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Estado, Pluralismo Jurídico e Recursos Naturais

Carlos Man uel dos Santos Serra

Maputo, Março de 2010

Relatório apresentado no âmbito do seminário de


Pluralismo Jurídico ministrado no 2.º ano do 1º
Programa de Doutoramento conjunto do
Instituto Superior de Ciências e Tecnologia de
Moçambique e da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa

1
INDÍCE

Introdução --------------------- 4
I. Contextualização --------------------- 4
II. A problemática --------------------- 5
III. Objectivos --------------------- 7
IV. Metodologia --------------------- 7
V. Estrutura --------------------- 9
Capítulo I – O “encontro colonial” --------------------- 9
1.1. O Estado colonial --------------------- 11
1.2. Pluralismo jurídico na era colonial --------------------- 14
1.3. A rede das chefias locais --------------------- 18
1.4. O estatuto jurídico das populações locais --------------------- 23
1.5. O trabalho forçado --------------------- 27
1.6. Codificação dos direitos costumeiros --------------------- 31
1.7. Terra e recursos naturais ao serviço do Estado --------------------- 34
colonial
Capítulo II – Estadualismo no período pós --------------------- 34
Independência
2.1. A Lei como fonte exclusiva de Direito --------------------- 37
2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas --------------------- 40
estruturas de apoio
2.3. O advento da justiça popular --------------------- 43
2.4. Sociedade nova, leis novas e um ideal nunca --------------------- 43
materializado
2.5. A vivência de um pluralismo não reconhecido --------------------- 47
Capítulo III – O reconhecimento e a abertura para o --------------------- 49
papel do Direito Costumeiro no domínio dos recursos
naturais
3.1. O retorno ao tradicional --------------------- 49
3.2. Dos tribunais populares de localidade aos tribunais ------------------------- 54
comunitários - um erro histórico
3.3. A aprovação da nova Lei de Terras ------------------------- 56
3.3.1. A nova lei de Terras e a construção do conceito ------------------------- 56
de comunidade local
3.3.2. O reconhecimento das formas costumeiras de ------------------------- 58
aquisição do direito de uso e aproveitamento da terra
3.3.3. A consulta pública como ferramenta --------------------- 60
fundamental
3.3.4. O papel dos direitos costumeiros na resolução de --------------------- 61
conflitos no domínio dos recursos naturais
3.4. A interacção entre a lei e os direitos costumeiros --------------------- 63
no domínio dos recursos naturais
3.4.1. Os usos tradicionais na legislação de águas --------------------- 63
3.4.2. Abertura ao Direito Costumeiro na legislação de --------------------- 64

2
florestas e fauna bravia
3.4.2.1. Exploração de recursos florestais e fauna --------------------- 65
3.4.2.2. A conservação segundo normas costumeiras --------------------- 67
3.4.3. Reconhecimento e valorização das tradições e --------------------- 71
do saber das comunidades locais na legislação do
ambiente
3.5. A “captura jurídica” das autoridades tradicionais --------------------- 74
3.6. O marco constitucional da consagração do --------------------- 80
pluralismo jurídico
3.7. Constrangimentos e êxitos no processo de --------------------- 82
implementação do novo quadro jurídico-legal - o caso
paradigmático das consultas comunitárias
Conclusões --------------------- 87
Bibliografia --------------------- 91
Lista de legislação consultada --------------------- 97

3
Estado, pluralismo jurídico e recursos naturais

INTRODUÇÃO

I. Contextualização

O Legislador Fundamental moçambicano consagrou, no artigo 4 da Constituição


de 2004, uma norma importante e que constitui, sem margem para dúvidas, um
importante marco na história do Direito nacional: “o Estado reconhece os vários sistemas
normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na
medida em que não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.
Tratou-se, efectivamente, de um reconhecimento expresso e meritório do papel
que as instâncias e os direitos costumeiros desempenham na prevenção e resolução da
litigiosidade ao longo do país, contribuindo sobremaneira para a estabilidade e paz
social, depois de um longo processo histórico repleto de tentativas de manipulação ou
exclusão.
Simultaneamente, a Constituição de 2004 veio reforçar substancialmente o regime
jurídico de protecção do ambiente e dos demais recursos naturais, quer em termos
subjectivos, atribuindo ao cidadão um papel crucial, traduzido na definição de um leque
de direitos e deveres, quer objectivos, estabelecendo obrigações e responsabilidades a
cargo do Estado.
Nesse sentido, o legislador ordinário tem vindo a aprovar um acervo significativo
de instrumentos legislativos no domínio do ambiente e recursos naturais, e que
configuram, em nosso entender, um notável esforço no reconhecimento do papel do
Direito Costumeiro na administração da justiça em Moçambique. A Lei de Terras (Lei n.º
19/97, de 1 de Outubro) é talvez a maior referência legislativa no que diz respeito à
relação dialéctica que se tem vindo a estabelecer entre o Direito Costumeiro e o Direito
Estatal.
No entanto, conforme aludiremos em sede própria, o reconhecimento estadual de
um espaço importante ao Direito Costumeiro não tem sido recheado apenas de aspectos

4
positivos, antes pelo contrário, conhece imensos problemas e dificuldades na sua
implementação, caracterizados pela própria denegação por parte das entidades públicas
competentes, em inúmeros exemplos extraídos da realidade, das normas costumeiras que
tratam dos recursos naturais, e, portanto, dos direitos que estas consubstanciam, gerando
situações de real e eminente conflito.

II. Objectivos

Com o presente Trabalho pretende-se realizar um breve levantamento e análise


crítica do papel do legislador estadual na definição do lugar que o Direito costumeiro
possui na administração da justiça em Moçambique, particularmente no domínio da
legislação dos recursos naturais, do início do período da formação do Estado moderno,
que coincide com a instauração da administração colonial efectiva, a seguir à realização
da Conferência de Berlim (1884 - 1885), passando pelo Estado pós Independência, e
culminando na actualidade, procurando, de seguida, levantar algumas ilações
fundamentais sobre as mais recentes opções do poder legislativo em relação ao
reconhecimento constitucional do princípio do pluralismo jurídico e sua aplicação
prática.
Adicionalmente, procurar-se-á perceber até que ponto o processo de construção,
desenvolvimento e consolidação do Estado moderno contribuiu para influenciar os
princípios, modelos, padrões, mecanismos, normas e regras de acesso ao ambiente, à
terra e demais recursos naturais, ao longo dos diversos períodos históricos.
Para o efeito, e de modo a alcançar tais finalidades, constituem objectivos
específicos do presente Trabalho:

i. Tratar o período do chamado “Encontro Colonial”, especialmente a partir


do início da ocupação colonial efectiva, procurando aludir à forma como a
administração colonial perspectivou o pluralismo jurídico, articulando com
as instituições e direitos costumeiros, e em que medida as principais

5
políticas promovidas pelo Estado colonial interferiram nos processos de
acesso, uso e aproveitamento da terra e recursos naturais;
ii. Estudar o Estadualismo instaurado no período pós Independência,
caracterizado pelo monopólio do Estado na elaboração do Direito e na
total indiferença em relação às instituições e direitos costumeiros, por um
lado, bem como no desenho de soluções assentes no primado da justiça
popular;
iii. Analisar o reconhecimento e a abertura para o papel do Direito
Costumeiro no domínio dos recursos naturais, cuja Constituição de 1990
constituiu o ponto de partida, tendo como ponto mais alto a consagração
do princípio do pluralismo jurídico através do artigo 4 da Constituição de
2004;
iv. Realizar um balanço sumário em torno dos constrangimentos e êxitos do
processo de implementação do novo quadro jurídico-legal que reconheceu
um importante espaço aos direitos costumeiros, enfocando a figura da
consulta comunitária.

Note-se que estamos perfeitamente conscientes de que foi uma certa ousadia da
nossa parte em tratar tema tão vasto e digno de um merecido e adequado tratamento
científico, podendo incorrer numa certa tendência de simplificar, reduzir ou absolutizar
aspectos, que por si, podem ser complexos, vastos ou relativos. No entanto, julgamos
importante iniciar o debate em torno da relação entre o Direito estadual e os direitos
costumeiros em Moçambique no que diz respeito ao acesso, uso e aproveitamento dos
recursos naturais.
Procuraremos, ainda, verificar até que ponto o processo de criação do Estado
moçambicano, nas suas sucessivas etapas, contribuiu para construir, refazer ou moldar as
formas de acesso, uso e aproveitamento dos recursos naturais por parte das comunidades
locais, e até que medida os direitos costumeiros resistiram ao processo de criação e
implantação do Estado moderno e, consequentemente, à emergência de um Direito
novo, positivo, escrito e baseado na Lei emanada pelos órgãos do poder estatal.

6
III. Metodologia

Para a realização do Trabalho será utilizada diversa metodologia, nomeadamente:

i. Revisão bibliográfica sobre assuntos com relevância para o desenvolvimento


do tema, ao nível nacional e internacional. Note-se que, no que diz respeito
aos trabalhos sobre as experiências coloniais, não estaremos tão preocupados
com as diferenças que caracterizaram cada sistema colonial, mas sim com os
pontos comuns ou transversais;

ii. Levantamento e análise do quadro jurídico-legal revogado e em vigor no País,


da Constituição, nas suas sucessivas versões, à legislação ordinária, bem como
das principais experiências no tocante à codificação dos direitos costumeiros;

iii. Confrontação sumária do disposto no quadro jurídico-legal com os dados


levantados no terreno alusivos às respectivas dificuldades de implementação.

IV. Estrutura

O presente Trabalho será estruturado em três capítulos, sendo que no primeiro


trataremos sumariamente o chamado “Encontro Colonial”, especialmente no período de
ocupação colonial efectiva (1874/75 - 1974); no segundo capítulo, trataremos o
Estadualismo no período pós Independência, caracterizado pelo monopólio do Estado
na elaboração do Direito (1975 - 1990), e na total indiferença em relação às instituições e
direitos costumeiros; no terceiro capítulo, aludiremos ao reconhecimento e a abertura
para o papel do Direito Costumeiro no domínio dos recursos naturais, cuja Constituição
de 1990 constituiu o ponto de partida, alcançando o marco através da Constituição de
2004 com a consagração do princípio fundamental do pluralismo jurídico (1990 em
diante), e no qual culminaremos dos constrangimentos e êxitos referentes ao processo de

7
implementação do novo quadro jurídico-legal que reconheceu um importante espaço
aos direitos costumeiros.

8
Capítulo I – O “encontro colonial”

1.1. O Estado colonial

No período de implantação colonial efectiva no território de Moçambique, cujo


impulso histórico pode ser definido a partir da histórica Conferência de Berlim (que teve
lugar entre os dias 19 de Novembro de 1884 e 26 de Fevereiro de 1885), em que uma
das principais decisões assentou na premissa de “dominar e administrar os territórios
efectivamente” 1 , assistiu-se ao fenómeno que, recorrendo às palavras de Cristina
Nogueira da Silva, se apelida de “encontro colonial” entre o estado colonizador com os
colonos e com os povos nativos e destes entre si, e que “produziu, na sua origem,
sistemas jurídicos híbridos, cujas fronteiras não foram fixadas de forma linear e cujas
hierarquias se mantiveram, por muito tempo, em aberto”2
O colonialismo constituiu num processo legal transnacional e que teve a suposta
missão de expandir a civilização superior europeia para as populações colonizadas,
consideradas primitivas, selvagens ou atrasadas, mas que encobria, de facto, objectivos
associados à obtenção de matéria-prima e mão-de-obra para as plantações, minas e
fábricas ao serviço das potenciais colonizadoras 3. Por seu turno, o colonialismo quase
sempre envolveu a transferência de códigos e instituições de uma sociedade para outra,
bem como para elaborar e fazer aprovar legislação dirigida a distinguir e descriminar
racialmente as populações4.
A suposta missão civilizacional está patente, a título de exemplo, no artigo 2 do
Acto Colonial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 22 465, de 11 de Abril de 1933, segundo o
qual “É da essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de
possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles

1
Veja-se MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, Esboço Histórico, Volume I,
Estudos Coloniais Portugueses, Lourenço Marques, 1974, p. 62.
2
SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, p. 1. Publicado
Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, n°s 33-34, t. II, 2004 – 2005, pp. 899 –
921.
3
MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology,
Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 363.
4 4
MERRY, Sally Engle, Colonial and Postcolonial Law, p. 1.

9
se compreendam, exercendo também a influência moral que lhe é adstrita pelo
Padroado do Oriente”.
Adelino Torres diz-nos que o conceito de civilização encontra-se, assim,
fortemente associado à ideia de que as colónias e respectivas populações nativas se
beneficiaram ampla e profundamente do “encontro” colonial, o qual contribuiu para
mudar o rumo da sua história”5. A civilização foi, portanto, perspectivada como uma
benesse ou mais-valia para povos que se encontravam em estádios culturalmente
atrasados em relação às nações europeias.
Em Moçambique, a montagem do sistema colonial tem um importante marco
histórico – a aprovação da Carta Orgânica da Província de Moçambique, através de um
Decreto de 23 de Maio de 1907, do então Ministro da Marinha e do Ultramar, Aires de
Ornelas, poucos anos antes da queda da Monarquia 6 . Este instrumento legal trouxe
vincada a diferenciação do tratamento jurídico dos europeus e dos indígenas. Aliás,
decorre do mesmo a criação do Secretaria de Negócios Indígenas (SNE), entidade à qual
competia administrar a organização da justiça indígena, regulamentar os deveres dos
régulos e outras actividades gentílicas, providenciar a codificação dos usos e costumes
cafreais, determinar e fixar terrenos que deveriam ficar exclusivamente reservados para
os indígenas, organizar o fornecimento de trabalhadores indígenas para os serviços
públicos e particulares, entre outros7.
Há seis importantes características que gostaríamos de destacar em relação à
política colonial portuguesa, especialmente em relação a Moçambique, no que diz
respeito à relação como o modo de vida das populações locais – (1) o pluralismo jurídico
na era colonial; (2) a rede de lideranças locais; (3) o estatuto jurídico das populações
locais; (4) o trabalho forçado; (5) a codificação dos direitos costumeiros; (6) e, por
último, a terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial.

5
TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, Colecção Estudos sobre África, n.º 5,
Escher, Lisboa, P. 33.
6
ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX,
Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 65.
7
MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, Esboço Histórico, Volume I,
Estudos Coloniais Portugueses, Lourenço Marques, 1974, pp. 65 – 66.

10
As seis características a seguir analisadas contribuíram sobremaneira na questão do
acesso à terra e aos recursos naturais, norteando significativamente os padrões e normas
de uso e aproveitamento das riquezas naturais existentes no então Estado colonial de
Moçambique, lançando, inclusivamente, algumas das bases e linhas que caracterizaram as
etapas seguintes na evolução histórica, designadamente a seguir à Independência.

1.2. Pluralismo jurídico na era colonial

Uma questão que se levanta naturalmente no domínio do presente tema é a de


saber até que ponto o sistema colonial conviveu com a enormidade e diversidade de
instâncias e direitos costumeiros das populações locais de Moçambique? A resposta a esta
pergunta conduz-nos à percepção do pluralismo que se desenhou ao longo do período
de ocupação colonial efectiva.
Nesse aspecto, segundo Cristina Nogueira da Silva, o pluralismo jurídico no
período colonial constitui “um projecto no qual o estado colonial se assumiu como pólo
ordenador da diversidade, com a correspondente "missão" de fixar não apenas as regras
reguladoras do funcionamento dos sistemas jurídicos plurais, como também os estatutos
jurídicos das populações neles envolvidas, face à ordem jurídica hegemónica”8.
As populações locais, note-se, foram, em termos jurídicos, consideradas, até à fase
última do colonialismo, como “nativas” ou “indígenas”, como que se pessoas de nível
inferior se tratassem, conforme veremos de seguida. O colonialismo assentou em um
postulado rácico, ainda que juridicamente não tenha ganho contornos expressos como
na vizinha África do Sul, na qual foi implantada uma política e legislação sobre a
separação racial.
Neste domínio, importa referir que, para alcançar um controlo efectivo do vasto
território da então colónia de Moçambique, mais tarde província ultramarina, bem como
das suas populações, Portugal precisou efectivamente de contar com as instâncias e
direitos locais, pelo menos enquanto não reunisse as condições humanas, materiais e
financeiras necessárias à padronização política, económica, social, cultural e religiosa do

8
SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 2.

11
império colonial português. O exemplo mais paradigmático foi efectivamente a
aprovação do Código Civil Português (Código de Seabra), aprovado por Carta de Lei em
1 de Julho de 1887, que foi tornado extensivo ao espaço colonial, incluindo
Moçambique, em 1869, através de Decreto de 18 de Novembro de 1869, ressalvando-se
os usos e costumes das populações indígenas que não se opusessem à moral e à ordem
pública.
O preâmbulo do Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926, que
promulgou o Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique,
disse o seguinte: “Não se atribuem aos indígenas, por falta de significado prático, os
direitos relacionados com as nossas instituições constitucionais. Não submetemos a sua
vida individual, doméstica e pública se assim é permitido dizer, às nossas leis políticas,
aos nossos códigos administrativos, civis, comerciais e penais, à nossa Organização
Judiciária. Mantemos para eles uma ordem jurídica própria do estatuto das suas
faculdades, da sua mentalidade de primitivos, dos seus sentimentos, da sua vida, sem
prescindirmos de os ir chamando por todas as formas convenientes à elevação cada vez
maior, do seu nível de existência”.
Silva Cunha, procurando justificar a dicotomia de sistemas jurídicos com base em
critérios de ordem cultural, refere, numa das suas obras, que “só quando as populações a
que se aplica este Direito evoluírem, superando a sua actual situação cultural, é que de
poderá acabar com a distinção entre os sistemas jurídicos por que se regem não indígenas
e indígenas (…). Tudo o que se faça antes deste momento, no sentido da unificação, é
prematuro, precipitado e perigoso e está condenado a falhar porque os factos
necessariamente se sobreporão ao que for legislado”9.
Anos antes, Mousinho do Albuquerque, herói das campanhas de ocupação
efectiva do território moçambicano e que veio a ocupar o cargo de Comissário Régio
para Moçambique, escreveu, em ofício ao Conselheiro Álvaro da Costa Ferreira,
procedendo a uma análise crítica da forma como, na “província”, era administrada a
justiça às populações indígenas, e que passava pela aplicação da legislação do Reino que

9
CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), I, Edições Ática,
Colecção Jurídica Portuguesa, Lisboa, p. 79.

12
regia os cidadãos europeus, o seguinte: “era impossível conservar este absurdo, pois a
cada estado de civilização dum povo corresponde o conjunto de leis por que se deve
reger e não há pior ilusão do que supor que pela simples aplicação de leis e regulamentos
inadequados se passa do estado de selvajaria para o de civilização completa”10.
Aliás, nos termos do n.º 2 da Base 18 da Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei
Orgânica da Administração Civil das Províncias Ultramarinas), as alterações dos usos e
costumes privativos que regem as relações civis dos povos indígenas, com o propósito de
os melhorar, “só serão introduzidas gradualmente, e de forma a serem cabalmente
compreendidas e assimiladas”. Nesse sentido, Silva Cunha propugnava que o
reconhecimento dos direitos costumeiros dos povos indígenas é meramente transitório,
visto que “constitui objectivo de toda a política colonial portuguesa obter o
desaparecimento e tal ordem jurídica, através da integração total dos indígenas no
agregado nacional”11.
Cristina Nogueira da Silva sublinha que o pluralismo jurídico vigente na
administração colonial, traduzido na situação criada através do Decreto de 18 de
Novembro de 1869, não assentou na diversidade cultural juridicamente protegida, isto é,
na coexistência de múltiplas ordens jurídicas, colocadas ao mesmo nível, desprovidas de
relações de desequilíbrio. Antes pelo contrário, tratou-se de um “pluralismo
desequilibrado”, o qual “colocava, de um lado, a ordem jurídica portuguesa e, do outro,
um conjunto de ordens jurídicas percebidas como inferiores. A preservação destas últimas
supunha a existência de uma fronteira civilizacional que separava as populações
civilizadas, sujeitas ao Código Civil, das populações não civilizadas, regidas, na sua vida
privada, por usos e costumes, cujo desaparecimento progressivo era visto como uma
consequência natural da colonização europeia”12.
José Capela considera, a este respeito, que “o colonialismo nunca teve qualquer
consideração, de qualquer consideração que fosse, pelos valores da sociedade clânica ou
tribal. O indigenato, se foi codificado, foi-o exclusivamente para liquidar à nascença

10
MINERVA CENTRAL, Mouzinho de Albuquerque, Edição da Minerva Central, 2.ª Edição aumentada,
Lourenço Marques, 1953, p. 52.
11
Idem, p. 222.
12
SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 14.

13
qualquer veleidade de reconhecimento de direitos a um negro. O que subsistiu das
culturas tradicionais ficou a dever-se não a qualquer consideração da administração por
elas, mas à sua incapacidade para as destruir de todo”13.
No entanto, conforme nos revela José Negrão, “contrariamente ao que era
esperado pelos legisladores portugueses, o desprezo das leis consuetudinárias pelo
Governo teve, por consequência, o seu reforço e a sua consolidação enquanto
instituições locais flexíveis e adaptáveis à mudança” 14 . Isto é, o tradicional resistiu a
quaisquer iniciativas de aniquilamento e/ou manipulação, não somente no período da
Administração colonial, mas também a seguir à instauração da Independência nacional,
projectando-se em termos fortalecidos.

1.3. A rede de chefias locais

As diversas experiências de colonização revelaram um importante aspecto em


comum: o uso dos chefes locais ou tradicionais para garantir uma administração colonial
efectiva, controlar as suas gentes, fornecer mão-de-obra e assegurar o pagamento dos
diversos tributos fixados. No entanto, tal expediente constituiu uma espécie de remédio
encontrado pelos estados colonizadores para suprir eventuais carências financeiras e
humanas no esforço de cobertura geográfica dos territórios ultramarinos. Dai que,
mesmo no modelo colonial britânico da indirect rule, no qual as autoridades tradicionais
gozaram de um espaço de intervenção relativamente maior em relação às suas
congéneres sob jugo das administrações coloniais francesa e portuguesa, a perspectiva foi
sempre a de reduzir progressivamente a dependência das lideranças locais, bem como de
reduzir os seus poderes, à medida que a Administração colonial reforçava a sua
capacidade de controlo e gestão dos territórios e suas gentes15.

13
CAPELA, José, O Imposto de Palhota e a Introdução do Modo de Produção Capitalista nas Colónias,
Afrontamento, Porto, 1977, p. 248.
14
NEGRÃO, José, Cem Anos de Economia da Família Rural Africana – O Delta do Zambeze em análise
retrospectiva, Texto Editores, Maputo, 2006.
15
LAMBERT, John, Chiefship in Early Colonial Natal, 1843 – 1879, Journal of Southern African Studies,
Vol. 21, N.° 2 (Jun., 1995), 271.

14
Focando o caso moçambicano, uma característica importante no sistema de
administração colonial português foi o estabelecimento de uma rede de chefias locais,
cruciais ao cumprimento dos desígnios de controlo efectivo de um território ultramarino
em dimensão descomunalmente superior ao do estado colonizador, e em que, na quase
totalidade dos casos, os funcionários coloniais tiverem que se confrontar com enormes
constrangimentos de ordem financeira, visto que os cofres metropolitanos se mostraram
reticentes em disponibilizarem os montantes necessários ao controlo efectivo da colónia
de Moçambique.
Este processo iniciou quando, em 1895, o então Comissário Régio de
Moçambique, António Enes, criou a circunscrição indígena, unidade administrativa
adequada às zonas rurais, na qual o administrador, no lugar das até então chefias
tradicionais, exercia, em termos cumulativos, as funções de juiz e administrador. Por seu
turno, as circunscrições foram divididas em regedorias 16 . Esta divisão administrativa
sobreviveu às reformas sucessivamente realizadas com o decurso do tempo, mesmo em
período republicano, no qual foi aprovada a Constituição Política de 1911, que trouxe o
princípio da descentralização administrativa. Segundo Carlos Serra, “gestor da força de
trabalho e juiz do bom comportamento dessa força de trabalho, o administrador
colonial tornou-se, também, antropólogo de carreira, o pesquisador da organização
social dos nativos. Quanto mais conhecido fosse essa organização social, mais eficiente
seria o controlo judiciário e, portanto, mais rigorosamente seriam processados os
fornecimentos laborais”17.
Na realidade, o sistema das chefias serviu fundamentalmente para materializar um
conjunto de desígnios: controlar a população indígena, facilitar o recrutamento de mão-
de-obra para a África do Sul e para garantir o funcionamento da máquina produtora de
matéria-prima essencial ao desenvolvimento da Metrópole e para cobrar impostos.
As autoridades tradicionais foram, assim, sistematicamente manipuladas ao serviço
do sistema colonial, chegando, no caso moçambicano, a receber o estatuto de “auxiliares

16
SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, Volume II, Livraria
Universitária, Maputo, 2000, p. 207.
17
Idem, p. 208.

15
da administração”, através da Portaria Provincial n.º 5639, de 29 de Julho de 1944 18.
Constituíram, efectivamente, uma espécie de presença indirecta do poder colonial junto
das populações locais, bem como da respectiva ordem jurídica, isto é, constituiu uma das
características do chamado modelo da indirect-rule, que vigorou em praticamente todos
os países colonizados, de acordo com as mais diversas especificidades, e que ganhou
contornos mais significativos no sistema de administração colonial britânico.
Naturalmente que a Administração colonial exercia, sempre que necessário, uma
interferência nas regras sucessórias para designar uma autoridade considerada
subserviente ou afastar outra que fosse considerada insubordinada ou, de certo modo,
contrária aos objectivos coloniais 19 . A nova organização administrativa implementada
pelas autoridades coloniais pressupôs, igualmente, um processo de redimensionamento
ou redefinição das fronteiras dos territórios pertencentes aos anteriores Estados pré-
coloniais, sempre para menor, dentro do espírito da política de dividir para melhor
reinar20, introduzindo modificações nas estruturas e relações societárias e de poder, à luz
dos desígnios da potência ocupante, com implicações que persistiram à evolução dos
tempos. Em certa medida, uma parte das autoridades tradicionais, representadas no
sistema de regedorias, acabou constituindo criação da administração colonial, escolhidos
entre soldados negors que tinham participado nas guerras de ocupação ou por criados
dos oficiais portugueses, desde que assegurassem a materialização dos desígnios do
Estado colonial21.
Dai que tenham surgido imensos conflitos de liderança que perduram até
actualidade, designadamente entre os “legítimos”, reconhecidos pela comunidade, e os
“criados”, resultantes de decisão das autoridades coloniais. Ambrósio Cuahela faz
referência a este assunto, vincando a diferença entre chefes “tradicionais” e “régulos”,
consoante a legitimidade tenha advindo da própria comunidade, no primeiro caso, ou
da Administração colonial, no segundo caso. Para este autor, “é o chefe tradicional que

18
MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, “Conflito e
Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique”, organização de Boaventura Sousa
Santos e João Carlos Trindade, Volume 2, Edições Afrontamento, Porto, 2003, p. 346.
19
Idem. 345.
20
Veja-se MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 34.
21
SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, ob. cit., p. 216.

16
possui a capacidade de estabelecer por simbologia a ligação entre os vivos e dos mortos.
O Régulo podia possuir tal capacidade quando fosse ao mesmo tempo Chefe
Tradicional, de contrário não. Isto porque o Chefe Tradicional é o provável portador da
legitimidade que lhe vem dos seus ancestrais linhageiros através dos vivos. O Régulo
quando detinha a legitimidade, era de forma condicional, pois o caso surgiu da
necessidade do regime colonial de encontrar um parceiro local, que servisse de
interlocutor entre as comunidades e a Administração”22. Eduardo Mondlane aludiu ao
facto de “o poder do chefe já não derivar de um conceito de legitimidade dentro da
sociedade tradicional, mas estar antes baseado no controverso conceito da legalidade
portuguesa. O chefe já não era mais o dirigente da sua comunidade, mas o representante
na comunidade da autoridade colonial, estabelecida de forma hierárquica”23.
Eli Mar escreve, nesse sentido, a sujeição das autoridades indígenas ao interesse
colonial fazia (…) com que a liberdade do Africano em Moçambique e a defesa dos seus
interesses fossem desaparecendo, uma espécie de afogamento lento, atingindo o nível
desumano e bárbaro (…). Ele passou em regra geral e forçadamente a ser um
colaborador e foi com a ajuda dele que se começou uma exploração maciça de mão-de-
obra africana”24.
Logicamente que o processo de instrumentalização não significou a adesão plena,
consciente e isenta de resistência por parte de todas as chefias tradicionais, havendo
inúmeros casos de contestação, bem como de apoio e adesão ao movimento
independentista25. Conforme veremos, estes casos não foram suficientes para obstar ao
tratamento que as chefias receberam nos primeiros anos a seguir à proclamação da
Independência nacional, rotuladas como agentes de opressão ou meros serviçais do
Estado colonial.

22
CUAHELA, Ambrósio, Autoridade Tradicional, Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique,
Brochura 1, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo,
2006, p. 31.
23
MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995. P. 34.
24
MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, ob. cit., p. 75.
25
Veja-se nesse sentido CUHAELA, Ambrósio, Descentralização e Autoridade Tradicional: Memória do
Projecto, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública,
organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de
Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, pp. 90 – 91.

17
1.4. Estatuto jurídico das populações locais

Para o sistema colonial, as populações locais foram tratadas, tal como nas demais
experiências colonizadores levadas a cabo pelos povos europeus, como bárbaras,
indígenas, primitivas, atrasadas ou aborígenes. Os povos colonizados eram, em todos os
aspectos (económicos, sociais, culturais, religiosos, políticos) considerados inferiores em
relação aos europeus, e, portanto, desprovidos das mais elementares bases civilizacionais,
regidos por usos e costumes considerados rudimentares, tornando-se necessário, para o
efeito, um aturado e profundo processo de elevação gradual da sua condição através de
modelos de assimilação ou integração na ordem considerada civilizada.
No início, os povos colonizados foram fundamentalmente considerados como
fontes de recrutamento de mão-de-obra escrava para as grandes plantações coloniais;
mais tarde, com a abolição da escravatura em meados do século XIX, a sua condição
pouco melhorou, pois passaram constituir mão-de-obra barata para o desenvolvimento
do projecto colonial, desprovidos dos direitos reconhecidos aos cidadãos europeus. Dai
que tenha havido, recorrendo a uma expressão de Marco Guadagni, uma “exigência
primária de sancionar no plano legal uma clara discriminação de estatuto jurídico entre
os colonos e as populações locais”26.
Nas colónias portuguesas foi estabelecido o regime do Indigenato como sistema
político que subordinou as populações colonizadas aos chefes e, nesse sentido, “as leis,
estatutos e políticas que passaram a opor o colonizador ao colonizado, o cidadão ao
indígena, reflectem, na essência, o sistema colonial, a necessidade de estruturar o sistema
de exploração e de discriminação racial” 27 . Assim, a população nas colónias estava
organizada em duas classes distintas: os civilizados ou não indígenas, que se regiam pelas
leis vigentes na Metrópole, possuindo plenos direitos de cidadania, e os indígenas,
regidos pelos usos e costumes locais. Veja-se que mesmo depois da proclamação da
República em Portugal, no ano de 1910, guiada pelos ideais da Liberdade, Igualdade e

26
GUADAGNI, Marco, A Reforma do Direito Privado em África – O caso da Etiópia, In. Justiça Popular,
n.º 6, Maio/Outubro, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1982, p. 8.
27
MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, ob. cit., pp.
343 – 344.

18
Fraternidade, em nada se alteraram os direitos políticos dos indígenas das colónias, para
os quais, aliás, apenas estavam previstos deveres, nomeadamente de trabalhar, ainda que
nas mais ultrajantes condições humanas28.
Em 1914, foi aprovada a Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias
Ultramarinas, Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914, proposta pelo então Ministro das
Colónias, Almeida Ribeiro29, e que consagrou o princípio segundo o qual aos indígenas
das colónias portuguesas não seriam atribuídos “direitos políticos relativos a instituições
de carácter civilizado” 30 . Esta lei, bem como as que a sucederam, não chegou a ser
cabalmente implementada tendo presente o período de instabilidade política que se
viveu em Portugal até à Revolução do dia 28 de Maio de 1926, que pôs termo à
Primeira República Portuguesa, instaurando a Ditadura Nacional, e assim abrindo uma
nova página na história deste país31.
Nesse ano, houve lugar à aprovação do primeiro código de indigenato, o Estatuto
Político Civil e Criminal dos Indígenas das Colónias de Angola e Moçambique, através do
Decreto n.º 12 533, de 23 de Outubro de 1926, e que, 3 anos mais tarde, deu origem a
um novo Estatuto, aprovado através do Decreto n.º 16 473, de 6 de Fevereiro de 1929,
que mantiveram, quase na íntegra, os princípios e regas fundamentais da política colonial
estatuídos na Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 191432.
Influenciado pelo modelo francês de colonização, a partir 1917, a Administração
colonial portuguesa criou uma categoria nova – o assimilado, categoria social não sujeita
ao trabalho forçado, com base no chamado modelo de assimilação, que caracterizou
igualmente as relações entre a França e as suas colónias, em contraposição aos modelos
da autonomia e da sujeição, que caracterizou, tendencialmente, as políticas coloniais do
Reino Unido e do Reino dos Países Baixos, respectivamente33. Eli Mar refere-se assim à

28
SERRA, Carlos, História de Moçambique – Agressão Imperialista 1886 – 1930, ob. cit., p. 219.
29
CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 106.
30
In. PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique. A codificação dos Usos e Costumes
Indígenas no Direito Colonial Português, Cadernos de Estudos Africanos, N.° 1, Centro de Estudos
Africanos, Julho/Dezembro, 2001, p. 137.
31
CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 115.
32
Idem, pp. 116 – 118.
33
Veja-se, nesse sentido, SILVA, Cristina Nogueira da, Modelos Coloniais no Século XIX (França, Portugal e
Espanha), In. E-legal History Review, n.º 7, 2009.

19
instauração de um sistema baseado na agregação da população em três categorias ou
castas distintas: os “assimilados”, os “civilizados” e os “indígenas” 34 . Segundo este
autores, a assimilação teve dois objectivos fundamentais: primeiro, “mudar a estrutura
sócio-cultural da sociedade africana e do indivíduo transformando-a numa sociedade de
classes” segundo; “a criação de uma casta de africanos integrados no sistema, com um
número muito limitado de privilégios que são negados aos outros, e funcionando como
auxiliares deste sistema”35.
Os indivíduos assimilados passavam, assim, a beneficiar-se das instituições
estaduais existentes na administração colonial e a reger-se pelas normas do ordenamento
jurídico formal e escrito, renunciando, portanto, à observância dos usos e costumes
nativos ou gentílicos. Os assimilados constituíam, na realidade, uma categoria intermédia
entre os cidadãos portugueses, logo possuidores de um estatuto inferior em relação a
estes, consubstanciado num cartão de identidade específico, diferente da massa de
trabalhadores detentores de caderneta indígena36.
O artigo 22 do Acto Colonial de 1933 aprovado pelo Decreto-lei n.º 22 465, de
11 de Abril de 1933, estabeleceu que “nas colónias atender-se-á ao estatuto de evolução
dos povos nativos havendo estatutos especiais dos indígenas que estabeleçam para estes,
sob influência do direito público e privado português, regimes de contemporização com
os seus usos e costumes individuais, domésticos e sociais, que não sejam incompatíveis
com a moral e com os ditames da humanidade”.
Silva Cunha, ao analisar o quadro jurídico colonial saído da Constituição de 1933,
justificou a opção por um estatuto jurídico especial para os indígenas da seguinte
maneira: “os indígenas estão sujeitos a uma ordem jurídica especial porque o seu estado
de civilização o impõe. É com fundamento em considerações tiradas da observação do
estado pessoal de facto dos indígenas que se criam para eles estatutos especiais, em nome
das necessidades práticas da política e administração colonial e com o objectivo de
proteger as suas pessoas e bens, evitando que os não indígenas, valendo-se da

34
MAR, Eli. J. E., Exploração Portuguesa em Moçambique 1500 – 1973, ob. cit., p. 135.
35
Idem, p. 136.
36
MENESES, Maria e outros, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, ob. cit., p.
344.

20
superioridade de cultura e de prestígio que sempre cerca os pertencentes ao grupo
colonizador, comeram contra eles abusos e espoliações”37.
Este autor escreve ainda que “os meios de actuação sobre os indígenas para
conseguir a sua assimilação seriam principalmente a difusão da língua portuguesa, a
educação e o ensino, a cristianização” 38 . Pelos menos em termos formais, dá-se um
regresso à tendência liberal da assimilação defendida pelos liberais que fizeram a
Revolução de 1820, mas já não em moldes uniformizadores.
O exemplo da política discriminatória baseada na raça prosseguida pelo Estado
colonial, foi legitimada de uma forma paradigmática num discurso de António Salazar,
de 1957, que afirmou “Acreditamos que existem raças decadentes ou, se preferem,
atrasadas, a quem sentimos ter o dever de conduzir para uma civilização – tarefa esta de
formação de seres humanos que deve ser levada a cabo de maneira humana”39.
Nos documentos da 8.ª Secção do Comité Central da Frelimo, realizado entre os
dias 11 a 27 de Fevereiro de 1977, escreveu-se, a respeito da opção do poder colonial em
relação à abertura da educação aos assimilados, “na última fase do colonialismo,
assistimos a uma modificação aparente da política colonial de educação através da
«abertura» para uma pequena minoria de moçambicanos, concretamente os filhos dos
funcionários e assimilados. O objectivo era claro: realizar efectivamente a própria política
de assimilação, que até então tinha ficado no papel. Isto é, tratava-se de acelerar a
formação de «pequenos burgueses de cor preta» para criar uma classe pequeno-burguesa
capaz de assumir e enraizar no seio da sociedade moçambicana os valores duma
sociedade constituída na e para a exploração”40.
A assimilação revelou-se, contudo, muito mais uma intenção desprovida de uma
real implementação, conforme se pode verificar do escasso número de indivíduos que
beneficiaram de tal estatuto ao longo dos primeiros anos de entrada em vigor da referida

37
CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), ob. cit., p. 214.
38
Idem, p. 120
39
ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX,
Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 343.
40
FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 100.

21
política 41 . Na realidade, o Estado Colonial não era muito favorável à elevação da
condição jurídica das populações consideradas nativas, a quem interessava manter numa
espécie de estado inferior, de ignorância plena, para, naturalmente, melhor garantir a
continuidade do modelo de subjugação, evitando eventuais movimentos de natureza
nacionalista. Nesse sentido, a política educacional levada a cabo pela Administração
colonial vedou praticamente até meados da década de sessenta o prosseguimento dos
estudos para além do ensino secundário por parte das populações locais.
Rui Mateus Pereira escreveu, a este respeito, que “o modelo de assimilação
omnipresente na política indígena portuguesa, nos seus objectivos finais, nada mais era
do que uma falácia conducente à manutenção de um sistema subdesenvolvido de
exploração colonial: as normas de civilidade, sempre em evocação a uma pretensa moral
e dignidade humana, detinham-se naquele ponto que tinha a ver com a exploração mais
primitiva da força laboral das populações colonizadas. Para atingir esse objectivo haveria
que desfuncionalizar as culturas e sociedades colonizadas, fosse pelo desprestígio das
autoridades tradicionais, fosse pela denegação das marcas identitárias, fosse pela
monetarização forçada das economias de subsistência fosse pela repressão dos rituais e
cerimónias integradoras”42.
Em 1961, tendo presente a conjuntura internacional caracterizada pela emergência
do movimento independentista ou de descolonização, bem como da emergência de ecos
de nacionalismo no seio das colónias portuguesas, o Ministro do Ultramar, através do
Decreto-Lei n.º 43 893, de 6 de Setembro de 1961, procedeu à abolição do Estatuto do
Indigenato, tendo todos os habitantes nativos das colónias sido declarados cidadãos
portugueses de pleno direito, pelo menos no capítulo formal e jurídico, pois a prática
revelou que a descriminação não se extinguiu de um momento para o outro, tal como
ficou provado através da emissão de “bilhetes de identidade” para os anteriores

41
Rui Mateus Pereira, citando o Relatório da Aplicação do Estatuto dos Indígenas Portugueses referente aos
anos de 1955, 1956, 1957 e 1958, refere que, em 1954, houve lugar à concessão do estatuto de assimilado
a apenas 28 indígenas em toda a colónia, número este que foi subindo muito vagarosamente, ao ponto
de, nos 4 anos em causa, o número totalizar apenas 442 indivíduos. In. PEREIRA, Rui Mateus, A Missão
Etognóstica de Moçambique, ob. cit., p. 160.
42
Idem, p. 168.

22
cidadãos, bem como de “cartões de identidade” para os ex. indígenas43. Novos tempos
se vislumbravam…

1.5. O trabalho forçado

Encontramos igualmente uma clara preocupação nos escritos coloniais com a


questão do trabalho indígena. Uma vez abolida a escravatura nas colónias, emergiu o
trabalho forçado, que muito pouco se distinguia daquele, e que permaneceu uma
realidade em termos práticos, ainda que encoberto em subterfúgios legais, até ao ano
1974, que marcou a queda da ditadura fascista e a instauração de um Estado democrático
em Portugal, bem como o início do processo de descolonização em Moçambique e nas
demais colónias portuguesas.
Um dos autores que melhor espelha a mentalidade vigente ao longo do período
colonial, é Rodrigues Júnior, em sua obra O Negro de Moçambique, começa dizendo:
“O negro é um homem. A cor da pele não interessa. O que interessa é que o
considermos homem. Um homem atrasado? Com certeza. O trabalho há-de levá-lo a
pensar que a satisfação de necessidades só a merece quem for capaz de um esforço. A
preguiça que lhe amolenta as energias vem justamente de não ter quase necessidades a
satisfazer. E mínimas são tão poucas que o não trazem ocupado suficientemente para
impedir que a ociosidade possa ser causa de uma paragem perigosa da sua vida – o sono
à beira do caminho por onde passam outros homens que sentem já desejos de se
adiantarem”. (…) Obrigá-lo a esse trabalho, que é aperfeiçoamento individual, será
destruir nele conceitos primitivos de vida, será indicar-lhe um caminho novo, que pisará
mais firmemente, as grilhetas partidas, a fronte virada para o sol, o peito aberto à luz, o
coração cheio de outras novidades, mais belas e altas”44.
Nota-se no autor uma clara e expressiva necessidade de fundamentar e legitimar a
política e legislação colonial em relação ao trabalho indígena, considerado essencial, à luz
do modelo económico de cariz mercantilista, à prossecução dos objectivos do Estado

43
Veja-se MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 46.
44
JUNIOR, Rodrigues, O Negro de Moçambique (Estudo), África Editora, Lourenço Marques, 1955, p. 5.

23
português, num contexto de grande pressão da concorrência representada pelos
proprietários das minas e plantações sul-africanas.
Sobre o trabalho forçado, Rodrigues Júnior escreveu o seguinte: “Não há trabalho
compelido, propriamente dito. O que há, é obrigação de trabalho. O trabalho é uma
função nobre da vida – fonte de riqueza, acúmulo de valores de que depende a vida
social do grupo e o bem-estar da família”. Quando se obriga um negro ao trabalho, é
porque ele obriga de algum modo, porque não veio, voluntariamente, oferecer o seu
braço, que não pode ficar inactivo quando os outros braços de movimentam para que
não se morra à mingua de pão. Trabalho compelido supõe a existência de uma
imposição. Não há dúvida de que é assim. Quando o indivíduo se furta a dar a sua
quota-parte na criação da abastança que lhe deve caber, não há outro meio de o corrigir
senão obrigá-lo a trabalhar. O negro é preguiçoso. Talvez porque não tenha grandes
necessidades – e as que tem são poucas que o forçam a despertar dessa sonolência de
séculos, desse sono aflitivo, que o amarra à esteira, onde o corpo fica amolentado de
preguiça dias sem conta”45.
Já na fase final do período monárquico, foi aprovado o Regulamento do
Trabalho Indígena, em Decreto de 9 de Novembro de 1899, consagrando expressamente
o princípio da obrigatoriedade do trabalho. A comissão de autores foi presidida
precisamente António Enes, que foi Comissário Régio em Moçambique. Este instrumento
marcou uma ruptura com a tendência liberal e humanitarista saída da Revolução de
1820, fortemente impregnada pelos ideais da Revolução Francesa, assentes na Liberdade,
Igualdade e Fraternidade, defendendo uma política de assimilação uniformizadora. Dai
que, segundo Adelino Torres, “é, por conseguinte, a filosofia assumida do trabalho
forçado que se apresenta como imperativo legal” 46 . António Enes defendeu uma
orientação assente no objectivo de se criar um regime especial de trabalho para as
populações nativas susceptível de colmatar os profundos défices de mão-de-obra com

45
JUNIOR, Rodrigues, ob. cit., p. 11.
46
TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, Colecção Estudos sobre África, n.º
5, Escher, Lisboa, p. 169.

24
que se deparavam os diversos projectos públicos e privados nas colónias portuguesas47,
bem como de aumentar a produtividade das colónias portuguesas em África,
fortalecendo a respectiva posição em relação às economias dos países vizinhos48.
O artigo 1 do Regulamento de 1899 determinou que “todos os indígenas das
províncias ultramarinas portuguesas estão sujeitos à obrigação, moral e legal, de procurar
adquirir pelo trabalho os meios que lhes faltem, de subsistir e de melhorar a própria
condição social”. E mais, caso não a viessem a cumprir de modo algum, “a autoridade
pública pode impor-lhe o seu cumprimento”. Nesse sentido, mais do que instituir um
dever moral e material de trabalhar, atribuiu-se ao mesmo carácter jurídico,
acompanhado por medidas de coerção.
Este instrumento legal viria a influenciar significativamente todas as iniciativas
legislativas subsequentes, designadamente após a instauração da república em 1910. O
primeiro Regulamento de Trabalho Indígena da República, aprovado pelo Decreto de 27
de Maio de 1911, mais não fez do que prosseguir com as grandes linhas do Código de
1899 49. Assim, a legislação colonial do trabalho pouco mudou da transição da Monarquia
para a República (sai inclusivamente reforçada com a Constituição de 1933, que marca o
início da instauração do “Estado Novo”50), e desta nas suas diferentes etapas ao longo do
século XX, conforme demonstram os sucessivos regulamentos do trabalho indígena,
consubstanciando uma obrigação legal (e moral) ao trabalho.
Veja-se o Artigo 1 do Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas aprovado
pelo Decreto n.º 951, de 4 de Outubro de 1914, segundo o qual os indígenas têm

47
CUNHA, J. M. da Silva, Questões Ultramarinas e Internacionais (Direito e Política), I, Edições Ática,
Colecção Jurídica Portuguesa, Lisboa, p. 70.
48
ALMEIDA, Pedro Ramos ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África,
Cronologia Século XIX, Imprensa Universitária, n.º 4, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 312.
49
TORRES, Adelino, O Império Português entre o Real e o Imaginário, ob. cit., p. 170.
50
Veja-se que, segundo o artigo 146 da Constituição de 1933, estabeleceu-se a cobertura legal do trabalho
forçado colonial: “O Estado não pode forçar os indígenas a trabalhar senão nos serviços públicos de
interesse geral para a colectividade, em ocupações em que os benefícios lhes digam respeito, na execução
de decisões judiciais de carácter geral, ou para a execução de obrigações fiscais”. Em termos práticos, esta
norma constitucional permitiu um amplo espaço para aplicação de excepções à regra, tornando o trabalho
forçado prática amplamente utilizada. Por seu turno, no artigo 2 do Acto Colonial aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 22 465, de 11 de Abril de 1933, determinou-se que “O Estado somente pode compelir os
indígenas ao trabalho em obras públicas de interesse geral da colectividade, em ocupações cujos resultados
lhes pertençam, em execução de decisões judiciárias de carácter penal, ou para cumprimento de obrigações
fiscais”.

25
obrigação moral e legal de por meio do trabalho proverem ao seu sustento. Este
Regulamento foi revogado pelo Decreto n.º 16 199, de 1928, no qual se procurou
realizar uma aproximação em relação ao disposto na Convenção n.º 129 da Organização
Internacional do Trabalho. Depois de se estipular, no artigo 3, a proibição absoluta do
trabalho forçado, com fins de interesse particular, permitindo-se excepcionalmente em
casos de necessidade pública, definiu-se uma reserva - “contudo, sem prejuízo do
cumprimento do dever moral que lhes incumbe, os indígenas terão necessariamente de
procurar os meios de subsistência por meio do trabalho e contribuir assim para os
interesses gerais da humanidade”.
Em 1939, o então Ministro das Colónias, Vieira Machado, chegou a afirmar que as
populações negras africanas “não têm direito a viver sem trabalhar”, reflectindo uma
clara defesa do princípio do trabalho forçado como sucessor da escravatura vigente até
ao século anterior51.
Eduardo Mondlane resume de uma forma bastante clara e objectiva as principais
formas de trabalho forçado, categoria genérica, mas que efectivamente encobre diversas
espécies de exploração da mão-de-obra nativa: (1) Trabalho correccional, aplicado
através dos tribunais; (2) Trabalho obrigatório, que obrigava os nativos a trabalhar cerca
de 6 meses para o Estado ou para uma companhia; (3) Trabalho contratado, previsto no
Código de Trabalho Rural; (4) Trabalho voluntário, reconduzindo-se fundamentalmente
ao trabalho doméstico; (5) Cultivo forçado, englobando os casos em que o trabalhador é
pago pelo produto do seu trabalho e não pelo seu trabalho; (6) Mão-de-obra para
exportação, enviada para a África do Sul e, em menor número, para a Rodésia do Sul
(hoje Zimbabwe), mediante pagamento efectuados ao Estado colonial52.
O trabalho forçado exerceu naturalmente um profundo impacto no modo de
estar e viver das populações locais, alterou toda uma teia de relações sociais, retirou
tempo anteriormente utilizado em actividades associadas à terra e aos recursos naturais,
mas também ao convívio, ao lazer, ao bem-estar. Foi realmente um dos lados mais

51
ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX,
Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 253.
52
MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, pp. 78 – 79.

26
marcantes do colonialismo. Os moçambicanos viram-se transformados em instrumentos
de trabalho, força motriz de baixo custo.

1.6. Codificação dos direitos costumeiros

Moçambique constituiu, em relação às demais ex. colónias portuguesas, uma


espécie de palco priviligiado de experimentação do movimento de codificação dos
direitos costumeiros, ainda que não conseguido ir muito além da apresentação de
propostas desprovidas da necessária eficácia jurídica.
O caso mais emblemático foi o Código dos Milandos, de 1852, e que conheceu
sucessivas nos anos seguintes, dizendo respeito à codificação das normas costumeiras
vigentes no distrito de Inhambane, particularmente no que diz respeito ao grupo étnico
Bitonga, que residia fundamentalmente no redor na cidade de Inhambane.
A Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias do Ultramar (Lei n.º 277, de
15 de Agosto de 1914), estipulou, entre outros princípios, a “codificação e revalidação de
usos e costumes africanos feudais”, bem como “a não concessão, por regra, à população
africana, de «direitos políticos relativos a instituições de carácter europeu»”53.
No n.º 1 do artigo 4 do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola
e Moçambique, promulgado pelo Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926,
determinou-se que “nas relações jurídicas entre indígenas, os direitos de família, sucessões
e regime de propriedade são regulados segundo os usos e costumes das populações de
cada região”. Nos termos do respectivo parágrafo único, “enquanto não forem
reduzidos a escrito os usos e costumes dos indígenas de cada região, serão eles
estabelecidos para cada caso sujeito a julgamento, pelas declarações do chefe indígena da
região e de 2 indígenas dos mais conceituados no seu meio, designados pelo presidente
do tribunal”. Esta legalmente expressa, portanto, a vontade de reduzir à forma escrita o
conjunto de direitos costumeiros dos povos indígenas.

53
ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século XX,
Imprensa Universitária, n.º 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 104.

27
Nesse sentido, volvidos apenas três anos, o artigo 24 do novo Estatuto Político,
Civil e Criminal dos Indígenas, aprovado pelo Decreto n.º 16 473, de 6 de Fevereiro de
1929, determinou que os governadores das colónias deveriam, no prazo de um ano a
contar da publicação deste instrumento legal no Boletim Oficial, pôr em vigor códigos de
indigenato, bem como os regulamentos que se revelassem necessários à sua
implementação. Contudo, conforme demonstra Rui Mateus Pereira, a administração
colonial foi extraordinariamente lenta na resposta à imposição proveniente da
Metrópole54.
Só em 1941, o Governador-geral de Moçambique determinou, através de
despacho de 31 de Julho, a criação da Missão Etognósica da Colónia de Moçambique,
que tinha como objectivo fundamental realizar em concreto e em relação a cada um dos
grupos étnicos do território da colónia, uma investigação do direito, da moral e da
mentalidade das populações indígenas, com o propósito último de se elaborar um
código penal e um código de direito privado 55. Para a chefia da Missão foi nomeado o
conceituado jurista da colónia, José Gonçalves Cota, que começou a trabalhar no terreno
logo imediatamente, para, em 1944, publicar o seu estudo etnológico 56 . Os seus
projectos de Código Penal e de Estatuto de Direito Privado dos Indígenas foram
publicados em versões definitivas no ano de 1946, mas não chegaram a ser promulgados
pelo poder metropolitano.
Contudo, segundo Rui Pereira, não obstante tais projectos não terem entrado em
vigor por falta de promulgação, “acabaram por cumprir um objectivo de relevo,
apontado, de resto, na disposição legislativa que a instituiu: fornecer aos funcionários
coloniais em Moçambique uma base de orientação para a prática administrativa do
quotidiano das populações colonizadas, num processo dialéctico entre os ditames
configurados nos Projectos de Gonçalves Cota e os "crimes gentílicos" que, caso a caso, se
apresentavam à apreciação judicial das autoridades coloniais”57.

54
PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique. ob. cit.,p. 144.
55
Idem, pp. 144 – 145.
56
COTA, J. Gonçalves, Mitologia e Direito Consuetudinário dos Indígenas de Moçambique, Imprensa
Nacional de Moçambique, Lourenço Marques, 1944.
57
PEREIRA, Rui Mateus, A Missão Etognóstica de Moçambique, ob. cit., p. 173.

28
A codificação do Direito Consuetudinário não foi mais do que, segundo alguns
autores, uma construção colonial dirigida ao estabelecimento e manutenção de relações
de poder ou dominação, isto é, consubstanciava uma espécie de elaboração ou
reelaboração das normas que deveriam reger as relações entre as populações locais à
medida do pensamento do colonizador. Dai que, para Sally Merry, o direito costumeiro
era muito mais uma construção do período colonial que uma realidade pré-colonial58;
sendo que, à medida que o direito costumeiro ia sendo compilado, naturalmente que a
sua interpretação e implementação eram feitas à luz do direito estadual importado das
metrópoles59.
Cristina Nogueira da Silva refere que a codificação dos usos e costumes das
populações locais constituiu uma das modalidades que os poderes coloniais utilizaram
para “confinar” e “controlar” os sistemas jurídicos nativos e os respectivos agentes,
aproximando estes sistemas em relação ao sistema jurídico europeu60. E mais, esta autora
chama-nos a atenção para a contradição, ainda que aparente, entre a preservação dos
usos e costumes das populações locais não europeias, inerente ao processo de
codificação, confirmando relações de poder, de autoridade e de dependência que o
movimento codificador pretendia extinguir no continente europeu, por um lado, e a
missão de disseminação da civilização e modernidade junto das populações nativas dos
territórios colonizados, por outro lado61.
A missão civilizacional foi, aliás, uma dos pilares ideológicos do colonialismo,
encontrando-se patente no Decreto n.º 5778, de 10 de Maio de 1919, que criou 12
missões civilizadoras para o Ultramar. Veja-se que o objectivo consistiu “em levar a essas
sociedades embrionárias e primitivas os benefícios da nossa civilização, elevando-as e
derrubando-lhes os preconceitos, criar nelas uma família nova, ensinando-lhes a nossa
língua, revelando-lhes as nossas glórias e impondo-lhes os nossos costumes e tradições,
deve ser o objectivo das nossas missões”62.

58
MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, ob. cit., p. 364.
59
Idem, p. 365.
60
SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 3.
61
Ibidem, pp. 3 – 4.
62
Veja-se ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século
XX, Imprensa Universitária, n.° 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 136.

29
Aliás, tal como referem Benett e Vermeulen, a codificação do direito costumeiro
implica, na maior parte das vezes, a redução a escrito das normas existentes não escritas,
visto que o direito costumeiro reduzido a escrito e depois aplicado em tribunal pressupõe
necessariamente uma mudança ou distanciamento das normas originais assumidas e
implementadas pelas populações locais, uma potencial distorção do direito costumeiro
ou, então, uma previsão de regras gerais assemelhando-se a pouco mais do que uma
compilação de truísmos 63 . Aliás, estes autores evidenciaram muito bem a enorme
dificuldade que os redactores de um projecto de codificação de direito costumeiro,
diante das características da flexibilidade e da generalidade inerentes às respectivas
normas, enfrentam em seleccionar as normas a serem reproduzidas no código e a
expressarem a sensibilidade necessária para reflectir devidamente a forma como elas
funcionam 64.
A codificação do direito costumeiro configurou-se, assim, como um mecanismo
intencional de introdução gradual de transformações nos sistemas jurídicos das
populações nativas, de modo a prosseguir a consolidação das relações de poder e
dominação que caracterizam os estados coloniais e o controlo efectivo do território e das
suas gentes por parte dos agentes da administração colonial. Na realidade, “o programa
fundamental, sobretudo no momento em que se codificava a «tradição», não era o de
preservar mas, em vez disso, o de promover o seu desaparecimento, o de a substituir por
uma (muito futura) assimilação”65.
Uma importante consequência da codificação de usos e costumes constituiu no
sacrifício da capacidade inata do direito costumeiro em se adaptar espontaneamente a
novas realidades económicas, conforme refere Marco Guadagni. Segundo exemplo
apresentado por este autor, “a regra «codificada» da propriedade fundiária «colectiva»
atribuía aos régulos e chefes nomeados pelo poder colonial um poder muito maior do
que lhes era tradicionalmente reconhecido pela comunidade e impedia os camponeses de

63
BENNETT, T.W./ VERMEULEN, T., Codification of Costomarw Law, Jornal of African Law, Vol. 24, N.°
2, 1980, pp. 210 – 211, 217.
64
Idem, p. 217.
65
SILVA, Cristina Nogueira da, Codificação de Usos e Costumes na Doutrina Colonial, ob. cit., p. 17.

30
aproveitar-se dos benefícios concedidos aos «proprietários» fundiários (como por
exemplo o crédito agrícola)”66.
Maryse Raynal escreveu, a propósito do caso moçambicano, “reconhecendo um
lugar ao costume e às autoridades tradicionais, o colonizador reconhecia então a
existência de um pluralismo jurídico. Mas esse reconhecimento de uma ordem jurídica
distinta significava o início da tutela deste, de maneira a assegurar a sua conformidade
com os pressupostos ideológicos do direito estatal. Se politicamente o pluralismo era
para o colonizador uma solução incontornável, ele sempre tentou em seguida desnaturá-
lo para o melhor controlá-lo”67.
Importa referir como Boaventura Sousa Santos refere o movimento de codificação
dos chamados direitos tradicionais ou costumeiros, que a antropologia e a história
jurídicas têm procurado captar, com base nos actuais recursos técnicos, com algum rigor.
Segundo o próprio, isto não resolve tudo, “pois o problema seguinte é o destino da
transformação ou adulteração desse direito uma vez recolhido e codificado.
Precisamente, o risco, de uma vez reduzido a escrito, perder a flexibilidade que só a
tradição lhe conferia, e definhar como corpo estranho no interior de códigos novos”68.

1.7. Terra e recursos naturais ao serviço dos interesses do Estado colonial

Um outro aspecto da administração colonial, que se reflectiu profundamente na


vida das populações locais, foi a política do Estado sobre a terra e os recursos naturais.
Não obstante Portugal, pelo menos no patamar teórico, ter estabelecido e incentivado a
formação de regedorias, detentoras de poderes, ainda que relativos, sobre o território
comunitário administrado, as colónias eram importantes precisamente pelas suas
riquezas, especialmente a terra. Dai que o quadro jurídico-legal tenha sido utilizado

66
GUADAGNI, Marco, ob. cit., p. 8.
67
RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade
de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 18.
68
SANTOS, Boaventura Sousa, Direito e Cooperação, Excertos de uma palestra efectuada na Sessão
Inaugural da Associação Universitária da Cooperação e Estudos sobre Direitos Africanos, em 24 de Junho
de 1982, na Faculdade de Direito de Lisboa, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do
25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1980, p. 34.

31
como instrumento para retira as melhores terras das mãos das populações locais,
remetendo-as progressivamente para áreas marginais e as colocar ao serviço da máquina
produtiva colonial, regida pelos mais básicos postulados mercantilistas.
No início, os défices que a Administração Colonial enfrentava no controlo
efectivo do território foram cobertos através da política de incentivos à instalação de
companhias majestáticas, às quais foram atribuídas vastas porções de terra, bem como
garantido o acesso aos demais recursos naturais. A partir de meados do século XX, a
política colonial orientou-se para a total administração do território, incentivando a
chegada massiva de colonos, a quem eram distribuídas boas terras, obviamente que
sempre à custa dos anteriores ocupantes.
Veja-se que, em 1901 foi implementada uma politica de terras que proclamou
constituir propriedade do Estado toda a terra que não fosse propriedade privada,
solução engenhosa para passar para o controlo colonial as melhores áreas ainda nas
mãos das populações locais, entre as quais não vigorava o conceito de propriedade
privada69. Aos nativos foi legalmente assegurada, nas terras por si ocupadas, um direito
de uso e desenvolvimento para culturas e pasto de gado. A procura de terras para as
grandes plantações de cana-de-açúcar, chá ou sisal fez emergir com máxima força o
instituto da expropriação, na maior parte das vezes sem compensação. A expropriação
tornou-se, para muitos camponeses e respectivas famílias, um verdadeiro calvário.
Repare-se que o pluralismo jurídico (ou, para alguns, dualismo jurídico) inculcado
pelo sistema colonial, e que remetia para o direito costumeiro o papel de reger as
relações entre indígenas, segundo os seus usos e costumes, foi condicionado sempre que
estava em causa um interesse preponderante para o colonizador, especialmente no
capítulo da administração da terra e dos demais recursos naturais. Marco Guadagni refere
que “o poder colonial (…) exercia o seu controlo também sobre o chamado direito
consuetudinário, proibindo a sua aplicação quando era julgado contrário ao «sentido de
justiça europeu» (por exemplo no campo fundiário)”70.

69
MONDLANE, Eduardo, Lutar por Moçambique, Colecção Nosso Chão, Maputo, 1995, p. 35.
70
GUADAGNI, Marco, ob. cit., p. 8.

32
Uma Lei de 1918, a Lei n. ° 3983, de 16 de Março, assegurou às populações nativas
algumas “reservas”, após terem sido concedidos grandes e boas porções de terras aos
colonos portugueses71. Os verdadeiros, genuínos e autênticos ocupantes da terra foram
sendo preteridos das áreas mais férteis, sendo confinados a terrenos marginais, segundo
uma prática comum a todos os modelos de colonização implantados no mundo.
A política de povoamento foi igualmente discriminatória. Em 1956, iniciou-se o
desenvolvimento do colonato do Limpopo, no qual chegaram a residir cerca de 300
portugueses e 3000 moçambicanos. No entanto, cada família portuguesa recebeu 4
hectares de terra para agricultura e 25 para pastagens, contra 2 e 12 hectares,
respectivamente, recebidos por cada família moçambicana. A desigualdade de
tratamento foi, portanto, notória72.
No capítulo dos recursos naturais, destaque para a primeira iniciativa de
conservação integrada de componentes naturais, com a aprovação do Decreto n.º 40
040, de 24 de Fevereiro de 1955, do Ministério do Ultramar, e que estabeleceu preceitos
destinados a proteger, nas províncias ultramarinas, o solo, a flora e a fauna bravia. No
que diz respeito à caça, consagrou-se o princípio da obrigatoriedade de licença, nos
termos do artigo 74 (“salvo as excepções expressamente consignadas na lei, a ninguém é
permitido o exercício da caça sem estar munido da licença competente”). Na sequência
deste princípio, reconheceu-se, no artigo 75, aos indígenas “o direito de caçar e capturar,
para sua subsistência, animais cuja caça não seja absolutamente proibida por lei, desde
que usem apenas armas gentílicas73 e os animais se encontrem em terrenos abertos”.
No capítulo da pesca, o artigo 130 do mesmo Decreto determinou que “a pesca
por indígenas pode ser exercida pelos processos tradicionais, mas deverá ser dirigida e
fiscalizada, de modo a não destruir a piscosidade das águas”.

71
Veja-se ALMEIDA, Pedro Ramos de, História do Colonialismo Português em África, Cronologia Século
XX, Imprensa Universitária, n.º 5, Editorial Estampa, Lisboa, 1979, p. 132.
72
Idem, p. 339.
73
Por “armas gentílicas” entendia-se todo o conjunto de armamento que não fosse de fogo
tradicionalmente utilizado pelas populações nativas, incluindo os arcos e flechas e as azagais.

33
Capítulo II - Estadualismo no período pós Independência

2.1. A lei como fonte exclusiva de Direito

Após a proclamação da República de Moçambique, no dia 25 de Junho de 1975,


iniciou-se um período histórico de um autêntico Estadualismo jurídico, com contornos de
positivismo, no sentido de que só se reconhecia ao Estado o papel de criador de direito,
bem como apenas competia às instâncias formais representadas pelos tribunais populares
e às novas estruturas político-administrativas criadas ao nível da base – os grupos
dinamizadores, a função de resolução de litígios.
Os primeiros quadros formados pela Faculdade de Direito da Universidade
Eduardo Mondlane foram colocados ao longo do país, nas diferentes profissões jurídicas,
com uma formação em direito fundamentalmente positivista, assente, portanto, no peso
da lei como fonte de Direito e expressão máxima da vontade do Povo, através dos
órgãos de soberania.
Veja-se que o processo legislativo manteve-se totalmente indiferente em relação
ao papel do Direito Costumeiro e do costume como fonte de direito, pelo menos até
1992, ano em que foram aprovadas duas importantes leis – a dos Tribunais Comunitários
(Lei n.º 4/92, de 6 de Maio) e da Lei da Organização Judiciária (Lei n.º 10/92, de 6 de
Maio). Segundo Maryse Raynal, “os juristas e os governos optaram por um direito
uniforme temendo que os direitos costumeiros não colmatassem as clivagens étnicas que
eles pretendiam ultrapassar em nome de uma unidade nacional a forjar. (…) Recusando-
se a encarar a realidade evidente, a justiça moderna eternizava os seus erros do passado,
negando a existência de um pluralismo jurídico e judiciário, de facto certos mas sempre
bem vivos”74.
O pluralismo jurídico não constituiu assunto a tomar em consideração no processo
de desconstrução do sistema jurídico e judiciário colonial e consequente erguer de um
novo sistema, no contexto do Estado Popular Democrático. Aliás, o conceito encontrava-

74
RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade
de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 19.

34
se, segundo os pensadores que lideraram o processo de transição e reforma, demasiado
conotado com os desígnios do Estado colonial ao defenderem soluções plurais, ou,
melhor dizendo, duais, sendo que, de um lado o direito estadual, dirigido aos cidadãos,
e do outro lado, os direitos costumeiros, aplicáveis aos nativos ou indígenas.
Gita Honwana escreveu, a este respeito, que “ao nível das leis e da administração
da justiça, a prática discriminatória do colonialismo português, traduzia-se num dualismo
jurídico que não poderia de modo algum ter tido a intenção de conferir direitos aos
indígenas das colónias, mas tão-somente, de garantir aos colonos, os mesmos direitos que
os dos cidadãos da Metrópole, proteger e ampliar as fontes de mão-de-obra barata na
Colónia e assim defender os interesses económicos do colonialismo português. Aliás,
qualquer pluralismo, quanto a nós, veicula e perpetua uma forma de desigualdade dos
cidadãos, perante a lei, seja com base na origem étnica ou racial, nas crenças religiosas ou
no estatuto social dos destinatários”. Nesse aspecto, segundo a autora, o pluralismo
constitua uma afronta ao princípio constitucional da igualdade, plasmado no artigo 26
da Constituição de 1975, segundo o qual “todos os cidadãos da República Popular de
Moçambique gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos aos mesmos deveres”75.
No domínio da legislação sobre recursos naturais, de cariz fundamentalmente
colonial, não se faz praticamente qualquer alusão aos direitos costumeiros, não obstante,
na prática, estes constituírem uma realidade, sendo respeitados e exercidos pelas
comunidades ao longo do país inteiro.
Na 1.ª Lei de Terras (lei n.º 6/79, de 3 de Junho), por exemplo, de forte cunho
ideológico, nada se diz em relação às formas tradicionais de aquisição, alienação, uso,
aproveitamento e sucessão da terra. A abolição do quadro jurídico-colonial da terra e a
sua substituição por outro ao serviço da construção do Estado socialista constituiu o
grande objectivo da reforma de 1979. Veja-se que, segundo o preâmbulo da Lei, “depois
da usurpação e espoliação das melhores terras, feitas ao longo de quinhentos anos pelo
colonialismo português, arrancar a terra à sujeição exploração estrangeiras, devolvendo-a

75
HONWANA, Gita, No Tempo Colonial – Justiça que Mata para Dilatar a Fé e o Império, In. Justiça
Popular, n.º 10, Edição Especial de 25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça,
Maputo, 1985, p. 15.

35
ao Povo Moçambicano, era uma exigência do processo histórico, condição de uma
independência real e efectiva”.
Na esteira do artigo 8 da Constituição de 1975 76 , consagra o princípio da
propriedade estatal da terra, cabendo ao Estado a determinação das suas condições de
uso e aproveitamento 77 , devendo a terra constituir o Fundo Estatal de Terras. Este
princípio permaneceu intocável até à actualidade, significando, em termos jurídicos, que,
cada cidadão, possuindo o direito constitucional de acesso à terra, terá sobre a mesma
um direito de uso e aproveitamento da terra, vulgo D.U.A.T., e nunca o direito de
propriedade, enquanto exclusiva prerrogativa do Estado.
Nota peculiar merece o artigo 32, que versa sobre a transmissão do direito de uso
e aproveitamento da terra, o qual, segundo o legislador de 1979, “só pode transmitir-se
por morte do titular a favor do cônjuge e herdeiros, nos termos da lei”. Com esta
disposição, descurou-se totalmente a realidade caracterizada por usos e costumes dos
mais diversos povos e lugares em Moçambique, sonegando-se a tradição em benefício do
direito positivo estadual, por sinal herança colonial, visto que o Código Civil em vigor
no País continua a ser o de 1967.
No domínio dos recursos naturais, importa fazer menção ao facto de ter sido
aprovado o Decreto n.º 7/78, de 18 de Abril, que procedeu à regulamentação das
modalidades de caça a serem praticadas na República Popular de Moçambique. Importa
verificar até que ponto o legislador lidou com um dos campos mais férteis de actuação
de normas de direito costumeiro, sabendo que ancestralmente as comunidades
exerceram a actividade de caça, não só para fins alimentares, como também para fins
culturais e religiosos.
Da leitura do respectivo preâmbulo realça, de imediato, a referência ao 3. °
Congresso da Frelimo por ter reafirmado o princípio constitucional de que os recursos
naturais constituem “património de todo o Povo” ou “propriedade do Estado”,

76
Segundo o artigo 8 da Constituição da República Popular de Moçambique, de 1975, “a terra e os
recursos minerais do solo e subsolo, nas águas territoriais e na plataforma continental de Moçambique, são
propriedade do Estado. O Estado determina as condições do seu aproveitamento e uso”.
77
Nos termos do n.º 1 do artigo 1 da lei n.º 6/79, de 3 de Junho, “Nos termos da Constituição a terra na
República Popular de Moçambique é propriedade do Estado que determina as condições do seu uso e
aproveitamento”.

36
competindo a este último determinar as condições do seu uso e aproveitamento. E mais,
teceu-se uma alusão crítica à “destruição indiscriminada” do rico património faunístico
protagonizada pelo colonialismo, fundamentalmente dirigida à obtenção de “lucros
fáceis”.
Na sequência da consagração do referido princípio estipulou-se, no artigo 6, a
obrigatoriedade de licença para todas as modalidades de caça, designadamente para
autoconsumo, em defesa de pessoas e bens e desportiva. Importa aludir, principalmente,
à caça para autoconsumo, que, à luz do artigo 2 do referido Decreto, é a “caça praticada
com finalidade de satisfazer necessidades alimentares”, numa perspectiva de subsistência,
isto é, “não sendo permitida a comercialização dos seus produtos com fins lucrativos”.
Este Decreto foi regulamentado pela Portaria n.º 117/78, de 16 de Maio, que prevê as
modalidades de licença, respectivos procedimentos para a obtenção, bem como as
infracções e modalidades. Basicamente, dando continuidade ao disposto na legislação
colonial, o referido regime vem trazer a obrigatoriedade de licenciamento de uma
actividade que, para as populações locais, foi sempre regida consoante as regras de
direito costumeiro, para as quais a licença constitui uma formalidade estranha e,
principalmente, difícil de obter, se pensarmos na distância geográfica que separa os
candidatos a caçadores das autoridades licenciadoras.

2.2. A desconstrução do Estado colonial e respectivas estruturas de apoio

O advento da Independência significou, portanto, a ruptura formal do Estado


para com as autoridades tradicionais, consideradas agentes ao serviço poder colonial e
instrumentos de repressão. Foram, portanto, perspectivadas com enorme desconfiança
devido à sua “acoplagem administrativa ao sistema colonial” 78 . Segundo Ambrósio
Cuhaela, “o processo revolucionário impunha uma nova filosofia de poder, de rupturas e
continuidade, mas sobretudo de ruptura com o passado, não só colonial, mas todos os

78
FUMO, Joaquim, Da Política de Guarda-Chuva ao Reconhecimento Minimalista das Autoridades
Comunitárias, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública,
organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de
Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, P. 115.

37
aspectos que a Frelimo considerava decadentes e contaminados pela tradição, que não se
compadeciam com a modernidade, tanto do Estado, como de uma nova maneira de
pensar”79. André Cristiano José refere que, para a Frelimo, a objectivo de construção de
um Estado socialista pressupunha “um processo de transformação radical da sociedade,
contra o tribalismo, divisionismo, racismo, obscurantismo e superstição, isto é, requeria a
destruição da sociedade «feudal-tradional», para a construção do «homem novo» e de
uma sociedade sem classes, livre da «exploração do homem pelo homem”80.
A Revolução pretendeu erguer uma “sociedade nova”, por um lado, e formar um
“Homem Novo”, por outro, totalmente livre do colonialismo, do imperialismo, do
tribalismo, do obscurantismo, do racismo e de toda a manifestação da “exploração do
homem pelo homem”. Efectivamente, tratava-se de desmantelar, abolir ou extinguir a
ordem colonial e, no seu lugar, erguer uma nova ordem. Nesse sentido, Samora Machel,
1. ° Presidente da República Popular de Moçambique disse, nos seus escritos, que “a
questão essencial da revolução é destruir o poder que os opressores exercem, para
instalar o nosso poder e tornar assim possível que as orientações resultantes dos nossos
interesses dirijam e transformem a vida quotidiana”. Procurando ilustrar melhor como tal
desígnio seria implementado, Samora Machel destacou o exemplo das “zonas libertadas”,
enquanto zonas “libertadas das estruturas da dominação capitalista-colonial e feudal-
tradional. Por outras palavras, ao nível administrativo o poder já não é exercido pelos
administradores coloniais, nem pelos régulos tradicionais, as formas, métodos e conteúdo
do poder, foram transformados. (…) Nas zonas libertadas o poder pertence às massas e é
exercido democraticamente a diversos escalões”81.
Samora Machel alude ainda às lutas internas que assolaram a Frelimo entre 1967 e
1970, aludindo à ala perdedora como composta por elementos que “se opunham

79
CUHAELA, Ambrósio, Descentralização e Autoridade Tradicional: Memória do Projecto, In. O
Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene
Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e
Judiciária, Maputo, 2007, p. 95.
80
JOSÉ, André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, In. O Reconhecimento
pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars
Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo,
2007, P. 73.
81
MACHEL, Samora Moisés, O Processo da Revolução Democrática Popular em Moçambique,
Departamento de Informação e Propaganda, Maputo, 1980, p. 53.

38
resolutamente à instauração do Poder Popular”, “apresentando-se como defensores
duma tradição espezinhada pelo colonizador, mas na realidade reflectindo os interesses
das camadas feudais, propunham a sobrevivência e revalorização do regulado, estrutura
anti-democrática de tipo feudal que degenerara com o colonialismo e se tornara
praticamente um instrumento deste”82. Quando aflora a reorganização da economia no
contexto do Estado Popular democrático, Samora Machel alude ao facto de os régulos
terem beneficiado do trabalho forçado, que, conforme vimos, constituiu uma das facetas
mais tristes da história do colonialismo83.
Veja-se que, em entrevista realizada em 1985, o então Ministro da Justiça de
Moçambique, Ussumane Aly Dauto, uma vez questionado sobre o que aconteceu ao
regulado, afirmou: O regulado, suporte da própria colonização, contrário aos interesses
do Povo, foi destruído. Não havia qualquer possibilidade de coexistência. Os régulos não
foram presos sem submetidos a um processo criminal mas sofreram uma forte censura
social, e o seu sistema foi proibido e banido por ser contrário à democracia e aos
princípios da Frelimo. O regulado era por nós visto como uma extensão do poder
colonial”84.
O afastamento dos regulados conduziu à criação de um certo vazio na
organização social ao nível do escalão mais baixo na administração, posição que veio a
ser ocupada pelos Grupos Dinamizadores. No entanto, não poderemos deixar de fazer
menção à enorme capacidade de resistência e adaptação das autoridades tradicionais em
face das inúmeras dificuldades e obstáculos enfrentados ao longo das sucessivas etapas
históricas, instrumentalizadas e diminuídas no Estado colonial, denegadas e perseguidas
no Estado monopartidário, “ressuscitadas” e novamente manipuladas no Estado
democrático, elas continuaram a existir e a disputar o seu espaço, taco a taco, com as
novas estruturas político-administrativas criadas. A tradição vai assim convivendo com a
modernidade, segundo uma relação de mútuo entrosamento e notável interdependência,

82
Idem, p. 55.
83
Ibidem, p. 56.
84
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Justiça Popular, Edição Especial, N.° 10, de 25
de Junho de 1985, Ministério da Justiça, Maputo, 1985, p. 5.

39
através de um processo de reconstrução do pluralismo jurídico que vigorou nos anos de
ocupação colonial.

2.3. O advento da justiça popular

As experiências em torno do advento da justiça popular nos diversos cantos do


Globo, segundo o qual os governos e/ou as comunidades locais construíram fóruns
alternativos, revelaram principalmente três motivações principais: um esforço para resistir
à lei estatal, para rejuvenescer as comunidades locais ou para reforçar a eficiência do
sistema jurídico existente85.
Em Moçambique, a justiça popular emerge da desconstrução e desmantelamento
do sistema de administrativo da justiça em vigor no Estado colonial. O artigo 4 da
Constituição da República Popular de Moçambique, de 1975, definiu como um dos
grandes objectivos da Revolução: “a eliminação das estruturas de opressão e exploração
coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente”.
Nos Documentos Preparatórios da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo,
realizada entre os dias 11 e 27 de Fevereiro de 1976, encontra-se uma importante
Resolução sobre a Justiça, que constituiu uma das bases da reforma judiciária de 1978, e
que consagra como um dos objectivos da Revolução “a liquidação da injustiça inerente
ao sistema colonial” e consequente “estabelecimento de um sistema de justiça
verdadeiramente popular, capaz de reflectir as características da sociedade nova e as
aspirações do povo”86. Mais ainda se disse no sentido de que se impunha, nessa altura
(1976) “a destruição do direito colonial-capitalista e da sua estrutura judicial como parte
da destruição de todo o aparelho de Estado colonial-capitalista em Moçambique”, sendo
que o novo sistema judiciário deveria “exprimir o poder da aliança operária-camponesa
e reflectir a ditadura da maioria explorada”87.

85
MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology,
Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 362.
86
FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 119.
87
Idem, p. 121.

40
Foi realizado um diagnóstico ao direito e sistema de justiça colonial, chegando-se
à constatação de que aqueles “serviram os interesses e os objectivos do colonialismo”,
dai que “as leis aplicadas em Moçambique eram, todas elas, ou importadas do país
colonizador ou impostas pelos elementos que representavam os interesses e o poder
colonial”, estando “profundamente divorciadas das realidades e das aspirações do nosso
povo”. Mais, “a organização dos Tribunais confundia-se, em grande parte, com o sistema
administrativo colonial, por forma a manter e perpetuar a dominação colonial
capitalista”88.
Este propósito foi levado a cabo através da Reforma de 1978 e correspectiva
aprovação da Lei n.º 12/78, de 2 de Dezembro (Lei que regulamenta a estrutura e
composição dos Tribunais Populares). Veja-se que, nos termos do preâmbulo desta lei, a
luta de libertação nacional teve, entre outros objectivos, o de “abolir a injustiça inerente
ao sistema colonial e estabelecer a justiça que sirva os interesses e aspirações das largas
massas do Povo moçambicano”.
Ainda de acordo com o referido Preâmbulo, os régulos foram considerados, ao
lado dos administradores, “estruturas de opressão colonial” a serem eliminadas no
contexto da luta de libertação nacional, para, no seu lugar, nas zonas libertadas, se
desenvolver um “sistema de aplicação da justiça profundamente ligado ao modo de
vida, às aspirações das massas e às exigências da própria luta”.
Emerge assim a figura do Tribunal Popular, no qual “o Povo cria o direito novo
que cada vez mais rechaça o direito velho da sociedade colonial-capitalista e feudal”. O
sistema foi estruturado em quatro grandes categorias de tribunais, hierarquicamente
organizadas, tendo, no topo da pirâmide, o Tribunal Popular Supremo; ao nível da
província, os Tribunais Populares Provinciais; ao nível do distrito, os Tribunais Populares
Distritais; e, na base da pirâmide, os Tribunais Populares de Localidade.
Mas foram os Tribunais Populares de Localidade os grandes ícones da reforma da
administração da justiça de 1978, e, durante alguns anos, Moçambique constitui uma
referência no conceito de administração da justiça, feita pelo povo e para o povo. Nos
termos do Relatório referente à Justiça do Comité Central apresentado no IV Congresso

88
Ibidem, p. 120.

41
do partido Frelimo: “o facto de estarem libertos da aplicação das leis coloniais e do
formalismo legalista, permite que nos Tribunais Populares de Localidade se afirmem os
valores culturais do nosso povo e os sentimentos populares da justiça. Assim, eles
tornaram-se já uma fonte de inspiração para a criação de novo Direito e para
funcionamento de todo o sistema judiciário”89.
O então Ministro da Justiça, Ussumane Aly Dauto, em entrevista concedida em
1985, ao ser questionado sobre qual seria o avanço mais significativo na área da justiça
dos primeiros dez anos de Independência, respondeu firmemente: “Sem dúvida, o
próprio estabelecimento da Justiça Popular. Partindo de uma situação complexa nós
negamos a concepção burguesa do Direito, iniciámos a destruição do sistema colonial
herdado e a construção de um sistema que é genuíno, original, moçambicano. A
participação dos operários, camponeses e trabalhadores, na administração da justiça, é
uma grande conquista da nossa Revolução. Os Tribunais são populares, na sua essência,
na sua génese, nos seus princípios. O maior avanço é a democratização e popularização
da Justiça no nosso país”90.
Contudo, uma reflexão crítica realizada em 1981 revelava uma enorme
preocupação em relação à dicotomia, porventura venenosa, direito velho/direito novo,
isto no contexto de que as profundas reformas introduzidas ao nível da organização
judiciária tenham ocorrido de uma forma “enxertada” à estrutura herdada do sistema
colonial e que até então não tinha sido eliminada não só no que diz respeito ao estilo e
aos métodos, mas, principalmente, em relação ao próprio direito processual e
substantivo aplicáveis. Segundo o artigo em causa, “esse tipo de estrutura não foi
certamente pensado como instrumento de administração de justiça popular, duma justiça

89
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Descolonização dos Juristas pelos próprios
Polícias, In. Justiça Popular, Transcrição do Relatório do Comité Central ao IV Congresso relativo à Justiça,
N.° 10, Janeiro/Fevereiro, Ministério da Justiça, Maputo, 1983, p. 5.
90
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, Um Sistema Genúino Original Moçambicano,
In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do 25 de Junho de 1985, Ministério da Justiça,
Maputo, 1980, p. 10.
Entrevista concedida à revista Justiça Popular, n.º 10, Edição Especial, 25 de Junho de 1985, Maputo,

42
não separada da vida e dos interesses do povo. Hoje, este velho que ainda sobrevive
ameaça sufocar o novo que tentamos construir”91.
Por outro lado, importa referir o importante espaço conquistado pelos Grupos
Dinamizadores, estruturas político-administrativas criadas ao nível do bairro, e que
conquistaram o seu espaço à custa das instâncias de poder de cariz colonial e/ou
tradicional. Chefiados por secretários, desempenharam uma diversidade de funções,
inclusivamente algumas que pertenciam às autoridades tradicionais: tratamento de
assuntos sociais, jurídicos, administrativos, de gestão, de segurança, de policiamento e de
mobilização das populações para implementar decisões dos órgãos centrais92. Ao nível
local, o conflito de jurisdições entre as autoridades tradicionais e os grupos
dinamizadores tornou-se, assim, inevitável e persiste até aos dias de hoje.

2.4. Sociedade nova, leis novas e um ideal não materializado

Um dos aspectos da Reforma no sector da justiça herdado da Administração


colonial e que nunca chegou a ser verdadeiramente consumado, prende-se com a
necessidade de fazer aprovar um quadro jurídico-legal consentâneo com os objectivos
preconizados pelo Estado moçambicano e a realidade vivida pelos moçambicanos,
precedido por um trabalho de pesquisa.
Veja-se que, de acordo com a Resolução sobre a Justiça acima referida, “há que
proceder com urgência à recolha de elementos que nos permitam um conhecimento
aprofundado dos costumes e regras praticados pelo povo moçambicano, para que as
novas leis exprimam e correspondam às realidades do País, quer para as consagrar, quer
para as corrigir, na medida em que não correspondam à orientação política da Frelimo”;
e, “só a partir de todo esse trabalho de conhecimento das realidades e experiências no

91
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Ofensiva da Legalidade nos Tribunais, N.° 4,
Setembro/Dezembro, Ministério da Justiça, Maputo, 1981, p. 4.
92
MENESES, PAULA at all, As Autoridades Tradicionais no Contexto do Pluralismo Jurídico, In. Conflito e
Transformação Social: Uma Paisagem das Justiças em Moçambique, Organização de Boaventura Sousa
Santos e João Carlos Trindade, 2. ° Volume, Edições Afrontamento, Biblioteca das Ciências do
Homem/Plural/6, 2003, p. 351.

43
nosso povo se poderá criar um Direito novo, e pôr a funcionar um sistema de aplicação
da justiça que seja verdadeiramente popular e moçambicano”93.
Na mesma linha refere Rui Baltazar, então Ministro da Justiça, quando, em 1977,
escreveu “Sem um conhecimento exacto ou grandemente aproximado das nossas
realidades sociais, dos sentimentos dominantes do nosso povo e da sua vida, não
podemos pensar em novos códigos”94. Rui Baltazar evidencia, portanto, a importância
da pesquisa da realidade moçambicana, mas também, note-se, a importância de
perspectivar com prudência e serenidade o processo de reforma de um sistema jurídico
pelo outro, sob risco de se viver um vazio legal. Aliás, a Directiva do III Congresso da
Frelimo sobre a Justiça, foi clara a respeito desta preocupação: “devemos combater a
tendência esquerdista de afirmar que as leis feitas no período colonial devem ser todas
abolidas num único momento. Uma tal decisão conduzir-nos-ia a situações de anarquia e
de crise de autoridade (…)”95.
O levantamento e análise da rica e imensa realidade jurídica criada, dinamizada e
desenvolvida ao nível das comunidades só começariam a ser realizados muitos anos mais
tarde, na segunda metade da década de noventa, quanto, em parceria, o Centro de
Estudos Africanos, da Universidade Eduardo Mondlane, e o Centro de Estudos Sociais, da
Universidade de Coimbra, se lançaram num programa de pesquisa que culminou na
publicação, em 2003, da obra “Conflito e Transformação Social: Uma Paisagem das
Justiças em Moçambique”, com organização de Boaventura Sousa Santos e João Carlos
Trindade. Este trabalho foi de uma grandeza e importância inegáveis, tendo contribuído
para dar a conhecer um pouco mais sobre a administração da justiça em Moçambique.
Pecou, no entanto, por não ser tido a desejável sequência, principalmente no que diz
respeito ao processo de reforma legislativa.
Mas a referida Resolução vai mais longe, ao realizar igualmente uma crítica à
complexidade das próprias leis. Senão vejamos: “impõe-se a simplificação das nossas leis,

93
FRELIMO, Documentos da 8.ª Sessão do Comité Central da Frelimo, Maputo, 1976, p. 121.
94
BALTAZAR, Rui, Tribunais Populares – A Justiça nas Mãos do Povo, In. Revista “Tempo”, n.º 394,
Maputo, 1978, p. 30.
95
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Edificação da Justiça Popular – A Directiva
sobre a Justiça do III Congresso, In. Justiça Popular, N.° 1, Novembro/Dezembro, Ministério da Justiça,
Maputo, 1980 p. 3.

44
libertando-as dum tecnicismo que as torna incompreensíveis para o povo. Quando por
motivos técnicos ou outros não for possível evitar completamente o tecnicismo, a rádio,
a imprensa, os jornais do povo e as diversas reuniões populares devem ser utilizados para
explicar em detalhe os princípios e objectivos que inspiram as leis”96.
Esta posição foi consubstanciada na Directiva sobre a Justiça do III Congresso da
Frelimo, realizado entre os dias 3 e 7 de Fevereiro de 1977, nos seguintes termos: “Ao
direito novo deve corresponder também uma linguagem nova orientada principalmente
no sentido da simplicidade. Devemos encontrar a linguagem simples e popular que
facilite o entendimento e divulgação das leis pelas massas, sem prejudicar a necessária
eficácia técnica. Temos que encontrar novos métodos de levar as leis ao conhecimento
do povo, para que possam ser inteiramente assumidas”97.
Vinte anos depois, em 1997, Luís Mondlane, actualmente juiz-presidente do
Conselho Constitucional, escreveu, para a Revista Jurídica da Faculdade de Direito da
Universidade Eduardo Mondlane, “É do conhecimento geral que o Direito vigente em
Moçambique foi concebido em tempo bastante recuado para uma realidade social
distinta da prevalecente em Moçambique, quer no momento da sua adopção, quer nos
presentes dias. Nos últimos tempos têm sido adoptadas alterações que, longe de
reformular o Direito no sentido da sua conformação com a realidade social podem
traduzir-se em distorções graves ao próprio sistema. Há que reformular o direito para
que a justiça que, através dele é obtida, seja socialmente justa. Não basta o apurado
conhecimento da Ciência Jurídica, a correcta aplicação das regras da hermenêutica para
que se obtenha uma decisão justa. É necessário que o próprio seja, efectivamente, a
sublimação de valores e bens fundamentais prevalecentes na sociedade. Dai que o
processo de adaptação, de reforma, deve ser não só profundo como permanente. Por
outro lado, é necessário desmitificar o direito, democratizar o direito e a própria

az
Idem, p. 121.
97
GABINETE DE ESTUDOS DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, A Edificação da Justiça Popular – A Directiva
sobre a Justiça do III Congresso, In. Justiça Popular, N.° 1, Novembro/Dezembro, Ministério da Justiça,
Maputo, 1980.

45
administração da justiça. A lei e o direito têm que ser entendidos pelo homem comum e
estar ao seu serviço”98.
No entanto, conforme ficou demonstrado nos anos que se seguiram e tendo
presente a realidade actual, não houve lugar a nenhum reforma generalizada e profunda
do direito. As leis que se seguiram e substituíram as outras ao serviço do Estado colonial
continuaram a ser redigidas numa linguagem inacessível à larga maioria da população
moçambicana, de cariz altamente tecnicista, e desprovida dos necessários mecanismos de
implementação. Na realidade, uma vez volvidos praticamente 35 anos de Independência
nacional, ainda não foi possível desencadear um processo sério e profundo de reforma
legal. O exemplo maior exemplo que podemos referir prende-se com o facto de
continuarem em vigor, na República de Moçambique, o Código Penal de 1886, o Código
de Processo Penal de 1929 e o Código Civil de 1967, este último parcialmente revisto nos
assuntos de família e comércio.
Mesmo a reforma realizada nos demais códigos e o conjunto de leis aprovadas ao
longo do mesmo período, salvo algumas excepções, pouco mudança traduziram em
relação ao quadro jurídico tradicional de herança colonial, não só em termos de forma
como de conteúdo. Aliás, o ex. colonizador continua a ser a principal fonte de inspiração
do legislador moçambicano e, nalguns casos, pacotes legislativos completos foram
importados e adoptados no ordenamento jurídico nacional.
Boaventura Sousa Santos referia, em palestra realizada no distante ano de 1982,
que a erradicação do direito colonial (…) será lenta e que muito provavelmente nunca
será total. Porquê? Será lenta, porque o direito colonial sendo embora um direito de
dominação nacional e classista não deixa de ser o instituidor de uma ordem social. É
certo que a um nível mais profundo essa ordem é de facto uma desordem
institucionalizada. Mas precisamente porque é institucionalizada cria mecanismos de
repetição que a normalizam e suscita cumplicidades que lhe conferem, ao nível das
práticas quotidianas das populações, uma aura de autoridade e senão mesmo de

98
MONDLANE, Luis António, O Acesso à Justiça e Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, In.
Revista Jurídica, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Volume II, Maputo, 1997, PP.
102 – 103.

46
legitimidade que a tornam obedecível sem recurso permanente à coacção. Perante tal
situação, nenhum processo de libertação e de transformação social, por mais
revolucionário, pode aguentar por muito tempo o vazio criado pela paralisação global
da ordem velha, nem pode suportar rupturas administrativas que atravesse, de lés-a-lés o
tecido social”99.
Esta pode ter sido, muito provavelmente, uma das fortes razões que motivaram a
continuidade de uma parte significativa do quadro jurídico-legal colonial, especialmente
o conjunto de códigos de direito substantivo e de direito processual. A mudança do
“velho” para o “novo” deve, portanto, passar sempre por uma fase de transição. No
nosso caso, estaremos ainda no decurso da fase de transição, em busca de um modelo,
testando cenários, replicando experiências, buscando soluções, esperando provavelmente
o momento certo.
Boaventura Sousa Santos diz ainda que “a criação de nova legalidade em
substituição do direito colonial deve ser feita de modo a manter a referência e a
coerência com o que dele ainda permanece. Afinal tudo o que é novo nasce do velho e
não há revoluções sem tradições”100.

2.5. A vivência de um pluralismo não reconhecido

Com particular incidência no mundo rural, as autoridades tradicionais


continuaram a exercer os seus poderes, à luz dos usos e costumes de povo e cada lugar,
sobrevivendo às mais diversas adversidades, entre as quais o seu desmantelamento pós
Independência e a Guerra Civil que se instaurou e alastrou a todo o País. A terra e os
recursos naturais continuaram a ser regidos à luz dos princípios e normas ancestrais e na
mais profunda indiferença em relação aos desenvolvimentos registados no direito
estadual e positivo.

99
SANTOS, Boaventura Sousa, Direito e Cooperação, Excertos de uma palestra efectuada na Sessão
Inaugural da Associação Universitária da Cooperação e Estudos sobre Direitos Africanos, em 24 de Junho
de 1982, na Faculdade de Direito de Lisboa, In. Justiça Popular, N.° 10, Edição Especial comemorativa do
25 de Junho de 1985, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1980, p. 33.
100
Idem.

47
A negação da diversidade jurídica que caracteriza e rege as relações entre os
membros das comunidades locais e entre estes para com o respectivo meio, na linha de
muitos países a seguir às independências, não se revelou como a melhor solução. Na
realidade, os direitos costumeiros continuaram a ser fielmente seguidos, nuns casos
gozando de exclusividade, noutros casos, rivalizando o seu espaço em relação ao Direito
estatal, especialmente, naquilo que importa para o tema, aqueles que dissessem respeito
à terra e aos demais recursos naturais.
Marco Guadagni escreveu a este respeito procurando demonstrar, no capítulo do
direito privado, que quase todos os países africanos que alcançaram as suas
independências herdaram um sistema dualístico, caracterizado pela existência de um
direito colonial e de um direito consuetudinário ou costumeiro. A etapa que se seguiu
foi, segundo o referido autor, motivada pela intenção estadual de reformar e unificar tal
sistema, logicamente através de caminhos diferenciados. No que nos interessa, nos países
que herdaram do período colonial um código civil europeu, “este foi declarado
formalmente aplicável a todos os cidadãos. Mas, de facto, pela sua origem e natureza,
ele serve só para regular os interesses da burguesia citadina, enquanto que a população
rural continua a regular as suas relações com base nos usos locais, considerados parte
integrante do direito actual e, entanto que tal, objecto de estudo por parte de etno-
juristas”101.

101
GUADAGNI, Marco, A Reforma do Direito Privado em África – O caso da Etiópia, In. Justiça Popular,
n.º 6, Maio/Outubro, Gabinete de Estudos do Ministério da Justiça, Maputo, 1982, pp. 8 – 9.

48
Capítulo III – O reconhecimento e a abertura para o papel do Direito Costumeiro no
domínio dos recursos naturais

3.1. Retorno ao tradicional

A partir de 1986, ainda no auge da Guerra Civil, com a instauração do Programa


de Reabilitação Económica (P.R.E), no contexto da adesão às instituições de Bretton
Woods (o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial), o país inicia uma
progressiva viragem histórica, com a adesão ao sistema capitalista e à instauração de uma
democracia multipartidária.
A aprovação da Constituição de 1990 constitui um marco que possibilitará todo
um conjunto de profundas transformações que seriam implantadas ao longo da década
seguinte. Entre diversas e importantes novidades, o novo regime constitucional fixou as
bases para o retorno ao tradicional: em primeiro lugar, o artigo 6, referente aos
objectivos do Estado moçambicano, fez constar “a afirmação da personalidade
moçambicana, das suas tradições e demais valores socioculturais”; depois, através da
norma constante no n.º 1 do artigo 53, determinou que “o Estado promove o
desenvolvimento da cultura e personalidade nacionais e garante a livre expressão das
tradições e valores da sociedade moçambicana”. Ao longo da década de noventa se
desenrolariam importantes mutações na política do Estado em relação às autoridades
tradicionais e que culminariam na aprovação do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho
(que aprovou as formas de articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades
comunitárias), adiante analisado.
Um dos mais emblemáticos aspectos da mudança histórica começou a ser
preparado no final da década de oitenta, no que diz respeito ao reconhecimento do
papel das autoridades tradicionais, que, não obstante terem sido excluídas da nova
ordem político-administrativa instaurada a seguir à Independência nacional, na realidade,
continuaram efectivamente a existir em termos fácticos, não só onde a máquina
administrativa do Estado não conseguia chegar ou exercer o seu papel, como mesmo nos
lugares onde foram criadas as novas estruturas político-administrativas, encabeçadas

49
pelos grupos dinamizadores. Aliás, a própria Renamo, aquando das hostilidades, soube
aproveitar-se da hostilização que as autoridades tradicionais receberam por parte das
autoridades governamentais, reconheceram a sua legitimidade como representantes das
comunidades e detentores de um conjunto de importantes funções nos mais diversos
domínios.
A seguir à assinatura dos Acordos Gerais de Paz, celebrados em Roma, a 4 de
Outubro de 1992, foi notória a preocupação do Governo moçambicano em revitalizar o
estatuto das autoridades tradicionais, numa espécie de retorno ao tradicional, fazendo
desaparecer dos discursos políticos toda e qualquer menção de cariz pejorativo ou
discriminatório. As autoridades tradicionais tornaram-se novamente fundamentais para a
prossecução dos desígnios do Estado moderno, tendo em consideração as dificuldades
que este enfrentava no controlo político e administrativo efectivo de todo o território
nacional e das suas populações.
Conforme sublinha Maryse Raynal, as autoridades tradicionais sobreviveram aos
múltiplos assaltos de que eram vítimas e, 20 anos depois da Independência, emergiram
muitas vezes como as únicas legítimas aos olhos dos homens, as únicas capazes de
assegurar o controlo social. É, portanto, natural que elas reclamem junto aos governos,
ao legislador e aos juízes um certo reconhecimento, uma legitimidade ofializadora»”102.
Veja-se, a este respeito, ao trabalho desenvolvido entre 1991 e 1996 pelo Núcleo
de Desenvolvimento Administrativo, no contexto do projecto “Descentralização e
Autoridade Tradicional”, do Ministério da Administração Estatal, que culminou com a
publicação de cinco brochuras alusivas ao papel das autoridades tradicionais. Este
trabalho tem subjacente uma clara intenção política ao procurar-se as bases para a
definição das políticas e dos instrumentos legais que definiram o relacionamento entre os
órgãos do Estado e as autoridades tradicionais. O objectivo oficial foi consubstanciado na
introdução comum às cinco brochuras – “destinadas, principalmente para informar aos
funcionários que trabalham nas diferentes regiões do País, e que por várias razões, ou

102
RAYNAL, Maryse, O Pluralismo Jurídico e Judiciário em África, Revista Jurídica, Volume III, Faculdade
de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 1997, p. 19.

50
não conhecem estas práticas tradicionais, ou só conhecem aquelas da sua povoação,
distrito, cidade ou província”103.
No fundo, tal como no período de administração colonial, o Estado
moçambicano lançou-se numa clara campanha de instrumentalização das autoridades
tradicionais, consideradas essenciais ao restabelecimento do poder em regiões que se
mantiveram distantes do controlo centralmente dirigido a partir de Maputo, mas
também para a prossecução dos objectivos eleitorais, quer para efeitos de recenseamento
eleitoral, quer para a conquista do voto necessário à continuidade da Frelimo no poder
nos inúmeros embates eleitorais que se seguiram – 1994, 1999, 2004 e 2009.
Joaquim Fumo refere que, “em termos sociológicos, o ressurgimento dos antigos
régulos significa antes a sua passagem da clandestinidade para a diurnidade. (…) O seu
banimento oficial não lhes retirou pertinácia sociológica. Rapidamente assumiram os
espaços sociais e simbólicos que lhes eram reservados pela sabedoria de origem
imemorial. À mesma velocidade, surgiram os conflitos de liderança e de legitimidade
com os grupos dinamizadores. As autoridades tradicionais (…) cedo reconquistaram os
seus espaços de liderança e foram disputadas por diversos partidos políticos nos
principais pleitos eleitorais, ao mesmo tempo que eram aliciadas pelo Governo para se
tornarem tentáculos da administração pública nas comunidades”104. André Cristiano José
chama a atenção para o facto de, “no âmbito da descentralização, as autoridades
tradicionais funcionarem como estruturas tentaculares do Estado, mas sem dignidade
suficiente para que sejam reconhecidas como tal”105.
Veja-se que na introdução comum às cinco brochuras acima referidas, escreveu-se
em destaque, “dentro das diferenças que existem de região para região, a Autoridade

103
FERNANDO, Domingos, A Organização Social na Sociedade Tradional, Colecção Autoridade
Tradicional em Moçambique, Brochura 2, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de
Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, p. 7.
104
FUMO, Joaquim, Da Política de Guarda-Chuva ao Reconhecimento Minimalista das Autoridades
Comunitárias, In. O Reconhecimento pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública,
organização de Helene Maria Kyed, Lars Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de
Formação Jurídica e Judiciária, Maputo, 2007, pp. 116 – 177.
105
JOSÉ, André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, In. O Reconhecimento
pelo Estado das Autoridades Tradionais e da Participacão Pública, organização de Helene Maria Kyed, Lars
Buur e Teresinha da Silva, Direito em Sociedade, n.º 2, Centro de Formação Jurídica e Judiciária, Maputo,
2007, P. 76.

51
Tradicional está presente e é importante em todo o território nacional. Ela tem muita
importância nas suas comunidades. Por isso, a sua importância é tão grande como
valorização da cultura de todos nós, para a consolidação da Unidade Nacional”106 . E
mais, “a tradição moçambicana ainda não faz parte das leis do nosso Estado. E como o
Estado Moderno é produto de outra tradição, ele oferece pouco espaço para a tradição
africana ocupar um lugar de maior importância. Mas a tentativa de uma aliança, ou uma
ponte, entre a tradição e o Estado Moderno, é um trabalho que está a ser pensado e
realizado no presente”107.
Ambrósio Cuhalea traz-nos uma definição de autoridade tradicional como
“instituição sociopolítica tradicional africana” que faz parte “da nossa cultura e tradição”,
e que “possui uma legitimidade (direito e aceitação) que lhe é dada pela comunidade, e
somente pela comunidade”, possuindo um poder sagrado, visto a legitimidade ancora-se
“nas raízes profundas das comunidades, dada a sua ligação com os ancestrais”108.
Veja-se como Orlando Nhancale definiu as normas e regras costumeiras,
estruturalmente subdivididas entre o que se deve fazer e o que não se deve fazer:
“normas e regras constituem o conjunto dos princípios de uma cultura, que todos devem
aceitar, e que regulam o comportamento dos homens e mulheres dentro das
comunidades, para se manter a ordem social, evitando a confusão e prevenindo e
resolvendo os conflitos. Quem conhece estes princípios sabe o que é permitido e o que
não é, e sabe qual é o castigo que pode acontecer a ele, se não seguir esses princípios.
Por outras palavras, o conjunto das normas e regras oferece aos homens modelos sobre
como ver e sentir-se no mundo, e como se relacionar com os outros. Mostra também
com tratar a natureza, a terra, as plantas e as águas, rios e lagos, dentro do território”109.

106
FERNANDO, Domingos, A Organização Social na Sociedade Tradional, ob. cit., p. 7.
107
Idem, p. 8.
108
CUAHELA, Ambrósio, Autoridade Tradicional, Colecção Autoridade Tradicional em Moçambique,
Brochura 1, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de Desenvolvimento Administrativo, Maputo,
2006, pp. 10 - 11.
109
NHANCALE, Orlando, Normas, Regras e Justiça Tradicional: Como evitar e resolver conflitos? Colecção
Autoridade Tradicional em Moçambique, Brochura 5, Ministério da Administração Estatal, Núcleo de
Desenvolvimento Administrativo, Maputo, 2006, p. 10.

52
Importa, a respeito deste trecho, fazer duas observações: primeiro, são
efectivamente notórias as semelhanças históricas entre o trabalho realizado pelo Núcleo
de Desenvolvimento Administrativo e os estudos levados a cabo no período colonial que
culminaram nas várias tentativas de codificação (e elaboração) dos direitos costumeiros,
designadamente no que toca ao propósito de preparar os funcionários administrativos
no conhecimento das normas que regem cada povo e local e na articulação para com as
autoridades tradicionais; segundo, não deixa de ser extraordinariamente interessante a
referência expressa às normas que definem o relacionamento das comunidades para com
o meio em que vivem, bem como em relação a cada um dos componentes naturais. Na
realidade, confirma-se que, não obstante quaisquer esforços legislativos por parte do
Estado moderno no sentido da definição de regras fixadoras do estatuto e regime de
cada recurso natural, há efectivamente um conjunto de ordens normativas não estaduais,
coexistentes, sobrepostas e, em muitos casos, prevalecentes em relação ao direito escrito
proferido pelo legislador estadual.
Contudo, um dado realça à vista – o papel inquestionavelmente determinante das
autoridades tradicionais no processo de construção do Estado moderno, demonstrando
uma enorme capacidade de sobrevivência e de resistência às mais graves e complexas
adversidades. Segundo André Cristiano José, diante do Estado enquanto “máquina
poderosa”, dotada de um “poder avassalador”, tal capacidade de sobrevivência “deve-se
não apenas ao facto de gozarem de uma forte legitimidade social, como também à sua
capacidade de contextualizar o exercício do poder. Isto é, detêm uma enorme
capacidade diplomática que lhes permite actuar de modo a conciliar as expectativas do
Estado e de outras instâncias políticas ou privadas com as quais se relacionam, com as
expectativas das comunidades e dos cidadãos que representam”110.

110
André Cristiano, Autoridades Ardilosas e Democracia em Moçambique, ob. cit, p. 81.

53
3.2. Dos tribunais populares de localidade aos tribunais comunitários - um erro histórico

A nova Constituição de 1990 criou o espaço para a revisão da Lei da Organização


Judiciária de 1978, culminando na aprovação, dois anos mais tarde, da aprovação da Lei
n.º 10/92, de 6 de Maio. A nova Lei da Organização Judiciária visou, portanto, uma
reforma do sistema, de modo a adequar-se “com a nova filosofia de organização do
Estado e das demais instituições democráticas”111.
Este instrumento reforçou a autonomia do poder judiciário, no contexto do
princípio da separação de poderes. Contudo, o legislador cometeu, em nosso entender,
um erro histórico, traduzido no facto de não se ter tomado em consideração aquela que
foi, muito provavelmente, a maior conquista da justiça moçambicana no período
compreendido entre 1975 e 1992 – a criação dos tribunais populares, especialmente os
de localidade.
Em sintonia com a Constituição de 1990, a nova Lei da Organização Judiciária
excluiu do sistema os tribunais populares da localidade, anteriormente considerados a
base do sistema de administração formal de justiça, para, em seu lugar, a base passar a ser
formada pelos tribunais judiciais de distrito. No nível intermédio foram previstos os
tribunais judiciais de província e, no topo da pirâmide, o Tribunal Supremo como mais
alto órgão judicial. Em termos práticos, o sistema de administração formal de justiça
ficou demasiado distanciado dos cidadãos, principalmente dos mais carenciados.
Por seu turno, através da Lei n.º 4/92, de 6 de Maio, foram criados os tribunais
comunitários, que mais não são do que os anteriormente denominados de tribunais
populares de localidade. O preâmbulo desta Lei não deixa, contudo, de ser paradoxal,
ao se determinar que “as experiências recolhidas por uma justiça de tipo comunitário no
país, apontam para a necessidade da sua valorização e aprofundamento, tendo em conta
a diversidade étnica e cultural da sociedade moçambicana”. Apesar das boas intenções, a
prática demonstrou tudo menos valorização e aprofundamento. Fora do sistema formal
e sem os necessários apoios materiais, financeiros e humanos, os tribunais comunitários
enfrentaram e ainda enfrentam até à actualidade, uma crise profunda, não obstante o

111
Veja-se Preâmbulo da Lei n.º 10/92, de 6 de Maio.

54
inegável e valioso papel que desempenham em prol da administração da justiça. Muitos
acabaram desaparecendo, outros sobreviveram graças ao apoio da população a quem
servem com abnegada dedicação.
Importa, no entanto, ter presente que, de acordo com o referido Preâmbulo, uma
das motivações subjacentes à criação dos Tribunais Comunitários residiu na necessidade
de promover o “enriquecimento das regras, usos e costumes” e conduzir “à síntese
criadora do direito moçambicano”. Este exemplo ilustra a entrada no período do
retorno ao tradicional, melhor aflorado no subcapítulo anterior.
No princípio de 2005, o Centro de Formação Jurídica e Judiciária remeteu à
Assembleia da República, através da Unidade Técnica de Reforma Legal (UTREL), um
pacote legislativo dirigido à reforma do sistema de administração da justiça, composto
pelos Anteprojectos da Lei de Bases do Sistema de Administração da Justiça, da Lei
Orgânica dos Tribunais Judiciais, da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais e da Lei do
Acesso à Justiça e ao Direito, antecedido de uma pesquisa com a duração de dois anos e
trabalho de campo em três províncias mais a cidade capital. Segundo João Carlos
Trindade, os Anteprojectos da Lei de Bases e da Lei Orgânica dos Tribunais Comunitários
promovem a articulação entre os tribunais comunitários e os tribunais judiciais,
“facilitando a aproximação cultural dos tribunais judiciais à população e a possibilidade
de recurso das decisões dos tribunais comunitários para os tribunais judiciais; estabelecem
um método democrático de eleição dos juízes, incluindo a garantia de representação das
mulheres; delimitam o tipo de casos que os juízes terão competência para resolver, o
conjunto de sanções que podem aplicar, as taxas que podem cobrar; estabelecem os
Conselhos Provinciais Coordenadores das Justiças Comunitárias, com a função primordial
de assegurar a interacção entre a justiça judicial e a comunitária; e prevêem a formação
dos juízes pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária”112.
Mais do que nunca importa recuperar uma das maiores conquistas saídas da
Independência Nacional, traduzida na criação dos tribunais populares, hoje comunitários,
nascidos nas próprias comunidades, formados por elementos das comunidades e dirigidos

TRINDADE. João Carlos. Constituição e Reforma da Justiça, In. Desafios para Moçambique – 2010
112

(Organização de Luís de Brito/Carlos Nuno Castel-Branco/Sérgio Chichava/António Francisco), IESE,


Maputo, 2009, p. 248.

55
para as comunidades, e que reduziram o enorme fosso que existia entre o sistema formal
de administração da justiça e os cidadãos mais necessitados, resolvendo eficazmente, com
menos carga formal, em tempo útil e, muitas vezes, com amplas margens de consenso, os
conflitos do dia-a-dia, contribuindo significativamente para a paz e harmonia na
sociedade. Para os tribunais comunitários o que mais importa não é tanto o processo e a
obtenção da decisão final, mas sim, principalmente, que a justiça seja alcançada, que o
conflito seja sanado e que a paz regresse à comunidade.

3.3. A aprovação da nova Lei de Terras

3.3.1. A nova lei de Terras e a construção do conceito de comunidade local

Após um processo de participação pública que ficará para a história da elaboração


legislativa, foi aprovada uma nova Lei de Terras, a Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro, e em
cujo preâmbulo consta a constatação que o legislador faz da necessidade de rever a Lei
n.º 6/79, de 3 de Julho, “de forma a adequá-la à nova conjuntura política, económica e
social e garantir o acesso e a segurança de posse da terra, tanto dos camponeses
moçambicanos, como dos investidores nacionais e estrangeiros”.

A nova Lei de Terras implicou uma forte abordagem sociológica num terreno
normalmente monopólio dos juristas. Em resultado, foram elaboradas novas categorias e
conceitos, bem como se desenharam e consagrados instrumentos e institutos inovadores,
grande parte produto da análise social das dinâmicas verificáveis ao nível da realidade. É
igualmente uma lei extraordinariamente democrática e plural, através do desenho de
soluções inovadoras, dando um poder e protagonismo aos autênticos “donos” da terra,
a ainda larga maioria de moçambicano que vive da terra e para a terra, como principal
fonte de subsistência e, como tal, devendo auferir de mecanismos de segurança jurídica,
bem como de oportunidades de capitalização deste recurso vital no desenvolvimento
local.

56
No capítulo conceptual, emerge a definição de comunidade local, previsto no n.º
1 do artigo 1 da Lei de Terras, enquanto “agrupamento de famílias e indivíduos, vivendo
numa circunscrição territorial de nível de localidade ou inferior, que visa a salvaguarda
de interesses comuns através da protecção de áreas habitacionais, áreas agrícolas, sejam
cultivadas ou em pousio, florestas, sítios de importância cultural, pastagens, fontes de
água e áreas de expansão”. Toda a legislação subsequente na área de recursos naturais
acolheu o conceito de comunidade local, com especial enfoque para a Lei n.º 19/2007,
de 18 de Julho, Lei do Ordenamento do Território.

Ora, traduz-se num conceito aberto e enraizado nos direitos costumeiros. Assim, a
comunidade local detém não somente as terras necessárias à construção das suas
habitações e à prática da agricultura, como também as terras que se encontrem em
pousio, as florestas de onde extrai os recursos naturais necessários para o seu sustento, os
lugares de importância histórica, cultural e religiosa, as áreas necessárias para a pastagem
do gado, e, fundamentalmente, as áreas imperiosas para a própria expansão da
comunidade 113.

A consagração da noção de comunidade local foi efectivamente um verdadeiro


marco histórico no processo de construção do direito moçambicano, a partir de uma
realidade plural, heterogénea, diversificada e fortemente enraizada nas normas e práticas
costumeiras. Tratou-se de um verdadeiro esforço de democratização de um quadro legal
demasiado distante, pesado e desajustado à dinâmica das realidades locais, e que pode
ser visto, em termos muito resumidos, sob três perspectivas fundamentais: (1) a terra
comunitária não se confina à terra que a comunidade precisa para viver ou para praticar
agricultura, implica muito mais do que isto, integrando o domínio público comunitário,
o que varia de comunidade para comunidade, de local para local, de distrito para
distrito, de província para província, de região para região; (2) os direitos de uso e
aproveitamento da terra das comunidades locais existem através do reconhecimento da
ocupação, independentemente do reconhecimento oficial por parte do Estado, da

113
Veja-se TANNER, Christopher, A Relação entre a Posse de Terra e os Recursos Naturais, documento
apresentado na 3.ª Conferência Nacional sobre o Maneio Comunitário dos Recursos Naturais, 21 de Julho
de 2004, Maputo, 2004.

57
existência de documentos comprovativos, incluindo títulos, ou do registo dos mesmos
nas Conservatórias; (3) no processo de autorização de pedidos de direitos de uso e
aproveitamento de terra é atribuído à comunidade local um papel decisório e
condicionador da titulação de novos direitos114.

3.3.2. O reconhecimento das formas costumeiras de aquisição do direito de uso e


aproveitamento da terra

Uma das condições para o bem-estar é sem margem para dúvidas o


reconhecimento e respeito pelo direito de acesso à terra, enquanto meio universal de
geração de riqueza, e da qual depende a grande maioria dos cidadãos moçambicanos.
Para o efeito, o legislador constitucional, nos sucessivos textos de 1975, 1990 e 2004,
não abdicou do princípio fundamental de que a terra constitui propriedade do Estado,
conferindo, no entanto, às pessoas (singulares ou colectivas, nacionais ou estrangeiras)
um direito de usar e aproveitar a terra – o chamado DUAT.
A Constituição de 1990 deu um importante passo no reconhecimento das formas
costumeiras de aquisição do DUAT, quando, no seu artigo 48, determinou que, “na
titularização do direito de uso e aproveitamento da terra o Estado reconhece e protege
os direitos adquiridos por herança ou ocupação, salvo havendo reserva legal ou se a
terra tiver sido legalmente atribuída a outra pessoa ou entidade”.
Nesse sentido, sete anos mais tarde, a nova Lei de Terras reforçou o entendimento
constitucional, pois, ao nível das modalidades de aquisição do direito de uso e
aproveitamento da terra, o legislador ordinário consagrou, no artigo 12, para além da
modalidade formal assente na autorização de um pedido que dá entrada nas instituições
competentes, bem como da ocupação por pessoas singulares que, de boa fé, esteja a
utilizar a terra há pelo menos dez anos, notoriamente inspirada no instituto civilístico de

114
SERRA, Carlos Manuel, Domínio Público do Estado, Autárquico e Comunitário – Essência,
Constrangimentos e Desafios (Documento apresentado na Conferência sobre os 10 Anos da Lei de Terras,
2007), Maputo, 2007.

58
usucapião, uma terceira modalidade que representa o reconhecimento das formas
costumeiras de aquisição de direitos sobre a terra.
Subjacente a tal opção encontra-se a necessidade assumida pelo legislador de se
proteger a parte mais fraca ou desfavorecida da população em face da própria dinâmica
do processo de desenvolvimento, contra eventuais repercussões ou efeitos colaterais
negativos, nomeadamente de situações de açambarcamento que conduzam ao fenómeno
dos sem-terra, dai se ter chegado a uma solução extraordinariamente inovadora,
traduzida no reconhecimento do direito sobre a terra, com base na ocupação através das
normas e práticas costumeiras que não contrariem a lei115.
A legislação da terra deve ser lida em estreita articulação com a legislação do
ordenamento do território, representada pela Lei n.º 19/2007, de 18 de Julho, e
respectivo Regulamento, aprovado pelo Decreto n.º 23/2008, de 1 de Julho. Nesse
sentido emerge o princípio da segurança jurídica, segundo o qual, na elaboração,
alteração e execução dos instrumentos de ordenamento e gestão territorial devam ser
sempre respeitados os direitos fundamentais dos cidadãos e as relações jurídicas
validamente constituídas, promovendo-se a estabilidade e a observância dos regimes
legais instituídos116; bem como o objectivo específico de “garantir o direito à ocupação
actual do espaço físico nacional pelas pessoas e comunidades locais, que são sempre
consideradas como o elemento mais importante em qualquer intervenção de
ordenamento e planeamento do uso da terra, dos recursos naturais ou do património
construído”117.
O DUAT das comunidades locais tem algumas características essenciais a saber:
primeiro, existe independentemente da apresentação de um título emitido pelos Serviços
de Cadastro comprovativo da sua existência; depois, a ausência de registo não prejudica
a existência do DUAT adquirido por ocupação, desde que este possa ser comprovado
nos termos da Lei de Terras; finalmente, este direito pode ser comprovado não apenas
através da apresentação de um documento formal (o título), como através da prova

115
Cfr. Artigo 12 a) da nova Lei de Terras.
116
Cfr. Artigo 4 f) da Lei do Ordenamento do Território.
117
Cfr. Artigo 5/2 a) da Lei do Ordenamento do Território.

59
testemunhal de membros da comunidade local, como também por intermédio de
qualquer outro meio de prova legalmente admissível118.

3.3.3. A consulta pública como ferramenta fundamental

Como consequência dos artigos 12 e 24, da Lei de Terras, a atribuição de DUAT’s


ao abrigo de uma autorização, enquanto uma das formas legais de aquisição legalmente
reconhecidas, deverá obrigatoriamente implicar um momento de consulta às
comunidades locais com o objectivo de confirmar se a área pretendida se encontra livre
e não tem ocupantes, formalidade que está sob responsabilidade das autoridades
administrativas locais, ao abrigo do processo de titulação 119 . Mas que, em termos
práticos, abre caminho para uma etapa de negociação entre a comunidade local e o
investidor, que pode culminar na celebração de um contrato de parceria, prevendo
responsabilidades e benefícios mútuos120.
O processo de pedido de DUAT deverá ser instruído, conforme consta no artigo
24, do Regulamento da Lei de Terras, aprovado pelo Decreto n.º 66/98, de 8 de
Dezembro, pela junção de um conjunto de documentos, em triplicado, entre os quais se
destaca o parecer do Administrador do Distrito, precedido de consulta às comunidades
locais.
Para o efeito, os Serviços de Cadastro deverão previamente enviar ao
Administrador de Distrito uma cópia do pedido de DUAT, com o objectivo de se afixar
um edital na sede do distrito e no próprio local requerido por um prazo de 30 dias,
conforme a conjugação da alínea f) do n.º 1 do artigo 24 e n.º 1 do artigo 27, ambos do
Regulamento da Lei de Terras. Nos termos do n.º 2 do artigo 27, do RLT, segue-se

118
Cfr. Artigos 13 a 15 da Lei de Terras.
119
No domínio das florestas e fauna bravia, veja-se que “a atribuição da área de concessão florestal é
sempre precedida de uma auscultação ou renegociação junto das comunidades locais abrangidas na
respectiva área, através dos órgãos da administração local do Estado” (Cfr. Artigo 17/2, da Lei de Florestas
e Fauna Bravia).
120
Veja-se BALEIRA, Sérgio/SAMO, Saturnino (Coordenação), Protecção Jurídica dos Direitos de Uso e
Aproveitamento da Terra das Comunidades Locais, Relatório final de pesquisa não publicado, Centro de
Formação Jurídica e Judiciária, Matola, 2010, p. 49.

60
entretanto uma fase caracterizada pela consulta às comunidades locais, a ser efectuada,
em conjunto, pelos serviços de cadastro, pelo Administrador de distrito ou seu
representante, e pelas comunidades locais. Como resultado, será lavrada uma acta, a qual
deverá ser assinada por 3 a 9 representantes da comunidade local, bem como pelos
titulares ou ocupantes dos terrenos limítrofes.
Caso a consulta venha a ser realizada em termos formais e materialmente
correctos, garantindo-se a real auscultação da comunidade visada (e não, por exemplo,
apenas dos seus supostos representantes), através do pronunciamento das sensibilidades e
contrariedades, da apresentação de sugestões e condições, da anunciação de normas e
práticas costumeiras e da definição dos horizontes geográficos e respectivos componentes
das terras comunitárias, há fortes probabilidades de uma maior segurança jurídica por
parte das comunidades, mas também, fundamentalmente, uma maior oportunidade para
a obtenção de eventuais benefícios no contexto do desenvolvimento local.

3.3.4. O papel dos direitos costumeiros na resolução de conflitos no domínio dos


recursos naturais

Outra das dimensões fundamentais do conceito de comunidade local prende-se


com o papel que esta desempenha em relação aos recursos naturais que integram a
respectiva área de implantação e influência. Assim, a comunidade tem o direito de
participar activamente na gestão dos recursos naturais, segundo as normas e práticas
costumeiras, e, consequentemente, de prosseguir a resolução de conflitos, segundo as
mesma normas e práticas, bem como de participar no processo de titulação e na
identificação de definição dos limites das terras pela mesma ocupadas, à luz do artigo 24
da Lei de Terras.
Importa sublinhar o papel da comunidade na resolução de conflitos. Nesse
sentido, o princípio do pluralismo jurídico emerge como pressuposto de reconhecimento
da existência, no nosso país, de diversas instâncias de resolução de conflitos, igualmente
legítimas, socialmente úteis, organizadas segundo uma relação de interdependência
funcional e material, dispostas numa plataforma de horizontalidade, em que não há uma

61
instância superior às demais. Sendo assim, ao nível comunitário emergem diversas figuras
com um papel chave e determinante na prevenção, mediação e resolução da
litigiosidade, da família à autoridade tradicional, dos demais líderes comunitários aos
comités de gestão, de cariz associativo, e às quais cabe receber e canalizar para a
comunidade os benefícios decorrentes da percentagem de 20% aplicável às taxas de
licenciamento da exploração florestal e faunística, nos termos do artigo 102 do
Regulamento da Lei de Florestas e Fauna Bravia, aprovado pelo Decreto n.º 12/2002, de
6 de Junho, e do Diploma Ministerial n.º 93/2005, de 4 de Maio, emitido em conjunto
pelos Ministérios da Agricultura, do Turismo e das Finanças.
Veja-se que, segundo o artigo 133 do Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do
Estado, aprovado pelo Decreto n.º 11/2005, de 10 de Junho, os comités comunitários
(que é o mesmo que os comités de gestão à luz do Diploma Ministerial n.º 93/2005),
“são formas de organização das populações para permitir que as comunidades se
mobilizem na identificação e procura de soluções dos seus problemas, podendo
encaminhar outras preocupações às estruturas pertinentes do sector público” e “poderão
ser constituídos para, entre outras actividades, realizar a gestão da terra e outros recursos
naturais, das escolas, dos postos de saúde e outras instituições de natureza não lucrativa
de âmbito local”.
A Política de Conservação e a Estratégia para a sua Implementação, aprovada
através da Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro, previu que “às comunidades
locais é reconhecido um papel importante na resolução de conflitos sobre uso e acesso a
recursos naturais. Os conflitos poderão seguir a via extrajudicial e a via judicial. Pela via
extrajudicial, o diálogo e acordos com as comunidades locais é o primeiro passo que
deve ser incentivado, sempre que haja conflitos em que estas estejam envolvidas. O
plano de compensação e de reassentamento deveria incluir a previsão para a criação de
uma estrutura para a canalização de reclamações e para facilitar a sua resolução. Esta
poderá incluir influentes locais, autoridades comunitárias, autoridades locais e/ou estatais
que lidam com o assunto em causa que podem intervir como mediadores ou
conciliadores. Ao nível dos postos administrativos, localidades ou bairros existem os
Tribunais Comunitários que podem ser utilizados”.

62
3.4. A interacção entre a lei e os direitos costumeiros no domínio dos recursos naturais

Encontramos na legislação estadual a partir de 1990 um espaço importante de


confluência das normas costumeiras que regem o uso e aproveitamento de recursos
naturais, ainda que, na quase totalidade dos casos, confinado a situações de consumo
próprio ou de pequena escala e não, note-se, uma finalidade de natureza comercial e/ou
industrial.
Em vez de simplesmente ignorar a realidade sociológica, o legislador optou por
um modelo de concessão de espaço, ainda que porventura reduzido, para aplicação das
normas costumeiras que vigoram entre os diversos povos e lugares do País. Somos
levados a dizer que se tratou de um reconhecimento tácito da incapacidade do legislador
estadual em regular plena e eficazmente uma realidade extraordinariamente complexa,
multi-cultural, hiper-diversificada e resultante do cruzamento e interpenetração de
mundos e povos.
Um dos domínios onde mais se faz sentir o papel das ordens normativas locais é o
dos recursos naturais, dado que, ancestralmente, cada povo procurou pautar-se por um
conjunto de princípios e normas básicos de acesso, uso e aproveitamento da terra, das
reservas hídricas, dos recursos pesqueiros, das florestas e da fauna bravia.

3.4.1. Os usos tradicionais na legislação de águas

A Lei de Águas, Lei n.º 16/91, de 3 de Agosto, foi a primeira a tratar os usos
costumeiros, fazendo-o em diversas disposições.
Segundo o n.º 1 do artigo 21 desta Lei, as águas do domínio público classificam-se,
quanto ao seu uso e aproveitamento, em águas de uso comum e águas de uso privativo.
Os usos comuns visam, sem o emprego de meios mecanizados, a satisfação de
necessidades domésticas, pessoais e familiares do utente, entre as quais o abeberamento
de gado e a rega em pequena escala; destes distinguem-se os usos privativos, que, ao
contrário dos primeiros, resultam da lei, licença ou concessão, e que podem ser
directamente realizados pelos titulares do direito de uso e aproveitamento da terra.

63
Uma outra importante nota prende-se com a liberdade e gratuidade que está
associada aos usos comuns. Nos termos do n.º 1 do artigo 22 da Lei de Águas, os usos
comuns são livres, realizando-se sem necessidade de prévio licenciamento ou concessão,
e também gratuitos. Estes usos realizam-se de acordo com o regime tradicional de
aproveitamento de águas, com as limitações estabelecidas por lei que respeitam à
qualidade (dirigidas à proibição de usos comuns de contaminem a água) e quantidade de
água (não serão admitidos aqueles usos comuns que alterem significativamente o caudal
da água).
O artigo 70 consubstanciou o reconhecimento dos chamados usos tradicionais,
enquanto “usos comuns tradicionalmente estabelecidos e de facto existentes”, bem como
a sua necessidade de registo sempre que possam entrar em concorrência com usos
privativos resultantes de lei, concessão ou licença e desde que se traduzam numa
aplicação útil e benéfica da água. Aliás, no que diz respeito a esta última condição, o
legislador, através do n.º 2 do referido artigo, estabeleceu uma barreira ao
reconhecimento dos usos tradicionais sempre que estes implicarem a contaminação da
própria água. Quer o reconhecimento quer o registo estão a cargo das administrações
regionais de águas (ARA’s).

3.4.2. Abertura ao Direito Costumeiro na legislação de florestas e fauna bravia

O quadro jurídico-legal de florestas e fauna bravia é composto essencialmente


pela Lei de Florestas e Fauna Bravia (Lei n.º 10/99, de 7 de Julho) e o respectivo
Regulamento, aprovado pelo Decreto n.º 12/2002, de 6 de Junho. Neste quadro,
importa aludir a dois aspectos fundamentais: o regime de uso e aproveitamento dos
recursos florestais e faunísticos, em primeiro lugar, e a conservação segundo normas
costumeiras, em segundo lugar.

64
3.4.2.1. Exploração de recursos florestais e faunísticos

Importa verificar em que medida o legislador concebeu o papel dos direitos


costumeiros alusivos ao uso de recursos florestas e faunísticos. Neste domínio, destaque
para a norma constante no artigo 9 (Titular do direito de uso e aproveitamento da
terra), segundo a qual “O titular do direito de uso e aproveitamento da terra, quer
adquirido por ocupação, quer por autorização de um pedido, carece de licença para
exploração dos recursos florestais e faunísticos naturais existentes na sua respectiva área,
salvo quando for para consumo próprio”.
Serra e Chicue, ao comentarem o referido artigo, escreveram que “a atribuição de
uma autorização para proceder ao uso e aproveitamento de determinado recurso natural
não determina automaticamente o livre uso e aproveitamento de outros recursos
naturais existentes na mesma área que não sejam para consumo próprio. Se, por
exemplo, os membros de determinada comunidade local, que têm, como se sabe, um
direito pré-existente e supra-constitucional de uso e aproveitamento da terra,
pretenderem explorar os recursos florestais existentes nas suas áreas para posterior venda
de lenha ou carvão, devem requerer previamente a necessária licença florestal, que é
válida por um ano. O mesmo sucede em relação a um investidor que vê o seu pedido de
aquisição do direito de uso e aproveitamento de terra ser autorizado. Para que este
possa explorar os recursos florestais, deve requerer uma licença ou concessão florestal,
consoante os casos e em função dos necessários requisitos legais. Exceptua-se do acima
exposto o caso em que os recursos florestais e faunísticos se destinem a consumo próprio,
no qual se dispensa a licença de exploração”121.
Importa ter presente a noção legal de consumo próprio enquanto “a exploração
florestal e faunística exercida pelas comunidades locais sem fins lucrativos para a
satisfação das suas necessidades de consumo e artesanato, com base nas respectivas
práticas costumeiras”122. Trata-se, portanto de um conceito na satisfação das necessidades
básicas de sustento, designadamente: alimentação, vestuário, habitação, saúde, rituais

121
SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, Centro de Formação Jurídica
e Judiciária, Maputo, 2005.
122
Artigo 1/9, da Lei de Florestas e Fauna Bravia.

65
religiosos, entre outras. Serra e Chicue evidenciaram os dois requisitos fundamentais para
aferir uma situação de consumo próprio: “(1) que tal consumo não tenha finalidades
lucrativas, isto é, não é consumo próprio aquele que se traduz em posterior alienação
com vista à aquisição de uma margem de lucro; (2) que tal consumo seja conforme às
práticas costumeiras da comunidade local. Temos mais um exemplo do espaço que o
legislador nacional tem vindo gradualmente a reconhecer ao direito costumeiro. O
grande propósito é, por conseguinte, obstar que haja lugar a formas de pressão
insustentável ou desregrada sobre os recursos naturais”123.
Contudo, a noção de consumo próprio terá ainda diversos outros limites
estipulados por lei, designadamente no que diz respeito às necessidades de protecção e
conservação, não podendo estar associada a espécies de flora e fauna protegidas, com
recurso a meios e instrumentos proibidos, para além das quotas de abate, bem como
praticada nas áreas protegidas, especialmente parques e reservas nacionais124.
Veja-se que o artigo 15 do Regulamento da Lei de Florestas e Fauna Bravia
(RLFFB) estipula, no que diz respeito ao recursos florestais, que “as comunidades locais
poderão, em qualquer época do ano, extrair os recursos florestais necessários ao seu
consumo próprio, isentos de pagamento de taxa de exploração florestal”.
O RLFFB vai mais longe em termos proteccionistas em relação à Lei quanto aos
recursos faunísticos, pois exige, mesmo em relação às actividades de caça para consumo
próprio, sempre a obtenção de uma licença, que pode ser de modelo D, emitida pelo
Governador da província, através dos Serviços Provinciais de Florestas e Fauna Bravia
respectivos, a cidadãos nacionais para caçar nas florestas de utilização múltipla, ou de
modelo E, passada pelos conselhos locais de gestão de recursos, aos caçadores
comunitários, sendo que, em ambos os casos, somente em relação a espécies de caça
miúda 125 . Naturalmente que a referida opção do legislador regulamentar assume
contornos de uma autêntica ilegalidade, visto que o artigo 9 da LFFB é bastante claro ao
isentar os titulares de direito de uso e aproveitamento da terra da obrigação de obterem
uma licença, seja estadual ou comunitária, em relação aos recursos florestais e faunísticos

123
SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, ob. cit..
124
Veja-se os artigos 11 e 12 da LFFB, bem como o artigo 8 do RLFFB.
125
Vejam-se os artigos 61, 62 a 64 do RLFFB.

66
existentes nas respectivas áreas, quando a exploração se dirigir ao consumo próprio”.
Temos, portanto, um Regulamento aprovado pelo Conselho de Ministros que vai contra
o disposto numa Lei aprovada pela Assembleia da República, o que nos conduz,
inclusivamente, a despertar a inconstitucionalidade das normas regulamentares no
tocante à imposição de licença de caça, tendo presente o princípio constitucional da
hierarquia das leis.

3.4.2.2. A conservação segundo normas costumeiras

Em termos históricos, a conservação comunitária advém da Política e Estratégia de


Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia, aprovada através da Resolução n.º 8/97,
de 1 de Abril, que traçou um objectivo de longo prazo: “proteger, conservar e
desenvolver e utilizar de uma forma racional e sustentável os recursos florestais e
faunísticos para o benefício económico, social e ecológico da actual e futura geração de
moçambicanos” 126 . Ora, para traçar o objectivo social para médio e longo prazo,
assumiu-se a “utilização e conservação do recurso pela comunidade, com ênfase sobre a
educação comunitária, uso e aproveitamento dos recursos pelas comunidades e o
reflorestamento comunitário”. Assim, como objectivo social foi definido o “aumento da
participação da população rural e comunidades como agentes directos no maneio
integrado, protecção contra as queimadas, uso e conservação dos recursos florestais e
faunísticos” 127 . Para a implementação desta objectivo, a Política traçou, entre várias
estratégias, a da “implementação da rede de áreas piloto com participação da
comunidade na conservação e uso dos recursos florestais e faunísticos” 128
. Este
instrumento de carácter político e estratégico acolheu as diversas experiências em curso
em diversas áreas do país no domínio do Maneio Comunitário de Recursos Naturais.
A Constituição da República de Moçambique de 2004, no seu artigo 98, prevê
um conceito de domínio multi-diversificado e abrangente de domínio público, dando um

126
Ponto 52. da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia, aprovada através da
Resolução n.º 8/97, de 1 de Abril.
127
Ponto 53 (iii). da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia.
128
Ponto 56 (i). da Política e Estratégia de Desenvolvimento de Florestas e Fauna Bravia.

67
passo significativo em frente em relação à sua antecessora. Este conceito incorpora assim
não apenas o chamado domínio público do Estado, segundo o entendimento
constitucional consubstanciado no n.º 2 do artigo 98 da CRM, e para o qual existem os
parques e reservas nacionais, mas também o domínio público comunitário, com as zonas
de uso e valor histórico-cultural, por um lado, e os programas comunitários, por outro,
como respectivas expressões máximas, bem com o domínio público autárquico, no qual
invocamos as reservas municipais129.
Para além da opção constitucional constituir sequência lógica do reconhecimento
do princípio do pluralismo jurídico, resulta igualmente de um forte entendimento sobre
ao modelo de conservação a prosseguir em Moçambique. Serra e Cunha escreveram a
este respeito “não existir exclusividade de actuação do Estado ao nível central como
sujeito único e fundamental na criação, manutenção e desenvolvimento de áreas de
conservação, antes pelo contrário, na sequência da emergência de outras figuras
igualmente importantes, como as comunidades locais, as autarquias locais, o sector
privado (caso das coutadas e das fazendas do bravio) e as organizações não
governamentais (fundações e associações, internacionais ou nacionais)”130.
Entre o domínio público comunitário encontramos as chamadas zonas de uso e
valor histórico-cultural, previstas nos artigos 10 e 13 da LFFB, uma figura inédita na
história do direito da conservação em Moçambique e que assenta totalmente no direito
costumeiro – as chamadas zonas de uso e de valor histórico-cultural, definidas, nos
termos do n.º 1 do artigo 13, como “áreas destinadas à protecção de florestas de interesse
religioso e outros sítios de importância histórica e de uso cultural, de acordo com normas
e práticas costumeiras das respectivas comunidades”. Por seu turno, segundo o n.º 2 do
referido artigo, “os recursos florestais e faunísticos existentes nas zonas referidas no
número anterior podem ser utilizados de acordo com aquelas mesmas práticas
costumeiras”.

129
Nos termos do n.º 3 do artigo 98, da CRM, “a lei regula o regime jurídico dos bens do domínio
público, bem como a sua gestão e conservação, diferenciando os que integram o domínio público do
Estado, o domínio público das autarquias locais e o domínio público comunitário, com respeito pelos
princípios da imprescritibilidade e impenhorabilidade”.
130
SERRA, Carlos/CUNHA, Fernando, Manual de Direito do Ambiente, 2.ª Edição, Centro de Formação
Jurídica e Judiciária, Maputo, 2008.

68
No artigo 7 do Regulamento da LFFB, o legislador procurou delimitar o âmbito
conceptual das zonas de uso e de valor histórico-cultural, referindo-se às florestas que
estejam situadas os cemitérios rurais, locais de culto, que sejam utilizadas para a extracção
de medicamentos tradicionais ou constituam habitat de espécies de fauna bravia
utilizadas em cultos.
Com a consagração de zonas de uso e de valor histórico-cultural, o legislador
atribuiu ao costume um papel relevante na criação do Direito. Ao contrário das demais
categorias de áreas de conservação, especialmente aquelas que constituem domínio
público do Estado, designadamente os parques e reservas nacionais, e que são criadas por
decreto do Conselho de Ministros, as zonas de uso e de valor histórico-cultural existem,
assim, independentemente de criação estadual, em virtude do significado histórico-
cultural que as mesmas representam para as comunidades locais, cabendo a estas
proceder à identificação, criação, gestão e desenvolvimento de áreas territoriais
merecedoras de um estatuto priviligiado de protecção.
O Estado intervém tão-somente para efeitos de reconhecimento, através de
despacho dos Governadores provinciais, consubstanciando a realização de uma mera
formalidade, traduzida no acto da declaração de tais áreas como zonas de protecção,
passando, como tal, a constituir objecto de um regime especial de tutela jurídica, no
contexto da rede nacional de áreas de conservação 131. Ora, segundo o n.º 5 do artigo 7
do Regulamento da LFFB, caso tal declaração não venha a ser emitida, não haverá
prejuízo para o exercício de direitos previstos na legislação que digam respeito à
utilização da área e dos recursos florestais e faunísticos por parte das comunidades locais,
com fins económicos, sociais, culturais e históricos, nos termos das respectivas normas e
práticas costumeiras. Neste aspecto, o legislador foi realmente longe em termos de
abordagem pluralística do Direito. A eventual inércia dos Governadores Provinciais na
declaração de zonas de uso e valor histórico-cultural, não prejudica, assim, a existência
de tais zonas como áreas de conservação que integram o conceito de domínio público

Veja-se SERRA, Carlos/CHICUE, Jorge, Lei de Florestas e Fauna Bravia Comentada, Centro de Formação
131

Jurídica e Judiciária, Maputo, 2005.

69
comunitário, bem como o exercício dos direitos de uso e aproveitamento dos recursos
das comunidades locais.
Segundo o artigo 7 do Regulamento da LFFB, há dois possíveis caminhos para
suscitar a declaração de zonas de uso e valor histórico-cultural: (1) por iniciativa do
Estado, representado pelo Governador Provincial, quando tais zonas sejam notoriamente
conhecidas como tais; (2) ou por iniciativa das comunidades locais, através de um pedido
reduzido a escrito, contendo as assinaturas de pelo menos 10 representantes das
respectivas comunidades, a fundamentação do pedido e a delimitação geográfica da
área.
Note-se que o reconhecimento das zonas de uso e valor histórico-cultural não
significa a inexistência de limites legais que obstem ao uso e aproveitamento insustentável
ou desregrado dos recursos naturais, ainda que à luz de normas e práticas costumeiras, de
modo a perigar a preservação dos ecossistemas, da biodiversidade e de espécies
endémicas, raras, em perigo ou ameaçadas de extinção. Assim, as normas e práticas
costumeiras não possuirão carácter absoluto ou limitado, incorrendo em limites ao
serviço do interesse público de protecção e conservação do ambiente,
constitucionalmente consagrado 132 . Assim, vejam-se as normas gerais que estabelecem,
por exemplo, a proibição de caçar um animal constante na lista de animais cuja caça é
proibida (o cabrito das pedras, a chita, o dugongo, o rinoceronte ou a tartaruga
marinha) ou a proibição de abater determinadas espécies vegetais. Tome-se ainda em
consideração o disposto no artigo 8 do Regulamento da LFFB, que prevê a faculdade de
se estabelecer restrições à utilização que as comunidades locais façam dos recursos
existentes nas zonas de uso e valor histórico-cultural, ainda que seja para consumo
próprio, tendo presente factores como: a exploração de espécies de flora e fauna cuja
exploração ou utilização é proibida por lei; a utilização de meios ou instrumentos
permitidos por lei; as quotas de abate de espécies de flora e fauna estabelecidas em
conformidade com o Regulamento da LFFB.

132
Este princípio encontra-se consagrado no artigo 117 da Constituição da República de Moçambique
(“Ambiente e qualidade de vida”)

70
Foi recentemente aprovada a Política de Conservação e a Estratégia para a sua
Implementação, através da Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro, apresenta uma
proposta para a recategorização das áreas de conservação, na qual desaparece a
categoria de zona de uso e valor histórico-cultural, para emergirem duas novas categorias
comunitárias: a reserva comunitária, enquanto “área do domínio privado sob gestão de
uma ou mais comunidades locais para conservação e turismo”, e o santuário
comunitário, como “área terrestre ou aquática de domínio público onde existem
restrições temporárias à entrada e/ou uso para permitir a recuperação das populações de
certas espécies para um prazo de 3 anos renováveis”.

3.4.3. Reconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades locais na


legislação do ambiente

Uma das importantes dimensões do reconhecimento do papel do direito


costumeiro no domínio dos recursos naturais decorre da consagração, no elenco de
princípios ambientais fundamentais previstos no artigo 4 da Lei do Ambiente, do
princípio do reconhecimento e valorização das tradições e do saber das comunidades
locais que contribuem para a conservação e preservação dos recursos naturais e do
ambiente. Dois anos antes, este princípio tinha sido consagrado na Política Nacional do
Ambiente, aprovada através da Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto 133, que aludiu ao
papel da comunidade na gestão ambiental, nos seguintes termos: “a sustentabilidade da
gestão dos recursos naturais e do ambiente só poderá ser eficaz através de uma directa e
activa participação das comunidades, valorizando e utilizando as suas tradições e
experiências. Assim sendo, o Governo criará um clima propício, através do conhecimento
dos padrões de uso dos recursos, formas de gestão tradicional e hábitos de vida das
comunidades. Paralelamente, procurará encorajar e reforçar a capacidade das
comunidades em conhecer e aplicar princípios e regras de gestão dos recursos naturais

133
Ponto 2.2. da Política Nacional do Ambiente, aprovada pela Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto.

71
que orientem a sociedade em geral, delegando-lhes competências e instrumentos que
facilitem o estreitamento da cooperação com as estruturas formais e informais”134.
Interessante frisar que o legislador ordinário inspirou-se não somente na realidade
social e cultural moçambicana, como na Declaração de Princípios que resultou da
Conferência do Rio de Janeiro sobre Ambiente e Desenvolvimento, que teve lugar em
1992. Segundo esta Declaração, “as populações indígenas e suas comunidades e outras
comunidades locais, desempenham um papel vital na gestão e desenvolvimento do
ambiente devido aos conhecimentos e práticas tradicionais. Os Estados deverão apoiar e
reconhecer devidamente a sua identidade, cultura e interesses e tornar possível a sua
participação efectiva na concretização de um desenvolvimento sustentável” 135 . É
realmente curioso frisar a ponte que o direito internacional do ambiente tem vindo a
estabelecer para com os direitos costumeiros, influenciando o processo legislativo dos
Estados no sentido de uma maior e melhor abertura e reconhecimento do papel das
ordens normativas e instâncias de resolução de conflitos não estaduais, especialmente no
que diz respeito à gestão da terra e demais recursos naturais. Trata-se de uma devolução,
ainda que, porventura, tímida, de direitos históricos, ancestrais e intergeracionais às
comunidades locais, “espoliadas” no contexto da criação e desenvolvimento do Estado
moderno, e que conheceu o seu lado mais triste no advento do colonialismo.
Entre os regulamentos da Lei do Ambiente encontramos um que assume
importância vital para este ponto – o Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios
Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado, aprovado
pelo Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto. Não pretendendo nos alongar na análise do
referido instrumento legal, importa sobretudo destacar a forte interacção entre o
conhecimento tradicional sobre recursos genéticos/biodiversidade e a respectiva
protecção e conservação.
Recordamos que Moçambique ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre a
Diversidade Biológica, através da Resolução n.º 2/94, de 24 de Agosto, que estabeleceu
que o acesso e utilização de recursos genéticos, bem como dos conhecimentos

134
Ponto 2.3.10, da Política Nacional do Ambiente, aprovada pela Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto.
135
Veja-se o princípio XXII da Declaração do Rio de Janeiro.

72
tradicionais associados, deverão ser efectuados de forma a salvaguardar uma partilha
justa dos benefícios derivados desde processo.
O Regulamento acima referido tem como objecto: o estabelecimento das regras
para o acesso a componente dos recursos genéticos, sua protecção, bem como ao
conhecimento tradicional a ele associado e relevante à conservação da diversidade
biológica, a utilização sustentável, incluindo a reparação justa e equitativa dos benefícios
derivados da sua utilização e exploração”136.
Importa, de seguida, destacar a norma constante no artigo 15 que versa sobre
direitos das comunidades locais no domínio do conhecimento tradicional associado aos
recursos genéticos, entendido como “a informação ou pratica individual ou colectiva de
comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao recurso genético”137. À luz
do n.º 1 deste artigo, o legislador prevê a abertura para a titularidade do referido
conhecimento tradicional por parte da própria comunidade, mesmo que apenas um dos
respectivos membros detenha tal conhecimento. Segundo o n. ° 2 do referido artigo, a
titularidade de conhecimentos tradicionais associados a recursos genéticos pressupõe: (1)
ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações,
utilização, explorações e divulgações; (2) impedir terceiros não autorizados de utilizar,
realizar testes, pesquisar ou exploração relacionada ao conhecimento tradicional
associado ou divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou
constituem conhecimentos tradicionais associados; (3) e receber benefícios pela
exploração económica por terceiros, directa ou indirectamente, de conhecimento
tradicional associado, cujos direitos são da sua titularidade.

136
Cfr. Artigo 2 do Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos Genéticos
e Conhecimento Tradicional Associado, aprovado pelo Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto.
137
Cfr. Artigo 1 g) do Regulamento sobre Acesso e Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos
Genéticos e Conhecimento Tradicional Associado.

73
3.5. A “captura jurídica” das autoridades tradicionais

O trabalho desenvolvido entre 1991 e 1996 pelo Núcleo de Desenvolvimento


Administrativo, no contexto do projecto “Descentralização e Autoridade Tradicional”,
do Ministério da Administração Estatal, culminou na aprovação de um pacote legislativo
encabeçado pelo Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, que aprovou as formas de
articulação dos órgãos locais do Estado com as autoridades comunitárias.
Nos termos do artigo 1 do referido Decreto, constituem autoridades comunitárias
“os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados
como tais pelas respectivas comunidades locais”. Esta definição consubstancia, em termos
jurídico-legais, o reconhecimento do pluralismo jurídico existente ao nível local e
decorrente da coexistência e interpenetração das autoridades tradicionais, ignoradas e
combatidas no passado e renovadas no presente, das estruturas político-administrativas
criadas a seguir à instauração da Independência nacional e nunca extintas, no qual se
sobressaem os secretários de bairro ou aldeia, e das demais lideranças legitimadas pelas
comunidades e não conducentes à categoria de “régulos”, consoante o povo ou espaço
geográfico em causa.
Segundo o artigo 2 do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, é imposto aos
órgãos locais do Estado o dever de articulação com as autoridades comunitárias,
“auscultando opiniões sobre a melhor maneira de mobilizar e organizar a participação
das comunidades locais, na concepção e implementação de programas e planos
económicos, sociais e culturais, em prol do desenvolvimento local”. Por seu turno, à luz
do artigo 4, aqueles devem articular-se com as autoridades comunitárias nas questões
referentes à gestão ambiental do território sob influência destas, principalmente no que
toca aos domínios do direito de uso e aproveitamento da terra, segurança alimentar,
saúde pública e ambiente.
Veja-se ainda o Diploma Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, do
Ministério de Administração Estatal, que aprovou o Regulamento do Decreto n.º
15/2000, e que, entre outros aspectos, estabeleceu, no artigo 5, uma longa lista de
deveres das autoridades comunitárias, dos quais destacamos, para além dos tradicionais

74
deveres no domínio da divulgação das leis, deliberações dos órgãos do Estado e outras
informações úteis, do trabalho, do reassentamento das populações e do pagamento dos
impostos, aqueles que dizem respeito, directa ou indirectamente, ao ambiente e recursos
naturais:

· Participar às autoridades administrativas a exploração, circulação ou


comercialização não licenciada de madeira, lenha, carvão, minérios e areias;
· Participar na educação das comunidades sobre formas de uso sustentável e
gestão dos recursos naturais, incluindo a prevenção de queimadas não
controladas, caça, corte de madeira, lenha e carvão para fins comerciais sem
autorização;
· Mobilizar e organizar as comunidades para participarem em campanhas de
saneamento do ambiente.

Segundo o artigo 5 do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho, as autoridades


tradicionais gozam, no exercício das suas funções, de um conjunto de direitos e regalias,
designadamente, o de ser reconhecidas e respeitadas como representantes das respectivas
comunidades locais, de usar os símbolos da República, de participar nas cerimónias
oficiais, de usar fardamento e distintivo próprio e de receber um subsídio resultante da
sua participação no processo de cobrança de impostos. A semelhança em relação ao
tratamento que a Administração colonial teve para com os denominados “régulos” é,
sem margem para dúvida, enorme. Decorre actualmente um processo idêntico de
instrumentalização das autoridades tradicionais, integradas na categoria mais ampla de
autoridades comunitárias, com vista à realização de objectivos de natureza política e
administrativa. As autoridades tradicionais são hoje perspectivas como uma espécie de
prolongamento da Administração pública ao nível da base.
Bastante questionável e, nessa linha polémico, foi o entendimento de que, uma
vez legitimadas ao nível comunitário, as autoridades comunitárias deverão ser
reconhecidas pelo representante do Estado, nos termos do n.º 2 do artigo 1 do Decreto

75
n.º 15/2000, de 20 de Junho, e que foi regulamentado no artigo 11 do Diploma
Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, nos seguintes termos: “o reconhecimento
formal das autoridades comunitárias será feito pelo competente representante do Estado
mediante identificação, registo e entrega de fardamento ou distintivo ao líder
comunitário já legitimado”138. Nos anos que se seguiram à aprovação destes diplomas
legais, tornaram-se frequentes as cerimónias de reconhecimento das autoridades
comunitárias legitimadas pelas comunidades, em claro exercício de controlo do poder
concentrado nas mãos das autoridades comunitárias, especialmente no que diz respeito
às tradicionais. Naturalmente, o legislador abriu caminho para eventuais situações em
que, determinado líder comunitário, plena e devidamente legitimado pela sua
comunidade, não venha a ser reconhecido pelo competente representante do Estado,
quando não haja convergência de posições, como, por exemplo, de ordem política.
E mais, a previsão da norma constante no artigo 13, abre igualmente uma porta
para que, em caso de conflito no processo de legitimação das autoridades comunitárias,
o representante do Estado, com competência legal de mediação, possa exercer a
influência necessária para a escolha considerada “politicamente correcta”. Isto é, em
termos resumidos, o Estado moderno e dito pluralista reconheceu um espaço
rigorosamente delimitado e controlado para intervenção das autoridades tradicionais ao
nível da base, em concorrência com as demais autoridades comunitárias, mediante o
respeito de normas jurídicas aprovadas pelo poder executivo e condicionado a uma
modalidade de sancionamento legalmente fixada. O modelo de relacionamento entre o
Estado e as autoridades tradicionais no presente momento possui semelhanças notórias
com o modelo de articulação adoptado no período colonial.
Um artigo recentemente publicado no jornal “País” com o título Régulos da Beira
“atacam administradora, revelou a existência de um conflito instalado entre a
representante mais alta do Governo ao nível desta cidade, a Administradora, e as
autoridades comunitárias. Este conflito assume contornos de natureza política, tendo
presente que o município é actualmente dirigido pelo único autarca do país que não se

Foi, entretanto, aprovado, através do Diploma Ministerial n.º 100/2008, de 24 de Outubro, o


138

Regulamento e Distintivos das Autoridades Tradicionais.

76
encontra filiado no partido Frelimo, a Administradora, tendo dignidade para constituir
objecto de um trabalho de investigação mais aprofundado. Segundo o artigo, a
Administradora terá dito em conferência de imprensa que estava a encontrar diversas
dificuldades no trabalho de reconhecimento dos régulos, por não estariam a colaborar e
sempre a ignoram quando abordados sobre o assunto. Em resposta, um dos régulos terá
afirmado o seguinte: “Não sei porque é que aqui na Beira este processo foi moroso, ou
mesmo nulo. Pelo menos até o presidente do Município (…) ter-nos tratado como
verdadeiros «donos» desta urbe, sempre fomos relegados para o terceiro plano. Portanto,
para nós, a tentativa de reconhecer os régulos do Chiveve (Beira) não passa de uma
pretensão política, mas, infelizmente, nós não existimos para acomodar desejos políticos,
daí que quando se trata de algo virado para as comunidades estamos e estaremos sempre
lado a lado com a administradora”139.
A Lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro, aprovou o quadro jurídico para a
implementação das Autarquias Locais. No enunciado do artigo 28, estabeleceu-se o
seguinte: “No desempenho das suas funções, os órgãos das autarquias locais poderão
auscultar as opiniões e sugestões das autoridades tradicionais reconhecidas pelas
comunidades como tais, de modo a coordenar com elas a realização de actividades que
visem a satisfação das necessidades específicas das referidas comunidades”. Posto isto, por
intermédio do Diploma Ministerial n.º 80/2004, de 14 de Maio, foi aprovado o
Regulamento de Articulação dos Órgãos das Autarquias Locais com as Autoridades
Comunitárias. Este último Diploma limitou-se a transcrever quase na íntegra o disposto
no Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho e respectivo Regulamento, com as necessárias
adaptações ao domínio territorial autárquico. Importa, no entanto, fazer menção da
opção pela apresentação de algumas definições, ainda que de teor questionável, como é
o caso da de chefes tradicionais (“as pessoas que assumem e exerçam a chefia de acordo
com as regras tradicionais da respectiva comunidade”), de secretários de bairro ou aldeia
(“as pessoas que assumem a chefia por escolha feita da população do bairro ou aldeia a
que pertençam”) e a de outros líderes legitimados (“as pessoas que exercem algum papel
económico, social, religioso ou cultural aceite pelo grupo social a que pertençam”).

139
Artigo publicado na edição do jornal País de segunda-feira, dia 22 de Fevereiro de 2010.

77
Por seu turno, através da Lei n.º 8/2003, de 19 de Maio (Lei dos Órgãos Locais do
Estado – LOLE), foram estabelecidos os princípios e normas de organização dos órgãos
locais do Estado nos escalões de província, distrito, posto administrativo e de localidade.
Segundo o artigo 11 desta lei, “No desempenho das suas funções administrativas, os
órgãos locais do Estado articulam com as autoridades comunitárias, observando
estritamente a Constituição da República, as demais leis e os regulamentos sobre a
matéria.
O Regulamento da LOLE foi aprovado através do Decreto n.º 11/2005, de 10 de
Junho. No capítulo II (Comunidades) do Título VIII (Cidadania e participação), o
legislador procedeu à reprodução do conteúdo do Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho,
e respectivo Regulamento. Os artigos 106 e 108 tratam, respectivamente, dos deveres e
dos deveres em geral das autoridades comunitárias; por seu turno, os artigos 107 e 109
versam sobre os deveres e direitos em especial dos chefes tradicionais e secretários de
bairro ou aldeia, respectivamente. A maior novidade do Regulamento da LOLE traduz-se
na decisão governamental de proceder à definição, ainda que não taxativa, das formas
de organização das comunidades, indiciando não apenas um propósito de simplificar
e/ou ordenar aquilo que, porventura, e à primeira vista, possa parecer, complexo e/ou
caótico, mas também de garantir um maior controlo da dinâmica comunitária por parte
das estruturas do Estado. Procurou-se, assim, dar um cunho de formalidade e
modernidade às formas de expressão e organização das comunidades, reduzindo-as a
categorias abstractas legalmente previstas, concebidas e definidas, entre as quais se
encontram o Conselho Local140, o Fórum Local 141, os Comités Comunitários142 e os Fundos

140
Segundo o artigo 111 do Regulamento da LOLE, o “conselho local é um órgão de consulta das
autoridades da administração local, na busca de soluções para questões fundamentais que afectam a vida
das populações, o seu bem-estar e desenvolvimento sustentável, integrado e harmonioso das condições de
vida da comunidade local, no qual participam também as autoridades comunitárias”.
141
De acordo o artigo 112 do Regulamento da LOLE, o “fórum local é uma instituição da sociedade civil
que tem como objectivo organizar os representantes das comunidades e dos grupos de interesse locais para
permitir que eles definam as suas prioridades”.
142
À luz do artigo 113 do Regulamento da LOLE, “os comités comunitários são formas de organização das
populações para permitir que as comunidades se mobilizem na identificação e procura de soluções dos seus
problemas, podendo encaminhar outras preocupações às estruturas pertinentes do sector público”.

78
Comunitários143. Depois de os elencar, o legislador teve a preocupação de enunciar que
“poderão existir outras formas de organização definidas pelas respectivas comunidades”.
Urge mencionar que foi, entretanto, aprovado o Guião sobre a organização e
funcionamento dos Conselhos Locais, através do Diploma Ministerial n.º 67/2009, de 17
de Abril.
Finalmente, o legislador inseriu no artigo 118 da Constituição da República de
Moçambique de 2004, uma norma exclusivamente alusiva ao papel das autoridades
tradicionais. Nos termos do respectivo artigo 1, “O Estado reconhece e valoriza a
autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito consuetudinário”.
Veja-se que nada é dito em relação ao sancionamento ou reconhecimento que as
entidades governamentais competentes deverão fazer das autoridades tradicionais
legitimadas pelas comunidades, o que nos leva a indagar em torno da eventual
inconstitucionalidade da norma constante no n.º 1 do artigo 1 do Decreto n.º 15/2000,
de 20 de Junho.

Por seu turno, segundo o n.º 2 do referido artigo 118, “O Estado define o
relacionamento da autoridade tradicional com as demais instituições e enquadra a sua
participação na vida económica, social e cultural do país, nos termos da lei”. Este
relacionamento foi tratado, conforme vimos, no Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho e
respectiva regulamentação.

Importa igualmente aludir ao facto de, segundo o artigo 11 da Constituição, se ter


estabelecido, como um dos objectivos fundamentais do Estado moçambicano, “a
afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-
culturais”. Assim, confirma-se ao mais alto patamar legislativo o retorno do Estado ao
tradicional.

Nos termos do artigo 114 do Regulamento da LOLE, “por iniciativa própria, comunicada ao Chefe do
143

Posto Administrativo, as comunidades podem criar fundos de desenvolvimento comunitário vocacionados


para interesses próprios das respectivas comunidades”.

79
3.6. O marco constitucional da consagração do pluralismo jurídico

Realizando uma análise crítica da Constituição de 1990, e sem menosprezar o


acima aludido artigo 6, que previa, como objectivo do Estado moçambicano, a
“afirmação da personalidade moçambicana, das suas tradições e demais valores
socioculturais, Luís Mondlane refere que “todavia em nenhum outro momento a Lei
Fundamental (de 1990) faz reconhecimento expresso do Direito Costumeiro nem tão
pouco das línguas nacionais. Torna-se, pois, necessário não só o reconhecimento do
direito costumeiro como também a fixação de mecanismos conducentes a uma efectiva
interacção dos sistemas de Direito formal e não formal e, bem assim, uma adequada
estruturação dos organismos aplicadores do direito costumeiro”144.
Contudo, a Constituição da República de Moçambique de 2004 possui uma
norma extraordinariamente importante para o debate em torno dos novos rumos e
desafios do Direito, e que foi integrada no Título I, Capítulo I, no artigo 4, alusivo aos
princípios fundamentais, que consubstancia a consagração do pluralismo jurídico na
República de Moçambique: “O Estado reconhece os vários sistemas normativos e de
resolução de conflitos que coexistem na sociedade moçambicana, na medida em que não
contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição”.
Poucos meses antes da aprovação do novo texto constitucional, o Centro de
Formação Jurídica e Judiciária, instituição subordinada ao Ministério da Justiça, foi
convidado pela Comissão de Redacção a contribuir para o projecto de revisão da
Constituição com a elaboração de uma norma que consagrasse o princípio do pluralismo
jurídico. Para o efeito, teve-se em consideração o trabalho de pesquisa sobre a
administração da justiça em Moçambique que esta instituição tem vindo a realizar,
chamando a atenção para a necessidade de reconhecer o papel que as diversas instâncias
formais e informais assumem na prevenção e resolução de conflitos no país.
Para entender o pluralismo jurídico em Moçambique no momento actual, não se
poderá deixar de tomar em consideração Sally Merry, que nos demonstra como, ao

MONDLANE, Luis António, O Acesso à Justiça e Meios Alternativos de Resolução de Conflitos, In.
144

Revista Jurídica, Faculdade de Direito, Universidade Eduardo Mondlane, Volume II, Maputo, 1997, 103.

80
contrário do entendimento anterior, segundo o qual os investigadores debruçavam-se
fundamentalmente no contexto local para analisar uma determinada situação local, hoje,
os contextos nacional e internacional tornaram-se extraordinariamente importantes no
desenvolvimento de uma compreensão teórica das situações locais, na medida em que
não apenas a lei estadual como o direito internacional foram penetrando e moldando as
arenas sociais locais145.
O colonialismo, a descolonização, a emergência de um direito internacional, a
globalização e uma série de outros fenómenos contribuíram, sobremaneira, para a
geração, na quase totalidade dos ordenamentos jurídicos nacionais, de um mosaico
jurídico multi-diversificado, a um ponto em que já não se pode, hoje, falar de um
pluralismo jurídico na linha do que caracterizou o período colonial, fundamentalmente
assente no desequilíbrio e na separação de ordens normativas, em que o direito escrito
das metrópoles se encontrava no patamar superior, abaixo do qual se encontram os
direitos costumeiros. Emerge, portanto, um interesse renovado no conceito de pluralismo
jurídico, segundo o qual a pluralidade de sistemas jurídicos parece ser hoje a característica
fundamental de todas as sociedades, defendendo-se a natureza mutuamente constitutiva
dos sistemas jurídicos locais, nacionais e transnacionais146. E mais, o pluralismo jurídico é
hoje perspectivado como o caminho para a análise e discussão acerca da multiplicidade
de sistemas jurídicos coexistentes e as suas interconexões147.
Nota importante para as palavras de António Hespanha, quando nos diz:
“enquanto as concepções pluralistas não cultivarem um ecumenismo que lhes permitia
reconhecer, sem discriminação, todas as formas de manifestação autónoma de direito e
de dar a todas elas a mesma capacidade de se exprimirem na comunidade jurídica, a
garantia de um pluralismo jurídico verdadeiramente pluralista não está realizada. E, por
isso, não estão garantidas nem a legitimidade nem a justeza das soluções jurídicas que

145
MERRY, Sally Engle, Anthropology, Law and Transnational Process, Annual Review of Anthropology,
Annual Reviews, Vol. 21, 1992. p. 357.
146
Idem, p. 358.
147
Ibidem, p. 360.

81
decorrem de um diálogo que deveria ser igualitário, entre os vários ordenamentos
jurídicos”148.
O reconhecimento real, efectivo, prático, e já não apenas legal, do princípio do
pluralismo jurídico constitui um desafio de importância crucial para os próximos anos na
história do País, especialmente num contexto em que se pretende construir um Estado de
Justiça Social. Por outro lado, seria de todo importante que, nos trabalhos de reforma
legal, incluindo do próprio sistema de administração da justiça, se atendesse, sem
preconceitos ou prejuízos, à vasta, diversificada e riquíssima amálgama de exemplos de
pluralismo jurídico, de modo a construir e fazer vingar as soluções mais adequadas e
consentâneas com a realidade nacional e, principalmente, a conceber uma justiça cada
vez mais próxima do cidadão.
Os sistemas de justiça comunitária revelam uma enorme capacidade, celeridade,
simplicidade, êxito e eficácia na prevenção e resolução de conflitos, e, como tal,
mereceriam constituir uma das fontes privilegiadas e determinantes da arquitectura e
conteúdo do direito moçambicano. A urgência na busca de soluções legais para velhas e
novas questões desemboca na importação de modelos pensados e criados para
realidades políticas, jurídicas, económicas, sociais e culturais diferentes, e que, graças à
globalização e ao advento das modernas tecnologias de informação, se encontram
facilmente acessíveis, quando, afinal de contas, a resposta pode encontrar-se próximo de
nós, basta um olhar atento, uma investigação cuidadosa e a apresentação de propostas
inovadoras, consentâneas, justas e eficazes.

3.7. Constrangimentos e êxitos no processo de implementação do novo quadro jurídico-


legal - o caso paradigmático das consultas comunitárias

Um dos maiores marcos da nova legislação de terras e recursos naturais foi a


consagração da consulta pública, e que se tornou uma espécie de mecanismo de
salvaguarda, de respeito e de materialização dos direitos comunitários e,

HESPANHA, António Manuel, O Caleidoscópio do Direito, O Direito e a Justiça nos Dias e No Mundo
148

de Hoje, 2.ª Edição, Almedina, Combra, 2009, p. 75.

82
consequentemente, de atribuição de uma maior espaço para a realização de uma justiça
mais plural, num factor de realização do princípio de pluralismo jurídico
constitucionalmente consagrado.
A consulta pública, no contexto da legislação dos recursos naturais, permite aferir
não só a existência de formas de pensar e de viver fora dos horizontes temporais e
geográficos do Estado moderno, e de inúmeros direitos adquiridos e transmitidos pela
via costumeira e, indiscutivelmente, merecedores de consideração para efeitos de tomada
de decisão sobre determinada actividade, como ainda atribui às comunidades uma
importante base negocial para efeitos de desenvolvimento local e de prevenção de
eventual litigiosidade.
Um estudo levado a cabo em 2002 com o propósito de verificar se os direitos das
comunidades, derivados da nova legislação de recursos naturais, constituíam realidade
efectiva ou mera retórica, nomeadamente no contexto do maneio comunitário dos
recursos naturais, culminou em diversas conclusões importantes: (1) a ausência de
instrumentos de operacionalização da legislação, (2) fraco conhecimento desta, (3)
fraqueza das instituições locais, (4) e fraca capacidade de fiscalização das actividades dos
diferentes autores 149 . Conforme veremos adiante, volvidos sensivelmente 8 anos, a
situação pouco mudou.
Um dos maiores problemas que se tem vindo a revelar, prende-se com a
tendência de perspectivar a consulta comunitária como mero requisito formal, despido,
portanto, de qualquer relevância material, fazendo com que não haja grande esforço na
realização de um processo de participação efectivamente abrangente, dirigido à efectiva
colecta da opinião das comunidades residentes nas áreas de exploração dos recursos
naturais, com vista a contribuir para o combate à pobreza, bem como a prosseguir e
alcançar o desejável desenvolvimento local.
Jonstone e outros destacam que fraqueza do processo de consulta e a sua
substituição pela adopção de um documento entregue e assinados pelas lideranças
comunitárias resulta da combinação de diversas causas, nomeadamente: a falta de

NHANTUMBO, Isilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades: Realidade ou Retórica,


149

DNFFB, DFID e IIED, Maputo, 2003, p. 43.

83
incentivos por parte do operador, a falta de capacidade técnica do lado do Governo
local e a falta de conhecimento/capacidade de negociação ao nível das comunidades
locais150.
No caso mais frequente, a consulta é realizada somente ao nível das lideranças
comunitárias, na sequência do falso pressuposto de que assim se cumpre o requisito
legalmente imposto151. Na maior parte dos casos, as comunidades não chegam realmente
a participar no processo, sendo somente avisadas, pelos seus líderes, de que foi tomada
determinada decisão, ainda que esta os venha a afectar significativamente. Noutras
situações, quando as lideranças estão desprovidas de escrúpulos, são facilmente
manipuláveis e entregam terras comunitárias mediante o pagamento de quantias
monetárias ou da atribuição de outro tipo de benefícios.
As pseudo-consultas, como assim lhes chamaríamos, decorrem, portanto, de uma
interpretação literal e errónea do disposto na legislação, que confunde consultas
comunitárias com consultas junto de lideranças comunitárias, ou então como meras e
pontuais audiências públicas, significando, na prática, a realização de um único encontro,
muitas vezes mal conduzido 152 . Aliás, torna-se fundamental enfatizar o conceito de
participação como um processo contínuo e duradouro, em detrimento da opção por
uma mera consulta, que pode se esgotar num único momento e num único local, não
garantindo a real auscultação e negociação das comunidades.
Sendo as consultas equacionadas por alguns operadores como pressupostos
essencialmente burocráticos, a acrescer a uma lista de requisitos já por si considerada
longa, estes não pretendem perder com as mesmas mais do que o tempo estritamente
necessário. Aliás, para determinados sectores, as consultas comunitárias são entendidas

150
JOHNSTON, Rouja/CAU, Boaventura/NORFOLK, SIMON, Legislação Florestal em Moçambique:
Cumprimento e Impacto em Comunidades Residentes na Floresta, In. Comunidades e Maneio dos Recursos
Naturais. Memórias da III Conferência Nacional sobre o Maneio Comunitário dos Recursos Naturais,
Maputo, 21 – 23 de Julho de 2004, Volume I, Direcção Nacional de Florestas e Fauna Bravia - Ministério
da Agricultura e Desenvolvimento Rural/IUCN, Maputo, 2005, p. 100.
151
Segundo Nhantumbo e Macqueem, quando é feita (a consulta), é superficial e resume-se no contacto
com as estruturas administrativas e algumas autoridades comunitárias que legitima o pedido através das
suas assinaturas”. NHANTUMBO, Izilda/MACQUEEN, Duncan, Direitos das Comunidades, Ob. Cit., p. 39.
152
Extraído de TANNER, Christopher/BALEIRA, Sérgio, O quadro legal de acesso aos recursos naturais em
Moçambique: o impacto das novas legislação e das consultas comunitárias sobre as condições de vida
locais, série Sociedade e Justiça, Volume 1, Fevereiro de 2009, pp. 6 – 7.

84
como obstáculos ao processo de desenvolvimento, até porque, segundo estes, a terra é
propriedade do Estado, não fazendo sentido condicionar o capital à observância de uma
formalidade de discutível necessidade. Claro que, no caso de ocorrência de uma pseudo-
consulta, o processo de investimento é verticalmente imposto à comunidade, e sem que
haja, grande parte das vezes, lugar à entrega de contrapartidas ou benefícios justos da
exploração de recursos naturais localizados nas áreas comunitárias, o que ocasiona um
enorme risco de ocorrência de conflitos, despoletando a necessidade de aceder à justiça
para obter a reposição dos direitos violados.
Conforme afirmamos em outra sede, “para que se cumpra o requisito formal, a
consulta pode esgotar-se num único tempo (mesmo que não suficiente para se fazer uma
verdadeira auscultação das sensibilidades), em um único espaço físico (mesmo que assim
não se consiga a necessária cobertura da comunidade local) e junto de supostos
representantes da comunidade (não se conseguindo fazer chegar a informação ao nível
da base). Como resultado, não há lugar à legitimação necessária do processo de consulta,
gerando-se um clima de desconfiança forte, o qual muitas vezes degenera em situações
mais ou menos complexas e turbulentas de conflitualidade, com inúmeras consequências
negativas para todas as partes envolvidas”153.
Por fim, importa definir mecanismos de efectiva participação das comunidades
locais no processo de licenciamento no domínio dos recursos naturas, garantindo-se que
o processo de tomada de decisões seja realizado em termos verdadeiramente
democráticos, em prol do desenvolvimento sustentável. Há, nesse sentido, de trabalhar
na harmonização do quadro jurídico-legal, trazendo para a legislação de florestas e fauna
bravia os desenvolvimentos significativos que foram materializados na legislação sobre a
avaliação do impacto ambiental, no âmbito da qual o conceito de participação ganhou
relevo em detrimento do de consulta154. Por outro lado, torna-se importante desenvolver
mecanismos para uma autêntica auscultação e pronunciamento das comunidades locais

153
In. Prefácio à 2.ª Edição do Manual de Delimitação de Terras das Comunidades, da Comissão
Interministerial para a Revisão da Lei de Terras, com o apoio técnico da FAO e Financeiro do Reino dos
Países Baixos.
154
Veja-se o Regulamento do Processo de Avaliação do Impacto Ambiental, aprovado pelo Decreto n.º
45/2004, de 29 de Setembro, e a Directiva Geral para participação Pública, aprovada pelo Diploma
Ministerial n.º 130/2006, de 19 de Julho.

85
nos processos de autorização de direitos de uso e aproveitamento da terra e demais
recursos naturais, como condição para as eventuais negociações consequentes e a geração
de benefícios justos para todas as partes.

86
CONCLUSÕES

No período do Estado colonial, que tem o seu início pouco tempo depois da
Conferência de Berlim (1894 - 95), o sistema de administração portuguesa iniciou o
processo de construção do Estado moderno, pautando-se por uma linha de intervenção
baseada nos pilares do reconhecimento de um pluralismo jurídico na perspectiva de
melhor controlar e administrar o território e suas gentes; pela diferenciação de estatuto
jurídico dos cidadãos europeus e das populações locais, consideradas nativas ou
indígenas; pelo estabelecimento de uma rede de chefaturas locais reconstruídas sobre as
cinzas dos antigos reinos tradicionais, e colocadas ao serviço dos objectivos coloniais;
pela exploração forçada da mão-de-obra local; e pelo reconhecimento de um regime
jurídico-legal dirigido a facilitar o acesso às melhores terras e demais recursos naturais por
parte do sistema colonial e das empresas privadas a este associadas.
Os direitos costumeiros foram, de certo modo, considerados objecto de estudo
por parte da Administração colonial, que chegou a concretizar algumas propostas para a
sua codificação, não com o espírito de reconhecer um pluralismo jurídico perspectivado
em moldes horizontais, mas sim com o propósito fundamental de melhor conhecer os
padrões de pensamento e comportamento das populações locais, com vista ao seu e
manipulação na construção do Estado colonial. Nesse sentido, os chamados usos e
costumes das populações nativas eram tão-somente tolerados, numa primeira fase,
naquilo que não pusesse em causa a ordem imperial e colonial bem como os bons
costumes das nações “civilizadas”.
Não obstante toda esta conjuntura que se durou sensivelmente 80 anos,
determinados elementos dos direitos costumeiros resistiram às ameaças, bem como as
eventuais tentativas de desmantelamento. No mundo rural, as comunidades locais
continuaram a guiar-se pelas normas e práticas ancestrais que regem as relações fundiárias
e o acesso aos recursos naturais, bem como as próprias estruturas de poder. Para esta, o
direito e as instituições coloniais permaneceram estranhas.

87
A seguir à Independência e com a criação da República Popular de Moçambique,
assistiu-se à desconstrução do Estado colonial e à sua substituição por um Estado de
feição socialista, assente nos princípios da democracia popular. Ao nível legislativo,
houve efectivamente lugar ao início de um período de Estadualismo, no qual a lei
constituiu a única e exclusiva fonte de direito, resultado da livre expressão da vontade
popular. Não houve, portanto, lugar ao reconhecimento do papel dos direitos
costumeiros, os quais, aliás, estavam demasiado conotados com a “tradição” e o
obscurantismo”. Ao nível judicial, procedeu-se a uma reforma do sistema de
administração da justiça no qual o ponto mais importante foi a criação dos tribunais
populares. Por seu turno, ao nível administrativo, foram erguidos os alicerces de uma
nova máquina e estrutura administrativa, tendo, na base, emergido os grupos
dinamizadores que se apropriaram do lugar anteriormente ocupado pelos régulos, dando
continuidade a algumas das funções por anteriormente exercidas por estruturas que
foram profundamente conotadas como tendo estado inseridas na máquina repressiva do
Estado colonial. As autoridades tradicionais foram assim colocadas à margem dos desafios
do jovem Estado independente, não deixando contudo, conforme vimos, de existir e
gozar do seu poder de influência junto das populações.
Ao nível legislativo, consagrou-se, firme e resolutamente, o princípio da
propriedade estatal da terra e demais recursos naturais, rompendo com o modelo
colonial no qual as riquezas eram objecto de exploração para benefício da Metrópole e
de uma minoria de privilegiados, em detrimento dos verdadeiros e legítimos donos da
terra. Para o efeito, a terra e os recursos naturais passaram a constituir um dos motores
do desenvolvimento da jovem República Popular e para benefício de todos os
moçambicanos, numa sociedade que se pretendia desprovida de classes sociais. Na
legislação aprovada não se fez qualquer referência aos usos e costumes locais, que,
sociologicamente, continuaram a reger as relações fundiárias das comunidades locais. De
qualquer modo, viveu-se um período de desqualificação do pluralismo jurídico,
considerado produto da estratégia colonial para melhor dominar.
Na sequência das transformações económicas e políticas verificadas na segunda
metade da década de oitenta, foi aprovada, no ano de 1990, uma nova Constituição da

88
República, que abre caminho para a instauração de um sistema democrático multi-
multipartidário, para a instituição de um leque de direitos fundamentais e para a
consagração formal do princípio de separação de poderes. Após a aprovação da nova Lei
Fundamental, foi aprovada uma nova Lei de Organização Judiciária, que excluiu da
justiça formal os então tribunais populares de comunidade, que formavam a base do
sistema de administração da justiça, e que foram categorizados como tribunais
comunitários, regidos por Lei própria. Perdeu-se um dos pontos mais fortes e
emblemáticos das conquistas alcançadas a seguir à Independência – a existência de
tribunais para o povo, junto do povo e dirigidos pelo povo.
Paralelamente, tendo à frente o Ministério de Administração Estatal, foi
desencadeado um processo de retorno ao tradicional, com a missão fundamental de
recuperar o papel anteriormente desempenhado pelas autoridades tradicionais, incluindo
os régulos, que não deixaram de exercer o seu papel juntos das populações, ainda que,
nalguns casos, em contexto de enorme instabilidade política ou bélica. O propósito real
não deixa de ocultar intenções políticas em contexto de disputa pelo acesso ao poder
através de eleições presidenciais e legislativas, pois, afinal, as autoridades tradicionais são
essenciais no controlo das populações e na eventual orientação da tendência de voto. A
aprovação do Decreto n. ° 15/2000, de 20 de Junho e respectivos regulamentos, bem
como o quadro jurídico-legal sobre órgãos locais do Estado, demonstraram uma
tendência de clara instrumentalização das autoridades tradicionais, e que culminaram
num processo de reconhecimento recheado de carga simbólica, perante as autoridades
estatais competentes, culminando na atribuição de insígnias e fardamento. A semelhança
com o passado colonial foi, em muitos aspectos, enorme. Este quadro permite, por
exemplo, não reconhecer autoridades tradicionais consideradas não gratas por razões
políticas, ainda que auferindo de legitimidade junto das suas populações. No terreno, a
entrada em vigor de tal pacote legislativo foi tudo menos pacífica.
A Constituição de 1990 marca também o início de um ciclo legislativo no domínio
da terra e dos recursos naturais extraordinariamente rico em termos de inovações
introduzidas no ordenamento jurídico moçambicano. O direito costumeiro ganha
reconhecimento ao nível da legislação da terra, de florestas e fauna bravia, do ambiente

89
e do ordenamento territorial. Um ponto forte foi a atribuição de um papel de notória
relevância às comunidades locais, a quem foi legalmente conferida a legitimidade de
fazerem uso das suas normas e práticas costumeiras, e a quem foram conferidos especiais
direitos de acesso à terra e aos demais recursos naturais. A consulta pública, por exemplo,
ferramenta amplamente consagrada na legislação da terra, florestas e fauna bravia e
ambiente, tornou-se, assim, uma salvaguarda, respeito e materialização dos direitos
comunitários e, consequentemente, de atribuição de uma maior espaço para a realização
de uma justiça mais plural.
O princípio do pluralismo jurídico foi conquistando gradualmente espaço até à
sua expressa consagração constitucional no ano de 2004. A sua concepção é, ao
contrário daquele que vigorou em tempo colonial, horizontal, reconhecendo-se espaço
para todas as ordens normativas e instâncias de resolução de conflitos, desde que com
respeito pela própria Constituição.
Contudo, no actual contexto, entre o legislado e a prática coloca-se actualmente
um fosso traduzido no levantamento de imensos e complexos obstáculos à
implementação do disposto no quadro jurídico-legal, designadamente no que diz
respeito ao respeito pelos direitos das comunidades locais, em grande parte de base
costumeira. O processo de participação pública, por exemplo, que deveria servir para
garantir uma legitimação ampla e consensual, bem como para levantar a existência de
direitos adquiridos, consuetudinariamente reconhecidos e, depois da aprovação da Lei de
Terras e legislação subsequente, legalmente reconhecidos, para a sua consideração e
capitalização no processo de tomada de decisões por parte dos órgãos competentes da
Administração Pública, é, não poucas vezes, recheado de incorrecções e/ou
manipulações, desvirtuando-se de modo a acomodar interesses menos bem-
intencionados. Para o efeito, vimos surgir consultas forjadas com propósito de forjar uma
suposta vontade comunitária e assim alcançar uma falsa legitimidade para levar a cabo
determinada actividade.

90
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· Constituição da República de Moçambique (2004);

· Constituição da República Popular de Moçambique (1975);

· Decreto n.º 11/2005, de 10 de Junho (Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do


Estado);

· Decreto n.º 12 533, de 27 de Novembro de 1926 (que promulgou o Estatuto


Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique);

· Decreto n.º 12/2002, de 6 de Junho (Aprova o Regulamento da Lei de Florestas e


Fauna Bravia);

· Decreto n.º 15/2000, de 20 de Junho (Aprova as formas de articulação dos órgãos


locais do Estado com as autoridades comunitárias);

· Decreto n.º 19/2007, de 9 de Agosto (Aprova o Regulamento sobre Acesso e


Partilha de Benefícios Provenientes de Recursos Genéticos e Conhecimento
Tradicional Associado);

· Decreto n.º 23/2008, de 1 de Julho (Aprova o Regulamento da Lei do


Ordenamento do Território);

· Decreto n.º 40 040, de 24 de Fevereiro de 1955 (Estabelece preceitos destinados a


proteger nas províncias ultramarinas o solo, a flora e a fauna);

· Decreto n.º 7/78, de 18 de Abril (Regulamenta as modalidades de caça a serem


praticadas na República Popular de Moçambique);

· Diploma Ministerial n.º 100/2008, de 24 de Outubro (Aprova o Regulamento e


Distintivos das Autoridades Tradicionais);

· Diploma Ministerial n.º 107 – A/2000, de 25 de Agosto, do Ministério de


Administração Estatal (Aprova o Regulamento do Decreto n.º 15/2000);

97
· Diploma Ministerial n.º 67/2009, de 17 de Abril (Aprova o Guião sobre a
organização e funcionamento dos Conselhos Locais);

· Diploma Ministerial n.º 80/2004, de 14 de Maio (Aprova o Regulamento de


Articulação dos Órgãos das Autarquias Locais com as Autoridades Comunitárias);

· Diploma Ministerial n.º 93/2005, de 4 de Maio, emitido em conjunto pelos


Ministérios da Agricultura, do Turismo e das Finanças (Aprova os mecanismos de
canalização e utilização dos vinte por cento das taxas florestais e faunísticas);

· Lei n.º 10/92, de 6 de Maio. (Lei da Organização Judiciária de 1992);

· Lei n.º 10/99, de 7 de Julho (Lei de Florestas e Fauna Bravia);

· Lei n.º 12/78, de 2 de Dezembro (Lei da Organização Judiciária de 1978);

· Lei n.º 16/91, de 3 de Agosto (Lei de Águas);

· Lei n.º 19/2007, de 18 de Julho (Lei do Ordenamento do Território);

· Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro (Nova Lei de Terras);

· Lei n.º 2/97, de 18 de Fevereiro (aprova o quadro jurídico para a implementação


das Autarquias Locais);

· Lei n.º 20/97, de 1 de Outubro (Lei do Ambiente);

· Lei n.º 277, de 15 de Agosto de 1914 (Lei Orgânica da Administração Civil das
Províncias Ultramarinas);

· Lei n.º 4/92, de 6 de Maio (Cria os Tribunais Comunitários);

· Lei n.º 6/79, de 3 de Julho (Lei de Terras de 1979);

· Lei n.º 8/2003, de 19 de Maio (Lei dos Órgãos Locais do Estado);

· Portaria n.º 117/78, de 16 de Maio (Determina que sejam as constantes as


modalidades de caça a serem praticadas na República Popular de Moçambique);

· Resolução n.º 5/95, de 3 de Agosto (Política Nacional do Ambiente);

· Resolução n.º 64/2009, de 2 de Novembro (Política de Conservação e a


Estratégia para a sua Implementação);

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· Resolução n.º 8/97, de 1 de Abril (Política e Estratégia de Desenvolvimento de
Florestas e Fauna Bravia).

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