisam decidir então o que é que distingue um ser humano de outros animais e em

que momento, durante a gestação, as qualidades unicamente humanas (quaisquer que

sejam) aparecem.

Apesar de muitos dizerem o contrário disto, a vida não começa na concepção: é

uma cadeia inquebrável que começa próxima à origem da Terra, 4.6 milhões de anos

atrás. Nem a vida humana começa na concepção: é uma cadeia inquebrável que data

da origem de nossa espécie, centenas de milhares de anos atrás. Cada espermatozoide

e cada óvulo humano estão, sem sombra de dúvidas, vivos. Não são seres humanos,

claro. No entanto, pode-se argumentar que um ovo fertilizado tampouco o é.

No caso de alguns animais, um ovo se torna um adulto saudável sem a menor

ajuda ou influência de um espermatozoide. Um óvulo e um espermatozoide

conjuntamente configuram a sequência genética completa de um ser humano. Sob

determinadas circunstâncias, depois da fertilização eles podem se desenvolver e

tornarem-se bebês. A maioria dos óvulos fertilizados, porém, são rejeitados e

naturalmente abortados. O desenvolvimento para se tornar um bebê não é garantido

de forma alguma. Tampouco um espermatozoide ou óvulo, sozinhos, são mais

potencialmente um bebê ou adulto. Então, se um espermatozoide e um óvulo são tão

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humanos quanto o óvulo fertilizado produzido em sua união, e se é assassinato

destruir um óvulo fertilizado – apesar do fato de que é apenas potencialmente um

bebê – por que não seria assassinato destruir um espermatozoide ou um óvulo?

Centenas de milhares de espermatozoides (velocidade máxima com as caudas

batendo: cinco polegadas por hora) são produzidos numa ejaculação mediana

humana. Um jovem saudável pode produzir, numa semana ou duas, espermatozoides

o suficiente para dobrar a população da Terra. Quer dizer então que a masturbação é

assassinato em massa? E as ejaculações noturnas ou pura e simplesmente o ato

sexual? Quando um óvulo não-fertilizado é expelido a cada mês, consideramos que

alguém morreu? Deveríamos ficar de luto por todos estes abortos espontâneos?

Muitos animais podem ser criados em laboratórios a partir de uma única célula do

corpo. Células humanas podem ser clonadas (talvez o caso mais famoso sendo o clone

HeLa, batizado em homenagem à sua doadora, Helen Lane). À luz destas tecnologias,

estaríamos cometendo assassinatos em massa ao destruirmos células potencialmente

clonáveis? Ao derramarmos uma gota de sangue?

Todo óvulo e espermatozoide humanos são metade genéticas de “potenciais”

seres humanos. Deveríamos fazer esforços heroicos para salvar e preservar cada um

deles, em todos os lugares, por causa deste “potencial”? Nossa incapacidade em fazê-

lo seria imoral ou até mesmo criminal? Claro, há uma diferença entre tirar uma vida e

falhar em salvá-la. E há uma diferença gigantesca entre a probabilidade de

sobrevivência de um espermatozoide e de um óvulo. O absurdo de uma tropa de

preservadores-de-sêmen nos faz questionar se o potencial de um óvulo fertilizado para

se tornar um bebê realmente torna sua destruição um assassinato.

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Aqueles que se opõem ao aborto se preocupam que, uma vez que o aborto seja

permitido após a concepção, nenhum argumento o barraria em estágios posteriores da

gravidez. Temem que, então, um dia seja permitido matar um feto que seja

indubitavelmente um ser humano. Ambos os pró-escolha e os pró-vida (pelo menos

alguns deles) são levados a posições absolutistas por medos paralelos de deixar

brechas em suas argumentações.

Outro ponto considerado uma brecha é o daqueles “pró-vida” que consideram

ser aceitável fazer exceções nos casos de gravidezes provocadas por estupro ou

incesto. Mas por que o direito à vida deveria depender das circunstâncias da

concepção? Se a criança que resulta é a mesma, o Estado poderia ordenar vida quando

ela vem de uma união oficializada e morte se ela é concebida pela força ou coerção?

Como isso pode ser justo? Se as exceções são estendidas para estes fetos, por que

deveriam ser proibidas para todos os demais fetos? Esta é uma parte do motivo pelo

qual alguns “pró-vida” adotam o que muitas pessoas consideram uma postura

revoltante, que é se opor ao aborto em toda qualquer circunstância – a única exceção

sendo, talvez, quando a vida da mãe está em risco4.

A maior razão para o aborto no mundo todo é o controle de natalidade. Não

deveriam então os opositores do aborto estar distribuindo contraceptivos nas ruas e

ensinando as crianças nas escolas a os utilizarem? Esta seria uma forma eficaz de

reduzir o número de abortos. Pelo contrário, os Estado Unidos estão muito atrás de

outras nações no que diz respeito ao desenvolvimento de métodos seguros e efetivos

4
Martinho Lutero, fundador do protestantismo, se opunha até mesmo a esta exceção: “Se estiverem
cansadas ou morrerem por gravidez ou parto, isto não importa. Que morram pela fertilidade – é para
isto que existem” (Lutero, Com Ebelichen Leben, 1522).

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de controle de natalidade – e, em muitos casos, a oposição a este tipo de pesquisa (e à

educação sexual) vem das mesmas pessoas que se opõem ao aborto 5.

5
De forma semelhante, não deveriam os “pró-vida” contar os aniversários do momento da concepção e
não do momento do nascimento? Não deveriam perguntar mais a seus pais sobre o histórico sexual
deles e sua concepção? Esbarrariam numa incerteza, ainda assim: pode demorar horas e até dias após o
ato sexual para que a concepção aconteça (uma dificuldade para aqueles pró-vida que também buscam
interpretações da astrologia).

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Parte II

A tentativa de encontrar uma posição coerente e eticamente viável sobre

quando, se em algum momento, o aborto deve ser permitido, tem raízes históricas

profundas. Frequentemente, em especial nas tradições cristãs, estas tentativas

estavam ligadas à discussão sobre em que momento a alma entra no corpo – uma

questão não muito pertinente nas investigações científicas e de muita controvérsia

mesmo entre grandes teólogos e teólogas. Nesse debate o “animamento”

(ensoulment) ocorreria no esperma antes da concepção, na concepção, no momento

em que a grávida sente pela primeira vez o feto de mexer dentro dela (quickening) e

no nascimento. Ou até depois.

Religiões diferentes têm ensinamentos diferentes. Entre caçadores-coletores

geralmente não há proibição do aborto, que era comum também na Grécia Antiga e no

Império Romano. Ao contrário, os Assírios mais ortodoxos empalavam as mulheres

acusadas de tentarem abortar. O Talmude judeu diz que o feto não é uma pessoa e

não tem direitos. O Novo e o Velho Testamento – ricos em proibições de dieta,

vestimenta, e palavras que deve ou não falar – não contém uma única palavra

especificamente proibindo o aborto. A única passagem que é remotamente relevante

(Êxodo 21:22) decreta que se numa briga uma mulher acidentalmente for atingida e

sofrer um aborto, o agressor deve pagar uma multa.

Nem Santo Agostinho nem São Tomás de Aquino consideravam o aborto em

início de gravidez como homicídio (este último alegava que isso era porque o embrião

não tinha a aparência de um humano). Esta visão foi aceita pela Igreja no Conselho de

Viena em 1312, e nunca foi repudiada. A primeira e mais longeva coleção de direito

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canônico da Igreja (de acordo com John Connery, S. J., um dos maiores historiadores

das posições da Igreja sobre o aborto) dizia que o aborto era homicídio somente

depois que o feto estivesse “formado” – mais ou menos no final do primeiro trimestre.

Quando os espermatozoides foram examinados no século XVII (dezessete) pelos

primeiros microscópios, pensava-se que eram seres humanos completamente

formados. Uma ideia antiga de homúnculos foi ressuscitada – na qual cada

espermatozoide é um minúsculo humano totalmente formado que teria testículos nos

quais haveria outros ainda menores, etc., ao infinito. Em parte por causa dessa má

interpretação de dados científicos, em 1869 o aborto por qualquer razão e em

qualquer período da gravidez tornou-se motivo para excomunhão. É surpreendente

para muitos católicos descobrirem que a data desta proibição não é muito antiga.

Do período colonial até o século XVII, nos Estados Unidos a escolha era da

mulher até o momento do “quickening:” (primeira mexida do feto sentida pela

grávida). Um aborto no primeiro ou até no segundo trimestre era considerado no

máximo uma bobagenzinha cometida. Era raro e quase impossível que houvesse

condenações por conta disso, já que se dependia única e inteiramente de um

testemunho da própria mulher sobre se já tinha sentido o feto de mexer ou não, e

também porque não parecia razoável aos júris condenar uma mulher por exercer seu

direito de escolha. Em 1800 não havia, até onde sei, uma única regulamentação sobre

aborto nos Estados Unidos. Propagandas de drogas que induziam o aborto eram

encontradas em todo jornal e mesmo em publicações religiosas – embora a linguagem

fosse eufemística, mesmo claramente compreendida.

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Por volta de 1900, porém, o aborto tinha sido proibido a qualquer momento da

gravidez em todos os estados da União [EUA], exceto se fosse para salvar a vida da

mulher. O que provocou essa inversão? A religião teve muito pouca responsabilidade

sobre a mudança. Conversões sociais e econômicas drásticas transformavam o país de

uma sociedade agrária para uma sociedade urbana-industrial. Os EUA estavam no

processo de mudar, de uma das taxas de natalidades mais altas no mundo, para uma

das mais baixas. O aborto certamente tinha um papel nisso e estimulava forças para

que fosse suprimido.

Uma das forças mais significantes, dentre estas, foi a profissão médica. Até a

metade do século XIX (dezenove), a medicina era um negócio não certificado e sem

supervisão. Qualquer um podia pendurar uma grade de horários na parede e se auto

intitular “médico”. Com o surgimento de uma nova elite médica educada em

universidades, ansiosa para impulsionar o status e a influência da emergente categoria

profissional, a Associação Média dos EUA foi formada. Na primeira década essa

associação começou a fazer lobbies contra abortos realizados por qualquer um que

não fosse um médico licenciado (por ela mesma). Novos conhecimentos em

embriologia, diziam eles, mostravam que o feto seria humano mesmo antes de

começar a se mexer no ventre.

O ataque deste grupo ao aborto não foi motivado por uma preocupação com a

saúde das mulheres mas, diziam eles, com o bem-estar do feto. Era preciso ser médico

para saber quando o aborto seria moralmente justificado, porque a questão

dependeria de fatos científicos e médicos sobre os quais eles teriam o monopólio. Ao

mesmo tempo as mulheres eram efetivamente excluídas das escolas de medicina,

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onde tal conhecimento poderia ser adquirido. Então, da forma como as coisas

ocorreram, as mulheres não tinham quase nada a dizer sobre o término de suas

próprias gravidezes. Era o médico quem podia decidir se a gravidez representava ou

não uma ameaça à mulher, e estava totalmente a seu critério definir que tipos de

coisas implicavam ou não tais ameaças. Para as mulheres ricas, a ameaça poderia ser à

sua tranquilidade emocional ou ao seu estilo de vida. As mulheres pobres

frequentemente eram forçadas a recorrerem a fundos de quintal e cabides.

Esta foi a legislação até os anos 1960, quando uma articulação de indivíduos e

organizações – a tal associação médica entre elas – lutou para reinstalar os valores

mais tradicionais incorporados no caso Roe vs. Wade 6.

6
Nota de tradução: “Roe versus Wade”, foi um caso julgado pela Suprema Corte nos Estados Unidos,
que mudou a prática judicial sobre o aborto. A partir deste julgamento, o aborto passou a ser permitido
quando a mulher requisitasse sem ter o primeiro trimestre da gravidez como limite máximo. Ao final
deste texto o autor reflete mais especificamente sobre este episódio.

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Parte III

Se você deliberadamente matar um ser humano, é assassinato. Se você

deliberadamente matar um chimpanzé – biologicamente nosso parente mais próximo,

com 99,6% de genes ativos em comum -, o quer que seja, não é assassinato. Até hoje,

o assassinato se aplica unicamente ao ato de matar seres humanos. Por este motivo a

questão sobre quando tornamo-nos pessoa (ou quando recebemos nossa ‘alma’) é

central para o debate sobre o aborto. Quando o feto se torna humano? Quando as

características típicas e únicas de ser humano surgem?

Reconhecemos que especificar um momento único atropela variações

individuais. No entanto, se precisamos traçar uma linha, ela deve ser traçada de forma

conservadora, ou seja, do lado do menor tempo possível entre essas variações. Há

pessoas que se recusam a aceitar a definição de um limite numérico/temporal e

compreendemos sua inquietação; mas se é para haver leis sobre o assunto é preciso

especificar, pelo menos de maneira grosseira, um momento para essa transição de

feto para ser humano.

 Todos nós começamos como um pontinho. Um óvulo fertilizado é mais


ou menos do tamanho do ponto final desta frase. O espetacular encontro
de um espermatozoide e um óvulo em geral ocorre em uma das duas
trompas de falópio. Uma célula vira duas, duas viram quatro, e assim por
diante – um exponencial de base 2. No décimo dia depois da fertilização o
pontinho se tornou uma espécie de esfera oca movendo em direção a
outro reino: o útero. Em seu caminho destrói tecido. Suga o sangue de
capilares. Banha-se em sangue materno, do qual extrai oxigênio e
nutrientes. Estabelece-se como uma espécie de parasita nas paredes
uterinas.

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 Na terceira semana, em geral a época para a primeira menstruação que


não vem, o embrião em formação tem mais ou menos 2 milímetros de
comprimento e está desenvolvendo várias partes do corpo. Somente
neste estágio ele começa a depender da placenta, ainda de forma
rudimentar. É meio parecido com um verme segmentado7.

 No final da quarta semana o embrião já está com 5 milímetros de


comprimento. Já é reconhecido como um vertebrado e o coração em
forma tubária está começando a bater, alguma coisa parecida com
guelras de peixes e anfíbios aparece e um rabo passa a protuberar.
Parece uma pequena salamandra ou girino. Este é o final do primeiro mês
após a concepção.

 As divisões grossas do cérebro já podem ser distinguidas na quinta


semana. O que depois se tornarão olhos, passa a aparecer, e pequenos
botões ficam visíveis – depois se tornarão braços e pernas.

 Na sexta semana o embrião tem 13 milímetros de comprimento (1,3cm).


Os olhos ainda ficam nos lados da cabeça, como em muitos animais, e a
face de réptil apresenta pequenos cortes e dobras onde eventualmente
serão a boca e o nariz.

 No final da sétima semana o rabo praticamente se foi e características


sexuais começam a poder ser identificadas (mesmo que em fetos de
ambos os sexos a aparência seja feminina). A face é mais parecida com a
de um mamífero, mas ainda algo suína e não humana.

 No final da oitava semana a face é similar à de um primata mas ainda não


muito humana. A maioria das partes do corpo humano está presente pelo

7
Uma quantidade razoável de publicações fundamentalistas cristãs e outras de direita criticaram este
argumento – alegando que ele seria baseado numa doutrina obsoleta, chamada recapitulação, de um
biólogo alemão do século XIX (dezenove). Ernst Haeckel propôs que as etapas do desenvolvimento
embrionário de um animal reconstruiria os estágios do desenvolvimento evolutivo de seus ancestrais. A
recapitulação tem sido tratada de forma exaustiva e cética pelo biólogo evolutivo Stephen Jay Gould
(em seu livro Ontogeny and Phylogeny [Cambridge: Mass.: Harvard University Press, 1977]). Mas este
artigo não contém uma única palavra sobre recapitulação, como o leitor deste trecho poderia talvez
supor. As comparações do feto humano com outros animais (adultos) é baseada na aparência do feto. É
uma forma não-humana e nada nesta história evolutiva está sendo usado como argumento nestas
páginas.

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menos em sua essência. A anatomia cerebral mais baixa está bem


desenvolvida. O feto mostra resposta a estímulos delicados.

 No final da décima semana, a face já tem uma feição caracteristicamente


humana. Começa a ser possível distinguir fêmeas e machos. Unhas e
estrutura óssea não serão visíveis até pelo menos o terceiro mês (12
semanas).

 No quarto mês, já se pode diferenciar o rosto de fetos diferentes. É


comum que se consiga sentir o feto se mexendo somente a partir do
quinto mês. Os bronquíolos dos pulmões não começam a se desenvolver
até pelo menos o sexto mês, e os alvéolos vêm ainda mais tarde.

Então se apenas pessoas podem ser assassinadas, quando é que o feto torna-se

pessoa? Quando sua face se torna humana, no final do primeiro trimestre? Quando

passa a responder a estímulos, de novo, na mesma época? Quando se torna ativo o

suficiente para que a grávida sinta ele se mexer, geralmente no meio do segundo

trimestre? Quando os pulmões alcançam um estágio de desenvolvimento suficiente

que permitiria ao feto, ao menos em tese, respirar sozinho no ar exterior ao útero?

O problema desta métrica de desenvolvimento não é só que ela é arbitrária. É

ainda mais perturbador o fato de que nenhuma destas fases envolve características

unicamente humanas – exceto no caso superficial da aparência facial. Todos os

animais respondem a estímulos e se mexem na gestação. Muitos são capazes de

respirar. Mas isso não nos impede de massacrá-los aos milhões. Reflexos e movimento

e respiração não são o que nos torna humanos.

Outros animais têm vantagens sobre nós – em velocidade, força, resistência,

habilidade de escalar ou cavar túneis, camuflagem, visão ou olfato ou audição,

maestria nos ares ou na água. Nossa única grande vantagem, o segredo de nosso

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sucesso, é o pensamento – pensamento tipicamente humano. Somos capazes de

refletir sobre as coisas, imaginar eventos que ocorrerão, desvendar problemas. Foi

assim que inventamos a agricultura e a civilização. O pensamento é nossa bênção e

nossa maldição e nos faz sermos quem somos.

O pensamento ocorre, claro, no cérebro – especialmente nas camadas

superiores da “massa cinzenta” chamada córtex cerebral. Os cerca de 100 bilhões de

neurônios no cérebro constituem a base material do pensamento. Os neurônios se

conectam uns com os outros e suas conexões têm um papel decisivo no que

experimentamos como pensamento. Mas as conexões de neurônios em larga escala

não começam até a 24ª ou 27ª semana de gravidez – o sexto mês.

Colocando eletrodos não-nocivos na cabeça de um sujeito, cientistas conseguem

medir a atividade elétrica produzida pela rede de neurônios dentro do crânio.

Diferentes tipos de atividade mental mostram diferentes padrões de ondas cerebrais.

As ondas cerebrais típicas de um adulto humano, porém, não aparecem em fetos até

pelo menos a 30ª semana de gravidez – quase no início do terceiro trimestre. Fetos

mais jovens do que isso – não importa o quão vivos e ativos possam ser – não têm a

arquitetura cerebral necessária. Não podem ainda pensar.

Pensar em matar uma criatura viva, especialmente uma que pode mais tarde se

tornar um bebê, é perturbador e doloroso. Rejeitamos os extremos “sempre” e

“nunca” e isto nos coloca – queiramos ou não – numa brecha argumentativa. Se

formos forçados a escolher um critério de desenvolvimento, é aqui que defendemos

que a linha seja traçada: quando o início do pensamento tipicamente humano torna-se

preliminarmente possível.

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Na verdade está uma definição um tanto conservadora: ondas cerebrais

regulares são raramente encontradas em fetos. Mais pesquisas ajudariam nesta

definição. (Ondas cerebrais bem definidas em fetos de babuínos e ovelhas também

começam no final da gestação) Se quisermos tornar este critério ainda mais restritivo,

para permitir fetos precoces ocasionais, poderíamos traçar a linha aos seis meses de

gestação. Por acaso, é justamente o limite estabelecido pela Suprema Corta [dos EUA]

em 1973 – embora por razões completamente distintas das aqui apresentadas.

A decisão no caso Roe versus Wade mudou a lei dos EUA sobre o aborto.

Permitiu abortos além do primeiro trimestre, caso a mulher solicitasse, com algumas

ressalvas sobre a saúde da mulher grávida caso fosse realizado no segundo trimestre.

Permitia aos Estados que o aborto fosse proibido no terceiro trimestre exceto se

houvesse ameaça grave à vida ou à saúde da mulher. No caso Webster , em 1989, a

Suprema Corte [dos EUA] recusou reverter a decisão feita em Roe versus Wade mas

deixou em aberto para que os Estados decidissem por si mesmos.

Qual era a argumentação em Roe versus Wade? Nenhum peso foi dado ao que

acontece com uma criança ou com sua família uma vez que ela nasça. No lugar disso, a

corte julgou que as garantias constitucionais de direito à privacidade se protegiam o

direito à liberdade reprodutiva das mulheres. A garantia de privacidade da mulher e o

direito do feto à vida precisam ser pesados – e quando a corte pesou, neste caso,

priorizou a privacidade no primeiro trimestre e a vida do feto no terceiro. A transição

não foi definida com base nas considerações das quais tratamos neste texto – não foi o

momento em que o corpo recebe a alma, nem quando o feto passa a ter

características tipicamente humanas o suficiente para que seja protegido pelas leis

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referentes a assassinato. No lugar disso o critério adotado foi definir quando o feto já

conseguiria viver fora do útero, sem o corpo da mulher. Isto se chama “viabilidade” e

depende parcialmente da habilidade do feto de respirar. Até cerca da 24ª semana, ou

início do sexto mês de gestação, os pulmões simplesmente não estão formados e um

feto não é capaz de respirar – não importa quão avançado possa ser um pulmão

artificial que poderia ser instalado. Este é o motivo pelo qual Roe versus Wade permite

aos Estados proibir o aborto no último trimestre. É um critério extremamente

pragmático.

Se o feto seria viável fora do útero em determinado estágio da gestação, segue

este argumento, então neste momento o direito do feto à vida se sobrepõe ao direito

da mulher à privacidade. Mas o que é que “viável” realmente significa? Mesmo um

recém-nascido de 9 meses de gestação não é viável sem uma série de cuidados e

amor. Há algumas décadas atrás, antes da incubadora, bebês nascidos no sétimo mês

tinham muito pouca viabilidade. O aborto no sétimo mês teria sido permitido em tal

época, então? Após a invenção da incubadora, os abortos de sétimo mês de repente se

tornaram imorais? O que acontece se, no futuro, uma nova tecnóloga permitir que um

útero artificial geste um feto mesmo antes do sexto mês, nutrindo-o e passando

oxigênio pelo sangue – como a mãe faz através da placenta e do sistema sanguíneo

fetal? Garantimos que essa tecnologia provavelmente não será desenvolvida logo,

nem estará acessível a muita gente. Mas se estivesse, seria então imoral abortar antes

do sexto mês, quando antes era moral? Uma moralidade que depende da tecnologia e

muda com ela é uma moralidade frágil; para alguns também é uma moralidade

inaceitável.

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Por que exatamente a respiração (ou função renal, ou habilidade em resistir a

doenças) justifica proteção legal? Se for mostrado que um feto pode pensar e sentir,

mas não tem a capacidade de respirar, seria tudo bem mata-lo? Valorizamos mais a

respiração do que o pensamento e a capacidade de sentimento? O argumento da

viabilidade não pode, nos parece, determinar de forma coerente quando abortos

podem ser feitos. Outros critérios são necessários. Novamente, oferecemos o início do

pensamento rudimentar humano como este critério.

Como, na média, o pensamento fetal começa mais tarde do que o

desenvolvimento dos pulmões, pensamos que Roe versus Wade é uma boa decisão,

muito prudente, sobre uma questão muito difícil e muito complexa. Com proibições do

aborto no último trimestre – exceto nos casos de grave necessidade médica – chega a

um equilíbrio entre as reivindicações aparentemente conflitantes entre direito à

liberdade e direito à vida.

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Nota sobre a recepção do artigo pelo público:

Quando este artigo foi publicado na Parade foi acompanhado por uma caixa de

texto com um número de telefone gratuito para que os leitores e leitoras

expressassem suas opiniões sobre o aborto. Um total incrível de 380 mil pessoas

telefonaram. Expressaram, grosso modo, quatro tipos de opinião: “Aborto após a

concepção é assassinato”, “Uma mulher tem o direito de escolher abortar a qualquer

momento durante a gravidez”, “O aborto deve ser permitido nos primeiros três meses

de gestação apenas” e “Abortos devem ser permitidos nos primeiros seis meses de

gravidez”. A Parade é publicada aos domingos, e na segunda-feira as opiniões já

estavam divididas nestes quatro grupos. O Sr. Pat Robertson, um fundamentalista

cristão e candidato presidencial em 1992, apareceu na segunda-feira em seu programa

diário na televisão ordenando que seus fiéis “tirassem a Parade do lixo” e enviassem

uma mensagem clara dizendo que matar um zigoto humano é assassinato. Eles o

fizeram. A atitude em geral pró-escolha da maioria dos estadunidenses – como

mostrado em pesquisas demograficamente controladas e como tinha sido refletido nas

ligações recebidas após a publicação do artigo – foi escondida por uma organização

política manipulando respostas.

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Referência Bibliográfica

SAGAN, Carl; DRUYAN, Ann. Abortion: is it possible to be both ‘pro-life’ and ‘pro-
choice’? in: SAGAN, Carl. “Billions & Billions – Thoughts on life and death at the brink of
the millenium”, New York, Ballantine, 1997.

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