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Psicanálise e moral sexual

Psicanálise e moral sexual


Adelson Bruno dos Reis Santos
e Paulo Roberto Ceccarelli
Resumo
A moral sexual é um fato da cultura. Não existe sociedade que não tenha regras a respeito do uso
da libido. O controle em relação aos “prazeres da carne” sempre foi, em intensidades diferentes e
em momentos variáveis, um elemento constitutivo do humano. Sendo o imaginário cultural uma
construção sócio-histórica, este texto pretende mostrar que algumas teses freudianas, em particu-
lar as apresentadas em Moral sexual ‘civilizada’ e doença nervosa moderna (1908), batem frontalmente
com certos ideais da cultura ocidental. Trata-se, pois, de tentar elucidar como a cultura ocidental
criou a moral sexual civilizada geradora da doença nervosa moderna.

Palavras-chave
Moralidade, Sexualidade, Civilização, Neurose, Religião.

O discurso sobre a regulamentação do valece o domínio religioso, cabe aos sacer-


sexo sempre foi um assunto do Estado, das dotes, inspirados pela vontade dos deuses,
elites dominantes e da religião (FOU- ditar a moral sexual. Já nas chamadas soci-
CAULT, 1994, 1997, 1997b). Embora per- edades científicas e tecnocratas são os sá-
mitida, a atividade sexual, extremamente bios – médicos, psicanalistas, psicólogos,
variável em sua forma, sempre esteve atre- pedagogos... – que se ocupam da regula-
lada a regras que variam segundo as socie- ção da sexualidade (GAGNON, 1990).
dades. A moral sexual é um fato da cultu- Enfim, legislar acerca dos prazeres parece
ra. Não existe sociedade que não tenha ser uma astúcia inerente ao trabalho de
regras a respeito do uso da libido. O con- cultura (Kulturarbeit) para manter a coesão
trole em relação aos “prazeres da carne” dos grupos humanos. O que se depreende
sempre foi, em intensidades diferentes e de tudo isto é que o discurso sobre a sexu-
em momentos sócio-históricos variáveis, alidade é um artefato criado para lidar com
um elemento constitutivo do humano. Na o mistério do sexual que nunca será obje-
Antiguidade, por exemplo, a capacidade de tivamente observado e controlado. A or-
comandar o corpo e os prazeres era muito dem discursiva criada pela cultura jamais
valorizada. Dentre alguns dos expedientes dará conta desse enigma, cujas manifesta-
utilizados para este fim, não podemos dei- ções são provas irrefutáveis de que não so-
xar de reconhecer posições próximas da- mos senhores em nossa própria casa. Sen-
quilo que a psicanálise chama de sublima- do o inconsciente sexual, suas produções
ção: a sexualidade pode ser controlada e a são muitas vezes sentidas, tanto pelo sujei-
economia da descarga sexual que daí re- to quanto pela cultura, como algo da or-
sulta pode ser utilizada para aquisições dem do estranho (Unheimlich).
culturais. A leitura do célebre texto freudiano
A níveis diferentes, todas as religiões de 1905 – Três Ensaios sobre a Teoria da Se-
propõem um regime sexual (PARRINDER, xualidade – sempre nos impressiona por sua
1986). Em algumas sociedades onde pre- atualidade desconcertante. Nele, Freud
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apresenta suas posições revolucionárias a so o ato sexual em si mesmo e, a princípio,


respeito da sexualidade humana, sobretu- sujeitou à sanção penal e à perda dos direi-
do ao postular que ela age a serviço pró- tos civis e patrimoniais a virgem, ou a “mu-
prio, não possui objeto fixo, e que seu ob- lher honesta”, que, espontaneamente, se
jetivo é o prazer e não a procriação. Assim unisse, carnalmente, a um homem. Proi-
sendo, os destinos da sexualidade não são bia-se até mesmo o desejo e o próprio pen-
dados a priori pela biologia: trata-se de uma samento (SANTOS, 2007). No Concílio
construção mítica – o mito individual do Vaticano I (1869-1870), que resultou na
neurótico – que permite ao sujeito publicação da Constituição Dogmática
(re)significar a sua história. Nossas referên- Pastor Aeternus sobre o primado e infalibi-
cias identitárias mais caras, assim como lidade do Papa quando se pronuncia em
nossas posições ético-morais, ou seja, o sis- assuntos de fé e de moral, a Igreja pregou
tema de valores que organizam o nosso o castigo eterno a quem ousasse desrespei-
cotidiano, foram profundamente questio- tar suas restrições divinas. Se a castidade,
nadas por Freud. Contudo, parece haver por determinação do Concílio, já não cons-
um silêncio no que diz respeito à descons- tituía a condição escatológica para a salva-
trução do imaginário ocidental produzida ção, ela ainda representava um ideal da vida
pelos seus postulados. cristã diante do qual o sexo, mesmo provi-
Sendo o imaginário cultural uma cons- do da desculpa sacramental do casamen-
trução sócio-histórica, este texto pretende to, era apenas um estado inferior:
mostrar que algumas teses freudianas, em
particular as apresentadas em Moral sexual “A única justificativa para a sexualidade
‘civilizada’ e doença nervosa moderna (1908), era a reprodução da espécie, e, somada ao
batem frontalmente com certos ideais da sacramento do matrimônio, ela apagava o
cultura ocidental. Trata-se, pois, de tentar pecado do prazer; mas o prazer em si era
elucidar como a cultura ocidental criou a tido apenas como uma falha, da qual ao
moral sexual civilizada geradora da doen- menos a esposa podia ser salva pela graça
ça nervosa moderna. da frigidez; e a união só era lícita quando
As questões introduzidas pelo Cristia- contribuía para a procriação, única coisa
nismo no que diz respeito à participação a desculpar a bestialidade desses atos. Na
da sexualidade nas formações das referên- falta da perfeição e já que o povo do Se-
cias ético-morais e dos ideais sociais da nhor tinha de se propagar, podia-se tolerar
cultura ocidental foram e têm sido objeto algum prazer, sob a condição de que ele
de vários estudos, dentre os quais os três fosse bastante reduzido e de modo algum
volumes da História da sexualidade de Fou- se transformasse num fim em si” (LAN-
cault (1994, 1997, 1997b) e A renúncia à TERI-LAURA, 1994, p. 21).
carne: virgindade, celibato e continência no cris-
tianismo primitivo, de Peter Brown (1995). No pontificado de Paulo VI (1963-
A leitura destes trabalhos evidencia o quan- 1978), a infalibilidade e a competência da
to as religiões ancoradas na tradição judai- Igreja ao se pronunciar acerca de questões
co-cristã sempre subjugaram e restringiram morais tornam-se novamente evidentes na
as práticas sexuais. Carta Encíclica Humanae Vitae – Sobre a re-
No Livro do Levítico, a Lei Mosaica gulamentação da natalidade (1968) – quan-
constrói o estatuto referente às práticas do o Papa afirma que “Nenhum fiel quererá
sexuais, determinando as proibidas, as abo- negar que compete ao Magistério da Igreja in-
mináveis e as impuras (Lv 18, 26-30). Bem terpretar também a lei moral natural”. Para
mais tarde, já no século XVIII, o Direito Paulo VI, é incontestável que Jesus Cristo,
Canônico considerava impuro e crimino- ao comunicar aos apóstolos a sua autori-
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dade divina, “os constituía guardas e intérpre- quências disto passa a ser a valorização do
tes autênticos de toda a lei moral, ou seja, não celibato que, influenciado pelo pensamen-
só da lei evangélica, como também da natural” to gnóstico, é adotado pelo Cristianismo
(PAULO VI, 1968/2004, p. 7). Por isso como uma maneira de se estar mais próxi-
seria da competência da Igreja “anunciar mo de Deus. As práticas sexuais, portan-
sempre e por toda a parte os princípios morais, to, se desenvolveram dentro deste espírito
mesmo referentes à ordem social, e pronunciar- de moralidade cristã. As discussões acerca
se a respeito de qualquer questão humana” das formas de prazer presentes nas diver-
(CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, sas manifestações da sexualidade, assim
1993, p. 466). como as dos pecados inerentes a elas, mar-
Sobre a imutabilidade da Lei Moral no caram as bases constitutivas do pensamen-
que diz respeito às questões sexuais, a Igre- to da Igreja dos primeiros séculos e, até
ja ainda se pronuncia através de um docu- hoje, subjazem na moral sexual civilizada.
mento elaborado pela Sagrada Congrega- A concepção do Cristianismo em seus
ção para a Doutrina da Fé e intitulado posicionamentos sobre a moral sugere que
como Declarações acerca de algumas questões o impulso da liberdade humana se dirige
de Ética Sexual (1975). Neste documento, a para o mal e para o pecado, ou seja, para a
Igreja defende que certos princípios e cer- transgressão às leis divinas. Chauí (2001)
tas normas não podem ser anulados ten- postula que, enquanto para os filósofos
do em vista seus embasamentos na lei divi- antigos a vontade era uma faculdade raci-
na e na própria lei natural humana: “Cer- onal capaz de controlar as paixões, apeti-
tos princípios não podem ser desconsiderados tes e desejos, para o Cristianismo ela é per-
nem mesmo sob o pretexto de uma nova situa- vertida pelo pecado, o que faz o homem
ção cultural” (CONGREGAÇÃO PARA A necessitar do auxílio divino para se tornar
DOUTRINA DA FÉ, 1975). um homem moral: “O Cristianismo, portan-
As diversas formas de controle e res- to, passa a considerar que o ser humano é, em
trições em relação às práticas sexuais pre- si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o
sentes nas religiões que herdaram as bases bem e as virtudes” (CHAUÍ, 2001, p. 343).
dogmáticas do Cristianismo originaram-se Caberia, portanto, à revelação divina a so-
na Antiguidade. Portanto, seria injusto atri- lução para o problema moral.
buir ao Cristianismo o ascetismo em rela- À concepção cristã, no entanto,
ção às práticas sexuais. O estoicismo, por opõem-se os construtos da Filosofia Moral
exemplo, teria intensificado a visão redu- que, em sua corrente emotivista, inspira-
tora das práticas sexuais, transformando a da em Rousseau, afirma a bondade natu-
importância que os filósofos gregos reser- ral dos sentimentos e das paixões huma-
vavam à busca do prazer e concentrando a nas. Já em sua corrente chamada de irraci-
sexualidade no casamento. A visão estoica onalista, contesta à razão o poder e o direi-
foi característica marcante nos dois primei- to de intervir sobre o desejo e as paixões.
ros séculos depois de Cristo, influencian- Tal concepção se expressa no pensamento
do a moral cristã através dos chamados de Nietzsche e de vários filósofos contem-
“Padres da Igreja” (Agostinho, Tomás de porâneos (CHAUÍ, 2001).
Aquino, etc.). O sexo era considerado ape- Se tomarmos como referência A gene-
nas em sua finalidade procriativa possibi- alogia da moral de Nietzsche (1887), vere-
litando assim a emergência da moralidade mos que a moral racionalista transformou
sexual (CECCARELLI, 2000). tudo o que é natural e espontâneo nos se-
Ao mesmo tempo, o casamento é con- res humanos em vício, falta, culpa, impon-
frontado com a questão do prazer no ato do a eles tudo o que oprime a natureza
sexual conjugal. Uma das maiores conse- humana. Paixões, desejos e vontades não
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se referem ao bem e ao mal, pois estes seri- tural” e a “moral sexual civilizada”. Por
am invenções da moral racionalista. “moral sexual natural” devemos compre-
No século XIX, conforme supracita- ender um conjunto de normas que, embo-
mos, a “descoberta” de Freud – a psicaná- ra limitem a sexualidade, o desejo e o pra-
lise – trouxe contribuições importantíssi- zer, permite, todavia, ao homem conservar
mas que abalaram a estrutura moral vigen- sua saúde e sua eficiência na vida social. Já
te de sua época com a afirmação de que os por “moral sexual civilizada” devemos en-
impulsos e desejos desconhecem barreiras tender uma moral extremamente exigente
para sua satisfação. A publicação, em 1905, e que, de maneira tirânica, obriga os ho-
dos Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualida- mens à privação sexual, tendo em vista in-
de fez com que Freud fosse considerado tegrá-los ao sistema de uma intensa produ-
uma figura imoral, obscena e impopular tividade cultural (SANTOS, 2008). Para
por afirmar que as tendências sexuais cha- Freud (1908/1976), entretanto, esta mora-
madas perversas e catalogadas como aber- lidade, elevada ao grau de uma tirania, exi-
rações humanas eram universais e presen- ge imensos sacrifícios aos homens e o ex-
tes até mesmo nas crianças. Neste texto re- cesso de moralismo colocaria em risco a
volucionário, Freud mostra à biologia, à própria civilização.
religião e à opinião popular o quanto estas A crítica freudiana acerca dos efeitos
se enganaram no que diz respeito à sexua- civilizatórios sobre a vida sexual foi elabora-
lidade humana, propondo, a partir da vi- da a partir das posições predecessoras de
são da pulsão sexual – diversificada, anár- autores como Krafft-Ebing, Havelock Ellis,
quica, plural e parcial –, outra maneira de Iwan Bloch, Magnus Hirschfeld, Henry
se pensar o sujeito, cuja constituição não Maudsley, William Erb e Von Ehrenfels, aos
pode ser separada da sexualidade (CEC- quais Freud rende justo reconhecimento na
CARELLI, 2000). elaboração de seu texto de 1908. Esses au-
O conceito de inconsciente, introdu- tores defenderam, de maneira progressista,
zindo pela psicanálise, desconhece os valo- uma abertura em relação à moral sexual vi-
res morais (CHAUÍ, 2001). Isto faz com gente em suas épocas e advogaram uma ati-
que atos moralmente condenáveis sejam tude mais tolerante em relação aos chama-
vistos, no entanto, como psicologicamen- dos desvios da sexualidade humana. Com-
te necessários. A rigidez moral surge, atra- partilhando do ponto de vista moral desses
vés do olhar psicanalítico, como fonte de pensadores, e fazendo eco de um movimen-
sofrimento psíquico, pois limita a circula- to de reforma na moral sexual de seu tem-
ção pulsional. A supressão dos desejos in- po, a intenção de Freud é demonstrar as
conscientes com a subsequente impossibi- contribuições da psicanálise à questão dos
lidade de simbolização pode ameaçar o efeitos da repressão da sexualidade sobre a
contrato social pela transgressão abrupta e saúde psíquica dos indivíduos. Para ele, a
traumática de seus valores pelo sujeito re- moral sexual civilizada, demasiadamente
primido. Ao sujeito que escapa a esta situ- restritiva, seria causa de danos psíquicos que
ação caberia uma resignação neurótica, ou colocariam em risco a saúde e a eficiência
seja, o adoecimento: “Em suma, sem a re- cultural humana: “A influência prejudicial da
pressão da sexualidade, não há sociedade nem civilização reduz-se principalmente à repressão
ética, mas a excessiva repressão da sexualidade nociva (die schädliche Unterdrückung) da vida
destruirá, primeiro, a ética e, depois, a socieda- sexual dos povos civilizados através da moral se-
de” (CHAUÍ, 2001, p. 356). xual civilizada que os rege” (FREUD, 1908/
Em Moral sexual ‘civilizada’ e doença 1976, p. 172).
nervosa moderna (1908), Freud nos apresen- A cultura que impõe a proibição da
ta um confronto entre a “moral sexual na- relação sexual fora do casamento monogâ-
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mico apresenta, segundo Freud (1908/ que admite a relação sexual única e exclu-
1976), uma moral dupla que evidencia uma sivamente para os fins reprodutivos e den-
falta de amor à verdade, à honestidade e à tro do casamento monogâmico heterosse-
humanidade por diferenciar homens e xual. Para a Igreja:
mulheres, uma vez que transgressões mas-
culinas são punidas menos severamente. “A aliança matrimonial, pela qual o ho-
A essa moral, ele atribui o aumento impu- mem e a mulher constituem entre si uma
tável da doença nervosa moderna: as neu- comunhão da vida toda, é ordenada por
roses originar-se-iam de necessidades sexu- sua índole natural ao bem dos cônjuges e à
ais de indivíduos insatisfeitos representan- geração e educação da prole [...] A voca-
do para os mesmos uma espécie de satisfa- ção para o matrimônio está inscrita na
ção substitutiva. Entretanto, as tentativas própria natureza do homem e da mulher
de supressão das pulsões são sempre falhas: [...] A salvação da pessoa e da sociedade
“Os neuróticos são uma classe de indivíduos humana está estreitamente ligada ao bem-
que, por possuírem uma organização recalcitran- estar da comunidade conjugal e familiar”
te, apenas conseguem sob o influxo de exigênci- (CATECISMO DA IGREJA CATÓ-
as culturais efetuar uma supressão aparente da LICA, 1993, p. 378).
pulsão” (FREUD, 1908/1976, p. 176).
A tarefa de dominar as pulsões sexu- A Igreja prega a lei moral como obra
ais por outros meios que não sua satisfa- da sabedoria de Deus e a define, no senti-
ção é extremamente custosa ao indivíduo. do bíblico, como uma pedagogia divina.
Contudo, nossa civilização repousa sobre Esta lei, portanto, é imutável e permanece
a supressão (Unterdrückung) das pulsões, através da história resistente às ideias e aos
sobre a renúncia ao sentimento de onipo- costumes: “Mesmo que alguém negue até os
tência, inclinações vingativas e agressivas. seus princípios, não é possível destruí-la nem
Essa renúncia seria sancionada pela reli- arrancá-la do coração do homem. Sempre torna
gião e oferecida à divindade como sacrifí- a ressurgir na vida dos indivíduos e das socieda-
cio (FREUD, 1908/1976). des” (CATECISMO DA IGREJA CATÓ-
O grande impacto do texto freudiano LICA, 1993, p. 450).
de 1908, a primeira reflexão sobre a cultu- A consequência do que Freud chama
ra anos antes do célebre Mal-estar na civili- de “óbvia injustiça social”, no que diz res-
zação (1930 [1929]), pode ser assim resu- peito aos padrões de exigência impostos
mido: aceitar os postulados freudianos pela civilização, é a marginalização daque-
equivaleria a rever as bases morais da cul- les que ousam desobedecer às restrições e
tura ocidental que sustentam, justamente, são, por isso, chamados de pervertidos e
o oposto. O modo como os indivíduos de classificados pela Igreja, por exemplo, como
uma dada sociedade experimentam sua indivíduos contrários à lei moral natural.
sexualidade só pode ser devidamente ava- Fora de sua política monogâmica, heteros-
liado a partir da repressão (Unterdrückung) sexual e procriadora, a Igreja prega a absti-
sexual ditada pelo sistema de valores – que nência das práticas sexuais, a castidade.
é sempre apresentado como natural e imu- Para Freud, no entanto, “muitos indivíduos
tável – da sociedade em questão. que se vangloriam de ser abstinentes, só o conse-
No que tange à questão sexual, a pul- guiram com o auxílio da masturbação e satisfa-
são não serviria, originalmente, aos propó- ções análogas ligadas às atividades autoeróti-
sitos da reprodução, mas à obtenção de cas da primeira infância” (FREUD, 1908/
prazer. Esta afirmativa de Freud o coloca 1976, p. 183). A masturbação – considera-
em rota de colisão com o modelo de mo- da pela Igreja como uma grave desordem
ral sexual defendido pela Igreja Católica, moral – associada a estas atividades pode-
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ria resultar na involução da vida sexual a cepção, etc.” (DOMINGUEZ MORANO,


formas infantis. 2003, p. 199).
Contudo, a Igreja parece preferir en- Muitos católicos não conseguem com-
carar as questões sexuais pela via da peda- preender a rigidez e a inflexibilidade da
gogia evangélica, exortando os fiéis a cum- Igreja no campo da sexualidade enquanto
prirem a disciplina espiritual, agirem com que, em outros domínios de sua ação, até
prudência e moderação em suas atitudes, mesmo moral, foi capaz de operar consi-
recorrerem frequentemente aos sacramen- deráveis transformações:
tos da Penitência e da Eucaristia e a desen-
volverem uma piedade sempre maior à “Em termos de sexualidade, a Igreja con-
Imaculada Mãe de Deus e aos exemplos firma a moral tradicional e prossegue afir-
dos Santos. (CONGREGAÇÃO PARA A mando, em determinados contextos, que
DOUTRINA DA FÉ, 1975). não há ‘matéria leve’. Uma carícia é algo
Dominguez Morano (2003) ressalta tão grave quanto um abuso sexual. Parece
que para muitos crentes a conduta sexual que de fato, no caso da sexualidade, a Igre-
converte-se numa questão emblemática no ja se defronta com um problema irresolvi-
momento de revisar suas relações com do” (DOMINGUEZ MORANO, 2003,
Deus e a retidão moral de suas vidas: “... a p.200).
sexualidade aparece, por um lado, como um sím-
bolo supremo de felicidade; mas, por outro, como Nem mesmo por ocasião do Concílio
um símbolo supremo da proibição e do tabu” Vaticano II (1962-1965), quando a Igreja
(DOMINGUEZ MORANO, 2003, p. experimentou um clima de liberdade de
175). Por isso, as relações entre sexualida- expressão e de otimismo jamais visto em
de e religião são consideradas como estrei- sua história, temas como o uso de contra-
tas e ambivalentes. ceptivos, o celibato dos sacerdotes e a situ-
Os modos de se pensar as expressões ação dos divorciados recasados encontra-
da sexualidade em nossa civilização – ram espaço para serem discutidos. Existe
masturbação, relações não matrimoniais, algo que parece bloquear qualquer tentati-
homossexualidade, casamento, controle va de modificação no terreno da sexuali-
de natalidade, celibato, etc. – sofreram dade. Entretanto, não se trata apenas de
profundas e significativas mudanças. A teimosia da Igreja, mas encontram-se, nes-
crítica social da família, partindo de mo- se campo, implicadas outras variadas e
vimentos como o marxismo, afetou am- importantes questões que ultrapassam,
plas esferas sociais, rompendo assim com quase sempre, as posições pessoais daque-
a ideia monolítica e sagrada desta insti- les que presidem a instituição (DOMIN-
tuição. A revolução sexual, nos anos 60, GUEZ MORANO, 2003).
implicou também um duro golpe às idei- O sexual parece constranger e assom-
as católicas tradicionais sobre a moral e brar a Igreja por ocultar implicações ou-
a sexualidade. A secularização da cultu- tras que extrapolam o campo da sexualida-
ra ocidental fez-se irreversível. Todas es- de. Representações de Deus, da salvação e
sas mudanças afetaram de modo profun- do pecado, como tentativas de barrar o
do os ideais morais que afetam uma par- retorno do recalcado, podem de fato estar
te significativa da cultura ocidental: “Não em jogo em torno dessa problemática.
é necessário recorrer a alas progressistas cris- Além de uma questão moral, a Igreja se vê
tãs para constatar a conduta nitidamente imobilizada diante de um emaranhado de
independente de muitos cristãos a respeito das questões dogmáticas. Por isso mudanças na
posições oficiais da Igreja sobre temas como moral sexual encontram resistências e im-
masturbação, relações pré-conjugais, contra- possibilidades.
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Outro fator a ser considerado é a cons- paulatinamente, as alterações que satisfa-


trução ideológica católica em torno do çam nossa necessidade de felicidade, “mas
poder da Igreja como sustentáculo da ver- talvez possamos também nos familiarizar com
dade. Abrir mão de certas posições coloca- a ideia de existirem dificuldades, ligadas à na-
ria em xeque este poder e seu domínio so- tureza da civilização, que não se submeterão a
bre os fiéis, afinal: qualquer tentativa de reforma” (FREUD,
1930 [1929]/1996, p. 120). ϕ
“Dominar o espaço mais íntimo da pessoa
pressupõe dominá-la por inteiro. Isso signi-
fica limitar a fonte de seus desejos e de seu PSYCHOANALYSIS
poder de expressão assim como impedir AND SEXUAL MORAL
qualquer tipo de autoafirmação diante da
lei e do poder [...] A tentação pode ser a de Abstract
manter um domínio secreto sobre a massa Sexual morality is a fact of culture. There is
de crentes por meio do controle dessa zona no society in which rules regarding the use of
íntima da personalidade. A associação es- the libido are inexistent. Controlling the
treita entre a sexualidade e o sentimento “pleasures of the flesh” has always been, in
de culpa poderia também pretender man- different intensities and changeable moments,
ter os crentes numa posição de submissão e a constituent element of the human being.
de debilitamento do próprio eu [...] Temos, Being the cultural imaginary a social-
pois, um grave problema eclesiasticamente historical construction, the present article tries
irresolvido. E também uma questão de po- to show that some Freudian thesis, in
der associado a ele” (DOMINGUEZ particular those presented in Modern sexual
MORANO, 2003, p. 202). Morality and Modern Nervousness (1908)
frontally hit some Ideals of Occidental culture.
Contudo, ainda que julgada como sub- Therefore, the authors try to elucidate how
versiva, a psicanálise deve prosseguir em Occidental culture has created the sexual
seu objetivo de oposição às normas que morality, which produces modern nervousness.
alienam o sujeito, causando sua debilida-
de ou adoecimento. Devemos questionar Keywords
se a moral sexual que se pretende civiliza- Morality, Sexuality, Civilization, Neurosis,
da vale o sacrifício que nos exige “já que Religion.
estamos ainda tão escravizados ao hedonismo
a ponto de incluir entre os objetivos de nosso
desenvolvimento cultural uma certa dose de
satisfação da felicidade individual” (FREUD,
1908/1976, p. 186).
Modificar as bases culturais e mitoló-
gicas que sustentam nossa civilização pode
parecer uma luta inglória. Entretanto, ques-
tioná-las, nos diz Freud (1930 [1929]/
1996), é um direito justo que não nos co-
loca numa posição de inimigos da civiliza-
ção, mas evidencia as suas falhas “por aten-
der de forma tão inadequada as nossas exigên-
cias de um plano de vida que nos torne felizes”
(FREUD, 1930 [1929]/1996, p.120). Com
Freud, acreditamos ser possível efetuar,
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