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CRENÇAS E COSTUMES NATIVOS SOBRE A PROCRIAÇÃO E A GRAVIDEZ1

Bronislau Malinowski

Para o antropólogo, é de extrema importância constatar que a organização social em


uma sociedade dada depende das idéias, crenças e sentimentos existentes. Freqüentemente
encontramos entre as raças selvagens opiniões fantásticas e inesperadas sobre os processos
naturais, às quais corresponde um desenvolvimento acentuado e unilateral de certos aspectos
da organização social, tais como o parentesco, a autoridade comunal e a constituição tribal.
Neste capítulo farei uma exposição das idéias dos trobriandeses sobre o organismo humano e
de como elas afetam suas crenças sobre a procriação e a gestação, crenças essas
incorporadas na tradição oral, nos costumes e nas cerimônias, exercendo, enquanto fatos
sociais, profunda influência sobre o parentesco e a constituição matrilinear da tribo.

Os organismos masculino e feminino e o impulso sexual segundo a crença nativa


Os nativos possuem um conhecimento prático das principais características da
anatomia humana e um extenso vocabulário relativo às diversas partes do corpo e órgãos
internos. Freqüentemente esquartejam porcos e outros animais, e o costume da dissecção
post-mortem de cadáveres, bem como as visitas aos seus vizinhos canibais de além-mar lhes
permitem um conhecimento exato das homologias entre o organismo humano e o organismo
animal. Por outro lado, suas teorias fisiológicas são notavelmente imperfeitas; há muitas
lacunas importantes em seu conhecimento sobre as funções dos órgãos mais importantes, lado
a lado com idéias fantásticas e estranhas.
De modo geral, sua compreensão da anatomia sexual é limitada em comparação com o
que sabem sobre outras partes do corpo humano. Considerando o grande interesse que
devotam ao assunto, as distinções que fazem são toscas e superficiais, e a terminologia é bem
pobre. Distinguem e denominam as seguintes partes: vagina (wila), clitóris (kasesa), pênis
(kwila), testículos (pwala). Não possuem termos específicos para designar o mons veneris
como um todo, nem para os labia majora e minora. A glande é descrita como o "ponto" do
pênis (matala kwila) e o prepúcio como a pele do pênis (kanivinela kwila). Os órgãos femininos
internos são chamados genericamente de bam, o que abrange o útero e a placenta. Não há
termo especial para os ovários.
Suas opiniões fisiológicas são toscas. Os órgãos do sexo servem para o prazer e para a
excreção. Os processos de excreção urinária não são associados aos rins. Um canal estreito
(wotuna) liga o estômago diretamente à bexiga, e atravessa os órgãos genitais masculino e
feminino. Através desse canal, a água que bebemos escoa lentamente até ser expelida e, em

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Texto publicado em DURHAM, Eunice Ribeiro. Malinowski, São Paulo: Ática, 1986, p.117-142.

1
seu caminho, torna-se suja e descolorida no estômago, pelo contacto com os excrementos,
pois a comida começa a tomar-se excremento já no estômago.
Suas idéias sobre as funções sexuais dos órgãos genitais são mais complexas e
sistemáticas, compondo uma espécie de teoria psicofisiológica. Os olhos são a sede do desejo
e da luxúria (magila kayta: literalmente, "desejo de copular"). São a base ou causa (u'ula) da
paixão sexual. Partindo dos olhos, o desejo é levado ao cérebro através do wotuna
(literalmente, gavinha ou trepadeira, significando, porém, no contexto anatômico, veia, nervo,
vaso ou tendão), espalhando-se daí por todo o corpo - barriga, braços, pernas - até concentrar-
se, finalmente, nos rins. Os rins são considerados a parte principal, ou tronco (tapwana) do
sistema. Deles, outros dutos (wotuna) conduzem ao órgão masculino. Esse é o ponto ou
extremidade (matala: iteralmente, olho) do sistema em seu todo. Desse modo, quando os olhos
vêem um objeto desejável, eles "despertam", comunicam o impulso aos rins, que o transmitem
ao pênis, provocando a ereção. Daí serem os olhos o motivo primário de toda excitação sexual:
eles são "as coisas da cópula", eles são "aquilo que nos faz desejar copular". E, para provar
isso, os nativos dizem: "Um homem de olhos fechados não terá ereção", embora limitem essa
afirmação admitindo que o sentido do olfato pode, algumas vezes, substituir os olhos, pois
"uma mulher pode provocar o desejo ao despir seu saiote de palha na escuridão".
O processo de excitação sexual da mulher é análogo. Desse modo, os olhos, os rins e
os órgãos sexuais estão unidos pelo mesmo sistema de wotuna (canais comunicantes). Os
olhos dão o alarme, que passa pelo corpo, toma conta dos rins e produz a excitação sexual do
clitóris. A ejaculação masculina e a secreção feminina são designadas pelo mesmo nome
(momona ou momola), e ambas são consideradas como originando-se nos rins e possuindo a
mesma função, que não se relaciona à procriação, mas sim à lubrificação da membrana e ao
aumento do prazer.
Obtive esse relato pela primeira vez de Namwana Guya'u e Piribomatu, o último um
feiticeiro profissional e o primeiro, um amador; ambos eram homens inteligentes e estavam, por
causa de sua profissão, interessados na anatomia e fisiologia humanas. Essa versão
representa, portanto, o que o conhecimento e a teoria trobriandesas possuem de mais
desenvolvido. Obtive declarações semelhantes em outras partes da ilha e, em suas linhas
gerais - tais como as funções sexuais dos rins, a grande importância dos olhos e do olfato, o
paralelo rígido entre a sexualidade masculina e a feminina -, todas elas concordavam entre si.
De modo geral, essa visão da psicofisiologia da libido sexual é razoavelmente
consistente e não totalmente desprovida de sentido. O estabelecimento de um paralelo entre
os sexos é consistente. A indicação dos três pontos cardeais do sistema sexual é correta e
característica dos cânones classificatórios nativos. Eles distinguem, em diversos assuntos,
esses três elementos: a u'ula, a tapwana e o matala. A imagem é derivada de uma árvore, um
pilar ou uma lança; u'ula, no sentido literal, é o pé da árvore, o suporte, a base, e, por extensão,

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passou a designar causa, origem, fonte de força; tapwana, a parte central do tronco também
significa o tronco em si mesmo, o corpo principal de qualquer objeto alongado, a extensão de
uma estrada; matala - originalmente olho ou ponto (como numa lança) algumas vezes
substituída pela palavra dogina ou dabwana, a ponta de uma árvore ou a extremidade de
qualquer objeto alto - designa a parte mais alta ou, em uma metáfora mais abstrata, a última
palavra, a expressão mais alta.
Como já dissemos, do modo como é geralmente aplicada ao mecanismo sexual, a
comparação não é inteiramente desprovida de sentido e só se torna absurda quando atribui
uma função especial aos rins, que são tidos como partes extremamente importantes e vitais do
organismo humano, principalmente porque são a fonte do fluido seminal. Uma outra versão
atribui a secreção feminina e masculina não aos rins, mas aos intestinos. Em ambos os casos,
os nativos consideram que é algo nos intestinos o verdadeiro agente da ejaculação: ipipisi
momona "esguichar o fluido".
É notável a sua total ignorância sobre a função fisiológica dos testículos. Acreditam que
nada é produzido nesse órgão e perguntas sugerindo serem eles a fonte do fluido masculino
(momona) são respondidas enfaticamente na negativa. "Veja, as mulheres não possuem
testículos e elas também produzem momona." Consideram essa parte do corpo masculino
apenas um apêndice ornamental (katububula). "Como ficaria feio um pênis sem os testículos",
exclamaria um esteta nativo. Os testículos servem "para torná-Io apresentável" (bwoyna).
O amor e a afeição (yobwayli) localizam-se nos intestinos, na pele da barriga e dos
braços e, em menor intensidade, nas fontes de desejo, que são os olhos. Assim, gostamos de
olhar para aqueles de quem gostamos, como nossos filhos, nossos amigos ou nossos pais,
mas, quando o amor é forte, o que queremos é abraçá-Ios.
Os trobriandeses consideram a menstruação um fenômeno vagamente relacionado com
a gravidez: "o fluxo vem, pinga, pinga, diminui e termina". Designam-na simplesmente pela
palavra sangue - buyavi -, mas com uma peculiaridade gramatical característica. Enquanto o
sangue comum do corpo é mencionado sempre com o pronome possessivo que designa a
posse mais íntima e é empregado para todas as partes do corpo humano, os nativos se
referem ao sangue menstrual utilizando os mesmos pronomes possessivos empregados para
ornamentos e artigos de vestuário (posse menos próxima). Assim buyavigu, "sangue de mim"
("parte de mim - sangue") significa o sangue do corpo que sai em um corte ou hemorragia; agu
buyavi, "meu sangue" ("pertencente a mim - sangue") significa o sangue menstrual.
Não há aversão ou receio masculino pronunciado com relação ao sangue menstrual.
Um homem não terá relações sexuais com sua mulher ou namorada durante o período
menstrual, mas permanecerá na mesma cabana e partilhará da mesma comida, abstendo-se
apenas de dormir na mesma cama. Durante a menstruação, as mulheres se lavam diariamente,
por motivos de asseio, no mesmo grande poço do qual toda a aldeia retira sua água de beber e

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no qual também os homem tomam banho ocasionalmente. Não há abluções cerimoniais
especiais no fim do período e tampouco qualquer rito é desenvolvido quando da primeira
menstruação de uma menina. As mulheres não se vestem de modo especial durante a
menstruação a não ser pelo fato de que, às vezes, usam uma saia mais longa. Também não
há, entre os sexos, qualquer reserva especial sobre o assunto.
A reencarnação e o caminho para a vida através do mundo dos espíritos
A relação entre o sangue menstrual e a formação do feto tem sido observada e
reconhecida pelos nativos, mas suas idéias sobre ela são extremamente vagas. Tais como se
apresentam, estão tão misturadas com as crenças sobre a encarnação de seres espirituais
que, neste relato, teremos que abordar conjuntamente os processos fisiológicos e as
interferências espirituais. Preservaremos dessa maneira a seqüência natural e a perspectiva da
doutrina nativa. E uma vez que, na tradição trobriandesa, a nova vida começa com a morte,
transportemo-nos agora para o lado do leito de um agonizante e sigamos o percurso de seu
espírito até seu retorno à existência terrena2.
Após a morte, o espírito vai para Tuma, a Ilha dos Mortos, onde leva uma agradável
existência, análoga à vida terrestre - apenas muito mais feliz. Na verdade, teríamos de
investigar mais detalhadamente a natureza dessa bem-aventurança, porque nela o sexo
desempenha um papel muito importante. No momento, interessa-nos apenas uma de suas
facetas: a juventude eterna, preservada pelo poder de rejuvenescimento. Sempre que o
espírito (baloma) percebe que sua pele está ficando coberta de pêlos, que está ficando flácida
e enrugada, que o seu cabelo está ficando grisalho, ele simplesmente se descarta de seu
invólucro e aparece num outro, lépido e jovem, com madeixas negras e uma pele suave e
imberbe.
Mas quando o espírito se cansa do constante rejuvenescimento, quando já passou por
uma longa existência "lá embaixo", como dizem os nativos, ele pode querer voltar à Terra de
novo; para tanto, regride na idade e se torna um bebezinho ainda não nascido. Alguns de meus
informantes observaram que, em Tuma, assim como na Terra, há muitos feiticeiros. A magia
negra é praticada freqüentemente e pode afetar um espírito, tornando-o fraco, doente e
cansado da vida: então, e só então, ele retomará para o início de sua existência,
transformando-se em um espírito-criança. É quase impossível matar o espírito por magia negra
ou acidente: seu fim sempre significa apenas um novo começo.

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No meu artigo "Baloma; the spirits of the death in the Trobriand Islands", apresentei um resumo preliminar sobre as
crenças nativas referentes à procriação. Também emiti algumas opiniões sobre a ignorância da paternidade entre os
primitivos de modo geral, sendo que algumas delas foram questionadas pelo Prof. Westermarck (History 01 human
marriage, 5. ed., v. 1, p. 290 et seqs.) e pelo Prof. Carveth Read (No paternity. Journal 01 the Anthropological
Institute, 1917). As evidências maiores apresentadas neste capítulo respondem a certas questões levantadas pelos
meus críticos.

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Esses espíritos rejuvenescidos, esses bebezinhos pré-encamados ou espíritos-crianças
são a única fonte de novas vidas para a Humanidade. A criança não-nascida encontra o
caminho de volta para as Trobriand e para o ventre de alguma mulher, mas sempre de uma
mulher que pertença ao mesmo clã e subclã da do espírito-criança. Exatamente como viaja de
Tuma para Boyowa, como entra no corpo da mãe e como, lá, o processo fisiológico da
gestação se combina com a atividade do espírito são questões sobre as quais a crença nativa
não é muito consistente. Mas que todos os espíritos devem terminar a vida em Tuma e, no
final, transformar-se em infantes não-nascidos; que todas as crianças nascidas neste mundo
surgiram primeiro (ibubili) em Tuma, pela metamorfose de um espírito; que a única razão e a
causa real de todos os nascimentos é a atuação dos espíritos são fatos que todos conhecem e
nos quais acreditam piamente.
Devido à sua importância, recolhi detalhes e variantes desse sistema de crenças com
especial cuidado. O processo de rejuvenescimento, de modo geral, está associado com a água
do mar. No mito que descreve como a Humanidade perdeu o privilégio de recuperar a
juventude ao seu bel-prazer, o cenário do último rejuvenescimento é a praia de um dos braços
da laguna3. No primeiro relato sobre o rejuvenescimento que obtive em Omarakana, constava
que o espírito "vai para a praia e se banha na água salgada". Tomwaya Lakwabulo, o Vidente,
que em seus transes freqüentemente viaja para Tuma e constantemente está em contacto com
os espíritos, contou-me que "os baloma vão a uma nascente chamada sopiwina (literalmente,
água de lavar), que fica na praia. Lá eles lavam sua pele com água salobra. Tornam-se
to'ulatile (jovens)". Do mesmo modo, no rejuvenescimento final que os faz retornar ao estado
infantil, os espíritos devem banhar-se na água salgada e, quando se tomam bebês novamente,
vão para o mar e ficam vagando. São sempre mencionados como estando a flutuar sobre
pedaços de troncos, folhas, ramos, algas mortas, escuma e outras substâncias leves que
entulham a superfície do mar. Tomwaya Lakwabulo diz que os bebês flutuam sempre perto da
praia de Tuma, vagindo wa; wa, wa. "À noite ouço seu vagido. Pergunto 'O que é isto?' 'Oh, as
crianças; a maré as traz; elas vêm.’” Em Tuma, os espíritos podem ver essas crianças pré-
encarnadas, assim como Tomwaya Lakwabulo, quando desce ao mundo espiritual. Para as
pessoas comuns, contudo, elas são invisíveis. Às vezes, no entanto, quando os pescadores
das aldeias setentrionais de Kaybola e Lu'ebila vão muito longe mar adentro, atrás dos
tubarões, ouvem o vagido - wa, wa, wa - no murmúrio do vento e das ondas.
Tomwaya Lakwabulo e outros informantes sustentam que esses espíritos-crianças
nunca flutuam muito longe de Tuma. Eles são transportados para as Trobriand com auxílio de
um outro espírito. Tomwya Lakwabulo relatou o seguinte:

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Essa história foi apresentada em "Myth in primitive psychology", p. 80-106. A aldeia de Bwadela, onde ocorreu a
perda da imortalidade localiza-se no litoral ocidental da parte meridional da ilha principal.

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"Uma criança flutua num pedaço de tronco. Um espírito nota a sua boa aparência. Ele a apanha.
Ele é o espírito da mãe ou do pai da mulher grávida (nasusuma). Então ele a põe na cabeça, no
cabelo da mulher grávida, que sofre dores de cabeça, vômitos e sente uma dor na barriga. Então
a criança desce para a barriga e ela fica realmente grávida. Ela diz: 'Ela (a criança) já me achou;
eles (os espíritos) já me trouxeram a criança'''.

Nesse relato, encontramos duas idéias centrais: a intervenção ativa de outro espírito -
aquele que, de algum modo transporta a criança de volta para Trobriand e a dá para a mãe - e
a sua inserção através da cabeça, que está associada (não na declaração transcrita, mas
comumente) à idéia de um afluxo de sangue, primeiro à cabeça e depois ao abdômen.
As opiniões variam sobre o modo como o transporte ocorre de fato: há nativos "que
acreditam que o espírito mais velho carrega o bebê em um tipo qualquer de receptáculo - uma
cesta de coco torcido, ou uma travessa de madeira, ou, ainda, simplesmente nos braços.
Outros dizem candidamente que não sabem. Mas o controle ativo de um outro espírito é
essencial. Quando os nativos dizem que as crianças são "dadas por um baloma", que ''um
baloma é a verdadeira causa do nascimento", estão se referindo a esse espírito controlador
(como poderíamos denominá-Io) e não ao espírito-bebê. Esse espírito controlador usualmente
aparece em sonhos para a mulher que está para ficar grávida. Como declarou
espontaneamente Motago'i, um de meus melhores informantes:
"Ela sonha que sua mãe vem até ela, ela vê a face da mãe em um sonho. Ela acorda e diz: 'Oh,
há uma criança para mim'''.

Freqüentemente, a mulher conta ao marido quem foi que lhe trouxe a criança. E assim,
a tradição desse padrinho ou madrinha espiritual é preservada. O chefe atual de Omarakana
sabe que foi Bugwabwaga, um de seus predecessores no cargo, quem o deu à sua mãe. Meu
melhor amigo, Tokulubakiki, foi um presente para sua mãe dado pelo seu kadala, irmão da
mãe. A mulher de Tokulubakiki recebeu sua filha mais velha do espírito de sua mãe.
Normalmente é algum parente materno da mãe prospectiva quem lhe dá o presente, mas pode
também ser o pai, como no depoimento de Tomwaya Lakwabulo.
Já mencionamos a teoria fisiológica associada a essa crença. O espírito-criança é
deixado pelo doador na cabeça da mulher. O sangue do corpo aflui para esse ponto e
gradualmente a criança vai descendo nesse fluxo de sangue até instalar-se no ventre. O
sangue ajuda a construir o corpo da criança - nutre-o. É por isso que, quando uma mulher fica
grávida, cessa a sua menstruação. Uma mulher percebe que sua menstruação parou. Espera
uma, duas, três luas e, então, sabe com segurança que está grávida. Uma crença menos
aceita afirma que o bebê é inserido pela vagina.
Uma outra versão da história da reencarnação atribui maior iniciativa ao bebê pré-
encarnado. Supõe-se que ele seja capaz de transportar-se para Trobriand por sua própria
vontade. Lá ele fica, provavelmente com muitos outros, vagando perto das praias da ilha,
esperando a oportunidade de entrar no corpo de uma mulher enquanto ela se banha. Alguns

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costumes seguidos pelas moças das aldeias costeiras constituem a evidência da vitalidade
dessa crença. Imagina-se que, como em Tuma, o espírito-criança fique agarrado aos troncos, à
escuma, às folhas e ramos, ou, ainda, aos pedregulhos do fundo do mar. Quando se acumula,
perto da praia, muito entulho trazido pelo vento ou pela maré, as moças não entram na água,
temendo que possam vir a conceber. Além disso, nas aldeias da costa setentrional, há o
costume de se encher um recipiente de madeira com água do mar, que é então deixado por
uma noite na cabana da mulher que deseja conceber, na esperança de que o espírito-criança
possa ter sido apanhado no recipiente e se transfira para a mulher durante a noite. Mas,
mesmo nesse caso, diz-se que a mulher foi visitada em seu sonho pelo espírito de algum
parente materno já falecido, de modo que um espírito controlador é ainda essencial à
concepção. É importante observar que a água deve ser sempre recolhida pelo irmão dessa
mulher ou pelo irmão da mãe dela, ou seja, por um parente materno. Para exemplificar: um
homem da aldeia de Kapwani, na costa setentrional, foi solicitado pela filha de sua irmã para
conseguir um bebê para ela. Ele foi diversas vezes à praia. Uma tarde ouviu um som que
parecia o vagido de crianças. Apanhou água do mar com um recipiente e deixou-o na cabana
de sua kadala (sobrinha) durante a noite. Ela concebeu uma criança, uma menina. Infelizmente
essa criança veio a ser albina, mas esse infortúnio não foi devido ao método de concepção.
A diferença fundamental entre essa crença e a primeira que foi descrita é que, nesta, o
espírito-criança possui mais espontaneidade e pode, sem auxílio, transportar-se através do mar
e entrar na mulher que se banha, sendo que essa inserção se efetua pela vagina, ou, então,
pela pele do abdômen, quando a concepção ocorre na cabana. Descobri ser essa a crença
prevalecente na região setentrional da ilha, especialmente nas aldeias costeiras.
A natureza do espírito-criança, ou bebê pré-encarnado, não é definida de modo muito
claro no folclore tradicional. Respondendo a uma questão direta, a maioria dos informantes diz
que não sabe o que ele é ou com o que ele se parece. Contudo, um ou dois que, devido à
maior inteligência, elaboraram mais suas crenças, apresentando-as de forma mais consistente
e com mais detalhes, disseram que o espírito era como o feto no ventre, o qual acrescentaram:
"parece-se com um rato". Tomwaya Lakwabulo declarou, espontaneamente, que as crianças
pré-encarnadas assemelham-se a crianças minúsculas, completamente desenvolvidas e que,
às vezes, são muito bonitas. Ele tinha de dizer alguma coisa, uma vez que, como ele próprio
afirmava, as tinha visto muitas vezes em Tuma. Mesmo a nomenclatura não está bem definida.
Usualmente, o espírito é chamado waywaya, criancinha ou feto, mas algumas vezes usa-se a
palavra pwapwawa, que, apesar de ser quase um sinônimo de waywaya, aplica-se mais a uma
criança já nascida do que ao feto ou a um bebê pré-encamado. Quase sempre, contudo, é
chamada simplesmente de "criança", gwadi (gugwadi, no plural).
Disseram-me, mas não pude comprová-Io integralmente, que há uma magia, realizada
sobre uma espécie de folha de bétel (kwega) chamada kaykatuvilena kwega, para induzir a

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gravidez. Uma mulher em Yourawotu, aldeia perto de Omarakana, conhecia tal magia, mas,
infelizmente, não consegui entrar em contacto com ela4.
Desse modo, como sempre acontece, a crença, quando examinada sob a lente de
aumento da pesquisa detalhada, feita em uma ampla área, dissolve-se em elementos variados
e apenas parcialmente consistentes. As divergências não são inteiramente devidas às
diferenças geográficas e tampouco podem ser atribuídas a camadas sociais especiais, já que
algumas das inconsistências ocorreram no relato de um mesmo homem. Tomwaya Lakwabulo,
por exemplo, afirmava que as crianças não podem viajar sozinhas, devendo ser carregadas por
um espírito controlador e colocadas na mulher; ao mesmo tempo, contudo, me informava de
que o vagido poderia ser ouvido na praia ao norte, perto de Kaybola. Também o homem de
Omarakana, que me contou como o espírito, saindo de um recipiente, poderia entrar em uma
mulher mencionou um espírito mais velho "ofertando" aquela criança. Tais inconsistências,
provavelmente, são o resultado do encontro de vários ciclos mitológicos de idéias, que, por
assim dizer, cruzam-se no locus dessa crença. Um desses ciclos contém a idéia do
rejuvenescimento; outro, o da nova vida trazida para a ilha através do mar; outro, ainda, o de
que um novo membro da família surge como um presente de algum espírito ancestral.
O importante, porém, é que as diferentes versões concordam em todos os pontos
principais, sobrepondo-se e reforçando-se mutuamente. Temos assim uma imagem composta
que, embora indistinta em alguns detalhes, apresenta um contorno nítido quando observada de
uma certa distância. Todos os espíritos rejuvenescem; todas as crianças são espíritos
reencarnados; a identidade do subclã é preservada por todo o ciclo; a verdadeira causa do
nascimento é a iniciativa dos espíritos lá de Tuma.
Devemos nos lembrar, contudo, que a crença na reencarnação não está entre as que
exercem uma influência muito grande sobre os costumes e a organização social: ao contrário, é
uma daquelas doutrinas que levam uma existência calma e passiva no folclore, afetando muito
pouco o comportamento social. Assim, por exemplo, embora os trobriandeses acreditem
firmemente que todos os espíritos transformam-se em crianças ainda não-nascidas e que estas
reencarnam-se de novo em um ser humano, em todo esse processo não se preserva nenhuma
consciência da identidade pessoal. Isto é, ninguém sabe por quantas encarnações passou uma
criança, quem ela foi em sua existência anterior. Não há lembrança da vida anterior em Tuma
ou na Terra. Qualquer tentativa de questionar os nativos a respeito torna óbvio que o problema
todo lhes parece irrelevante e mesmo desinteressante. A única regra reconhecida como
orientadora dessas metamorfoses é a da continuidade do clã e do subclã, que se preserva em
todas elas. Não há idéias morais sobre recompensas ou punições incorporadas na teoria da

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Após cuidadosas investigações, descobri ser completamente infundada a afirmação de um comerciante - transcrita
com certa cautela em meu artigo no Journal of the Anthropological lnstitute, p. 404, 1916. - "sobre algumas pedras
em Sinaketa às quais poderia recorrer uma mulher que quisesse ficar grávida".

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reencarnação nem costumes ou cerimônias que as confirmem ou que a ela estejam
associadas.
Ignorância da paternidade fisiológica
A correlação entre os aspectos místicos e fisiológicos na crença da gravidez - da origem
da criança em Tuma e sua viagem para as Trobriand até o processo subseqüente no corpo
materno, o afluxo de sangue do abdômen à cabeça e novamente da cabeça ao abdômen -
constitui uma teoria coordenada e completa sobre a origem da vida humana, embora nem
sempre consistente. Constitui também uma fundamentação teórica da matrilinearidade, uma
vez que todo o processo de introdução de uma nova vida na comunidade é da
responsabilidade do mundo espiritual e do organismo feminino. Não há lugar para qualquer tipo
de paternidade física.
Mas há uma outra condição que os nativos consideram essencial para a concepção e o
nascimento, que complica sua teoria e esfuma o nítido contorno de sua crença. Essa condição
está relacionada com as relações sexuais e nos coloca frente a frente com uma questão
delicada e difícil: será que os nativos ignoram realmente tudo sobre a paternidade fisiológica?
Não seria esse um fato do qual têm um certo conhecimento, embora distorcido e reprimido
pelas crenças mitológicas e animísticas?
Será que não se trata de um exemplo de conhecimento empírico possuído por uma
comunidade atrasada, mas nunca explicitado porque é óbvio em demasia para necessitar de
explicitações, ao passo que a lenda tradicional, que é a base de sua estrutura social, é
cuidadosamente expressa como parte do dogma oficial? Os fatos que passarei a relatar
contêm uma resposta clara e decisiva para essas questões. Não anteciparei a conclusão que,
como veremos, será esboçada pelos próprios nativos.
Uma virgem não pode conceber.
A tradição, o folclore difuso, certos aspectos do costume e do comportamento habitual
ensinaram aos nativos essa simples verdade fisiológica. Eles não têm dúvidas sobre isso e
veremos, pelo que se segue, que são capazes de formular essa crença de modo claro e
conciso.
A declaração que segue foi fornecida por Niyova, um bom informante de Oburaku:
"Uma virgem não pode conceber porque não há caminho para a criança passar, a fim de que
aquela mulher possa conceber. Quando o orifício está bem aberto, os espíritos ficam sabendo e
dão a criança".

Isso é absolutamente claro, mas durante a mesma declaração, o mesmo informante já


tinha me dado uma descrição detalhada sobre como o espírito depositava a criança na cabeça
da mulher. As palavras de Niyova, transcritas aqui literalmente, implicam uma inserção pela
vagina. Ibena, um lúcido velho de Kasana'i, deu-me uma explicação semelhante - de fato, foi
ele quem primeiro esclareceu que a virgindade impede mecanicamente o engravidamento pelo

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espírito. Seu método de explicação foi gráfico. Cerrando os punhos, ele perguntou: "Alguma
coisa pode entrar aqui?" e, então, abrindo-os, ele continuou: "Agora, como se vê, é fácil. É por
isso que um bulabola (orifício grande) concebe facilmente e um nakapatu (entrada pequena ou
fechada, uma virgem) não pode fazê-Io".
Reproduzi essas duas declarações in extenso, porque são características e elucidativas;
além disso, não se trata de afirmações isoladas. Obtive um grande número de declarações
semelhantes, todas expressando a opinião de que o caminho para a criança deve ser aberto,
mas não necessariamente através de relações sexuais. O ponto é muito claro. A vagina deve
ser aberta para remover o obstáculo fisiológico, chamado simplesmente de kalapatu (sua
estreiteza). Feito isso, normalmente através de relações sexuais, não há necessidade de que o
homem e a mulher fiquem juntos para que se produza uma criança.
Considerando que não há virgens nas aldeias - pois as crianças começam sua vida
sexual muito cedo -, é de se questionar como é que os nativos chegaram a essa conditio sine
qua non. E, mais ainda, já que chegaram até aí, pode parecer difícil entender por que não
avançaram um pouco mais até compreenderem a virtude fertilizadora do líquido seminal.
Contudo, uma série de fatos prova que os nativos não fizeram tal progresso: tão certo quanto
conhecem a necessidade de uma abertura mecânica da vagina, não conhecem o poder
gerador da ejaculação masculina. Foi discutindo os pontos mitológicos sobre os primórdios da
humanidade na Terra e as lendas fantásticas sobre terras distantes, relatados a seguir, que
entendi essa diferença sutil mas extremamente importante entre dilatação mecânica e
fecundação fisiológica; a partir daí fui capaz de colocar a crença nativa sobre a procriação em
sua perspectiva correta.
De acordo com a tradição nativa, a humanidade originou-se do subsolo, quando duplas
formadas por um irmão e uma irmã emergiram em lugares diferentes e específicos. De acordo
com certas lendas, primeiramente apareceram as mulheres. Muitos dos meus comentaristas
insistiram neste ponto: "Veja você, nós somos muitos na Terra porque muitas mulheres vieram
primeiro. Se tivessem vindo os homens, seríamos poucos." Tendo ou não a companhia de seu
irmão, essa mulher primeva é sempre imaginada como tendo filhos sem a intervenção de um
marido ou qualquer outro parceiro masculino, mas não sem ter tido a vagina aberta por algum
meio. Em algumas tradições, esses meios são mencionados explicitamente. Assim, na ilha de
Vakuta, há um mito que descreve como uma ancestral de um dos subclãs expôs seu corpo à
chuva que caía e assim perdeu, mecanicamente, sua virgindade. No mito trobriandês mais
importante, uma mulher chamada Mitigis ou Bolutukwa, mãe do lendário herói Tudava, vivia
completamente só em uma gruta perto da praia. Um dia, ela dormiu em sua rochosa morada,
reclinando-se sob uma estalactite gotejante. As gotas de água furaram sua vagina, privando-a,
assim, da virgindade. Daí seu segundo nome, Bolutukwa: bo, prefixo feminino; litukwa, água
que pinga. Em outros mitos de origem, os meios, de perfuração do hímen não são

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mencionados, mas quase sempre se declara explicitamente que a ancestral não tinha a
companhia de um homem, não podendo, portanto, ter relações sexuais. Quando se pergunta
diretamente aos nativos como elas poderiam ter tido filhos se não tinham homens, eles
mencionam, em uma resposta entre grosseira e zombeteira, vários modos de perfuração que
elas poderiam ter usado facilmente e fica claro que nada mais seria necessário.
Em uma outra dimensão mitológica - a das lendas contemporâneas sobre os longínquos
países do norte -, encontramos a maravilhosa terra de Kaytalugi, povoada unicamente por
mulheres sexualmente violentas. Sua devassidão é tão grande que seus excessos matam
todos os homens que por acaso cheguem em suas praias; mesmo seus próprios filhos homens
nunca alcançam a maturidade, pois são levados à morte pelo abuso sexual. Apesar disso,
essas mulheres são bastante prolíficas, tendo muitos filhos homens e mulheres. Caso se
pergunte a um nativo como isso pode acontecer, como essas mulheres podem engravidar se
não há homens, ele simplesmente não entende uma questão assim tão absurda. Essas
mulheres, dirá, se não puderem conseguir um homem para torturar até a morte, destroem sua
virgindade de diversas maneiras. E é claro que elas possuem seus próprios baloma que lhes
trazem as crianças.
Acrescentei essas ilustrações míticas porque, em primeiro lugar, elas demonstram
claramente o ponto de vista nativo: a necessidade de perfuração e ausência de qualquer idéia
sobre o valor fecundante do sêmen. Mas há também alguns exemplos contemporâneos bem
convincentes que mostram que os nativos acreditam que as mulheres podem ter filhos sem ter
tido relações sexuais. Assim, há algumas mulheres tão feias e repulsivas que ninguém acredita
que elas possam ter tido relações (com exceção, é lógico, daqueles que têm motivos para
saberem o contrário, mas que guardam silêncio, de vergonha). É o caso de Tilapo'i, agora uma
velha, famosa por sua hediondez quando jovem. Ela ficou cega, foi sempre semi-idiota, tinha
um rosto repulsivo e um corpo deformado. Sua falta de atrativos era tão notória que se tomou
objeto de um dito: Kwoy Tilapo'i ("vai ter relações com Tilapo'i"), uma forma de insulto usada
em zombarias leves. Ela constitui fonte inesgotável e pivô de toda sorte de piadas obscenas e
matrimoniais, todas baseadas na presumida impossibilidade de alguém vir a ser amante ou
futuro marido de Tilapo'i. Asseguraram-me muitas e muitas vezes que ninguém jamais poderia
ter tido relações com ela. E essa mulher teve uma criança, como os nativos me observaram,
triunfantemente, quando tentava persuadi-Ios de que crianças só podem ser feitas através de
relações sexuais.
Há também o caso de Kurayana, uma mulher de Sinaketa, a quem nunca vi, mas que,
segundo me foi dito, era "tão feia que qualquer homem se envergonharia" de ter relações com
ela. Esse dito implica que a vergonha social seria um impedimento mais forte do que a repulsa
sexual, afirmação esta que mostra que o meu informante não era um mau psicólogo prático.

11
Kurayana, tão casta quanto possível não por virtude, mas por necessidade -, teve nada menos
que seis filhos, cinco dos quais morreram e um que ainda vive.5
Os albinos de ambos os sexos são considerados inadequados para relações sexuais.
Não há a menor dúvida de que os nativos sentem verdadeiro horror e aversão por esses seres
infortunados, horror perfeitamente compreensível para quem já viu alguns desses
trobriandeses sem pigmentação. E, ainda assim, há registro de mulheres albinas que tiveram
numerosa prole. "Por que elas ficaram grávidas? Porque copularam à noite? Ou porque um
baloma lhes deu crianças?" Esse era o argumento final de meus informantes, pois a primeira
alternativa lhes parecia obviamente absurda. De fato, as linhas básicas desse argumento foram
espontaneamente fornecidas para mim já nas primeiras discussões sobre o assunto, embora
obtivesse dados confirmadores mediante pesquisa posterior. Assim, como recurso para testar a
firmeza de sua crença, forcei-me muitas vezes a ser, de modo definitivo e agressivo, o defensor
da teoria fisiológica correta da procriação. Os nativos usavam, em sua argumentação, não
apenas exemplos positivos, como aqueles já mencionados, de mulheres que tiveram filhos sem
ter tido nenhuma relação, mas também se referiam ao aspecto negativo, igualmente
convincente, ou seja, aos inúmeros casos de mulheres não-casadas que tinham relações
sexuais freqüentemente e não possuíam crianças. Esse argumento foi repetido várias e várias
vezes, acompanhando o relato de exemplos concretos de pessoas sem filhos e conhecidas por
sua licenciosidade ou de mulheres que viviam com comerciantes brancos, um após o outro,
sem ter tido nenhum bebê.
Palavras e atos de comprovação
Embora nunca temesse usar uma questão direta ou obter, pela contradição, o ponto de
vista nativo, espantou-me, de certo modo, a ardente oposição provocada pela minha defesa da
paternidade fisiológica. Foi só muito tempo depois de ter começado meu trabalho nas
Trobriand que descobri não ter sido o primeiro a atacar essa parte da crença nativa, tendo sido
precedido pelos professores missionários. Refiro-me principalmente aos de cor, pois não sei
qual a atitude tomada por um ou dois brancos encarregados da missão antes da minha
chegada, e aqueles que vieram à ilha enquanto eu estava lá só trabalharam por pouco tempo,
não entrando em tais detalhes. Mas todos os meus informantes nativos corroboraram o fato
que eu tinha descoberto, isto é, que a doutrina e o ideal de paternidade, e tudo quanto tende a
reforçá-Ios era defendido pelos professores de cor cristãos.
É preciso entender que o dogma fundamental do Deus Pai e Deus Filho, o sacrifício do
Filho e o amor filial do homem por seu Criador está completamente, deslocado em uma
sociedade matrilinear, onde a relação entre pai e filho é, segundo a lei tribal, uma relação entre

5
No artigo já mencionado do Journal of the Anthropological lnstitute, 1916, cometi uma injustiça com Kurayana,
afirmando, na página 412, que ela era mãe de cinco filhos apenas. O número é seis, todos concebidos sem auxílio
de um homem.

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dois estranhos, onde toda unidade pessoal entre eles é negada, e onde todas as obrigações
familiares estão associadas à linha materna. Não poderíamos, portanto, nos espantar diante do
fato de que a paternidade fosse uma das primeiras verdades pregadas pelos cristãos
catequistas. Se assim não fosse, o dogma da Trindade teria de ser traduzido em termos
matrilineares e falaríamos de um Deus-kadala (irmão da mãe), um filho da irmã de Deus e um
baloma (espírito) divino.
Mas, além das dificuldades doutrinárias, os missionários estão seriamente engajados na
propaganda da moral sexual tal como a concebemos, na qual é indispensável o fortalecimento
da idéia de que o ato sexual tem sérias implicações para a vida familiar. Toda a moral cristã,
além disso, está profundamente associada com a instituição da família patriarcal e patrilinear,
tendo o pai como progenitor e chefe do grupo doméstico. Em resumo, uma religião, cuja
essência dogmática está baseada no caráter sagrado da relação entre pai e filho e cuja moral
depende de uma sólida família patriarcal deve, obviamente, agir no sentido de reforçar a
relação paterna, mostrando o seu fundamento natural. Foi somente em minha terceira
expedição à Nova Guiné que descobri que os nativos estavam um tanto exasperados pela
pregação de tamanho "absurdo" e também por me verem preocupado com um argumento tão
fútil; eu, que era tão diferente dos missionários.
Quando descobri tudo isso, passei a chamar a perspectiva fisiológica correta de
"conversa de missionários", estimulando os nativos a fazer comentários ou a entrar em
contradições. Desse modo, obtive alguns dos melhores e mais claros depoimentos, dos quais
selecionei certos trechos.
Motago'i, um de meus informantes mais inteligentes, respondendo a uma arrogante afirmação
de que os missionários estavam certos, exclamou:
"Gala wala! (De modo nenhum!) Isasopasi: yambwata yambwata (Eles mentem: sempre sempre)
nakubukwabuya (moças solteiras) momona (líquido seminal) ikasewo (estão repletas) litusi gala".
(crianças dela não.)

Que, traduzido livremente, significa: "De modo algum; os missionários estão errados; as
moças solteiras têm relações sexuais continuamente; na verdade, estão cheias de líquido
seminal e, assim mesmo, não possuem filhos".
Aqui, em uma linguagem sucinta e pinturesca, Motago'i expressa a opinião de que,
afinal de contas, se houvesse qualquer relação causal entre o ato sexual e a concepção de
crianças, seriam as moças solteiras que teriam filhos, já que elas levam uma vida sexual muito
mais intensa do que as mulheres casadas - uma dificuldade intrigante, que realmente existe,
como veremos posteriormente, mas que nosso informante exagera um pouco, pois as moças
solteiras concebem, só que muito menos do que os adeptos da "opinião dos missionários"
poderiam esperar. Perguntei-lhe no decorrer da mesma conversa: "Então, qual é a causa da
gravidez?" e tive a seguinte resposta: "O sangue na cabeça faz a criança. O líquido seminal

13
não faz a criança. Os espíritos trazem-na à noite, colocam-na na cabeça da mulher - isso
provoca o sangue. Então, dois ou três meses depois, quando o sangue (isto é, o sangue
menstrual) não vem, elas sabem: 'Oh, estou grávida!'''.
Em uma discussão similar, um informante em Teyava fez diversas declarações, das
quais apresento as duas mais espontâneas e conclusivas. "A cópula apenas não pode produzir
uma criança. As moças copulam noite após noite, durante anos. E não aparece nenhuma
criança." Aqui vemos de novo o mesmo argumento da evidência empírica; a maioria das
moças, apesar de terem relações sexuais assiduamente, não concebe. Em outra afirmação, o
mesmo informante diz: "Falam que o líquido seminal produz crianças. É mentira! Na verdade,
são os espíritos que trazem (as crianças) à noite".
Quando precisava de um controle definitivo para minha informação, podia sempre
confiar na honestidade, na boa vontade e na reflexão desapaixonada de Tokulubakiki, meu
informante favorito de Omarakana. Foi ele quem me expôs claramente o ponto de vista nativo,
embora de um modo um tanto rabelaisiano:
"Takayta, itokay (Nós copulamos, ela se levanta) vivila (mulher) italagila (escorre) mo mona
(líquido seminal) iwokwo." (está acabado.)
Ou, em outras palavras, após serem removidos os traços do ato sexual, não há
nenhuma outra conseqüência.
Essas observações são bastante diretas, assim como as outras, já transcritas; mas,
afinal de contas, uma opinião é apenas a expressão acadêmica de uma crença, cuja
profundidade e persistência devem ser verificadas pelo teste do comportamento. Do mesmo
modo que para os camponeses europeus, para os nativos dos Mares do Sul os animais
domésticos - isto é, os porcos - constituem os membros mais valiosos e apreciados de sua
casa. É na sua preocupação com o bem-estar e a qualidade de seus animais que mais se
manifesta a honestidade e o caráter genuíno de suas convicções. Os nativos dos Mares do Sul
esforçam-se muito para ter porcos bons, fortes e saudáveis, e de boa linhagem.
Em matéria de qualidade, a principal distinção que estabelecem é entre os porcos-do-
mato, ou selvagens, e os domésticos, da aldeia. O porco doméstico é considerado uma grande
iguaria, enquanto a carne do porco-do-mato é um dos maiores tabus para as pessoas de
posição em Kiriwina, cuja transgressão provoca verdadeiro horror e aversão. No entanto,
permite-se que as porcas domésticas fiquem vagando pelos arredores da aldeia e pelo mato,
onde podem cruzar livremente com os porcos selvagens. Por outro lado, castram-se todos os
porcos machos da aldeia a fim de melhorar a sua condição. Naturalmente, desse modo, toda a
progênie descende dos porcos-do-mato. Mas os nativos não têm a mais leve suspeita do fato.
Quando observei a um dos chefes, "Você comeu a cria de um porco-do-mato", ele considerou a
observação uma brincadeira grosseira, pois pilheriar sobre comer porco-do-mato não é

14
considerado de bom-gosto por um trobriandês de bom nascimento e posição. Mas ele de modo
algum entendeu o alcance da minha observação.
Certa vez, quando perguntei diretamente como os porcos se reproduziam, obtive a
seguinte resposta: "A fêmea reproduz-se por si mesma", o que significa, simplesmente, que,
provavelmente, não há nenhum baloma envolvido na multiplicação de animais domésticos.
Quando estabeleci paralelos sugerindo que os porquinhos seriam trazidos por seus próprios
balomas, não ficaram convencidos; era evidente que nem sua curiosidade, nem os dados
fornecidos pela tradição inspiravam qualquer preocupação quanto ao modo de procriação de
porcos.
Um depoimento voluntário de Motago'i foi muito importante: "Nós castramos todos os
porcos machos. Eles não copulam. Mas assim mesmo as fêmeas dão cria". Fica claro que ele
não levava em consideração a interferência dos porcos-do-mato e apresentava a castração dos
porcos domésticos como a prova definitiva de que o ato sexual não tem nada a ver com a
reprodução. Em outra ocasião, usei como exemplo o único casal de cabras do Arquipélago,
que um comerciante tinha importado recentemente. Quando perguntei se a fêmea teria cria se
o macho fosse morto, não houve vacilações na resposta: "Ela terá cria ano após ano".
Portanto, os nativos acreditam firmemente que, se uma fêmea estiver completamente separada
dos machos de sua espécie, tal fato não terá nenhuma influência em sua fecundidade.
Outra prova crucial foi dada pela recente importação de porcos europeus. Em
homenagem ao primeiro homem que os trouxe, o falecido Mick George, um comerciante grego
e um personagem realmente homérico, esses porcos foram chamados bulukwa Miki (porcos do
Mick) e, para obtê-Ios os nativos teriam que dar de cinco a dez de seus próprios porcos por um
único daqueles. Mas, uma vez adquiridos, não há a menor preocupação para cruzar as porcas
com um macho daquela raça, embora fosse fácil fazê-Io. Certa vez, foram repreendidos por um
comerciante branco por terem castrado todos os machos da raça européia, sendo-Ihes dito
que, agindo assim, prejudicavam toda a linhagem. Mas os nativos simplesmente não
conseguiam entender o fato e continuaram a permitir, em todo o território, a mestiçagem de
seus valiosos porcos europeus.
Em meu artigo já mencionado (Journal of the Anthropological Institute, 1916), transcrevi,
literalmente, uma observação sobre os porcos, feita por um de meus informantes e obtida logo
no início do trabalho de campo. "Eles copulam, copulam, e logo a fêmea terá cria". Comentei:
"Portanto, a cópula aparece aqui como a u'ula (causa) da gravidez". Mesmo com suas
ressalvas, essa opinião é incorreta. De fato, durante minha primeira visita às Trobriand, após a
qual escrevi tal artigo, nunca me aprofundei no assunto da procriação dos animais. À luz de
informações posteriores, mais completas, a concisa declaração do nativo, transcrita acima, não
pode ser interpretada como implicando algum conhecimento sobre como os porcos realmente
se reproduzem. Como está, significa simplesmente que a dilatação vaginal é tão necessária

15
entre os animais quanto entre os seres humanos. E também significa que, de acordo com a
tradição nativa, neste particular, assim como em outros, os animais não estão sujeitos às
mesmas relações causais a que estão sujeitos os homens. Nos seres humanos, os espíritos
são os responsáveis pela gravidez; nos animais, ela apenas acontece. Do mesmo modo,
enquanto os trobriandeses atribuem todos os males humanos à bruxaria, entre os animais a
doença é apenas doença. Os homens morrem por causa de feitiços malignos muito fortes: os
animais apenas morrem. Mas seria totalmente incorreto considerar que os nativos conheçam,
no caso dos animais, as causas naturais da gravidez, da doença e da morte, enquanto, com
relação aos homens, distorçam esse conhecimento por causa de uma superestrutura
animística. A verdadeira súmula do ponto de vista nativo é que eles estão tão profundamente
interessados nos problemas humanos, que constroem uma tradição especial para tudo o que é
vital para o homem, ao passo que, naquilo que se refere aos animais, as coisas são encaradas
do jeito que são, sem nenhuma tentativa de explicação e também sem nenhuma idéia sobre o
curso real da Natureza.
A atitude dos nativos com relação aos seus próprios filhos também comprova sua
ignorância da relação causal entre o ato sexual e a gravidez subseqüente. Um homem cuja
mulher tenha concebido durante sua ausência, aceitará alegremente o fato e a criança, sem
ver nisso razão para suspeitar de adultério. Um de meus informantes contou-me que, ao voltar
para casa, após um ano de ausência, encontrou um recém-nascido. Contou-me o fato
espontaneamente, como exemplo e prova conclusiva de que a relação sexual não tem nada a
ver com a concepção. Devemos lembrar que um nativo jamais abordaria um assunto que
envolvesse a menor suspeita sobre a fidelidade de sua mulher. De modo geral, não se faz
nenhuma alusão à sua vida sexual, passada ou presente. Mas, ao contrário, a gravidez e o
parto são livremente discutidos.
Há um outro exemplo, o de um nativo da pequena ilha de Kitava, o qual, após dois anos
de ausência, ficou muito feliz por encontrar em casa um bebê de poucos meses e não
conseguia entender nem um pouco os comentários e alusões indiscretas de alguns brancos a
respeito da virtude de sua mulher.
Meu amigo Layseta, um grande marinheiro e feiticeiro de Sinaketa, passou grande parte
do final de sua juventude nas ilhas Amphlett. Ao retornar, encontrou duas crianças, dadas à luz
por sua mulher em sua ausência. Ele gosta muito delas e de sua esposa, e, quando, discutindo
o assunto com outras pessoas, sugeri que pelo menos uma dessas crianças não poderia ser
dele, meus interlocutores não entenderam o que eu queria dizer com isso.
Através desses exemplos, podemos ver que as crianças nascidas no matrimônio
durante uma prolonga.da ausência do marido são reconhecidas por ele como suas, ou seja,
estão para ele na relação social de filho e pai. Encontramos um paralelo instrutivo nos casos de
crianças nascidas fora do matrimônio, mas durante uma ligação tão exclusiva quanto um

16
casamento. Nesses casos, seria óbvio para nós quem é o pai fisiológico, mas um trobriandês
não reconheceria essa criança como sua e, além disso, como uma moça fica desonrada
quando tem filhos antes de se casar, ele pode recusar-se a casar com ela. Eis um bom
exemplo: Gomaya, um de meus primeiros informantes, que já conhecemos, tinha uma ligação
com uma garota chamada Ilamweria. Eles viviam juntos e estavam para se casar quando ela
ficou grávida e deu à luz uma menina; Gomaya abandonou-a por causa disso. Ele tinha plena
certeza de que ela jamais tinha tido relações com outro rapaz, de modo que, se lhe passasse
pela cabeça qualquer questão sobre a paternidade fisiológica, aceitaria a criança como sua e
casar-se-ia com a mãe. Mas, de acordo com o ponto de vista nativo, ele nem sequer se
colocava o problema da paternidade: a existência da maternidade pré-nupcial já era o bastante.
Portanto, o marido é o pai ex officio das crianças tidas por uma mulher casada, mas,
para uma mãe solteira, não há "pai para a criança". O pai é definido socialmente e, para que
possa haver paternidade, deve haver casamento. Como já dissemos, o sentimento tradicional
encara as crianças ilegítimas como uma falha da mãe. Obviamente, não há qualquer
implicação de culpa sexual nessa censura, mas, para o nativo, errar é, simplesmente, agir
contra o costume. E não é costume uma jovem solteira ter bebês, embora seja costume que ela
tenha tantas relações sexuais quanto quiser. Quando se pergunta aos nativos porque isso é
considerado ruim, eles responderão:
"Pela gala tamala, gala taytala bikopo't' ("Porque não há pai para a criança, não haverá homem
para tomá-Ia em seus braços.") Nessa locução, fica claramente expressa a definição correta do
termo tamala: o marido da mãe, o homem cujo papel e dever é tomar a criança nos braços e
ajudar a cuidar dela e a criá-Ia.
Crianças sem pai em uma sociedade matrilinear
Parece ser este o momento adequado de discutirmos o interessante problema das crianças
ilegítimas, ou, como os nativos as chamam, "crianças nascidas de jovens solteiras", "crianças
sem pai". Sem dúvida, o leitor já deve ter levantado uma série de questões. Uma vez que há
tanta liberdade sexual, não deveria haver também um grande número de crianças nascidas
fora do casamento? Se não for esse o caso, que meios de prevenção possuem esses nativos?
Caso contrário, como fazem para tratar do problema, qual é a posição das crianças ilegítimas?
Com relação à primeira pergunta, deve-se notar que crianças ilegítimas são raras.
Parece que as moças permanecem estéreis durante o período de licenciosidade, que começa
quando são ainda crianças pequenas e continua até que se casem. Quando se casam,
concebem e dão à luz, às vezes prolificamente. Quanto ao número de crianças ilegítimas,
devemos tomar cuidado, pois em muitos casos há extrema dificuldade até mesmo para
estabelecer o fato. Como já observei, por uma arbitrária regra da doutrina e do costume, ter
filhos antes do casamento é considerado repreensível. Assim, como resultado da delicadeza
para com as pessoas presentes, dos interesses familiares ou do orgulho local, a existência

17
dessas crianças é, via de regra, ocultada. Elas são freqüentemente adotadas por algum
parente, e a elasticidade das termos de parentesco torna muito difícil distinguir entre os filhos
verdadeiros e as adotivos. Se um homem casado diz: "Este é meu filho", pode muito bem
tratar-se do filho ilegítimo da irmã de sua mulher. Desse modo, mesmo em uma comunidade
que conhecemos bem, podemos fazer apenas estimativas aproximadas. Nos registros
genealógicos que fiz nas Trobriand, consegui localizar aproximadamente uma dúzia de
crianças ilegítimas, isto é, cerca de um por cento. Não estão incluídas aí as crianças ilegítimas
das mulheres feias, deformadas ou albinas que mencionei antes, pois nenhuma delas figura
nos meus registras genealógicos.
Deparamo-nos assim com a questão: Por que há tão poucas crianças ilegítimas? Não
posso apresentar mais que uma explicação por tentativa sobre o assunto, e sinto que minha
informação talvez não seja tão completa quanto poderia ser se eu tivesse me concentrado mais
no problema. Uma coisa posso afirmar com certeza: não são conhecidos quaisquer meios de
prevenção, nem há a menor idéia sobre eles. Isto, por certo, é muito natural. Uma vez que não
se conhece o poder procriador do líquido seminal, uma vez que este é considerado não só
inofensivo, mas também benéfico, não há motivos para que os nativos o impeçam de chegar às
partes que deve lubrificar. Na realidade, qualquer sugestão de recursos neomalthusianos faz
com que os nativos sintam arrepios ou, então, riam, de acordo com suas inclinações ou
temperamento. Nunca praticam o coitus interruptus e muito menos ainda possuem qualquer
noção sobre preventivos químicos ou mecânicos.
Embora eu esteja absolutamente certo sobre este ponto, não posso, contudo, falar com
a mesma certeza sobre o aborto, apesar de, provavelmente, ele não ser praticado em larga
escala. Posso, de início, afirmar que os nativos não demonstram medo ou constrangimento em
discutir tal assunto, de modo que não podemos atribuir a reticências ou mentiras quaisquer
dificuldades para esclarecer este estado de coisas. Meus informantes disseram-me que existe
uma magia que provoca o nascimento prematuro, mas não consegui obter exemplos em que
tenha sido empregada, nem descobrir os encantamentos e ritos utilizados. Mencionaram-me
algumas das ervas usadas nessa magia, mas estou certo de que nenhuma delas possui
qualquer propriedade fisiológica. Em suma, parece que o único meio efetivo utilizado para
controlar o crescimento da população é o aborto por meios mecânicos e não há dúvidas de que
mesmo esse método não é praticado intensamente.
O problema, portanto, permanece. Poderia haver alguma lei fisiológica que tornasse a
concepção menos provável quando as mulheres iniciam sua vida sexual muito cedo e a
conduzem ativa e promiscuamente? Esta é uma questão puramente biológica e fica claro que
não poderá ser respondida aqui; mas uma resposta desse tipo parece-me a única possível, a
menos que eu tenha perdido alguma importante pista etnológica. E, como já disse, não creio
que minhas pesquisas nesse assunto sejam conclusivas.

18
É interessante descobrir que a maioria dos brancos residentes ou visitantes está
profundamente interessada no assunto - e apenas neste assunto -, entre todos os problemas
etnológicos que poderiam ser considerados. Há uma crença vigente entre os cidadãos brancos
da Nova Guiné oriental de que os trobriandeses estão de posse de misteriosos e poderosos
meios de anticoncepção ou de aborto. Sem dúvida, essa crença se justifica pelos intrigantes e
marcantes fatos que vimos discutindo. Sustenta-se no conhecimento insuficiente e na
tendência para o sensacionalismo e para o exagero, tão característica da mente européia mais
rude. Posso dar vários exemplos desse conhecimento insuficiente, pois todos os homens
brancos com quem falei sobre o assunto começavam com a dogmática afirmação de que, entre
os trobriandeses, as moças solteiras nunca tinham filhos, com exceção das que viviam com
mercadores brancos; entretanto, como vimos, foram registradas crianças ilegítimas. Igualmente
incorreta e fantástica é a crença nos misteriosos contraceptivos, para a qual, nem mesmo os
residentes mais antigos, que estão firmemente convencidos de sua existência, podem oferecer
qualquer base. Parece ser esse um exemplo da verdade bem conhecida de que, uma raça
superior, em contacto com uma inferior, tem a tendência de atribuir poderes demoníacos e
misteriosos a esta última.
Voltando à questão das "crianças sem pai", encontramos, entre os trobriandeses, uma
tendência da opinião pública em condenar a ilegitimidade, chegando quase a ser uma regra
moral. Em nossa própria sociedade, partilhamos dessa opinião enfaticamente, mas, entre nós,
ela está ligada à nossa forte valorização moral da castidade. Se não na prática, ao menos na
teoria, condenamos os frutos da imoralidade sexual pela causa e não pela conseqüência.
Nosso silogismo segue nessa ordem: "Toda relação sexual fora do matrimônio é má; a
gravidez é causada pela relação sexual; logo, todas as solteiras grávidas são más". E, assim,
quando encontramos outra sociedade que aceita o último termo do silogismo, saltamos à
conclusão de que os outros termos também são aceitos, especialmente o termo médio. Isto é,
assumimos que os nativos reconhecem a paternidade fisiológica. Sabemos, porém, que o
primeiro termo da proposição não é aceito nas Trobriand, pois as relações sexuais fora do
casamento estão livres de censura, a menos que ofendam os tabus especiais do adultério, da
exogamia e do incesto. Portanto, o termo médio não pode servir de elemento de ligação, e o
fato de que os nativos aceitam a conclusão nada prova sobre seu conhecimento da
paternidade. Desenvolvi um tanto detalhadamente esse ponto porque se trata de um exemplo
característico de quão difícil é nos livrarmos de nossos próprios e estreitos modos de pensar e
de sentir e de nossas próprias e rígidas estruturas de preconceitos morais e sociais. Embora eu
próprio devesse estar em guarda contra tais armadilhas, embora nessa época já estivesse
familiarizado com os trobriandeses e seu modo de pensar, assim mesmo, ao procurar entender
sua desaprovação das crianças ilegítimas, caí nesse falso raciocínio antes que um maior
conhecimento dos fatos me forçasse a corrigi-Io.

19
A fecundidade em moças solteiras é condenada; a esterilidade das mulheres casadas é
considerada infortúnio. O mesmo termo, nakarige (na, prefixo feminino; karige, morrer) é usado
tanto para uma mulher sem filhos quanto para uma porca estéril. Mas essa condição não
envergonha a pessoa a que se refere nem provoca a perda de status social da mulher.
Bokwyoba, a esposa mais velha de Toulo'uva, não tinha filhos e assim mesmo ocupava o
primeiro lugar entre as mulheres, que lhe cabia devido à sua idade. Tampouco a palavra
nakarige é considerada indelicada; uma mulher estéril emprega-a, referindo-se a si mesma e os
outros chamá-Ia-ão por tal termo em sua presença. Mas a fecundidade da mulher casada é
considerada uma coisa boa. Em primeiro lugar, afeta seus parentes maternos, sendo um
assunto de grande importância para eles. "Os parentes alegram-se pois seus corpos se tornam
mais fortes quando uma de suas irmãs ou sobrinhas têm muitos filhos." As palavras
empregadas nessa afirmação expressam a interessante concepção da unidade coletiva do clã,
cujos membros são não apenas da mesma carne, mas quase formam um único corpo.
Retornando novamente à linha principal de nosso argumento, devemos observar que o
desprezo e a desaprovação da ilegitimidade são altamente significativos em termos
sociológicos. Vamos recordar uma vez mais essa estranha e interessante constelação de fatos:
a paternidade fisiológica é desconhecida; apesar disso, ela é, num sentido social, considerada
necessária e a "criança sem pai" é encarada como uma anomalia, algo contrário ao curso
normal dos acontecimentos e, portanto, reprovável. O que significa isso? A opinião pública,
baseada na tradição e no costume, afirma que uma mulher não pode se tornar mãe antes que
se case, embora possa desfrutar de tanta liberdade sexual quanto queira, dentro dos limites
legais. Isso significa que uma mãe necessita de um defensor e provedor de suas necessidades
econômicas. Ela tem em seu irmão um senhor e protetor natural, mas ele não está em posição
de cuidar dela em todos os aspectos em que ela precisa de um guardião. De acordo com as
idéias nativas, uma mulher grávida, deve, em uma certa altura, abster-se de todo
relacionamento sexual e "varrer os homens de sua mente". Precisa, então, de um homem que
assuma todos os direitos sexuais em relação a ela, abstendo-se, a partir de um certo momento,
até do exercício de seus próprios privilégios, protegendo-a de qualquer interferência e
controlando o seu comportamento. Devido ao rígido tabu entre irmão e irmã, o irmão não pode
fazer nada disso, devendo até mesmo evitar, escrupulosamente, o menor pensamento sobre
qualquer coisa relacionada com o sexo de sua irmã. Há, também, durante o nascimento, a
necessidade de um homem, para cuidar dela e "receber a criança nos braços", como dizem os
nativos. Mais tarde é tarefa do marido participar de todos os carinhosos cuidados prestados à
criança. E apenas quando a criança cresce que ele renuncia à maior parte de sua autoridade
em favor do irmão de sua mulher, retendo parte dela no caso das meninas, no que diz respeito
ao casamento.

20
Assim, a participação do marido é definida estritamente pelo costume, sendo
considerada socialmente indispensável. Uma mulher com uma criança e sem marido constitui
um grupo anômalo e incompleto. A desaprovação da criança ilegítima e de sua mãe é uma
particularização da desaprovação genérica de tudo quanto não está de acordo com o costume,
opondo-se contra o padrão social aceito e a organização tribal tradicional. A família constituída
pelo marido, mulher e filhos é o padrão estabelecido pela lei tribal, que também define as
funções de suas partes componentes. Portanto, não é direito que esteja faltando um de seus
membros.
Desse modo, apesar de ignorarem a necessidade fisiológica de um homem para a
constituição da família, encaram-no como socialmente indispensável. Isso é muito importante.
A paternidade, completamente desconhecida em seu sentido biológico, ainda assim é mantida
por um dogma social que afirma: "Toda família deve ter um pai; uma mulher deve se casar
antes que possa ter filhos; em toda casa deve haver um homem".
A instituição da família individual é assim estabelecida firmemente sobre um forte
sentimento de sua necessidade, totalmente compatível com a absoluta ignorância de sua
fundamentação biológica. O papel sociológico do pai é estabelecido e definido sem nenhum
reconhecimento de sua natureza fisiológica.

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