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Ética do Aborto
PG32347
Ano 2016/2017
No âmbito da disciplina de Direitos Humanos e Biomedicina realizei um trabalho
sobre um tema à minha escolha. O tema escolhido foi a ética do aborto, o trabalhado será
focado na pergunta: será o aborto uma escolha eticamente permissível? Escolhi este tema
porque é um assunto presente nas sociedades atuais. Existem diversas opiniões sobre em
que circunstâncias, e de que forma a lei deve proibir e penalizar o aborto. Irei analisar
algumas dessas opiniões de autores como Judith Thomson, Michael Tooley, Harry
Gensler e Peter Singer. No final irei recorrer a um argumento como suporte para a
conclusão.
No decorrer do trabalho irei explicar os conceitos pró-vida e pró-escolha. Irei
apresentar alguns argumentos e expor as observações de alguns pensadores, os que
defendem o ponto de vista a favor do aborto e os que são contra. Na parte final do trabalho
irei mostrar a minha opinião sobre o assunto e justificar os meus argumentos.
Será que o aborto é uma escolha eticamente permissível? No seio da discussão da
permissibilidade do aborto existem duas posições, a posição do pró-vida, onde os seus
defensores possuem ideias mais conservadoras, e a posição da pró-escolha, cujas opiniões
tendem a ser mais liberais.
Partindo da questão acima formulada: “será o aborto uma escolha eticamente
permissível?”, os defensores da posição pró-vida afirmarão com certeza que não, mas
mesmo eles aceitam algumas exceções tais como a gravidez que provém de uma violação,
o feto ter problemas genéticos ou deficiências graves, o embrião ainda não se ter
implantado no útero ou a ignorância profunda e desculpável dos efeitos da cópula. Os
conservadores mais radicais não aceitam nenhuma destas exceções, mas mesmo eles
dizem ser permissível abortar nos casos em que o feto põe em risco a vida da mãe, mas
isto se a intenção for salvar a mãe e não matar o feto.
Por outro lado, os defensores da posição pró-escolha dirão que sim, mas também
aqui há divergências, enquanto alguns não acreditam que haja razões para condenar o
aborto mesmo quando este é praticado no último trimestre de gestação, alguns liberais
dizem que quando o aborto é tardio é eticamente objetável ou inadmissível que seja
concebido. É aqui que lhes é lançado o desafio de tentar explicar o que torna menos
tolerável abortar quando a criança está mais perto de nascer. 1
Judith Thomson, filósofa americana, diz-nos que mesmo que o feto tenha um
direito à vida tão forte como o nosso, não é verdade que o aborto seja errado, já que o
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Informação obtida em http://pedrogalvao.weebly.com/uploads/6/6/5/5/6655805/pgaborto.pdf
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direito à vida não confere o direito de utilizar o corpo de outra pessoa, impondo-lhe
sacrifícios consideráveis, mesmo que isso seja necessário para continuar a viver.
Thomson recorre a uma analogia conhecida como o “argumento do violinista” que
descreve uma situação hipotética. Convida-nos a imaginar que um dia acordamos num
hospital, sem sabermos como isso aconteceu, ligados por tubos a uma pessoa que está
inconsciente. Dizem-nos que é um violinista famoso. Ele padece de uma doença fatal nos
rins, mas alguns dos seus admiradores não estão dispostos a deixá-lo morrer. Foi por isso
que nos raptaram na noite anterior, aliás. Descobriram que, em virtude de termos um tipo
de sangue muito raro, os nossos rins podem servir para limpar o sistema circulatório do
violinista. Note-se que ele nunca chegou a saber do plano, é uma parte inocente nesta
história. E agora, o que haveremos de fazer? Se nos desligarmos do violinista, ele morrerá.
Contudo, se aceitarmos manter a ligação durante nove meses, permanecendo todo esse
tempo no hospital, ele ficará curado.
Perante este caso, Thomson diz-nos que embora salvar o violinista fosse um ato
de grande generosidade, não teríamos a obrigação de fazer esse sacrifício. Se
preferíssemos desligarmo-nos dele para seguirmos com a nossa própria vida, nada
faríamos de errado. E, no entanto, o violinista é uma pessoa inocente que tem o direito à
vida. Acontece que o facto de um indivíduo ter o direito à vida não significa que ele tenha
direito a usar o corpo de outrem para se manter vivo, nem sequer que nós tenhamos a
obrigação de sustentar a sua vida através do nosso corpo, suportando um fardo
considerável. 2
A analogia que Thomson pretende estabelecer entre o caso do violinista e a
gravidez é bastante óbvia. Tal como o músico, o feto é um ser humano inocente cujo
direito à vida está fora de questão. Além disso, ambos dependem do corpo de outrem para
se manterem vivos. Portanto, não sendo errado desligarmo-nos do violinista, também será
permissível a mulher grávida “desligar-se” do feto, abortando. A posição pró-escolha de
Thomson não defende que o direito da mulher de controlar o próprio corpo seja mais forte
do que o direito à vida do feto, de tal forma que, havendo um conflito entre estes direitos,
o primeiro suplanta o segundo, tornando permissível a sua violação. Na verdade,
Thomson não nos apresenta o aborto como uma violação justificável do direito à vida.
Diz-nos antes que abortar não consiste, em rigor, em qualquer violação do direito à vida.
Claro que esta analogia tem falhas, algumas até reconhecidas pela própria autora. Uma
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Informação obtida em http://spot.colorado.edu/~heathwoo/Phil160,Fall02/thomson.htm
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delas é o facto de que o violinista não tem qualquer ligação afetuosa para com o doador,
o contrário acontece na gravidez, a mulher grávida estabelece uma ligação afetuosa com
o feto. Outra razão é que somos responsáveis pelo facto de a vida do feto estar dependente
de nós, o mesmo não se passa com o violinista.3
Uma das defesas mais conhecidas deve-se a Michael Tooley e ao argumento da
consciência de si. Segundo este é necessária a existência de uma consciência para que se
seja detentor do direito à vida. Assim sendo, o aborto é permissível porque o feto ainda
não tem consciência de si, nem mesmo na fase final da gravidez.
Tooley afirma que existe uma conexão entre direitos e desejos.
Tooley diz que os desejos são os estados mentais de indivíduos que possuem
consciência. Então, se A deseja X, A é um sujeito que tem capacidade de desejar, ou seja,
possui consciência. Mas desejar continuar a viver, sublinha Tooley, não é desejar
simplesmente que o nosso organismo permaneça vivo, aquilo que desejamos realmente é
que a nossa vida consciente não deixe de fluir, que continuemos a existir enquanto sujeitos
de experiências e de outros estados mentais. O direito à vida, então, é o direito de
continuar a existir desta forma (e não, por exemplo, em estado vegetativo persistente).
Mais precisamente, “A tem o direito à vida” significará aproximadamente o mesmo que
“Se A deseja continuar a existir enquanto sujeito de experiências e de outros estados
mentais, então os outros estão sob uma obrigação prima facie de não o impedir de
continuar a existir desta forma”.
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Informação obtida em https://www.youtube.com/watch?v=0xas1WlY8S4
4
Os indivíduos destituídos de consciência de si não têm o desejo de continuar a
existir enquanto sujeitos de estados mentais. Sem esse desejo não há razão para lhes
atribuir o direito à vida. Os fetos, manifestamente, não têm consciência de si, portanto os
fetos não têm o direito moral à vida. Tooley pensa que é inaceitável julgar pessoas que
sofreram de uma depressão, ficaram temporariamente em coma ou por outro motivo
perderam a vontade de viver, levando-o a qualificar da seguinte forma a sua perspetiva
inicial sobre o conceito de direito:
“[O] direito de um indivíduo a X pode ser violado
não só quando ele deseja X, mas também quando ele agora
desejaria X caso não se verificasse uma das seguintes
situações: (i) ele está emocionalmente desequilibrado; (ii) ele
está temporariamente inconsciente; (iii) ele foi condicionado
para desejar a privação de X.” (1972: 83)
Foi aqui, ao introduzir estas qualificações, que Tooley abre as portas a uma
objeção importante à sua defesa do aborto. Surge então Gensler que sugere a seguinte
classificação: O direito de um indivíduo a X pode ainda ser violado quando é verdade que
(iv) ele desejaria X se crescesse, tornando-se um membro adulto da espécie racional a que
pertence. Esta classificação mostra-nos que é aceitável supor que um feto iria desejar
continuar a viver se lhe fosse permitido crescer. Assim, com isto, conclui-se que no final
de contas os fetos têm direito moral à vida. Agora cabe a um defensor da visão de Tooley
explicar porque devemos aceitar as qualificações (i) – (iii) e deixar de parte a qualificação
(iv).4
O argumento da regra de ouro (ou kantiano)5, formulado na sua versão mais
conseguida por Harry Gensler apresenta o seguinte argumento: se somos consistentes e
pensamos que nada haveria de errado em fazer mal a alguém, então admitimos a ideia de
alguém nos fazer mal em circunstâncias similares, por exemplo:
a) É errado cegar um adulto ou uma criança ou um bebé ou um feto.
b) É errado matar um adulto ou uma criança ou um bebé.
c) É permissível matar um feto.
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Informação obtida em https://ethicslab.georgetown.edu/phil553/wordpress/wp-
content/uploads/2015/01/David-Boonin-A-Defense-of-Abortion.pdf
5
Informação obtida em
http://www.essex.ac.uk/ss/news/Gensler_A_Kantian_Argument_Against_Abortion.pdf
5
O facto de ser permissível não significa que tenha de ser feito, como é óbvio, mas
nenhum de nós admite a qualquer outro que nos cegue agora, ou mesmo que tivesse sido
ontem, não admitimos e pronto, na realidade nem admitimos que nos ceguem nem que
nos matem ou nos provoquem qualquer tipo de sofrimento, a questão é: porque devemos
nós de provocar dano aos outros?
Quando alguém mata outro rouba a possibilidade de este experienciar um futuro
com valor. Por isso é que matar é errado. O feto humano típico tem à sua frente o mesmo
género de experiências que o ser humano adulto típico tem, e estas experiências têm
precisamente o mesmo tipo de valor.
Matar um homem priva-o de um futuro com valor, portanto é mau. Matar um feto
priva-o de um futuro com valor, portanto é mau. Não necessitamos de definir quando é
que o feto se torna pessoa para perceber que o aborto é errado.
Muitos filósofos não creem em direitos morais, pensam que a nossa única
obrigação fundamental é simplesmente fazer que aquilo leve ao maior bem-estar, falo dos
utilitaristas. Peter Singer é um utilitarista de renome e com uma posição pró-escolha em
relação ao aborto. Singer eleva o bem-estar, e agir segundo este princípio significa dar a
mesma importância aos interesses de todos os que serão afetados pelas nossas decisões e
ações, o que implica optar sempre pelo bem maior. Assim podemos afirmar que a
senciência (capacidade de sentir dor ou prazer) é um requisito para ter interesses. 6
Partindo deste ponto de vista, como devemos avaliar o aborto? Tendo em vista o
feto e a mulher grávida, Singer (2000: 171-172) diz que o feto não tem quaisquer
interesses porque não é senciente, e se assim, tudo o que importa são os interesses da
mulher. No entanto, se o feto já for senciente, é verdade que será do seu interesse não
sentir dor. Todavia, realizando um aborto que não provoque qualquer dor ao feto o seu
interesse também será cumprido, e se assim for, segundo Singer, o aborto seria
permissível.7
Em suma, eu penso que hoje em dia a lei do aborto está quase perfeita. Segundo
artigo 142.º do Código Penal8 o aborto é permissível até à décima semana de gravidez se
assim quiser a mulher, independentemente dos motivos; permitido até às dezasseis
6
Informação obtida em http://www.richmond-philosophy.net/rjp/back_issues/rjp17_crome.pdf
7
Informação obtida em https://www.project-syndicate.org/commentary/the-real-abortion-tragedy-by-
peter-singer/portuguese
8
Informação obtida em http://bdjur.almedina.net/citem.php?field=item_id&value=1172725
6
semanas em caso de violação ou crime sexual (não sendo necessário que haja queixa
policial); permitida até às vinte e quatro semanas em caso de malformação do feto;
permitido em qualquer momento em caso de risco para a grávida ("perigo de morte ou de
grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher
grávida") ou no caso de fetos inviáveis.
No meu ponto de vista, o aborto não deveria ser permissível até à décima semana
de gravidez se assim quiser a mulher independentemente dos motivos, isto porque faz
com que o aborto possa ser utilizado como método contracetivo e, de certa forma torna-
nos desumanos. Isto porque a vida de alguém pode ser interrompida “se assim quiser a
mulher independentemente dos motivos”, ou seja, não necessitamos de motivos para
interromper uma vida.
À prima facie matar é errado, nisto tanto os críticos como os defensores do aborto
estão de acordo. Mas por que razão é que matar é errado? É necessário responder a esta
questão para determinar a permissividade do aborto. Se queremos saber se é ou não errado
matar fetos humanos, temos de pensar primeiro nas razões que fazem com que matar seres
humanos como nós seja errado.
Esta estratégia que estou a utilizar como linha de pensamento foi desenvolvida
por Donald Marquis, denomina-se “argumento da privação” e foi uma defesa influente da
posição pró-vida. 9
Segundo Marquis, o que torna errado o ato de matar uma pessoa é, em grande
medida, o fato de esse ato impor à vitima o fim de tudo, a privação de tudo o que haveria
de valioso, para ela mesma, ao longo de toda a sua vida consciente futura. Assim sendo,
podemos afirmar que a propriedade de ter um futuro significativamente valioso
desempenha um papel prima facie importante na explicação do mal de matar. Então, se
um indivíduo tem um futuro significativamente valioso, um “futuro-como-o-nosso”
(termo de Marquis), então dá-nos uma razão ética decisiva para não o matarmos.
Então surge a questão de saber se os fetos humanos terão um “futuro-como-o-
nosso”. O autor defende que sim, que também os fetos normalmente têm já um futuro-
como-o-nosso. Conclui então que devemos condenar o aborto pela mesma razão que
condenamos o assassínio de pessoas. Se é verdade que seria errado matarem-nos porque
assim nos privariam de um futuro, e se o aborto consiste geralmente em impor o mesmo
9
Informação obtida em http://faculty.polytechnic.org/gfeldmeth/45.marquis.pdf
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tipo de privação a fetos humanos, então temos boas razões para pensar que o aborto é
errado.
O argumento da privação resume-se desta forma:
1 - Se um indivíduo tem um futuro-como-o-nosso, então matá-lo é errado à prima facie.
2 - Normalmente um feto humano tem um futuro-como-o-nosso.
3 - Logo, normalmente matar um feto humano é errado à prima facie.10
É importante referir que logo na primeira premissa, o facto de um indivíduo ter
um futuro-como-o-nosso é condição suficiente, mas não é condição necessária pelo que,
mesmo que ele não tenha um futuro-como-o-nosso, é errado matá-lo. Assim sendo, se
uma pessoa não tiver um futuro significativamente valioso, ainda assim é errado matá-la
porque isso seria desrespeitar a sua vontade. Quanto à premissa 2, note-se que admite que
nem todos os fetos têm um futuro-como-o-nosso, pelo que o argumento da privação não
resulta numa condenação absoluta do aborto, dando espaço para todas as outras razões
que eu penso que façam com que o aborto seja permissível, nomeadamente até às
dezasseis semanas em caso de violação ou crime sexual (não sendo necessário que haja
queixa policial); permitida até às vinte e quatro semanas em caso de malformação do feto;
permitido em qualquer momento em caso de risco para a grávida ("perigo de morte ou de
grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher
grávida") ou no caso de fetos inviáveis. É esta a razão de eu incluir este argumento na
minha conclusão porque a perspetiva da privação deixa possibilidades em aberto, pois
não se apresenta como uma explicação completa, podendo ser adaptada aos motivos e às
circunstâncias moldando-se às situações. Este argumento, no meu ponto de vista, é o
melhor pois mostra-nos os motivos pelos quais o aborto é errado, mas dá-nos espaço para
acrescentar os casos especiais onde o aborto é eticamente permissível.
10
Informação obtida em http://faculty.polytechnic.org/gfeldmeth/45.marquis.pdf
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Bibliografia
9
Singer, Peter (2000) Ética Prática, 2.ª ed., trad. Álvaro Augusto Fernandes.
Lisboa: Gradiva [1993]
Thomson, J. J. (s.d.). Obtido em 24 de 04 de 2017, de A Defense of Abortion:
http://spot.colorado.edu/~heathwoo/Phil160,Fall02/thomson.htm
10