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(Bleicher Sasaki, 2000) - Introdução À Difração PDF
(Bleicher Sasaki, 2000) - Introdução À Difração PDF
INTRODUÇÃO À DIFRAÇÃO
DE RAIOS-X EM CRISTAIS
Lucas Bleicher
José Marcos Sasaki
Setembro de 2000
1
Introdução
Quando se fala em raios-x, a pri- boa parte dele envolve apenas aspectos
meira aplicação que vem à mente da mai- geométricos simples.
oria das pessoas é a radiografia, processo Após um histórico traçado desde a
que usa os raios-x para visualizar o inte- descoberta dos raios-x por Röntgen, será
rior de objetos (ou de pessoas) ao coloca- explicada a produção de raios-x, o fenô-
los entre uma fonte de raios-x e uma meno da difração, e como esse fenômeno
chapa fotográfica. De fato, essa é a mais se relaciona com planos de um cristal.
comum das aplicações desse tipo de radi- Falaremos mais de cristais na seção se-
ação e a primeira a ser utilizada desde a guinte e na próxima, onde o leitor terá
descoberta desses raios. Porém, devido ao contato com a geometria utilizada em
fenômeno da difração de raios-x, é possí- cristalografia. E finalmente, na seção
vel estudar materiais a nível atômico, mais avançada do material, irá se mostrar
descobrindo e estudando sua estrutura. o cálculo de intensidade de picos de di-
Ao se estudar Química e Física no fração (até lá o leitor já estará a par do
segundo grau, é comum que se estranhe significado de intensidade de picos de
como é possível estudar e determinar mo- difração).
delos para coisas tão pequenas que ne- Este material foi escrito em um
nhum tipo de microscópio pode visuali- nível que pode ser acompanhado por
zar. Isso se deve ao fato de que, ao longo qualquer aluno de graduação. A intenção
dos anos, várias técnicas foram surgindo inicial foi justamente fornecer um mate-
para “observar indiretamente” tais entes, rial que servisse como primeiro contato
e entre essas técnicas se enquadram a com a difração de raios-x para potenciais
difração de raios-x, os diferentes tipos de alunos de iniciação científica nessa área.
espectroscopia, etc.
No presente material, direcionado Sugestões e críticas a esse mate-
a quem nunca travou contato com a difra- rial são aceitas e encorajadas. Os autores
ção de raios-x, pretendemos mostrar podem ser contactados através dos se-
como é possível obter dados de estruturas guintes endereços eletrônicos:
da ordem de ångstroms através dessa téc-
nica. E o leitor irá verificar que esse tipo bleicher@who.net (Lucas Bleicher)
de estudo não é difícil de entender, pois sasaki@fisica.ufc.br (José Marcos Sasaki)
2
Histórico
A descoberta dos Raios-X se deu a lico sobre o papel fluorescente, Röntgen
partir de experimentos com os “tubos passou a pensar na radiação como uma
catódicos”, equipamentos exaustivamen- forma de luz invisível.
te utilizados em experimentos no final do
século XIX que consistiam em um tubo
de vidro, ligado a uma bomba de vácuo,
onde era aplicada uma diferença de
potencial entre dois terminais opostos,
gerando uma corrente elétrica dentro do
tubo. No final do século XIX, foi estabe-
lecido que os raios provenientes do cá-
todo eram absorvidos pela matéria e que a
sua absorção era inversamente relacio-
nada com a voltagem de aceleração. E
mais: incidindo essa radiação em alguns
cristais, era provocada a emissão de luz
visível, chamada “fluorescência”. Em
Figura 1. Wilhelm Conrad Röntgen, físico que
1896, Thomson demonstrou que os raios primeiramente estudou os Raios-X.
provindos do cátodo eram compostos por
pequenas partículas carregadas negativa- Percebendo que se tratava de algo
mente, tendo massa aproximadamente novo, a radiação passou a ser estudada
igual a 1/1800 do menor átomo, o Hidro- exaustivamente por ele, e dessa forma
gênio. Essa partícula passou a ser cha- descobriu-se suas principais propriedades,
mada de elétron, e teve sua carga absoluta como a propagação em linha reta (daí
(1,601x1019C) medida por Robert Mi- formar sombras bem delimitadas), alta
likan em 1910. capacidade de penetração, indiferença à
O físico alemão Wilhelm Conrad campos magnéticos e capacidade de im-
Röntgen (Fig. 1) passou a estudar os pressionar chapas fotográficas. Tais pro-
chamados “raios catódicos” (nome utili- priedades ora aconteciam com a luz, ora
zado na época para designar o fluxo de com os “raios catódicos”. Tentativas de
elétrons gerado no tubo) em 1894, e no verificar reflexão, refração ou difração
ano seguinte começou a observar a radia- foram feitas, sem sucesso. Assim, Rön-
ção que chamaria de “Raios-X”, por sua tgen supôs que era algo diferente de todas
natureza desconhecida. Primeiramente, as radiações conhecidas, chegando a
Röntgen verificou que um papel pintado sugerir que fossem ondas eletromagné-
com platino-cianeto de bário na mesma ticas longitudinais.
mesa do tubo fluorescia mesmo estando o Após o estudo da radiação, Rön-
tubo completamente envolto em papelão tgen publicou um trabalho sobre a nova
preto. A radiação tinha então proprieda- radiação e enviou separatas do artigo para
des semelhantes à da luz, mas não era vários cientistas influentes da época,
possível que fosse esse tipo de radiação, acompanhada de algumas radiografias
já que o experimento havia sido feito com (Fig. 2).
o tubo blindado. Mas depois que o cien-
tista percebeu a sombra de um fio metá-
3
A Produção de Raios-X
λ = 2d senθ
θ
Essa equação é conhecida como a
Lei de Bragg. É importante frisar que ela
deve ser aplicada a nível atômico (como
mostrado acima), pois só assim ela poderá Figura 10. Interferência entre raios a nível
planar
ser novamente aplicada a nível de planos
cristalinos, como será mostrado a seguir. As linhas horizontais representam os pla-
É interessante também notar que, como é nos cristalinos, e as setas representam os
impossível saber que os elétrons do raios-x incidentes no cristal. Quando a
átomo estarão na conformação mostrada
condição λ = 2d senθ é obedecida, há um
na figura, determinar como um átomo irá
pico de intensidade, responsável pelos
difratar um feixe de raios-X é um pro-
pontos mais claros no padrão de Laue.
cesso probabilístico.
7
Geometria
Para simplificar a representação Quando temos um cristal hexago-
de planos cristalinos, utilizam-se três nal, o sistema de índices utilizados é dife-
índices, h, k e l (conhecidos como índices rente. A figura abaixo mostra a célula
de Miller) que correspondem ao inverso unitária de um cristal hexagonal:
do valor em que o plano corta os eixos A célula unitária do
convencionais. Para facilitar o cristal é delimitada pelos
entendimento, mostraremos a traços mais fortes. As
representação de dois planos que cortam outras duas partes do
um cristal cúbico no espaço real e seus prisma hexagonal cor-
respectivos índices de Miller: respondem à rotações da
No exemplo ao célula unitária.
lado, o plano corta Note que nesse caso há quatro ei-
o cristal seguindo a xos: a1, a2, a3 e c. Seus índices de Miller
diagonal das faces. são chamados h, k, i e l. É importante
Ele corta os eixos b observar que o vetor i é o simétrico da
e c em 1 e não corta soma dos vetores h e k (isto é, h + k = -i).
o eixo a. Vamos exemplificar a representação de
Logo, para calcular os índices de planos em um cristal hexagonal a seguir:
Miller dos planos, fazemos: Nesse primeiro exem-
h = 1/∞ = 0 plo, o plano corta o cris-
k = 1/1 = 1 tal verticalmente. Note
l = 1/1 = 1 que tanto para o eixo a1
Pode-se então chamar o plano de (011). como para o a3, o plano
corta o eixo em –1. Em
Já no caso ao lado, a2, o plano corta o eixo
o plano passa no em ½ .
eixo c em ½, cor- Assim, fazemos:
tando o cristal em h = 1/(-1) = -1
dois paralelepípe- k = 1/(½ ) = 2
dos iguais. i = - (h + k) = - (1) = -1
Temos então que: l = 1/∞ = 0 (o plano não corta o
h = 1/∞ = 0 eixo c)
k = 1/∞ = 0
l = 1/(½) = 2 O plano pode então ser represen-
Assim, podemos chamar este plano de tado por:
(002). (1 2 1 0)
A vantagem dessa representação (cuja
origem remonta ao século XVIII com
Abbé Haüy, e foi popularizada por W. H.
Miller no século seguinte) é que um plano
pode ser representado não utilizando uma
equação geométrica, mas apenas três
índices.
9
22 22 02 15000
+ +
5.640 2 5.640 2 5.640 2 10000
1 420
= 5000
111
222
422
4 4 0 400
+ + 0
311 331
= = 1.994 Å 2θ (graus)
8
Figura 12. Padrão de difração de pó
31.8096 (difratograma) do NaCl
Substituindo então o valor na lei
de Bragg, podemos encontrar o ângulo de Esse padrão de difração é único
Bragg (ângulo onde há um pico de inten- para cada tipo de cristal. Dessa forma, é
sidade devido à interferência construtiva possível descobrir a composição de mate-
das ondas espalhadas) relativo a esse riais através da difração de raios-x. Esse
plano: processo é chamado caracterização.
λ = 2d hkl sen θ Tendo conhecimento da geometria
1.54 = 2(1.994) sen θ utilizada na cristalografia, iremos intro-
duzir o conceito das 14 redes de Bravais.
1.54
sen θ = = 0.386
3.988
θ = 22.7 o
As 14 Redes de Bravais
Em 1848, o cristalógrafo francês A. Bravais mostrou que na natureza só há 14
redes cristalinas encontradas, redes essas que levam hoje seu nome e estão mostradas nas
figuras abaixo:
Sabe-se que cristais podem ter estruturas das mais diversas, e nem sempre as
posições atômicas em suas células unitárias irá coincidir com as posições dos pontos das
redes de Bravais. Como fazer então para definir qual a rede de Bravais a qual pertence
um cristal? Para isso, vamos definir três tipos de translação:
Corpo-centrado: 0 0 0, ½ ½ ½
Face-centrada: 0 0 0, 0 ½ ½, ½ 0 ½, ½ ½ 0
Base-centrada: 0 0 0, ½ ½ 0
Essas três translações estão exemplificadas na figura mostrada a seguir.
12
Cálculo da Intensidade
Analisando o padrão de difração Isto é, deve-se calcular o somatório para
do policristal de NaCl (NaCl na forma de todos os N átomos na célula unitária. A
pó), mostrado na figura 12, verificamos razão de F ser um número complexo
que os picos referentes a planos diferentes (observe o i no expoente de e) é que ele
têm intensidades diferentes. Se expressa tanto a amplitude quanto a fase
construíssemos o padrão de difração da onda.
usando apenas aspectos geométricos (lei Calcularemos aqui o fator de es-
de Bragg), seria esperado que, como em trutura para o cristal de NaCl quando te-
todos os picos há interferência constru- mos reflexão no plano 002 (exemplo feito
tiva, eles deveriam ter a mesma intensi- anteriormente, que, usando a lei de Bragg,
dade. Porém, há vários aspectos físicos implicou no ângulo 22.7).
que interferem na intensidade. O primeiro O valor tabelado para o fator de
a ser considerado é o fator de espalha- espalhamento atômico para Na e Cl na
mento atômico (f). Tal valor indica o reflexão 220 são 7.618 e 10.632, respecti-
quanto um átomo pode espalhar a um vamente, para senθ/λ=0.25Å-1. Temos
dado ângulo e um certo comprimento de então:
onda (geralmente os valores tabelados são N
dados para valores de senθ/λ), sendo F220 = f n e2πi( 2un +2vn +0wn )
n=1
expressado como o quociente entre a
amplitude da onda espalhada por um [
= 4 ⋅ 7.618⋅ e 2πi(2⋅0+2⋅0+0⋅0) + 10.632⋅ e 2πi(2⋅0.5+2⋅0.5+0⋅0.5) ]
átomo sobre a amplitude da onda = 4 ⋅ [7.618⋅ e 0
+ 10.632⋅ e4πi ]
espalhada por um elétron. Há diversas
formas de calcular o fator de = 4 ⋅ [7.618+ 10.632]
espalhamento atômico. É possível encon- = 73
trar uma excelente aproximação para fato-
res de espalhamento atômico para átomos Agora devemos definir o fator de
neutros de número atômico 1 a 54 na in- multiplicidade. Há planos que, por terem
ternet, através do seguinte endereço: a mesma distância interplanar, difratam
http://wings.buffalo.edu/~chem9982/fit.html no mesmo pico. É o caso, por exemplo,
Trata-se do resultado do artigo de Z. Su e dos planos 100, 010 ou 001 numa célula
P. Coppens, citado na bibliografia dessa cúbica. Somando-se a esses três os planos
apostila. O próximo passo é calcular o com –1 ao invés de um, temos 6 planos
fator de estrutura do cristal. Assim como contribuindo para a mesma reflexão, im-
o fator de espalhamento atômico, o fator plicando em um fator de multiplicidade 6.
de estrutura é um quociente de duas O apêndice do presente material contém
amplitudes, no caso, a amplitude da onda uma tabela com os diferentes fatores de
espalhada por todos os átomos da célula multiplicidade para cada caso.
unitária e a amplitude da onda espalhada Para chegar na expressão da inten-
por um elétron. Para calcular o fator de sidade, precisamos ainda de mais três
estrutura, F, usamos a seguinte equação fatores de correção. Os dois primeiros se
N 2πi ( hu n + kvn + lwn ) referem a fatores geométricos que afetam
Fhkl = f ne :
a intensidade difratada: são o fator de
n =1 Lorentz e o fator de polarização.
14
Exemplos
Nesta seção, analisaremos alguns difratogramas e suas particularidades. Abaixo,
vemos o padrão de difração do quartzo e do NaCl na forma de policristal (amostra na
forma de pó):
4000
25000
3500
Quartzo 15000
2000
1500
10000
1000
5000
500
0
0
-500
20 30 40 50 60 70 80 20 40 60 80
2θ 2θ
Quando analisamos uma amostra, é comum que ela seja formada por uma mistura
de diferentes materiais. Abaixo, vemos o resultado de uma medida que contenha uma
mistura de NaCl e Quartzo:
Prestando atenção na
25000 figura, vemos que o difratograma
ao lado é uma superposição dos
20000
dois padrões de difração
Quartzo + NaCl mostrados acima. Dessa forma,
Intensidade (u. a.)
15000
para descobrir que materiais
formam uma determinada amostra
(caracterizá-la), devemos testar
10000
simulações de diferentes materiais
até obtermos um padrão de
5000 difração que coincida com o da
amostra na posição e intensidade
0 dos picos. Esse trabalho é feito
utilizando programas de
20 30 40 50 60 70 80
computador como o DBWS e o
2θ FULLPROF.
17
x
1-x
Al Ga As (200A)
1-x
de semicondutores. Esse x
10 periodos
1E-5
material consiste em ca- substrato GaAs
reflexão (004)
Log (I)(a.u.)
sobrepostas de forma peri- 1E-7
-1500 -1000 -500 0 500 1000 1500
ódica. Esses materiais são
importantes devido às suas 1000
propriedades ópticas, Experimental
sendo utilizados em diver-
sos dispositivos eletrôni- 100
cos. Devido à espessura
muito pequena das
camadas de semiconduto- 10
-1500 -1000 -500 0 500 1000 1500
res (da ordem de angs-
∆theta (sec)
troms), é necessário um
controle rigoroso em sua
produção.
A difração de raios-x de alta resolução (note que o difratograma está em segundos
e não em graus) é utilizada nesse controle. Através dela é possível estudar tensões
mecânicas e deformações microscópicas durante o processo de crescimento.
O próximo exemplo é de um cristal onde se fez implantação iônica. Nesse
processo, íons são acelerados de forma a bombardear um cristal. De acordo com os
desvios de trajetória que ocorrem dentro do alvo, eles ficam implantados a diversas
profundidades (e em diversas concentrações) no cristal.
(004)GaAs CuKα1
No gráfico ao lado, é
200keV Zn
+
mostrado o padrão de difração
13
Dose=1.7x10 cm
-2
de um cristal de GaAs onde
0.6 foram bombardeados íons de
0.5
zinco. No gráfico menor,
vemos a variação de tensão
em função da profundidade.
Intensidade (u. a.)
0.4
Tensão (%)
Apêndice
Bibliografia
Artigos
Introdução Histórica:
MARTINS, R. A. A Descoberta dos Raios X: O primeiro comunicado de Röntgen. Revista Brasileira de
Ensino de Física. 20, 373-391 (1998)
TAUPIN, D. Theorie Dynamique de la Diffraction des Rayons X par les Cristaux Deformes. Bulletin de la
Societe Francaise Mineralogie et de Cristallographie. 87, 469-511 (1964)
Livros
AZÁROFF, L. V. “Elements of X-Ray Crystallography”. McGraw-Hill Book Company, Inc. (1968)
Os primeiros dois livros citados são recomendados como literatura básica. Através
da página do Laboratório de Difração de Raios-x da Universidade Federal do Ceará, ao
qual os autores estão vinculados, é possível obter atualizações dessa apostila e softwares
relacionados à difração de raios-x. O endereço da página está mostrado abaixo:
http://www.fisica.ufc.br/raiosx/LBRX.html
(seção download)
http://www.iucr.org