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Empoderamento

e direitos no
combate à pobreza
ORGANIZADORES

Jorge O. Romano
e Marta Antunes

DEZEMBRO 2002
XXXX Empoderamento e direitos no combate
à pobreza. — Rio de Janeiro : ActionAid Brasil
116p. 25cm

ISBN 85-XXXXX-XX-X

1. Desenvolvimento, 2. Poder, 3. Pobreza


I. Jorge O. Romano – 1950, Marta Antunes – 1977

CDD XXX.XXX

Empoderamento e direitos
no combate à pobreza
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IMPRESSÃO
Editora Lidador

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500 exemplares

O conteúdo desta publicação pode ser reproduzido, desde que citada a fonte.
Sumário

Introdução ao debate sobre empoderamento


e direitos no combate à pobreza ............................................................................... 5
Jorge O. Romano e Marta Antunes

Empoderamento: recuperando a questão


do poder no combate à pobreza ............................................................................... 9
Jorge O. Romano

Algumas considerações sobre estratégias


de empoderamento e de direitos ............................................................................ 21
Cecília Iorio

Metodologias e ferramentas para implementar


estratégias de empoderamento ............................................................................... 45
Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez

Empoderamento, teorias de desenvolvimento


e desenvolvimento local na América Latina ....................................................... 67
Enrique Gallichio

O caminho do empoderamento: articulando as noções


de desenvolvimento, pobreza e empoderamento .......................................... 91
Marta Antunes
Introdução ao debate
sobre empoderamento
e direitos no combate
à pobreza
Jorge O. Romano1
e Marta Antunes 2

As abordagens de empoderamento e de direitos estão presentes nas estra-


tégias e práticas de campo das ONGs que promovem um desenvolvimento alternativo, visando à
superação da pobreza.

A noção de empoderamento começa a ser utilizada na década dos 70, com os movimentos sociais
e, posteriormente, passa a permear as práticas das ONGs. Nos últimos anos, o conceito e a
abordagem foram gradualmente apropriados pelas agências de cooperação e organizações finan-
ceiras multilaterais (como o Banco Mundial). Nesta apropriação o conceito e a abordagem sofreram
um processo de despolitização – ou pasteurização – ao ser enfatizada sua dimensão instrumental
e metodológica. Assim, junto com conceitos como capital social e capacidades, o empoderamento
passa a ser um termo em disputa no campo ideológico de desenvolvimento.

Por sua vez, nos últimos anos, percebe-se que um número crescente de instituições da Socie-
dade Civil introduz em sua estratégia a abordagem baseada em direitos, a qual tem sua origem na
luta pelo reconhecimento e promoção do conjunto de direitos humanos (civis, políticos, eco-
nômicos, culturais, etc.). As próprias agências de cooperação e organizações financeiras mul-
tilaterais vêm progressivamente adotando esta nova conceitualização na formulação de suas
políticas e estratégias. Dessa forma a noção de direitos e a abordagem baseada em direitos
passam também a ser motivo de debate e disputa no campo de desenvolvimento, tal como ocorre
no caso de empoderamento.

No Brasil os fundamentos da abordagem baseada em direitos estão muito mais presentes nos
debates sobre desenvolvimento e combate à pobreza, tanto no espaço governamental de políticas
públicas, como entre os movimentos sociais, ONGs e o mundo acadêmico, devido à importância
que têm assumido as análises de luta pela cidadania e de construção de direitos sociais.

Por sua vez, as discussões que têm como enfoque o empoderamento são incipientes, estando
associadas, principalmente, às propostas de agências de cooperação. Entre os movimentos sociais,
ONGs e a academia especializada nestes temas, além de desconhecimento existe, em geral, uma
ampla margem de desconfiança, por conta do uso instrumental da abordagem feito por entidades
como o Banco Mundial.

1 Antopólogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.


2 Economista, CPDA-UFRRJ, Brasil.

5
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Dentro do mundo das ONGs, a ActionAid é uma das que têm adotado uma estratégia centrada
no diálogo entre as abordagens de direitos e de empoderamento.3 Atuando no país desde 1999,
em seu trabalho de combate à pobreza a ActionAid Brasil tem colocado a noção de empodera-
mento como elemento central de sua estratégia. Esta tem sido implementada através de projetos
de desenvolvimento local, de campanhas nacionais e do trabalho de advocacy nos níveis nacional,
regional e local.

Partindo do reconhecimento de que o Brasil é um dos países de maior desigualdade no mundo e


que essa é a principal causa da pobreza e da exclusão social, a ActionAid Brasil considera que para
superar a pobreza se faz necessário promover a construção de um projeto crítico e alternativo de
desenvolvimento fundado no empoderamento dos pobres e de seus representantes e aliados.

O empoderamento dos pobres e das comunidades viria a ocorrer pela conquista plena dos direitos
de cidadania. Ou seja, da capacidade de um ator, individual ou coletivo, usar seus recursos econô-
micos, sociais, políticos e culturais para atuar com responsabilidade no espaço público na defesa
de seus direitos, influenciando as ações do Estado na distribuição dos serviços e recursos públicos.

Ao mesmo tempo, a ActionAid Brasil considera que os movimentos sociais e as organizações


populares são os principais agentes de transformação do Estado num instrumento para a erradicação
da pobreza e da desigualdade no país. As ONGs e suas redes dariam suporte a estes atores.4

Atualmente, os projetos de desenvolvimento local promovidos pela ActionAid Brasil, em parceria


com ONGs e movimentos sociais, são levados a cabo em diversas microrregiões, que incluem
desde favelas do Rio de Janeiro e de São Paulo até as áreas rurais pobres do Nordeste. Ao mesmo
tempo, a ActionAid Brasil impulsiona e participa de três campanhas nacionais: Campanha
Nacional pelo Direito à Educação, Campanha por um Brasil Livre de Transgênicos e Campanha de
Comércio e Segurança Alimentar.

Nos últimos anos a ActionAid tem realizado um esforço de propiciar espaços de reflexão e debate
que permitam o esclarecimento da abordagem de empoderamento e de direitos, que fundam sua
estratégia, visando a ressaltar as possíveis sinergias entre as mesmas.

Um dos espaços criados para essa reflexão e debate foi o seminário internacional Os Enfoques de
Empoderamento e Direitos no Combate à Pobreza, realizado no Rio de Janeiro, nos dias 4 a 6 de
setembro de 2002, e que congregou mais de 30 profissionais da entidade, assim como especialistas
da América Latina, Europa, Ásia e África.5

O seminário, privilegiando a reflexão sobre empoderamento e sua prática na América Latina,


procurou estabelecer pontos de divergência e convergência entre as abordagens de empodera-
mento e direitos; identificar nas experiências de trabalho as práticas e metodologias adotadas,
ressaltando seus limites e potencialidades; e, finalmente, refletir acerca das implicações práticas e
políticas de adotar essas abordagens no combate à pobreza.

3 A organização, fundada no Reino Unido em 1972, tem uma longa tradição de trabalho com desenvolvimento, envolvendo
as populações pobres, movimentos sociais e organizações de base, em mais de 30 países na Ásia, na África e na
América Latina e Caribe.
4 ActionAid Brasil. Estratégia Nacional, 2001-2003.
5 O seminário e esta publicações foram possíveis de realizar graças ao apoio da ActionAid UK.

6
— INTRODUÇÃO AO DEBATE SOBRE EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Assim, uma série de questões foi levantada como desafios para o debate entre os participantes:

• O empoderamento praticado pelas ONGs é visto como um meio? Para quê? É um


poder sobre recursos e ideologias que nos leva a situações de soma zero? Será
que isso significa que as ONGs estão adotando uma abordagem instrumental?
Ou que estão pensando o empoderamento como um objetivo (fim)? Um poder
para? Um poder com? Um poder de dentro? Resultante de capacidades indi-
viduais, de ser e de se expressar? As ONGs estão adotando uma abordagem de
processo? Em que nível as perspectivas de empoderamento e direitos são exclu-
dentes ou se reforçam nas práticas das ONGs?

• Em que medida as práticas das ONGs têm seu foco no empoderamento de indi-
víduos ou de grupos? As ONGs estão colocando as pessoas ou os grupos no
centro do processo? São duas formas distintas? São complementares?

• Quem empodera quem? Quais as vantagens e limites do empoderamento por


ONGs, por movimentos sociais, pela atuação conjunta de ONGs e governo e por
agências multilaterais?

• Em que medida estamos conscientes de que empoderamento é um processo


relacional e conflituoso? Na prática, como as estratégias das ONGs estão lidando
com essas relações conflituosas?

• Quais as potencialidades e limites apresentados pelo empoderamento quando


este é adotado como estratégia de combate à pobreza nos campos da política,
informação, cultura institucional, construção de capacidades e participação?

• No seu trabalho, como as ONGs lidam com os limites da abordagem de empode-


ramento? O que significa perguntar, como se asseguram a continuidade e o
aprofundamento das conquistas? Esta é uma abordagem de custos elevados?
É possível adotá-la em programas de nível superior, de maior escala e mais com-
plexos? Que procedimentos de mensuração, monitoramento e avaliação de difi-
culdades podem ser utilizados?

• A abordagem de empoderamento é utilizada da mesma forma que a abordagem


baseada em direitos? Quais as vantagens e limites de unificar as duas abordagens?

• Em que medida a abordagem baseada em direitos lida com a necessidade de


discutir poder e desenvolvimento no combate à pobreza? Como isso está sendo
feito pelas ONGs?

• Como, na prática, as ONGs superam os limites da abordagem baseada em direi-


tos? Como lidar com a inadequação permanente da legislação como mecanismo
de controle de poder? Como lidar com o gap existente entre a percepção dos
direitos humanos básicos e as diferentes percepções de direitos nos vários
contextos políticos e culturais? Como as ONGs lidam com o fato de a violação
diária de direitos ter-se tornado algo tão comum?

• Sabendo que exercer direitos econômicos, sociais e culturais é uma questão em


confronto e que para estabelecer esses direitos as estruturas de poder têm de ser
alteradas, como as ONGs estão lidando com isso em seu trabalho?

7
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Para subsidiar o debate no seminário, foi elaborada uma série de textos e comunicações, os quais
fazem parte desta coletânea.

No primeiro ensaio, Empoderamento: recuperando a questão de poder no combate à pobreza,


Jorge O. Romano procura recuperar na utilização da noção de empoderamento a importância das
questões relativas à análise de poder, apagadas com a popularização dessa abordagem entre as
agências de cooperação multilateral.

Cecília Iorio, em Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e direitos, explora


as dinâmicas das abordagens de empoderamento e direitos no combate à pobreza, buscando
resgatar a conceitualização, contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas
as abordagens.

No texto seguinte, Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento e de direitos,


Alberto Enríquez Villacorta e Marcos Rodríguez buscam fazer um balanço crítico das metodologi-
as e ferramentas utilizadas na América Latina, na implementação de estratégias de empodera-
mento. Para isso, partem de uma reflexão sobre o conceito de empoderamento, ressaltando
suas semelhanças e diferenças com a abordagem baseada em direitos.

Enrique Gallichio, em seu trabalho Empoderamento, teorias de desenvolvimento e desenvolvi-


mento local na América Latina, foca sua atenção no mapeamento dos modelos de desenvolvi-
mento adotados na América Latina e dos paradigmas que os sustentam. Dentre eles ressalta
as concepções alternativas, em particular as que se sustentam no aportes de Pierre Bourdieu.
O trabalho finaliza com uma proposta de abordagem para o desenvolvimento local, que ressalta
a dimensão de poder.

Finalmente, o ensaio O caminho do empoderamento: articulando as noções de desenvolvimento,


pobreza e empoderamento, de Marta Antunes, procura uma articulação teórica das noções de
desenvolvimento, pobreza e empoderamento, partindo das abordagens de Desenvolvimento como
liberdade, de Amartya Sen, e de Rural livelihoods, de Robert Chambers, na forma como foram
aplicadas – por autores como Bebbington – na América Latina.

Assim, esta coletânea visa a trazer ao leitor brasileiro trabalhos que apontam para o uso da
abordagem de empoderamento na América Latina e que enfatizam a importância e complexidade
das questões de poder, buscando contribuir para o fortalecimento do diálogo entre esta aborda-
gem e a baseada em direitos. Consideramos que nem a abordagem baseada em direitos nem a
abordagem de empoderamento são suficientes em si mesmas, mas que ambas são necessárias
e complementares. Principalmente quando temos como foco, no combate à pobreza, os proces-
sos de luta pela cidadania e de construção de sujeitos sociais.

8
Empoderamento:
recuperando a questão
do poder no combate
à pobreza
Jorge O. Romano 1

O empoderamento no debate ideológico


sobre desenvolvimento
O empoderamento é uma dentre as categorias e/ou abordagens – como, por exemplo, participação,
descentralização, capital social, abordagem de direitos (rights-based approach) – que de forma
explícita ou implícita está inserida no debate ideológico em torno do desenvolvimento. Este debate
tem sido polarizado nos últimos tempos entre os defensores de uma globalização regida pelo
mercado (ou, dito de outra forma, pelo Império, pelo Consenso de Washington, pelo neoliberalismo)
e os críticos que defendem que “a construção de um outro mundo é possível”.
Essas categorias, originadas em sua maioria em discursos críticos ao desenvolvimento vigente,
têm sido apropriadas e re-semantizadas nos discursos e nas práticas dominantes do mainstream,
expressos principalmente através dos bancos e das agências de desenvolvimento multilaterais e
bilaterais, dos governos e de diversas organizações da sociedade civil.
Inevitavelmente, como em geral acontece, quando atores sociais com ideologias, enfoques e
práticas muito diversas confluem num conjunto comum de conceitos, existe uma considerável
falta de clareza e até confusão com o seu significado real. Ao mesmo tempo existe uma descon-
fiança – justificável pela experiência recente – entre os críticos do desenvolvimento dominante
que usaram inicialmente essas idéias, sobre os perigos de cooptação, diluição e distorção das
mesmas (Sen, G: 1997).
Assim, para ONGs que têm no empoderamento um elemento central de sua estratégia de
“combater juntos a pobreza”, é fundamental enfrentar os problemas e limites que esta generali-
zação do uso do conceito e da abordagem de empoderamento apresenta.2 Isto é, ao final, do que
estamos falando quando falamos de empoderamento?
Um caminho para enfrentar essa confusão e desconfiança que apontava G. Sen é propiciar a
reflexão conjunta e o debate, procurando clarificar nossa abordagem de empoderamento, delimitar
o uso do conceito e identificar seus limites e potencialidades a partir da nossa experiência. As idéias e
reflexões contidas neste texto procuram contribuir nesse caminho.

1 Antropólogo, ActionAid/CPDA-UFRRJ, Brasil.


2 Cabe ressaltar que um conjunto equivalente de problemas e limites, associados a este tipo de generalização de uso por atores
diversos, ronda também a abordagem de rights based approach.

9
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

1. O que não entendemos


por empoderamento

1.1. O empoderamento como transformismo (gattopardismo).


Empoderamento, como comentamos inicialmente – junto com participação, descentrali-
zação, capital social e abordagem baseada em direitos (rights-based approach) – é um conceito e
uma abordagem que tem sido re-apropriada pelo mainstream e que virou moda nos anos 90
entre os atores do desenvolvimento. O conceito não só virou moda, mas também – o que é mais
danoso – foi apropriado como uma forma de legitimação de práticas muito diversas, e não neces-
sariamente “empoderadoras” como as propostas nos termos originais.
Assim, o empoderamento invocado pelos bancos e agências de desenvolvimento multila-
terais e bilaterais, por diversos governos e também por ONGs, com muita freqüência vem sendo
usado principalmente como um instrumento de legitimação para eles continuarem fazendo, em
essência, o que antes faziam. Agora com um novo nome: empoderamento. Ou para controlar,
dentro dos marcos por eles estabelecidos, o potencial de mudanças impresso originariamente
nessas categorias e propostas inovadoras. Situação típica de transformismo (gattopardismo): apro-
priar-se e desvirtuar o novo, para garantir a continuidade das práticas dominantes. Adaptando-se
aos novos tempos, mudar “tudo” para não mudar nada.

Num dos recentes informes do Banco Mundial sobre empoderamento e redução de


pobreza (World Bank, 2002) são apresentadas, vestindo a roupagem nova do empo-
deramento, centenas de atividades e iniciativas apoiadas e promovidas pelo Banco.
A proliferação de exemplos é deslumbrante. Assim, hoje, o Banco Mundial se apresen-
taria como quem mais promove o empoderamento no mundo. Porém, um conhecimento
mais cuidadoso da prática e dos resultados reais desses mesmos exemplos pode
questionar essa visão otimista da adoção e difusão da abordagem de empodera-
mento pelos bancos e agências multilaterais.

Até onde, na grande maioria dos casos – como, por exemplo, em projetos de irrigação,
difusão de telefonia ou de fundos de desenvolvimento social – não se continua fazendo
em essência, ainda que de outro modo, o que se fazia? Isto é: roupagens novas para
ações velhas... Ou até onde o potencial de mudança das ações novas tem sido limitado
– ou anulado – pela prática e a cultura política e institucional dominantes na entidade
e nos governos que promovem essas ações? Isto é: ações novas aprisionadas em
roupagens velhas...

Entre as próprias ONGs, até onde a prestação ou promoção de serviços sociais básicos
tem-se transformado, verdadeiramente, num meio de empoderamento e não um fim
em si mesmo? Isto é, até onde, em alguns casos, a cultura institucional, os habitus dos
seus funcionários, a correlação de forças intra-institucionais, os compromissos cristali-
zados com parceiros e comunidades e o peso da forma mais segura de obtenção de
recursos financeiros (sponsorship) e sua dificuldade em consolidar “novos produtos” –
entre outros fatores – levam a que se reproduza a prestação e a promoção de serviços
como um fim. E que o empoderamento, perigosamente, fique reduzido a um papel de
legitimação dessa “prática assistencialista”.

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— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —

1.2. Um empoderamento sem poder?


Em várias das propostas que proliferaram com a generalização do uso do termo, modificou-se
substancialmente a abordagem. Nelas tem sido colocada em segundo plano a questão essencial
da noção e da abordagem de empoderamento. Isto é, a questão do poder. Mais precisamente, a
mudança nas relações de poder existentes tem sido deslocada de seu papel central, virando uma
questão implícita ou diluída entre os elementos que comporiam o empoderamento.

Voltando ao relatório já mencionado do Banco Mundial, no balanço apresentado sobre


a prática de empoderamento promovida pela instituição, vemos que a questão de mu-
danças nas relações de poder fica diluída na forma como são definidos os quatro ele-
mentos que comporiam a abordagem: acesso à informação, inclusão e participação,
prestação de contas e capacidade organizacional local. Essa diluição também se mani-
festa na forma de definir as áreas onde os princípios do empoderamento se aplicam:
acesso a serviços básicos, promoção da governança local, promoção da governança
nacional, desenvolvimento de mercados em favor dos pobres, acesso à justiça e ajuda
legal. Tanto nos elementos como nas áreas não se dá destaque ao poder, às relações de
poder existentes e às que se pretende mudar. O “corpo” do empowerment do Banco
Mundial tem ficado sem o seu coração...

1.3. Um empoderamento neutro e sem conflitos?


Na generalização do uso da abordagem de empoderamento, e em particular no promovido
através de governos e de agências multilaterais, tem-se procurado despolitizar o processo de
mudança impulsionado através dele. Nesse sentido, a questão tática de iniciar o processo a partir
de um foco relativamente neutral inunda toda a estratégia. Essa suposta neutralidade, na prática,
funciona como um limite ao processo de empoderamento. E a continuar se mantendo, vem a
funcionar como um elemento importante no controle do processo de mudança pelo status quo.
Fazendo parte dessa visão de neutralidade apresenta-se uma aversão aos conflitos. Procura-se
tecnicizar os conflitos, tirando deles suas dimensões ideológicas e políticas, de forma a domesticá-los.
Os conflitos perturbam o resultado esperado. A mudança procurada seria o fruto do progresso
das relações sociais, do desenvolvimento das instituições e da superação das falhas do mercado.
O empoderamento, nessa visão, seria um acelerador ponderado desse progresso. Uma técnica de
administração e neutralização de conflitos. Busca-se reduzir os efeitos do empoderamento, no
melhor dos casos, aos de uma progressão aritmética e não potencializar suas possibilidades
enquanto desencadeador de progressões geométricas. Com essa pasteurização do empodera-
mento, tem-se procurado eliminar seu caráter de fermento social.
Não é de qualquer poder que estamos falando quando enfrentamos a pobreza. Estamos
falando de situações caracterizadas por relações de dominação; situações onde existem – ainda que
por vezes seja difícil delimitar claramente – atores que têm algum tipo de beneficio por ocupar
posições dominantes. Estamos falando de relações de dominação que envolvem – voluntária ou
involuntariamente – opressores e oprimidos. A abordagem de empoderamento não pode ser
neutral nem ter aversão aos conflitos e a seus desdobramentos. O desdobramento dos conflitos
significa que o processo de mudança, uma vez deslanchado, permeia e se infiltra em outras
dimensões vividas pelas pessoas e grupos sociais. Empoderamento implica contágio, não assepsia.
É fermento social: está mais para inovação criativa que para evolução controlada.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Através do empoderamento se busca conscientemente quebrar, eliminar as relações de


dominação que sustentam a pobreza e a tirania, ambas fontes de privação das liberdades subs-
tantivas. Com o empoderamento se procura combater a ordem naturalizada ou institucionalizada
dessa dominação (seja ela pessoal, grupal, nacional, internacional; seja ela econômica, política,
cultural ou social) para construir relações e ordens mais justas e eqüitativas. O empoderamento
implica em tomar partido (ou relembrando a antiga palavra de ordem: “compromisso”) pelos
pobres e oprimidos e em estar preparado para lidar quase todo o tempo com conflitos.

1.4. O empoderamento como dádiva


Nas práticas de empoderamento das pessoas através de programas e projetos promovidas
pelos governos, bancos e agências de desenvolvimento multilaterais e bilaterais é recorrente que
esse conceito assuma caráter de uma dádiva, de algo que pode ser outorgado. Nesses casos o
foco passa a ser a maior facilidade de acesso a recursos externos, bens ou serviços, secundarizando
ou deixando de lado os processos de organização do grupo e de construção de auto-estima e
confiança das pessoas. Ainda que a participação seja propalada, seu conteúdo fica estreito, redu-
zido a algumas consultas rápidas no inicio dos programas (Sen, G: 1997).
O empoderamento não é algo que pode ser feito a alguém por uma outra pessoa. Os agentes
de mudança externos podem ser necessários como catalisadores iniciais, mas o impulso do
processo se explica pela extensão e a rapidez com que as pessoas e suas organizações se mudam
a si mesmas. Nem o governo, nem as agências (e nem as ONGs) empoderam as pessoas e as
organizações; as pessoas e as organizações se empoderam a si mesmas. O que as políticas e as
ações governamentais podem fazer é criar um ambiente favorável ou, opostamente, colocar
barreiras ao processo de empoderamento (Sen, G: 1997).

1.5. O empoderamento como uma técnica que se aprende em


cursos (ou a pedagogização e a tecnicização do empoderamento)
A generalização do uso do conceito e da abordagem veio acompanhada com uma redução
da prática social e política do empoderamento a questões técnicas e instrumentais. Isto é, o
empoderamento passou a ser considerado principalmente como uma técnica que compreende
metodologias específicas e menos como um complexo processo social e político.
Esta redução – ou tecnicização do empoderamento – veio a solucionar o problema de sua
difusão. Na grande maioria dos projetos e programas propiciados pelos bancos e agências de
desenvolvimento multilaterais e bilaterais, governos e ONGs, a componente capacitação é uma
das principais. Proliferaram cursos de capacitação ministrados por consultores – agora – enquanto
especialistas em “metodologias participativas de empoderamento”. O empoderamento passou a
ser ensinado em salas de aula, em detrimento da troca de experiências e da construção de respostas
conjuntas em face de situações de dominação específicas. Isto é, se supervalorizaram os efeitos
políticos da ação pedagógica em detrimento dos efeitos pedagógicos da ação política.

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— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —

1.6. A superpolitização e a atomização do empoderamento


Finalmente, gostaríamos de levantar dois riscos – opostos – que se apresentam na generali-
zação e uso da abordagem do empoderamento. Os riscos da superpolitização e da atomização.
Por um lado, as teorias mais antigas de empoderamento têm ignorado, e até negado, o
elemento individual desse processo, acreditando que o foco na autonomia individual implicaria
na atomização e na negação dos interesses e interações de grupo (Sen, G.: 1997). Ante esse
perigo, se recomendava que a ênfase no trabalho fosse colocada nos grupos e suas organizações.
Esta visão do empoderamento como um processo que diz respeito, basicamente, às relações
de poder entre grupos sociais e organizações veio ao encontro da orfandade paradigmática e
política criada no final do século com a crise do marxismo e o fracasso do socialismo real e das
revoluções nacionais-populares. Para um grande número de intelectuais, de agentes de desenvol-
vimento e de organizações “populares” – ou de esquerda –, o discurso e a prática do empodera-
mento passou a ser uma nova esperança na construção da revolução socialista ou antiimperialista.
Esta legítima expectativa de mudança, porém, introduziu no trabalho de combate à pobreza
através do empoderamento o risco de sua superpolitização. Este risco implica na redução do
empoderamento a um tipo de ação coletiva. Isto é, quando só dizem respeito ao trabalho de
empoderamento as práticas e discursos políticos contestatórios, que tenham nas organizações ou
movimentos seus atores quase exclusivos.
Num pólo oposto, as propostas de empoderamento vêm sofrendo a influência das tentativas
de despolitização, fragmentação e atomização das situações de dominação, propiciadas pelo
avanço do neoliberalismo, das teorias que vaticinam o fim das ideologias e da supervalorização
da individualidade. Para enfrentar a dominação assim caracterizada, a lógica da ação coletiva que
se promove é aquela cuja racionalidade fica reduzida ao principio do interesse egoísta individual,
excluindo outros princípios fundamentais, como os de solidariedade e de valores compartilhados.
A identidade da pessoa – como um produto histórico, social e cultural – é secundarizada em
função do interesse atomizado do indivíduo, enquanto produto do mercado.
Em sua grande maioria, o empoderamento promovido pelos bancos e agências de desen-
volvimento multilaterais e bilaterais e pelos governos tem-se sustentado numa expectativa de
ação racional dos atores centrada no interesse individual. Esses interesses e preferências são
vistos como propriedades dos indivíduos, não importando que sejam produto da interação
grupal, da prática social e cultural. Invertem-se assim a expectativa e o caminho da mudança.
Passa-se a se investir prioritariamente na mudança dos indivíduos, ou no máximo, das instituições.
A mudança nos grupos e nas organizações seria, em última instância, um subproduto da agre-
gação dessas mudanças atomizadas individuais. Dá-se um descompasso entre a ênfase colocada
no empoderamento individual e institucional, em relação ao descaso no empoderamento grupal
e das organizações.
Para concluir, cabe reafirmar que o questionamento da superpolitização não implica em
negar que o empoderamento através dos processos grupais pode vir a ser altamente efetivo tanto
na mudança de estruturas que sustentam as situações de dominação como nas mudanças em
nível individual, em termos de maior controle sobre recursos externos ou de maior autonomia e
autoridade na tomada de decisões. Por sua vez, o questionamento da atomização não implica em
desconhecer que a mudança na consciência de dominação, ainda que catalisada em processos
grupais, é profunda e intensamente pessoal e individual. Nem também em negar a importância
da autonomia individual através de lutar para fazer do pessoal algo político, como, por exemplo,
o vem promovendo e construindo o movimento de mulheres (Sen, G. 1997).

13
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

2. Enfrentando a
questão do poder
A promoção de um novo modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdades
substantivas e instrumentais das pessoas (Sen, A. 2001) e que tenha no empoderamento um
caminho principal para a superação da pobreza e da tirania – enquanto seus principais obstá-
culos – necessita enfrentar a questão do poder.

2.1. E o que é o poder?


Entre os múltiplos debates sobre a questão do poder, tendo em vista nosso interesse em
delimitar o conceito e a abordagem de empoderamento, e procurando não entrar demais na
teoria, nos deteremos rapidamente em só duas grandes concepções sobre o poder.
A primeira, inscrita na vertente do pluralismo norte-americano da ciência política, vê o poder
como capacidade de controle sobre algo ou alguém: “quando uma pessoa ou grupo é capaz de
controlar de alguma forma as ações ou possibilidades de outros”. A idéia força é “poder sobre”.
O “poder sobre” se apresenta como uma substância, finita, transferível, tomável: se alguém
ganha poder, outros o perdem (isto é, um jogo de soma zero). Ele pode ser delegado (por exemplo,
em representantes), ou tirado (por exemplo: das bases). Havendo uma reversão na relação de
poder, as pessoas que atualmente têm o poder não apenas o perderão senão que o verão sendo
usado contra elas (Iorio, 2002).
A segunda concepção, que tem origem na visão de Foucault, não considera o poder como
uma substância finita e que pode ser alocada a pessoas e grupos. O poder é relacional; consti-
tuído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algum grau de liberdade; e somente
existe quando se usa. O poder está presente em todas as relações. Sem poder as relações não
existiriam. Nesta concepção a resistência é uma forma de poder: onde há poder há resistência
(Iorio, 2002).
A partir da visão foucaultiana, se amplia a noção de poder. O poder não é só “poder sobre”
recursos (físicos, humanos, financeiros) e idéias, crenças, valores e atitudes. É possível, e necessário,
diferenciar outros tipos de exercício do poder. Por exemplo, o “poder para” fazer uma coisa (um
poder generativo que cria possibilidades e ações); o “poder com” (que envolve um sentido de que
o todo é maior que as partes, especialmente quando um grupo enfrenta os problemas de maneira
conjunta, por exemplo, homens e mulheres questionando as relações de gênero); e o “poder de
dentro”, isto é, a força espiritual que reside em cada um de nós, base da auto-aceitação e do
auto-respeito, e que significa o respeito e a aceitação dos outros como iguais. Estes últimos tipos
de poder – poder para, poder com e poder de dentro – não são finitos, podem crescer com o seu
exercício (Iorio, 2002). Um grupo exercendo estes poderes não necessariamente reduz o poder
dos outros, porém, de toda forma esse desenvolvimento implica mudanças nas relações.
Em síntese, nas diversas sociedades, em todas as relações sociais é possível identificar o
exercício de poder, seja qual for o tipo (poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro...).
Nas situações de pobreza confluem todos esses tipos de poder, mas de modo diferente segundo
as especificidades dos contextos. Isto coloca o desafio de ter que identificar as relações de poder e os
tipos de exercício de poder principais e secundários que caracterizam cada situação de pobreza.

14
— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —

2.2. A necessidade da análise das relações de poder


no combate à pobreza
O enfrentamento da pobreza através de uma abordagem de empoderamento requer, conse-
qüentemente, uma clara compreensão das relações de poder e dos tipos de exercício de poder
principais e secundários que as conformam.
A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes tem que estar
constantemente em foco no trabalho de empoderamento, seja qual for o nível (pessoal ou grupal),
o território (local, regional, nacional, global), a dimensão (social, política, econômica, cultural,
ambiental) ou os objetivos (estratégicos ou organizacionais) que se privilegiem.
No caso do trabalho em parceria entre ONGs e com organizações de base, a análise das
relações de poder deve estar presente não só no diagnóstico inicial, mas também na construção
conjunta da estratégia de ação; no planejamento participativo das ações; no acompanhamento
cotidiano das atividades; nos exercícios de revisão e reflexão; e na avaliação final de resultados.
Como também na própria avaliação organizacional de nossa entidade.
A análise das relações de poder e das situações de dominação resultantes implica em discutir
e refletir, junto com os parceiros e as populações pobres, sobre questões que permitam dar conta
de aspectos como:

• Qual é o espaço social considerado no qual se manifestam as relações de poder?


Por exemplo:
– da família, da comunidade, da região etc.
– do mercado, do Estado, da sociedade civil.

• Que tipo de exercício de poder principal e secundário se manifesta nas


diferentes relações?
Por exemplo:
– poder sobre, poder para, poder com, poder de dentro

• Que forma de poder é predominante nessas relações?


Por exemplo:
– poder econômico, político, social, cultural, psicológico.

• Que está em jogo nessas relações de poder?


Por exemplo:
– o acesso a recursos (ambientais; econômicos; político-institucionais; culturais; humanos);
– a transformação desses recursos em ativos; ou dito de outra forma, a produção, circulação,
acumulação e uso de capitais específicos (ambiental, econômico, político, cultural, social);
– questões de hierarquia e/ou prestígio.

• Que campo específico essas relações de poder delimitam?


Por exemplo:
– campo das relações familiares de gênero;
– campo da luta pela terra;
– campo do desenvolvimento local;

15
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

– campo das políticas nacionais de combate à pobreza;


– campo dos acordos nacionais de paz;
– campo dos acordos internacionais de comércio agrícola.

• Quais são os atores principais envolvidos nessas relações?


No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:
– governo municipal; agências específicas do governo estadual ou federal presentes no
âmbito local; elites (fundiárias, financeiras, comerciais, industriais) locais e suas entidades
de representação; moradores urbanos e suas associações; agricultores familiares e suas
associações; ONGs.

• Quem tem o poder? Ou em termos analíticos mais precisos: quem ocupa a posição
de dominação e quais são os seus aliados no campo em consideração?
No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:
– o governo municipal e as elites locais e suas entidades de representação;
– tendo como aliadas as agências do governo estadual ou federal presentes no âmbito local.

• Quem ocupa a posição de dominado e quem podem ser seus aliados?


No caso do campo do desenvolvimento local, por exemplo:
– moradores urbanos e suas associações; agricultores familiares e suas associações;
– tendo como aliadas as ONGs.

• Que compreensão têm os atores principais sobre a situação analisada?


Isto é:
– quem fala o que e de qual posição?
– identificar e caracterizar os principais elementos do discurso dominante e suas variantes;
– identificar até onde os principais elementos do discurso dominante estão presentes nas
versões dos atores dominados (predomínio do “senso comum” ideológico);
– identificar e caracterizar os principais elementos das versões críticas (presença do “bom
senso” ou até de discursos contra-hegemônicos).

• Como se exerce a dominação?


Isto é, através:
– da coerção (poder físico);
– de leis, regimentos ou contratos (poder institucional);
– e/ou dos costumes e da ideologia (poder simbólico).

• Como se reproduz a situação de dominação?


Por exemplo, no campo de luta pela terra, entre outros mecanismos, através:
– do não reconhecimento da posse tradicional das comunidades camponesas como um
direito de acesso à terra legítimo e legal;
– da corrupção (grilagem) na titulação de terras pelos latifundiários;
– do controle dos preços do mercado de terras;

16
— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —

– da implementação pelos latifundiários, em aliança com as elites comerciais locais, de me-


canismos laborais e mercantis de apropriação de renda que limitem a possibilidade de
acumulação por parte dos agricultores sem terra ou com pouca terra;
– da formação de milícias privadas e/ou da fácil disponibilidade de uso da força pública para
evitar ocupações de terra;
– da matança seletiva de lideranças de sem-terra e/ou de seus aliados.

• Quais são as formas de resistência?


Isto é:
– as estratégias são individuais ou existem estratégias grupais?;
– resistência passiva, mobilização e conflito aberto.

• Como está sendo e como pode vir a ser mudada a situação de dominação?
Isto é:
– que condições e oportunidades são necessárias para que essa mudança se efetive ou inten-
sifique? Em particular, que alianças ou redes podem ser construídas?;
– quais capacidades das pessoas e das organizações necessitam ser desenvolvidas?

• Como podemos monitorar e avaliar as permanências e as mudanças nas


relações de poder?
Por exemplo, através de:
– construir exercícios de revisão e reflexão;
– estabelecer conjuntamente procedimentos e indicadores.

A lista de questões que se acaba de discriminar não pretende ser exaustiva. Ao mesmo
tempo, cabe ressaltar que não estamos sugerindo que todas elas tenham que ser respondidas no
trabalho das ONGs. As ONGs não são instituições de pesquisa. O objetivo da apresentação desta
listagem é o de exemplificar o tipo de aspectos e questões que podem ser formuladas sobre as
relações de poder. A escolha das questões e a linguagem a ser utilizada em sua formulação
dependerão de cada caso.

3. O que entendemos
por empoderamento

3.1. O empoderamento como abordagem e como processo


Segundo nossa perspectiva, o empoderamento é:
• uma abordagem que coloca as pessoas e o poder no centro dos processos de desenvol-
vimento;

• um processo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades assumem o controle de


seus próprios assuntos, de sua própria vida e tomam consciência da sua habilidade e
competência para produzir, criar e gerir.

17
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

No combate à pobreza, a abordagem de empoderamento implica no desenvolvimento das


capacidades (capabilities) das pessoas pobres e excluídas e de suas organizações para transformar as
relações de poder que limitam o acesso e as relações em geral com o Estado, o mercado e a
sociedade civil.3 Assim, através do empoderamento visa-se a que essas pessoas pobres e excluídas
venham a superar as principais fontes de privação das liberdades, possam construir e escolher
novas opções, possam implementar suas escolhas e se beneficiar delas.
As capacidades (capabilities) são poderes para fazer ou deixar de fazer coisas. Assim, o
conceito de capacidades não significa só as habilidades (abilities) das pessoas, mas também as
oportunidades reais 4 que essas pessoas têm de fazer o que querem fazer (Sen A, 1992).
O empoderamento, enquanto desenvolvimento das capacidades das pessoas pobres e excluídas
e suas organizações, é um processo relacional e conflituoso.
• Relacional, no sentido de que sempre envolve vínculos com outros atores. Não dá para
analisar e trabalhar no processo de empoderamento em termos atomizados individuais.
Sempre temos que pensar no tecido de relações de poder nas quais o indivíduo, ou melhor,
a pessoa está inserida.

• Conflituoso, no sentido de que o empoderamento diz respeito a situações de dominação –


explícitas ou implícitas – e à busca de mudanças nas relações de poder existentes. O empodera-
mento leva a mudanças tanto da posição individual como grupal nas relações de poder/
dominação. Essas mudanças não ocorrem, em geral, sem conflitos de alguma ordem. Assim, no
trabalho de empoderamento, estamos lidando com a resolução – negociada ou não – de
conflitos. A participação nesse processo não pode ser neutra. Ela implica assumir uma posição
de aliado dos pobres e excluídos e, como tal, fazer parte dos conflitos que levam à modificação
das relações de poder que mantêm a situação de dominação existente.

3.2. As características da abordagem do empoderamento


Além do seu caráter processual, a abordagem do empoderamento apresenta um conjunto
não hierárquico e inter-relacionado de características (Shetty, s/d):
• Holístico: o empoderamento implica numa abordagem geral e não num conjunto de inputs;
não pode ser limitado às noções de atividades ou setores que se desenvolvem nas diferentes
etapas de um projeto; é o resultado da sinergia entre o conjunto de atividades e ações.

• Especificidade contextual: o empoderamento só pode ser definido em função de contextos


locais específicos em termos sociais, culturais, econômicos, políticos e históricos.

• Focalizado: o empoderamento diz respeito aos grupos excluídos e vulneráveis urbanos e rurais.

• Estratégico: o empoderamento se refere a aspectos estratégicos que procuram atacar as


causas estruturais e práticas da despossessão de poder (powerlessness).

3 Agradeço a Nelson G. Delgado seus comentários sobre esta definição que levaram a reforçar nela a ênfase na transformação
das relações com o Estado, o mercado e a sociedade civil.
4 As oportunidades se referem às limitações e possibilidades apresentadas pelas condições externas, entre as quais se destacam
as relações de poder e as situações de dominação nas quais as pessoas, os grupos e as organizações estão inseridos.

18
— EMPODERAMENTO: RECUPERANDO A QUESTÃO DO PODER NO COMBATE À POBREZA —

• Democratização: no empoderamento o aspecto chave é a democratização e a participação


(como meio e como fim).

• Construto ideológico: o empoderamento depende da percepção que os indivíduos e os


grupos tenham de si mesmos e de sua situação.

• Sustentabilidade: o empoderamento diz respeito à auto-realização e à sustentabilidade


das práticas.

3. O empoderamento como estratégia de combate à pobreza


Nos discursos do mainstream, diluído em digressões sobre o progresso em termos econô-
micos, técnicos ou informacionais, cada vez mais se oculta a discussão das relações entre de-
senvolvimento e poder. Esse ocultamento não é sem conseqüências, já que dificulta identificar
tanto a própria concepção de desenvolvimento como os entraves para a construção de um
projeto alternativo.
Desde a nossa perspectiva, seguindo A. Sen, um projeto alternativo implica na promoção de
um modelo de desenvolvimento que permita a expansão das liberdades substantivas e instru-
mentais das pessoas.5 Ou seja, um projeto em aberto, orientado para as pessoas enquanto agentes
e que respeita a diversidade humana e a liberdade de escolha. Nesse projeto a pobreza e a tirania
são os principais entraves a serem enfrentados.
Da mesma forma que se ocultam as relações entre poder e desenvolvimento, também se
diluem as relações entre poder e pobreza. A pobreza constituída é perpetuada por relações de
poder. A pobreza é um estado de desempoderamento.
Ver a pobreza como um estado de desempoderamento tem como ponto de partida o pressu-
posto de que os indivíduos e os grupos pobres não têm poder suficiente para melhorar suas
condições nem a sua posição nas relações de poder e dominação nas quais estão inseridos. Isto é
particularmente destacável no caso dos grupos mais desempoderados e vulneráveis, isto é, das
mulheres, dos idosos e das crianças.
O empoderamento é um meio e um fim para a transformação das relações de poder existentes
e para superar o estado de pobreza. É um meio de construção de um futuro possível, palpável,
capaz de recuperar as esperanças da população e de mobilizar suas energias para a luta por
direitos no plano local, nacional e internacional. Mas o empoderamento também é um fim,
porque o poder está na essência da definição e da superação da pobreza. O empoderamento
necessita constantemente ser renovado para garantir que a correlação de forças não volte a
reproduzir as relações de dominação que caracterizam a pobreza.
Assim, as estratégias de combate à pobreza inscrevem-se num processo essencialmente
político, que precisa de atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso e
micro articulados em torno de temas e lutas comuns. Neste marco, o empoderamento é essencial.
Atores com poder diferente são necessários como catalisadores no processo de empodera-
mento. Ao mesmo tempo, as características desses processos, suas potencialidades e limites, são

5 As liberdades estão inter-relacionadas e podem se fortalecer umas às outras. As liberdades políticas ajudam a promover a
segurança econômica. As oportunidades sociais facilitam a participação econômica. As facilidades econômicas podem ajudar a
gerar a abundância individual além de recursos públicos para serviços sociais (Sen, 2001).

19
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

diversas em função do tipo de mediadores – por exemplo: movimentos sociais, ONGs, governos,
agências multilaterais – que atuam como catalisadores.
No combate à pobreza, o empoderamento dos pobres e de suas organizações se orienta
para a conquista da cidadania, isto é, a conquista da plena capacidade de um ator – individual ou
coletivo – de usar seus recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar com respon-
sabilidade no espaço público na defesa de seus direitos, influenciando as ações dos governos na
distribuição dos serviços e recursos.
Os processos de transformação do Estado e de mudança social orientados para a superação
da pobreza assentam na construção de redes e de amplas alianças dos movimentos sociais e das
organizações populares no campo da sociedade civil. As ONGs vêm tendo um papel fundamental
na construção e no suporte dessas redes e alianças.
Finalmente, a adoção do empoderamento como estratégia central no combate à pobreza
não é gratuita para uma ONG. Além de qualificar e enriquecer a compreensão de sua missão e
valores, a adoção do empoderamento tem conseqüências significativas no campo de sua política
institucional. Por exemplo, a importância do papel das ONGs na construção e suporte de redes e
alianças no combate à pobreza, o fato de que o empoderamento não é um processo neutro e o
reconhecimento do intenso debate ideológico no qual esta abordagem hoje está inserida
obrigam-nos a posicionarmos claramente nossa estratégia de combatermos juntos a pobreza.
Onde ela se situa e constrói alianças: em Davos ou em Porto Alegre?

BIBLIOGRAFIA

ACTIONAID-BRASIL. Country Strategy Paper 2001-2003. Rio de Janeiro, 2000.

ACTIONAID-LAC. Regional Strategy 2001-2003. Guatemala, 2000.

IORIO, Cecília. Algumas considerações sobre estratégias de empoderamento


e de direitos. Texto elaborado para a ActionAid, 2002.

SEN, Gita. Empowerment as an approach to poverty. Pnud, 1997.

SEN, Amartya. Inequality reexamined. Oxford University Press, 1992.

. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo,


Companhia das Letras, 2001.

SHETTY, S. (s/d): Development projects in assessing empowerment, Occasional


Paper Series Nº 3, New Delhi, Society for Participatory Research
in Asia, (s/d).

World Bank. Empowerment and poverty reduction: a soucerbook.


Washington, PREM, 2001.

20
Algumas considerações
sobre estratégias de
empoderamento e de
direitos
Cecília Iorio1

As desigualdades se verificam não apenas entre países, mas também dentro


dos países entre grupos étnicos, entre regiões, entre gêneros.
Em um cenário onde se ampliam e agudizam as situações de pobreza, uma variedade de
atores do campo do desenvolvimento passaram a realizar revisões estratégicas de seus trabalhos.
A busca de novos paradigmas e conceitos que conduzam a um melhor entendimento das comple-
xas questões que envolvem a pobreza e a sua superação, a busca de maior eficácia e eficiência no
combate à pobreza são alguns elementos que em graus e combinações variadas orientam as
discussões realizadas pelos distintos atores do campo do desenvolvimento.
Este documento explora as dinâmicas de duas abordagens de combate à pobreza: a perspec-
tiva de empoderamento e a perspectiva baseada nos direitos. Buscamos resgatar a conceitualização,
contextualizar o debate e apontar fortalezas e fragilidades de ambas as perspectivas. Este “Estado
da Arte” visa a contribuir com a ActionAid Brasil e LAC em seu processo de discussão de interna e
de elaboração de positional paper.

1. Histórico sobre o conceito


de empoderamento
Identificar a origem do conceito de empoderamento é uma tarefa que resulta inconclusiva. A origem
do conceito é disputada tanto pelos movimentos feministas, como pelo movimento American
Blacks, que nos anos 1960, movimentou o cenário político norte-americano exigindo o fim do
preconceito e da discriminação que marcavam a vida dos negros nos EUA.
Contudo, é na interseção com gênero que o conceito de empoderamento se desenvolve
tanto em nível teórico como instrumento de intervenção na realidade. Nos anos 1970 e 1980,
feministas e grupos de mulheres espalhadas pelo mundo desenvolveram um árduo trabalho de
conceitualização e de implementação de estratégias de empoderamento, com o qual buscaram
romper com as diferentes dinâmicas que condicionavam a existência e impediam a participação e
a cidadania plena das mulheres.
Nos anos 1990 observa-se a expansão do uso deste conceito para outras áreas do debate
sobre desenvolvimento, especialmente a partir das grandes conferências oficiais e paralelas
mundiais, notadamente Cairo e Beijing.

1 Socióloga – Brasil.

21
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

O reconhecimento da necessidade de se empoderar as pessoas e grupos que vivem na pobreza


passa a ser percebido, com maior ou menor ênfase, como uma condição para o sucesso de
políticas, programas, ou mesmo projetos, por um amplo leque de organizações, representantes
de diferentes perspectivas políticas, de diferentes tamanhos, capacidade de influência e natureza.
A ampliação do uso do conceito e de estratégias de empoderamento coloca o desafio de
embasar este conceito de forma que o seu uso não seja apenas uma moda no campo do desen-
volvimento, mas sim produza mudanças nas práticas e políticas destes atores.

O empoderamento dentro do movimento feminista. 2 

A abordagem instrumental – empoderamento como um resultado


As primeiras conceitualizações sobre poder e empoderamento dentro do campo do desenvolvi-
mento surgem nos anos 1970 principalmente dentro do movimento feminista, vinculado ao grupo
conhecido como WID – Women In Development (Mulheres no Desenvolvimento). A conceitualização
por elas usada reconhece sua origem nas ciências sociais, mais especificamente na ciência política
– onde a idéia força é a de “poder sobre”. Nesta conceitualização, uma pessoa ou um grupo de
pessoas é capaz de controlar de alguma forma as ações ou as possibilidades de outros (Dahl;
Polsby). Esse controle sobre pode ser “evidente” através de, por exemplo, o uso da força física,
mas também pode ser “oculto”, quando internalizado através de processos psicológicos. Ele pode
ser muito sutil, levando a situações de “opressão internalizada” onde o uso de poder “evidente”
não é mais necessário (ex.: o “bom” escravo).
A partir desta perspectiva de poder a estratégia de empoderamento que prevalecia no WID
era de que, para romperem a situação de dominação, as mulheres deveriam ser “empoderadas”
de forma a conquistar espaço nas estruturas econômicas e políticas da sociedade e, dessa
forma, vir a participar do processo de desenvolvimento. As mulheres deveriam conquistar e
ocupar posições de poder.
O poder sobre se apresenta como uma substância, transferível, “tomável” e finita, ou seja, se
alguém ganha poder outros perdem. O poder sobre pode também ser delegado de uma pessoa a
outra. A questão é que se ele pode ser delegado, ele também pode ser tirado.
A perspectiva de empoderamento ancorada neste conceito de poder sobre representou intrin-
secamente uma ameaça para os homens (e o temor dos homens foi um obstáculo para o empo-
deramento das mulheres). Nesta conceitualização de soma zero é fácil entender por que a resis-
tência à idéia de empoderamento das mulheres. Subjaz a esta idéia que, havendo uma reversão
da relação de poder, as pessoas que atualmente têm poder não apenas o perderão senão que
verão esse poder sendo usado contra elas, ou melhor, contra eles.
As estratégias de empoderamento dentro desta perspectiva não propõem mudanças estruturais
nas relações de poder dentro de uma sociedade e nem questiona a forma como o poder é distri-
buído na sociedade. Não dá atenção a uma questão importante como ética e poder.3 

2 Utilizamos para a analise desta parte um texto de Rowlands.


3 Mas é importante perguntar: o empoderamento das mulheres deve necessariamente significar que os homens percam poder?
Ou a perda de poder é algo que os homens devem necessariamente temer? As mesmas perguntas podem ser feitas em relação
a qualquer grupo detentor de poder.

22
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

A abordagem processual ou generativa


Em finais dos anos 1970 e início dos 1980, novos esforços analíticos apontam para novas
conceitualizações de poder. Focalizando em processos e não nos resultados, o poder pode assumir
outras formas que, de maneira geral, podem ser descritas como poder para, poder com e poder
de dentro, que levam à construção de outras perspectivas de empoderamento.
Poder para não envolve necessariamente a dominação de alguém sobre outro, mas o poder
é enfocado como um processo generativo que leva à realização de capacidades em outros
(Hartsock). É o tipo de liderança que decorre do desejo de ver um grupo desenvolver suas capaci-
dades, e onde não há necessariamente conflito de interesses.
Foucault utiliza uma outra perspectiva de poder. Para ele o poder não é uma substância finita
que pode ser alocada a pessoas ou grupos. Para Foucault, o poder é relacional, é algo que somente
existe quando se usa, é constituído numa rede de relações sociais entre pessoas que têm algum
grau mínimo de liberdade. Sem poder as relações não existiriam. Esta compreensão inclui a resis-
tência como uma forma de poder (uma ação sobre outra ação), onde há poder há resistência.
Foucault focaliza na micropolítica, no exercício do poder em pontos localizados e enraizados em
redes sociais.
Esta linha do movimento feminista constrói um modelo de poder tendo como base muito do
modelo de Foucault, mas incorporando a análise das relações de gênero, o que incluiu a opressão
internalizada percebida como sendo uma barreira ao exercício do poder por parte das mulheres e
levando à manutenção das desigualdades com os homens.
É importante diferenciar os vários tipos de exercício de poder. O poder sobre como controle
que pode ser respondido com resistência ou aceitação. O poder para como um poder generativo
ou produtivo que cria possibilidades e ações sem dominação. Pode-se também diferenciar o poder
com, que envolve um sentido de que o todo é maior do que a soma das partes, especialmente
quando um grupo enfrenta os problemas de maneira conjunta. A união faz a força. Muitas pessoas
agindo juntas podem produzir mudanças mais facilmente. Há também o poder de dentro, que é
a força espiritual que reside em cada um de nós e que nos faz humanos – é a base da auto-
aceitação e do auto-respeito, que por sua vez significa o respeito e aceitação dos outros como
iguais. Este poder pode permitir que uma pessoa mantenha uma posição ainda que a grande
maioria possa estar contra.
Empoderamento não é somente o resultado de se alcançar o poder sobre, mas pode ser
também o desenvolvimento de poder para, poder com ou poder de dentro. Estes tipos de poder
não são finitos (com princípio e fim), mas ele pode crescer com o seu exercício. Um grupo
exercendo estes poderes não necessariamente reduz o poder dos outros.
Nesta perspectiva de empoderamento, a compreensão da dominação está associada às relações
de poder, que são múltiplas e estão profundamente enraizadas em sistemas de redes sociais.
O empoderamento de pessoas ou grupos nesta perspectiva não implica necessariamente a perda
de poder de outros, embora implique mudanças que podem levar a que isso possa ocorrer.
Então, temos várias possibilidades de empoderamento, processos que levam os grupos a
posições de poder sobre, mas também a possibilidade de exercício de poder generativo. Como isto se
relaciona com o processo histórico do empoderamento das mulheres?
“Poder com”, “poder de dentro” ou “poder para” levam a uma conceitualização de empode-
ramento bastante diferente. Aqui a noção de poder privilegia a capacidade do ser humano de
expressão e ação, a capacidade de realização do ser, sua liberdade de expressão.

23
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Esta forma relacional de entender e de analisar a situação das mulheres conduziu a uma
visão sobre o processo de dominação das mulheres que, ao invés de focalizar nos resultados,
focaliza no processo. Aqui as possibilidades de exercício de poder focalizam as relações humanas
e sociais. O movimento Gênero e Desenvolvimento (GAD) começa a abordar não apenas a natureza
dos papéis das mulheres – como no WID – mas as interações desses papéis com os homens e,
portanto, a dinâmica e estrutura das relações de gênero na sociedade. As mulheres não são donas
de casa no vácuo, mas num contexto onde homens e outras mulheres esperam que ela se
comporte como dona da casa. As relações de gênero passam a ser vistas como centrais aos
processos e organizações sociais e, portanto, ao processo de desenvolvimento.
Resumindo, a perspectiva do WID vê o empoderamento como um meio que deve levar as
mulheres às posições de poder, revertendo em benefícios sociais, econômicos e políticos para as
mulheres. A perspectiva do GAD está mais vinculada a processos de mudança mais amplos, uma
vez que entende que a mudança na situação subordinada das mulheres está vinculada a contextos
mais amplos e requer mudanças econômicas, políticas e culturais. É importante salientar que as
perspectivas de empoderamento acima descritas, embora façam parte da importante história do
movimento feminista, são hoje de interesse de um amplo leque de movimentos sociais, organizações
não-governamentais e outros atores do campo do desenvolvimento.

2. Uma proposta
de empoderamento
Sumariamente descrevemos algumas conceitualizações – e suas conseqüências práticas – sobre
poder que têm relevância no debate sobre empoderamento não apenas dentro do campo feminista.
Mas a questão que permanece ainda é: são na verdade conceitualizações mutuamente excludentes?
Colocando a questão em outros termos: é o “poder sobre” recursos (físicos, humanos, finan-
ceiros) ou sobre ideologias (crenças, valores e atitudes) o que empodera, ou é o “poder para” ou
“de dentro”, como habilidade, capacidade de ser ou de se expressar por si mesmo que conduz ao
acesso e controle de meios necessários à existência? Ou seja, é o controle e poder sobre recursos
externos ou é o processo de transformação interna que leva ao empoderamento das pessoas
vivendo na pobreza?
Parece-nos que as perspectivas, antes que excludentes, se reforçam mutuamente e estão
intrinsecamente vinculadas (Gita Sen). O controle sobre recursos externos pode possibilitar a
expressão (self-expression) e a ação das pessoas vivendo na pobreza, por outro lado, maior auto-
estima e autoconfiança (transformação interna) podem levar a vencer as barreiras externas no
acesso aos recursos. Não há garantia de que um processo leve inevitavelmente ao outro, mas
existem numerosos exemplos, em diferentes partes do mundo, que apresentam resultados em
ambas as direções. Qualquer que seja o processo, um verdadeiro processo de empoderamento
deve envolver os dois elementos, uma vez que dificilmente um será sustentável sem o outro.
Resgatando ambas as dimensões, empoderamento das pessoas vivendo na pobreza é um
processo de obter acesso e controle sobre si e sobre os meios necessários para a sua existência.
Assim sendo, o empoderamento é raramente um processo neutro. Precisamente porque a
situação de pobreza e dominação vivenciada por milhões de pessoas tem base no poder de
poucos sobre recursos e sobre as possibilidades de existência social de outros. O empoderamento
deve implicar uma mudança nas relações de poder em favor das pessoas vivendo na pobreza.

24
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Essa discussão se vincula à questão já anteriormente mencionada: é o empoderamen-


to um jogo de soma zero?
Não há uma resposta unívoca a esta pergunta, a resposta dependerá do contexto em que o
processo de empoderamento aconteça, de quem faça a pergunta (ou dê a resposta) e da escala de
tempo referido. Analisemos, por exemplo, o empoderamento que resulta de um processo de
reforma agrária. O acesso à terra por grupos sem-terra pode produzir ganhadores e perdedores,
dependendo de quem ganha e de quem “perde terra”. Mas se o detentor da terra teve um preço
justo (segundo o mercado), seria possível considerar que os dois lados “ganharam”. Mas também
a redistribuição da terra pode levar, por exemplo, a aumentos na produtividade e na oferta de
produtos agrícolas ou ainda ao aumento de divisas de um país e à melhoria da economia local.
Neste nível, pode-se considerar que houve um benefício para o governo, independente do ganho
(ou perda) político que um processo de reforma agrária possa significar.
A sociedade como um todo também pode vir a ser beneficiada com o aumento na produção
agrícola e pela melhora nos níveis de segurança alimentar. Como vemos, uma perspectiva pode –
ou não – ser compartilhada pelos diferentes atores do processo. Todavia, ao longo do tempo a
percepção sobre essas transformações pode mudar. Se os beneficiados com acesso à terra não
conseguem se manter no processo produtivo, a percepção pode mudar e o grupo passar a se
considerar prejudicado pelo processo num segundo momento.
Parece-nos que a perspectiva de análise baseada em soma zero pouco contribui para entender
a complexidade que envolve o processo social de empoderamento de grupos sociais.
Podemos fazer uma análise similar quando o que está em jogo é o empoderamento interno
– auto-estima e capacidades. O processo de empoderamento aqui não significa inicialmente
perda para outros, embora possa, em seu final, produzir perdas para alguém. Contudo, é impor-
tante perceber que a perda de poder nestes casos não é necessariamente prejudicial para quem
perde. Existem inúmeros exemplos onde a mudança nas relações de gênero traz benefícios para
os homens também. Por exemplo, quando uma mulher consegue estabelecer uma relação
baseada no mútuo respeito e com responsabilidades compartilhadas, as melhoras atingem tanto
a mulher quanto o homem. O marido perdeu o poder de impor sua vontade unilateralmente a
sua mulher, mas aquele poder o tornava menos humano e diminuía suas próprias capacidades
como resultado da sua relação violenta com sua mulher. Nesta mudança houve um ganho para
ambos os lados.

Empoderamento de pessoas ou de grupos?


O empoderamento é um processo de grupos ou de indivíduos? Esta é outra questão a ser
contemplada nas estratégias de empoderamento.
Durante um período de tempo, muita ênfase foi dada ao grupo, ficando a importância do
indivíduo secundarizada ou mesmo esquecida. Como ocorreu em outros processos políticos que
buscaram a superação de desigualdades sociais, o indivíduo foi visto como a negação dos interesses
e atividades de grupos sociais. Muitos exemplos existentes sobre empoderamento de grupos, em
muitos países, têm-se mostrado efetivos e têm sido fundamentais para romper isolamentos e
mudar a correlação de forças em favor dos excluídos. Contudo, as análises também mostram que
o empoderamento deve levar a processos de mudança a nível individual, não apenas em termos
de controle de recursos, mas também em termos de uma maior autonomia e autoridade sobre as
decisões que têm influência sobre a própria vida.

25
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

A efetividade de estratégias de empoderamento para o combate à pobreza depende do grau


em que estas duas dimensões se articulem na apreensão das causas que originam a pobreza do
grupo e do indivíduo. Assim, processo de empoderamento deve responder a estes dois níveis, o
individual e o coletivo.
É importante, contudo, salientar que qualquer processo efetivo de combate à pobreza e à
exclusão social que tenha como estratégia o empoderamento deve ser capaz de enfrentar as
causas que dão origem à pobreza e à exclusão nos grupos sociais.
A face da pobreza é grupal, ela afeta mulheres, favelados, sem-terra, grupos étnicos etc.
Cada grupo é excluído ou pobre por motivos diferentes, embora esses motivos muitas vezes se
justaponham. Os membros desempoderados de cada grupo tendem a estar na parte de baixo dos
mercados, ou excluídos, ou inteiramente marginalizados do processo econômico e social. A pobreza
de grupos sociais tem freqüentemente histórias longas, onde fatores econômicos, sociais e culturais
interagem, perpetuando a experiência de exclusão e de pobreza.
Uma estratégia de combate à pobreza que privilegia o empoderamento pode ser capaz de
enfrentar a natureza multidimensional da pobreza melhor que outras estratégias pelo fato de
colocar as pessoas vivendo na pobreza no centro da questão. Ela unifica os elementos que
compõem a situação das pessoas vivendo na pobreza ao mesmo tempo em que resgata a dimensão
ética do poder para um mundo sustentável em todos os sentidos.
O empoderamento é uma perspectiva que coloca as pessoas no centro do processo de
desenvolvimento. Pode parecer simples esta afirmação, mas ela muda radicalmente a perspectiva e a
estrutura na qual o desenvolvimento costuma ser pensado. Apesar de ser uma questão em disputa,
hoje prevalece uma compreensão que equaciona desenvolvimento como crescimento econômico
– e por este caminho se construíram análises, abordagens, políticas e programas. Recolocar as
pessoas e os grupos vivendo na pobreza ou excluídos no centro do processo de desenvolvimento
significa colocar as instituições econômicas (mercados) e políticas a serviço destes grupos.

Quem pode empoderar quem?


Uma outra questão importante na elaboração de estratégias sobre empoderamento é: quem
empodera quem?
A afirmação de que o empoderamento não pode ser feito em nome das pessoas que necessi-
tam ser empoderadas é um pressuposto de qualquer processo de empoderamento. Isto, no entanto,
não significa dizer que as pessoas vivendo na pobreza devem sozinhas enfrentar este desafio.
Atores ou agentes, em geral, são necessários em processos de empoderamento, intervindo como
catalisadores destes processos. Uma tentativa de classificação pode identificar dois tipos de atores:
• Agentes externos (como ONGs, agências de desenvolvimento, governos) podem contribuir na
criação de um meio ambiente favorável ao empoderamento, ou bem agir como uma barreira.

• O empoderamento pode ocorrer dentro do grupo, através de organizações de base, como


são os movimentos sociais, onde o agente pode ser uma liderança interna ao grupo.
Uma vez que a natureza e o papel do agente catalizador têm conseqüências sobre o processo
de empoderamento, é interessante pensar também outra tipologia segundo o ator social prota-
gonista da intervenção. Gita Sen propõe a seguinte tipologia:
a. Empoderamento por ONGs
b. Empoderamento por movimentos sociais

26
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

c. Empoderamento por ONGs e governos


d. Empoderamento por multilaterais

Empoderamento por ONGs


As experiências onde as ONGs têm um papel catalisador têm sido as mais inovadoras, flexíveis
e onde o método de intervenção e o conteúdo são os mais adequados aos indivíduos, grupos e
comunidades. A razão deste sucesso reside, com poucas exceções, no fato de que estas expe-
riências começam pequenas, permanecem pequenas e próximas do grupo.
Em geral, nesta combinação ONGs/grupos, geram-se interessantes comunidades e novos
experimentos de intervenção, seja em termos metodológicos, em termos de prestação de serviço
ou de organização comunitária. Por outro lado, se identificam algumas dificuldades nestas
experiências com relação a sua replicabilidade em outros contextos e/ou sua expansão. Elas têm a
tendência de serem fechadas em si, por diversas razões: limitação de recursos humanos e finan-
ceiros (limitação de profissionais qualificados, de lideranças do grupo), falta de capacidades
específicas para os trabalhos de advocacy e lobby, infra-estrutura deficiente, defasagem de infor-
mações maiores e até princípios ou posicionamentos políticos.
Este tipo de experiência tem apresentado algumas fraquezas no que diz respeito a sua capa-
cidade de alterar duradouramente as condições de vida dos grupos/comunidades envolvidos, de
ampliar sua base de intervenção ou de ser um modelo replicável em outros contextos. Análises
apontam que estas fragilidades muitas vezes resultam do fechamento em si que marcam estas
experiências, sua dificuldade de se relacionar com o governo e políticos. Em geral, dado o contex-
to adverso (especialmente o contexto político) que circunda estas experiências, a ONG e/ou grupo
buscam manter sua autonomia a todo custo. E nas interações necessárias para melhorar a situa-
ção do grupo (com o governo, as agências de desenvolvimento e políticos), a ONG e/ou grupo
resistem, pois sabem que serão desafiados a negociar.

Empoderamento por movimentos sociais


O empoderamento que ocorre dentro do grupo, através de organizações de base ou movi-
mentos sociais, onde o agente é interno ao grupo, não vivencia este problema de fechamento em si.
Ao contrário, a relação com agentes externos como o governo – ainda que possa ser conflitiva –
é uma de suas metas, uma vez que estes são vistos como responsáveis pelo status quo e como
capazes de alterar a situação de pobreza em que vive o grupo. Quando obtêm sucesso, estes
grupos ou movimentos sociais tendem a se estender e a se ampliar.
Uma de suas fortalezas é que eles têm clareza dos pontos, das questões que realmente
importam e interessam ao grupo. Vão direto ao centro das questões que perpetuam sua situação
de pobreza e de falta de poder e trabalham para mudar e transformar a situação.
Uma das fraquezas que se verifica nestas experiências é que o grupo, nesta atitude de
contestação, de demanda por mudanças estruturais, aumenta sua vulnerabilidade à violência de
seus oponentes, dos detentores do poder e dos recursos. Violência da qual o grupo raramente
tem condições de se proteger e que recai especialmente sobre suas lideranças ou sobre os
membros mais fracos e menos empoderados do próprio grupo. No Brasil são muitos os exemplos.
Eles vão desde os freqüentes assassinatos de lideranças de trabalhadores que lutam pela posse da
terra e pela reforma agrária até os assalariados da zona canavieira do Nordeste (que quando

27
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

reclamam salários atrasados ou a correta medição da cana cortada sofrem ameaças e até morte),
passando pelas lideranças urbanas de favelas, que acabam constantemente ameaçadas pela
polícia e por grupos de traficantes.

Empoderamento por ONGs e governos


Processos de empoderamento que combinam a ação de ONGs e governo têm mostrado
resultados interessantes em muitos casos. Este tipo de empoderamento resolve o problema de
escala da intervenção, de impacto e também a questão da replicabilidade. Também apresenta
como fortaleza o aumento da proteção do grupo, diminuindo a incidência de violência por parte
de oligarquias e seus interesses.
Mas na fortaleza deste tipo de experiência também reside sua maior fraqueza. Esta interação
entre ONGs, comunidades e Estado se dá sob constante pressão por uma adaptação aos métodos
e à agenda do governo. E o perigo de cooptação ou de sucumbir às pressões políticas e burocrá-
ticas do governo está permanentemente presente tensionando as relações, podendo gerar desen-
tendimento ou divisão entre ONG e grupo de base.

Empoderamento por multilaterais


O empoderamento proposto por agências multilaterais tem também pontos fortes e fracos.
O reconhecimento de que o empoderamento é um elemento chave para romper o ciclo da pobreza
abre possibilidades para o desenho de políticas mais adequadas de combate à pobreza, como
também espaços de participação na elaboração e implantação dessas políticas que podem favorecer
os grupos vivendo na pobreza.
As fragilidades, no entanto, ainda são muitas para que o discurso e as intenções de mudança
existentes em documentos de organismos como o Banco Mundial possam alterar a presente
realidade de exclusão e de aumento da pobreza.
O empoderamento ganha uma perspectiva funcional que pouco contribui para a agency das
pessoas/comunidades vivendo situações de pobreza. O reconhecimento da necessidade de empo-
deramento dos “pobres” ganha sentido em um contexto marcado pela busca de eficiência de
programas e projetos (o que não é razão para desmerecer a proposta, pois eficiência em programas
de combate à pobreza deveria ser a norma e não exceção). Todavia, uma perspectiva instrumental
de empoderamento dificilmente implicará o desenho de políticas e instrumentos que sejam capazes
de empoderar os grupos em uma perspectiva sustentável, que considerem os constrangimentos
existentes em níveis local, nacional e global que reforçam a situação de desempoderamento dos
grupos vivendo em extrema pobreza.
Uma perspectiva instrumental de empoderamento afasta a possibilidade de alterações políticas
substantivas em favor dos pobres, ficando muitas vezes o empoderamento circunscrito aos programas
e projetos de combate à pobreza ou, quando muito, a alguma intervenção pontual no cenário
nacional. Contudo, no âmbito político e das políticas macro (nacionais e internacionais), as regras que
geram e perpetuam os mecanismos de exclusão social continuam fora do alcance destes grupos.
A tipologia acima descrita pode ajudar a entender o papel e a contribuição potencial de
agentes externos enquanto catalisadores de processos de empoderamento. Em última instância é
importante ter presente que o empoderamento é algo que não pode ser feito em nome daqueles
que devem ser empoderados. Processo de empoderamento precisa ter no centro as pessoas e
grupos desempoderados, suas visões, aspirações e prioridades.

28
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Os agentes externos podem contribuir de maneira fundamental para dar corpo a este processo,
tornando acessíveis instituições e níveis de decisão política que na maioria dos casos estão inacessíveis
a estes grupos, compartindo informações qualificadas, construindo alianças, apoiando a inter-
venção destes grupos, facilitando a sua presença em fóruns e redes, contribuindo para a construção
da identidade e da representação política destes grupos e construindo uma visão compartilhada
sobre o desenvolvimento. Além destas possibilidades e oportunidades de ação, o agente externo
tem particular responsabilidade de construir uma relação e uma forma respeitosa de trabalhar
com os grupos vivendo na pobreza. Abandonar o top-down approach, as soluções pensadas
pelos experts conhecedores dos problemas sociais mundiais e se acercar à realidade do contexto
local conhecendo os mecanismos locais de perpetuação da pobreza e da exclusão e vinculando-os
com os mecanismos em nível macro são exigências para um efetivo trabalho de empoderamento.
Algumas ONGs estão em excelente posição para liderar este processo.

3. Empoderamento como estratégia


de combate à pobreza
Como já foi afirmado, as pessoas empoderam-se a si mesmas. Entretanto, governos, ONGs e
outros atores sociais podem desempenhar um papel vital tanto em bloquear estes processos
quanto em criar um ambiente onde políticas, recursos financeiros e humanos, informação, conheci-
mento, acesso a instituições e apoio para mudar a cultura institucional de atores importantes do
campo do desenvolvimento possam impulsioná-los.

No campo das políticas


Em contexto onde existe democracia, um procedimento que contribui na criação de ambiente
favorável é a mudança ou aprovação de novas leis que apóiem as iniciativas dos excluídos e
pobres. Estas leis podem cobrir um amplo espectro de questões, como discriminação, mudança
na legislação civil sobre herança, sobre proteção de áreas comunais de acesso a recursos e sobre
populações indígenas, ou ainda a introdução de normas que facilitem o acesso a crédito em
bancos públicos, por exemplo. Nenhum destes mecanismos por si só constitui uma garantia de
empoderamento, mas a existência deles sem dúvida remove barreiras – o que pode contribuir
para que o grupo e as pessoas desempoderadas tenham acesso a recursos e possam desenvolver
suas capacidades.
Mas as leis por si só, e freqüentemente, não são suficientes, porque em todos os países do
“Sul” são pobremente implementadas. Outros passos mais ativos precisam ser dados. É importante
a promoção e implementação de processos participativos na gestão das políticas. Os governos devem
assegurar canais para que os grupos e pessoas vivendo na pobreza possam fazer parte de instâncias
de definição, implantação e monitoramento de políticas mais gerais (como orçamento participativo,
conselhos de políticas sociais, segurança alimentar, previdência, conselhos de saúde, educação) e
também dentro de programas de combate à pobreza e à exclusão (mas não somente nestes
espaços). A participação é um elemento constitutivo das estratégias de empoderamento. 4

4 Analisaremos logo em seguida as limitações e dificuldades da participação.

29
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

A descentralização de governos centrais pode pavimentar o caminho para uma maior parti-
cipação de grupos sociais no nível local e, nesse sentido, atender melhor às necessidades dos
excluídos. Mas o processo de descentralização pode também ser feito sem o empoderamento dos
excluídos. Isto é particularmente verdade em lugares onde existem oligarquias ou famílias com
forte controle do poder local. Nestes casos, o processo de descentralização pode desempoderar
ainda mais os excluídos.
É importante analisar cuidadosamente a relação existente entre empoderamento e descen-
tralização. Descentralização é um meio que serve a várias finalidades. Embora possam estar rela-
cionados, empoderamento e descentralização não são sinônimos. A contribuição que um processo
de descentralização pode fazer ao empoderamento de grupos e pessoas depende do contexto,
das questões envolvidas (etnia, gênero, religião) na manutenção de processos de
desempoderamento e de exclusão.

No campo da informação
Uma outra política em direção a remover barreiras e a viabilizar processos de empoderamento
é promover o acesso à informação para as pessoas vivendo na pobreza. Informação é freqüente-
mente um dos recursos mais guardados e controlados em programas de desenvolvimento.
Como é de conhecimento geral, o controle de informação ou a falta de transparência é o meca-
nismo mais usado pela corrupção. Ter controle sobre informações é um elemento fundamental
para o empoderamento. Com informações as pessoas, os grupos, têm uma oportunidade de sair
da condição de “beneficiário” para ser um agente ativo do processo.
O controle sobre o conhecimento e a informação pode levar à mudança nas relações de poder
e, portanto, estratégias de geração de conhecimentos e difusão de informações sobre os níveis
locais, regionais e globais são fundamentais como mecanismos de empoderamento. Entretanto,
conhecimento não é como uma laranja a ser colhida de uma árvore. Pelo contrário: é um elemento
embebido no contexto social e ligado às diferentes posições de poder. Metodologias de participação
que têm como objetivo o empoderamento não devem assumir que os pobres e excluídos possuam
a priori conhecimentos e capacidades analíticas de interpretação e análise da informação, inde-
pendente do grau de educação ou capacitação, ou do lugar que ocupam na estrutura social local.
Se bem que estas capacidades são fortalecidas pelo método participativo, a promoção de capaci-
dades analíticas e de planejamento é um elemento fundamental dentro deste processo.
Governos, agências multilaterais e ONGs, ao mesmo tempo em que podem disponibilizar e
viabilizar o acesso livre à informação de variadas naturezas (sobre programas, gerenciamento,
direitos, economia etc.) que têm impacto sobre a pobreza, tem também como tarefa fundamental
investir na construção de capacidades em nível local.

No campo da cultura institucional


O que tem permanecido como uma barreira para o empoderamento de grupos e pessoas é a
prevalência de visões autoritárias, políticas feitas “de cima para baixo”, de pouca ou nenhuma
prestação de contas, de posturas arrogantes, arbitrárias ou assistencialistas, por parte dos governos,
de organizações privadas e também de alguns atores do campo do desenvolvimento. Esta talvez
seja a mudança mais difícil de se realizar – mudança nas instituições e na cultura institucional
destes atores. A cultura institucional dos grandes atores do desenvolvimento tem hoje um impacto
brutal, e em geral negativo, nos processos de empoderamento dos grupos.

30
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Apesar de haver movimentos que integram práticas participativas e burocracias governa-


mentais, a maioria dos funcionários do governo tem pouco entendimento e simpatia pelas técnicas
participativas e ainda tendem a não acreditar na capacidade das pessoas que vivem na pobreza de
pensar e propor políticas de desenvolvimento. A participação dos mais pobres é freqüentemente
neutralizada pelos funcionários do governo que operam em um contexto que desvaloriza as opiniões
e contribuições, particularmente das mulheres, em assuntos públicos.
Tomando como foco o governo, muito ainda há para fazer. As mudanças nesta área devem
ser precedidas de análises cuidadosas para se identificar onde estão os gargalos e nós procedendo a
mudanças estratégicas ao invés de medidas confrontativas com o corpo funcional como um todo.
A reorientação através de treinamento e introdução de novos protocolos para os funcionários
podem também se mostrar efetivas. O apoio de agentes externos se mostra fundamental para que
estas mudanças ocorram. Em nível local este aspecto é ainda mais crucial. As ONGs que trabalham em
parceria com governos devem desenvolver atividades e estratégias direcionadas a mudar a cultura
institucional dos órgãos governamentais, visando a mudanças nas atitudes e práticas dos servidores
públicos Um exemplo que tem tido sucesso no Brasil é a implantação do Programa de Proteção a
Testemunhas, que deixa atividades de treinamento para policiais, entre outras ações, a cargo de
ONGs de direitos humanos. Este trabalho tem sido capaz de criar uma nova cultura dentro de
setores da polícia.

No campo da construção de capacidades: participação


O tema da participação tem ganhado destacada relevância como mecanismo de empodera-
mento. Quase todas as instituições de estudo, pesquisa e apoio voltadas para a cooperação ao
desenvolvimento têm produzido muitas análises sobre processos participativos.5 Grande parte
destas análises compõe-se de pesquisas de campo que relacionam os temas participação, cidadania,
poder e políticas de combate à pobreza. A abundância de material nos levou a dedicar algumas
linhas a este tema.
A crítica à performance da cooperação oficial e de seus programas motivou o surgimento de
metodologias que rejeitavam as práticas de “cima pra baixo”. Muitos esforços foram consagrados a
buscar caminhos alternativos que respeitassem o conhecimento e as experiências locais das pessoas
que vivem na pobreza em sua luta pela cidadania. Estas metodologias introduziram práticas
participativas que buscavam resgatar a centralidade dos grupos e das pessoas no processo de
definir prioridades, encontrar soluções para os problemas e serem sujeitos de programas, projetos
e políticas visando ao empoderamento das organizações de base e das comunidades.
As metodologias participativas desenvolvidas por estudiosos como Freire, no Brasil, e Chambers,
na Inglaterra, tornaram-se a bíblia de ativistas e profissionais engajados em processos de desenvol-
vimento participativo e em desenvolverem estratégias de empoderamento em nível local.
Algum tempo foi preciso até que participação se tornasse uma das palavras-chave para todos os
atores do campo do desenvolvimento, inclusive instituições como o Banco Mundial, agências
oficiais de cooperação e governos.
Hoje o processo de empoderamento é visto como estreitamente relacionado ao de participação.
Experiências em diversas partes do mundo têm mostrado que processos de participação possibilitam

5 A participação aparece como um tema prioritário de pesquisa em instituições como IDS, University of Sussex , Centre for
Development Studies, SWANSEA, University of Wales e Intrac.

31
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

processos de empoderamento e que estas metodologias favorecem o estabelecimento de políticas


e práticas de desenvolvimento que contemplam as necessidades das pessoas vivendo na pobreza.
As metodologias participativas, como o PRA e suas variantes, que emergem nos anos 1980,
são ainda hoje atuais. Têm o mérito, entre outros, de mudar o lócus do conhecimento, deslocando-o
das instituições (do Estado, por exemplo) para as pessoas e organizações de base do local; de
encorajar o desenvolvimento das capacidades do grupo local; de analisar sua situação; e de identificar
problemas e soluções.
As metodologias participativas são desenhadas para trazer os menos privilegiados para dentro
do processo de desenvolvimento. A inclusão assistida por comunicação verbal e visual é o pilar
que Chambers considera vital para o empoderamento das pessoas e que pode provocar uma
mudança fundamental em suas vidas. Chambers, e outros, estão conscientes de que não se trata
de um processo simples. Contudo, crêem que os impedimentos e os obstáculos existentes no
processo podem ser ultrapassados pelos participantes com a ajuda de “facilitador/as”.
A ênfase no local tem sido objeto de muitas análises que apontam que ela precisa ser comple-
mentada com uma análise das estruturas de poder, dos discursos e das práticas em nível nacional e
global. Esta vinculação entre o micro e o macro tem-se mostrado muito necessária e é um dos elemen-
tos diferenciais (value added) que uma ONG internacional (ou agência de cooperação) pode aportar a
processos de empoderamento de grupos, movimentos sociais e comunidades desempoderados.
Constrangimentos de ordem política ou econômica, como programas de ajustes estruturais,
também impedem mudanças apesar da participação. Aqui o apoio no desenvolvimento de estra-
tégias que façam o vínculo entre questões macro e micro é também importante. O estabelecimento
de alianças e redes Norte–Sul e a formação de redes globais são estratégias que tiram o processo
de empoderamento da sua condição de processo localizado. Este é mais um importante espaço
onde as ONGs internacionais podem desempenhar um papel de grande relevância.
As metodologias participativas que visam ao empoderamento de grupos não devem subestimar
a complexidade e a tenacidade das estruturas do poder local. É preciso estar atento à multidimen-
sionalidade de fatores que produzem e reproduzem a exclusão e a pobreza. Discursos muitas vezes
democráticos e de participação podem esconder as estruturas de poder local, tornando difícil a
tarefa de estabelecer o empoderamento dos mais fragilizados dentro de grupos (mulheres, negros,
índios etc.). A intervenção de ONGs é também importante para dar maior visibilidade a estes
grupos mais vulneráveis e aumentar sua proteção contra a violência do Estado ou de oligarquias.
Agentes externos como as ONGs internacionais podem contribuir em trabalhos de persuasão
e discussão, bem como apoiar as ações de mobilização social dos grupos locais em nível local,
nacional e internacional. A formação de alianças tanto interna (com instâncias nacionais do governo,
por exemplo) quanto externa (com outros grupos sociais locais ou internacionais com maior
capacidade de influenciar o poder local) é um aspecto fundamental.
Já mencionamos também a necessidade de investir na construção de capacidades que são
importantes para possibilitar uma participação completa em todas as fases de desenvolvimento
das políticas, programas e projetos. O apoio à construção de representação política de grupos
vivendo na pobreza é também fundamental para que a participação se dê dentro de um marco
civil e político e não se reduza à administração de problemas da pobreza.
É importante evitar que os processos participativos sejam superficiais, feitos para satisfazer
exigências de doadores e se reduzindo, na prática, a processos meramente consultivos. Muitos têm
sido os casos (Uganda, Nigéria e Casaquistão, por exemplo) onde a elaboração dos PRCR tem
resultado em consultas e não em participação.

32
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Este elenco de questões aqui apresentado tem sido debatido por muitos pesquisadores e
practitioners que buscam tanto entender melhor estes processos quanto aperfeiçoar as metodo-
logias participativas. Aprofundar a análise sobre poder parece ser um caminho. Para alguns
estudiosos, no marco atual das metodologias participativas, é fácil entender por que hoje elas,
as abordagens participativas, são tão amplamente aceitáveis para tão variadas, diferentes e
conflitantes organizações.
Essas questões sobre participação servem de alerta para processos de empoderamento.
Entretanto, é preciso ter claro que são conceitos diferentes. Enquanto empoderamento pode ser
considerado um fim em si mesmo, participação é um meio para se atingir fins e esse fim pode ou não
ser o empoderamento das pessoas excluídas e vivendo na pobreza. Se as metodologias participativas
não ficarem limitadas ao nível micro e forem capazes de romper o isolamento de alguns grupos
sociais, poderão impulsar processos de empoderamento fundamentais para mudar relações sociais,
políticas e econômicas e criar identidades positivas para as pessoas que vivem na pobreza.
Uma sociedade mais eqüitativa em termos de distribuição de poder na estrutura social é
condição fundamental nas estratégias de combate à pobreza e à exclusão nas sociedades latino-
americanas. Diferentemente de alguns outros países na Ásia ou na África, nos países da América
Latina – com poucas exceções – há recursos econômicos que podem ser redistribuídos e apropriados
por grupos sociais hoje submergidos na pobreza e na exclusão, há processos de democratização
que precisam ser aprofundados e há movimentos sociais que precisam ser ampliados e fortalecidos.
Neste contexto, as estratégias de empoderamento são cruciais na luta pela inclusão social e
econômica e para a cidadania na região.

4. Criticas à estratégia de empoderamento


Muitas experiências de desenvolvimento espalhadas pelo mundo têm mostrado que o empodera-
mento é uma perspectiva que toma seriamente o desafio da sustentabilidade das mudanças obtidas
pelos grupos, comunidades. Quando as diferentes dimensões, aumento da auto-estima, do despertar
da capacidade de ação dos grupos e pessoas e o acesso aos meios de vida, se conjugam e produzem
no grupo, nas pessoas, mudanças em sua situação, o desafio que se coloca é como garantir a
permanência e o aprofundamento destas conquistas.
Poucas intervenções de desenvolvimento conseguem avançar no crucial elemento da susten-
tabilidade. Seja porque não há uma mudança nas relações de poder, seja porque ao terminar o
apoio a experiência não conseguiu consolidar as bases para seguir adiante, seja porque o grupo
não rompeu com o status de beneficiários e não alcançou a dimensão de ser também um propositor
de políticas,6 de programas, nem construiu alianças. Enfim: não se empoderou.
Apesar de apresentar vantagens em relação a outras abordagens, a perspectiva do empode-
ramento parece complicada aos olhos de perspectivas mais pragmáticas. De modo geral, os mal-
entendidos e críticas à perspectiva do empoderamento podem ser sumarizados em três aspectos:

6 Mesmo no campo da relação entre ONGs do Norte e seus parceiros do Sul, o empoderamento dos parceiros deve ter efeitos.
Os parceiros devem ser empoderados de forma que possam ser capazes de propor políticas, dialogar com os níveis de tomadas
de decisão sobre suas perspectivas e necessidades. Deve haver a possibilidade de construção de uma visão compartilhada sobre
métodos de trabalho, sobre prioridades, sobre políticas. Não havendo esta possibilidade, corremos o risco de repetir
comportamentos que estamos cansados de criticar na cooperação oficial e multilateral.

33
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Custos
Uma primeira crítica levantada é sobre o custo da perspectiva de empoderamento. Para alguns
ela é muito custosa em termos de tempo e recursos. Sen rebate esta crítica lembrando que “os
programas tradicionais de erradicação da pobreza são conhecidos pela sua ineficiência e desper-
dício de recursos precisamente porque as pessoas pobres não têm poder para exigir de burocratas,
oficiais do governo ou dos políticos uma prestação de contas dos fundos e recursos gastos em
nome dos pobres”. Estes desperdícios e ineficiência dos milhões de recursos aplicados nestes
programas são fortes razões instrumentais para se adotar a perspectiva de empoderamento que,
se não é barata, leva a que os milhões de recursos destinados “aos pobres”, as políticas sociais,
não sejam mal-empregados ou embolsados pela corrupção.7

Metodologia
Uma segunda preocupação é sobre a metodologia. Para muitos as metodologias de empode-
ramento parecem muito complicadas para programas de larga escala. Exemplos também mostram
que estas metodologias obtêm sucesso em programas grandes e se mostram efetivos. A questão
da metodologia, na opinião de Sen, está mais ligada à questão de se mudar os paradigmas dos
grandes programas. Ainda se observa que a orientação nestes projetos segue a lógica top-down,
da expertise do corpo técnico.
A questão não é que uma metodologia seja mais ou menos complicada que a outra. As dificul-
dades estão em ambos os lados e se trata de fazer uma escolha: fazer os grupos e comunidades
entenderem a lógica dos técnicos ou fazer os técnicos entenderem a lógica das comunidades.
Parece-nos que até por uma questão de escala deveria ser mais fácil fazer um grupo de técnicos
entenderem as necessidades e aspirações das comunidades. A não ser que a questão em jogo não
seja a de metodologias, mas sim de poder. Ao se decidir por valorizar o conhecimento, por
considerar a multidimensionalidade das necessidades das pessoas vivendo na pobreza, assim como
suas capacidades, estaremos enfrentando metodologicamente os reais problemas, os reais desafios.

Mensuração
Uma terceira questão muito freqüente é: pode o empoderamento ser acuradamente mensurável
de forma que programas com esta perspectiva possam ser avaliados? Para Sen esta questão não é mais
ou menos complexa que a que se pode fazer a qualquer outro indicador qualitativo. Indicadores
objetivos como subjetivos têm sido usados por programas que adotam a perspectiva de empodera-
mento. Se os programas têm objetivos específicos como educação, crédito, saúde ou geração de
renda, os standards padrões usuais de mensuração podem ser usados. Entretanto, estas medidas
podem ser somente aproximações com relação à mensuração de processos de empoderamento de
natureza mais qualitativa. É de particular importância que métodos de avaliação sejam construídos
onde as respostas e o feedback sobre as preocupações das pessoas e das comunidades sejam avaliados.

7 A perspectiva do empoderamento é importante em diferentes contextos políticos. Nos países latino-americanos, onde a
democracia foi restabelecida combinando mobilização social com processo orquestrado pelas elites, a chamada “transição por
cima”, é fundamental assegurar o fortalecimento da sociedade civil para que haja governabilidade, para que a cidadania e a
democracia finquem raízes sólidas. Tomar os processos políticos existentes nestes países como completos, acabados, é um erro
não só de julgamento, mas sobretudo de análise. As situações da Argentina, Venezuela e Colômbia não deixam dúvida quanto
às fragilidades existentes na região.

34
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

5. Aproximações e distanciamentos
com a abordagem baseada em direitos
Entre as abordagens no campo do desenvolvimento percebe-se, nos últimos anos, que um
número cada vez maior de instituições começa a utilizar a perspectiva baseada em direitos (based
rights approach). Os direitos humanos, tais como são conhecidos hoje, são o resultado de um
processo longo de lutas e acordos sobre princípios e padrões legais e morais. No entanto, um
momento fundamental em matéria de afirmação de direitos em nível global é a Conferencia
Mundial da ONU realizada em Viena em 1993. Nela se afirmam a indivisibilidade e universalidade dos
direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dentro do conjunto dos direitos humanos.
É também de particular importância o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações
Unidas de 2000, que explora esta abordagem apontando que a perspectiva de desenvolvimento
humano deve ter como base os direitos que são, antes de tudo, complementares. O Banco Mundial
parece estar também avançando nessa linha como estratégia para suas políticas, como indicam
alguns de seus documentos mais recentes (setembro de 2000). Várias ONGs européias também
estão trabalhando dentro desta perspectiva: na Inglaterra, Oxfam GB, Cafod, Christian Aid e Save
the Children; na Alemanha, EED e PPM; na Holanda, Icco, Novib e Cordaid; e também grandes
alianças como Oxfam Internacional e Save the Children Alliance (ver no anexo da p.41 a perspectiva
da Oxfam Internacional).

O conceito: perspectiva baseada nos direitos


A abordagem com base em direitos para o desenvolvimento é uma estrutura conceitual8 que
assenta em padrões e operacionalização voltadas para a promoção e proteção dos direitos humanos.
Ela integra as normas, padrões e princípios do sistema internacional de direitos humanos em
planos, políticas e processos de desenvolvimento.
As normas e standards são aqueles contidos no rico acervo de tratados e declarações inter-
nacionais. Os princípios incluem: igualdade, eqüidade, prestação de contas, empoderamento e
participação. A perspectiva baseada em direitos se assenta nos seguintes elementos:
• expressam ligação entre os direitos
• prestação de contas em sentido amplo (accountability)
• empoderamento
• participação
• não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.

A definição de objetivos de desenvolvimento em termos de direitos específicos, como uma


titulação legalmente exigível, é um elemento essencial da perspectiva baseada em direitos, assim
como a criação de vínculos normativos e instrumentos que liguem os direitos humanos em nível
internacional, regional e nacional.

8 Apesar de existirem variações na conceitualização da perspectiva baseada em direitos, de maneira geral todos estes atores
reconhecem o ser humano como o centro do processo de desenvolvimento. Na definição de Amartya Sen, a perspectiva dos
direitos humanos engloba três importantes aspectos: 1. a intrínseca importância dos seres humanos; 2. o seu papel
conseqüência no desenvolvimento econômico; e 3. o seu papel construtivo, na gênese de valores e prioridades. Direitos
humanos têm valor intrínseco e também instrumental para o desenvolvimento. Desenvolvimento humano requer direitos
humanos no sentido de reconhecimento legal e político da liberdade das pessoas, bem como de seus direitos fundamentais.

35
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

A conceitualização de direitos humanos considera-os um múltiplo conjunto indivisível, inter-


dependente e inter-relacionado de direitos: civil, político, econômico, cultural e social. Isto implica
que a estrutura de direitos internacionalmente garantida cobre, por exemplo, saúde, educação,
moradia, acesso à justiça, segurança pessoal e participação política.
Segundo o relatório das Nações Unidas é inaceitável que sejam implementadas políticas,
projetos ou atividades que tenham como efeito a violação de direitos ou que os direitos sirvam
como base de negociação para o desenvolvimento (trocar direitos trabalhistas por acesso a inves-
timento de capitais transnacionais em zonas francas tem sido uma política bastante freqüente em
vários países de América Central).9
A intervenção desta perspectiva busca aumentar os níveis de prestação de contas, através do
exercício de identificação de quais são os direitos existentes e acordados, quem são os titulares
desses direitos (entitlements) e os correspondentes responsáveis por realizar e promover o acesso
a estes direitos. A orientação adotada por muitos que estão trabalhando no campo dos direitos
tem sido a de identificar um amplo leque de relevantes atores que têm responsabilidade na
promoção, provisão e proteção dos direitos, elencando neste rol governos, autoridades e organi-
zações locais, companhias privadas e instituições e doadores internacionais.
Um dos sentidos desta abordagem é a adoção dos atuais standards de direitos humanos
como um marco universal para se mensurar a promoção e progresso dos direitos humanos em
todas as partes do mundo, assim como para assegurar um patamar para a prestação de contas.
Pela Convenção Internacional de Direitos Civis e Políticos, os Estados nacionais são os primeiros
responsáveis por prover, assegurar e proteger direitos. A impossibilidade de realizar este conjunto
de direitos por parte dos Estados nacionais implica que a comunidade internacional deve assegurar
meios para garantir estes direitos.
Pela Convenção Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o Estado nacional
também é o primeiro responsável por assegurar o respeito a este conjunto de direitos. Todavia, a
não realização por parte do Estado nacional de alguns dos direitos contidos nesta declaração não
pode ser contestada perante nenhuma corte, uma vez que não existe jurisdição para seu julga-
mento. São direitos, mas necessariamente não contam com mecanismos de exigibilidade.
As perspectivas mais recentes adotam o empoderamento como um elemento dos direitos.
Contudo, múltiplas interpretações e intenções estão em jogo neste ponto em particular. O leque
de interpretações que sustentam a presença e a importância do empoderamento dentro dos
direitos humanos vai de uma recusa a trabalhar o desenvolvimento como uma questão de caridade
(criando e recriando a dependência), passando por criar a figura do beneficiário de projetos e
programas (como portador de direitos com capacidades de monitorar os projetos), até questões
ligadas à eficácia/eficiência de programas nos quais a participação das pessoas pobres na concepção,
implementação e avaliação de projetos/programas/políticas aparece como uma garantia para seu
sucesso. Uma interpretação que vem ganhando força é a que busca juntar e não dissociar os
direitos civis e políticos (o direito a ter voz, o direito a ser escutado) dos direitos econômicos,
sociais, culturais e ambientais.
A importância que a participação tem ganho na agenda de atores-chave do desenvolvimento
tem levado à incorporação do empoderamento ao arcabouço do desenvolvimento e das políticas.

9 Os exemplos na história recente de América Latina, onde os governos militares que aboliram direitos civis e políticos – entre
outros – com base em argumentos de ordem e crescimento econômico, parecem não combinar com esta argumentação, nem
tampouco os programas de ajuste propostos pelo FMI à Argentina e outros países da região.

36
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Todavia, há que se ressaltar que esta permanente tentativa de acomodar todos os elementos
(antes particulares às visões alternativas de desenvolvimento) produzindo uma visão de consenso
sobre o desenvolvimento tem dificultado a emergência de discussões sobre as relações de poder
que perpetuam a pobreza. Discutir poder e desenvolvimento está cada vez mais fora de questão.

Oportunidades da perspectiva baseada em direitos


Algumas oportunidades e vantagens têm sido apontadas por aqueles que têm adotado o
rights based approach.
• O fortalecimento da prestação de contas (accountability) através da identificação de respon-
sáveis e daqueles que têm tido seus direitos negados, negligenciados ou não protegidos.
O fortalecimento da prestação de contas tem sido visto como um mecanismo de quebra de
poder arbitrário e de visões assistenciais e caritativas no desenvolvimento.
• Maiores níveis de empoderamento, apropriação, liberdade e participação colocando os
beneficiários no centro do desenvolvimento.
• Maior clareza e detalhamento das normas, provisionadas pelos instrumentos e interpretações
internacionais que listam e definem o conteúdo, incluindo-se os requerimentos para direitos
como saúde, educação, moradia e governabilidade. Os standards, tratados, convenções e
guias de princípios são públicos e estão acessíveis, descrevendo em detalhes os requerimentos
institucionais de vários direitos garantidos.
• Consenso mais fácil, aumento de transparência e menos barganha política em processos
nacionais de desenvolvimento. Objetivos, indicadores e planos podem ser baseados em
padrões universais de direitos humanos ao invés de modelos importados, soluções prescritas
ou perspectivas partidárias ou políticas arbitrárias.
• Uma mais ampla e completa compreensão baseada em direitos abarcando todas as áreas de
desenvolvimento humano (segurança, moradia, justiça, participação, saúde, educação).
• Um conjunto integrado de salvaguardas contra danos não intencionais de projetos de
desenvolvimento.
• Uma análise mais completa e efetiva da pobreza, ultrapassando análises baseadas em
indicadores econômicos. A perspectiva baseada em direitos revela a preocupação com os
pobres, incluindo o fenômeno da ausência de poder e a exclusão social. Uma análise mais
correta sobre a pobreza corresponde a melhores respostas e melhores resultados.
• Uma base de maior autoridade para trabalhos de advocacy no reclame de recursos e obriga-
ções em níveis internacionais e nacionais. Por exemplo, nesta perspectiva se pode advogar
que um Estado gaste menos em despesas militares e dirija os recursos para a promoção do
acesso à saúde.

Fragilidades da perspectiva baseada em direitos


Identificadas as fortalezas da perspectiva baseada em direitos, cabe também dar atenção a
algumas dificuldades e limitações desta perspectiva. A pergunta-chave: como implantar direitos já
tão longamente estabelecidos? Ela mostra um ponto crucial das limitações que existem nesta
perspectiva e que ainda não foram profundamente abordadas.

37
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Como afirma Fortman, “o mundo inteiro parece ter a boca cheia de direitos humanos, mas
em termos de implementação se pode dizer que ainda persiste uma crise. Apesar da retórica e da
euforia (em torno dos direitos humanos), o que vemos é um grande déficit”.
Os sinais desta fragilidade de implementação estão por todos os lados. Os exemplos da
dificuldade de se punir governos que perpetram violência a direitos civis e direitos contra seus
habitantes e de Estados que suprimem pela força e violência direitos de outros povos e minorias
lotam os noticiários internacionais.
Uma outra fragilidade é a própria linguagem. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por
exemplo, reflete um discurso cuja base moral e ética é forte, mas a linguagem é fraca. Por exemplo,
“avançar na dignidade... dos indivíduos”, ao invés de proteger a dignidade dos indivíduos; “a
idéia que outros têm responsabilidades de facilitar e fortalecer o desenvolvimento humano” e não
que outros têm a obrigação de implementar e assegurar o desenvolvimento humano; “direito a
pedir a ajuda de outros” ao invés de direito a reclamar de outros a responsabilidade/obrigação de
garantir os direitos.10
Um outro aspecto importante diz respeito à falta de estratégias para combater a violação de
direito nas esferas privadas, situação que afeta particularmente as mulheres em todos os
países e continente.
A fragilidade dos direitos humanos se estabelece quando se conectam os direitos à realidade
(tanto em nível nacional como internacional). Idealmente, o direito tem poder e status para
proteger através de mecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua imple-
mentação depende igualmente de os direitos serem social e politicamente reconhecidos.
A idéia de direitos humanos assenta sobre o princípio de que toda violação deverá ser evitada
e reparada por ações que recuperem os direitos. Todavia, a falha existente tanto na prevenção
como na reparação parece ainda não ter encontrado uma solução. Esta falha está vinculada a dois
fatores cruciais: primeiro se verifica, de modo geral, uma permanente inadequação da legislação
enquanto um mecanismo de controle do poder; e segundo, uma defasagem da percepção destes
direitos em muitos contextos culturais e políticos (e aqui não estamos tratando das diferenças
culturais que os ocidentais consideram extravagantes, como a de alguns grupos na África, Ásia,
América do Sul e Central). Como resultado destes dois fatores, é visível que os direitos humanos
como estão colocados em tratados e declarações, entre outros formatos, sofrem de uma funda-
mental falta de integração com a vida cotidiana e com o uso do poder em todas as sociedades.
Como Fortman nota, a idéia de que no centro estão os direitos e que violação é algo marginal é
amplamente contestada pela realidade. “Freqüentemente o que vemos é diferente: no centro
estão as violações e na margem, os direitos”.11
Na situação que vivemos hoje, os direitos têm sido subordinados ao poder econômico, que
se manifesta na distância entre a integração destes direitos com o cotidiano de tomada de decisões
políticas. Isso se reflete, por exemplo, na própria estrutura da ONU, que separa em três instâncias
os componentes de um único sistema de direitos. Direitos humanos ficam a cargo da Ecosoc,
desenvolvimento econômico fica com as poderosas agências de Bretton Woods e segurança, com
o Conselho de Segurança.

10 Estes exemplos são do texto Rigths-based approaches: any new thing under the sun, de Bas de Gaasy Fortman.
11 Esta constatação é reconhecida por alguns atores. Atualmente Kofi Annan vem liderando uma campanha chamada
Mainstreaming Human Rights.

38
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

Na perspectiva otimista do Relatório de Desenvolvimento Humano da ONU de 2000, uma


vez mais se propõe uma visão integrada de desenvolvimento humano, onde a segurança, o
desenvolvimento econômico e o acesso aos direitos humanos devem estar juntos. Para que haja
dignidade humana é preciso que estes elementos estejam juntos, coloca o referido relatório.
Todavia outras tentativas de juntar estes três elementos já ocorreram no passado sem conseguir se
manter e influenciar políticas nas três esferas.
Ao analisar este relatório, Fortman denota que são grandes as falhas e dificuldades que estão
à frente da perspectiva baseada em direitos. Considerando-se um direito econômico básico, por
exemplo, o direito a um padrão decente de vida (UDHR, art. 25), como um indivíduo pode reclamar
o acesso a este direito? Os pobres, sem trabalho, sem moradia, sem seguridade social, têm direito
a reclamar por estes direitos, mas como torná-los reais? Confrontamo-nos novamente com a
realidade de um lado e com um direito de outro. As pessoas têm seu direito econômico, mas isso
não significa que, quando privado dele, o indivíduo possa recorrer à lei e obter um resultado
concreto que restabeleça sua dignidade humana. Como Amartya Sen coloca, “direitos naturais e
imprescritíveis” acabam sendo “nonsense”.
A distinção de Dworkin entre “direitos abstratos” e “direitos concretos” mostra bem o problema
que temos diante. Nesta concepção o indivíduo teria direito a políticas apropriadas para a garantia de
seus direitos e não garantia de ter comida, moradia ou emprego, que são considerados direitos
abstratos. A questão que fica é: os direitos são abstratos enquanto que o direito a reclamar por
eles é concreto. Assim temos que um direito não implica que automaticamente a reclamação do
mesmo possa ser honrada, e isso não depende apenas da força do direito em questão, como
pressupõem a norma jurídica e o tipo de proteção oferecida. Isso tem relação especialmente com as
existências material e política para seu preenchimento, em última instância, as correlações de força e
poder, a competição com outros atores, para que este direito possa ser reclamado e obtido.12
Retomando o ponto de fragilidade sobre a linguagem, temos muitas expressões em tratados
e convenções que enfraquecem a própria exigibilidade. Isto se aplica especialmente aos direitos
econômico, social e cultural, que estão expressos em termos como “progressiva realização”, termo
adotado também pela RDH 2000. O pressuposto é que a falta de recursos pode atrasar ou implicar
na não realização destes direitos. E mais importante, a realização de direitos econômicos, sociais
e culturais é uma matéria confrontacional, uma vez que para sua implementação as estruturas de
poder existentes são desafiadas.
A dificuldade verificada no reclame de direitos econômicos, sociais e culturais por parte dos
mais pobres é já uma decorrência da negação de direitos básicos, de injustiças e do uso do poder
político e econômico sobre estes segmentos. Assim, o que é possível constatar é que, mais que
discursos sobre o que são direitos e quais são esses direitos, o que de fato existe é uma luta pela
existência mesma de direitos.
Para os mais pobres, lutar pelo direito é uma questão extremamente confrontacional e perigosa
(são inúmeros os casos onde a reclamação de um direito termina com a morte do solicitante;
retomando nossos exemplos, a realidade da Zona da Mata pernambucana mostra que ainda hoje
é freqüente a violência e o assassinato de trabalhadores por exigirem um pagamento atrasado ou
uma revisão nos cálculos do corte de cana, como também são freqüentes as arbitrariedades e a
violência da polícia junto à população dos morros do Rio de Janeiro ou na periferia de São Paulo,

12 Este ponto nos sugere que a perspectiva de empoderamento devia precedência à dos direitos.

39
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

para não mencionar trabalhadores que estão reduzidos à situação de escravidão por dívida em
fazendas espalhadas pelo interior do Brasil ou mesmo em cidades grandes como São Paulo, onde
imigrantes ilegais [bolivianos, coreanos] estão trabalhando em oficinas de fundo de quintal sem
acesso a direitos mínimos).
Um outro problema que se pode mencionar diz respeito ao déficit de instrumentos que possam
assegurar a implantação dos direitos. Apesar do avanço do relatório em estabelecer indicadores e
demonstrar os efeitos que têm a negação dos direitos, parece-nos que a questão maior não reside
nos indicadores, Aliás, os indicadores até se tornam pouco efetivos se não existem instrumentos
que os conectem com mecanismos/instrumentos que possam ser empregados em ações concretas
para implementação dos direitos. Neste ponto reside um dos maiores desafios da perspectiva
baseada em direitos.
Por outro lado, é o governo o primeiro responsável pela implementação de direitos. Aqui surge
outro problema: os governos muitas vezes representam interesses econômicos contrários à imple-
mentação dos direitos mais básicos.
É possível perceber hoje um aumento de importância da lei entre as pessoas. Mais pessoas
recorrem à lei tentando solucionar problemas, todavia a eficácia destas ações legais está condicionada
à existência de um ambiente favorável. Em ambientes adversos onde o Estado e a economia vivem
em permanentes crises, a realização dos direitos através de ações judiciais mostra pouco efeito.
O que não significa dizer que os direitos não tenham sentido nestes ambientes, mas há que se
construir um patamar de legitimidade dos direitos, e não já pressupor sua existência. Este ponto
recoloca uma séria questão para os direitos: a da legalidade e da legitimidade.

6. À guisa de conclusão
A luta contra a pobreza e a exclusão social tem passado por diferentes fases ao longo das últimas
décadas. Nos anos 1950 pensava-se que as dificuldades para o desenvolvimento, e a conseqüente
eliminação da pobreza, se encontravam na carência de infra-estrutura. Atores globais, o Banco Mundial
entre outros, passaram a apoiar obras de infra-estrutura. Pouco depois se percebeu que o desen-
volvimento não acontecia como resultado da mudança em condições materiais. Era necessário
investir nas pessoas. Saúde e educação passaram a receber quantias volumosas de recursos.
Nem toda a comunidade internacional apostou no welfare state. Muitas energias e recursos
apostaram em processos de mudança mais radicais.
As décadas passaram e a distância entre ricos e pobres, excluídos ou incluídos tem aumentado
em proporções alarmantes. Ao mesmo tempo, nunca a humanidade produziu tanta riqueza e a
ideologia neoliberal ganhou tanta hegemonia em todo o planeta.
Talvez possamos dizer que aprendemos muitas lições das experiências tão ricas que passamos
nos últimos anos no campo da cooperação. Hoje vemos as bandeiras e discursos alternativos
sendo incorporados por um amplo leque de atores. Estratégias de empoderamento ficaram na
moda e, mais recentemente, a baseada em direitos.

Uma é mais efetiva que a outra? São ambas estratégias mutuamente excludentes?
Não parece haver uma só resposta para essas perguntas.
É evidente, no entanto, que qualquer estratégia de luta por um mundo melhor dificilmente
será uma receita que possa ser aplicada em qualquer realidade, independentemente do contexto
em que seja utilizada.

40
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

As estratégias de combate à pobreza são um processo essencialmente político, que precisa


de atores capazes de alterar correlações de força em níveis macro, meso e micro articulados em
torno de temas e lutas comuns. Neste marco, estratégias de empoderamento são uma parte
essencial de qualquer processo social que busque um mundo melhor para a grande maioria deste
planeta. Ela poderá ser articulada com outras várias perspectivas, mas certamente não poderá
estar ausente nem cumprindo um papel subordinado.

Anexos

A abordagem da Oxfam13 

A Oxfam GB tem trabalhado por muitos anos dentro de uma abordagem baseada
em direitos como estratégia de combate à pobreza, entendendo pobreza como
um processo complexo e multidimensional.
Baseada na Conferência Mundial da ONU, realizada em Viena, em 1993, a
Oxfam desenvolveu uma carta global de direitos básicos, onde retoma os pontos
da declaração da conferência, segundo a qual toda pessoa tem o direito a um lar,
água limpa, comida suficiente, educação etc. Contudo, a Oxfam entende que no
presente momento a melhor forma de contribuir para a realização dos direitos
humanos, em face também das atividades e da experiência de outras organizações, é,
dentro do continuum que são os direitos humanos, focalizar suas energias e recursos
nos direitos sociais e econômicos, incluídos aqui os humanitários. Esta perspectiva
envolve também a análise e aprofundamento dos vínculos existentes entre direitos
sociais, econômicos e culturais com os civis e políticos.
A partir de 1998, a Oxfam focalizou seu trabalho em cinco direitos básicos
vinculados a objetivos específicos de intervenção. A Oxfam Internacional, confe-
deração de 11 Oxfams que inclui a Novib e a Intermon, se envolve neste processo
desde 1999. De tal forma, o plano de trabalho do conjunto das Oxfams para 2001-
2004 tem como base o esquema de direitos Right-based framework. A Oxfam
Internacional focaliza na realização de direitos econômicos e sociais. Estes cinco
direitos, que estão assegurados em convênios e acordos internacionais, funda-
mentam o planejamento estratégico da Oxfam Internacional e são:
a. O direito a meios de vida sustentáveis (eqüidade econômica e ambiental e
meios de vida para as gerações futuras).

b. O direito a serviços sociais básicos (acesso eqüitativo à saúde e à educação).

13 Baseado no documento Oxfam GB conference paper on Social and Economic Rights, de Chris Roche
e Caroline Roseveare.

41
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

c. O direito à vida e à segurança (provisão eqüitativa de projeção, ajuda, relief


e reabilitação).

d. O direito a ser escutado (participação eqüitativa em elaboração de políticas


e tomadas de decisão econômicas, políticas e socais).

e. O direito à identidade (eqüidade de gênero e diversidade).

É objetivo do trabalho da Oxfam assegurar que os direitos humanos sejam


promovidos e respeitados. Esse compromisso se implementa em diferentes níveis:
trabalhando com indivíduos e grupos para fortalecer sua capacidade de se orga-
nizar e de se manifestar; em nível de governos e instituições internacionais
através de lobby e advocacy para mudar políticas que negam ou infringem
direitos; em nível do público em geral para conscientizar sobre direitos e os meios
para redress, através da educação para o desenvolvimento, informação para o
público e campanhas.

A estratégia de combate à
pobreza do Banco Mundial
Para o Banco, pobreza é o resultado de processos sociais, econômicos e polí-
ticos que interatuam e freqüentemente se reforçam mutuamente, de forma a
exacerbar o processo de exclusão em que vivem os pobres. Bens escassos, falta de
acesso a mercados e escassez de emprego prendem as pessoas no círculo da
pobreza material. Por tal motivo, estimular o crescimento econômico, fazer os
mercados trabalhar para os pobres e incrementar seus bens é fundamental para
reduzir a pobreza. Mas essa é apenas uma parte da história. Num mundo onde
a distribuição de poder acompanha a distribuição de riqueza, o modo como os
Estados funcionam pode ser particularmente desfavorável aos pobres. Por exemplo:
os pobres raramente recebem os benefícios dos investimentos públicos em edu-
cação ou saúde. E ainda são freqüentemente vítimas da corrupção e das arbitra-
riedades dos órgãos públicos.
A pobreza é também muito afetada por normas, valores sociais e praticas
tradicionais que dentro da família, da comunidade ou do mercado levam a
processos de exclusão social de mulheres, grupos étnicos ou grupos socialmente
desempoderados.
É por isso que facilitar o empoderamento dos pobres, fazendo com que o
Estado e as instituições sociais atendam mais a eles, é também fundamental para
combater a pobreza.
Vulnerabilidade a eventos externos e fora de controle, epidemias, violência e
choques econômicos reforçam o senso de dificuldade, de pobreza material e
debilidade para barganhar suas posições. É importante aumentar a segurança
reduzindo os riscos a eventos externos para combater a pobreza.

42
— ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO E DE DIREITOS —

A estratégia
A abordagem para combate à pobreza do Banco Mundial a partir do ano
2000, em face do contexto de globalização, efetiva-se através de três elementos:

a. Promover oportunidades. Oportunidades significam emprego, crédito, caminhos,


escolas, eletricidade, mercados para os seus produtos, água, saneamento
básico e serviços de saúde. O crescimento econômico é crucial para gerar
oportunidades. Reformar os mercados pode ser essencial para expandir opor-
tunidades para os pobres, mas as reformas devem refletir as instituições e
estruturas locais. E mecanismos devem ser criados para compensar os potenciais
perdedores da transição. Em sociedades muito desiguais, mais igualdade é
fundamental para acelerar os processos de redução da pobreza.

b. Facilitar o empoderamento. A escolha e implementação de ações públicas


que atendam as necessidades dos pobres dependem da interação de processos
sociais, econômicos e políticos. O acesso a mercados e a serviços públicos é
freqüentemente influenciado pelo Estado e por instituições sociais que devem
atender e serem accountable para os pobres. Atingir esse acesso, atender as
necessidades e a prestação de contas (accountabilty) é um processo intrinse-
camente político e precisa de ativa colaboração dos pobres, das classes médias
e de outros grupos sociais. A colaboração ativa pode ser grandemente facili-
tada por mudanças na governança do Estado, tornando a administração
pública, as instituições legais e os serviços públicos mais eficientes e
accountables para todos os cidadãos; a colaboração ativa também pode ser
facilitada fortalecendo-se a participação dos pobres nos processos políticos e
nas tomadas de decisão local. É também importante remover as barreiras
institucionais e sociais que resultam da distinção de status social, de gênero e
de etnia. Instituições que atendam as necessidades existentes não são apenas
importantes para os pobres, mas também para o processo de crescimento
como um todo.

c. Expandir a segurança. Reduzir a vulnerabilidade a desastres naturais, choques


econômicos, epidemias e violência é parte intrínseca do aumento do bem-estar
e promove o investimento em capital humano. Requer ação nacional e meca-
nismos efetivos para reduzir os riscos enfrentados pelos pobres. Requer também
construir bens para os pobres, diversificar a renda do grupo familiar e promover
mecanismos de seguro – podem ser trabalho público e seguros de saúde –
para enfrentar os choques adversos.

Para o Banco não há hierarquia de importância entre os três mecanismos,


eles são complementares.

43
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

BIBLIOGRAFIA

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BROCK, K.; CORNWALL, A. & GAVENTA, J. Power, knowledge and political spaces in the framing
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Oxford University Press for WB, 2000.

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SITES VISITADOS

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Economics, Action Aid UK, Oxfam GB, The Save the Children Fund, Christian Aid, Cafod, Bond UK,
Novib, Icco, PPM, EED e
http://www.empowermentresources.com/
http://www.stanford.edu/~davidf/empowermentevaluation.html
http://www.angelfire.com/mi3/empowerment/
http://www.ids.ac.uk/ids/particip/index.html

44
Metodologias e ferramentas
para implementar
estratégias
de empoderamento
Alberto Enríquez Villacorta1
e Marcos Rodríguez2

O presente documento foi feito com base nos termos de referência estabelecidos
pela ActionAid a fim de gerar mais e melhores insumos à reflexão e ao debate abertos dentro da
organização a respeito das decisões e projeções impulsionadas, por um lado, na África e Ásia, e
por outro, na América Latina e Caribe, que mudaram o enfoque do trabalho institucional.
No caso da África e da Ásia, os programas começaram a dar mais enfoque a um “desenvolvi-
mento baseado em direitos”, enquanto no caso da América Latina e do Caribe, tanto a estratégia
regional como a de cada país individualmente se baseiam num enfoque de “empoderamento”.
Neste marco, a ActionAid precisa aprofundar a análise com o propósito de determinar qual
dos dois enfoques tem mais consistência, poderá gerar melhores resultados e alcançar maiores
índices de sustentabilidade.
Com o fim de contribuir para esta análise, o presente documento se estruturou em três partes.
Na primeira se estabelece o conceito de empoderamento e o marco para desenhar estratégias que
o tornem possível, assinalando, ao mesmo tempo, as principais semelhanças e diferenças com o
enfoque de desenvolvimento baseado em direitos.
Na segunda parte, se faz uma espécie de balanço crítico de estratégias, metodologias e
ferramentas utilizadas na América Latina para implementar processos de empoderamento.
Finalmente, na terceira parte, se fazem algumas recomendações à ActionAid, visando à
análise e ao desenvolvimento de metodologias que permitam formular e implementar estratégias
de empoderamento.

1. Marco analítico para formular


estratégias de empoderamento

1.1. Empoderamento, desenvolvimento e combate à pobreza


e à exclusão
Assim como muitos outros, o termo “empoderamento” começou a ser utilizado com muita
freqüência, tanto por organizações sociais e políticas como por analistas e centros acadêmicos

1 Doutor em Filosofia, Funde (Fundação Nacional para o Desenvolvimento), El Salvador.


2 Economista, Funde, El Salvador.

45
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

que trabalham no campo do desenvolvimento, servindo de marco ou enfoque para a formulação


de estratégias ou políticas e programas implementados em diversas zonas geográficas,
microrregiões, municipalidades, setores sociais e instituições.
Baseado nisso, consideramos importante, não só do ponto de vista teórico, mas também de
uma perspectiva política e operativa, fazer um esforço de delimitar o conceito de empoderamento.
Não se trata de estabelecer uma definição que encerre e enquadre, mas sim uma delimitação que
aproxime e se mantenha aberta, ao mesmo tempo em que permita um horizonte que dê sentido,
marco e suporte a diversas estratégias, metodologias e instrumentos.
No presente trabalho, o empoderamento está vinculado fundamentalmente ao estímulo de
um desenvolvimento sustentável.
Entendemos por desenvolvimento sustentável aquele que tem como propósito a geração de
riqueza e bem-estar para as presentes e futuras gerações. Considerando que o que ele busca não
é só gerar riqueza, mas também bem-estar, tanto das presentes como das futuras gerações, não se
pode reduzi-lo ou fazê-lo sinônimo de crescimento econômico (o que muda radicalmente a pers-
pectiva e estrutura em que habitualmente se pensa o desenvolvimento), pois, além da econômica,
ele inclui diversas dimensões ou esferas da vida humana, como a política, a social, a cultural,
a ambiental, a espacial, a espiritual etc. Por isso, trata-se de um fenômeno multidimensional.
Uma das características fundamentais do desenvolvimento assim entendido é a inclusão de
todas as forças e atores de uma sociedade, seja esta local, regional, nacional ou global. Por isso,
um dos desafios centrais que enfrenta o desenvolvimento na América Latina é como resolver e
superar a realidade da exclusão e da pobreza.
Um desenvolvimento excludente, por um lado, é mau desenvolvimento e, por outra, carece
de sustentabilidade.
Visto de outro ângulo, uma das características típicas do mau desenvolvimento é a geração
de pobreza e exclusão. Isto é evidente na América Latina, que é a região do mundo com o maior
abismo entre os mais ricos e os mais pobres.
O desenvolvimento sustentável implica, portanto, ainda que não se reduza a isto, uma luta por
erradicar a pobreza e a exclusão, o que significa que uma estratégia de desenvolvimento passa
por conseguir que os setores, grupos e pessoas que vivem na pobreza e na extrema pobreza, ou que
tenham sido excluídos e marginalizados por diversas razões como gênero, etnia ou religião, não só
sejam levados em conta como objeto de programas ou estratégias contra a pobreza, mas que, aban-
donando sua condição de excluídos e marginalizados, se convertam em atores do próprio desenvol-
vimento, participando das decisões fundamentais que o impulsionam e dos benefícios que gera.
O processo que torna esse “trânsito” possível passa por resolver outro problema crucial
como o do poder. Isto em duas dimensões: uma é a distribuição do poder na sociedade; e a outra,
o modo de exercício do poder.
Aqui é justamente onde entra o enfoque do “empoderamento” dos setores, grupos e pessoas
pobres e excluídas como um fator-chave para avançar em direção ao desenvolvimento sustentável.
Por isso, não é casual que historicamente o conceito de empoderamento tenha sido introdu-
zido nos anos 60 e 70 pelo movimento American Black e por grupos feministas e de mulheres que
lutavam respectivamente contra a discriminação das minorias negras nos Estados Unidos e por
alcançar a plena cidadania das mulheres.
Por isso, delimitar o conceito de empoderamento é uma questão-chave. Não só nem principal-
mente com uma pretensão acadêmica, mas, sobretudo, visando à implementação de políticas e estra-
tégias. Trata-se de avançar em direção a um conceito que se converta em marco e horizonte para a ação.

46
— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

Para entender bem o significado, o alcance e as implicações do conceito de empoderamento


não basta conhecer sua origem etimológica ou seu vínculo com o conceito de poder. É necessário
compreender que ele nasce de uma busca de paradigmas que permitem conhecer e explicar
melhor fenômenos como a pobreza e a exclusão e encontrar caminhos e formas concretas para
combatê-los, superá-los e, se possível, erradicá-los.

Que é, então, o empoderamento?


É uma perspectiva que coloca as pessoas excluídas dos processos prevalecentes de desenvolvi-
mento e do poder (sua distribuição e exercício) no centro do processo de desenvolvimento.
Situar as pessoas e grupos sociais que vivem na pobreza ou são excluídos no centro do processo
de desenvolvimento significa colocar as instituições econômicas (mercados) e as políticas (Estado)
ao serviço desses grupos, e não o contrário.

O empoderamento:
• Parte do entendimento de que a situação de pobreza e dominação experimentada por
milhões de pessoas, não só na América Latina, mas também no resto do mundo, é um
impedimento ao desenvolvimento que tem em sua base o poder de uns poucos sobre os
recursos e sobre as possibilidades de existência social de outros.

• É basicamente um processo de criar poder e ganhar poder de e para os setores pobres e


excluídos. Ganhar implica diminuir o poder que têm outros, redistribuir o poder e, neste
sentido, é um processo conflitivo. Criar poder é gerar capacidades inexistentes e, por isso,
implica claro lucro para a sociedade.

• É o processo de obter acesso e controle sobre si mesmo e sobre os meios necessários para
sua existência.

• É um processo de construção e/ou ampliação das capacidades que têm as pessoas e grupos
pobres e excluídos para:
– Assumir o controle de seus próprios assuntos;
– Produzir, criar, gerar novas alternativas;
– Mobilizar suas energias para o respeito a seus direitos;
– Mudar as relações de poder;
– Obter controle sobre os recursos (físicos, humanos e financeiros) e também sobre a ideo-
logia (crenças, valores, atitudes);
– Poder discernir como escolher;
– Levar a cabo suas próprias opções.
Tudo isso com o propósito de se converter em sujeitos do desenvolvimento sustentável.

• É um processo ao mesmo tempo interno (relacionado com auto-estima, autopercepção) e


externo (que tem a ver com controle ou influência sobre o meio a sua volta).

• É pessoal e organizacional. Não pode ser feito de fora pra dentro, mas pode ser facilitado
através de ações estimulantes e criando um ambiente amistoso, favorável. Implica ações
simultâneas e complementares de cima para baixo e de baixo para cima.

47
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

• Não é um processo neutro, pois deve implicar necessariamente mudanças nas relações de
poder a favor dos que vivem na pobreza ou são excluídos. Deve gerar processos de mudança
no nível individual e coletivo, tanto em termos de controle de recursos, como em termos de
uma maior autonomia e autoridade sobre as decisões que têm influência na sua própria vida.

• Também não é um processo natural. É induzido. Não nasce por geração espontânea, mas é
impulsionado intencionalmente. É socialmente construído.

• É um elemento-chave para romper o ciclo da pobreza e da exclusão, já que abre possibilidades


para a formulação de políticas mais adequadas de combate à pobreza, como também espaços
de participação na elaboração e implementação dessas políticas que podem favorecer os
grupos pobres e excluídos, convertendo-os em agentes de desenvolvimento.

• É um processo através do qual grupos que têm sido excluídos e marginalizados por causas
econômicas, sociais, políticas, de gênero etc., buscam mudar essa situação e se incorporar na
determinação do rumo que suas localidades, países, regiões e o mundo devem tomar. Por isso, as
estratégias de empoderamento são caminhos para sociedades locais ou nacionais mais democrá-
ticas, via pela qual grupos, atores e setores mais excluídos entram nos processos onde se
decide o rumo daquelas.

O empoderamento combina duas dimensões:


– A introdução no processo de tomada de decisões das pessoas que se encontram fora dele.
Aqui a ênfase está no acesso às estruturas políticas e aos processos formalizados de tomar
decisões; e, no âmbito econômico, no acesso aos mercados e à renda que lhes permitam
participar da tomada de decisões econômicas. Tudo isso remete a pensar em pessoas capazes
de aproveitar ao máximo as oportunidades que se lhes apresentam sem, ou apesar das,
limitações de caráter estrutural ou impostas pelo Estado.

– O acesso a processos intangíveis de tomada de decisões, através dos quais as pessoas


tomam consciência de seus próprios interesses e de como estes se relacionam com os inte-
resses dos outros, com o fim de participar da tomada de decisões a partir de uma posição
mais sólida e, de fato, influir nessas decisões.
Concluindo, podemos afirmar que não há desenvolvimento sustentável sem processos efetivos
de empoderamento, mediante os quais se incrementam os ativos e as capacidades dos pobres e
excluídos para participar, negociar, articular e mudar não só sua própria condição mas a do seu
meio, com o propósito de melhorar sua qualidade de vida e a da sua comunidade.
Mas, ao mesmo tempo, há que se levar em conta que os setores empoderados só poderão se
consolidar e exercer um papel positivo à medida que o desenvolvimento for se ampliando e transfor-
mando as raízes e as bases estruturais que tornaram possíveis a pobreza e a exclusão social.
A partir desta perspectiva, tem sentido refletir sobre as estratégias, metodologias e ins-
trumentos de empoderamento que vêm sendo implementados e, à luz de sua análise crítica,
avançar algumas propostas e recomendações que contribuam para revisá-los, melhorá-los
e transformá-los.

48
— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

1.2. Enfoque de empoderamento versus enfoque de direitos?


Do mesmo modo como acontece com o enfoque de empoderamento, diversos atores no
campo do desenvolvimento vêm aplicando um enfoque baseado em direitos. Não é nossa pretensão
aqui fazer uma comparação entre esses dois enfoques para estabelecer qual é o melhor, ou se se
deve adotar um deles, eliminando o outro. Tal como ficou assinalado, o desenvolvimento susten-
tável e a luta contra a pobreza e a exclusão, como componente fundamental do mesmo, são por
sua natureza multidimensionais. Quer dizer, implicam processos de altos níveis de complexidade
que, por isso mesmo, requerem diversas abordagens e enfoques.
A abordagem de desenvolvimento baseada em direitos “é uma estrutura conceitual que se
apóia em padrões e modos de operar voltados à promoção e proteção dos direitos humanos.
Integra normas, padrões, princípios do sistema internacional dos direitos humanos contidos em
tratados e declarações, em planos, políticas e processos de desenvolvimento”.3
Além disso, esta perspectiva baseada em direitos se fundamenta em vários elementos, tais
como: a conexão entre os diferentes direitos, eqüidade, igualdade, prestação de contas em sentido
amplo, empoderamento, participação e a não discriminação e atenção a grupos vulneráveis.
O valor do enfoque baseado em direitos é que parte de uma base ética e moral que confere
a todas as pessoas humanas só pelo fato de serem direitos iguais. Por isso, é um enfoque que
contém e estimula uma vocação democrática.
Sem dúvida, como bem se assinalou, na prática, a realidade atual nos mostra que ao longo
do continente latino-americano e de outras partes do mundo, o que está no centro da prática
social é a violação e o desrespeito aos direitos.
Como aponta Cecilia Iorio, “a fragilidade dos direitos humanos se estabelece quando se
conectam com a realidade. Idealmente, o direito tem um poder ou status para proteger através de
mecanismos de justiça, mas a realidade mostra que a força para sua implementação depende de
que os direitos sejam social e politicamente reconhecidos”.4
A idéia ou perspectiva baseado em direitos se fundamenta no princípio de que toda violação
deve ser evitada e reparada por ações que recuperam os direitos. Porém, as falhas existentes tanto
na prevenção como na reparação não parecem haver encontrado uma solução. Estas falhas estão
vinculadas a dois fatores cruciais:
• Uma permanente inadequação da legislação quanto a mecanismos de controle do poder.
• Um abismo na percepção destes direitos em muitos contextos culturais e políticos.

Como resultado desses dois fatores, é claro que os direitos humanos tal como estão nos
tratados, declarações e outros formatos sofrem de uma falta fundamental de integração com a
vida cotidiana e com os modos do uso ou exercício do poder em todas as sociedades.
Se uma perspectiva baseada em direitos coloca a força no direito mesmo, em sua base ética
e moral, a perspectiva de empoderamento, por seu lado, põe a força naqueles que têm sido
excluídos, nos pobres, nos desempoderados.
A partir da perspectiva do empoderamento, a violação dos direitos humanos sucede porque
os setores desfavorecidos socialmente carecem do poder suficiente para garantir o respeito a seus
direitos ou para exigir a reparação quando estes são violados.

3 IORIO, Cecilia, 2002, p.18.


4 Idem, p.21.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Não obstante, um enfoque excessivamente centrado na questão do poder, que não leve em
conta os direitos inerentes a todas as pessoas humanas, pode conduzir, como já sucedeu ao
longo da história, a caminhos autoritários que não resolvem o problema das desigualdades e do
desenvolvimento humano.
Daí que o enfoque de direitos pode ser visto como complementar ao enfoque de empodera-
mento. Isto começou a se evidenciar com o recente surgimento de interpretações que sustentam
a presença e importância do empoderamento dentro dos direitos humanos. Tais interpretações
vêm ganhando força e buscam articular, e não dissociar, os direitos civis e políticos (direito a ter
voz e direito a ser escutado) com os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
Em suma, não há dúvida de que desencadear processos de desenvolvimento sustentável que
incluam o combate à pobreza e à exclusão requer atores que tenham a capacidade e o poder
suficiente para produzir mudanças profundas na correlação de forças tanto nos níveis locais e
microrregionais, como nos nacionais e mundiais.
Por isso, o empoderamento daquelas pessoas, grupos e setores que vivem na pobreza ou
são excluídos e marginalizados é fundamental e se caracteriza por ser um processo essencial-
mente político. Porém, isto não significa que não existam outros enfoques que o possam
enriquecer e complementar, ainda que jamais devam substitui-lo. Um desses é, sem dúvida, o
enfoque baseado em direitos.

2. Estratégias, metodologias e ferramentas


utilizadas para o desencadeamento de
processos de empoderamento
O conceito de estratégia faz alusão aos caminhos que se devem transitar para que, partindo de
uma situação determinada, se consiga alcançar um ou vários objetivos também pré-determinados,
da maneira mais eficaz e eficiente possível. Toda estratégia, portanto, inclui um ponto de partida,
um ponto de chegada e o caminho que une a ambos.
O ponto de partida geral de uma estratégia de empoderamento é a existência de pessoas,
grupos ou setores sociais que vivem em condições de pobreza ou sofrem de exclusão e carecem
de poder suficiente para conseguir uma situação melhor em seu contexto social. O ponto de
chegada é uma situação em que esses grupos ou setores saíram da pobreza e da exclusão e se
integraram na sociedade como agentes de desenvolvimento.
O desafio que deve enfrentar a estratégia de empoderamento é o que fazer para conseguir
esta mudança, quais são os passos para gerar esse poder em termos de criação das capacidades
das pessoas, grupos ou setores pobres e excluídos e de produzir as transformações necessárias no
meio à sua volta, de modo que sua nova condição seja sustentável no tempo.

2.1. Sujeito e agentes do empoderamento


O primeiro ponto que deve definir uma estratégia é quem ou quais devem levá-la adiante.
Neste sentido, diversas experiências e aportes sobre o empoderamento nos ensinam que este não
pode ser desenvolvido em nome daqueles que devem ser empoderados, que os processos de
empoderamento devem centrar-se necessariamente nas pessoas e grupos desempoderados, em
suas visões, interesses e prioridades. Isto significa que nenhum grupo pode ser empoderado de
maneira sustentável desde fora, dado que as mudanças na consciência e na autopercepção, assim

50
— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

como a construção de capacidades, tanto pessoais como coletivas, são próprias e singulares, de
maneira que ninguém as pode conseguir em nome de outrem.
Por isso, como afirma um analista nicaragüense, fazendo alusão à sua própria experiência
nacional, existem diversos exemplos de projetos e, inclusive, processos políticos que, apoiando-se
principalmente em fatores externos, realizaram ações que pareciam demonstrar empoderamento,
com o aparente beneplácito dos “empoderados”, mas cujos resultados se reverteram tão rápido
quanto desapareceram aqueles fatores externos que os motivaram. Disso conclui que nestas situ-
ações só houve um empoderamento não muito avançado ou definitivamente aparente. 5
As estratégias de empoderamento, portanto, só as são de fato se situam como sujeito do
empoderamento as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos.
Porém, isto não significa que o empoderamento seja uma questão exclusiva dos setores
sociais desfavorecidos. Ao contrário. Devemos recordar que estamos situados no campo do desenvol-
vimento e que se trata de que os grupos ou setores empoderados exercitem o poder adquirido
incidindo positivamente nas dinâmicas de desenvolvimento. Isto só é possível com a intervenção de
outros atores que contribuam na criação de um ambiente que seja favorável para que isso acon-
teça. A mesma situação de desvantagem que os setores pobres e excluídos têm na sociedade evidencia
a necessidade de estabelecer vínculos e alianças com outros agentes que contribuam com estímulos
e ações positivas para a criação de um ambiente que favoreça os processos de empoderamento.
Isto permite situar adequadamente a dimensão e a importância do papel e a contribuição de
agentes externos como catalisadores de processos de empoderamento. Os agentes externos
nunca podem substituir o sujeito da estratégia, mas podem definitivamente contribuir de maneira
fundamental para a construção destes processos.
É, portanto, necessária a ação de outros atores, como governos centrais, governos locais,
organizações da sociedade civil, ONGs e cooperação internacional, que são atores indiscutíveis no
campo do desenvolvimento e que assim como podem favorecer os processos de empoderamento,
também podem obstruí-los e bloqueá-los.
Em outras palavras, uma estratégia de empoderamento deve contemplar a construção de
alianças do sujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores no
campo do desenvolvimento com o propósito de transformar o meio a sua volta e abrir caminho
aos processos de empoderamento.
Aqui entra, portanto, que um componente fundamental das estratégias de empoderamento
é a participação. A participação não é um componente secundário, mas um elemento constitutivo
das estratégias de empoderamento.
É por isso que “muitas análises e investigações de campo relacionam os temas participação,
cidadania e poder com políticas de combate à pobreza”. 6
São muitas e muito diversas as experiências na América Latina e em outras partes do mundo
que vêm mostrando que os processos de participação possibilitam processos de empoderamento
e favorecem o estímulo de políticas e práticas de desenvolvimento que contemplam as necessida-
des das pessoas e grupos pobres e excluídos. Isto será abordado detidamente mais adiante.
Neste sentido, experiências como a aprovação e implementação da Lei de Participação Popular na
Bolívia, a concordância governamental para colaborar com o Serviço de Informação de Orçamento

5 ULLOA, L. F. ¿Empoderamiento de las organizaciones de base desde proyectos de desarrollo?, s/d.


6 IORIO, Cecilia, 2002.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

para a Democracia na África do Sul e o papel desempenhado pela autoridade federal durante o
governo de Kennedy para romper a oposição local à votação dos afro-americanos no sul dos
Estados Unidos demonstram a importância que pode ter a ação do governo nacional na criação
de condições no meio à sua volta que favoreçam processos de empoderamento.
Da mesma forma, o partido político e o governo local têm tido um papel-chave como um
agente facilitador de empoderamento no caso do Orçamento Participativo no sul do Brasil.
Além disso, existem inúmeras experiências de ONGs que, apoiadas por agências de cooperação
internacional, facilitaram processos inovadores e flexíveis de empoderamento que serviram de
base para sua posterior adoção por entidades governamentais e internacionais.

2.2. Espaços de empoderamento


O empoderamento faz referência a produzir mudanças nas relações de poder que afetam
negativamente o desenvolvimento da sociedade em seu conjunto e, em especial, aos setores
sociais em desvantagem. Porém, a própria idéia de desvantagem é relativa em função da presença
de outros setores sociais que detenham cotas maiores de poder em um determinado âmbito
social. Assim, o empoderamento da mulher é relativo ao poder que detenham os homens; o
empoderamento dos pobres é relativo ao poder dos ricos e dos setores médios; e o empodera-
mento das etnias indígenas é relativo ao poder social dos mestiços.
Ao mesmo tempo, todas estas relações de poder não se produzem no abstrato, mas em
espaços sociais concretos, nos quais os diferentes atores sociais e organizações interagem produ-
zindo valores, tomando decisões e alocando recursos.
Devido ao que foi exposto, as estratégias de empoderamento devem se perguntar quais são
os âmbitos sociais onde se cabe incidir, quais as características deles e que oportunidades de
incidir criam para construir novas relações de poder.
Neste sentido, é possível tipificar pelo menos cinco espaços sociais de ação para as estratégias
de empoderamento: a família, a comunidade, o município ou a região, o país e o global. Exporemos
resumidamente a seguir as potencialidades que na nossa opinião oferecem cada um desses espaços.

A família
É o menor espaço de organização social e mostra-se fundamental no estabelecimento de relações
de poder entre gêneros, assim como entre pais e filhos. Daí que as estratégias orientadas à
eqüidade de gêneros, ao apoio à infância e à adolescência e à diminuição da violência intrafamiliar
devem considerar incidir de alguma forma neste espaço social.

A comunidade
É um espaço social mais complexo que a família, mas ainda relativamente homogêneo, no qual
primam as relações estabelecidas pela proximidade física e o fato de que as pessoas compartilham, em
geral, uma situação similar no que se refere ao acesso a recursos e serviços, como a moradia, o
emprego, a água e o saneamento, a educação, a saúde etc.
Durante as décadas de 80 e 90, na América Latina, as organizações comunitárias rurais e
urbanas pobres desempenharam um papel fundamental para resolver um conjunto de serviços
básicos e construir normas de convivência, que resultaram indispensáveis diante da debilidade
histórica do papel social do Estado. A ponto de se poder afirmar que uma boa parte da infra-
estrutura social que existe neste tipo de comunidades se deve mais à autogestão comunitária

52
— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

apoiada pelas ONGs e pela cooperação internacional do que pela ação do Estado. Esta situação é
ainda mais clara nas zonas que foram cenários de conflitos armados onde, diante do virtual
desaparecimento do poder do Estado, as organizações comunitárias demonstraram uma apreciável
capacidade de autogestão, sem a qual não teria sido possível sua sobrevivência.
Estas experiências permitiram que, no mencionado período, se atribuísse uma considerável
importância àquilo que se convencionou chamar de “desenvolvimento comunitário”. Porém, com
o tempo, este espaço de empoderamento demonstrou não só suas virtudes mas também suas
restrições, principalmente no que se refere a sua limitada massa crítica para gerar dinâmicas
sustentáveis de desenvolvimento.

O local e o regional
Durante os últimos anos, o município e a região adquiriram especial relevância na América Latina
como espaços para a implementação de estratégias de desenvolvimento e de empoderamento.
Isto se produziu como resultado de duas megatendências. A primeira delas vem de cima para
baixo e tem relação com a pressão que exercem os organismos multinacionais para descentralizar
o Estado, como meio de torná-lo menos burocrático e mais eficaz, assim como para fortalecer a
fraca governabilidade nos países da região. A segunda tendência corre de baixo para cima e tem
a ver com a crescente pressão da sociedade civil e suas organizações para ganhar maior ingerência
na gestão do Estado através da participação cidadã.
Nesta conjunção se misturam também tendências ideológicas de significado diferente.
Uma de corte neoliberal que aposta na debilidade do poder do Estado e na transferência para a
sociedade civil de uma parte do custo que implica o investimento e o gasto social. Outra, de
caráter popular, vê na descentralização do Estado e na participação cidadã uma oportunidade
para aprofundar os processos democráticos e conseguir maior influência dos setores populares na
definição de políticas públicas.
Em todo caso, a partir do enfoque do desenvolvimento e do empoderamento, o município e,
em menor medida, a região oferecem a potencialidade de serem os menores espaços de ação nos
quais a sociedade civil se encontra com o Estado. Isto significa que os grupos em processo de
empoderamento têm aqui maiores possibilidades de influenciar o estabelecimento de políticas
públicas que levem em conta seus interesses, mas também possibilita empreender iniciativas a
partir dos municípios ou dos governos locais que propiciem processos de empoderamento.

O país
É o espaço tradicional para a formulação e a execução de políticas públicas de caráter macro,
setorial e territorial que constitui o meio fundamental que facilita ou dificulta os processos locais
e comunitários. Além disso, é nos governos nacionais que se concentram os principais recursos
para investir em desenvolvimento.
A implementação de estratégias que propiciam empoderamento no espaço nacional carece,
em geral, da especificidade e da profundidade que permite o espaço local. Porém, pode influenciar
consideravelmente o empoderamento de setores populacionais amplos como as mulheres, a
infância e a adolescência, os trabalhadores rurais sem terra e as etnias minoritárias mediante a
aprovação de marcos jurídicos que defendam os direitos civis destes setores, a criação de meca-
nismos que os façam cumprir e a alocação de recursos que os privilegiem.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

O global
É junto ao local, um dos espaços que adquiriu maior vigência durante os últimos anos como
conseqüência do processo de globalização, da crescente interdependência política entre os Estados e
a evidência cada vez mais clara de desigualdades internacionais, que deram lugar a amplos movi-
mentos sociais e cidadãos como o movimento antiglobalização ou o Fórum Social Mundial.
Porém, a globalização abriu ao mesmo tempo a oportunidade de impulsionar estratégias
voltadas a influenciar grandes decisões que têm um inquestionável impacto sobre o empodera-
mento de grupos sociais nos níveis nacional e local.
Os perigos maiores são a falta de compreensão da relação que existe entre os processos, a
absolutização de alguns espaços e sua conseqüente desvinculação dos outros. Por isso, aqueles
que pensam que não há nada a fazer no terreno local porque tudo vem determinado pelos
processos internacionais e pelas grandes empresas transnacionais, ou os que pensam que a solução
de todos os problemas está nos espaços locais e municipais, não poderão criar estratégias de
empoderamento genuínas.
As estratégias de empoderamento devem situar-se prioritariamente em um desses espaços,
mas devem estar articuladas aos demais.

2.3. Estratégias de empoderamento


As estratégias voltadas para promover ou facilitar o empoderamento dos setores sociais em
desvantagem devem ser orientadas a incidir em duas dimensões:
a. O incremento das capacidades internas.
b. A criação de condições a sua volta que favoreçam os processos de empoderamento.
A efetividade das estratégias de empoderamento voltadas para o desenvolvimento e, conseqüen-
temente, para sua luta contra a pobreza e a exclusão dependerá do grau em que essas duas
dimensões se desdobrem e se articulem.

2.3.1. Estratégias para o fortalecimento de capacidades internas


De acordo com a experiência, podem se identificar pelo menos quatro eixos de ação para fortalecer
as capacidades internas dos grupos sociais em desvantagem:
– o fortalecimento de suas organizações,
– a criação de novos conhecimentos e habilidades,
– o fortalecimento de sua auto-estima e valores e
– a construção de vínculos e alianças com outros setores.

Vejamo-lo mais detidamente:

Fortalecimento organizacional
Diversos autores insistem que o empoderamento possui uma dimensão pessoal, mas também
organizacional. Isto se deve a que a capacidade que têm os setores sociais em desvantagem de
apoiar-se a si mesmos e de influenciar as decisões que se tomam na sociedade depende, em boa
medida, de sua capacidade de unir-se e atuar coordenadamente frente às estruturas de poder
estabelecidas. Porém, não se trata somente do simples fato de criar organizações, mas de conseguir
que estas sejam autônomas, democráticas, inclusivas e influentes.

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— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

Olhando para a história dos países da Europa Ocidental, por exemplo, se vê que as organiza-
ções de massas (sindicais, de consumidores etc) que se constituíram no começo do século passado
desempenharam um papel fundamental no estabelecimento de iniciativas de cooperação grupal e
de um conjunto de direitos políticos e sociais que hoje distinguem as sociedades modernas.
No final do século, estes modelos organizacionais começaram a se esgotar, mas surgiram outros,
como os movimentos de mulheres, os ambientalistas e os da solidariedade internacional, que
também adquiriram grande influência. Na América Latina se constituíram também importantes
organizações sociais que alcançaram menor ou maior influência segundo suas potencialidades
internas e o âmbito nacional que enfrentaram.
Estas experiências, entre muitas, permitem afirmar com bastante segurança que existe uma
forte correlação positiva entre o poder organizacional que adquirem as organizações dos setores
sociais em desvantagem e o nível de desenvolvimento democrático e de inclusão social que alcançam
as sociedades onde atuam.
Durante os últimos anos na América Latina se difundiu consideravelmente a organização
comunitária. Em El Salvador, por exemplo, existem evidências que demonstram que aqueles muni-
cípios onde durante o conflito armado se constituíram fortes redes de organizações comunitárias
(como Tecoluca, Suchitoto e o norte do município de Chalatenango), se enfrentam os desafios do
desenvolvimento local de maneira mais democrática, inclusiva e inovadora que nos municípios
nos quais a organização comunitária é mais incipiente. Isto á válido inclusive quando se comparam
municípios que se encontram governados pelo mesmo partido político.
Mas o fortalecimento da capacidade organizacional dos setores sociais em desvantagem não
deixa de ser problemático.
Uma das debilidades que se apresenta é a dispersão em muitas e pequenas organizações
sociais que, apesar de se encontrarem muito ligadas com sua gente, carecem da força necessária
para influenciar os tomadores de decisão locais, regionais, nacionais e globais.
Outro problema é a pouca capacidade que têm estas organizações de manter sua autonomia
frente ao Estado, os partidos políticos e outras instituições de poder. A experiência demonstra que
a subordinação destas organizações às estruturas tradicionais de poder pode favorecer sua forte
expansão no curto prazo, mas as debilita e desnaturaliza no longo prazo.
O problema da pouca autonomia tem muitas vezes relação com a dificuldade deste tipo de
organizações para financiar seu funcionamento. O apoio financeiro da cooperação internacional
estimulou a autonomia de muitas organizações sociais frente aos poderes estabelecidos, mas
também teve o efeito negativo de desestimular as contribuições dos associados e transformar
algumas organizações de base em fazedoras de projetos, o que gera grandemente novas e, às
vezes muito sutis, formas de dependência.

Fortalecimento e criação de novos conhecimentos e habilidades


Um dos fatores que situam determinados grupos sociais em posição de desvantagem é
terem sido discriminados negativamente na provisão social de conhecimento e de habilidades-
chave para discernir alternativas, criar propostas próprias e manejar seus assuntos com a habi-
lidade que exige um meio que se mostra cada vez mais exigente. Isto tem a ver com o acesso à
educação formal, mas também com um conjunto de habilidades específicas que são necessárias
para se manejar tanto no mercado como na esfera pública. Daí que o empoderamento não pode
passar por cima da criação de conhecimentos e habilidades.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

As campanhas de alfabetização como a que se realizou na Nicarágua durante o período revoluci-


onário, as escolas populares nas zonas de conflito de El Salvador ou a campanha total de alfabe-
tização que se desenvolveu na Índia a partir de 19897 evidenciaram uma incidência maciça no fortale-
cimento das capacidades dos setores sociais em desvantagem para melhorar sua situação. Porém,
estes são empreendimentos que dificilmente podem se realizar sem o envolvimento do Estado.
De maneira mais seletiva, os cursos de formação e capacitação que realizam as ONGs, algumas
universidades e as próprias organizações sociais para dirigentes nacionais e locais apresentam
uma enorme quantidade de exemplos que demonstram sua incidência positiva na elevação da
capacidade de empoderamento que têm os setores sociais em desvantagem.
O problema das atividades de formação e capacitação é seu alto custo e o tempo que leva
para alcançar níveis de acumulação que permitam dar saltos de qualidade. Outro elemento que
também se deve levar em conta é a baixa qualidade em muitas atividades desse tipo, sejam
cursos, oficinas ou seminários.
Todavia, estamos diante de um campo em que se devem investir recursos humanos, técnicos
e financeiros e no qual é necessário avançar permanentemente no aperfeiçoamento de conteúdos
e metodologias.

Aumento da auto-estima e transformação de valores


Um dos principais mecanismos que se criam socialmente para justificar a exclusão social é
argumentá-la ideologicamente, com preconceitos que subestimam o valor dos setores pobres e
excluídos, sejam estes mulheres, classes sociais ou grupos étnicos. Mas para que o sistema de
exclusão funcione, é necessário que os setores desempoderados se assumam estes preconceitos
que paradoxalmente os desfavorecem. Por esta razão, as estratégias de empoderamento devem
contribuir por um lado, para mudar estes valores nos setores desempoderados e, por outro, para
transformar os valores predominantes na sociedade.
Os projetos orientados para a eqüidade de gênero, relativamente recentes numa perspectiva
histórica, estão demonstrando que a mudança na auto-estima dos participantes é o resultado mais
destacado por eles e que esta mudança tem um importante efeito desencadeador de outras transfor-
mações positivas nas relações familiares e comunitárias. Neste sentido, as ações genéricas têm muito
que contribuir para as estratégias e metodologias de empoderamento de outros setores sociais.
O trabalho no campo dos valores, tanto dos setores em desvantagem como da sociedade em
seu conjunto, é algo que, em geral, tem pouca presença nos projetos de desenvolvimento, o que
determina seu pouco desenvolvimento teórico. Isto é grave num contexto mundial em que o valor
da “solidariedade” perdeu peso frente à “competitividade” e em que as relações humanas tendem
cada vez mais a serem apreciadas como “relações de mercado”.

Influência e alianças
A experiência parece demonstrar também que é fundamental o fortalecimento da capacidade
dos setores pobres e excluídos de influir nos tomadores de decisão, de modo que seus interesses
e propostas sejam levados em conta.
Isto significa desenvolver capacidades de mobilização social e luta reivindicativa de maneira
ajustada às condições de cada sociedade e momento político, mas também estabelecer alianças
com outros setores-chave para criar correlações sociais e políticas favoráveis. Significa também

7 SEN, Gita: El empoderamiento como un enfoque a la pobreza, http://www.dawn.org.fj/publications/ losdesafios.html

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— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

desenvolver capacidades mais sutis de criação de vínculos, lobby e influência sobre os políticos
com poder de decisão no nível local, nacional e global.
O que dissemos acima implica necessariamente a construção de propostas de desenvolvi-
mento. Uma das capacidades dos grupos de poder que mais se destacam consiste em gerar
propostas que na realidade privilegiam seus próprios interesses, embora sejam apresentadas e
justificadas como de interesse para toda a sociedade. Os setores carentes de poder raramente têm
esta capacidade devido ao fato de que suas propostas geralmente se expressam em forma de
plataformas reivindicativas pouco fundamentadas que, se expressam bem seus interesses de setor,
não chegam a transmitir o motivo pelo qual representam mais um lucro que um custo para o
conjunto da sociedade.

2.3.2. Estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento


As estratégias para a criação de um meio favorável ao empoderamento dos setores em desvantagem
social não se encontram isoladas das orientadas a fortalecer suas capacidades internas, mas sim se
inter-relacionam mutuamente. Isto significa que quanto maiores forem as capacidades internas dos
setores em processo de empoderamento, tanto maiores serão suas possibilidades de influenciar o
meio ao redor. Mas também o inverso é verdadeiro: quanto mais favoráveis forem as condições do
meio, tanto maiores serão as possibilidades de incrementar as capacidades internas destes setores.
Fazendo uma leitura da experiência latino-americana dos últimos anos, as estratégias voltadas
para modificar o meio visam a promover:
– a descentralização do Estado e o desenvolvimento local,
– a participação cidadã e a atuação em rede,
– a transparência e o acesso à informação compreensível,
– a criação de serviços de apoio,
– a geração de mudanças na cultura institucional, particularmente no Estado, e
– a influência nas alocações orçamentárias do Estado.

Descentralização do Estado e desenvolvimento local


A descentralização do Estado e o desenvolvimento local são duas políticas de Estado que
estão em moda e podem representar uma oportunidade considerável para o empoderamento dos
setores sociais pobres e excluídos.
A descentralização do Estado pode permitir às comunidades pobres se acercarem do
poder de decisão e de recursos e fortalecerem sua capacidade de influenciar os poderes públicos.
O desenvolvimento local permite também pensar e realizar o desenvolvimento a partir de um
âmbito mais próximo das pessoas e desde uma perspectiva na qual os pobres e excluídos se
convertam em protagonistas e não sejam só demandantes ou beneficiários.
Neste sentido, a Lei de Participação Popular e Descentralização da Bolívia (1989) e a aplicação de
seus conteúdos são um bom exemplo de uma mudança radical no sistema jurídico e nas políticas
de Estado que ampliou as possibilidades de empoderamento. O mesmo se pode dizer da influência
positiva que teve o incremento das transferências do governo nacional às municipalidades de
El Salvador (1997), correspondente a 6% da renda bruta do primeiro; e das leis de Descentrali-
zação do Estado, Código Municipal e de Conselhos de Desenvolvimento que recentemente foram
aprovadas na Guatemala.
Porém, a descentralização do Estado não realizada ou mal aplicada também pode significar
uma ameaça para os setores e territórios desempoderados, já que pode acarretar conseqüências

57
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

como a transferência do custo dos serviços públicos aos pobres, aprofundar as atuais disparida-
des territoriais e, inclusive, fortalecer as elites locais.

A participação cidadã e a atuação em redes


Na mesma linha de pensamento se pode afirmar que a participação cidadã é a condição que
pode permitir que a descentralização do Estado não se limite a beneficiar as elites locais, já que
abre as portas para que os setores desempoderados acedam ao poder de decisão e aos recursos
transferidos. Neste sentido, o Orçamento Participativo de Porto Alegre, hoje replicado em numerosos
municípios da América Latina, é o exemplo mais radical da oportunidade que representa a participa-
ção cidadã para o empoderamento dos setores que foram tradicionalmente excluídos. Mas existem
também outros exemplos que se experimentam em numerosos países, como os comitês ou conselhos
de desenvolvimento local, os exercícios de planejamento local participativo, os comitês de moni-
toramento e controle social etc., que permitem depositar esperanças neste tipo de mecanismos
de participação cidadã como meios facilitadores de processos de empoderamento.
A atuação em redes e as alianças para o desenvolvimento territorial permitem também que
os setores tradicionalmente excluídos incorporem sua própria perspectiva na construção de acordos
e vínculos de cooperação com outros setores sociais. Porém, a utilidade destas formas de relação
social para o empoderamento dependerá em boa medida da capacidade que as organizações
populares tenham de fazer valer seus próprios interesses e formular iniciativas que sejam atrativas
para os outros setores. Neste sentido, os Fundos para o Desenvolvimento Local que se constituíram
em alguns municípios salvadorenhos entre o setor empresarial, o governo local, as organizações
comunitárias e algumas ONGs são uma experiência interessante de construção de alianças que
inclui as organizações populares como parceiras.
Mesmo que o âmbito local seja especialmente favorável para promover a participação cidadã,
esta não deve se limitar ao mesmo, dando as costas ao fato de que um conjunto de decisões,
geralmente as mais importantes, se realizam nos âmbitos nacional e global. A experiência sul-
africana de promover a participação cidadã na elaboração do orçamento nacional e as cada vez
mais recorrentes iniciativas cidadãs para promover mudanças legais ou de políticas nacionais que
estão se desenvolvendo na América Latina parecem indicar uma tendência em ascensão. Por outro
lado, a participação cidadã nas questões globais como os Tratados de Livre Comércio (TLC), o
Plano Puebla-Panamá e as regras do comércio parecem um imperativo que precisa encontrar vias
de realização nos anos vindouros.

Acesso à informação compreensível


O acesso à informação é outra questão-chave para o empoderamento dos grupos sociais, já
que deste depende sua capacidade de controlar e exercer influência sobre o Estado no campo
político e social, e de aceder a mercados no campo econômico.
Durante os últimos anos foram realizadas algumas iniciativas interessantes, mesmo que ainda
embrionárias, destinadas a tornar pública certa informação do Estado via internet e os meios de
comunicação de massas. Porém, como se afirmou numa oficina sobre empoderamento realizada
no Peru, “não é muito útil tornar a informação disponível se as pessoas não a podem entender.
O verdadeiro desafio, então, consiste não tanto em torná-la disponível, mas sim em fazê-la
comunicável e compreensível”.8.

8 Oficina Internacional sobre Participação e Empoderamento: http://www.bancomundial.org/ sociedadcivil/lessons.html, p.12.

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— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

Neste sentido, existem algumas experiências como o Orçamento Participativo em várias


cidades brasileiras; os repórteres populares na Índia; a análise, disseminação e educação para
compreender o orçamento na África do Sul; e a recente montagem de um sistema de informação
à cidadania na prefeitura de San Salvador, El Salvador, que demonstram que este é um campo
promissor para as estratégias de empoderamento.

Acesso a serviços de apoio


No mundo moderno se fala cada vez mais da importância dos serviços de apoio às empresas
como um fator-chave de competitividade. Porém, se o acesso a serviços apropriados é importante
para as empresas, é ainda mais para os setores populacionais com menor poder na sociedade.
As ONGs se destacaram neste papel durante os últimos anos, oferecendo tipos de serviços
diferenciados para estes setores, de modo que, em muitos casos, se converteram em parceiras
necessárias para a cooperação internacional. Existem também organizações sociais que oferecem
serviços apropriados para seus associados.
Entre as experiências de serviços de apoio que favorecem processos de empoderamento,
cabe destacar a prestação de serviços legais, a prestação de serviços para facilitar o acesso a
mercados de produtores rurais e micro empresários e os serviços de capacitação.
Porém, nesses casos, o importante para o empoderamento não é somente o serviço em si,
como propõem algumas ONGs ou programas governamentais, que vêem a assistência aos grupos
vulneráveis com uma ótica de mercado ou assistencialista, mas que esta atividade se realize forta-
lecendo o protagonismo e a criação de capacidades autogestoras dos setores desempoderados.
Isto é uma questão de filosofia, cultura e metodologia institucional.

2.4. Princípios metodológicos


Ao analisar os diferentes casos de empoderamento, se descobre que não existe uma seqüência
metodológica única, devido à diversidade de estratégias e âmbitos em que estas se implementam.
Porém, é possível sim identificar a aplicação dos princípios metodológicos que se descrevem a seguir:

Envolvimento do sujeito
Todos os projetos bem-sucedidos voltados para a criação de capacidades internas, e boa parte
daqueles voltados para criar condições favoráveis, buscam o maior envolvimento possível dos
setores que se pretende apoiar, ainda que a iniciativa não tenha partido destes. O que significa
dizer que os grupos com os quais se trabalha são concebidos como sujeitos da mudança, mais do
que como “clientes” ou “beneficiários” da ação do projeto.

Respeito às diferentes naturezas e papéis


Nos processos de empoderamento internacional atuam diversos setores e atores, cada um com
sua própria natureza e com um papel específico de acordo com ela. Respeitar essas naturezas e
papéis a fim de que nenhum substitua ou desloque o outro é fundamental para o êxito.

Gradação
A maior parte dos projetos começou com iniciativas simples que se foram complexificando
progressivamente, vale dizer, que avançaram do simples para o complexo.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Aprendizagem e inovação
Alguns projetos de empoderamento, sobretudo os que são apresentados em foros públicos, são
sumamente inovadores, por parecerem que foram inventados de repente. Porém, ao analisar global-
mente a realidade se descobre que a maioria dos projetos surge como réplica de outros, aos quais
se introduziram pequenas inovações que produzem saltos de qualidade.

Diferenciação
A maioria das iniciativas voltada para o empoderamento se orienta num princípio de iniciar nos
setores mais avançados ou conscientes da população-alvo que, com o tempo, vão agregando
setores mais amplos, mas raramente se chega a comprometer toda a população. Dá a impressão
de que a metodologia se poderia resumir em “atuar com os avançados, para ganhar os interme-
diários e arrastrar os atrasados”.

Propositividade
Outra característica metodológica das iniciativas empoderadoras parece ser a busca em elaborar
propostas de solução antes de assinalar problemas ou carências.

2.5. Ferramentas
Existe um grande número de ferramentas que se utilizaram durante os últimos anos para
tornar viáveis as estratégias de empoderamento que têm sido desenvolvidas em diferentes contextos.
A seguir apresentamos algumas:

Técnicas participativas de planejamento


Estas técnicas têm sido desenvolvidas com muitas variações devido à ampla difusão tida pelo
planejamento participativo local. Entre elas se encontram desde a metodologia conhecida como
ZOP e adaptações do Marco Lógico, especialmente apropriadas para identificar projetos, até adap-
tações para o planejamento estratégico desenvolvido por Carlos Mattos, mais apropriadas para
planejamentos de caráter estratégico.

Técnicas de comunicação
Como se assinalou anteriormente, a comunicação é chave para trabalhar os valores nos setores
pobres e excluídos e na sociedade civil, para tornar pública e compreensível a informação sobre o
Estado e o acesso aos mercados, assim como para difundir as propostas voltadas para alcançar
mudanças nas condições políticas e econômicas da sociedade. Porém, foi pequeno o avanço neste
sentido, se comparado ao alcance adquirido pelos meios de comunicação de massas, que estão
mais voltados para a alienação e a desinformação que ao empoderamento.

Técnicas para influência e lobby


As técnicas de influência e lobby são relativamente recentes, mas adquiriram uma grande impor-
tância para aumentar a influência da sociedade civil nos grupos de poder e naquelas instâncias
onde se decidem as políticas públicas. Estas técnicas se destinam, por um lado, à construção de
propostas e à busca de apoio social e político para as mesmas; e, por outro, a identificar os
caminhos, formas e mecanismos para levá-las adiante. Isto inclui para os grupos excluídos e
pobres o crescente conhecimento dos centros de poder e a lógica com que funcionam e decidem.

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— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

Técnicas de resolução ou transformação de conflitos


Dado que os processos de empoderamento são sempre altamente conflituosos, cresce cada vez
mais a preocupação em estudar a natureza do conflito e as formas de compreendê-lo, analisá-lo,
gerenciá-lo e encontrar soluções para ele. Por isso, vêm sendo desenvolvidas mais e melhores
técnicas não só para conhecer e gerenciar os conflitos, mas também para resolvê-los ou transformá-
los, de maneira que se contribua para a consolidação do empoderamento. Porém, uma tarefa
pendente é que os próprios sujeitos principais dos processos de empoderamento sejam aqueles que
conheçam e dominem estas técnicas.

Intercâmbios de conhecimentos e de experiências


O intercâmbio de experiências e de conhecimentos aumentou consideravelmente durante os últimos
anos entre os profissionais do desenvolvimento. Não obstante, ainda são escassas as atividades
deste tipo que envolvem diretamente os sujeitos das estratégias e das ações de empoderamento.
A ampliação deste instrumento poderia contribuir consideravelmente para estabelecer sinergias
que potencializem a aprendizagem e a inovação no campo do empoderamento.

Foros de análise, reflexão e debate


A experiência se encarregou de mostrar que o intercâmbio de experiências não é suficiente para
elevar o nível de reflexão sobre os desafios que coloca o desenvolvimento. Pode-se afirmar inclu-
sive que durante os últimos anos este nível de reflexão diminuiu, concentrando-se mais na busca
de receitas de sucesso que em análises profundas e no contraste de idéias e propostas. Isto
constitui uma ameaça, lamentavelmente pouco tangível, para os processos de empoderamento e
desenvolvimento. Daí ser imprescindível promover mais e melhores atividades deste tipo.

Sistematização de experiências
A maioria dos projetos de desenvolvimento que se realizam não é sistematizada por seus protago-
nistas, de maneira que se perde muito da riqueza das lições que produz, sejam êxitos ou fracassos.
Isto se deve em parte à crescente escassez de recursos e tempo para a execução de projetos, assim
como à falta de metodologias e hábitos de sistematização por parte dos profissionais do desenvolvi-
mento. Porém, são evidentes a necessidade e a urgência de ampliar os esforços deste tipo para
elevar a qualidade do trabalho dentro dos processos de empoderamento e para se apropriar das
lições que eles vão assumindo.

Estudos e investigações
Os estudos e investigações a partir de e voltados para os processos de empoderamento ainda são
escassos. Porém, para que os setores em desvantagem possam realizar propostas para a sociedade é
cada vez mais imprescindível que vão além de suas plataformas reivindicativas e consigam contra-
balançar o domínio que exerce o pensamento dos grupos hegemônicos. A construção destas
ferramentas é estratégica para os processos de empoderamento.

Cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formação


e a capacitação dos atores
Sua importância e seu papel já ficaram assinalados no ponto anterior.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

3. Recomendações à ActionAid para a


análise e o desenvolvimento de estratégias
e metodologias de empoderamento
Um aspecto central no momento de fazer recomendações é precisar o sujeito das mesmas, vale
dizer, a quem se fazem tais recomendações. Em outras palavras, quem se espera que as ponha em
prática. Neste caso, o destinatário é a ActionAid.
Tendo presente isto e tudo o que foi colocado anteriormente, alguns aspectos e componentes
para o desenvolvimento de estratégias, metodologias e instrumentos de empoderamento são:

3.1. Que fazer?


Sugere-se:
• Partir de uma delimitação conceitual de empoderamento que, mesmo que se mantenha
aberta a enriquecimentos e aprimoramentos posteriores, permita um horizonte que dê
sentido, marco e suporte às diversas estratégias, metodologias e instrumentos.

De acordo com o que foi colocado neste trabalho, o empoderamento não é um fim em si
mesmo. Refere-se a processos vinculados medular e vertebralmente ao desenvolvimento e,
nessa medida, à redução substantiva da pobreza e da exclusão.

Em conseqüência, as estratégias de empoderamento têm como ponto de chegada não só


sujeitos empoderados, que conseguiram romper sua condição de pobreza e exclusão, mas
sujeitos que exercem esse poder adquirido em dinâmicas de desenvolvimento que impactam
positivamente e de modo crescente e sustentável a qualidade de vida deles e dos demais
setores da sociedade.

• Ter presente, em todo momento, que os sujeitos do processo de empoderamento são os


setores desempoderados, mas que este processo demanda o envolvimento de outros atores-
chave como os governos central e locais, setores organizados da sociedade civil e da
empresa privada.

Neste marco, é indispensável conseguir que as grandes necessidades e reivindicações dos


grupos pobres e excluídos não fiquem somente na formulação de plataformas ou pacotes de
demandas (como aconteceu com muitos sindicatos, associações de agricultores e movimen-
tos rurais em diferentes países da América Latina), mas que se convertam em propostas de
transformações do Estado e da sociedade que também beneficiem o coletivo e os demais
setores, convertendo nos únicos perdedores do processo aqueles pequenos grupos que
fizeram da concentração excludente da riqueza e do poder seu fim supremo e exclusivo.

• Combinar de maneira profunda e permanente, ao longo de todos os passos e momentos da


estratégia, as duas dimensões dos processos de empoderamento:
– O aumento das capacidades internas dos setores pobres e excluídos;
– A criação de condições que favoreçam os processos de empoderamento destes setores.
• Mesmo que os processos de empoderamento devam priorizar e enfatizar uma dimensão,
econômica (mercados) ou política (Estado), devem ser impulsionados de maneira multidi-
mensional e integral. Não existe um processo de empoderamento genuíno que seja
unidimensional.

62
— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

• Selecionar, com base em critérios claros, os espaços desde onde se pretende apoiar os
processos de empoderamento.

À luz da situação atual nos países da América Latina e tomando por base as lições apren-
didas nos últimos 10 anos, é recomendável privilegiar os espaços locais, tendo o município
como ponto de partida, dado que ali, pela primeira vez, se encontram os atores funda-
mentais dos processos de empoderamento com o Estado e o governo.

Isto significa que os grupos em processo de empoderamento têm ali maiores possibilidades
de influenciar o estabelecimento de políticas públicas e que seus interesses, demandas e
propostas sejam levadas em conta. Mas também é possível empreender iniciativas a partir da
municipalidade ou dos governos locais que propiciem processos de empoderamento.

A partir dos espaços locais, as estratégias de empoderamento devem estar articuladas e se articu-
larem aos demais espaços: a comunidade e a família, desde baixo, o país e o global desde cima.

3.2. Como fazer?


• Tomar a decisão e criar as condições para se envolver como parceiro externo estratégico.
Ser parceiro implica compromisso e responsabilidade. Supõe um envolvimento ativo, siste-
mático e criativo nos processos. Trata-se de um ator que aporta e cuja participação agrega
valor em termos quantitativos e qualitativos. Por isso é estratégico. Externo faz alusão à sua
natureza e ao papel que desempenha. Destaca que não é o protagonista principal, mas que
sem sua presença o processo pode seguir adiante, que nunca deve substituir aquele e que
muito menos deve ser o que marca o ritmo do processo, mas sob nenhum ponto de vista é
sinônimo de alheio ou de passivo.

Envolver-se nesta condição implica fazê-lo com perspectiva de médio e longo prazo. Isto não
contradiz, mas destaca o sentido de urgência de que os processos de empoderamento
deslanchem e avancem.

Concentrar e não diluir esforços e recursos. Comprometer-se seriamente com processos e


estratégias de empoderamento requer esforços e recursos concentrados. Estamos falando de
mudanças profundas e estáveis na distribuição e no exercício do poder. A menos que se
conte com recursos humanos, institucionais e financeiros em grande escala, isto não se pode
fazer participando simultaneamente em demasiados processos e em muitas alianças estra-
tégicas. Por isso, se recomenda investimento concentrado, seleção cuidadosa de poucos
parceiros, mas com importância estratégica. Não tem mais impacto nem maior incidência
aquele que participa em mais processos, mas o que seleciona e participa melhor.

Pôr os recursos da ActionAid em função dos processos, dado que sua natureza de agência
internacional pode contribuir, ao comprometer-se com processos nacionais ou locais, a uma
tomada de consciência gradual sobre a necessidade e utilidade de uma perspectiva global
adequada, que contemple também as questões do poder.

Isso significa que a ActionAid não deve reduzir seu papel a um mero apoio financeiro, mas
combiná-lo com apoio técnico e profissional, contribuir para a geração de espaços de encontro
entre atores do processo, para estender pontes, promover intercâmbios de conhecimentos
e experiências, criar condições para alianças e ações conjuntas.

63
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Também significa se deixar impregnar pelos processos concretos de empoderamento. Um dos


aspectos para medir a profundidade e o alcance do compromisso da ActionAid é o quanto
aqueles o impactam, o quanto o impulsionam a mudanças, ajustes e readequações a fim de
desempenhar um papel que cada vez mais contribua melhor em termos qualitativos. Isto
demonstra o quão sensível é a organização aos processos em que se envolve.

• Partindo dos espaços selecionados para atuar, identificar de fato o sujeito do empoderamento,
isto é, as pessoas e grupos ou setores desfavorecidos, pobres e excluídos, no marco de uma
análise das formas concretas de exclusão, de distribuição do poder e de seu exercício naquele
espaço em que se quer trabalhar, seja este um país, uma região ou uma localidade.

• Identificar os outros atores que podem contribuir para criar um meio favorável já que, para
que o processo de empoderamento se realize com êxito e seja sustentável, é necessário saber
quais são aqueles setores, forças ou organizações com quem os setores pobres e excluídos
podem estabelecer vínculos e alianças, dado que com seu peso e capacidade podem ajudar
na criação de um meio que favoreça os processos de empoderamento.

• Redimensionar a importância, natureza e papel dos diagnósticos:

Os dois passos anteriores implicam um diagnóstico do qual devem participar os próprios


atores. Não é um trabalho de consultores externos. Em todo caso, o papel dos consultores
deve ser o de facilitar o processo de diagnóstico, que deve ser já o primeiro passo da estra-
tégia. Sua primeira pedra. E é preciso assegurar que seja sólida. É importante conceber o
diagnóstico como uma primeira fase de aprofundamento e ampliação de conhecimento e
consciência, isto é, de empoderamento.

O diagnóstico como ponto de partida do processo de empoderamento é, por isso, necessa-


riamente participativo, de modo que se faz desde dentro e desde baixo.

O diagnóstico deve ser dinâmico e permanente. Um processo de constante ampliação do


conhecimento e de ir registrando as mudanças e os impactos do empoderamento.

• Promover a participação da sociedade civil e a construção de alianças:

Aqui entra como componente fundamental a participação que, como já assinalamos, é um


elemento constitutivo das estratégias de empoderamento. Trata-se de participação crescente
dos pobres e excluídos, assim como de outros setores e forças da sociedade civil, nos proces-
sos de tomada de decisão que tem a ver com formulação e implementação de políticas
públicas seja no nível local, regional ou nacional.

Junto a isto, a estratégia de empoderamento deve contemplar a construção de alianças do


sujeito das mesmas, os pobres e excluídos, com a mais diversa gama de atores no campo do
desenvolvimento, com o propósito de transformar o meio e abrir caminho aos processos de
empoderamento.

• Promover espaços e formas diversas e articuladas para a formação e a capacitação dos sujeitos
que impulsionam o processo e as estratégias de empoderamento. Aqui podem desempenhar
um papel central instâncias governamentais e não-governamentais, assim como universidades
e centros acadêmicos.

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— METODOLOGIAS E FERRAMENTAS PARA IMPLEMENTAR ESTRATÉGIAS DE EMPODERAMENTO —

• Promover estratégias e processos que contribuam para modificar o meio, gerando condições
favoráveis ao empoderamento, à redução da pobreza e da exclusão e ao desenvolvimento
sustentável. Entre eles:
– Descentralização do Estado;
– Institucionalização da participação cidadã e da articulação em redes;
– Instalação de sistemas de informação transparente e compreensível em todos
os níveis de governo;
– Geração de mudanças na cultura institucional, tanto do Estado como da sociedade civil; e
– Influência nos orçamentos no nível nacional e local.

• Estabelecer critérios e indicadores que permitam medir se um processo de empoderamento


avança e vai na direção do desenvolvimento.

3.3. Com que ferramentas fazer?


Os processos, estratégias e metodologias de empoderamento requerem sem dúvida a utilização
de certos instrumentos ou ferramentas básicas. Considerando o que já foi colocado antes e os
processos e experiências em curso na América Latina, pode se concluir que as mais importantes e
efetivas são:
• técnicas participativas de planejamento;
• técnicas de resolução ou transformação de conflitos;
• técnicas de comunicação;
• técnicas e instrumentos de difusão: audiovisuais;
• técnicas para a influência e o lobby;
• intercâmbios de conhecimentos e de experiências;
• sistematização de experiências;
• estudos e investigações;
• estudos comparativos de processos e/ou experiências;
• foros de análises, reflexão e debate; e
• cursos, oficinas e seminários para fortalecer a formação e a capacitação dos atores.

Para terminar, é importante destacar que cada um destes instrumentos tem sua natureza
própria, seu papel e seu valor. Porém, eles ganham maior força e alcance quando são vistos como
peças de uma caixa de ferramentas e, conseqüentemente, são utilizadas de maneira combinada
por uma mesma estratégia, dentro de um mesmo processo de empoderamento.

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ULLOA, Luis Felipe. ¿Empoderamiento de las organizaciones de base desde proyectos


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66
Empoderamento, teorias
de desenvolvimento
e desenvolvimento local
na América Latina
Enrique Gallichio1

O presente trabalho procura avançar na discussão de três temas:


• Uma análise dos modelos de desenvolvimento vigentes na América Latina nas últimas
décadas, seus resultados e conclusões.

• As implicações das teorias do poder e do desenvolvimento na América Latina e no Caribe.


As principais concepções, evolução, tendências, debates e estado da arte sobre as mesmas.

• Alguns elementos de busca e construção de alternativas, formulação de proposta(s) e


recomendações concretas.

Para desenvolver o primeiro tema, nos basearemos na análise dos paradigmas do desenvolvi-
mento que inclui Arocena (1995). Assim, avançamos sobre as principais implicações da discussão
do desenvolvimento num contexto de globalização.
Em relação ao segundo tema, vinculado às teorias do poder, nos baseamos fortemente nas
contribuições de Pierre Bourdieu, sobretudo no que diz respeito a sua forma de conceber as
práticas sociais, a dinâmica dos campos e as formas de fazer e sentir por parte dos atores.
Também nos apoiaremos em alguns aspectos da obra de Michel Foucault.
No segundo bloco se afirma a importância do desenvolvimento local como forma de ver e de
atuar neste contexto. As principais teses do trabalho assinalam que os diferentes modelos/relações
de poder tomam corpo e se materializam em nossas sociedades de diferentes maneiras. No que
diz respeito aos processos de empoderamento, o âmbito local surge como o meio mais relevante
para dar-lhes corpo.
O desenvolvimento local será tomado como eixo numa perspectiva não localista, que assume
as interações e as mútuas determinações local-global.
A importância de discutir os paradigmas do desenvolvimento e do poder se dá fundamentalmente
no papel que cada um deles atribui aos atores. Os processos de empoderamento devem estar forte-
mente ligados ao território, este entendido como o contínuo entre identidade, história e projeto.
Enquanto alternativas, esta forma de ver o desenvolvimento local somada à perspectiva da
análise e do combate à exclusão social são as dimensões mais relevantes, na medida em que são
capazes de discutir as mútuas determinações entre ator e sistema.

1 Sociólogo, Claeh (Centro Latino-Americano de Economia Humana), Uruguai.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

1. Teorias do desenvolvimento
na América Latina
Portes2 assinala que “à medida que nos aproximamos do fim do milênio, as persistentes desigual-
dades econômicas e sociais tomaram um rumo inesperado: deixa-se de realizar esforços para
reduzir estas desigualdades e reconhece-se sua permanência, e até sua funcionalidade, para o
desenvolvimento da economia global. Neste contexto, a sociologia do desenvolvimento parece ter
perdido muito de seu fundamento, devido ao predomínio do enfoque orientado para o mercado
e a disposição dos governos para seguir essa perspectiva”.
O mesmo autor analisa os pontos fortes e as limitações de duas das principais teorias latino-
americanas do desenvolvimento: a da modernização e a da dependência. Mais adiante analisaremos
as implicações do paradigma neoliberal, se é que se lhe pode chamar desta forma.

1.1. As teorias “latino-americanas” do desenvolvimento

A modernização, o desenvolvimentismo
Nesta perspectiva, segundo a análise de Cardoso: 3 “Se em algo se baseou a perspectiva
desenvolvimentista, pelo menos a que se elaborou na América Latina, foi precisamente na capaci-
dade de identificar problemas, tentar superar obstáculos e abrir caminhos para a acumulação de
riqueza e para que se pudessem compartilhar os frutos do progresso técnico.” E segue: “Se houve
uma instituição na qual nossos reformadores iluministas tiveram fé, foi no Estado.” Assim, Cardoso
ressalta que a preocupação central destes autores (Prebisch, a Cepal e também, em seu primeiro
momento, Furtado, Sunkel, Paz) não era uma teoria de desenvolvimento, mas sim dar uma expli-
cação às desigualdades entre economias nacionais que vinham se acentuando através do comércio
internacional. Isto se opunha fortemente às expectativas da economia neoclássica, que previa
uma tendência à igualação relativa da remuneração dos fatores de produção.
Em suma, a teoria desenvolvimentista impulsionada pela Cepal negava a importância do
comércio internacional como promotor de oportunidades iguais, incorporando à discussão fatores
de cunho institucional e estrutural situados para além do mercado. Insistia-se, portanto, na tomada
de medidas políticas para permitir que a racionalidade técnica resultasse num progresso para as
nações e os estratos sociais mais prejudicados.
Neste marco, como se ressaltou, o ator principal era o Estado, a partir da criação de “agências
públicas de desenvolvimento”, da promoção do investimento em tecnologia e da necessidade de
expandir os mercados internos.
Como Cardoso demonstra, a crítica a estas políticas veio da direita e da esquerda. Mostra que
para a direita, as teses cepalinas seriam “erros grosseiros ou argumentos maliciosamente usados
pelos que, sendo na verdade contrários ao sistema capitalista, preferiam iniciar a batalha por
partes: primeiro propunham quimeras, como a industrialização e o estatismo, para depois abrir o
jogo diretamente a favor do socialismo” (Cardoso, 1980). A crítica da esquerda argumentava que as
teorias do desenvolvimento obscureciam o principal: que não há desenvolvimento sem acumulação
de capital e que esta não é mais que a expressão de uma relação de exploração de classes.

2 PORTES, Alejandro, 2001.


3 CARDOSO, F. H, 1980.

68
— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

Este enfoque é ainda bastante vigente em vários de nossos países, nos quais se derivou
algumas vezes para modelos populistas e outras, para modelos autoritários.

O enfoque da dependência
Diversos autores, inclusive alguns dos assinalados dentro do modelo desenvolvimentista, come-
çam a questionar os principais pontos da teoria da modernização. A partir deste ponto de vista
alternativo, Portes destaca que “a modernização não era outra coisa senão o verniz ideológico do
capitalismo ocidental, cujas incursões no resto do mundo geravam paralisação permanente”
(Portes, 2001). Autores como Frank ou Baran começam a defender a tese do “desenvolvimento do
subdesenvolvimento”, para a qual o subdesenvolvimento é um fenômeno ativamente manejado
em detrimento dos produtores de bens primários e dos Estados mais vulneráveis. Ao mesmo
tempo, na América Latina, surge vigorosamente a escola da dependência (Cardoso e Faletto,
Sunkel, Furtado). Portes ressalta: “Com suas raízes teóricas firmemente plantadas na economia
política marxista, os escritos sobre a dependência ignoraram o peso de ideologias e valores
culturais e responsabilizaram as corporações multinacionais pela pobreza do Terceiro Mundo”
(Portes, 2001).
Cardoso assinala que o enfoque da dependência não enfatizou só a “dependência externa”,
mas também a análise dos padrões estruturais que vinculam, assimétrica e regularmente, as
economias centrais com as periféricas. Introduzia-se o conceito de dominação, que destacava que
um desenvolvimento autônomo não era possível e que a única saída era o socialismo. É neste
sentido, na crítica à possibilidade de um desenvolvimento nacional, que surgem tantos autores
como Santos, Quijano, Marini, Cardoso e Faletto. A dominação, definitivamente, era uma domi-
nação entre classes e não entre nações.
Com relação aos atores para superar esta situação, aí é onde provavelmente se encontra a
principal debilidade dos teóricos da dependência. Cardoso conclui destacando que “em lugar do
Estado-reformador dos cepalinos, apresentamos uma imagem da sociedade reformada, mas não
levamos às últimas conseqüências as duas questões-chave que se percebiam no horizonte: que
tipo de sociedade reformada e por quem?” (Cardoso, 1980).
Portes enfatiza que é necessário, na busca de alternativas, abandonar os debates “moderni-
zação versus dependência” e ir além de declarações históricas gerais.

1.2 O ajuste neoliberal


“Em meados dos anos 80, uma equipe de economistas neoclássicos produziu o equivalente
a um ‘manifesto capitalista’ para o desenvolvimento da América Latina” (Portes, 2001). Da crítica
“ortodoxa” ao modelo de substituição de importações, proclamaram um modelo novo que
conduziria ao “desenvolvimento”: levantamento unilateral de barreiras econômicas, abolição dos
subsídios ao consumidor, expulsão do Estado da economia, estímulo ao fluxo de capital estran-
geiro (Balassa et al, 1986).
Portes continua: “O desaparecimento do bloco soviético e o descrédito de sua estratégia de
desenvolvimento estatista abriram caminho para a expansão global do capitalismo e, junto com
ele, para a hegemonia da escola teórica mais voltada para o mercado” (Portes, 2001).

69
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Díaz4 assinala sete passos da execução do ajuste neoliberal:


1. a abertura unilateral ao comércio estrangeiro;
2. a privatização de empresas estatais;
3. a remoção de regulações nos mercados de bens, serviços e trabalho;
4. a liberalização do mercado de capital com ampla privatização dos fundos de pensão;
5. o ajuste fiscal, baseado na drástica redução do gasto público;
6. a reestruturação e redução de programas sociais, concentrando-se estes em esquemas
compensatórios para os grupos mais atingidos; e
7. o fim de qualquer forma de capitalismo estatal e a reestruturação do estado à administra-
ção macroeconômica.

Junto a isto, coloca Portes, o neoliberalismo trouxe também mudanças socioculturais importantes:
1. a reavaliação da acumulação capitalista como desejável e congruente com os interesses
nacionais;
2. o descrédito dos sindicatos e da indústria nacional protegida como redutos de privilégio
opostos à eficiência econômica;
3. o apoio do investimento estrangeiro como necessário ao crescimento sustentável;
4. a renovada fé nos efeitos do trickle down para a redução da desigualdade social;
5. a reorientação das fontes de identidade nacional a partir da capacidade de resistência à
hegemonia estrangeira até a reinserção inteligente no sistema econômico mundial.

Evidentemente, as conseqüências da aplicação deste modelo apontam para as limitações do


paradigma neoclássico e também dos paradigmas alternativos e para a necessidade de construir
una perspectiva teórica alternativa.

1.3 Novas propostas


É neste marco que aparecem algumas novas propostas, como a chamada “terceira via” – a
raiz do manifesto Blair-Schroeder. Dahrendorf resume alguns dos principais postulados desta li-
nha de pensamento: “Giddens situa a tarefa de alcançar a combinação de criação de riqueza com
coesão social no contexto das grandes mudanças produzidas pela globalização, o ‘novo diálogo’
com a ciência e a tecnologia, e a transformação dos valores e os estilos de vida”. Determina,
depois, seis áreas de política da terceira via:
• uma nova política ou “segunda onda de democratização” em que se socorre diretamente o povo;
• una nova relação entre o Estado, o mercado e a sociedade civil que os “una entre si”;
• políticas de oferta através do investimento social, principalmente em projetos de educação e
infraestrutura;
• a reforma fundamental do Estado de bem-estar social mediante a criação de um novo equi-
líbrio entre o risco e a segurança;

4 DÍAZ, Alvaro, 1996.

70
— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

• uma nova relação com o meio ambiente através da “modernização ecológica”;


• um forte compromisso com as iniciativas transnacionais num mundo de “soberania confusa”.

No marco de ásperos debates, autores como Touraine afirmaram que “não se deve ver nela
(a terceira via) um programa político, mas um sinal emitido por alguns dirigentes que com ele
indicam claramente a prioridade que dão às exigências do mercado internacional, ainda que, ao
mesmo tempo, queiram fazer notar sua preocupação em resolver os problemas sociais, que se
vêm agravando há 20 anos. Há duas formas de avaliar a terceira via. Ou é um anúncio da reaparição
dos temas próprios da esquerda num mundo dominado por políticas de direita ou, o que me
parece mais apropriado, o modo que têm os políticos de centro-esquerda de fazer uma política
de centro-direita” (os destaques são meus).
Partindo de uma perspectiva latino-americana, Ricardo Lagos ressaltou:

“Mas existem matizes de diferença entre o debate europeu e o latino-americano.


Enquanto na Europa os social-democratas buscam estimular um crescimento que não
deixe de lado o papel do Estado no desenvolvimento, enfatizando o fomento do emprego
produtivo, o avanço tecnológico para uma maior competitividade, assim como a necessi-
dade de seguir garantindo os direitos dos cidadãos ao bem-estar social, reestruturando
o antigo Estado de bem-estar social, na América Latina se observa um debate similar,
mas com ênfase na busca de maiores níveis de eqüidade e integração social frente à
persistente cristalização de desigualdades sociais que originam mobilizações e demandas
populares legítimas.

Não é que não tenhamos feito nossas tarefas no sentido de estimular um crescimento
econômico estável, melhorar a eficácia do gasto social ou manter os equilíbrios macro-
econômicos. Em grande parte da América Latina se fez tudo isso, e muito bem, mas,
apesar disto, se mantêm os problemas sociais que, supostamente, deveriam desaparecer,
tais como o endurecimento de uma pobreza rural e urbana, a manutenção ou inclusive
o aumento do abismo na distribuição de riqueza ou a agudização de problemas de
violência, insegurança e exclusão juvenil.

A terceira via não pode então ter a mesma ênfase numa Europa de US$ 30 mil per
capita que numa América Latina de menos de US$ 5 mil dólares per capita. Mais ainda
se levamos em conta que a América Latina é a região com a distribuição de renda mais
desigual do mundo. Em nossa região, conseqüentemente, a ênfase deve estar na inclusão
dos excluídos melhorando sua vida sem que isto ocorra a expensas do resto. A idéia é que
ninguém perca no processo de inclusão social, para o qual se requer, simultaneamente,
progresso material e progresso social, tal qual o postulam nossos amigos europeus”.

Em suma, nesta discussão sobre as alternativas, as propostas de corte latino-americano


aparecem, todavia, bastante ausentes.
É no contexto da realidade que coloca Lagos para a América Latina, que a idéia de combate
à pobreza e à exclusão social mediante a perspectiva do empoderamento aparece como suma-
mente relevante. A idéia de processo pelo qual se obtém acesso ao controle sobre si e sobre os
meios necessários para a existência (Iorio, 2002) é sumamente relevante numa estratégia de
desenvolvimento.
Creio que pode ajudar muito na discussão sobre dentro de que e como empoderar, a visão a
partir da teoria e da prática do desenvolvimento local. É para essa linha de análise que nos
dirigimos a seguir.

71
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

2. Paradigmas do
desenvolvimento
Para começar este debate, gostaria de ressaltar a análise feita por Arocena sobre os principais
paradigmas do desenvolvimento e suas implicações sobre o local.
Para falar de desenvolvimento local é necessário explicitar os pressupostos teóricos: quando
estudamos o local não nos situamos em um universo à parte dos processos de desenvolvimento
nacional ou regional; não partimos do zero como se nunca tivesse sido tratada a questão do
desenvolvimento. É então necessário explicitar alguns pressupostos básicos. Arocena assinala que
“não há uma teoria sobre o desenvolvimento local, mas teorias de desenvolvimento que diferem
entre elas na forma de considerar o local”5 e analisa três grandes paradigmas.

2.1 Evolucionismo
Neste paradigma, o desenvolvimento está ligado ao processo evolutivo e se compõe de
etapas às quais é necessário recorrer para chegar a um final previamente conhecido. Este modelo
parte do pressuposto de que existe uma dinâmica evolutiva positiva em direção ao progresso; e
que existem freios impostos pelas tradições locais opondo-se a essa dinâmica. Vai-se então do
tradicional (algo negativo a superar) ao moderno (e avançado, o objetivo).
Aqui o modelo industrial representa a superação ou destruição da sociedade tradicional.
Em 1963, um de seus principais expositores, W. W. Rostow, estabeleceu cinco etapas de cresci-
mento econômico: a sociedade tradicional, as condições prévias para o crescimento, a decolagem,
a entrada na maturidade e o consumo de massa.6
A crítica a este modelo foi realizada entre outros por Touraine, que assinala que o desenvol-
vimento esteve mais marcado por relações de dependência, de interdependência e de dominação
que por uma racionalidade universal de crescimento econômico; e se pergunta se o subdesenvol-
vimento é um atraso ou uma posição no sistema, afirmando esta última concepção. Desse modo,
as especificidades locais determinam que os processos dificilmente sejam comparáveis; e, sobretudo,
o desenvolvimento não significou necessariamente progresso, evolução.
Para esta posição – o paradigma evolucionista – os atores locais não têm papel algum a
cumprir, salvo seguir o melhor possível os ditados das demandas do crescimento econômico.
Em geral, atuam mais como freio que como impulsionadores do desenvolvimento.

2.2 Historicismo
Neste enfoque, o essencial não é o ponto de chegada, mas o ponto de partida, sempre
diverso em função dos perfis nacionais e locais específicos.
A história é um ponto de partida fundamental. A palavra-chave neste caso não é progresso,
como no evolucionismo, mas estratégia. Para esta forma de ver a realidade, não existem leis pré-
determinadas. O modelo é o da contingência pura. A idéia de novidade é chave, todo processo é
inédito. O endógeno se privilegia claramente e não se dá importância aos fatores estruturais ou
globais. Nos anos 70, o “Small is beautiful” era o slogan desta linha de pensamento, que teve
como principal linha de investigação os estudos de corte antropológico-cultural.

5 AROCENA, José, 1995.


6 ROSTOW, W. W, 1963.

72
— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

A crítica a este modelo está dada no fato de que sem dúvida é possível identificar pautas
comuns em diferentes processos. Por outra parte, para esta concepção nem todos os atores fazem
parte do processo, o qual é dirigido por elites. Não é um processo orientado pela sociedade.
Neste enfoque, os atores locais são tudo, mas as dinâmicas globais existentes estão ausentes.

2.3 Estruturalismo
Para esta concepção, o desenvolvimento é um processo sistêmico cujos componentes
estruturais são interdependentes. Há diferentes posições no sistema: dominantes e dominados.
A determinação não vem de uma lei evolutiva ou da história, mas da racionalidade de um sistema.
A análise da mecânica social é mais forte que a análise da mudança. Todo sistema tem sempre
uma contradição que pode fazê-lo explodir. A busca de qual ou quais são os fatores determinan-
tes passa a ser central: qual a zona sensível do sistema (economia, política, cultura?). Para os
teóricos desta linha, o sistema se reproduz constantemente e a margem de ação é unicamente
revolucionária, de destruição do sistema. Não existe a idéia de desenvolvimento do sistema.
O local é um lugar de reprodução das relações de dominação globais. As sociedades locais
serão lidas a partir das contradições fundamentais que atravessam o sistema. Esta teoria, de forte
base marxista, teve seus principais expositores nos teóricos da dependência.
A crítica mais forte a esta concepção foi feita por um dos próprios teóricos da dependência
como Cardoso, que assinalou que não se promove um novo modelo de desenvolvimento, mas sim
o mesmo tipo de desenvolvimento em benefício de outras classes. Por outro lado, destaca que é
inútil propor uma teoria do desenvolvimento de um sistema que se diz que fatalmente produz
subdesenvolvimento. Os atores locais não têm nenhum papel, já que são reprodutores nesse nível
da lógica do sistema.

2.4 Concepções alternativas


Existem diversas concepções alternativas. Autores como Touraine, Morin ou Bourdieu desen-
volveram diferentes linhas de análise que, com diferentes ênfases, dão conta destes problemas.
Em todo caso, Arocena assinala que não é possível analisar os processos de desenvolvimento
sem fazer intervir as três dimensões destacadas pelos paradigmas analisados: a história (mudança,
especificidade, autonomia), o sistema (funcionamento, universalidade, interdependência) e o
modelo (representações, generalização, utopia).
Estas dimensões, articuladas de maneiras diferentes, são as que definem os perfis dos pro-
cessos de desenvolvimento. Não se pode pensar isoladamente as ênfases postas por estes três
níveis de análise expressos nos paradigmas. Ao contrário, é necessário colocar-se simultanea-
mente nos três níveis, o que significa dar conta de fatores como a complexidade, a diferença, a
incerteza, ou a integralidade dos processos de desenvolvimento.
A esta altura, tendo dado conta de sensibilidades e enfoques teóricos diferentes, o problema
da relação entre indivíduos e sociedade, ou entre a ação (individual ou coletiva) e a estrutura
social, é um ponto nodal, central, da teoria e da prática social.
Em suma, cremos que este tema da margem de ação do ator (por ator entendemos sujeitos
individuais ou coletivos) subjaz à discussão que encara linhas de intervenção que promovem tanto o
empoderamento como a perspectiva dos direitos sócio-econômicos e culturais. Enfim, se o ator

73
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

está totalmente constrangido pela estrutura social, ou se tem margem de manobra, em que os
atores podem mudar a estrutura e, finalmente, quais são as relações de poder e como se expressa
esse poder em nossas sociedades.

2.5 O ator e o sistema


Aqui nos parece relevante incluir outro autor-chave no pensamento contemporâneo: Pierre
Bourdieu.7 Suas preocupações se centram em desvendar a contradição entre a igualdade que
promove e que está no discurso da modernização e a exclusão social que esta produz, e de que
forma culturas que exaltam a igualdade como valor social produzem processos de exclusão e
divisão. Bourdieu assinala que as diferenças e os processos de exclusão não são exclusivamente
econômicos, mas também culturais. Daí seu interesse em mostrar a relação existente entre cultu-
ra, dominação e desigualdade social.
Os conceitos-chave para este autor são reprodução cultural, legitimação, classe social, habitus,
campo e espaço social, entre outros. É neste sentido que nos interessa trazer este autor, dadas as
implicações de sua construção teórica sobre o tema do poder e da dominação.
Suas raízes se encontram na teoria clássica e as reinterpreta a partir da problemática social
de nossos dias. De Marx, toma o programa para uma sociologia da reprodução, de Durkheim, a
sociologia genética das formas simbólicas, e de Weber, as funções sociais dos bens simbólicos e
das práticas simbólicas.
Dentro deste marco, pretende explicar as ações sociais a partir uma perspectiva sociológica.
Aproxima-se de Marx pela referência ao histórico; e de Durkheim, na explicação pelo social e a partir
do social. Pretender explicar as ações sociais a partir de uma perspectiva social implica a convicção
de que só a descrição das condições objetivas não chega a explicar totalmente o condicionamento
social das práticas: é preciso resgatar o agente social que produz as práticas e seu processo de
produção. Mas trata-se de resgatá-lo não enquanto indivíduo, mas como agente socializado,
como “agente de desenvolvimento”. Substitui-se a relação ingênua entre indivíduo e sociedade
pela relação construída entre os dois modos de existência do social: as estruturas sociais externas e
as estruturas sociais internalizadas: o social feito coisas e o social feito corpo. As primeiras se referem
a campos de posições sociais historicamente constituídos e as segundas, a habitus, ou seja,
sistemas de disposições incorporados pelos agentes ao longo da sua trajetória social.
Para Bourdieu, as estruturas sociais existem duas vezes: o social está conformado por relações
objetivas, mas também os indivíduos possuem um conhecimento prático dessas relações. Isto impõe
a quem intervém sobre a realidade uma dupla leitura de seu objeto de estudo. Estes conceitos
teóricos são chaves para compreender a atuação do indivíduo numa perspectiva de empodera-
mento. Segundo Bourdieu, objetivismo e subjetivismo são perspectivas parciais, mas não irrecon-
ciliáveis. Ambas representam dois momentos da análise, momentos que estão numa relação
dialética. A construção do mundo dos agentes se opera sob condições estruturais e segundo seu
habitus, como sistema de esquemas de percepção e apreciação, como estruturas cognitivas e
valorativas adquiridas através da experiência duradoura de uma posição no mundo social.
Faz alusão ao “sentido das práticas” e aponta para a reflexão sobre as possibilidades de
apreender a lógica que põe em marcha os agentes sociais que produzem sua prática e que atuam
num tempo e num contexto determinado.

7 GUTIÉRREZ, Alicia, 1995.

74
— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

Bourdieu define seu enfoque teórico como construtivismo estruturalista ou estruturalismo


construtivista. Por estruturalismo entende que no próprio mundo social existem estruturas objetivas,
independentes da consciência e da vontade dos agentes, que são capazes de orientar ou de
coagir suas práticas ou suas representações. Por construtivismo entende que há, de um lado, uma
gênese social dos esquemas de percepção, de pensamento e de ação que são constitutivos do que
chama habitus; e, de outro, também uma gênese social das estruturas, particularmente do que
chama de campos e grupos, e em especial do que se denomina geralmente como classes sociais.
O conceito de habitus coloca uma perspectiva relacional, identificando o real com relações.
Pensar relacionalmente é centrar a análise na estrutura das relações objetivas que determina as
formas que podem tomar as interações e as representações que os agentes têm da estrutura, de
sua posição nela mesma, de suas possibilidades e de suas práticas.
O enfoque de Bourdieu considera como princípios de estruturação de práticas não só a
posição e a trajetória do agente no sistema de relações, mas também os habitus incorporados
pelo agente, enquanto esquemas de percepção, de avaliação e de ação. Como podem ser explicadas
as práticas sociais a partir da ótica de Bourdieu? Quais são os princípios a partir dos quais se
estruturam as práticas dos diversos agentes sociais segundo esta perspectiva teórico-metodológica?

A reprodução cultural
Bourdieu afirma que o sistema escolar e universitário funciona como instância de seleção, de
segregação social em benefício das classes sociais superiores e em detrimento das classes médias
e, mais ainda, das populares. Os privilegiados do sistema são os filhos das diferentes frações da
burguesia. São os herdeiros, cuja herança não é só econômica, mas também, sobretudo, cultural.
A escola cumpre a função de legitimação, transformando os privilégios aristocráticos em
direitos meritocráticos, compatíveis com os princípios da democracia. Privilegiam-se os privilegia-
dos, aos quais se dá a vantagem de não aparecerem como privilegiados. Corresponde, portanto,
a um primeiro direito ao qual não se acede universalmente: a educação.

A legitimação
Bourdieu toma emprestada de Marx a idéia de que a realidade social é um conjunto de relações
de força; e, de Weber, a noção de que a realidade social é também um conjunto de relações de
sentido e que toda dominação social deve ser reconhecida, ser aceita como legítima e ganhar
sentido. Legitimar um tipo de dominação é dar toda a força da razão ao interesse do mais forte.
É a violência simbólica, onde o poder se impõe mediante significações. Conseqüentemente, impõe-se
uma arbitrariedade cultural. Geram-se culturas dominantes e culturas dominadas.
Neste caso, estamos claramente posicionados dentro da lógica do poder. Este possui, como
se assinala, um forte componente simbólico, cultural, de forma que a análise dos processos de
construção de identidade adquire grande relevância.

O habitus
Este é um conceito-chave que permite articular o individual com o social, as estruturas internas da
subjetividade e as estruturas sociais externas.
O habitus é um sistema de disposições para atuar, sentir e pensar de uma determinada
maneira, interiorizada e incorporada pelos indivíduos no transcurso da história. Manifesta-se por
meio do sentido prático, que é a aptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a

75
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

posição que se ocupa no espaço social. Tudo isto sem recorrer a uma reflexão consciente, graças
às disposições adquiridas que funcionam automaticamente. É ao mesmo tempo um sistema de
produção de práticas e um sistema de percepção e de apreciação de práticas.
O conceito de habitus se constitui numa espécie de dobradiça na construção teórica de
Bourdieu, já que permite articular o individual e o social como sendo dois estados da mesma
realidade, da mesma história coletiva que se deposita e se inscreve simultânea e indissoluvelmente
nos corpos e nas coisas. Bourdieu o vê como perpetuador e reprodutor das condições objetivas e
destaca a irreversibilidade do processo de formação dos habitus.
Pode-se dizer então que o habitus é ao mesmo tempo possibilidade de invenção e necessidade,
recurso e limitação. Trata-se de uma estrutura estruturante. Falar de habitus é também recordar a
historicidade do agente, é afirmar que o individual, o subjetivo, o pessoal é social, é produto da
mesma história coletiva que se deposita nos corpos e nas coisas.

Habitus e prática: o sentido prático e a prática como estratégia


As práticas e as representações geradas pelo habitus podem estar objetivamente adaptadas a seu
fim, sem pressupor a busca consciente dos fins. Podem ser objetivamente regradas e regulares,
sem ser o produto de obediência a regras. Elas são o produto de um sentido prático, de uma
aptidão para se mover, para atuar e para se orientar segundo a posição ocupada no espaço social,
segundo a lógica do campo e da situação na qual se está comprometido.
O sentido prático implica o encontro entre um habitus e um campo social, entre a história
objetivada e a história incorporada. Possui ao mesmo tempo um sentido objetivo e um sentido
subjetivo: é produto das estruturas objetivas do jogo e das experiências dos agentes nesse jogo.
O sentido prático (o sentido do jogo social) possui uma lógica própria, que é necessário apreender
para poder explicar e compreender as práticas. Este sentido não pode funcionar fora de toda
situação. Estimula a atuar em relação a um espaço objetivamente constituído como estrutura de
exigências, como as “coisas a fazer” diante de uma situação determinada.

Sistematicidade dos habitus e das práticas: os habitus de classe


As práticas que os habitus produzem são sistemáticas e compreensíveis. Todas as práticas de um
mesmo agente estão harmonizadas entre si e objetivamente orquestradas com as de todos os
membros da mesma classe.
Falar de habitus de classe implica falar de um sistema de disposições comum a todos os
indivíduos biológicos que são produto das mesmas condições objetivas. Trata-se do fato de que
todos os membros da mesma classe têm mais probabilidades de enfrentar as mesmas situações e
os mesmos condicionamentos entre si, que com membros de outra classe.
Em suma, e em relação a este conceito, sua relevância em termos de empoderamento signi-
fica que todos os atores “sabem” atuar em seu meio, conhecem os códigos e, em todo caso, os
processos de desenvolvimento local necessitam de articuladores entre essas diferentes lógicas,
saberes e relações de poder.

Campo/capital
Um campo é um sistema específico de relações objetivas, que podem ser de aliança ou conflito, de
competição ou de cooperação. As posições que se ocupam são independentes dos sujeitos que as
ocupam em cada momento. Toda interação se desenvolve dentro de um campo específico e está
determinada pela posição que ocupam os diferentes agentes sociais no sistema de relações específicas.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

Em cada campo existem diferentes bens que estão permanentemente em jogo: econômicos,
culturais e sociais. São três tipos de capital. Todo campo é um mercado onde se produz e se
negocia um capital específico. A discussão, sobre a qual não nos alongaremos neste trabalho, é
acerca da dinâmica dos campos, as lutas por eles e mecanismos de reprodução. Em particular,
qual é a forma em que se distribui o capital específico, quais são as estratégias de conservação
dos capitais e, também, quais são as estratégias de subversão. Sempre, em toda sociedade, é
preciso pagar um direito de entrada para chegar ao campo, já que existe uma cumplicidade
objetiva comum entre todos os membros do campo, sejam ou não antagonistas.
No campo da construção do desenvolvimento local, é possível identificar estas relações, mas,
sobretudo, é possível estabelecer esses acordos que permitam caminhar em direção ao bem
comum, o que não significa desconhecer – os atores não o desconhecem – as assimetrias de
poder existentes.
O campo e o habitus são dois modos ou maneiras de existência do social. Ao campo pertencem
as instituições e ao habitus, a ação individual. Não se excluem, já que a visão deve ser elaborada a
partir da dupla existência do social: a história feita corpo, o habitus; e a história feita coisa, o campo.
Bourdieu define os campos sociais como espaços de jogo historicamente constituídos com
suas instituições específicas e suas leis de funcionamento próprias.
Os campos se apresentam como sistemas de posições e de relações entre posições. Trata-se
de espaços estruturados de posições, ligadas a certo número de propriedades, que podem ser
analisadas independentemente das características daqueles que as ocupam. Um campo se define
definindo o que está em jogo e os interesses específicos do mesmo, que são irredutíveis aos
compromissos e aos interesses próprios de outros campos. A estrutura de um campo é um estado
da distribuição do capital especifico que está em jogo ali, num momento dado do tempo, levando
em conta as lutas anteriores e as estratégias. Sua estrutura é um estado das relações de força
entre os agentes ou as instituições comprometidos no jogo. Constitui um campo de lutas destinadas
a conservar ou a transformar esse campo de forças. Os agentes comprometidos nas lutas têm em
comum um certo número de interesses fundamentais, causas compartilhadas e aceitas. Os limites
de cada campo e suas relações com os demais campos se definem e se redefinem historicamente.

3. O local como dimensão


de análise
Uma das primeiras perguntas que se fazem quando se fala de desenvolvimento local é sobre suas
relações e vínculos com a globalização. Em particular, por que e como falar de desenvolvimento
local num contexto tão fortemente marcado pela globalização? Sobretudo, qual é o sentido e os
conteúdos desta categoria conceitual, quando uma primeira leitura reflete um avassalamento dos
âmbitos locais pelas dinâmicas globais?
Há várias repostas para esta pergunta, que foram compiladas por Arocena.8 Umas afirmam o
caráter determinante do global sobre o local e os processos de “desterritorialização”. Nesta ótica,
o local é subordinado às dinâmicas globais. Sob este ponto de vista, o trabalho no nível local não
tem sentido, já que a globalização impede pensar em “chave” local.

8 AROCENA, José, 1999.

77
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Outros postulam o local como alternativa aos “males” da globalização. O local é visto assim
como a única alternativa frente a uma análise da globalização que mostra exclusão, pobreza e
injustiça. O desenvolvimento local é visto como uma política compensatória, como uma resposta
às dinâmicas globais. Nesta proposta, o local adquire sentido, mas num marco no qual não tem
destino propositivo. Ao contrário: é uma resposta, uma reação a um estado de coisas.
Finalmente, a terceira resposta, embora minoritária, destaca a articulação local-global, dentro
de uma compreensão complexa da sociedade contemporânea.
As duas primeiras respostas têm a virtude de serem coerentes e claras. Porém, do nosso
ponto de vista, são profundamente equivocadas. A terceira é mais complicada, contraditória, de
difícil compreensão, buscando articular categorias que aparecem como incompatíveis. Contudo,
creio que é a única que dá conta plenamente do significado do desenvolvimento local. Trata-se da
articulação entre o local e o global, que faz a própria definição de desenvolvimento local.
O desenvolvimento local consiste em crescer a partir de um ponto de vista endógeno e
também obter recursos externos, exógenos (investimentos, recursos humanos, recursos econômicos),
assim como deter a capacidade de controle do excedente que se gera no nível local. O desafio
passa, então, pela capacidade dos atores em utilizar os recursos que passam, e ficam, em seu
âmbito territorial, para melhorar as condições de vida dos habitantes.
Trabalhar articulando estes nexos, estas pontes entre o local e o global levaram Alain Touraine a
assinalar que “a sociedade necessita hoje de engenheiros de pontes e caminhos”. Certamente não são
os engenheiros tradicionais, mas atores locais que pensam e atuam nesta lógica que mencionamos.
É neste sentido que tentamos uma primeira aproximação ao conceito de desenvolvi-
mento local:

O desenvolvimento local surge como uma nova forma de olhar e de atuar a partir do
território neste novo contexto de globalização. O desafio para as sociedades locais está
colocado em termos de inserirem-se de forma competitiva no global, capitalizando ao
máximo suas capacidades locais e regionais, através das estratégias dos diferentes
atores em jogo.

3.1 O território e “o local”


Os processos de desenvolvimento local transcorrem em um território específico. Por isso,
quando falamos de desenvolvimento local, falamos de desenvolvimento de um território. Mas o
território não é um mero espaço físico. Ele não deve ser visto como um lugar onde as coisas
acontecem, mas sim como uma variável, uma construção social. O território é ao mesmo tempo
condicionador e condicionado por e a partir das ações dos atores e das comunidades.
“O local” é um conceito relativo que responde a um estado da sociedade atual e pressupõe
uma definição de ator social bem precisa. Situa-se ao mesmo tempo na afirmação do singular e das
regras estruturais. Para defini-lo, é necessário tomar distância, ao mesmo tempo, do isolamento
autárquico e do reducionismo globalizador.
Existem definições possíveis do “local” no nível de escala (em número de habitantes ou
quilômetros quadrados); ou de sistema de interações com certa autonomia; ou de unidade político-
administrativa. Mas para definir de forma precisa “o local”, não há outro caminho senão referi-lo
a sua noção correlativa: o global. Se algo se define como local é porque pertence a um global.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

Não se pode analisar um processo de desenvolvimento local sem se referi-lo à sociedade


global em que está inscrito. O global está presente em cada processo de desenvolvimento. Mas, o
global, a análise das grandes determinações sistêmicas e estruturais, não esgota o conhecimento
da realidade. Portanto, no nível local se encontram aspectos que lhe são específicos e que não são
o simples efeito da reprodução das determinações globais. Definir o local como uma noção rela-
tiva permite evitar a armadilha do localismo. Mas é preciso ir mais além. Nem toda subdivisão do
espaço nacional é uma sociedade local. Para que exista uma sociedade local devem dar-se condi-
ções de dois níveis: o sócio-econômico e o cultural.
Para chamar uma sociedade de local, lhe pedimos uma condição sócio-econômica (a possibi-
lidade de que os atores disponham e discutam a geração e o uso do excedente econômico ali
gerado) e uma condição cultural (sentirem-se pertencentes ao território, a identidade).

4. A discussão na
América Latina
A discussão na América Latina em relação a estes temas tem sido intensa. E neste debate não faltaram
críticos nem apologistas. Do nosso ponto de vista, é necessário tomar cuidado tanto com as eufo-
rias localistas utópicas como com os mecanicismos inspirados em determinismos estruturais.

“O fato de que o tema desenvolvimento local esteja em evidência não significa que
haja uma compreensão unívoca em torno de seu sentido. Das discussões internacio-
nais, se pode depreender uma expectativa de que com a reforma neoliberal do Estado
– que supõe a redução da capacidade dos Estados nacionais em atender as demandas
sociais – se possa transferir, em parte ou no todo, uma agenda de responsabilidades
para os municípios.

Tal entendimento acaba por transferir aos governos locais a gestão do conflito social,
originado a partir das demandas sociais insatisfeitas e alimentadas pela dinâmica eco-
nômica e social de níveis mais abarcadores. Há aí um reconhecimento de que o processo
de globalização leva inexoravelmente a um aprofundamento da dualização da nossa
sociedade, com o crescimento da pobreza e da exclusão social, e que nada se pode
fazer nos diferentes níveis de governo para enfrentar a questão social.

Baseada na idéia da irreversibilidade dos efeitos do processo de redução da intervenção


do Estado nacional nos grandes processos econômicos e na produção de serviços públicos,
ganhou força a idéia de que os governos locais devem assumir um comportamento
cada vez mais de agentes de desenvolvimento econômico, preocupando-se centralmente
em garantir a competitividade do município dentro da dinâmica econômica “globalizada”.
A partir desta perspectiva, eles perdem o papel regulador e de re-distribuidores da
riqueza e da renda e se tornam incapazes de atuar no resgate da dívida social, na
construção de cidades justas, democráticas e sustentáveis” (BAVA, Silvio Caccia, 2001).

O único caminho que pode dar conta destes processos sem cair em aproximações redutoras
do desenvolvimento local parece ser dirigir-se para uma compreensão complexa dos processos de
desenvolvimento que fale de paradoxo, de coexistência de contrários, de articulação.
Mais que nunca é preciso vincular estes processos de desenvolvimento local aos processos de
globalização. Vários autores destacaram a ameaça de uma “globalização desabitada”, caracteri-
zada pelo achatamento dos mais vulneráveis, tanto como grupo social como a partir dos territórios.
Há um mal-estar generalizado acompanhado pelo risco de ver a globalização como o mal absoluto,
voltando aos discursos messiânicos, de defesa das identidades (característicos da globalização de

79
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

princípios do século XX). Surgem dois discursos e duas posturas possíveis: a uniformização/
homogeneidade versus a complexidade/articulação.
Do nosso ponto de vista, o desafio consiste em construir a unidade na diferença. A vitalidade
das sociedades se expressa na emergência do singular diverso e não nas tendências uniformizadoras.
No caso latino-americano, concentrar a atenção no local é uma via para superar as aproxi-
mações demasiado globais e mecanicistas e tratar de construir a partir de cada singularidade,
considerando as determinações globais.
A época das macroteorias explicativas dos processos de desenvolvimento está definitivamen-
te encerrada. Em seu lugar se buscam respostas adaptadas, pertinentes, que partem muito mais
dos atores que dos planejadores e especialistas em desenvolvimento. Os teóricos do “planejamento
territorial” também fracassaram, assim como muitos processos que sob a definição de “desenvol-
vimento local” levaram adiante processos de ordenamento territorial.
Um objetivo de fundo é a geração de políticas nacionais de desenvolvimento local. Estas se
dão quando o nível central é consciente da importância da diferença nos processos de desenvol-
vimento, gerando reformas descentralizadoras e criando os marcos legais propícios para o desen-
volvimento das diferenças.
Certamente estes processos geram incerteza; passa a se expressar uma cultura do singular,
do múltiplo, do diverso, do movimento onde antes reinava o universal, o único, o uniforme, a
ordem. Por outro lado, enfrentamos a pergunta: as sociedades locais têm capacidades para
gerar iniciativas próprias? Há um certo ceticismo, relacionado à fragilidade que se lhes atribui.
O centralismo minou a capacidade de iniciativa das sociedades locais.
É relevante também destacar as diferentes dimensões do desenvolvimento. Esta visão multi-
dimensional concebe o desenvolvimento de um território em relação a quatro dimensões básicas:
• Econômica: vinculada à criação, acumulação e distribuição de riqueza;
• Social e cultural: referente à qualidade de vida, à eqüidade e à integração social;
• Ambiental: referente aos recursos naturais e à sustentabilidade dos modelos adotados no
médio e no longo prazos;
• Política: vinculada à governabilidade do território e à definição de um projeto coletivo
específico, autônomo e sustentado nos próprios atores locais.

Assim como quando nos referimos à descentralização falamos de “reinvenção da política”,


no nível de desenvolvimento local devemos falar da “reinvenção do território”.9
Este desafio se concebe em três dimensões:
• O conhecimento – apontando a renovação dos paradigmas e as disciplinas científicas
envolvidas nos processos de desenvolvimento local.
• A política – com o objetivo da construção do projeto coletivo, que gere políticas numa
lógica horizontal e territorial (redes) mais que na tradicional lógica vertical e setorial
(centralista).
• A gestão – encarregando-se da necessária adequação institucional dos órgãos de
governo local.

9 BERVEJILLO, Federico, 1999.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

Outros elementos especialmente relevantes a considerar são a capacidade de visão estratégica


dos atores envolvidos, sua capacidade de iniciativa e a existência de um processo de identidade
que atue potencializando o processo geral e não o impedindo, como nos processos determinados
por uma forte presença de “identidade nostálgica”.
Em suma, desenvolvimento local pressupõe:
• visão estratégica de um território;
• atores com capacidade de iniciativa;
• identidade cultural como alavanca do desenvolvimento.

Algumas das características específicas do desenvolvimento local são:


• trata-se de um enfoque multidimensional, onde coexistem no mínimo as dimensões
econômica, ambiental, cultural e política;
• é um processo orientado para a cooperação e negociação entre atores;
• é um processo que requer atores e agentes de desenvolvimento.

5. Como abordar o
desenvolvimento local
Do ponto de vista metodológico, um dos principais desafios do desenvolvimento local é definir
suas principais categorias de análise. Partindo da experiência do Claeh, é necessário identificar
três variáveis básicas:10
• Modelo de desenvolvimento: as diferentes formas que a estrutura sócio-econômica local
assumiu nas últimas décadas. Quão integral foi o processo.

• Sistema de atores: quais são as relações e vínculos entre o subsistema governamental, o


empresarial e o socioterritorial.

• Identidade cultural: identificar as características de identidade que têm incidência nos pro-
cessos de desenvolvimento.
Não nos estenderemos nestes aspectos que beiram o metodológico, mas gostaria de destacar
pelo menos os principais conceitos que configuram cada uma destas variáveis.

5.1. O modelo de desenvolvimento


A análise do “modelo de desenvolvimento” se refere às diferentes formas que a estrutura
sócio-econômica local foi adquirindo ao longo das últimas décadas no território estudado.
Nesse sentido, é relevante a reconstrução do processo, assim como das lógicas que pautaram as
grandes transformações.
Trata-se, antes de tudo, de identificar o grau de integralidade do processo. Assim, estamos
diante de modelos de desenvolvimento integral; modelos de desenvolvimento de incipiente articula-
ção; modelos de desenvolvimento desarticulado dual; modelos de desenvolvimento desarticulado.

10 AROCENA, José, 1995.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Desse modo, é evidente que existem territórios “com projeto” (poucos), sem projeto, ou com
projetos truncados.

5.2. A identidade como alavanca de desenvolvimento


A identidade reúne o passado, o presente e o projeto numa única realidade interiorizada
pelo conjunto dos membros da sociedade. Desenvolve-se numa realidade cultural na qual se
valorizam a inovação, o trabalho e a produção, marcando a diferença e a especificidade para
situar-se em relação a outras diferenças e especificidades. Consolida-se, então, um processo que
mantém grande fidelidade ao passado, possui capacidade de resposta ao novo, permite superar
as dificuldades e cujos membros podem constituir-se numa minoria articulada no meio nacional
e transnacional.
A identidade nostálgica reconhece o passado com ar nostálgico, desejando uma forma de
convivência social e de desenvolvimento econômico aparentemente muito superior às atuais e
impedindo de se seguir adiante. Como representação coletiva, o futuro se desenha como uma
volta ao passado: ressuscitar essa ou aquela empresa, recuperar uma dinâmica setorial, voltar a
ser um pequeno centro financeiro. O campo das representações mentais está totalmente invadido
pelo que se teve e se perdeu e não é possível imaginar alternativas. Esta identidade é uma fonte
permanente de geração de obstáculos. Nestes casos, trabalhar no nível das representações é uma
prioridade absoluta.
Falamos da extrema fragilidade da identidade local quando não se criam processos que
autorizem a falar de identidade local ou quando o tecido social está tão gasto que os referenciais
de identidade desapareceram. Trata-se de grupos humanos que habitam um território, mas que
não poderíamos considerar sociedades locais. Isto pode obedecer a duas situações: crise ou falta
de identidade.

5.3. O sistema de atores


A análise da forma e da dinâmica que toma o sistema local de atores é fundamental. Mas
antes gostaria de dar uma primeira definição do que se entende por “ator local”.
Podemos dar uma primeira definição de acordo com a cena em que atua:
“Ator local é todo aquele indivíduo, grupo ou organização, cuja ação se desenvolve
dentro dos limites da sociedade local”.

Também podemos defini-lo em função do sentido de sua ação:


“Ator local é aquele agente que no campo político, econômico, social e cultural é
portador de propostas que tendem a capitalizar melhor as potencialidades locais”.

Esta segunda definição liga as noções de “ator local” e de “desenvolvimento”, levando-nos


para o ator como agente de desenvolvimento local. É a definição pela qual optamos, é mais
restritiva, mas exige do ator-agente determinadas características.
Entre os atores locais que atuam em um território, encontramos:
• O ator político-administrativo, constituído pelo governo local, pelas agências do governo
nacional, pelas empresas públicas.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

• O ator empresarial, constituído pela microempresa e o artesão, a pequena e média empresa,


a grande empresa.

• O ator socioterritorial: associações de bairro, organizações não-governamentais, igrejas etc.

5.4. Os agentes de desenvolvimento local


Outro fator crucial nesta discussão é o tema dos agentes do desenvolvimento local. Do nosso
ponto de vista, nem todos os atores presentes num território podem ser considerados atores-
agentes de desenvolvimento local num sentido propositivo.
O Claeh identificou o agente de desenvolvimento local – chave neste processo – com as
seguintes características:

Papel do agente de desenvolvimento local (ADL)


O agente de desenvolvimento local (ADL), então, é preparado para desempenhar os papéis que se
descreveram, que são chaves para o desenvolvimento local. É um facilitador dos processos, basi-
camente um profissional da gestão pró-ativa, capaz de antecipar-se aos acontecimentos, trabalhar
antevendo cenários, articulando atores e mediando entre: os recursos privados e estatais e a
população beneficiária; os discursos oficiais e os dos cidadãos; as soluções propostas pela política
pública (ou vazios desta) e as iniciativas dos grupos sociais; os interesses daqueles que concedem
os recursos e os dos destinatários; o poder constituído e a base constituinte. O agente de desenvolvi-
mento local é um articulador global que media entre relações de poder desiguais num processo
de articulação-tensão-rearticulação. Este processo é o que valoriza o potencial dos atores para
reestruturar seus discursos, suas práticas, seu poder, seus recursos em função do bem comum,
sem hegemonizar nem ser pura auto-referência, sem medo de enfrentar o diálogo, permitindo
uma saída criativa para os conflitos e a geração e regeneração do tecido social.
Fernando Barreiro denomina três funções-chave do agente de desenvolvimento local: inte-
gração (articulação local-global); mediação (ponto de apoio, gerar condições para o diálogo);
inovação e mobilização (de todos os recursos locais). Tanto indivíduos como grupos de indivíduos
ou agências podem ser agentes de desenvolvimento local
Nem todos os processos são iguais. Interessa-nos destacar especialmente alguns elementos:
Características das elites dirigentes: um tema importante passa pela capacidade de gerar um
grupo dirigente fortemente legitimado e com possibilidades reais de conduzir o processo e a
elaboração do projeto coletivo através do estabelecimento de vínculos com os quadros técnicos.
Neste sentido é comum encontrar grupos dirigentes localmente desarticulados, elites locais
fragilmente constituídas.
Um fator relevante é a forma da interação com atores extralocais. Esta pode inscrever-se
num sistema regulado pela negociação ou em um sistema regulado pela dependência.
Portanto, a capacidade de elaborar respostas diferenciadas é um fator absolutamente crucial
dos atores locais. Podemos identificar sociedades e sistemas de atores com alta capacidade de
resposta diferenciada em processo de construção de respostas diferenciadas no plano do discurso
ou ausência de referências na diferenciação da resposta. Os processos de “empoderamento” possuem
relação direta com a capacidade das sociedades locais, e seus atores, de elaborar respostas diferen-
ciadas em relação a seus territórios.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

5.5. As lógicas de ação local


É evidente que no nível dos atores existem lógicas de ação distintas, racionalidades diferentes
e, naturalmente, diferentes relações de poder.
Nossos países vêm de uma tradição vertical-centralista que determina a forma de sentir e de
atuar de boa parte dos atores. Pelo contrário, os processos de desenvolvimento local pressupõem
articulação, negociação e interação entre atores.
O ator político-administrativo pode operar através de uma lógica centralizada setorial-vertical
(o mais freqüente em nossos países) ou descentralizada territorial-horizontal. Esta última forma
de ação, que implica a ruptura da velha ordem de elaboração e gestão de políticas, pressupõe
também a existência de redes locais-regionais, com alguns atores-chave que operam como
articuladores-nexos dessas redes. Mas, em todo caso, pressupõe também processos de empo-
deramento, porque a mudança de lógica implica igualemente uma mudança nas relações de
poder vigentes.
No nível dos atores socioterritoriais é possível também identificar diferentes lógicas:

A lógica reivindicativa
Trata-se de atores que atuam basicamente na defesa da qualidade de vida. A mobilização perma-
nente como o ideal de expressão popular – e essa seria, para aqueles que atuam nesta lógica, a
verdadeira participação. Prioriza-se a estratégia de pressão e se desdenha da estratégia de gestão.
Os conflitos com o setor político são freqüentes, por questionamento de sua legitimidade.

A lógica do voluntariado
Baseia-se no serviço prestado à comunidade sem receber uma remuneração em troca. Não se propõe,
como a lógica anterior, a organizar ou gerar um movimento, mas sim satisfazer uma necessidade,
por isso não dá respostas globais. Esta é a lógica de organizações de serviço (laicas ou religiosas).
O voluntariado está desempenhando um papel crescente em muitas áreas diferentes e é altamente
reconhecido por parte da sociedade.

A lógica profissional
Trata-se de trabalhadores sociais, educadores, docentes, dirigentes religiosos, juristas, psicólogos,
sociólogos, antropólogos, agrônomos, veterinários, arquitetos, médicos, profissionais da área
médica e da comunicação, ou ainda organizações não-governamentais que têm em comum a
intervenção a partir de uma competência técnica determinada em uma área da atuação social.
Todos eles vivem de sua atividade, recebendo uma remuneração em troca da tarefa que realizam.
Um tema crucial é se esse ator reside na área local ou fora dela. Se são locais, terminam
certamente enraizados nos processos locais. Assim, no profissional residente há uma dupla
dimensão: a remunerada e a participação em instâncias coletivas. Em contrapartida, se são de
fora, a lógica é de intervenção externa.
A lógica profissional parte de objetivos e técnicas pré-definidos. Atualmente se debate a
legitimidade deste tipo de intervenção. A crítica principal é que se parte de alguém que “sabe” e
“leva” esse conhecimento. A defesa é que esta metodologia não pressupõe uma substituição do
papel protagonista dos atores locais. O profissional é mais um catalisador, um facilitador, que um
iluminado. O papel das ONGs tem sido e é importante.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

A lógica política
Como destacamos, há uma mudança na demanda para este tipo de ator: caminha de correia de
transmissão de processos nacionais para o papel de canalizador da demanda social. Enfim, o ator
político local está passando da lógica de controle para a lógica de co-responsabilidade em inicia-
tivas e projetos.
Em resumo, a ação local exige a superação das lógicas que atravessam os diferentes siste-
mas: equilibrar a lógica vertical-setorial com a horizontal-territorial, o estabelecimento de redes
que fortaleçam a sociedade civil, a articulação institucional público-privada.
Contudo, existem mecanismos muito fortes de defesa do centralismo. Desconfia-se da capa-
cidade dos atores locais, argumentando-se, assim, a necessidade de um “centro” que assegure a
unidade nacional e a eqüidade social.

O sistema empresarial
Notoriamente, as transformações no modo de acumulação são importantes. Fatores como a des-
concentração de atividades empresariais, a flexibilidade, a articulação com o meio, a produção
diferenciada, a qualidade, a qualificação dos recursos humanos são elementos que conduzem a
grandes mudanças na forma que o setor empresarial vê, e necessita, do local. Trata-se de fatores
que favorecem o caráter de “ator local” da empresa, já que a competitividade vem tendo crescen-
temente uma dimensão territorial muito forte. Além do mais, dentro dos fatores de competitivi-
dade sistêmica, a competitividade territorial é um dos mais relevantes.
Com a pequena empresa é mais factível chegar a um acordo localmente, mas também há
sérias dificuldades de articulação, de capacidade de visão estratégica.
A racionalidade deste sistema se dá ao mesmo tempo pelas lógicas dos atores e pelas exigên-
cias dos processos de desenvolvimento.

5.6 Identidade
Retomaremos, finalmente, o conceito de identidade, que nos parece essencial para a ação
neste nível. A identidade local se constrói sobre duas dimensões: a história e o território.
A história é a memória viva de um grupo humano que se reconhece num passado e repre-
senta continuidade e ruptura entre o passado, o presente e o projeto.
O território é o espaço significativo para o grupo que o habita, que gera uma relação desen-
volvida em um nível profundo da consciência. Representa permanência e ausência, continuidade
e ruptura.

Identidade e desenvolvimento
Aproximando-nos de um conceito de identidade desde uma perspectiva de desenvolvimento,
podemos falar de um fio condutor entre passado, presente e projeto através de um processo de
construção de identidade. Este processo se produz em um sistema de relações (a dimensão de
relação com outros é muito relevante); se apóia na idéia de unidade de si mesmo através de certo
lapso de tempo (permanência); se apóia também na idéia de diferença (um é um si mesmo e não
outro); permite a existência de limites (como fronteiras, não como cercas) que permitem inter-
câmbios seletivos com outros; e se afirma na capacidade de rememorar o que se viveu e o que se
é, e adequar-se a novos contextos, gerando a capacidade de reconstruir a identidade.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

A identidade em sujeitos coletivos implica ter algo que se compartilhe com os que estão
dentro e que nos diferencie dos que estão fora, numa relação de continuidade e ruptura. Há relação
entre a dimensão de identidade e os processos de desenvolvimento local, enquanto a primeira é
um componente-chave para pensar e para gerir o desenvolvimento local. Esta dimensão não foi
suficientemente trabalhada, apesar de sua relevância. A evidência empírica reunida nos estudos
de caso do Claeh lança algumas linhas de trabalho para seguir explorando e complementando:
• Nem todo processo de consolidação de identidade é uma “alavanca de desenvolvimento”;
também pode operar como freio ou obstáculo ao desenvolvimento.

• A fragilidade de identidade é uma desvantagem em termos de desenvolvimento.

• Os processos de formação-capacitação para o desenvolvimento local devem abordar o tema


da mudança cultural e o fortalecimento da identidade. Nos aspectos culturais e na base de
identidade que tenha uma sociedade local, existem recursos-chave para impulsionar e orientar
o desenvolvimento sócio-econômico (reação diante das crises, diversidade de respostas).

• A identidade é uma combinação de fatores similares que não se repetem.


Uma das grandes dificuldades que afronta o desenvolvimento é o nível das mentalidades. A
mudança põe em questão os costumes, os hábitos adquiridos, os modelos tradicionais de
conduta. O risco e o fracasso são comuns.
Em qualquer caso, não é possível pensar em processos de desenvolvimento local sem consi-
derar a dimensão de identidade como chave, como condição do empoderamento.

5.7. O poder
Aqui vale destacar alguns dos elementos que Michel Foucault assinala em relação ao tema
do poder.
Este autor marca importantes diferenças em relação a concepções mais “tradicionais” ou
reducionistas do poder como sendo exercido exclusivamente a partir dos aparatos estatais. Pelo
contrário, adota uma noção de poder que não faz referência exclusiva ao plano estatal, mas se
encarrega da multiplicidade de poderes que se exercem na esfera social, os quais se podem definir
como poder social.
Desta forma, fala do subpoder como “uma trama de poder microscópico, capilar”, que não
é o poder político nem os aparatos de Estado nem o de uma classe privilegiada, mas o conjunto
de pequenos poderes e instituições situadas num nível mais baixo. Nesse sentido, não existe um
poder único, pois na sociedade há múltiplas relações de autoridade situadas em diferentes níveis,
apoiando-se mutuamente e manifestando-se de maneira sutil. Um dos grandes problemas que
se devem enfrentar no momento das mudanças é, precisamente, que não persistam as atuais
relações de poder.
Para o autor da Microfísica do poder, a análise deste fenômeno só se efetuou a partir de duas
relações, a contratual – de caráter jurídico, baseada na legitimidade ou ilegitimidade do poder –
e a dominação – de caráter repressivo, apresentada em termos de luta-submissão. Não se pode
reduzir o problema do poder ao da soberania, já que entre homem e mulher, aluno e professor e
no interior de uma família existem relações de autoridade que não são projeção direta do poder
soberano, mas muito mais condicionantes que possibilitam o funcionamento desse poder, que
são o substrato sobre o qual se assegura.

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

O poder se constrói e funciona a partir de outros poderes, dos efeitos destes, independentes
do processo econômico. As relações de poder se encontram estreitamente ligadas às familiares,
sexuais, produtivas; intimamente entrelaçadas e desempenhando um papel de condicionante e
condicionado. Na análise do fenômeno do poder não se deve partir do centro e descer, mas sim
realizar uma análise ascendente.
Em Os intelectuais e o poder, Foucault coloca em questão o papel dos intelectuais, que
descobriram que as massas não têm necessidade deles para conhecer: elas sabem muito mais.
Porém, existe um sistema de dominação que obstaculiza, proíbe, invalida esse discurso e o conhe-
cimento. O poder que não se encontra só nas instâncias superiores de censura, mas em toda a
sociedade. A idéia de que os intelectuais são os agentes da “consciência” e do discurso forma
parte desse sistema de poder. O papel do intelectual não residiria em situar-se adiante das massas,
mas em lutar contra as formas de poder ali onde realiza seu trabalho, no terreno do “saber”, da
“verdade”, da “consciência”, do “discurso”; o papel do intelectual consistiria assim em elabo-
rar o mapa e as apostas sobre o terreno onde se vai desenvolver a batalha, e não em dizer como
levá-la a cabo.
Como bem disse Foucault, a estrutura exerce por si mesma um poder de dominação que não
é necessariamente ativo e com uso de força, mas que na maioria dos casos (e é aí que reside seu
maior perigo) é passivo e se caracteriza por manifestar-se em forma de consenso entre os indivíduos
(aceitação das normas). A origem está no conjunto de relações de poder que se estabelecem em
cada sociedade em particular. Com esta característica podemos ver que seu estruturalismo, dife-
rentemente do marxista ou do durkheimiano, antes de ser universal é particular a cada objeto
específico de análise.
Finalmente, outra característica de sua obra que merece ser ressaltada é a constante evolução de
sua estrutura que avança junto com a sociedade, melhorando seus mecanismos de dominação.
Desse modo, abandona a antiga noção de que o poder se relaciona claramente com as
normas jurídicas que o fazem legítimo ou ilegítimo e centra sua atenção nas noções de estratégias,
mecanismos e de relações de força como suas formas de manifestação.
Com base no que já dissemos, podemos deduzir que para analisar as relações de poder se
deve ter em conta:
1. O sistema de diferenciações econômicas, jurídicas, de status, culturais etc., já que
toda relação de poder implica diferenciações que surgem como condições e efeitos ao
mesmo tempo.
2. O tipo de objetivos: o que se busca.
3. As modalidades instrumentais: desde o uso da palavra até a ameaça e o uso da violência.
4. As formas de institucionalização: os diferentes tipos de dispositivos.
5. Os graus de racionalização, já que as relações de poder toleram um amplo campo de
possibilidades, no qual se tem em conta “a eficácia dos instrumentos” em relação ao
objetivo.

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— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

6. A título de conclusão
No marco deste documento, considerado explicitamente como sujeito a discussão e reelaboração,
gostaria finalmente de deixar alguns elementos para discussão. Das experiências analisadas pelo
Claeh, surgem algumas conclusões para compartilhar:

O desenvolvimento local como idéia mestra


A maior parte das experiências vinculadas ao empoderamento ou à abordagem baseada em direitos
reconhecem uma dimensão territorial. A maior parte das mesmas, embora não sejam experiências
de desenvolvimento local num sentido “estrito”, apontam para essa forma de ver a realidade.
Não nos encontramos necessariamente diante de processos de geração de riqueza ou de
controle do excedente econômico num território, mas de geração de massa crítica e de definição
de plataformas para projetos de desenvolvimento local, já que boa parte das experiências que se
possa relatar são processos orientados para ou em perspectiva de desenvolvimento local.

O desenvolvimento local como estratégia de construção de cidadania


A construção de cidadania – em sua diversidade de direitos e deveres – é um processo social e cultural
complexo que implica um forte trabalho no tecido social para o empoderamento das pessoas a
fim de reconhecer suas necessidades econômicas, sociais e culturais e buscar soluções para estas.
Assim, uma meta-chave nestes processos de desenvolvimento local é que as pessoas e os
coletivos sejam capazes de moldar seus próprios processos e projetos de desenvolvimento e que
sejam parte ativa neles. A partir das experiências analisadas, evidencia-se a necessária inserção
laboral para a construção de cidadania; o trabalho como chave para integração social, criação de
cidadania e mobilidade social e espacial.
Não basta somente a declaração e o reconhecimento dos direitos de cidadania, é necessário
criar os mecanismos de exigência e os espaços de proposição, diante dos quais a sociedade toda
– não só o governo – se comprometa para a garantia deste direito básico. É o caminho para o
empoderamento.
A participação é compartilhada como valor e meio para a governança, para a apropiação do
governo pela sociedade local, sendo que um dos seus nós críticos é a sua relação com a tomada
de decisão e com o planejamento. Porque um dos objetivos últimos do desenvolvimento é dar
sentido e significação à participação na sociedade.

Atores e agentes do desenvolvimento local


Entendendo a construção da cidadania como uma dinâmica de gerações – não uma norma –,
cabe perguntar-nos quem é o ator que deve fortalecê-la; como iniciar os processos de consti-
tuição de atores; e qual é o sentido último da ação. Ganham força a questão dos deveres sociais
e, em particular, a relativa ao papel que cabe a outros agentes diferentes da burocracia estatal,
neste processo de construção de cidadania. Quais são os pontos fortes e fracos da sociedade civil.

Reforma do Estado
A reforma do estado como condição necessária, mas não suficiente. Nos processos de descentrali-
zação, o espaço local aparece como propício para a execução de programas sociais num trabalho
simultâneo de participação e prestação de serviços. Neste novo papel dos municípios, os proces-

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— EMPODERAMENTO, TEORIAS DE DESENVOLVIMENTO E DESENVOLVIMENTO LOCAL NA AMÉRICA LATINA —

sos de tomada de decisões, a superação do político como pragmático, ganham vital importância.
E mais que a busca de resultados ou de benefícios, a geração de espaços de conversação, de
visibilidade de experiências e a incorporação do público para além do governamental.
O papel do Estado segue sendo insubstituível na promoção da eqüidade, mas ao mesmo
tempo é imperioso avançar no reconhecimento da constituição de práticas sociais autônomas na
sociedade civil.

Sociedade civil
A sociedade civil em seus diversos modos de organização apresenta graus de associativismo rela-
tivamente densos, de alto potencial mobilizador em nossos territórios latino-americanos, ao mes-
mo tempo que a grande fragmentação e atomização desta sementes de ação independentes
limita sua possível articulação sob uma matriz que gere projetos coletivos.

Identidade
A identidade aparece como uma possível ferramenta de entrada em suas múltiplas dimensões:
simbólica, de patrimônio físico, complexa, que apela para a memória como capital na busca desta
articulação.

Luzes e sombras da interação entre atores


Ao incorporar redes horizontais-territoriais e se organizar em função destas, a descentralização
muda radicalmente a forma de produção das políticas públicas. Assim, a governabilidade é
alcançada se o Estado é capaz de articular a participação destes atores na formulação e imple-
mentação de políticas.
É necessário identificar segmentos de organização com a idéia do interesse comum (de assumir
como próprios os interesses do público) e fortalecer as redes sociais em sua diversidade para
potencializar a negociação, já que as redes homogêneas podem não colaborar para sair de situa-
ções de exclusão ou de segregação social.

O território como recurso


O território como variável pertinente, sendo a mínima unidade com sentido e capacidade de
iniciativa para deslanchar processos de desenvolvimento e como variável complexa em sua poten-
cialidade de operar a partir de diferentes dimensões ou escalas; e em sua necessária articulação
com a região, não como conceito geográfico ou virtual, mas como desafio político, resultado dos
atores num projeto estratégico próprio.
O território, a partir de sua diversidade, no sentido do múltiplo pertencimento territorial de
que desfruta o cidadão (como habitante, eleitor, ou trabalhador), apresenta dificuldades para
manejar a diversidade e para inovar nos vínculos necessários com outros territórios.
Nos níveis de interação local-municipal-nacional e diante do desafio da intersetorialidade no
campo da articulação e das alianças, resgatamos o valor específico do local para preparar a
motricidade fina, o valor do central para desenvolver a motricidade grossa e a potencialidade
do local para alcançar o nível de sincronia entre as duas modalidades para a organização de
políticas públicas.

89
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Diversidade metodológica, sustentabilidade dos processos, necessidade


de espaços de reflexão, sistematização e avaliação
Desde as experiências de planejamento e monitoramento mais tradicionais até a criatividade nas
ferramentas de trabalho que utilizam as histórias de vida como método de aproximação e diag-
nóstico da realidade, mostra-se o rico leque metodológico possível nestes processos.
A consciência – como agente – da fragilidade dos processos de desenvolvimento local, sua
suscetibilidade a processos externos e internos. A sustentabilidade dos processos em função da
formação de agentes de desenvolvimento local, de lideranças diferentes e do questionamento
sobre o desenvolvimento local e o empoderamento: por onde começar. A necessidade de um
trabalho conjunto, paralelo, de fortalecimento dos atores locais e mais o reconhecimento das
antenas locais de ONGs nacionais como atores territoriais. A importância do fator tempo para a
necessária compreensão e prosseguimento dos processos e dos âmbitos de análise e reflexão
acerca dos fatores detonantes ou iniciadores de processos, suas marcas como também os possíveis
fatores comuns que surgem das sistematizações. As experiências apresentadas são um mostruário
interessante que nos aporta insumos para capitalizar nos processos em que entramos.

BIBLIOGRAFÍA

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SEN, Amartya. Teorías del desarrollo a principios del siglo XXI. Revista Centroamericana
de Economía, (57-8), 2000.

90
O caminho do empoderamento:
articulando as noções de
desenvolvimento, pobreza
e empoderamento
Marta Antunes1

Neste ensaio é apresentada uma articulação teórica das noções de desenvolvi-


mento, pobreza e empoderamento, partindo das abordagens de desenvolvimento como liberdade,
de Amartya Sen, e de rural livelihoods, de Robert Chambers.
Este balanço teórico tem como fim contribuir para a reflexão em curso na ActionAid Brasil
acerca de sua abordagem estratégica, que coloca o empoderamento como principal meio de
combate à pobreza.
Para esta discussão, tomaremos como base uma experiência de pesquisa em andamento2
sobre duas ONGs – Assema3 e AS-PTA4 –, parceiras da ActionAid Brasil no Nordeste brasileiro.
Como salientamos, o objetivo deste ensaio não é apresentar nem discutir essas duas
experiências, mas contribuir com um modelo analítico que articule desenvolvimento, pobreza e
empoderamento. Para tal, começaremos por apresentar um balanço teórico das noções de desen-
volvimento, pobreza e empoderamento.
Em seguida, apresentaremos a abordagem de rural livelihoods, de Chambers, na forma como
esta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) à análise de pobreza e viabilidade dos camponeses
da região andina da América Latina. Esta última ajuda a colocar as pessoas, famílias e comunidades
no centro da discussão de pobreza, enfocando nas estratégias que as mesmas estão empreendendo
para superar sua condição de pobreza, acessando a recursos e (re)construindo o acesso à sociedade
civil, ao Estado e ao mercado.
Ao falar na relação entre pessoas, famílias e comunidades com o Estado, com a sociedade
civil e dentro da própria família e comunidade, é necessário entrar na discussão de accountability
e participação, o que será realizado em seguida. No final, serão apresentadas nossas contribui-
ções para a reflexão em curso na ActionAid Brasil.

1 Economista e mestranda do CPDA/UFRRJ.


2 A reflexão apresentada neste ensaio tem a contribuição das entrevistas realizadas nas áreas de assentamento de atuação da
Assema com técnicos desta organização e de suas organizações parceiras de base, assim como de lideranças locais, no âmbito
da pesquisa Cooperação Internacional, ONGs e Superação das Pobrezas no Nordeste Brasileiro: O Caminho do
Empoderamento. Tem também a contribuição das discussões realizadas com a equipe da AS-PTA Paraíba e com seus parceiros
locais, no âmbito do diagnóstico em curso sobre os caminhos da inclusão dos mais pobres.
3 Assema – Associação em Áreas de Assentamento do Maranhão.
4 AS-PTA Paraíba – Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa.

91
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

1. Desenvolvimento alternativo:
as noções de desenvolvimento, pobreza
e empoderamento
Para entender melhor os conceitos e noções a serem utilizados na discussão, apresentamos o
contexto em que os mesmos surgiram e evoluíram, ou seja, os debates sobre a “ascensão e
queda” da economia do desenvolvimento (Hirschman, 1986).5
Durante a “ascensão” da economia do desenvolvimento, vários teóricos defendiam o desen-
volvimento como crescimento e progresso econômico.6 Segundo Hirschman (1986), a teoria do
crescimento, embora orientada para a reconstrução das economias européias, a partir dos anos
50 começa a ser aplicada nos países em desenvolvimento. De acordo com Maluf (1997), esta
exerceu forte influência na fundamentação de diversos diagnósticos da realidade latino-americana
do pós-guerra, inclusive, e principalmente, os da Cepal, que defendia a industrialização como o
paradigma do crescimento econômico. Em relação à agricultura, era necessária a sua modernização,
para que esta cumprisse suas funções no processo de industrialização como substituição de
importações, o que levou ao favorecimento da agricultura patronal e à expulsão prematura de
mão-de-obra do campo para a cidade.7
Os resultados dessas teses estão aí – o crescimento econômico não originou o desenvolvi-
mento dos países latino-americanos e a pobreza mantém-se em nível elevado nestes países –
e levaram ao início da “queda” da disciplina.
Segundo Hirschman (1986), quando se revelou que as medidas destinadas a favorecer o
crescimento econômico estiveram freqüentemente na origem de uma série de eventos que se
traduziram em graves regressões nos domínios social, político (ciclo de ditaduras latino-americanas)
e cultural, a tranqüila segurança que animava a economia do desenvolvimento foi abalada e esta
começa a duvidar de si mesma.
Em 1970, Dudley Seer anuncia o destronar do PIB per capita como objetivo exclusivo do
desenvolvimento. Em finais dos anos 1980, Sen (1988) reivindica que é necessário que se recuse
a visão do desenvolvimento econômico como mero crescimento econômico, defendendo que
existem muitas outras variáveis que também influenciam as condições de vida, cujo papel o
conceito de desenvolvimento não pode ignorar.
Segundo Stewart (1995), em muitos países o crescimento da renda per capita foi acom-
panhado por elevados níveis de pobreza, com aumento dos mesmos, e por um problema cres-
cente de desemprego. A distribuição da renda não era eqüitativa e tornou-se ainda mais desigual.
Embora a esperança de vida e a educação tenham melhorado em termos médios significativa-
mente, alguns países com crescimento acelerado (ex.: Paquistão e Brasil) tiveram fracas notas
neste tema, enquanto países de baixa renda alcançaram bons níveis em termos de indicadores
humanos (ex.: Sri Lanka).

5 Nosso objetivo neste ponto não é esgotar a discussão acerca da “ascensão e queda” da economia do desenvolvimento, mas
sim fazer uma breve apresentação do contexto em que surgiu a abordagem do desenvolvimento alternativo.
6 Segundo Leys (1996), a teoria de desenvolvimento era na sua origem apenas uma teoria acerca da melhor forma para colônias
e ex-colônias acelerarem o crescimento econômico nacional no ambiente internacional do pós-guerra.
7 Ver Armani (1998: 28/9), Binswanger (1995: 2/5-11/13-5), Throsby (1986: 23-6), World Bank (1995).

92
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Surge então a questão: O que fazer? Que origina várias outras questões.
• É o fim da economia do desenvolvimento, que se fragmentou, caminhou para a interdiscipli-
naridade?

• Há que negar a possibilidade de domesticar o processo de desenvolvimento imanente, ou


seja, negar a prática de desenvolvimento intencional, quer pelo Estado, quer pela sociedade
civil – defesa da era pós-desenvolvimento8 e do desenvolvimento livre de tutela?9

• Deve-se insistir no crescimento econômico acompanhado das políticas compensatórias “das


evidentes mazelas sociais e ambientais geradas pelos padrões de crescimento que vigoram
até aos dias atuais”? (Maluf, 2000: 55)10 Deixar ao Estado a mera função de regular o
mercado e compensar os excluídos?
• Optar por políticas de desenvolvimento alternativo?11

É, então, neste contexto de incerteza quanto ao futuro da economia do desenvolvimento


que surge a abordagem de desenvolvimento alternativo, da qual o empoderamento é um
conceito-chave. Este modelo tem como reivindicações políticas-chave a integração política (demo-
cracia participativa), a integração econômica (crescimento econômico adequado), a integração
social (igualdade de gênero) e a integração futura (sustentabilidade).
Os autores do desenvolvimento alternativo defendem os direitos humanos universais e os
direitos particulares dos cidadãos em determinadas comunidades políticas, especialmente os di-
reitos das pessoas até então sem voz, os pobres sem poder, que constituem a maioria. O modelo
de desenvolvimento alternativo envolve um processo de empoderamento cujo objetivo a longo
prazo é reequilibrar a estrutura de poder na sociedade, tornando a ação do Estado mais sujeita à
prestação de contas, aumentando os poderes da sociedade civil na gestão de seus próprios assun-
tos e tornando o mercado mais responsável.12 Um desenvolvimento alternativo consiste na prima-
zia da política para proteger os interesses do povo, especialmente dos setores desempoderados,
das mulheres e das gerações futuras assentes no espaço de vida da localidade, região e nação
(Friedmann, 1996, 33).
Embora um desenvolvimento alternativo seja inicialmente baseado em localidades particulares,
seu objetivo a longo prazo é transformar a totalidade da sociedade através da ação política aos
níveis nacional e internacional. Sem este salto qualitativo do local para o global, “o desenvolvi-
mento alternativo continuará encapsulado dentro de um sistema de poder altamente restritivo,
incapaz de progredir em direção ao genuíno desenvolvimento que procura” (Friedmann, 1996, 33).
O desenvolvimento alternativo tem como objetivo procurar uma mudança nas estratégias
nacionais existentes através de uma política de democracia participativa, de crescimento econô-
mico apropriado, de igualdade de gêneros e de sustentabilidade ou eqüidade entre gerações.

8 Sobre o enfoque pós-moderno ver Maluf (2000: 65/6).


9 Cowen e Shenton (1996), citados por Maluf (2000: 68/70).
10 Para crítica à combinação crescimento econômico com políticas sociais compensatórias ver Maluf (2000: 60/1).
11 Pieterse (1998), citado por Maluf (2000: 68/9), critica o desenvolvimento alternativo por considerá-lo um campo fragmentado
em termos teóricos e pela perda de seu sentido alternativo na medida em que a corrente tradicional incorporou muitos de seus
lemas – embora na verdade o que fez foi cooptar seus conceitos e noções para simplesmente os agregar a suas estratégias
centradas no crescimento, caso do Banco Mundial.
12 O que se pode considerar como uma forma de equilibrar os desequilíbrios dos níveis de poder entre as três esferas: Estado,
mercado e sociedade civil.

93
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Embora defenda uma política de unidades de base, um desenvolvimento alternativo necessita de


um Estado forte (democrático e não autoritário) que instaure as suas políticas. Um Estado que
aposte numa democracia participativa, em que os poderes para gerir problemas sejam entregues a
instâncias locais e ao próprio povo, organizado em comunidades. É, então, necessário transformar
dramaticamente o Estado e a doutrina dominante para possibilitar que os setores desprovidos de
poder sejam incluídos nos processos políticos e econômicos, tenham os seus direitos de cidadania
e sejam reconhecidos como seres humanos (Friedmann, 1996).
Contudo, a ação local encontra-se fortemente restringida por forças econômicas globais,
estruturas de bem-estar desiguais e alianças de classe hostis. Se estas não forem modificadas, o
desenvolvimento alternativo restringir-se-á a uma ação sustentada para manter os pobres afasta-
dos de uma miséria ainda maior e para conter a devastação da natureza. Assim, se o desenvolvi-
mento alternativo encara a mobilização da sociedade civil a partir das bases, tem também que,
num segundo passo, lutar pela emancipação num território maior – nacional e internacional
(Friedmann, 1996, XI).

1.1. Desenvolvimento e combate às pobrezas


As noções de desenvolvimento e pobreza a serem utilizadas têm como base as apresentadas
por Sen em sua abordagem mais recente – Desenvolvimento como liberdade –, que pode ser vista
como o amadurecimento da abordagem de titularidades13 e capacidades14 da mesma autoria.
Nesta abordagem, o desenvolvimento é visto como um processo de eliminação de privações
de liberdades e ampliação das liberdades substantivas 15 interligadas de diferentes tipos que as
pessoas têm razão para valorizar. Ou seja, uma noção aberta, que respeita a diversidade humana
e sua liberdade de escolha.
E a pobreza é vista como privação de capacidades em vez de meramente como baixo nível de
renda. O que não significa uma negação da idéia sensata de que a renda baixa é claramente uma
das causas principais da pobreza, pois a falta de renda pode ser uma razão primordial da privação
de capacidades de uma pessoa. Porém, ao colocar a ênfase da análise da pobreza nas capacidades,
é possível melhorar o entendimento da natureza e das causas da pobreza e privação desviando a
atenção principal dos meios (e de um meio específico que geralmente recebe atenção exclusiva,
ou seja, a renda) para os fins que as pessoas têm razão para buscar e, correspondentemente, para
as liberdades de poder alcançar esses fins.

13 A abordagem das titularidades tem três conceitos básicos: o conjunto de dotações de recursos (endowment set), que se define
como a combinação de todos os recursos legalmente possuídos por uma pessoa (tangíveis e intangíveis); o conjunto de
titularidades (entitlement set), conjunto de todas as combinações possíveis de bens e serviços que uma pessoa pode obter
legalmente através do uso do seu conjunto de dotações de recursos; e o mapa de titularidades (entitlement mapping ou
E-mapping), que é a relação entre o conjunto de dotações de recursos e o de titularidades, i.e., mostra a taxa pela qual os
recursos do conjunto de dotações podem ser convertidos em bens e serviços do conjunto de titularidades. O mapa de
titularidades terá três componentes: um componente de produção, um componente de troca e um componente de
transferência. É possível identificar quatro fontes de falha de titularidade: perda de dotação de recursos, falha de produção,
falha de troca e falha de transferência (Osmani, 1995).
14 A abordagem de capacidades (ou de desenvolvimento como expansão de capacidades) baseia-se na avaliação da mudança
social em termos de enriquecimento da vida humana como seu resultado (desenvolvimento humano), onde a vida humana é
vista como sendo constituída de modos de fazer e de ser (doings and beings) que em conjunto se definem como modos de
funcionar (functionings). O objetivo fundamental do desenvolvimento é o de expandir as capacidades das pessoas para fazer e
ser. As capacidades determinam as várias combinações de modos de funcionar que uma pessoa pode atingir exercendo sua
opção de escolha (Stewart, 1995).
15 Capacidades possuídas por uma pessoa.

94
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Segundo esta abordagem, para que ocorra desenvolvimento é preciso que se removam as
principais fontes de privação de liberdades e que se ampliem as liberdades substantivas.
Como primeira fonte de privação de liberdades temos a pobreza econômica, que rouba das
pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças
tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou de morar de modo apropriado, de ter acesso a água
potável e saneamento básico. Como segunda, a carência de serviços públicos e de assistência
social, que se traduz na ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado
de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da
ordem locais. E, ainda, a negação de liberdades políticas e civis por regimes autoritários e de
restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade.
Ou seja, a pobreza e a tirania, a carência de oportunidades econômicas e a destituição social
sistemática, a negligência dos serviços públicos e a intolerância ou interferência excessiva de
Estados repressivos, são vistas como obstáculos ao exercício e à expansão de liberdades.
Sen considera cinco tipos de liberdades substantivas,16 vistos numa perspectiva instrumental:
liberdades políticas, facilidades econômicas, oportunidades sociais, garantias de transparência e
segurança protetora.
As liberdades políticas referem-se às oportunidades que as pessoas têm para determinar
quem deve governar e com base em que princípios, além de incluírem a possibilidade de fiscalizar
e criticar as autoridades, de ter liberdade de expressão política e uma imprensa sem censura, de
ter liberdade de escolher entre diferentes partidos políticos etc. As facilidades econômicas dizem
respeito a oportunidades que os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósito
de consumo, produção ou troca. As oportunidades sociais são disposições que a sociedade esta-
belece nas áreas de educação, saúde etc., que influenciam a liberdade substantiva de o indivíduo
viver melhor. As garantias de transparência referem-se às necessidades de sinceridade que as
pessoas podem esperar: a liberdade de lidar uns com os outros sob garantias de segredo e clare-
za. Estas têm um claro papel instrumental como inibidoras da corrupção, da irresponsabilidade
financeira e de transações ilícitas. A segurança protetora é necessária para proporcionar uma rede
de segurança social, impedindo que a população no limiar da vulnerabilidade seja reduzida à
miséria e, até mesmo, à fome e à morte. Esta incorpora disposições institucionais fixas e medidas
ad hoc em caso de emergências.
Embora Sen centre sua análise nas esferas do Estado e do mercado, ao longo de seu livro é
possível perceber que estas liberdades individuais poderão ser expandidas através do acesso às
organizações da sociedade civil, ao Estado e ao mercado.
Nesta abordagem, a liberdade é considerada o fim primordial e o principal meio do desen-
volvimento, isto é, respectivamente, o papel constitutivo e o papel instrumental da liberdade no
desenvolvimento.
As liberdades instrumentais tendem a contribuir para a capacidade geral de a pessoa viver
mais livremente (fim), mas também têm o efeito de complementar-se mutuamente (meios), contri-
buindo para o desenvolvimento via expansão de liberdades. Ou seja, as liberdades instrumentais
aumentam diretamente as capacidades das pessoas, mas também ligam-se umas às outras e
contribuem para o aumento da liberdade humana em geral, que permite às pessoas levarem o
modo de vida que elas com razão valorizam (Sen, 2000).

16 Sen reconhece que não é uma listagem completa.

95
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Esta análise de desenvolvimento considera as liberdades dos indivíduos os elementos consti-


tutivos básicos. Atenta-se particularmente para a expansão de capacidades (capabilities) das pessoas
de forma a que estas levem o tipo de vida que com razão valorizam. Ou seja, o papel consti-
tutivo relaciona-se à importância da liberdade substantiva no enriquecimento da vida humana.
As liberdades substantivas incluem capacidades elementares como, por exemplo, ter condições de
evitar privações como a fome, a subnutrição, a morbidez inevitável e a morte prematura, bem
como as liberdades associadas a saber ler e fazer cálculos aritméticos, ter participação política e
liberdade de expressão etc. Essas capacidades podem ser aumentadas pelas políticas públicas e a
direção de políticas públicas pode por sua vez ser influenciada pelo uso efetivo das capacidades
participativas do povo – relação de mão dupla.
O papel instrumental da liberdade diz respeito ao modo como diferentes tipos de direitos,
oportunidades e titularidades (entitlements) contribuem para a expansão da liberdade humana
em geral e, assim, para a promoção do desenvolvimento. A eficácia da liberdade como instrumento
reside no fato de que diferentes tipos de liberdade se inter-relacionam. E um tipo de liberdade
pode contribuir imensamente para promover liberdades de outros tipos, sendo o processo de
desenvolvimento crucialmente influenciado por essas inter-relações (Sen, 2000).
Observe-se que, para responder às múltiplas liberdades inter-relacionadas, existe a necessi-
dade de desenvolver e sustentar uma pluralidade de instituições, como sistemas democráticos,
mecanismos legais, estruturas de mercado, provisão de serviços de educação e saúde, facilidades
para a mídia e outros tipos de comunicação etc. (Sen, 2000). Contudo, é necessário que essas
instituições considerem e respeitem o tecido social existente.
Sen ainda salienta duas razões pelas quais a liberdade é central para o processo de desenvol-
vimento: a razão avaliatória e a razão da eficácia.
Segundo a razão avaliatória, a liberdade substantiva é considerada essencial, uma vez que o
êxito de uma sociedade, nesta visão de desenvolvimento como expansão de liberdades, deve ser
avaliado primordialmente segundo as liberdades substantivas que os membros dessa sociedade
desfrutam. Ter mais liberdade para fazer as coisas que são justamente valorizadas é importante
por si mesmo para a liberdade global da pessoa – e importante porque favorece a oportunidade
de a pessoa ter resultados valiosos. Ambas as coisas são relevantes para a avaliação da liberdade
dos membros da sociedade e, conseqüentemente, cruciais para a avaliação do desenvolvimento
da sociedade.
A razão da eficácia diz-nos que a liberdade substantiva é não apenas a base da avaliação do
êxito e do fracasso, mas também um determinante principal da iniciativa individual e da eficácia
social. Ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas de cuidar de si e de influenciar o
mundo, questões centrais para o processo do desenvolvimento. Quem se relaciona com o aspecto
de condição de agente do indivíduo (como membro do público e como participante de ações
econômicas, sociais e políticas) é alguém que age e ocasiona mudança e cujas realizações
podem ser julgadas de acordo com seus próprios valores e objetivos, independentemente de as
avaliarmos ou não também segundo algum critério externo.
Os fins e os meios do desenvolvimento exigem que a perspectiva da liberdade seja colocada
no “centro do palco”. Nessa perspectiva, as pessoas têm de ser vistas como ativamente envolvidas
– dada a oportunidade – na conformação de seu próprio destino e não apenas como beneficiárias
passivas dos frutos de engenhosos programas de desenvolvimento. O Estado e a sociedade têm
papéis amplos no fortalecimento e na proteção das capacidades humanas.

96
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Então, no combate à pobreza rural no Nordeste brasileiro, seguindo as noções de desen-


volvimento e pobreza de Sen, é necessário direcionar os esforços para combater as principais
fontes de privação de liberdades no campo e ampliar as liberdades substantivas da população rural.
Como principais fontes de privação no campo temos: a pobreza econômica, cujos principais
alvos são os agricultores familiares do Nordeste;17 a carência de serviços públicos e assistência
social, sendo necessário que os investimentos em serviços públicos (ex.: educação, saúde) deixem
de privilegiar o urbano e comecem a olhar mais para o rural; e a negação de liberdades políticas
e civis, o que no Nordeste rural se traduz, por exemplo, no poder das elites oligárquicas e no
seu acesso privilegiado ao Estado e capacidade de influenciar a formulação de políticas e
programas em seu favor, criando simultaneamente uma relação clientelista com a população
rural (ex.: política de seca).
Para ampliar as liberdades substantivas da população rural é necessário ampliar suas liberda-
des políticas (que podem incluir descentralização, accountability e participação), ampliar suas
facilidades econômicas (acesso a recursos – ex.: terra e financiamento – para consumo, produção
e troca), suas oportunidades sociais (ex.: educação e saúde), as garantias de transparência
(ex.: ausência de corrupção) e a segurança protetora (rede de segurança social, ex.: aposentadoria
rural). O que terá de ocorrer juntamente com um processo de empoderamento desses atores e
suas organizações locais para que estes possam ter “vez e voz”18 nas três esferas de atuação –
Estado, mercado e sociedade civil. Ou seja, apostar num tipo de desenvolvimento que olhe para o
potencial de desenvolvimento da agricultura e para a possibilidade de os agricultores familiares
se tornarem agentes do seu próprio desenvolvimento.

1.2. Empoderamento
O empoderamento é encarado como estímulo e motor do processo de desenvolvimento e
superação das pobrezas. Um processo contínuo e em constante renovação que permite a susten-
tabilidade dos processos locais de desenvolvimento a longo prazo, por exemplo, com a saída das
ONGs internacionais e nacionais da gestão do projeto de desenvolvimento e com a passagem da
responsabilidade de gestão do mesmo às comunidades locais.
Consideramos interessante apresentar algumas das diversas noções de empoderamento que
se podem encontrar na literatura como contribuição para a discussão final.
Cornwall (2000) refere-se ao termo empoderamento como o mais maleável, aquele que
apresentou maiores mudanças de significado nas últimas três décadas do século XX no contexto
do desenvolvimento, e ao seu esvaziamento por uso generalizado e não muito cuidado. Segundo
a autora, os discursos de desenvolvimento alternativo dos anos 1970 viam empoderamento como
o processo através do qual as pessoas se envolviam ativamente na luta para aumento de controle
sobre recursos e instituições (Cornwall, 2000: 74).

17 Os pobres do Nordeste agrário correspondem hoje a 63% da pobreza rural do país e a 32% dos pobres brasileiros. Eles são 9%
dos brasileiros, mas recebem menos de 1% da renda familiar nacional. Destes, em 1990, viviam da agricultura de auto-
subsistência 83% dos chefes de famílias pobres, cuja renda familiar dependia em 76% daquela atividade. (DESER, 1997, citado
por Armani, 1998: 32).
18 No decorrer de uma reunião no âmbito do diagnóstico sobre os caminhos de inclusão dos mais pobres na AS-PTA, uma
liderança sindical, Nelson Ferreira, do STR de Lagoa Seca, colocou que, além de serem sem voz os excluídos são também sem
vez – “sem vez e sem voz!”.

97
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Muitas vezes associado com a simples participação nos processos de desenvolvimento e


interpretado de forma restrita como ganho individual, a linguagem do empoderamento, no início
dos anos 1990, tornou-se um termo confortável para o mainstream do desenvolvimento. Para alguns
o termo adquiriu um significado ainda mais amplo. O Banco Mundial19, por exemplo, vê o empo-
deramento dos sem voz como uma faceta da participação. Segundo seu relatório, ao dar informação
ao público e descentralizar a tomada de decisão as agências governamentais empoderam automa-
ticamente os diferentes stakeholders e grupos de interesse, se a tomada de decisão for flexível por
parte das agências.
Para Cornwall (2000), não aparece nestas visões de empoderamento o reconhecimento das
relações de poder existentes que podem impedir o uso de espaços políticos que podem ser abertos
pelos esforços de empoderá-los.
Mas essas não são as únicas relações de poder excluídas dessas visões. A noção de empode-
ramento precisa também considerar as relações de poder existentes na família, nas próprias comuni-
dades e organizações e nos movimentos da sociedade civil que, voluntária ou involuntariamente,
excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso aos recursos e do exercício de
suas capacidades; as relações de poder dentro da esfera do mercado, que subordinam ou excluem
totalmente os agricultores familiares do acesso ao mesmo em condições de maior eqüidade, quer
para comprar, quer para vender; e o fato de o empoderamento não ser algo que se possa fazer
pelas pessoas, mas sim algo que as pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, que não é
possível empoderar alguém, mas sim estimular o processo individual e coletivo de empoderamento.
É um processo que tem origem dentro das pessoas, no seio das comunidades e das organizações
locais, que não pode ser pensado de cima para baixo (medidas assistencialistas e políticas cliente-
listas não se enquadram neste processo), nem de fora para dentro.
Segundo Costa (2000), o conceito de empoderamento surgiu com os movimentos de direitos
civis nos EUA nos anos 1970, através da bandeira do poder negro, como uma forma de autovalo-
rização da raça e conquista de uma cidadania plena. Esta autora define empoderamento como
“o mecanismo pelo qual as pessoas, as organizações, as comunidades tomam controle de seus
próprios assuntos, de sua própria vida, de seu destino, tomam consciência da sua habilidade e
competência para produzir e criar e gerir (Costa, 2000: 7). Este conceito começou a ser utilizado
pelas feministas, no mesmo período, para se referirem à alteração radical dos processos e estruturas
que reduzem a mulher a uma posição subordinada. “As mulheres tornam-se empoderadas através
de decisões coletivas e mudanças individuais” (Costa, 2000: 7).
Segundo Stromquist,20 ainda dentro da linha feminista, os parâmetros do empoderamento
são: a construção de uma auto-imagem e confiança positiva, o desenvolvimento da habilidade
para pensar criticamente, a construção da coesão de grupo, a promoção da tomada de decisões
e a ação. E este processo dá-se através de cinco níveis de igualdade: de bem-estar; de acesso aos
recursos; de conscientização; de participação e de controle.
Ainda segundo esta autora, uma definição de empoderamento deve incluir os componentes
cognitivos, psicológicos, políticos e econômicos. O componente cognitivo refere-se à compreensão
que as mulheres têm da sua subordinação, assim como das causas desta em níveis micro e macro
da sociedade. Envolve a compreensão de ser e a necessidade de fazer escolhas, mesmo que

19 Relatório de 1994, citado pela autora.


20 Stromquist, N. La busqueda del empoderamiento: em qué puede contribuir el campo de la educación. In: Leon, M. (org.) Poder
y empoderamiento de las mujeres. Bogotá, MT Editores, 1997, citada por Costa (2000).

98
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

possam ir contra as expectativas culturais e sociais. O componente psicológico inclui o desenvol-


vimento de sentimentos que as mulheres podem pôr em prática no nível pessoal e social para
melhorar sua condição, assim como a ênfase na crença de que podem ter êxito nos seus esforços
por mudanças: autoconfiança e auto-estima são fundamentais. O componente político supõe a
habilidade para analisar o meio circundante em termos políticos e sociais, que também significa a
capacidade para organizar e promover mudanças sociais. O componente econômico supõe a
independência econômica das mulheres. É um componente fundamental de apoio ao componen-
te psicológico, pois possibilita o fim da dependência financeira.
Por outro lado, Blackburn (1993: 5), em seu estudo sobre educação popular na América
Latina, vê educação como um processo de empoderamento através do qual os oprimidos se
tornam conscientes das injustiças sistemáticas que os mantêm pobres e decidem agir para aliviar
essas injustiças.
Por seu lado, Friedmann (1996), em sua abordagem do empoderamento, coloca a ênfase na
autonomia das tomadas de decisão de comunidades territorialmente organizadas, na autode-
pendência local (mas não na autarcia), na democracia direta (participativa) e na aprendizagem
social pela experiência. E considera empoderamento todo o acréscimo de poder que, induzido
ou conquistado, permite aos indivíduos ou unidades familiares aumentarem a eficácia do seu
exercício de cidadania.
O ponto de partida do processo de empoderamento é a localidade, porque a sociedade civil
é mais prontamente mobilizável em torno de temas locais, mas o objetivo é de que este processo
avance para o nível regional, nacional e internacional.
Segundo o autor, na sua luta pela vida e condições de vida, as unidades domésticas dispõem
de três tipos de poder: o social, o político e o psicológico.
O poder social é entendido como o acesso a certas bases de produção doméstica, como a
informação, o conhecimento e as técnicas, a participação em organizações sociais e os recursos
financeiros. Quando uma economia doméstica incrementa o acesso a estas bases, sua capacidade
de estabelecer e alcançar objetivos aumenta também.
O poder político diz respeito ao acesso dos membros individuais de unidades domésticas ao
processo pelo qual são tomadas decisões, particularmente as que afetam o seu futuro como
indivíduos, inclusive dentro do agregado familiar nas decisões tomadas dentro da casa. O poder
político não é apenas o poder de votar, mas também o poder da voz e da ação coletiva (parti-
cipação em associações políticas, como partido, movimento social, grupo de interesse, sindicato
de trabalhadores ou agricultores).
O poder psicológico é visto como uma percepção individual de força e sua presença mani-
festa-se num comportamento de autoconfiança. O empoderamento psicológico é, muitas vezes,
o resultado de uma ação vitoriosa nos domínios social e político, podendo resultar de um trabalho
intersubjetivo. O poder psicológico terá efeitos positivos na luta continuada da unidade doméstica
pelo aumento dos seus poderes social e político efetivos.
O objetivo é então o empoderamento das unidades domésticas e dos seus membros indivi-
duais nos três sentidos. É um processo que começa por baixo e pelo interior de formações sociais
específicas territorialmente – comunidades, aldeias, vizinhanças (Friedmann, 1996).
Friedmann (1996) vê pobreza como um “estado de desempoderamento” que tem como
ponto de partida o pressuposto de que as famílias pobres não têm poder social para melhorar as
condições de vida dos seus membros. A pobreza é encarada como a falta de acesso às bases de
poder social, ou seja, a privação de: espaço de vida defensável, tempo excedente, conhecimentos

99
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

e técnicas, informação adequada, organização social, redes sociais, instrumentos de trabalho,


condições de vida e recursos financeiros. Estas bases são interdependentes, pois todas elas se
ligam a meios de obtenção de outros meios num processo espiral de aumento de poder social
(Friedmann, 1996).
De acordo com esta abordagem, a superação das pobrezas passa pela aquisição de poder
social e sua transferência para poder político efetivo, possibilitando que os interesses das unidades
domésticas e das localidades sejam efetivamente defendidos e aceitos na macroesfera da política
regional, nacional e mesmo internacional (Friedmann, 1996), ou seja, na relação com atores da
esfera do Estado, nos diferentes níveis.
Para Gita Sen (1997), empoderamento relaciona-se, primeiro e antes de tudo, com o poder,
mudando as relações de poder em favor daqueles que anteriormente tinham pouca autoridade
sobre suas próprias vidas. Para a autora, empoderamento é o processo de ganhar poder, tanto
para controlar recursos externos como para o aumento da auto-estima e da capacidade interna.
Ela considera que o verdadeiro empoderamento inclui tipicamente dois elementos e raramente é
sustentável sem algum deles. Uma mudança no acesso a recursos externos sem uma mudança na
consciência pode deixar as pessoas sem flexibilidade, motivação e atenção para fazer frente a e/ou
obter esse poder, deixando um espaço aberto para que outros o obtenham. Para ser sustentável,
o processo de empoderamento deve modificar tanto a autopercepção das pessoas como o con-
trole sobre suas vidas e sobre seus ambientes materiais. Considera, ainda, que embora os agentes
externos de mudança possam catalisar ou criar um ambiente de apoio, são as pessoas que empo-
deram a si mesmas.
Tomaremos então como base as diferentes noções de empoderamento apresentadas para a
discussão final.

2. Estratégias de reprodução individuais


e coletivas na (re)construção do acesso
ao Estado, ao mercado e à sociedade civil
Se são as pessoas que empoderam a si mesmas e se aos agentes externos de desenvolvimento
cabe o papel de facilitador e de catalisador do processo (e por vezes de estimulador), é interessante
refletir sobre como as pessoas, famílias e comunidades estão-se empoderando. Quais suas estra-
tégias tradicionais (individuais e/ou coletivas) de melhoria de suas condições de vida? Qual o
papel das organizações e movimentos da sociedade civil? E do Estado? E do mercado?
Para embasar esta discussão apresentaremos a abordagem de rural livelihoods de Chambers,
na forma como esta foi aplicada por Bebbington (1997 e 1999) à análise da pobreza e viabilidade
dos camponeses da região andina da América Latina.
Destes trabalhos de Bebbington surge um esquema analítico 21 que se propõe a desenvolver e
articular as abordagens anteriores. Apresentaremos então este esquema que servirá de base à
discussão final.

21 Este esquema analítico inova ao levantar uma das principais críticas à abordagem de capacidades de Sen – a de realizar uma
análise estática que ignora a variável tempo – ao analisar as trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods).

100
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

O DFIF, adaptando a definição de rural livelihoods de Chambers,22 compreende livelihood


como o conjunto de capacidades, ativos e atividades necessários para viver. Uma livelihood é
sustentável quando consegue lidar com e recuperar de crises e choques e manter e aumentar suas
capacidades e ativos tanto no presente como no futuro, sem dilapidar a base de recursos naturais.
De forma simplificada, o DFID apresenta o esquema analítico de livelihoods sustentáveis como
vendo as pessoas operando num contexto de vulnerabilidade. Neste contexto, estas têm acesso a
certos ativos (capital humano, capital natural, capital financeiro, capital social e capital físico) ou
fatores redutores da pobreza. Estes ganham seu significado e valor através do ambiente social,
institucional e organizacional prevalecente. Este ambiente também influencia as estratégias de
livelihoods – formas de combinar e usar os ativos – que são abertas às pessoas na perseguição de
resultados benéficos de livelihoods que vão ao encontro de seus próprios objetivos de livelihoods
(DFID, 1999, 2000).
De suas análises, Bebbington (1997 e 1999) conclui que apesar da diversidade das estratégias
adotadas e dos seus, cada vez mais, componentes não-agrários,23 é possível detectar temas comuns
em termos de trajetórias de reprodução rurais (rural livelihoods) bem sucedidas. Temas esses que
circulam em torno da questão do acesso e, em particular, acesso a: diferentes recursos (crédito,
terra, qualificações, trabalho etc., dependendo das estratégias de reprodução rurais); diferentes
oportunidades para transformar esses recursos em fontes de otimização de livelihoods (acesso a
novos mercados de trabalho e de produto, por exemplo); acesso a meios que permitam melhorar
as formas existentes através das quais esses recursos contribuem para as suas estratégias de
reprodução; e, de modo a alcançar cada um dos acessos, as pessoas têm sido dependentes da
capacidade de alcançar essas diferentes formas de acesso, o que pode vir de forma muito variada
de redes de parentesco ou étnicas, de organizações sociais, de organizações estatais e não-gover-
namentais intermediárias e também de outros atores intermediários do mercado.
Por outro lado, as falhas de melhoria das rural livelihoods parecem ter como principais
razões a falha ou incapacidade para: defender os seus ativos existentes (perda de terra, de capital
financeiro), identificar e assegurar oportunidades para transformar ativos em livelihoods e
proteger meios existentes de transformar ativos em livelihoods (perder um lugar num mercado).
Bebbington chama atenção para um fator importante na contenção das forças que geram
pobreza, que é a capacidade das pessoas para construir e utilizar adequadamente redes e ligações
com atores do Estado, do mercado e da sociedade civil, que ajudam as famílias a aceder, defender
e capitalizar seus ativos. E para o fato de as pessoas apresentarem fortes limitações neste tipo de
capacidade (Bebbington, 1999).
Conseqüentemente, um esquema analítico para analisar estratégias de reprodução rurais
capazes de reduzir a pobreza necessita, no mínimo, de levar em conta: o acesso das famílias a
cinco tipos de ativos24 de capital (natural, produzido, humano, social e cultural); os modos como
elas combinam e transformam esses ativos na construção de livelihoods que, na medida do

22 Chambers, R. & Conway, G. Sustainable rural livelihoods: practical concepts for the 21 st century. IDS Discussion Paper 296,
Brighton: IDS, 1992, citado por DFID (1999, 2000).
23 Transição para agricultura familiar capitalizada e atividades agrossilvícolas e pastoris; proletarização rural; migração temporária
ou permanente; indústria rural; e comércio rural e periurbano.
24 Por ativos entendem-se os recursos acessados. Não são apenas recursos que as pessoas usam na construção de suas
livelihoods, são ativos que lhes dão a capacidade de ser e agir, no sentido de Sen. Os ativos não são somente coisas que
permitem sobrevivência, adaptação e alívio da pobreza, mas também a base do poder do agente para agir e para reproduzir,
desafiar ou mudar as regras que governam o controle, o uso e a transformação dos recursos.

101
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

possível, satisfaçam as suas necessidades; os meios pelos quais as pessoas são capazes de acessar,
defender e manter esses ativos; os modos através dos quais são capazes de expandir os seus
ativos-base através do engajamento com outros atores por meio de relações sujeitas às lógicas do
Estado, do mercado e da sociedade civil; e os modos como são capazes de desenvolver e
intensificar as suas capacidades não apenas para dar à vida mais significado, mas também, e
mais importante, para mudar as regras dominantes e as relações que governam as maneiras
pelas quais os recursos são controlados, distribuídos e transformados em fluxos de renda
(Bebbington, 1999).
Assim, através das capacidades, é possível transformar os ativos em: níveis de consumo que
reduzam sua pobreza (econômica); condições de vida que impliquem uma melhoria da sua quali-
dade de vida, de acordo com os critérios próprios a essas pessoas; capacidades humanas e sociais
para usar e defender os ativos de maneira sempre mais efetiva; e um ativo-base que continuará a
permitir os mesmos tipos de transformações (Bebbington, 1999).
Para Bebbington os cinco capitais são, ao mesmo tempo, os recursos (inputs) que tornam
possíveis as estratégias de reprodução, os ativos que dão capacidades às pessoas e os resultados
(outputs) que tornam as livelihoods significativas e viáveis.25 O seu foco é o agregado familiar e as
relações intra-agregado e suas formas de engajamento e de relações com os atores do mercado,
Estado e sociedade civil, e as implicações desse engajamento para a distribuição e a transfor-
mação dos ativos.
Em termos esquemáticos, temos que os agregados familiares e seus membros, ao terem
acesso a pelo menos um dos cinco capitais, através de seu uso e/ou transformação e/ou repro-
dução, irão construir maior bem-estar material, expandir capacidades e aumentar o significado
de suas vidas, num círculo virtuoso de acesso constante a capitais, sua acumulação e troca entre
os diferentes capitais. Além disso, as relações que permitem o acesso, uso e transformação desses
capitais ocorrem nas esferas do Estado, mercado e sociedade civil, com suas lógicas próprias.
Estas relações com atores das três esferas podem ocorrer quer individualmente, quer através de
organizações locais, e têm como objetivos demandar, defender, transformar e receber ativos, além
de desafiar a lógica governamental de distribuição de ativos e sua transformação.
É através das relações com os atores que operam dentro das três esferas que as famílias
rurais e suas organizações buscam reafirmar ou renegociar as regras (como definidas dentro de
cada esfera) que governam o acesso aos recursos na sociedade. Cada esfera tem a sua lógica
própria que influencia a distribuição, o controle e a transformação de ativos. Através dessas
relações os atores buscam defender seus ativos, defender ou aumentar os benefícios que derivam
de seus ativos ao transformá-los (transformando dotações em titularidades [Sen]) e lutar para
melhorar as taxas de troca que governam as transações através das quais as dotações são trans-
formadas em titularidades. Como cada esfera opera de acordo com sua própria lógica, isso esta-
belece os limites do que pode e não pode ser obtido através da ação dentro de uma esfera.
Assim, para ser eficaz no fortalecimento de livelihoods é necessário capacidade de administrar
relações e transações dentro de cada uma das esferas, aproveitando o que pode ser obtido através de
uma esfera e complementando esse resultado com atuação nas outras esferas (Bebbington, 1999).

25 Ao se incluir tanto a noção de viabilidade e significação, o que se espera é que o esquema analítico proposto permita a
consideração tanto de noções de pobreza mais estritas (baseados na renda/gasto) como de noções mais amplas (baseadas na
dignidade/segurança).

102
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

A habilidade das famílias rurais para ganharem acesso a estas três esferas é fortemente
afetada pelas capacidades que elas detêm, como resultado de suas dotações iniciais de diferentes
tipos de capitais. Um ponto importante, então, é compreender as condições sob as quais as
pessoas com menos dotações podem ser capazes de incrementar seu acesso aos atores que operam
dentro dessas diferentes esferas e as maneiras pelas quais as organizações podem começar a agir
mais em favor daqueles menos dotados. Apesar do papel de todos os capitais como meios para
expandir capacidades e iniciar processos de empoderamento, Bebbington centra sua análise na
forma como o capital social pode ampliar o acesso a outros atores geridos pela lógica do Estado,
mercado e sociedade civil e assim afetar a sustentabilidade das livelihoods e combater a pobreza
(Bebbington, 1999).
Convém esclarecer o que se entende, nesta abordagem, por capital natural, produzido, humano,
social e cultural, apesar da dificuldade de encontrar consenso na sua definição e da necessidade de
contextualizar estes capitais na realidade em análise, para que o esquema analítico tenha significado.
DFID (1999, 2000) considera capital humano como qualificações, conhecimento, habilidade
para trabalho e boa saúde que em conjunto possibilitam à pessoa seguir diferentes estratégias de
reprodução e alcançar seus objetivos de livelihoods. No nível do agregado familiar, o capital
humano é um fator da quantidade e qualidade de trabalho disponível, o que varia de acordo com
o tamanho do agregado familiar, nível de qualificações, potencial de liderança, estado de saúde
etc. O capital humano aparece no esquema como um ativo de livelihood, ou seja, como um meio
para atingir resultados das estratégias de reprodução. Contudo, a sua acumulação pode ser um
fim em si mesmo – desenvolvimento humano. Além de seu valor intrínseco, sua importância
reside no fato de este capital ser necessário para se poder usar quaisquer outros tipos de capitais.
Este é necessário, embora não suficiente, para alcançar resultados das estratégias de reprodução.
O capital natural é utilizado para se referir ao estoque de recursos naturais dos quais se
retiram recursos e serviços necessários às livelihoods. Existe uma grande variedade nos recursos
que constituem o capital natural, desde bens públicos intangíveis, como atmosfera e biodiversida-
de, até bens divisíveis utilizados diretamente para produção. Este capital é muito importante para
todos aqueles que retiram toda ou parte de suas livelihoods de atividades baseadas em recursos
(agricultura, pesca, extrativismo etc.). Contudo, sua importância vai mais além. Ninguém sobrevi-
veria sem a ajuda de serviços ambientais chave e comida produzidos do capital natural. A saúde
(capital humano) tende a sofrer em áreas onde a qualidade do ar é baixa, como resultado de
atividades industriais ou desastres naturais. (DFID, 1999, 2000)
O capital produzido é encarado como resultado do crescimento econômico na abordagem
do Banco Mundial. Acredito que este terá mais significado para a análise se englobar o capital
físico e financeiro apresentados pelo DFID (1999, 2000).
Este compreende por capital físico a infra-estrutura básica e bens de produção que ajudam
as livelihoods, sendo que a infra-estrutura consiste em mudanças realizadas no ambiente físico
que ajudam as pessoas a satisfazer suas necessidades básicas e serem mais produtivas. Bens de
produção são ferramentas e equipamentos que as pessoas usam para funcionar mais produtiva-
mente. Os componentes de infra-estrutura normalmente essenciais às livelihoods sustentáveis
são: transporte a preços acessíveis, habitação e construções seguras, oferta de água de qualidade
e saneamento básico, energia limpa e a preços acessíveis, e acesso à informação (comunicação).
Muitas avaliações participativas de pobreza mostram que a falta de tipos específicos de infra-
estrutura é considerada uma dimensão fundamental da pobreza. Bens de produção insuficientes
ou inadequados também restringem a capacidade produtiva das pessoas e, por isso, o capital

103
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

humano à sua disposição. Maior tempo e esforço são despendidos para satisfazer as necessidades
básicas, para produzir e ganhar acesso ao mercado.
E por capital financeiro entendem-se os recursos financeiros que as pessoas utilizam para
alcançar seus objetivos de livelihoods, isto é, a disponibilidade de dinheiro ou equivalente que
permita às pessoas adotar estratégias de reprodução diferentes. São duas as fontes principais de
capital financeiro consideradas pelo DFIF (1999, 2000): os estoques disponíveis, normalmente
poupanças e crédito; e recebimentos regulares de dinheiro, além da renda, aposentadorias e
outras transferências do Estado. A importância deste tipo de capital deve-se à sua flexibilidade.
Ele pode ser convertido em outros tipos de capitais (com maior ou menor dificuldade); pode ser
utilizado diretamente para obter alguns resultados das estratégias de reprodução (ex.: comprar
comida para combater a insegurança alimentar); e, certo ou errado, pode transformar-se em
influência política e pode libertar as pessoas para participação mais ativa em organizações que
formulam política e legislação e gerir o acesso a recursos.
O capital cultural é introduzido por Bebbington (1999), devido ao fato de este ter verificado
a importância dada à residência rural pelas populações analisadas. A residência parece estar asso-
ciada à manutenção de um conjunto de práticas que são valorizadas pelo seu significado: partici-
pação em festas, certas formas de trabalho agrícola. O que o leva a concluir que, além do signi-
ficado atribuído a um conjunto de ativos, existe um significado associado a um conjunto de
práticas culturais tornado possível (ou restringido) por padrões de co-residência ligados a certas
estratégias de reprodução rurais – tornando-se uma dimensão de pobreza ou riqueza significativa.
Estas práticas são também facilitadoras e empoderadoras, uma vez que impulsionam formas de
ação e de resistência que os outros quatro tipos de capitais não conseguiriam por si só tornar
possíveis. Podem também ser a base de manutenção e reprodução dos outros tipos de capitais.
Adotando certas formas de manutenção de identidade e padrões particulares de interação possi-
bilitam, inspiram e de fato empoderam. São outro insumo importante para as estratégias de
reprodução rurais e o alívio da pobreza.
Em relação ao capital social, várias definições podem ser apresentadas, mas vamos nos centrar
nas dos impulsionadores dessa discussão – Bourdieu, Coleman e Putnam.
Bourdieu26 define capital social como o agregado de recursos atuais ou potenciais que estão
ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos institucionalizadas de conheci-
mento e reconhecimento mútuo – ou, por outras palavras, ser membro de um grupo – que fornece a
cada um de seus membros o apoio de um capital possuído coletivamente. Afirma, também, que
o volume de capital social possuído por um dado agente depende do tamanho da rede de conexões
que ele consegue efetivamente mobilizar e do volume de capital (econômico, cultural ou simbólico)
possuído por cada um dos indivíduos com quem ele se encontra conectado.
Coleman27 introduz capital social como uma ferramenta conceptual para a compreensão de
uma orientação teórica da ação social que combina componentes da perspectiva econômica e
sociológica. Tem como objetivo importar o princípio econômico de ação racional para usá-lo na
análise de sistemas sociais, Coleman discute como o capital social é criado e examina três formas

26 Bourdieu, P. The forms of capital. In: Richardson, J. (ed.) Handbook of theory and research for the sociology of education.
Westport, CT: Greenwood Press, 1986, citado por Feldam et alii (1999).
27 Coleman, J. S. Social capital in the creation of human capital. American Journal of Sociology 94 (Supplement), 1988, pp. S95-
S120, citado por Feldam et alii (1999).

104
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

diferentes nas quais ele se manifesta. E, utilizando dados empíricos, mostra como o capital social
é utilizado na criação de capital humano. Então, as três formas de capital social são: obrigações e
expectativas que dependem da confiança criada pelo ambiente social, a capacidade da informação
fluir pela estrutura social de forma a fornecer a base para a ação e a presença de normas
acompanhadas por sanções efetivas.
Putnam (2000) apresenta o que entende por capital social no âmbito dos dilemas da ação
coletiva e do oportunismo daí resultante. Afirma que a cooperação voluntária é mais fácil numa
comunidade que tenha herdado um bom estoque de capital social sob a forma de regras de
reciprocidade e sistemas de participação cívica. Identifica capital social como as características da
organização social, como confiança, normas e sistemas, que contribuem para aumentar a eficiência
da sociedade, facilitando a coordenação e cooperação para benefício mútuo. E conclui que o
capital social facilita a cooperação espontânea e que sua oferta aumenta com o uso e que este
esgota-se se não for utilizado.
Bebbington recorre à definição de capital social de Woolcock (1998)28 como um termo amplo
que inclui as normas e redes que facilitam a ação coletiva para benefício mútuo. Noção que
escolhe por considerar que consegue acomodar as noções de Bourdieu, Coleman e Putnam. Considera,
também, a existência de capital social em vários níveis. Na escala local, as redes de confiança e
accountability mútua ligando indivíduos nas comunidades (normalmente não em toda a comuni-
dade) que aumentam a confiança e capacidade das pessoas de trabalhar juntas e expandir seu
acesso a outras instituições políticas ou civis; facilitam ainda a cooperação, reduzem os custos de
transação e fornecem a base para redes de segurança locais entre os pobres. Na escala meso,
alguns trabalhos empíricos demonstraram que organizações regionais e nacionais fortes com
redes que as ligam a outros atores da sociedade civil e do Estado podem ser eficazes para impe-
direm outros atores de expropriarem os recursos naturais, ao facilitar o acesso a outros tipos de
investimento (ex.: educação e saúde) através de sua demanda e conquista de uma presença mais
permanente em certos foros definidores de regras e tomadores de decisões na sociedade civil e no
Estado (Fox, 1990; Bebbington, 1996). 29 De forma semelhante, organizações fortes com redes
que as liguem a atores na esfera do mercado podem ajudar a abrir possibilidades de mercado aos
produtores rurais. Na escala nacional, capital social forte na forma de organizações regionais e
nacionais e suas ligações com funcionários governamentais podem ser um mecanismo pelo qual
as populações rurais podem influenciar as regras gerais que governam a distribuição do investi-
mento público de vários tipos e a defesa e o uso do capital natural (Fox, 1996; Bebbington e
Perreault, 1998).30
Considerando-se que os capitais não são apenas vistos pelo seu significado ou fonte de
sustento das famílias, estes são também uma fonte de poder. Podem ser vistos como meios para o
desenvolvimento, como as liberdades instrumentais de Sen, e como meios do processo de empode-
ramento, possibilitando às famílias tornarem-se agentes de seu próprio desenvolvimento.

28 Woolcock, M. Social capital and economic development: toward a theoretical synthesis and policy framework. Theory and
Society, 27(2) : 151-208, 1998, citado por Bebbington (1999).
29 Fox, J. (ed.) The challenge of rural democratisation: perspectives from Latin America and the Philippines. London: Frank Cass,
1990; e Bebbington, A. Organizations and intensification: small farmer federations, rural livelihoods and agriculture technology
in the Andes and Amazonia. World Development, 24(7) : 1161-78, 1996, citados por Bebbington (1999).
30 Bebbington, A. e Perrault, T. Social capital and political ecological change in highland Ecuador. Paper presented to the Annual
Meetings of the Association of American Geographers, Boston, March 1998, citado por Bebbington (1999).

105
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Então, de acordo com o esquema analítico de Bebbington, nas suas estratégias de reprodução
rurais as pessoas, famílias e comunidades necessitam de ter acesso às organizações e movimentos
da sociedade civil e aos atores das esferas do Estado e do mercado, para usar, trocar, combinar,
transformar, defender, manter, reproduzir e expandir suas dotações de capitais. O acesso a estas
esferas possibilita, assim, que as pessoas, famílias e comunidades alcancem os resultados esperados
de suas estratégias de reprodução rurais.
Mas de que tipo de acesso estamos falando? Não é suficiente que as pessoas, famílias e
comunidades tenham acesso às diferentes esferas, é necessário que esse acesso se dê em condições
de igualdade, de forma a que suas estratégias se operacionalizem e se potencializem. É, então,
necessário considerar as relações de poder existentes nas relações estabelecidas entre pessoas,
famílias e comunidades com os atores das diferentes esferas, assim como dentro das próprias
famílias e comunidades, que limitam ou negam o acesso.

3. Accountability e participação
Como vimos, para superar sua condição de pobreza as pessoas, famílias e comunidades precisam
não só ampliar seu acesso às organizações e movimentos da sociedade civil e aos atores das
esferas do Estado e do mercado, como também garantir que esse acesso se dê em condições de
igualdade. Uma forma de alcançar maior igualdade nessas relações é favorecendo a accountability
e a participação efetiva nas três esferas.
Consideramos, assim, relevante apresentar as diferentes noções de accountability que têm
sido utilizadas para a análise da relação entre os atores do Estado e da sociedade civil, que
acreditamos que também possam ser aplicadas à relação entre organizações e movimentos da
sociedade civil e pessoas, famílias e comunidades.
Segundo O’Donnell (1997), existem duas dimensões de accountability, a horizontal e a vertical.
A dimensão horizontal está fortemente relacionada com a operação eficaz do sistema de checks
and balances e com a transparência nos processos de tomada de decisão governamental. Esta opera
mediante uma rede de poderes relativamente autônomos (institucionais) que podem examinar e
questionar e, se necessário, sancionar atos irregulares cometidos durante o desempenho de cargos
públicos. Já a dimensão vertical tem como foco central as eleições (prestação periódica de contas
dos governantes nas urnas) e outros mecanismos que os cidadãos utilizam para controlar o governo
(O´Donnell, 1997; Smulovitz et alii, 2000).
Teoricamente, enquanto os mecanismos horizontais controlam e monitoram a legalidade das
ações de oficiais públicos e de agências governamentais, os verticais permitem aos cidadãos o
controle das ações de seus representantes e orientações das políticas. Em ambos os casos, assume-se
que os agentes controlados irão atuar de acordo com a lei ou de acordo com as preferências
eleitorais porque querem evitar a imposição de potenciais custos. No caso dos mecanismos hori-
zontais, os custos que pretendem evitar vão das sanções penais ao impeachment. No caso dos
mecanismos verticais, o custo a ser evitado é a perda das eleições.
Smulovitz et alii (2000) chamam a atenção para o fato de existir uma terceira dimensão
de accountability – a accountability societal – ignorada pelas análises tradicionais. Segundo os
autores, através de uma multiplicidade de atividades de monitoramento e de estabelecimento
de agenda, a sociedade civil acrescenta-se ao tradicional repertório de instituições eleitorais e
constitucionais.

106
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Embora não seja eleitoral, a accountability societal estabelece mecanismos verticais de


controle que têm como base ações de um variado conjunto de associações e movimentos e dos
meios de comunicação, ações que têm como objetivo expor a má atuação governamental, trazer
novas questões à agenda pública, ou ativar a operação de agências horizontais. E emprega tanto
instrumentos institucionais (ativar ações legais ou queixas) quanto não institucionais (mobili-
zações sociais ou exposição na mídia) (Smulovitz et alii, 2000: 150).
Para ser eficaz, a accountability societal requer uma sociedade civil organizada capaz de
exercer influência no sistema político e nas burocracias públicas – uma sociedade civil
empoderada. Ao contrário dos mecanismos eleitorais, a accountability societal pode ser exer-
cida entre eleições e não depende de calendários fixos. Pode ser ativada com a demanda e pode
ser dirigida para o controle de questões específicas, de políticos ou burocratas (Smulovitz et alii,
2000: 150, grifo nosso).
Tal como os mecanismos horizontais, os societais podem monitorar os procedimentos dos
políticos e funcionários públicos enquanto fazem política. Ao contrário dos mecanismos horizontais,
as medidas de accountability societal realizam estas funções de “cão de guarda” sem a necessidade
de maiorias especiais ou de titularidades constitucionais (Smulovitz et alii, 2000: 150).
Enquanto a accountability vertical é justificada pelo princípio da maioria, a accountability
societal retira sua legitimidade do direito de petição – um direito que não requer que a demanda
se encontre espalhada pela população. Em ambos os casos, a “voz” é o mecanismo disponível
para controle. Nos mecanismos societais, embora necessite ser forte e intensa, a voz não necessita
ser extensivamente representada. Esta característica revela uma das desvantagens deste tipo de
controle: as preferências de uma minoria persistente e barulhenta acabam sobre-representadas
(Smulovitz et alii, 2000: 150).
Os mecanismos societais de accountability diferem também dos mecanismos horizontais e
verticais na medida em que as sanções que eles provocam não são mandatárias nem legais, mas
simbólicas. Embora os atores que exercem accountability societal sejam incapazes de aplicar punições
legais por si mesmos, seus esforços ajudam a despontar procedimentos em tribunais ou agências
que levam a eventuais sanções legais, além de poderem também destruir capital político com as
denuncias realizadas (Smulovitz et alii, 2000: 151).
Smulovitz et alii (2000) consideram então a existência de dois tipos de accountability,
horizontal e vertical, sendo que a vertical se divide em eleitoral e societal. Os atores que controlam
a accountability horizontal são os membros do poder executivo, legislativo e judicial, juntamente
com as agências reguladoras. Os que controlam a accountability vertical eleitoral são os partidos
políticos com participação parlamentar e os cidadãos. Os atores que controlam a vertical societal
são as associações civis, as ONGs,os movimentos sociais e a mídia. Por seu lado, os mecanismos
de controle de políticos e burocratas ao dispor das associações civis, ONGs e movimentos sociais
são a mobilização social com exposição pública e/ou denúncia, a investigação pelas agências
responsáveis e a formulação de agenda. Os ao dispor da mídia são investigação e denúncia/
exposição pública e definição de agenda (Smulovitz et alii, 2000: 153).
Para ser eficaz, a accountability societal necessita de visibilidade dada pela mídia. Contudo,
apesar de sua eficácia, o uso da mídia levanta alguns problemas, uma vez que as acusações da
mídia, mesmo que infundadas, criam a percepção de culpa, até prova em contrário – pode ser
uma ameaça aos direitos individuais (Smulovitz et alii, 2000: 154).

107
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Analisando a relação Estado-sociedade civil, em termos de accountability,31 é possível verificar


que tanto os mecanismos de controle verticais eleitorais quanto os horizontais mostram sinais de
debilidade (Blair, 1997; Cornwall, 2000; O´Donnell, 1997; Narayan et alii, 2000; Smulovitz, 2000;
Smulovitz et alii, 2000). E que existe um gap entre o Estado e os cidadãos. Segundo Cornwall
(2000), esse gap só poderá ser eliminado através da participação cidadã32 e do exercício de
accountability. Blair (1997) vê também no fortalecimento da sociedade civil a chave para fortalecer
a democracia, em particular através da participação e accountability.
O que se relaciona com o que Smulovitz et alii (2000) denominaram de accountability societal,
mecanismo ativado por vários atores da sociedade civil, onde se destaca o papel das ONGs inter-
nacionais e locais. Ressaltando ainda que as próprias pessoas em estado de pobreza demandam o
exercício deste mecanismo às ONGs, “elegendo-as” como seus representantes, pela falta de capa-
cidades individuais, recursos financeiros, tempo e medo de represálias33 (risco de ofender os patrões
e oficiais poderosos e de incorrer em perdas de emprego, multas, violência e outras penalidades)
(Narayan, 2000; Smulovitz, 2000).

“A ONG deveria monitorar a performance dessas agências [estatais] e deveria tentar ser
imparcial nos assuntos internos da comunidade” – Participante de um grupo de discus-
são, Entra a Pulso, Brasil (Narayan et alii, 2000: 231)

Contudo, a accountability societal deixa muitas questões em aberto e apresenta várias


limitações que convém analisar.
A principal limitação deste mecanismo, salientada por Smulovitz (2000) e Smulovitz et alii
(2000), diz respeito ao fato de nos mecanismos societais a “voz” precisar ser forte e intensa, mas
não ser necessária uma representação ampla dessa voz na sociedade. O que pode levar a que as
atividades de controle sobre os governantes sejam centradas em interesses de atores fortes e
organizados. E pode levar, também, à exclusão dos interesses de alguns atores e alguns temas.
Temos assim três tipos de riscos, segundo Smulovitz (2000): risco de clientelismo, riscos envolvi-
dos em qualquer processo de participação e riscos que resultam da especificidade de temas que
podem ser controlados.
Por todas estas limitações e questões apresentadas, acreditamos ser importante analisar a
questão da accountability das ONGs internacionais e locais, principalmente em relação às pessoas
em estado de pobreza e de exclusão com que elas trabalham. É necessário que estas promovam
um engajamento ativo das pessoas com que trabalham, cultivando voz, criando consciência crítica,
defendendo a inclusão de mulheres, crianças, analfabetos, pobres e excluídos, ampliando os es-
paços de envolvimento na tomada de decisão e construindo capacidades políticas para engaja-
mento democrático (Cornwall, 2000: 75). E também estimulando seu processo de empodera-
mento e aumentando sua demanda por accountability, quer em relação às ONGs que com elas
trabalham, quer em relação às instituições estatais.

31 Análise realizada no ensaio Não é apenas do Estado que a população está demandando accountability, mas também da
sociedade civil. Como ela está respondendo? O caso da ActionAid Brasil, apresentado como trabalho final da disciplina de
Organizações, Política e Poder do mestrado em Estudos Internacionais Comparados do CPDA/UFRRJ.
32 Segundo Gaventa e Valderrama (citados pela autora), a participação cidadã é definida como formas diretas pelas quais os
cidadãos influenciam e exercem controle na governança, sendo um meio de ampliar a accountability (Cornwall, 2000: 60/1).
33 Ou seja, pela sua posição subordinada na teia de relações de poder estabelecidas no meio que as rodeia.

108
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Segundo Narayan alii (2000),34 apesar da grande variedade de critérios apresentados pelas
pessoas em estado de pobreza para avaliar o caráter das instituições, estes podem ser divididos em
três grandes categorias: qualidade de relações, valores comportamentais e eficácia. A maior ênfase é
dada, pelas pessoas pobres, a uma grande variedade de critérios de relacionamento. Estes incluem
confiança, participação, accountability, união e capacidade de resolução de conflitos. Critérios com-
portamentais incluem respeito, honestidade, transparência, ouvir, gostar, ter carinho e trabalho duro.
Eficácia inclui tempo para apoiar, acesso e contato com a instituição (Narayan et alii, 2000: 180).
Destes critérios, os que merecem atenção, no âmbito desta análise, são a participação e a
accountability.
As pessoas definiram, em geral, participação como engajamento na tomada de decisões,
juntar-se para participar em discussões e reuniões, expressar opiniões e serem ouvidas, e ter
controle e influência nas decisões tomadas.

“Participação é a capacidade de ter voz no que acontece” – participante de um grupo


de discussão, Thompson Pen, Jamaica.

“... quando as pessoas têm acesso a participar e expressar sua opinião em qualquer
processo de tomada de decisão sem ter medo” – participante de um grupo de discussão,
Dewangonj, Bangladesh (Narayan alii, 2000: 181).

De acordo com a avaliação de várias pessoas em estado de pobreza por “todo o mundo”
(Terceiro Mundo), os autores fizeram a classificação de várias instituições, sendo que as ONGs
(que trabalham com emergências e provisão de serviços) pontuam negativamente nos critérios de
participação e accountability, enquanto as organizações locais pontuam positivamente.35

“Só Deus nos escuta” – participante de um grupo de discussão, Zawyet Sultan, Egito.

“Ninguém pergunta nada às pessoas” – Sekovici, Bosnia Herzegovina (Narayan et alii,


2000: 181).

Embora nem todas as pessoas em estado de pobreza procurem estar ativamente envolvidas
na gestão das ONGs, várias pessoas se referiram à falta de accountability destas. E, embora as
ONGs sejam bastante apreciadas pelas pessoas pobres, estas gostariam que respondessem às suas
necessidades e de estar envolvidas na tomada de decisão das ONGs (Narayan et alii, 2000: 228/232).

“Gostaríamos de ter mais controle sobre o governo e as ONGs” – homem, Adaboya,


Gana (Narayan et alii, 2000: 185).

Roche (1997), analisando o caso específico da Acord,36 verificou que a accountability do


consórcio era maioritariamente dirigida aos seus fundadores e pessoal, que por sua vez prestavam

34 Este livro tem como base testemunhos de 20 mil mulheres e homens pobres, resultantes do trabalho de campo realizado em
1999 em 23 países da Ásia, África, América Latina e Caribe e Leste europeu, onde foram utilizados métodos participativos e
qualitativos de pesquisa. Embora a riqueza dos testemunhos dessas pessoas, de certa forma, se perca com a agregação e
necessária generalização de realidades tão distintas, acreditamos que se trate de uma contribuição fantástica para sabermos
um pouco mais sobre o que dizem “as vozes dos pobres”.
35 Mais uma vez gostaríamos de chamar a atenção para o nível de generalidade do estudo. Gostaria também de salientar o tipo
de ONG considerada.
36 A Acord – Agency for Co-operation and Research in Development (Agência para a Cooperação e Pesquisa em Desenvolvimento)
é um consórcio internacional de ONGs européias e canadenses que trabalham juntas em prol do desenvolvimento de longo
prazo na África.

109
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

contas a seus boards e público e que, apesar de algum trabalho em processos de avaliação
mútua, não existia nenhum mecanismo real através do qual o consórcio prestasse accountability
para aqueles com quem trabalhava. Ou seja, a accountability era apenas vista pelo consórcio na
sua dimensão reduzida de prestação burocrática de contas e não como instrumento de controle
de poder entre atores. Tal fato levou a um descolamento entre o trabalho da ONG e as necessidades
das pessoas a quem se dirigia esse trabalho.
Conclui-se, então, que participação e accountability são demandas das pessoas em estado
de pobreza em relação às ONGs que com elas trabalham, que estas pessoas não querem mais ser
receptoras passivas de serviços e pretendem tornar-se agentes de seu próprio desenvolvimento.
Torna-se então necessário garantir accountability e participação, não só na relação entre
Estado e sociedade civil como nas relações estabelecidas dentro da própria sociedade civil.
Um caminho possível para analisar a questão da accountability das ONGs internacionais e
locais seria recorrer a um “jogo metodológico” com os conceitos de accountability horizontal e
vertical, tomando em consideração as relações de poder subjacentes a estas noções. E utilizando-se
o conceito de accountability horizontal para os mecanismos de controle e prestações de contas
estabelecidos entre atores com “níveis” de poder equivalentes – membros com o mesmo nível
hierárquico dentro das ONGs, seus diferentes departamentos –, ou atores em que, as relações que
estabelecem são na sua maioria de aliança e cooperação, isto é, onde operam mais as relações de
influência que as relações de poder (dominação/subordinação) – ONGs e outros atores da socie-
dade civil, Estado37 e mercado.
O conceito de accountability vertical seria utilizado para os mecanismos ativados por atores
que detêm menos poder – parceiros e comunidades – para controlar ações, exigir prestação de
contas e participar das decisões de atores com maior poder – ONGs. Assim, as ONGs prestariam
accountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidades com que trabalham, seus
parceiros e, dentro das ONGs, dos diretores para os restantes membros das equipes.
As ONGs têm ainda o papel fundamental de exercer accountability societal, principalmente
em relação ao Estado. E este tipo de accountability pode ser exercido também em relação a atores
da esfera do mercado e outros atores da esfera da sociedade civil.

4. Considerações finais
Com base no balanço teórico realizado, apresentamos agora uma possível articulação das noções
de desenvolvimento, pobreza e empoderamento. As noções de pobreza e de empoderamento
apresentadas em seguida visam a levantar algumas questões para a reflexão em curso na ActionAid
Brasil sobre empoderamento como meio de combate à pobreza.
A discussão tem a seguinte idéia base: pobreza é um estado de desempoderamento e de
privação que apresenta várias dimensões e se manifesta de forma diferenciada de pessoa para
pessoa, de família para família e de comunidade para comunidade; e para superar as pobrezas é
necessário enfrentar suas várias dimensões, percorrendo os caminhos individuais e coletivos
de empoderamento.

37 Quando este não é o principal financiador da ONG.

110
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

4.1. Noção de pobreza


A pobreza é compreendida como um estado de privação e de desempoderamento. Uma noção
complexa que apresenta várias dimensões: a falha na dotação e titularidade sobre os recursos, a
privação de capacidades individuais e coletivas, a falta de acesso às organizações e movimentos
da sociedade civil, ao Estado e ao mercado e a falta de poder pessoal, social, político e econômico.
Consideramos que existem pobrezas, isto é, diferentes níveis de pobreza, pois a desigualdade
manifesta-se também entre os pobres e não só entre as diferentes classes. As diferentes dimensões
de pobreza manifestam-se de forma diferenciada e agravada no caso de alguns grupos sociais
mais discriminados e mais sujeitos a relações de dominação e exclusão, como é o caso das mulheres,
dos jovens, dos idosos, dos negros, dos indígenas, das minorias sexuais, dos deficientes. Ou seja,
existem diferentes tipos de desigualdade que agravam estas dimensões de pobreza.

Falha na dotação e titularidade sobre os recursos 38 


Na sua trajetória as pessoas, famílias e comunidades definem estratégias de reprodução e/ou
sobrevivência e os resultados esperados das mesmas. Para operacionalizar e potencializar essas
estratégias é necessário mobilizar recursos, que podem ser tangíveis ou intangíveis, e de titularidade
das pessoas, famílias e/ou comunidades ou não.
Consideraremos quatro grandes tipos de recursos: naturais, humanos, econômicos e sociais.
• Recursos naturais: atmosfera, biodiversidade, terra, água etc.;

• Recursos humanos: pessoais (qualificações, conhecimentos, habilidades, saúde etc.) e da


família e comunidade (quantidade, qualidade e diversidade, em termos de gênero e de gera-
ção, do trabalho disponível etc.);

• Recursos econômicos: infra-estrutura básica (transporte a preços acessíveis, habitação e


construções seguras, oferta de água de qualidade e saneamento básico, energia limpa e a
preços acessíveis, acesso à informação, etc.), bens de produção (instrumentos e equipamentos
de trabalho) e recursos financeiros (estoques disponíveis em poupanças e crédito, por exemplo,
e recebimentos regulares de dinheiro além da renda, como aposentadoria, outras transferências
do Estado e remessas de familiares que migraram);

• Recursos sociais: identidade, cultura, saber tradicional e local, formas de interação social,
normas de reciprocidade e redes de sociabilidade, movimentos, associações e ONGs locais e
regionais, redes de organizações da sociedade civil ligadas ao local etc.
A falha na dotação e/ou titularidade sobre os recursos necessários a operacionalizar e/ou
potencializar as estratégias de reprodução e/ou sobrevivência das pessoas, famílias e comunida-
des é considerada como uma dimensão da pobreza, na medida em que retira das pessoas, famílias e
comunidades a liberdade de alcançar os resultados por elas valorizados de suas estratégias de
reprodução e/ou sobrevivência.

38 Optamos por denominar de recursos os capitais do esquema de Bebbington e considerar capital cultural e social como um
conjunto de recursos sociais.

111
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Privação de capacidades individuais e coletivas


As pessoas, famílias e comunidades possuem diferentes capacidades de ser e de fazer que possi-
bilitam gerir recursos (usar, trocar, combinar, transformar, defender, manter, reproduzir, expandir),
definir e escolher entre diferentes estratégias de reprodução e/ou sobrevivência e alcançar os
resultados por elas valorizados das mesmas.
Como exemplos de capacidades de ser temos a auto-estima, a identidade, a cultura e o saber
tradicionais e locais, entre outras. E como exemplos de capacidades de fazer temos: capacidade
de estar livre de doenças que podem ser evitadas, de poder escapar da morte prematura, de evitar
privações como fome e desnutrição, saber ler, saber escrever, saber fazer cálculos aritméticos,
capacidade de utilização das informações disponíveis, capacidade de participar social e politica-
mente, capacidade de expressão, capacidade de gerir os recursos disponíveis, capacidade de
influenciar e ter voz nas tomadas de decisão que afetam seu destino, entre outras.
Outra dimensão de pobreza manifesta-se pela privação de capacidades individuais e coletivas
de ser e de fazer. Para definir se a pessoa, família e/ou comunidade se encontra num estado de
privação de capacidades é necessário analisar o contexto em que a mesma se encontra inserida,
isto é, em relação a outras pessoas dentro da mesma família, outras famílias dentro da mesma
comunidade, outras comunidades dentro da mesma região. E deixar as próprias pessoas, famílias
e comunidades definirem seu estado de privação de capacidades: quais as capacidades que valo-
rizam e de que se sentem privadas, quais as capacidades que necessitariam para superar seu
estado de pobreza.
Além das pessoas, famílias e comunidades em estado de pobreza se encontrarem privadas de
capacidades, por vezes as capacidades que possuem são desvalorizadas por elas mesmas e pelos
outros, isto é, não têm suas capacidades reconhecidas, o que limita que estas sejam exercidas e
mesmo expandidas. O que pode ser visto como falta de poder pessoal, que se traduz em falta de
auto-estima, de autoconfiança e de identidade.

Falta de acesso às organizações e movimentos da


sociedade civil, aos atores do Estado e do mercado
Outro fator que bloqueia o livre exercício e a expansão das capacidades é a falta de acesso às
organizações e movimentos da sociedade civil, aos atores do Estado e do mercado, que limita
também a titularidade sobre os recursos.
A falta de acesso pode-se traduzir tanto na falta de espaços nessas três esferas que permitam
a participação das pessoas, famílias e comunidades e/ou seus representantes, quanto na impossi-
bilidade de uma utilização efetiva desses espaços pelas pessoas, famílias e comunidades e/ou seus
representantes devido às relações de poder existentes. Essas relações de poder limitam as liberdades
individuais e coletivas nos níveis político, social e econômico e bloqueiam o livre exercício e a
expansão das capacidades individuais e coletivas, diminuindo o poder político, econômico e social
das pessoas, famílias e comunidades.
Essas relações de poder estão presentes na família e nas próprias comunidades, que voluntária
e/ou involuntariamente, excluem alguns de seus membros da tomada de decisões, do acesso a
recursos e do exercício de suas capacidades. Algumas organizações da sociedade civil limitam a
participação dos mais desempoderados e privados de suas dinâmicas, voluntária ou
involuntariamente, e não promovem accountability para com as pessoas, famílias e comunidades
com que trabalham, bloqueando assim o livre exercício e expansão de capacidades das últimas.

112
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

Na esfera do Estado, as relações de poder podem assumir a forma de clientelismo, troca de


favores por voto e de dependência, de falta de accountability horizontal e da não abertura de
espaços para participação das pessoas, famílias, comunidades e/ou seus representantes.
As relações de poder existentes na esfera do mercado subordinam, exploram ou excluem
totalmente as pessoas, famílias e comunidades do acesso ao mesmo, quer para comprar, quer
para vender bens, serviços ou força de trabalho.

4.2. O caminho do empoderamento na superação das pobrezas


O empoderamento é entendido como um processo contínuo e em constante renovação de
aumento do poder pessoal, social, político e econômico das pessoas, famílias, comunidades e
organizações da sociedade civil, que se traduz na ampliação das capacidades individuais e coletivas,
no aumento do controle, sobre recursos e ampliação do acesso às organizações da sociedade
civil, ao Estado e ao mercado, em condições de maior eqüidade e accountability, contribuindo
para o aumento das liberdades em geral.
Empoderamento é um meio de construção do desenvolvimento local alternativo sustentável,
que tem origem dentro das pessoas, no seio das famílias, das comunidades e das organizações e
movimentos locais e que não pode ser pensado de cima para baixo nem de fora para dentro.
Embora os agentes externos de mudança possam catalisar ou criar um ambiente favorável ao
desenrolar do processo, o empoderamento não é algo que se possa fazer pelas pessoas, mas algo que
as pessoas têm de fazer por elas mesmas, ou seja, são as pessoas que se empoderam a si mesmas.
Consideramos que este processo tende a seguir um “caminho”, tendo como ponto de partida
o empoderamento individual (pessoas e famílias) e crescendo no sentido do empoderamento
coletivo (comunidades, movimentos, organizações e redes da sociedade civil). Tem como objetivos a
transformação das relações de poder e um maior nivelamento dos níveis de poder, originando
maior eqüidade na sociedade.
É um processo de aumento do poder das pessoas, famílias, comunidades e organizações e
movimentos da sociedade civil que possibilita um maior controle sobre os recursos disponíveis e o
livre exercício e a expansão de suas capacidades individuais e coletivas, de forma a que estas
tenham liberdade para atingir os resultados por elas valorizados de suas estratégias de reprodução.
Esse “caminho do empoderamento” teria então como ponto de partida o aumento da auto-
estima e da autoconfiança das pessoas, famílias e comunidades que se encontram em estado de
pobreza, ou seja, o aumento de seu poder pessoal.
Esse aumento da auto-estima e autoconfiança individual e coletiva poderia ser conseguido
através da (re)valorização e do estímulo à expansão das capacidades das pessoas, famílias e
comunidades. Cumpre então resgatar sua cultura e saber tradicionais, (re)construir sua identidade,
aumentar a capacidade de gestão de recursos que viabilizam e potencializam suas estratégias
de reprodução, incentivar a mobilização e organização das pessoas, famílias e comunidades,
estimular sua inclusão nas dinâmicas sociais, ampliar seu acesso às organizações e movimentos da
sociedade civil e levar as pessoas, famílias e comunidades a se transformarem em agentes de seu
próprio desenvolvimento.
Outra forma de dar o primeiro estímulo ao processo de empoderamento é através da conscien-
tização das pessoas e famílias em relação às privações de que são alvo e sobre seus direitos,
incentivando sua mobilização e organização para a implementação dos mesmos. Neste caso será
também necessário um processo de aumento de auto-estima e de autoconfiança dessas pessoas,
famílias e comunidades.

113
— EMPODERAMENTO E DIREITOS NO COMBATE À POBREZA —

Como um segundo passo39 do processo de empoderamento, temos a alteração das relações


de poder existentes entre as pessoas, famílias, comunidades e as organizações e movimentos da
sociedade civil, os atores da esfera do Estado e do mercado, rompendo os laços de dependência
e subordinação que bloqueiam o livre exercício e a expansão de suas capacidades.
Nas relações estabelecidas dentro da família, na comunidade, nas organizações e movimentos
da sociedade civil e nas relações estabelecidas entre as pessoas, famílias, comunidades e organizações
e movimentos da sociedade civil com o Estado, a principal demanda é por maior accountability,
participação e respeito aos processos, estratégias, tecido social e identidade locais. Ou seja, o
aumento de poder social (relação com organizações da sociedade civil), o aumento do poder
político (relação com o Estado) e o aumento do poder econômico (relação com o mercado).
Para que a participação seja efetiva é necessário que os espaços de participação sejam ocupados
por pessoas e/ou organizações e movimentos da sociedade civil empoderados, que além de terem
voz nesses espaços possam num segundo momento ter meios para exercer a accountability societal,
ou seja, que exijam transparência e participação nas tomadas de decisão, coloquem pontos na
agenda, exponham corrupção e má atuação e exijam accountability horizontal. Que as organizações
da sociedade civil promovam accountability vertical para com as pessoas, famílias e comunidades
com que trabalham e que sejam abertos espaços à participação destas nas suas dinâmicas.
É preciso que as organizações e movimentos da sociedade civil se empoderem, expandam
suas capacidades coletivas, valorizem sua auto-estima coletiva, criando uma identidade forte, e se
articulem entre si, trocando experiências, conhecimentos e propostas, formando redes e fortale-
cendo a esfera da sociedade civil, para que a lógica desta última comece a permear as lógicas das
duas outras esferas, as do Estado e do mercado. Desta forma, equilibram-se os poderes entre as
três esferas e transforma-se a relação entre elas, que deixa de ser uma relação de subjugação/
subordinação e dominação para se tornar uma relação pautada no diálogo e na negociação – o que
contribuirá para o aumento das liberdades em geral.
Existem no mercado espaços socialmente construídos que se pautam pelos princípios da
solidariedade e onde as relações entre agentes se pautam pelos princípios da cooperação, diminuindo
as relações de dominação e sujeição típicas do mercado capitalista ao eliminar os atravessadores
e propor uma relação direta entre produtores e consumidores organizados de forma solidária,
possibilitando assim o pagamento de um preço justo aos produtores e diminuindo, ao mesmo
tempo, o preço nos consumidores – são as experiências de economia solidária. Existem, também,
nichos de mercado que valorizam o produto da agricultura familiar, pagando um preço justo por
ele e, o mais importante, dando oportunidade para o acesso dos agricultores familiares ao mercado.
A aposta nos produtos orgânicos e na agroecologia também abre oportunidades de acesso ao
mercado em condições mais favoráveis para a agricultura familiar. É preciso ocupar e ampliar
esses espaços. Embora estes sejam pequenas ilhas abertas à agricultura familiar dentro da esfera
do mercado, várias têm sido as iniciativas de construção de pontes entre essas experiências
bem sucedidas.
Estas são apenas algumas questões que consideramos capazes de contribuir para a reflexão
em curso na ActionAid Brasil sobre empoderamento e combate à pobreza.

39 Note-se que, apesar de falarmos em primeiro e segundo passo, consideramos empoderamento um processo contínuo e com
recuos e avanços constantes, uma espiral de conquistas e aprendizado que se renova constantemente.

114
— O CAMINHO DO EMPODERAMENTO: ARTICULANDO AS NOÇÕES DE DESENVOLVIMENTO, POBREZA E EMPODERAMENTO —

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