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ARTIGO REVISÃO
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Acta Méd Port 2005; 18: 271-282

RABDOMIÓLISE

NUNO GUIMARÃES ROSA, GIL SILVA, ALVES TEIXEIRA, FERNANDO RODRIGUES, JOSÉ AUGUSTO ARAÚJO
Serviço de Nefrologia. Hospital Central do Funchal.Funchal.

RESUMO
A rabdomiólise é uma entidade comum e, não raras vezes, de etiologia multifactorial.
Ocorre normalmente em indivíduos saudáveis, na sequência de traumatismo, actividade
física excessiva, crises convulsivas, consumo de álcool e outras drogas ou infecções.
A acumulação de cálcio intracelular, a activação de proteases e lipases, a produção de
radicais livres e a infiltração por células inflamatórias são alguns dos processos
responsáveis pela necrose muscular. Para o estabelecimento de uma insuficiência renal
aguda (IRA) mioglobinúrica concorrem dois factores: a libertação de mioglobina pelo
tecido muscular esquelético e a existência de um estado de hipovolémia/diminuição da
perfusão renal. As alterações electrolíticas (hipercaliémia, hipocalcémia e acidose
metabólica), agravadas ou não pela IRA, são das principais complicações desta entidade.
O diagnóstico de rabdomiólise é laboratorial e assenta na determinação da actividade
da creatina-fosfoquinase e na presença de mioglobinúria.
A abordagem terapêutica envolve a remoção dos factores precipitantes, o tratamento
das complicações bioquímicas, a prevenção e o tratamento da IRA com o recurso a
terapêutica substitutiva da função renal quando indicada.
O diagnóstico e tratamento precoces assumem particular relevância em formas
“epidémicas” de rabdomiólise (e. g. pós-terramotos), complicadas frequentemente por
IRA. Neste contexto o rápido acesso aos equipamentos e recursos humanos associados
à diálise pode estar comprometido e medidas gerais, como uma hidratação precoce e
vigorosa associada ou não a uma diurese alcalina forçada, podem obviar a morbilidade
e mortalidade associadas ao desenvolvimento desta complicação.
Palavras-Chave: Rabdomiólise; Mioglobina; Insuficiência renal aguda; Síndrome de
esmagamento.

SUMMARY
RHABDOMYOLYSIS
Rhabdomyolysis is a common entity that often has a multifactorial etiology. It usually
affects healthy individuals, following trauma, excessive physical activity, convulsive
crisis, alcohol and other drugs consumption or infections. Accumulation of intracellular
calcium, activation of proteases and lipases, production of free radicals and the
infiltration by inflammatory cells, are some of the mechanisms responsible for muscular
necrosis. Myogloninuric acute renal failure (ARF) is only possible in the presence of
myoglobin, liberated by the muscle cells, and of hypovolemia/renal hypoperfusion.
One of the most important complications of this entity is electrolyte disturbance
(hyperkalemia, hypocalcemia, metabolic acidosis), that can be aggravated by the

Recebido para publicação: 1 de Outubro de 2004 271


NUNO GUIMARÃES ROSA et al

establishment of ARF. The diagnosis of rhabdomyolysis relies on the elevation of


creatine kinase and on the presence of myoglobinuria. The main therapeutic goals are
removal of precipitatig factors, handling of biochemical complications, prevention and
treatment of ARF using renal replacement techniques when necessary. Early diagnosis
and treatment are of critical importance in epidemic forms of rhabdomyolysis (e. g.
earthquakes) often associated with ARF. In this setting, the quick access to the dialysis
equipment and human resources can be compromised and conservative measures, as
an early and vigorous hydratation associated with a forced alkaline dyuresis, can improve
the prognosis of this complication.

Key-Words: Rhabdomyolysis; Myoglobin; Acute renal failure; Crush syndrome.

INTRODUÇÃO to dos membros, que faleceram por IRA e evidenciavam


A rabdomiólise é definida como uma síndrome clínico- cilindros pigmentados nos túbulos renais após a
-laboratorial que decorre da lise das células musculares necrópsia5.
esqueléticas, com a libertação de substâncias intracelulares
para a circulação. Aspectos epidemiológicos
A maioria dos casos de rabdomiólise está relacionada Nos EUA são descritos cerca de 26.000 casos anuais
com o consumo de álcool, actividade convulsiva e com- de rabdomiólise6. A IRA mioglobinúrica ocorre em cerca
pressão muscular, por imobilização prolongada e depres- de 30% dos casos de rabdomiólise2.
são do estado de consciência1. Estima-se que 10%-15% das IRA são provocadas por
O crush syndrome é outra causa importante de miólise. rabdomiólise7. A IRA induzida por pigmentos (hemólise,
Neste caso, a destruição muscular decorre da compressão rabdomiólise traumática e não-traumática) é relativamente
traumática e sobretudo da lesão de reperfusão, no contex- rara em idosos (≥65 anos), comparativamente a grupos
to de acidentes de viação ou grandes catástrofes naturais etários mais jovens (>17 e <65 anos), representando res-
(e.g. terramotos). pectivamente 4% e 12,8% das causas de IRA (n=287)8.
O diagnóstico e a terapêutica precoces são fundamen- A taxa de mortalidade global dos doentes com rabdo-
tais para evitar a progressão para insuficiência renal agu- miólise ronda os 5% existindo uma maior incidência no sexo
da (IRA) oligúrica e a necessidade de terapêutica dialítica masculino, sobretudo no grupo associado ao trauma.
que se associa a morbilidade e custos não desprezíveis2.
Fisiopatologia
Aspectos históricos Miólise
Esta síndrome é reconhecida há milhares de anos. É A lesão das células musculares conduz a uma altera-
clássica a referência na Bíblia à praga sofrida pelos Hebreus, ção na homeostasia do cálcio e à deplecção de Adenosina
durante o êxodo do Egipto, após o consumo de codorni- Trifosfato (ATP). A acumulação de cálcio é a principal
zes (coturnismo)3. consequência da lesão muscular. Os quatro mecanismos
As primeiras referências clínicas à rabdomiólise sur- subjacentes ao aumento da concentração de cálcio intra-
gem na literatura médica alemã, com a referência à doença celular são: 1) a lesão directa da célula, de natureza física
de Meyer Betz caracterizada pela tríade dor, fraqueza mus- ou tóxica, que permite o influxo de sódio e cálcio para o
cular e urina castanha2,4. citoplasma; 2) a diminuição do ATP que condiciona uma
Já a primeira associação causal entre rabdomiólise, na diminuição do efluxo de cálcio ATP-dependente e aumen-
altura designada por crush syndrome, e IRA foi efectuada ta, ainda mais, a concentração de cálcio intracelular e 3) o
por Bywaters e Beall, médicos do Hammersmith Hospital compromisso do fluxo de cálcio, para os seus reservatóri-
em Londres, durante os bombardeamentos aéreos da ca- os intracelulares, podendo mesmo associar-se à disrupção
pital inglesa, na II Guerra Mundial. Foram apresentados destes (e.g. mitocôndrias)4,7 o influxo de Na+ estimula a
quatro doentes, vítimas de traumatismo com esmagamen- troca Na+/Ca²+ contribuindo também para a diminuição

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RABDOMIÓLISE

do ATP e o aumento do Ca²+ intracelular3. A subida dos ou hipoperfusão renal para ocorrer IRA.
níveis de cálcio livre intracelular vai desencadear uma con-
tracção muscular persistente, com esgotamento das re- Causas de rabdomiólise
servas energéticas e morte celular. Simultânemamente vai Vários autores procuraram categorizar causas e facto-
ocorrer uma activação de diferentes sistemas enzimáticos, res de risco de rabdomiólise. As causas mais frequentes
nomeadamente proteases (e.g. calpaína) e fosfolipases de rabdomiólise são o consumo de álcool, o exercício físi-
(fosfolipase A2) resultando na lesão das miofibrilhas e co intenso, a compressão muscular traumática e a utiliza-
dos fosfolípidos da membrana celular9 condicionando a ção de determinados fármacos e drogas. No entanto é im-
formação e libertação de radicais livres e substâncias va- portante relembrar a natureza, muitas vezes, multifactorial
sodilatadoras. Subsequentemente, e após restabelecimen- desta entidade em que diferentes variáveis etiológicas
to da perfusão sanguínea (e na presença de oxigénio), há convergem para uma consequência comum: a morte da
uma amplificação da lesão muscular através da libertação célula muscular esquelética com a libertação dos seus
de citocinas e radicais livres por leucócitos activados10. constituintes para a circulação sistémica.
O principal mecanismo de lesão muscular, traumática e Podemos agrupar as causas de rabdomiólise em 10
não-traumática, está associado ao processo de reperfu- grandes grupos: 1) traumáticas; 2) relacionadas com a ac-
são11. Só após o restabelecimento da perfusão para o teci- tividade muscular excessiva; 3) alterações da temperatura
do lesado é que vai ocorrer a migração dos leucócitos e a corporal; 4) oclusão ou hipoperfusão dos vasos muscula-
disponibilidade de oxigénio necessários para a produção res; 5) tóxicas; 6) farmacológicas; 7) alterações electrolíti-
de radicais livres. Estabelece-se assim uma reacção infla- cas e endócrinas; 8) infecciosas; 9) doenças musculares
matória miolítica que se auto-perpetua e que culmina na inflamatórias e 10) miopatias metabólicas (Quadro I).
morte celular, com libertação das toxinas intracelulares para As características etiopatogénicas específicas, das
a circulação sistémica. causas mais frequentes de rabdomiólise, serão discutidas
Os músculos estriados estão contidos em comparti- posteriormente.
mentos rígidos. Quando os sistemas de transporte de flu-
ído transcelulares (energia-dependente) falham vai ocor- Trauma mecânico e compressão
rer edema muscular e aumento progressivo das pressões A rabdomiólise traumática é típicamente um evento
intracompartimentais (síndrome compartimental), condici- isolado (acidente de viação ou ocupacional) podendo no
onando frequentemente lesão e necrose muscular adicio- entanto assumir formas epidémicas no contexto, por exem-
nais. Com a perda da integridade celular ocorre a liberta- plo, de terramotos como ocorreu na Arménia (1988), Japão
ção do conteúdo dos miócitos para a circulação. A (1995) e, mais recentemente, na Turquia (1999 e 2003).O
hipercaliémia, hiperfosfatémia, hiperuricémia, elevação da trauma mecânico envolve não só a disrupção física das
creatina-fosfocinase e o aparecimento de mioglobina no fibras musculares, mas também um processo de isquémia
plasma e urina são o corolário laboratorial da destruição decorrente da oclusão da circulação muscular7.
muscular. A compressão muscular também pode resultar da imo-
bilização prolongada associada: a depressão do estado
Mioglobina de consciência; às intervenções cirúrgicas, carecendo de
A mioglobina é uma proteína heme, de baixo peso posições específicas por longos períodos de tempo, e a
molecular (18,8 kDa), sem proteína de ligação plasmática patologia ortopédica.
específica e que é filtrada livremente pelo glomérulo. Tor-
na-se detectável na urina com concentrações plasmáticas Actividade muscular excessiva
superiores a 300 ng/ml mas só produz alteração da colora- O exercício físico excessivo pode provocar necrose
ção da urina com concentrações urinárias de 100 mg/dl12. muscular e rabdomiólise. Os indivíduos não treinados;
A concentração sérica de mioglobina retorna aos valores hipocaliémicos (o potássio é vasodilatador da microvas-
normais, 1 a 6 horas, após o fim da lesão devido ao rápido culatura muscular)7; desidratados e que praticam exercí-
(e variável) metabolismo hepático e à excreção renal13. O cio físico excêntrico (ex. descer escadas) ou sob condi-
potencial nefrotóxico da mioglobina é amplamente reco- ções extremas de calor e humidade15 estão em risco acres-
nhecido. No entanto, em estudos efectuados em modelos cido para miólise.
animais, a administração endovenosa de mioglobina não
é condição suficiente para originar IRA. É necessária a Alterações da temperatura corporal
coexistência de mioglobinúria com depleção da volémia e/ Tanto a hipotermia como a hipertermia podem estar

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NUNO GUIMARÃES ROSA et al

Quadro I – Etiologia da rabdomiólise (adaptado de Vanholder et al10 e Craig S. 14)

Causas de rabdomiólise Exem plos


1. Traumáticas T r a u m a m e c â n i c o ; l e s ã o p o r c o r r e n t e e l é c t ri c a d e a l t a -
v o l t a g e m ; q u e im a d u r a s e x t e n s a s ; p r é - a f o g a m e n t o e
i m o b il i z a ç ã o p r o l o n g a d a .
2. Actividade muscular E x e rc í c i o f í s i c o i n t e n s o ; s t a t u s e p ile p t ic u s ; s t a t u s
excessiva a s m a t ic u s ; di s t o n i a g r av e e p s i c o s e a g u d a .
3. Alterações da H i p e r t e r m i a e h i p o t e rm i a .
temperatura corporal
4. Hipoperfusão
Trom bose; em bolism o; choque e clam pagem de vasos.
muscular
5. Tóxicas E t a n o l , m e t a n o l , e t i l e n o g li c o l e i s o p r o p a n o l
H e ro ín a e m e ta d o n a
C o c a í n a , b a r b i t ú ri c o s , a n f e t a m i n a s , M D M A (E c s t a s y ) , L S D
M o nóx id o de c arbo no
T o lue no
C o tu r n i sm o
P e ix e b ú f al o ( d o e n ç a d e H af f )
M o r d e d u r a d e se r p e n t e s, a r a n h a s (v i ú v a n e g r a ) e a b e lh a s
6. Farmacológicas I n i bi d o r e s d a H M G C o A r e d u t a s e
F i b rato s
A n t i h i st am í ni c o s
S a li c il a t o s
Cafeína
N e u ro lé p tic o s
A g e n t e s a n e s t é s i c o s ( H i p e r t e r m i a M a li g n a ) , p r o p of ol
A n f ot e r ic i n a B
C o rt i c o ste ro i d e s
T e o f il i n a
A n t i d e p r e s s i v o s t ri c í c l i c o s , i n i b i d o r e s d o r e u p t a k e d a
se r o to n i n a
Á c i d o A m i n o c a p r oi c o
7. Alterações H i p o n a t r ém i a e h i p e r n a t r ém i a
electrolíticas e H i p o c a li ém i a
endócrinas H i p of o s f a t ém i a
C e t o a c i d o se d i a b é t i c a
C o m a h i p e r o s m o l a r d i a b é ti c o
H i p o t ir o i di s m o o u h i p e rti r oi d i sm o
8. Infecciosas V i r a i s – I nf l u e n z a A e B ; H I V ; C ox s a c k i e ; E b s t e i n -B a r r ;
E c h ov í ru s ; C M V ; A d e n ov í r u s ; H e rp e s s i m pl ex ;
P a r a i nf l u e n z a e V a r i c ell a - z o s t e r .
B a c t e r i a n a s – F r a n c i s e ll a t u l a r e n s i s , S t r e p t o c o c c u s
p n e u m o n ia e , S t r e p t o c o c c i g r u p o B , S t r e p t o c o c c u s
p y o g e n e s , S t a p h y lo c o c c u s e p i d e r m i d i s , V i r i d a n s
s t r e p t o c o c c i , E s c h e r ic h i a c o li , B o r r e l i a b u r g d o r f e r ,
R i c k e t t s i a s p e c i e s , S a l m o n e l l a s p e c i e s , L is t e r ia s p e c i e s ,
L e g io n e l la s p e , M y c o p l a s m a s p e c i e s , V i b r i o s p e c i e s ,
B r u c e l l a s p e c i e s B a c il l u s s p e c i e s , L e p t o s p ir a s p e c i e s ,
C l o s t r i d iu m p e r f r i n g e n s C lo s t r i d i u m t e t a n i
P a r a s i t a s - P l a s m o d iu m s p e c i e s
Fúngicas – Candida species; Aspergillus species
9. Miopatias
P o lim i o s i t e e d e rm a t o m i o sit e
inflamatórias
10. Miopatias metabólicas E n z i m o p a t i a s d o m e t a b o li s m o d o s l í p i d o s e h i d r a t o s d e
c a rb o n o ( e . g . D o e n ç a d e M cA rd l e )
Distrofias m usculares

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RABDOMIÓLISE

associadas a rabdomiólise. A exposição ao calor, sobretu- Quadro II – Fármacos e drogas responsáveis por
do se acompanhada por exercício físico intenso, pode ori- rabdomiólise (adaptado de Vanholder et al 10)
ginar um quadro de rabdomiólise grave. Mecanismos
Agente Compressão Miotoxicidade Hipocaliémia Outros
O síndrome maligno dos neurolépticos e a hipertermia Álcool + + + Hipofosfatémia
Anfetaminas Agitação
maligna são causas de hipertermia que podem coexistir Anfotericina B +
com rabdomiólise. Antimaláricos +
Cocaína Hipertermia
Agitação

Miopatias metabólicas Colchicina +


Corticosteroides +
São causas raras de rabdomiólise e decorrem da incapa- Depressores do +
SNC
cidade em produzir a quantidade de ATP adequada às ne- Diuréticos +
cessidades das células musculares, por deficiência de enzi- Ecstasy Agitação
Estatinas +
mas do metabolismo dos glícidos, lípidos ou nucleósidos. Fibratos +
Heroína + +
Normalmente surgem na infância, sob a forma de dor, Isoniazida +
fraqueza muscular e mioglobinúria recorrentes após expo- Laxantes +
Monóxido + Hipóxia
sição a estímulos que em condições normais não condici- Carbono Deficiência
energia
onam necrose muscular (ex. exercício físico ligeiro, infec- Outros opiáceos +
ções virais ou jejum).
Zidovudina +
Há uma plétora de deficiências enzimáticas que podem
condicionar miólise após exercício físico mínimo. A defici-
ência de miofosforilase (doença de McArdle), descrita pela Tóxicas
primeira vez em 1951, é o paradigma destas doenças. Tem A necrose muscular após o consumo de codornizes
subjacente um compromisso da glicólise anaeróbica nas (coturnismo), durante a sua migração na Primavera, não é
fibras musculares tipo II, levando à depleção de ATP du- mais que o resultado da intoxicação com cicuta venenosa
rante o exercício físico e mionecrose16. (Conium maculatum) ou cicuta aquática (Cicuta macula-
ta). A ingestão de bagas destas duas plantas pelas codorni-
Farmacológicas zes, condiciona quadros fisiopatológicos e clínicos distin-
Há um grande número de substâncias susceptíveis de tos, sendo a rabdomiólise uma das complicações possí-
causar rabdomiólise (Quadro II). Os inibidores da hidroxi- veis1.
-metil-CoA-redutase (estatinas) são das principais cau- O consumo de álcool é um dos principais factores de
sas de rabdomiólise provocada por fármacos. risco de rabdomiólise1. A miólise, induzida pelo álcool,
A miosite grave e a rabdomiólise associadas às pode ser atribuída à combinação de: predisposição para
estatinas são definidas pela presença de sintomas muscu- traumatismos, convulsões, compressão prolongada, por
lares (fraqueza ou dor muscular) associados a uma eleva- depressão do nível de consciência, efeito miotóxico direc-
ção da creatininafosfoquinase (> 10 vezes o limite supe- to e alterações electrolíticas (e.g. hipofosfatémia e hipoca-
rior normal)17. O FDA MEDWATCH Reporting System re- liémia). A hipofosfatémia crónica pode originar miopatia22
fere 3339 casos de rabdomiólise associada às estatinas mas raramente produz rabdomiólise isoladamente.
(Jan 1990 e Março 2002) sendo a cerivastatina o agente A rabdomiólise, como complicação do consumo de
implicado com maior frequência18. drogas, é relativamente frequente e tem subjacentes múl-
As taxas de incidência de rabdomiólise fatal estimadas tiplos factores precipitantes23.
para as diferentes estatinas, oscilam entre os 0 -3,16 (por A ingestão de determinadas espécies de peixes, no-
1000000 de prescrições)18,19. meadamente o peixe-búfalo (Ictioobus cyprinellus), pre-
O risco de miopatia grave é maior com doses elevadas valente na bacia do rio Missouri24 e a exposição ao vene-
de estatinas, se existir compromisso das funções hepática no de insectos (e.g abelhas, vespas) e serpentes25 são
ou renal, no hipotiroidismo, quando associamos a estatina outras causas de rabdomiólise tóxica.
a um fibrato, na administração concomitante com
metabolitos ou inibidores dos diferentes sistemas Alterações electrolíticas
Citocromo-P450 (e.g. macrólidos, alguns antifúngicos azó- A hipofosfatémia e a hipocaliémia são factores de ris-
licos, gemfibrozil, ciclosporina). Os fibratos per se podem co para a miotoxicidade alcoólica.
condicionar miotoxicidade, nomeadamente na presença de A hipofosfatémia crónica raramente condiciona um
insuficiência renal20,21. quadro de rabdomiólise, na ausência de consumo de álco-

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NUNO GUIMARÃES ROSA et al

ol. É provável que a depleção de fosfato contribua para a te da libertação do potássio intracelular e do compromis-
mionecrose na presença de lesão muscular prévia26. so da excreção renal, é uma complicação precoce, potenci-
A hipocaliémia pode causar rabdomiólise através do almente fatal e que requere um abordagem terapêutica
compromisso da síntese de glicogénio26. Por outro lado, o agressiva que poderá incluir diálise.
ião potássio é essencial para a vasodilatação muscular A hipocalcémia está associada à acumulação de cál-
reactiva ao aumento das necessidades em oxigénio, como cio pelos músculos necrosados por vezes sob a forma de
ocorre durante o exercício2,28. A combinação da diminui- calcificação ectópica34. Os baixos níveis séricos de cálcio,
ção das reservas de glúcidos e o compromisso da perfusão particularmente quando associados à hipercaliémia, po-
(e hipóxia associada) podem culminar na morte das fibras dem condicionar actividade pró-arritmíca e convulsiva
musculares. comprometendo ainda mais a viabilidade funcional e estru-
A hiponatrémia, a hipocalcémia e sobretudo os dis- tural do tecido muscular. A hipercalcémia tardia tem sido
túrbios metabólicos que podem cursar com um aumento descrita em alguns casos de IRA mioglobinúrica. O cálcio
da osmolaridade plasmática (e.g. hipernatrémia, coma acumulado é libertado pelos músculos lesados, estando
hiperosmolar diabético, cetoacidose diabética) podem es- descritos níveis elevados de PTH e Vitamina D35 durante
tar associados a rabdomiólise. este período de recuperação, embora estas alterações hor-
monais não sejam observadas em todos os casos36.
Infecções A hiperfosfatémia decorre da libertação de fosfato
A rabdomiólise pode estar associada a infecções pelo músculo e da sua acumulação após o estabelecimen-
virais, bacterianas, parasitárias ou fúngicas. to da insuficiência renal. O fósforo vai formar complexos
A infecção pelos vírus Influenza A e B é provavel- teciduais com o cálcio, favorecendo a sua deposição
mente a causa mais frequente de rabdomiólise neste con- tecidual, e suprimir a produção de vitamina D agravando a
texto. O vírus Influenza pode condicionar destruição mus- hipocalcémia.
cular após infecção do tecido muscular29,30 ou através da A hiperuricémia decorre da metabolização hepática
formação de miotoxinas. A infecção pelo VIH aparente- dos nucleósidos libertados pelos núcleos dos miócitos e
mente provoca rabdomiólise através de um processo de pode contribuir para a acidose metabólica e para a forma-
lesão imunológica, uma vez que não foi possível demons- ção de cilindros tubulares.
trar infecção das fibras musculares pelo vírus31. Acidose metabólica – Caracteristicamente apresenta-
As bactérias mais frequentemente associadas a rab- -se com gap aniónico elevado1. Decorre, numa primeira
domiólise são as pertencentes aos géneros Legionellae, fase, da libertação pelas fibras musculares destruídas de
Streptococus, Salmonella e a Francisella tularensis7. A ácidos orgânicos como o lactato e sulfato.
infecção directa (e.g. Salmonella); a produção de toxinas
(e.g. Legionella) e a resposta imunológica à infecção (e.g. Síndrome compartimental - É uma causa e complica-
produção de citocinas) poderão contribuir para a necrose ção possível da rabdomiólise, sobretudo da variante
muscular observada neste tipo de infecções. A instabili- traumática. A acumulação de fluído e a falência dos meca-
dade hemodinâmica, com diminuição da perfusão, será nismos de drenagem dos compartimentos musculares
outro factor contribuinte para a lesão muscular, no con- (energia-dependentes), no contexto de lesão muscular trau-
texto de sépsis bacteriana. Outros agentes infecciosos, mática, vão condicionar um aumento significativo das pres-
frequentemente associados a rabdomiólise, são os per- sões intracompartimentais com lesão muscular adicional.
tencentes aos géneros Rickettsia e Plasmodium32,33. Estabelece-se um ciclo vicioso de isquémia, lesão e
necrose muscular com aumentos adicionais das pressões
Fisiopatologia das complicações da rabdomiólise nos compartimentos musculares, que só pode ser quebra-
do com a descompressão cirúrgica. A fasciotomia, não
Hipovolémia – A necrose muscular e a inflamação as- sendo consensual pelo aumento do risco de infecção37,
sociada vão permitir a acumulação de volumes significati- pode ser orientada pela medição das pressões intramus-
vos de fluído nos compartimentos musculares afectados. culares. A fasciotomia descompressiva deverá ser consi-
A expansão do volume do compartimento extracelular é derada se a pressão intracompartimental for> 30 mm Hg38.
necessária para prevenir o choque, a deterioração da fun-
ção renal e a hipernatrémia. Coagulação intravascular disseminada (CID) – A li-
bertação de tromboplastina pelas fibras musculares lesa-
Alteraçõe electrolíticas – A hipercaliémia, decorren- das pode precipitar esta complicação. A obtenção do tem-

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RABDOMIÓLISE

po de protrombina, do tempo de tromboplastina parcial O centro heme da mioglobina, na ausência de ferro livre,
activado e do número de plaquetas é fundamental no con- pode por si só iniciar peroxidação lípidica e lesão renal45.
texto de rabdomiólise. A CID foi identificada como um
factor preditivo de mortalidade num estudo envolvendo
Desidratação Hipoperfusão Intestinal
639 doentes com patologia nefrológica, vítimas do terra-
moto de Marmara-Turquia39. Endotoxinas/Inflamação

Vasconstrição
IRA mioglobinúrica (frequência, fisiopatologia e fac- Renal

tores preditivos) <Pressão filtração glomerular

> Reabsorção tubular água


A rabdomiólise é uma causa importante de IRA, repre- Mioglobina
Ácido Úrico

sentando até 10-15% dos casos em algumas séries40. Cilindros tubulares


Acidúria
Libertação Ferro
Na IRA mioglobinúrica a elevação da creatinina
Isquémia tubular
plasmática é descrita tradicionalmente como sendo mais
Radicais livres
rápida e de maior magnitude, quando comparada com ou-
tros tipos de IRA. A explicação mais provável para esta Fig.1 – Fisopatologia da IRA mioglobinúrica (adaptado de
Vanholder et al10)
diferença reside na existência de uma maior proporção de
indivíduos do sexo masculino e com maior massa muscu-
lar, nos doentes com IRA por rabdomiólise. A libertação Diagnóstico
da creatinina muscular não justifica este achado41.
Num trabalho publicado em 1988, Ward42 determinou Factores predisponentes para rabdomiólise
um conjunto de factores preditivos de IRA no contexto de Num estudo envolvendo 87 doentes, publicado em
rabdomiólise: o grau de elevação da creatinina, potássio e 19821, cerca de 59% dos indivíduos apresentavam múlti-
fosfato séricos; o grau de diminuição do nível de albumina; plos factores de risco para rabdomiólise. O consumo de
a presença de desidratação, na apresentação, e sépsis como álcool, a compressão recente de tecidos moles, a existên-
causa subjacente. cia de actividade convulsiva e história de trauma estavam
O papel da mioglobina na génese da IRA foi estabele- entre os factores de risco identificados.
cido por Bywaters e Stead. As investigações conduzidas Numa análise retrospectiva42 de 157 casos de rabdo-
por estes autores revelaram que as proteínas heme per si miólise (Ward, 1988) foram identificados os seguintes fac-
têm efeitos nefrotóxicos mínimos, sendo necessária a co- tores predisponentes: trauma (38%); isquémia (14%);
existência com hipovolémia/desidratação e acidúria43. polimiosite (8%); overdose (7%); exercício (6%); convul-
Os mecanismos fisiopatológicos básicos subjacentes sões (5%); queimaduras (5%); sepsis (3%); doenças here-
à IRA mioglobinúrica envolvem vasoconstrição renal, for- ditárias (3%) e viroses (1%).
mação de cilindros intraluminais e citotoxicidade directa
da mioglobina (Figura 1). Manifestações clínicas
O baixo peso molecular da mioglobina permite a sua A apresentação clínica da rabdomiólise é frequente-
filtração através da membrana basal glomerular. Posterior- mente subtil sendo necessário um elevado índice de sus-
mente e na presença de desidratação, vasoconstrição re- peita diagnóstica.
nal e pH urinário acídico vai ocorrer precipitação e forma- São descritos sintomas e sinais musculares como
ção de cilindros tubulares obstrutivos40. mialgias, hipersensibilidade, fraqueza, rigidez e contracturas
A mioglobina vai contribuir para a lesão isquémica musculares em apenas 50% dos casos (Gabow, 1982). A
renal através de diferentes vias. Intensificando a vaso- presença de sintomas constitucionais como a sensação de
constrição renal no contexto de deplecção de volume; di- mal-estar geral, náuseas, vómitos, febre e palpitações, a di-
minuindo as reservas celulares de ATP através de um me- minuição do débito urinário e a alteração da coloração da
canismo siderodependente e sensibilizando as células urina (mais escura, castanho-avermelhada), são outros acha-
tubulares proximais à acção de sistemas enzimáticos dos da história clínica a ter em consideração.
activados pela isquémia (PLA2). A acumulação intrarenal
de ferro-heme induz um estado de stress oxidativo44 com a Exames complementares de diagnóstico
formação de radicais livres e responsável por citotoxicida- O diagnóstico definitivo de rabdomiólise é efectuado
de renal. através de estudos laboratoriais.

277
NUNO GUIMARÃES ROSA et al

Creatina-fosfoquinase sérica (CK) – É um Tratamento das complicações electrolíticas da rabdo-


marcador sensível mas inespecífico de radomiólise. É miólise
libertada para a circulação sistémica após a morte das • Hipercaliémia – é frequentemente refractária às tera-
células musculares esqueléticas (sobretudo a pêuticas conservadoras. Se ocorrerem alterações
isoenzima muscular) podendo atingir concentrações electrocardiográficas ou disritmias, e na ausência de res-
séricas da ordem das 100.000 IU/ml. Tem um metabo- posta satisfatória à terapêutica convencional, devemos
lismo mais lento e previsível que a mioglobina, o que a considerar o recurso a técnicas de suporte dialítico. A
torna um marcador de presença de lesão muscular mais hipercaliémia foi identificada como o factor preditivo mais
fiável. As elevações persistentes da CK apontam para importante para o início de diálise, em doentes vítimas de
lesão muscular continuada, sendo particularmente re- crush syndrome47.
levante excluir a presença de um síndrome
compartimental. • Hiperfosfatémia – podem ser administrados
quelantes do fósforo nos doentes conscientes.
Aldolase e Anidrase carbónica III (46) – No contexto
de elevação da CK total confirmam, quando elevadas, a • Hipocalcémia – a administração de suplementos de
origem muscular esquelética da creatinina fosfocinase. cálcio deverá ser restringida à hipocalcémia sintomática
(crise convulsiva) ou na hipercaliémia grave. A adminis-
Mioglobina sérica e urinária – Tem um metabolismo tração de suplementos de cálcio, durante a fase hipocal-
hepático e excreção renal rápidos e não previsíveis, o que cémica, parece ser um factor contribuinte para a elevação
a torna um marcador de necrose muscular pouco sensí- do cálcio sérico na fase de recuperação10.
vel10. A mioglobinúria pode ser esporádica e resolver-se
nas fases iniciais da rabdomiólise. • Hiperuricémia – o alopurinol pode ser utilizado para
reduzir a produção de ácido úrico e como captador de
Outras alterações laboratoriais radicais livres.
• Elevação inespecífica da AST, ALT e LDH;
• Hipercaliémia; Prevenção e tratamento da IRA mioglobinúrica
• Hiperuricémia; As pedras basilares do tratamento da IRA mioglobi-
• Hipocalcémia.e Hiperfosfatémia; núrica são:
• Acidose metabólica;
• Prolongamento dos tempos de protrombina, 1. Correcção da hipovolémia e isquémia renal asso-
tromboplastina parcial activado e diminuição do n.º de pla- ciada
quetas; Tendo em consideração o profundo impacto da
• Elevação da creatinina e ureia séricas; hipovolémia, no desenvolvimento da IRA mioglobinúrica,
• Cilindros pigmentados no sedimento urinário. a hidratação endovenosa agressiva e precoce (pré-
-nefrotoxicidade) é uma das medidas terapêuticas mais
É importante lembrar que os testes urinários rápidos importantes na abordagem da rabdomiólise. Não obstante
não distinguem a mioglobina, hemoglobina ou eritrócitos. a inexistência de estudos prospectivos, existe evidência
Outros exames complementares de diagnóstico têm clínica e experimental suficiente para sustentar o recurso a
interesse na avaliação da repercussão das complicações esta medida na rabdomiólise traumática 37,48 e não-
(ECG na hipercaliémia) ou apresentam indicações diag- -traumática49.
nósticas muito específicas (biópsia muscular nas doen- Better preconiza, nos casos de rabdomiólise traumáti-
ças musculares metabólicas e inflamatórias, ca, administração de soro fisiológico (1,5 L/h) o mais pre-
electromiograma e RMN na polimiosite). cocemente possível. No ambiente hospitalar, em que é
possível monitorizar o status hemodinâmico, é recomen-
Terapêutica dada a administração de volumes de fluído até 12 L/dia, na
Os principais objectivos da terapêutica são o trata- ausência de oligúria, associados a uma diurese alcalina
mento de causas específicas de lesão muscular (e.g. alte- forçada (manitol)37.
rações da temperatura corporal, infecções, toxicofilias, sín-
drome compartimenta) e a prevenção e tratamento das 2. Promover a depuração e diminuir os efeitos nefro-
complicações da rabdomiólise. tóxicos da mioglobina.

278
RABDOMIÓLISE

Expansão do volume plasmático – aumenta a perfusão cilindros de miogobina, no entanto, estão associados à
renal, melhora o filtrado glomerular, aumenta a diurese e acidificação urinária e apresentam um efeito hipercalciúrico.
contribui para a diluição da mioglobina diminuindo a for- A furosemida é utilizada em alguns esquemas terapêuti-
mação de cilindros tubulares. cos associado ao manitol53.
A acetazolamida poderá estar indicada se ocorrer
Administração de bicarbonato de sódio (NaHCO3) – alcalose metabólica, após terapêutica com o bicarbonato
A terapêutica sistémica com NaHCO3 é recomendada com ou se a acidúria persistir com alcalose. Este inibidor da
o objectivo de se atingir um pH urinário de 6,537. A anidrase carbónica III corrige a alcalose metabólica e au-
alcalinização da urina é sustentada pela evidência experi- menta o pH urinário.
mental de nefroprotecção permitindo ainda a transferên-
cia para o meio intracelular do potássio sérico. Pentoxifilina – Tem sido utilizada na abordagem tera-
A terapêutica com bicarbonato de sódio pode agravar pêutica da rabdomiólise. Promove o fluxo sanguíneo capi-
a hipocalcémia pré-existente, precipitando actividade lar, diminui a adesão dos neutrófilos e a libertação de
convulsiva, particularmente deletéria no contexto de le- citocinas10.
são muscular prévia39. Está contra-indicada no contexto
de oligúria com sobrecarga hídrica associada. Plasmaferese – A mioglobina apresenta um metabo-
lismo rápido. Esta propriedade torna a utilização de técni-
Manitol – A sua utilização clínica neste contexto é cas de remoção extracorporal de mioglobina, por exemplo
controversa. Existe uma consistente evidência experimen- através de plasmaferese, controversa. Não estão demons-
tal do efeito protector do manitol contra a IRA mioglobi- trados benefícios na utilização desta técnica2,10.
núrica. Estão descritos seguintes mecanismos nefropro-
tectores: Técnica de diálise – Em doentes com rabdomiólise gra-
ve ocorre uma descida rápida e significativa dos níveis de
a) É um diurético de acção proximal, facilitando a mioglobina sérica. Esta alteração na cinética da remoção
excreção de proteínas heme e diminuindo a formação de da mioglobina, é independente da função renal e de quais-
cilindros tubulares; quer intervenções terapêuticas, incluindo hemofiltração,
b) Tem propriedades vasodilatadoras renais; diálise peritoneal e hemodiálise54.
c) É um captador de radicais livres, diminuindo o stress As indicações para diálise são a IRA estabelecida e a
oxidativo, embora a contribuição desta capacidade hipercaliémia e acidose metabólicas, refractárias ao trata-
antioxidante seja mínima. mento conservador. A hemodiálise e a diálise peritoneal
não estão indicadas como terapêuticas de remoção de
Tem ainda um papel importante enquanto agente mioglobina2.
osmótico na transferência de fluído para o compartimento O recurso à hemodiálise apresenta vantagens óbvias
intravascular diminuindo o edema intersticial e o risco de na rabdomiólise traumática ao permitir a remoção eficiente
síndrome compartimental. de potássio, protões e fosfato, sem o recurso à anticoagu-
Embora seja um potente vasodilatador, o manitol pode lação. A utilização de técnicas contínuas ou hemofiltração
aumentar o consumo de ATP, ao nível do cortéx renal, tem utilidade nos doentes com instabilidade hemodinâmi-
imediatamente após isquémia renal ou numa fase precoce ca, apresentando no entanto a desvantagem da necessi-
da IRA induzida pelo glicerol50. Por outro lado, ainda não dade de anticoagulação.
existe uma demonstração clara da contribuição acrescida A diálise peritoneal é uma alternativa a ter em consi-
do manitol à expansão de volume51. Num estudo recente, deração na ausência de outras técnicas que permitam uma
envolvendo 16 vítimas de rabdomiólise traumática, remoção mais eficiente dos solutos acumulados.
concluiu-se que uma hidratação vigorosa e precoce, se- Na sequência do terramoto de Marmara, em Agosto
guida de uma diurese alcalina forçada (manitol), preveniu de 1999, foram submetidos a terapêutica substitutiva da
o desenvolvimento de IRA52. função renal 477 doentes, num total de 639 doentes com
patologia nefrológica. Dos 462 doentes que efectuaram
Utilização de outros diuréticos (diuréticos de ansa e uma só modalidade de TSFR, 437 efectuaram hemodiálise
inibidores da anidrase carbónica) – Os diuréticos de ansa intermitente, 11 técnicas contínuas e 4 diálise peritoneal.
têm propriedades vasodilatadoras, aumentando o filtrado Os restantes 25 precisaram de diferentes tipos de diálise.
glomerular e o fluxo tubular e diminuindo a formação de A diálise peritoneal só foi utilizada em 8 (1,67%) doentes,

279
NUNO GUIMARÃES ROSA et al

sendo que 4 também necessitaram de realizar hemodiálise sis. Lancet 1995; 345: 424-425.
ou técnicas contínuas55. 14. CRAIG S. Rhabdomyolysis (citado a 20 Junho 2004). Disponível
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texto de crush syndrome associado a terramotos de gran- 19. PASTERNAK RC, SMITH SC Jr, BAIREY-MERZ CN,
de magnitude, poderá estar associada a taxas de mortali- GRUNDY SM, CLEEMAN JI, LENFANT C: ACC/AHA/NHLBI
dade superiores, nomeadamente, quando comparada com clinical advisory on the use and safety of statins. Am Coll Cardiol
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a patologia nefrológica diálise-independente55.
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