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Uma vez que se leve tais pontos-de vista tão seriamente quanto eles merecem, há
algumas conseqüências interessantes e pouco óbvias. A primeira é que provavelmente há
um número certo de domínios importantes apoiados por ferramentas culturais e redes de
distribuição. A segunda é que os domínios provavelmente são diferentemente integrados
em culturas diferentes, como os antropólogos têm insistido durante anos.5 E a terceira é
que muitos domínios – especialmente esses que têm a ver com o conhecimento humano,
seu mundo social, sua cultura – não estão organizados por princípios lógicos ou por
conexões associativas. De fato, a maioria do nosso conhecimento sobre o conhecimento
humano adquirido e sobre a construção da realidade é elaborado a partir de estudos de
como as pessoas conhecem o mundo natural ou físico em vez de o mundo humano ou
simbólico. Por muitas razões históricas, inclusive o poder prático inerente ao uso da lógica,
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1. Diacronicidade narrativa. Uma narrativa é uma exposição de eventos que ocorrem com
o passar do tempo. É irredutivelmente durativa. Pode ser caracterizada em termos
aparentemente não-temporais (como uma tragédia ou uma farsa), mas isso apenas resume
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quais são os padrões fundamentais dos eventos que ocorrem com o passar do tempo. Além
disso, o tempo envolvido, como notou Paul Ricoeur, é o “tempo humano” e não o tempo
abstrato ou o tempo do “relógio.”9 É o tempo cuja significação é determinada pelo
significado atribuído aos eventos em seu próprio ritmo. William Labov, um dos maiores
estudiosos da narrativa, também notou a seqüência temporal como essencial para narrativa,
apesar de localizar essa temporalidade na sucessão de manutenções de sentido das orações
do próprio discurso narrativo.10 Apesar de ser uma ajuda útil, essa análise lingüística,
obscurece um aspecto importante de representação narrativa. Há muitas convenções para
expressar a duração de seqüências narrativas num mesmo discurso, como retrospectos,
flashbacks e flashforwards, sidédoques temporais, e assim em diante. Como adverte Nelson
Goodman, a narrativa inclui um conjunto de maneiras de construir e de representar a
ordem seqüencial, diacrônica, de eventos humanos, dentre os quais a seqüência de orações
em “estórias” escritas ou orais é somente uma dessas maneiras.11 Mesmo os meios não-
verbais têm convenções para diacronicidade narrativa, como a leitura da “esquerda-para-
direita” e de “cima-para-baixo” das histórias em quadrinhos e das janelas de catedral. O que
está subjacente a todas essas formas para representar narrativas é um “modelo mental” cuja
propriedade definidora é o seu padrão único de eventos no tempo. E a isso viremos nós
agora.
2. Particularidade. Narrativas têm acontecimentos particulares como sua referência
ostensiva. Mas isso é seu veículo e não o seu destino. Histórias obviamente planas caem em
tipos mais gerais: homem-galantea-mulher, tiranos-recebem-seu-castigo e assim em diante.
Neste sentido os pormenores das narrativas são símbolos de tipos mais abrangentes. No
ponto em que o roteiro do homem-galantea-mulher apela para um ato de presentear, por
exemplo, o presente servirá igualmente bem se forem flores, perfumes, ou até mesmo uma
linha dourada infinita. Quaisquer desses presentes pode servir como um símbolo
apropriado ou emblema de um presente. A particularidade atinge seu estado emblemático
por sua incorporação em uma história que é, em algum sentido, genérica. E é exatamente
em virtude dessa incorporação genérica que os pormenores da narrativa podem ser
substituídos quando estiverem perdendo seu poder explicativo. A “sugestividade” de uma
história, quanto à natureza emblemática de suas particularidades, é falsa, então, quanto à
sua relevância para um tipo narrativo mais inclusivo. Por causa disso, uma narrativa não
pode ser entendida por meio de uma incorporação particular.
3. Vínculos de estados intencionais. Narrativas são sobre pessoas que agem em um cenário,
e os acontecimentos devem ser pertinentes a seus estados intencionais enquanto estiverem
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atuando - com suas convicções, desejos, teorias, valores, e assim por diante. Quando
animais ou objetos inanimados são colocados como protagonistas de narrativas, eles devem
ser dotados de estados intencionais para a realização de seus objetivos, como a Little Red
Engine das histórias infantis. Eventos físicos têm papel em histórias afetando
principalmente os estados intencionais de seus protagonistas. O narrador só pode
concordar com Baudelaire que o primeiro passo de um artista é substituir o homem pela
natureza.
Mas os estados intencionais na narrativa nunca determinam completamente o curso
dos eventos, uma vez que uma personagem com um estado intencional particular poderia
fazer praticamente qualquer coisa. Em alguma medida, a intervenção está sempre presente
na narrativa, e essa intervenção pressupõe uma escolha, um elemento de “liberdade.” Se as
pessoas puderem predizer algo dos estados intencionais de uma personagem, será somente
um indicativo de como ela se sentirá ou como perceberá a situação. A conexão livre entre
os estados intencionais e a ação subseqüente é a razão por que explicações narrativas não
podem apresentar explicações causais. Em vez disso, elas apresentam a base para interpretar
por que uma personagem agiu dessa ou daquela maneira. A interpretação está relacionada
com as “razões” das coisas acontecerem e não com suas “causas”, um assunto para a que
voltaremos.
4. Composicionalidade Hermenêutica. Uma explicação preliminar é necessária. O termo
hermenêutica implica haver um texto ou algo semelhante por meio do qual alguém esteja
tentando expressar um significado e alguém esteja tentando extrair um significado. Isso,
por sua vez, implica uma diferença entre o que é expresso no texto e o que o texto poderia
significar, e implica também a ausência de uma solução única para a tarefa de determinar o
significado para a expressão. Tal interpretação hermenêutica é requerida quando não há
nenhum método racional de assegurar a “verdade” de um significado atribuído ao texto
como um todo, nem um método empírico para determinar a confiabilidade dos elementos
constituintes do texto. De fato, a melhor esperança de análise hermenêutica é apresentar
uma explicação intuitivamente convincente do significado do texto como um todo, à luz de
suas partes constituintes. Isso leva ao dilema do chamado círculo hermenêutico – no qual
nós tentamos justificar a “justeza” de uma leitura de um texto em termos de outras leituras,
e não por dedução racional ou prova empírica. O meio mais concreto para explicar esse
dilema ou “círculo” é pela referência às relações entre os significados atribuídos ao texto
como um todo (a história) e às suas partes constituintes. Como o Charles Taylor propôs,
“nós tentamos estabelecer uma leitura de um texto completo, e para isto nós nos voltamos
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à leitura de suas expressões parciais; e ainda porque lidamos com significados, com o
senso-comum, em que expressões fazem sentido, ou não, somente na relação de umas com
as outras, a leitura dessas expressões parciais depende das outras leituras e no, final das
contas, do todo”. 12
Provavelmente não se ilustra isso melhor do que numa narrativa. As explicações dos
protagonistas e dos eventos que constituem uma narrativa são moldadas em termos de uma
história ou de um enredo hipotético que “contém” todos esse itens. Ao mesmo tempo, o
“todo” (a história hipotética mentalmente representada) depende em sua formação de uma
provisão de partes componentes possíveis. Neste sentido, como já notamos, partes e todo
em uma narrativa se apóiam um no outro para sua viabilidade.13 Nos termos de Vladímir
Propp, as partes de uma narrativa servem como “funções” da estrutura narrativa como um
todo.14 Mas o todo não pode ser construído sem referência às partes apropriadas. Essa
interdependência textual parte-todo na narrativa é uma ilustração da propriedade definidora
do círculo hermenêutico, pois, uma história poderá realizar-se somente quando suas partes
e o seu todo forem feitos para estarem juntos.
Essa propriedade hermenêutica marca a narrativa tanto em sua construção quanto em
sua compreensão, pois narrativas não existem em nenhum mundo real, esperando paciente
e eternamente serem refletidas veridicamente em um texto. O ato de construir uma
narrativa, além disso, é muito mais do que “selecionar” eventos da vida real, da memória ou
da fantasia, colocando-os em uma ordem adequada. Os próprios eventos precisam se
constituir, à luz da narrativa inteira – nos termos de Propp, para se tornarem “funções” da
história. Esta é uma questão à qual voltaremos posteriormente.
Voltemos à “composicionalidade hermenêutica.” Contar uma história e compreendê-la
como uma história dependem da capacidade humana para processar conhecimento dessa
maneira interpretativa. Trata-se de um modo de processar que foi, em grande parte,
grosseiramente negligenciado por estudiosos da mente quer seja de tradição racionalista ou
quer empiricista. Os primeiros têm relacionado a mente com um instrumento de raciocínio,
com os meios que nós empregamos para estabelecer a verdade necessariamente inerente de
um jogo de proposições conectadas. Piaget foi um exemplo notável dessa tradição
racionalista. Os empiricistas, por sua vez, apóiam suas convicções em uma mente capaz de
verificar as “proposições atômicas” que constituem um texto. Mas nenhum desses
procedimentos, raciocínio ou verificação, são suficientes para explicar como uma narrativa
é montada por um falante ou interpretada por um ouvinte. Isso é mais surpreendente,
ainda, por que há evidências fortíssimas indicando que a compreensão de narrativas é uma
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das habilidade mais precoces que aparecem nas crianças e é a forma de organizar a
experiência humana mais largamente utilizada. 15
Muitos teóricos literários e filósofos da mente propuseram que nosso ato de interpretar
desse modo forjou-se somente quando um texto do mundo ao qual ele presume referir
está, de algum modo, “confuso, incompleto, nebuloso”.16 Indubitavelmente nós estamos
mais atentos a nossos esforços interpretativos quando enfrentamos ambigüidades textuais
ou referenciais. Mas eu entenderia que há uma exceção forte à idéia geral de que a
interpretação só se forja em nós quando haja excesso de ambigüidade. A ilusão criada por
uma narrativa bem feita, que não é esse caso, de que uma história “é como é” e não precisa
de nenhuma interpretação, é produzida por meio de dois processos bastante diferentes. O
primeiro deveria provavelmente ser chamado “sedução narrativa”. Grandes contadores de
histórias têm mecanismos de realidade narrativa tão bons que suas narrações eliminam logo
de início a possibilidade de não haver senão uma única interpretação – por mais estranha
que possa ser. O famoso episódio de uma invasão marciana na radiodifusão de Orson
Welles de The War of the Worlds dá um forte exemplo17. Sua exploração brilhante dos
mecanismos do texto, contexto e mis-en-cene predispôs seus ouvintes a uma única
interpretação, apesar de ela parecer bizarra de ponto de vista atual. Ele criou uma
“necessidade narrativa”, um assunto que nós entendemos menos bem do que sua
contraparte lógica, a necessidade lógica. A outra maneira para fazer uma história parecer
evidente por si só e não necessitar de interpretação é a “banalização narrativa.” Quer dizer,
nós podemos tomar uma narrativa como tão socialmente convencional, tão bem
conhecida, tão bem de acordo com a forma canônica, que lhe atribuímos uma muito bem
treinada e virtualmente automática rotina de interpretação. Essas narrativas constituem o
que Roland Barthes chamou de textos de “leitores”, em contraste com os de “escritores”
que desafiam o ouvinte ou leitor a uma atividade de interpretação não-ensaiada.18
Resumindo, então, não é ambigüidade textual ou referencial que impõe a atividade
interpretativa na compreensão da narrativa, mas a narrativa por ela mesma. A sedução
narrativa ou a banalização narrativa podem produzir uma atividade interpretativa restrita ou
rotineira, mas isso não altera o ponto. A leitura interpretativa da história ou de construções
de partes da história podem ser alteradas por instruções surpreendentemente pequenas.19 E
num momento, um ouvinte suspeita dos “fatos” de uma história ou dos motivos ulteriores
de um narrador, tornando-se de imediato hermeneuticamente alerta. Se eu puder usar uma
metáfora grosseira, interpretações automatizadas de narrativas são comparáveis aos estados
iniciais padronizados (default) de um computador: um modo econômico, um meio que
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facilita a relação tempo e esforço para negociar com o conhecimento – ou, como foi
chamado, uma forma “desmentalizada” (mind-lessness).20
A interpretação tem uma longa história na exegese bíblica e na jurisprudência. Ela é
salpicada com problemas que ficarão mais familiares brevemente, problemas que têm a ver
mais com o contexto do que com o texto, mais com as condições do contar do que com o
que é contado. Deixe-me rotular melhor dois deles para identificá-los na discussão
subseqüente: o primeiro refere-se à intenção: “por que” a história é contada, como e quando
é contada, e interpretada como tal por interlocutores associados a posições intencionais
diferentes. Narrativas não são, para usar a frase feliz de Roy Harris, “textos sem
patrocinadores” para serem tomadas como se não existisse intencionalidade, como se
fossem lançadas por sorte em uma página impressa.21 Mesmo quando o leitor as toma mais
a maneira de declamação, ele normalmente atribui (a convenção seguinte) como se fosse
emanada de um narrador onisciente. Mas esta condição não é negligenciada por parecer
desinteressante. Ela deriva de um jogo de condições sociais que dão estatuto especial à
palavra escrita em uma sociedade onde alfabetização é uma prerrogativa minoritária.
Um segundo aspecto referente ao contexto é a questão do conhecimento partilhado – tanto
do contador de histórias quanto do ouvinte, e como cada interpreta o conhecimento
partilhado do outro. O filósofo Hilary Putnam, em um contexto bastante diferente, propõe
dois princípios: o primeiro é o “Princípio do Benefício de Dúvida”, o segundo o “Princípio
da Ignorância Razoável”: o primeiro nos “proíbe de assumir que... os peritos são de fato
oniscientes” e o segundo que “qualquer falante é filosoficamente onisciente (ainda que
inconscientemente).”22 Nós julgamos que suas explicações sejam adequadas. No outro
extremo, nós somos condescendentes com a ignorância e perdoamos as crianças e os
neófitos de seu conhecimento incompleto, “suplementando-os” conforme seja necessário.
Dan Sperber e Dierdre Wilson, em sua famosa discussão sobre “relevância”, argumentaram
que no diálogo nós normalmente pressupomos que o que o interlocutor nos está
respondendo é tópico-pertinente, e nós freqüentemente adequamos uma interpretação para
torná-lo pertinente, facilitando nossa tarefa para entender outras mentes.23 Nós também
aceitamos, de fato nós institucionalizamos situações nas quais isso seja tomado como
verdade, que o “registro de conhecimento” em que uma história é contada é diferente
daquele no qual é aprendido, como quando o cliente conta sua história para o advogado em
“conversa de vida” e é escutado na “forma de lei” de maneira que o advogado pode
aconselhar sobre a legalidade (mais do que sobre a vida). O analista e o analisado em
terapia são comparáveis ao advogado e o cliente numa consulta legal.24
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— de Hayden White e Victor Turner até Paul Ricoeur — a propor que a narrativa está
centradamente preocupada com a legitimidade cultural.35 Uma nova geração de acadêmicos,
não surpreendentemente, começou a explorar as normas implícitas inerentes ao
testemunho legal, cuja forma é principalmente narrativa.36
Enquanto todos, desde Aristóteles até aos chamados gramáticos narrativos, concordam
que uma história gira em torno de uma violação de legitimidade, as diferenças de como a
noção de violação é concebida revela ela própria diferentes ênfases culturais. Leve-se em
conta a célebre explicação de Kenneth Burke do “quinteto” dramático.37 O quinteto
consiste em um Agente, um Ato, uma Cena, um Propósito e uma Função, o equilíbrio
apropriado entre estes elementos define-se por uma “razão” * determinada por convenção
cultural. Quando esta “razão” fica desequilibrada, quando a expectativa convencional é
quebrada, problemas acontecem. E são os problemas que provêem o engenho do drama;
problemas como um desequilíbrio entre um e os demais elementos do quinteto: por
exemplo, Nora em A Doll’s House é um Agente rebelde em uma Cena inapropriadamente
burguesa, e assim em diante. Eventos precipitadores são emblemas do desequilíbrio. A
ênfase principal de Burke está em situações, fábulas. Está ontologicamente relacionada com
o mundo cultural e seus arranjos, com as normas tais como elas “existem”.
Na segunda metade do século vinte, como o aparato de ceticismo chega não só a ser
aplicado para duvidar da legitimidade de realidades sociais herdadas mas também para
questionar os verdadeiros modos pelos quais nós apreendemos ou construímos a realidade,
o programa normativo da narrativa (literário e popular) mudou. O “problema” se tornou
epistêmico: Julian Barnes escreveu uma narrativa atordoante no episteme do
perspectivismo de Flaubert, Flaubert’s Parrot, ou Italo Calvino produziu um romance,
Winter’s Night a Traveller, no qual o assunto é o que é texto e o contexto; e as teorias da
poética mudam da mesma maneira. Elas, também, fazem uma “volta epistêmica”. E assim
Todorov viu a poética da narrativa como um fato existente na própria língua, confiando
que o uso das transformações lingüísticas dará conta de todas as ações humanas mais
subjetivas, menos certas, e, sobretudo, sujeitas à dúvida sobre sua construção. Não é
simplesmente que o “texto” se torne dominante, mas que o mundo ao qual ele
hipoteticamente se refere é sua criação.38
A normatividade, em resumo, não é histórica ou culturalmente terminal. Sua forma
muda com as preocupações do momento e das circunstâncias que cercam sua produção.
Nem se requer da narrativa, a propósito, que os problemas com que lida sejam
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solucionados. A narrativa, eu acredito, é projetada mais para conter esquisitices do que para
solucioná-las. Não tem que “dar certo”. O que Frank Kermode chama de “enredo
consolador” não é o conforto de um final feliz mas a compreensão de situações que, ao se
tornarem interpretáveis, tornam-se suportáveis.39
9. Sensibilidade de contexto e negociabilidade. Este é um tópico cujas complexidades nós já
observamos nas discussões anteriores de “composicionabilidade hermêneutica” e na de
“interpretabilidade de narrativa”. Ao se considerar o contexto, os assuntos familiares de
intenção narrativa e de conhecimento partilhado surgem novamente. Em relação ao
primeiro, muito de teoria literária abandonou o Coleridge’s dictum de que o leitor deveria
suspender suas descrenças e estar nu diante do texto. Hoje nós teorizamos a resposta do
leitor com livros intitulados O Leitor no Texto.40 Certamente, a visão predominante é a de
que a noção de suspender totalmente as descrenças é muito mais uma idealização do leitor
e, na pior das hipóteses, uma distorção do que o processo de compreensão da narrativa
envolve. Inevitavelmente, nós assimilamos a narrativa em nossos próprios termos, (pela
explicação de Wolfgang Iser) nós tratamos a ocasião de um recital narrativo como um ato
de fala especializada.41 Nós inevitavelmente levamos em conta as intenções do narrador e
fazemos assim em termos de nosso conhecimento partilhado (e, realmente, à luz de nossas
pressuposições sobre o conhecimento partilhado do narrador).
Eu tenho um forte pressentimento, que pode a princípio parecer countraintuitivo, de
que é essa mesma sensibilidade de contexto que faz o discurso narrativo na vida cotidiana
ser um instrumento viável para negociação cultural. Você conta sua versão, eu conto a
minha, e nós raramente precisamos de confrontação legal para resolver a diferença.
Princípios de caridade e presunções de relevância são enormemente equilibrados contra
princípios de ignorância suficiente e dúvida suficiente em um grau que não se esperaria
onde critérios de consistência e de verificação prevaleceriam. Nós parecemos ser hábeis
para tomar versões diferentes de uma história com um certo cuidado, muito mais do que
no caso de argumentos ou provas. O livro notável de Judy Dunn sobre o início da
compreensão social em crianças mostra claramente que esse tipo de negociação de
diferentes versões de narrativas começa cedo e é profundamente incorporado em ações
sociais práticas como o oferecimento de desculpas, e não somente em narrações por si
mesmas.42 Eu penso que é precisamente esta interação de perspectivas atingindo a “verdade
narrativa” que levou os filósofos como Richard Rorty a abandonar o ponto de vista
verificacionista da verdade em favor do pragmático.43 Nem surpreende que os
antropólogos tenham se distanciado de descrições culturais positivistas de culturas na
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direção de descrições interpretativas nas quais não se buscam categorias objetivas mas
“significados”, não significados impostos ex hypothesi por um estranho, o antropólogo, mas
os que chegam a partir dos próprios participantes indígenas imersos em seus próprios
processos culturais de negociação de sentidos.44
Nesse ponto de vista, é a dependência do contexto da explicação narrativa que permite
a negociação cultural que, quando bem sucedida, torna possível a coerência e
interdependência que uma cultura pode alcançar.
10. Acréscimo narrativo. Como nós remendamos histórias juntas para torná-las um todo
de algum tipo? Ciências alcançam o seu acréscimo por meio da derivação de princípios
gerais, relacionando resultados particulares a paradigmas centrais, expressando resultados
empíricos de forma a agrupá-los sob paradigmas alterados, e por outros incontáveis
procedimentos para fazer ciência, como se costuma dizer, “cumulativa.” Isto é facilitado
imensamente por procedimentos para assegurar a verificação, entretanto, como nós
sabemos, critérios de verificação têm aplicabilidade limitada quando estados intencionais
humanos estão relacionados, o que deixa a psicologia muito marginal.
O acréscimo narrativo não é fundamental no sentido científico. As narrativas fazem
acréscimos e, como insistem os antropólogos, os acréscimos eventualmente criam algo
bastante variado chamado “cultura” ou “história” ou, mais livremente, “tradição”. Mesmo
nossas próprias explicações caseiras dos acontecimentos de nossas vidas convertem-se em
autobiografias mais ou menos coerentes centradas em um Ego que age intencionalmente
em um mundo social.45 Famílias criam, similarmente, um corpus de histórias conectadas e
compartilhadas; os estudos de Elinor Ochs, em desenvolvimento, sobre a conversa familiar
da mesa-de-jantar começa a trazer luz para isso46. Instituições, como nós sabemos a partir
do trabalho inovador de Eric Hobsbawm, também “inventam” tradições além daquelas
relativas aos acontecimentos ordinariamente estabelecidos e então recebem status
privilegiado.47 E há os princípios de jurisprudência que, como stare decisis, garantem uma
tradição assegurando que uma vez que um “caso” foi interpretado de uma maneira
específica, casos futuros que são “semelhantes” serão interpretados serão decididos da
mesma maneira. À medida que a lei insiste em tal acréscimo de casos como “precedentes”,
e à medida que “casos” são narrativas, o sistema legal impõe um processo ordenado de
acréscimo narrativo.
Surpreendentemente, tem havido pouco trabalho sendo feito neste assunto fascinante,
embora haja estímulos entre antropólogos (influenciados principalmente por Clifford
Geertz) e entre historiadores (estimulados pela inauguração de Michel Foucault na
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narrativas: meninos holandeses com dedos no dique, Colombo catequizando índios, a lista
das honras da Rainha, a eurofilia que advém de Charlemagne.
O que cria uma cultura, seguramente, deve ser uma capacidade “local” de acrescentar
histórias de acontecimentos do passado a algum tipo de estrutura diacrônica que permita
uma continuidade até o presente – em resumo, construir uma história, uma tradição, um
sistema legal, instrumentos que asseguram continuidade histórica senão legitimidade. Eu
gostaria de terminar minha lista de propriedades narrativas neste ponto bastante “óbvio”
por uma razão particular. A construção e a reconstrução perpétuas do passado provêem as
formas de canonicidade que nos permitem reconhecer precisamente quando uma violação
aconteceu e como poderia ser interpretada. O filósofo W. T. Stace propôs, duas gerações
filosóficas atrás, que o único recurso que nós temos contra o solipsismo (a visão
inexpugnável que discute que nós não podemos provar a existência de um mundo real, uma
vez que tudo o que nós podemos saber é nossa própria experiência) é que as mentes
humanas são semelhantes e que, o mais importante, “trabalham juntas”.50 Uma das
principais maneiras pelas quais nós trabalhamos “mentalmente” em conjunto, eu gostaria
de discutir, é pelo processo de acréscimo em narrativas comuns. Até mesmo nossas
autobiografias, como eu discuti em outro lugar, depende de estarem colocadas em uma
continuidade provida por uma história social construída e compartilhada, na qual nós
localizamos nossos egos e nossas continuidades individuais.51 É este sentido de pertencer a
este passado canônico que nos permite formar nossas próprias narrativas divergentes
apesar de manter cumplicidade com o cânone. Talvez Stace estivesse muito preocupado
com a metafísica quando ele invocou esse processo como uma defesa contra o solipsismo.
Provavelmente, nós diríamos hoje que isso deve ser uma formação profilática contra a
alienação.
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humana não pode expressar seus poderes inatos sem a habilitação dos sistemas simbólicos
de cultura. Enquanto muitos desses sistemas são relativamente autônomos em uma cultura
determinada – as habilidades de chamanismo, de comércio especializado, e o outros
semelhantes – alguns se relacionam a domínios de habilidade que devem ser
compartilhados por virtualmente todos membros de uma cultura, se a cultura for ser
efetiva. A divisão do trabalho em uma sociedade vai muito longe. Todos em uma cultura
devem em alguma medida, por exemplo, ser hábeis para entrar na troca da comunidade
lingüística, e até mesmo aceitar que esta comunidade possa ser dividida em idioletos e
registros. Outro domínio que deve ser amplamente compartilhado (apesar de desagradável)
em uma cultura para atuar com a efetividade requerida é o domínio de convicções sociais e
de seus procedimentos — o que nós pensamos que as pessoas são e como eles têm que
relacionar-se mutuamente, isso que alhures eu chamei de folk psychology e o que Harold
Garfinkel chamou ethnosociology.52 Estes são domínios que são, principalmente,
narrativamente organizados.
O que eu tentei fazer neste artigo foi descrever algumas das propriedades de um
mundo de “realidade” construído de acordo com princípios narrativos. Fazendo assim, eu
fui de um lado para outro entre descrever “poderes” mentais narrativos e os sistemas
simbólicos do discurso narrativo que torna possível a expressão destes poderes. É só um
começo. Meu objetivo somente foi dispor o plano de base de realidades narrativas. A tarefa
intimidadora que permanece agora é mostrar em detalhes como, com exemplos
particulares, a narrativa organiza a estrutura da experiência humana — como, em resumo,
“a vida imita a arte” e vice-versa.
References
1. Veja Thinking and Learning Skills, ed. Judith W. Segal, Susan K Chipman, and Robert Glaser (Hillsdale, N. J.,
1985).
2. Veja Howard Gardner, Frames of Mind: The Theory of Multiple Intelligence (New York, 1983).
3. Veja o livro a ser publicado por Michael Cole sobre mente e cultura; L. S. Vygotsky, Thought and Language,
trad. e org. Eugenia Hanfmann and Gertrude Vakar (Cambridge, Mass., 1962), e Mind in Society: The
Development of Higher Psychological Processes, ed. Cole (Cambridge, Mass., 1978); and Cultural Psychology: Essays
on Comparative Human Development, ed. James W. Stigler, Richard A. Shweder, and Gilbert Herdt (Chicago,
1989).
4. Veja John Seely Brown, Allan Collins, and Paul Duguid, “Situated Cognition and the Culture of Learning,”
Educational Researcher 18 (Jan.-Feb. 1989): 32-42.
5. Veja Thomas Gladwin, East Is a Big Bird (Cambridge, Mass. 1970); Renato Rosaldo, Culture and Truth: The
Remaking of Social Analysis (Boston, 1989); Clifford Geertz, Local Knowledge; Further Essays in Interpreting
Anthropology (New York, 1983); and Jerome Bruner, Acts of Meaning (Cambridge, Mass., 1990).
6. Veja E. E. Jones, Interpersonal Perception (New York, 1990).
7. Para uma explicação mais completa e mais discursiva sobre a natureza e o produto do pensamento
narrativo vejo o meu livro Actual Minds, Possible Worlds (Cambridge, Mass., 1986), and Acts of Meaning. See
also Theodore R. Sarbin, Narrative Psychology: The Storied Nature of Human Conduct (New York, 1986).
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