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Destas três constelações de lég-ein nos vários níveis da experiência

criadora vive e se realiza a poética. Dela poderemos colher, seguindo a


experiência originária dos gregos, quatro determinações essenciais para
o desempenho criador do poético em todos os exercícios de invenção e
descoberta da verdade do real:
I') lég-ein vive em toda força de reunião como a conjuntura de
integração. É a conjugação ontológica de ser e pensar em tudo que, de
alguma maneira, é e se realiza;
2') pertencem a tég-ein coesão e consistência de estruturação; O DESAPRENDIZADO DO SÍMBOLO
3') lég-ein diz sempre a realidade que impera na totalidade do real e (A POÉTICA DO VER IMEDIATO)
no universo das criações;
4') a Linguagem é a operação primordial nas línguas e nos discursos Gilvan Fogel
deste légein inaugural que instala ordem e coesão no mundo.

Sob ete título, far-se-ão algumas considerações sobre um aspecto,


a nosso ver decisivo, da poesia de Alberto Caeiro, um dos heterônimos
de Fernando Pessoa. Trata-se da fala, ou melhor, da experiência de
ver i-mediatamente ou do poder ver superfície. Trata-se, pois, de
caracterizar uma compreensão de realidade mareada pela expe-
riência de aparecer, isto é, de ser como aparecer. Decisiva será a
compreensão/determinação de aparecer ou mostrar-se como super-
fície —a linha limiar da consangüinidade do raso e do profundo. Na
evidência dessa linha ou na força condutora dessa experiência, revela-
se que "as coisas não têm significação: têm existência" 223l'. "Exis-
tência", aqui, diz a presença, que é a imposição da hora ser-aparecer
—pura superfície ou presença entornada, sem ser nenhuma
"expressão", "imagem" ou "símbolo". Ver isso, ser nisso, dizer isso
e, assim, cultivar a poética (o dizer arcaico ou imediato) como insistente
desaprendizado do símbolo —este é, para nós, o espírito, ou seja, a
vida, a força do dizer poético de Alberto Caeiro.
Com estas poucas linhas, sintetizamos uma "tese". Agora,
tentaremos brevemente traçar uma linha de demonstração desta
"tese". "Demonstrar" quer dizer: a partir do fenômeno em questão,
a saber, a partir da poesia de Caeiro, mostrar o que cabe mostrar,
isto é, a sua própria poética do ver superfície ou do tão-só "apreciar
presença" [232]. Ver superfície ou, como diz ainda Caeiro, "pensar
como sentir". Para tanto, vamos ler e tentar comentar alguns versos
de Caeiro e, assim, embarcar, entrar nessa viagem, que é o ver, o
sentir, o pensar.

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1. E esta viagem precisa ser a insistente caminhada do aprendér a seja, singularizar-se, fazer-se um e só. Aprender a desaprender é igual e
desaprender! simultaneamente aprender a ser só, é exercício de encaminhamento da
solidão para a solidão —
O que nós vemos das coisas são as coisas. o l u g a r e
Vivo no cimo dum outeiro
a Numa casa caiada e sozinha,
O essencial é saber ver
h o r E essa a é a minha definição. 12201
Saber ver sem estar a pensar
d o
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),' v Mas, e como r retirar-se,
. como ensozinhar-se co mo desaprender?! Não
Isso exige um estudo profitndo, é
Dtornar-se i ou fazer-se
z só no sentido da introspecção, da mórbida
Uma aprendizagem de desaprender 1217.1 ointeriorização no recolhimento na miudeza de um eu. Isso seria doença,
pa grande doença e dos olhos, que sempre já estão na(s) coisa(s) — no
Aprender a desaprender! É, subdiz o poeta, despir a a ln ‘. A alma outro, ona transcendênc ia. Fazer-se só, realizar solidão e assim
que, "infelizmente", trazemos vestida. Na verdade, vestida demais; por tdesaprender
a :o vulgar e o habitual, é atender à exigência, ao imperativo
isso o infelizmente. Este demais se refere ao uso abusado dos "sentidos", vital de fazer o próprio caminho, ou seja, cumprir-se a exigência de
quer dizer, dos valores, das interpretações, das significações, enfim, da andar e ver, isto é, ser, só poder ser desde e como caminho, viagem,
história, da cultura, criando assim uni calo. O calo é o hábito—o hábito e x p e r i ê n c i a . Só issoémétodo. Este, só este é o cimo do outeiro,
cultural —e, porque hábito, automático, mecânico, imediato esquema que é a "casa" e a "definição" do poeta.
estímulo-resposta, embotador e gerador de apatia, indiferença, lassidão.
Vê-se então como habitualmente se vê ou como todo mundo vê. Assim 2. Retirar-se das coisas, dos sentidos ou das significações habituais,
se sente, assim se pensa. Impera a atitude que uni- forrniza, uni- instituídas coletivamente e que valem porque valem, que são porque
dimensionaliza, homo-geneiza e que é a vigência do raso, do plano, da são. Tal retraimento, tal retirada, quer também dizer: não conhecer,
planície, ou seja, a apatia ou a indiferença do tudo igual, do medíocre. não pensar. Melhor: "saber ver sem estar a pensar", a conhecer. Aqui,
Disso, para ver, precisamos nos despir—perder, esquecer, desaprender pensar não é o pensar que dissemos ser o ver, o sentir, mas pensar, aqui,
Desaprender para ver como se fora pela primeira vez. Desaprender fala do que habitualmente se pensa ser o pensar, a saber, representação
para, das coisas e nas coisas, ver as coisas—somente as coisas! conceptual e, aí e assim, conhecer. Pensar como sistematização ou
O fato é que nós nunca sentimos a pura ou mera coisa. Sempre reunião (composição, síntese) de conceitos e, então, definição de
sentimos, vemos sentidos, isto é, sentimentos, pois coisa nenhuma é conhecer como constituição de um corpo doutrinal, de uma doutrina a
coisa alguma, mas sempre já um sentido, um afeto, que é o ver, o olhar respeito de um algo qualquer. Este pensar ou este conhecer é o que
—ou melhor, o que torna visível tudo que se faz visível ou aparece. O "está doente dos olhos" e que Caeiro, enfiando tudo no mesmo saco, diz
olhar, o ver já é sempre um tal sentir ou um tal sentido. Por isso é ver, é ser a metafísica:
sentir. Não vemos ou pensamos com afeto, isto é, não somamos ou
acrescentamos ao pensar ou ao ver um afeto, um sentimento. Vemos Há metafflica bastante em não pensar em nada 12061
ou pensamos sempre já a partir de afeto, de sentimento, c o mo afeto, (Pensar é estar doente dos olhos)12051
portanto, desde ou através dele. Isso, esta estruturação, porém,
consolidada ou cristalizada no uso público, no social, no "político", faz-se O conceito, índice elementar de todo pensamento representativo ou
então norma, uso, hábito e, daí e por isso, embota, indiferencia toda a do chamado conhecimento representativo-conceptual, é o velho, o
força do e no ver. habitual. O conceito é a coisa sempre já vista, sempre já sabida, uma
Desaprender o social, o coletivo, o público e o hábito, que é este ver vez previamente constituído como universal abstrato, ao qual todo novo,
e interpretar publicamente, socialmente, habitualmente—isso quer, pois, melhor, todo indivíduo é reduzido ou reconduzido e, assim, esvaziado
dizer: retirar-se do uso abusado; retrair-se para o só, ensozinhar-se, ou enquanto concreto e individual ou singular d o indivíduo não há ciência,

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o indivíduo é inefável! Em linguagem filosófica, esta redução ou que ele, a cada passo, se re-inaugure ou para que ele, também ele, seja
recondução chama-se subsunção. O novo, isto é, o súbito, o inesperado "como se fora pela primeira vez". Mas, habitual mente (! ! ) não
é subsumido ao conceito, quer dizer, reduzido ao já sabido, re-conduzido acontecendo isso, há que render-se ao dizer do poeta:
ao já visto, já conhecido —a saber, ao conceito.
Por isso: Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la.
Porque conhecer é corno nunca ter visto pela primeira vez,
Não basta abrir a janela E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar. [232]
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego Ver pela primeira vez é ver des-habitualmente, ver i-mediatamente, ou
Para ver as árvores e as flores. seja, ver, ter presente e evidente sem a mediação, sem a inter-mediação do
É preciso também não ter filosofia nenhuma. velho, do já visto e já sabido, porquejá dado e já previamente constituído, ao
Com filosofia não há árvores: há idéias apenas. 12311
qual é reduzido ou reconduzido —subsumido! — o novo, o inédito, que é
também sempre singular. Enfim, ver pela primeira vez é não ter e não ver
Em lugar de "idéias", poderia, deveria ter sido dito "conceitos". Não através da mediação do conceito, do símbolo. Conceito é símbolo. O saber
ter nenhuma filosofia para poder ver quer dizer: não estar, por antecipação, representativo-conceptual—o conhecimento—é simbólico.
instalado num corpo doutrinal, num sistema de conceitos já constituídos Trata-se do ver que sempre vê pela primeira vez, que p o d e sempre
e dados, uma vez que com isso, por isso o conceito (i. é, as ciências, o
ver pela primeira vez porque sempre perde o visto, o já visto, em favor
saber) instaura o universal, ou seja, o homogêneo, o "objetivo" ou o do ver e re-ver. Pois bem, este ver, este saber, não é simbólico.
mundo, no qual todos vêem a mesma coisa e no qual todos se instalam Desaprender é também e principalmente desaprender o símbolo. Não
de maneira igual — isto é, objetivamente... — tal como nos instalamos ver algo através de outro algo, não ser imagem. Poesia, arte, não é
num hábito, numa coisa feita, pronta, acabada, enfim, nas coi si-fi cações. ver (algo) através de (outro algo). Arte, poesia, não é imagem. A poesia,
Sim, morre-se também e talvez sobretudo de hábito, isto é, de e na a arte, de modo geral, não significa, não simboliza nada.
apatia, indiferença, lassidão.
Mas, esperemos. Façamos, antes e com Caeiro, o seu caminho de
É verdade: não há vida sem hábito, ou seja, sem cristalizações, sem
perda, de desaprendizagem do símbolo.
esquecimentos, sem rotina. Este é um primeiro momento. Segundo: não há
vida que seja só hábito, quer dizer, só sedimentação e só rotina, que é o 3.
eterno retorno do igual, gerador do tédio, da lassidão, da total indiferença. Criança desconhecida e suja brincando à minha porta.
Na vida movida e promovida pela disposição do ver inaugural—isto é, vida Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.
que se faz desde e como criação—o mal, o demônio, o elemento desintegrador
e diluidor ou amolecedor de tudo é o hábito. Na vida do saber, do Aprecio a tua presença só com os olhos. 123112
conhecimento, este habitual tende a ser o conceito, a partir do qual e com o .
qual todo conhecimento se faz, se organiza, se estrutura e também se O símbolo,
1 por definição, não é a própria coisa, mas evocação,
instrumentaliza. Em qualquer dimensão ou instância do viver, precisamos substituição ou representação da coisa ausente. Representar, aqui,
sempre e insistentemente nos medir e nos confrontar com o hábito. Esta significa: estar no lugar de ou passar por. Sim, substituir o ausente. E
confrontação é já o insistente movimento de sua superação ou da auto- a palavra da poesia, a palavra poética, i.é, instauradora ou realizadora,
superação da vida mesma. Trata-se de uma superação ou de um que, por isso, é a palavra essencial, esta está subdizendo o poema, não
ultrapassamento que, na verdade, é insistente retomada do movimento aquém é símbolo, não é representação ou evocação da coisa ausente, mas a
da sedimentação, da cristalização. É retomada de vida como movimento própria coisa, isto é, a própria presença. Portanto, palavra poética
para a forma, isto é, a dinâmica ser-aparecer ou a superficialização. não é recado, mensagem, aviso de nada. O poeta não é moleque de
Também neste movimento é preciso que esteja incorporado o conceito. recado! Não é instrumento, mediação ou intermediação de nada. A
É preciso sempre medir-se com ele e, assim, superá-lo sempre, exigindo palavra poética é a própria coisa em sua plena, plenificada presença.

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Toda jogada, largada, abandonada, exposta. Assim é a coisa—ela jaz, é. 5. Um mestre zen, que ensinava a um discípulo a arte de atirar com o
Por isso, diz o poeta:
arco, viu, entreviu, que ele estava "querendo demais", isto é, estava
fazendo demais, no sentido de que estava aplicado demais, empenhado
Criança desconhecida e suja brincando à minha porta, demais, fazendo uso de muitas técnicas, regras, artifícios, talvez
Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos,
teorias. Tudo isso, que era com o intuito de fazer bem e acertar, o fazia
Aprecio a tua presença só corno os olhos. forte demais e, justamente por isso, ele estava mau no exercício. O
mestre então o advertiu: "Você está querendo demais!" Ou seja, você
está forte demais! Isso, aos olhos do mestre, o tornava afoito, apressado,
A palavra poética é aparição — dir-se-ia: celebração e festa — da
própria coisa em sua presença no ver; só no ver. A palavra poética é a descompassado, desajustado em relação à coisa, a saber, o atirar. Ele, o
coisa em sua presença ou nela mesma como potência no e do ver—só discípulo, estava sem escuta, sem o tempo da própria coisa. Ao adverti-
no ver, só do ver. lo, é como se o mestre estivesse a subdizer: "Queira menos!", "Faça
menos!", "Seja fraco!" ou pelo menos não tão forte, não forte demais...
Algum tempo depois, na seqüência da aprendizagem, o mestre constatou
4. Ver, todo e qualquer ver (=ser=aparecer=fazer-se visível), é ver porque
já é sempre afeto. Ver é concretização ou realização do afeto que a coisa uma virada, ou seja, o discípulo, de repente, ficara frouxo, lasso, apático,
indiferente, isto é, o discípulo tornara-se fraco demais, o que igualmente
é. "Coisa" jamais é coisa alguma, mas sempre afeto, quer dizer, força,
"anima", "psyché" "aquilo que ela é que a anima" l2451, diz o poeta. não permitia que ele estivesse bem no exercício. Atirar bem, deixava o
Se não há ou se não se faz afeto, nada se dá, nada há. Realidade a-pática mestre entrever, é colocar-se, pôr-se ou transpor-se para a própria coisa,
seria a realidade antes e fora de toda e qualquer condição para que realidade para o próprio atirar, para o instante do disparar-se (il) do arco. E. para
possa se dar ou ser. Portanto, realidade, "coisa" a-pática seria realidade; tanto, é preciso pôr-se à escuta e, então, em obediência, em acolhimento e
"coisa" nenhuma. Realidade (coisa!), toda e qualquer, e afeto é um único e assentimento, com certeza com o con-sentimento do tempo certo ("kairós")
mesmo ato—uma única e mesma coisa! O mesmo lugar, a mesma hora. da própria coisa (a coisa, cada coisa tem seu tempo, seu tempo próprio!)—
portanto, consentindo, deixando ser ou obedecendo, que é o modo de ser
Ver algo, algo nele mesmo, uma coisa nela mesma, é ver este algo
ou esta coisa desde ele mesmo ou ela mesma. E, para tanto, é preciso livre sob a lei! Liberdade nobre, aristocrática!
trans-por-se subitamente para a dimensão própria deste algo ou desta Mas como ouvir? Como, desde escuta, na escuta, transpor-se para a
coisa. "Dimensão" é outro nome para dizer afeto — ou interesse, ou própria coisa? Como ganhar este salto? Como entrar em sintonia e em
"sentimento", como prefere e insiste Caeiro. Portanto, "apreciar a (tua) sincronia com a própria coisa?
presença só com os olhos" quer dizer: pôr-se, trans-por-se para a própria Para isso, o mestre sugeriu ao discípulo que observasse, num dia
coisa e, assim e por isso, vê-la. Vê-la e tê-la só aí. Isto é: apreciar, gozar, sereno, calmo, parado, sem sequer uma única aragenzinha, como a neve
desfrutar só de sua presença. Ser todo só a força (apreciação) da cai da folha do bambu. E disse ao discípulo: "A flecha precisa partir do
teu arco tal como a neve cai da folha do bambul"
presença (afeto) que ela é, que ela precisa ser. O olhar, o ver é oiluminar-
se, o fazer-se visível do próprio afeto. 3
Tal transposição se faz subitamente, isto é, i-mediatamente ou num salto. 6. Assim se dá o salto, assim se faz a transposição para a coisa, que
Salto é milagre. E milagre é o que se dá sem razão nenhuma para que se dê. então é vista nela mesma: tal salto, tal transposição, dá-se, faz-se tal
como neve cai da folha do bambu! Mas c o m o neve cai da folha do
É pura gratuidade—desde nada, para nada. Irrupção súbita doação. Toda
coisa, cada coisa, é sempre um milagre —um salto. Por isso, "até quando bambu? Vem-nos a redundância, o repetitivo estúpido: neve cai da folha
nada acontece, há umn milagre que não estamos vendo"!' do bambu tal como n e v e cai da folha do bambu!! Na evidência de um
A passagem para a coisa, a transposição que inaugura a coisa nela tal acontecimento, impõe-se este trufsmo, esta banalidade, pois a neve
mesma ou desde ela mesma—o só ver—se faz, paradoxalmente, desde cai sem querer, isto é, sem intenção, sem propósito, sem fito ou fim.
ou a partir de espera, de escuta, que é o tempo do deixar-se tomar e Mas também sem não-querer, sem não-intenção, sem não-fito. Sem
levar pela possibilidade da própria coisa, isto é, do afeto que ela é. Como? ímpeto, mas também sem apatia, sem indiferença, sem lassidão. Trata-

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se de um puro, de um mero acontecimento inútil, gratuito—abandonado, isto é, enviar sempre para outra coisa que não a vista, para a significada, a
largado, jogado tal como vida que, na serenidade tormentosa de uma substituta ou aquela coisa da qual esta é o recado...! Por isso, "Há sempre
natureza-morta (Stil-leben), jaz. uma coisa oculta em cada coisa que vês. O que vês, vê-lo sempre para
Assim, desde escuta, desde espera, desde o abandono à escuta ou à veres outra coisa!" E, ainda, desde a constituição própria ou a estruturação
espera cai-se na própria coisa, a qual, desse modo, se faz visível nela de sinal, de símbolo, a tendência é o remetimento tomar-se infinito, ilimitado,
mesma e desde ela mesma. A escuta, a espera, o abandono à escuta e à e, então, o não deter-se em nada, o não satisfazer-se com coisa alguma.
espera para deixar a coisa ser o que é e assim transpor-se para ela e Insaciedade, insatisfação, cobiça... Neste contexto, diria Álvaro de Campos:
dela ou nela assim participar (=ver!) é algo para o qual querer e/ou não- o pensamento simbólico, a cobiça do sinal e do signo é um ópio, um ópio que
querer, ativo e/ou passivo, não é medida, não é critério—portanto, não é busca consolo em
método ou via de acesso. Não é a boa hora e o bom caminho.
Isso, a saber, "neve cai da folha do bambu", não significa nada, quer Um Oriente ao oriente do Oriente [op. cit. 3011
dizer, não remete a nada para além e para fora deste puro, mero
acontecimento, que é todo centrado em si e desde si. Assim, em si e por E, nesta busca, nesta insana e insaciável busca, vem sempre um suspiro
si, todo só sentido. "Neve cai da folha do bambu" é um acontecimento langoroso e acusador, cheio de uma incontornável melancolia —ou melhor,
todo centrado só nele mesmo e, assim e por isso, absoluto, inocente — nostalgia. Tristonho, lamuriento, jururu —à corvo!:
um instante redondo, esférico, parmenídeo! Assim se faz a coisa vista
nela mesma e desde ela mesma u m acontecimento desta ordem, desta Fumo. Canso. Ah uma terra aonde, enfim,
textura. Pura, mera, inteira e absoluta presença —como a escultura de Muito a leste não fôsse o oeste já! lop.cit.3031
Fídias, no olhar de Rodin, que disse ser aquele o maior escultor de todos
os tempos, pois fazia a coisa, o corpo, visível em sua pura e só presença Esta alma, este modo de ser ou esta atitude vital é doente a n t e s do
—,serenidade'. Todo só presença —o que aí jaz como o jogado desde ópio, isto é, já na vontade, já no élan e na necessidade incontida do signo,
nada e para nada. Sim, Stilleben, vida-serenada. A um passo, a um do sinal, da significação d o ópio!
fiapo do morto, do cadáver... Com a significação, isto é, movido pela vontade de significação ou
A escultura de Rdias c' a i diante de nossos olhos , toma-os, tal como pela busca incontida, pela incontida projeção antecipada de intenção, de
neve cai da folha do bambu...! O olhar pagão de Fídias não é místico. sentido oculto, velado, assim, o que se vê, se vê sempre para ver outra
Ele é frio, gelado, parado. Frio para fora, incandescente para dentro.., coisa —para fora, para além... Sempre e infinitamente para fora e para
Sobretudo não é místico como o cristão o é, todo intimidade, intimismo, além... Insaciedade, insatisfação... Aqui enche-se toda a fala serena e
interior, sub, atrás e além contida de Caeiro: "O que não tem limites não existe!" [2491
Por outro lado, ter olhos só para ver é pôr-se todo na, transpor-se
Tu, místico, vês significação em todas as coisas. todo para a própria coisa e contentar-se, satisfazer-se só com ela. Não
Para ti tudo tem um sentido velado.
precisar de outra coisa para ver o visto, a coisa vista. Não ver, não co-
Há uma coisa oculta em cada coisa que vês. ver significação, não ver ilimitado remetimento para fora e para além
O que vês, vê-lo sempre para veres outra coisa. dela. Satisfazer-se, diz: fazer o bastante, o suficiente. A coisa basta.
Ela é o suficiente. Sim, ver uma coisa é vê-la sendo em seu abandono,
Para mim, graças a ter olhos só para ver,
Eu vejo ausência de significação em todas as coisas; em puro abandono de jogado inútil e gratuito. Vendo assim, evidencia-se
Vejo-o e amo-me, porque ser unia coisa é não significar nada. que "ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação".
Ser unia coisa é não ser susceptível de interpretação. [2331 Mas como?! Não dissemos que coisa já é sempre afeto, sempre já
interesse, quer dizer, sempre já desde o medium que a faz visível, que ela é,
Em todas as coisas ver significações quer dizer: sempre, por constituição ou seja, sempre já como e desde interpretação?! Sim, assim é
e princípio —o símbolo! —remeter o que vê para fora e para além do visto, necessariamente. E isto, a saber, esta interpretação (na qual e desde a qual
coisa é ou faz-se visível) basta, é suficiente, justamente porque necessária

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ou irrevogável. Justamente por isso, não cabe sobrecarregá-la com mais, É espantoso, é extraordinário poder não ver sentido íntimo nenhum. É
com outra e outras significações, remetimentos, interesses para fora e para preciso ser muito profundo, muito intenso, muito grave para ver só a
além dela mesma, nela mesma. intensidade da superfície, o cheio que é a linha de limia r de uma
Quando o verso diz "ser uma coisa é não ser susceptível de interpretação", superfície...
o que realmente está sendo dito é: não ser susceptível ou passível d e o u t ra Aprende a desaprender:
interpretação (afeto, interesse) além desta que ela necessariamente já é
—para ser ou poder ser isso que é! Ou seja, trata-se de não acrescentar ou Sê anônimo, súbito e criança. [Op.cit. 692]
s o ma t t o i s a O u t ra coisa (=interpretação, afeto, sentimento!) mais
para ela ser isso (a saber, a coisa) que é. Isso seria demais. Uma carga, 7. Escreveu-se acima: a poesia, ou melhor, a arte, de modo geral, não
uma sobre-carga que coisa alguma suporta Ela se esvazia, pois perde seu significa, não simboliza nada. Isto quer, pois, dizer que ela não rep r e-
limite. Não ser susceptível de interpretação para ser uma coisa ou a coisa se n ta nada, ou seja, ela não envia a nenhuma outra coisa além daquilo
que é, que aparece, quer igualmente dizer que não é preciso, não é necessário que nela, como obra, aparece e se mostra; ela não remete a nada a lé m e
e por isso não se deve perguntar q u e m interpreta, q u e m vê, pois isso a nada estranho a isso mesmo que nela e desde ela — arte, poesia —
seria o mesmo que acrescentar (somar) à interpretação (à coisa) uma outra aparece, se mostra, se faz visível. Arte não representa nada — isto
interpretação (i.é, uma outra coisa!), a saber, o intérprete. A própria coisa, quer ainda dizer: a obra de arte, isso que na obra aparece é só e
isto é, o próprio afeto ou interesse, em sua atividade de fazer-se visível ou inteiramente isso que aparece e se dá. O que aparece na obra e como
aparecer, é interpretação. E e la , e st a interpretação basta, é suficiente — obra não está no lugar de nada, não é embaixador (representante!) de
melhor: eia é tudo! O próprio intérprete, o que vê, não sub- ou pré-existe coisa outra alguma. Assim, no âmbito da experiência artística, revela-se
à interpretação, mas ele é obra do e no interpretar. Na obra, que é o jogo ou que nenhuma coisa substitui (representa!) ou está no lugar de nenhuma
a dinâmica do aparecer, ele é obra de obra.
outra coisa. Daí dizer algo, que tem tudo a ver com a banalidade do
É esta compreensão, é esta pré-compreensão que sustenta, que truísmo, mas que precisa ser ouvido para além da postura rasa e
escreve os seguintes versos:
acachapante do senso comum, responsável por todo truismo: cada coisa
Pensar no sentido íntimo das cousas é cada coisa! Cada coisa é ela mesma e só ela mesma! Ela, na instância
É acrescentado, como pensar na saúde da arte e como obra, é toda a sua presença. É isso que ouvimos de
Ou levar um copo à água das fintes. Caeiro, nos versos:

O único sentido íntimo das cousas Si,;;, eis o que os Pneus sentidos aprenderam skinhos: —
As cousas não têm significação: têm existência.
É elas não terem sentido íntimo nenhum,[207]
As cousas são o único sentido oculto das cousas. [223]

Nenhum sentido íntimo, nenhum além, atrás, para fora da própria coisa. Que os sentidos tenham aprendido sozinhos, quer dizer: vendo,
Ser uma coisa, esta coisa, é não ser susceptível de outra interpretação, considerando tão-só desde as próprias e sós sensações (afetos), que
além desta que ela necessariamente já é, para poder ser isso que é. Assim,
neste sentido, toda coisa, tudo, é,precisa ser singela, franciscana superfície. são as próprias coisas, ou seja, desaprendendo tudo que não seja os
Sim, os gregos foram superficiais, muito superficiais—por profundeza, "aus próprios sentidos. Assim, no ver, desde o ver, evidencia-se que: "as coisas
Tiefel". A fala de Nietzsche a respeito dos gregos, claro, vale também para não têm significação: têm existência". E "existência" diz: é p re se n ça .
Caeiro, que é grego... Esta, a saber, a da superfície, é uma experiência É preciso poder ver cada coisa nela mesma, desde ela mesma, isto é,
singular, extraordinária — do singular, do extraordinário. Mas é esta a em toda sua presença ou existência própria. Ela, assim, tem, é existência,
experiência, quer dizer; o olhar do poeta. Só esta experiência, só este olhar. presença própria e não significação, representação ou ainda imagem.
E só isso é medida, critério para ler sua poesia; só este o lugar e a hora para Poesia, arte, não é imagem, expressão de nada. E presença é isso que,
ouvir sua palavra, para ver com ele e a partir dele o que ele vê, o que ele com uma certa rabujice, chamamos a coisa nela mesma e desde ela
festeja e celebra no seu ver, no seu olhar. mesma. Mas a coisa, lembremos sempre, é afeto, "páthos"—sentimento,

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Revista Til, Rio de Janeiro, 171 39/5 1, out.-dez., 2007 Revista TB, Rio de Janeiro, 171; 39/51, out.-dez., 2007 4 9
na linguagem de Caeiro. Portanto, a coisa nela mesma é a coisa no e O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
desde o seu próprio afeto, sentimento, o qual se conquista por passagem, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
ultra-passagem, trans-posição ou salto para o "páthos" próprio ou para Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
esta possível dimensão, modo de ser, verbo da vida, da existência, da
presença humana. O Tejo tem grandes navios
Na vigência da experiência da poesia, da arte, coisa não é significação, E navega nêle ainda,
representação ou imagem - expressão de nada. Isto é, a poesia, a arte Para aquêles que vêem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
é o próprio real, a própria coisa. Na vigência da experiência da arte, da
poesia - e só isso pode e precisa ser aqui a medida, o critério - faz-se O Tejo desce de Espanha
evidente que fora da obra, ou seja, antes, depois, aquém ou além dela e E o Tejo entra no mar em Portugal.
de sua absoluta necessidade, fora de obra, pois, não há nada. Na Diria gente sabe isso.
obra, desde obra há só sentido, só a realização, a concretização de Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
sentido e sua evidência, quer dizer, desde experiência (r-- evidência!), E para onde êle vai
seu crescer e aparecer conto isso, como aquilo, nisso, naquilo. Só aí e E donde Ne vem.
assim ele é e há. A irrevogabilidade e a suficiência deste acontecimento E por isso, porque pertence a menos gente,
se faz patente quando, p. ex., para o pintor, na experiência da pintura, a É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
cor, o fazer-se de cor, torna-se o elemento, a natureza. Ou, para o poeta,
quando a palavra se faz tal elemento; quando ela, no seu dizer, se faz Pelo Tejo v a i
hora, princípio de realização de toda realidade possível. No começo é o Para
- além do Tejo há a América
verbo! No começo é a ação - a ação, que é o verbo! Assim lê E a fortuna daqueles que a encontram.
sNinguém
e
prodigiosamente Goethe, no Fausto. nunca pensou no que há para além
p arior da
Do a minha aldeia.
Na vigência desta experiência fundadora, inauguradora, se não se
faz palavra ou se não se faz cor não há real. Desfaz-se, esvazia-se o o
O
m rioudanminha aldeia não faz pensar em nada.
real. Fora de uma tal experiência instauradora há n a d a ! Ou só Quem está ao pé dêle está só ao pé dêle. 1215/61
objetividades, que é a mesma coisa! Realidade começa, isto é, abre- d o .
se, inaugura-se e impõe-se onde e quando começa, irrompe palavra; Notas
ela acaba, se desfaz, inexiste quando e onde desfaz-se, inexiste palavra
- ou a cor, se a fala for a da experiência da pintura. Palavra, por exemplo, 'Cf. PESSOA, Fernando. Obra Poética em um Volume, Rio de Janeiro: José
desaparece, se desfaz se for dita, pronunciada fora de coisa, fora de Agui lar, 1974. Todas as citações terão esta edição como referência. O número
presença. É quando palavra mergulha na apatia, na indiferença - no raso entre colchetes, após a citação, estará se referindo à página.
niilista da significação e da comunicação. Palavra, assim, é o l i m i t e, Cf • ROSA, Guimarães. "O Espelho". In: Primeiras Estórias.
quer dizer, a hora, o lugar da coisa. "O que não tem limite, não existe!", 'Referência livre à estória narrada em LIERRIGEL, E., A Arte Cavalheiresca do
dizia Caeiro. O limite é o nome, a palavra. Cabe dizer, nomear. Dizer é Arqueiro Zen. São Paulo: Edit. Pensamento, 1983.
preciso. Viver não é preciso...! 4Cf. RODIN, Auguste. "Cap. X - Rdias e Miguel Ângelo". In: A Arte -Conversas
"As coisas não têm significação: têm existência" - isso quer, pois, com Paul Gsell. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
dizer: estando-se junto à coisa, na vigência da experiência poética (e só
disso é aqui a fala!), está-se só junto dela. Mais nada. Mais seria demais.
É isso que é mostrado, que é dito, quando o poeta, com comovente
singeleza, fala do "rio da minha aldeia
grande
- à dTejo, i f do
e rTejo
e ncheio
ç ade, história, todo memória - todo remetimentos
e significações para muito além do Tejo...:
p . e x . ,
d o
50 R e jv i o s t, a TB, Rio de Janeiro. 171: 39/51, out.-dez., 2007
T e Revista TB, Rio de Janeiro, 171: 39/5 i , out.-dez., 2007 5 1
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