Você está na página 1de 34

Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 1

Curso Online de Filosofia


OLAVO DE CARVALHO

Resumos de Aulas

Vol. I

Elaboração: Mário Chainho

Índice Pag.
Aula 01 – 14/03/2009 2
Aula 02 – 21/03/2009 9
Aula 03 – 04/04/2009 15
Aula 04 – 18/04/2009 20
Aula 05 – 25/04/2009 28

Notas:
1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre
recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos
erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas.
2) Estes resumos são um primeiro esforço de apropriação do conteúdo das aulas. É sobretudo um
trabalho de compactação, edição e montagem que visa ultrapassar dificuldades de entendimento
através da criação de foco. Isso originou divisões e catalogações artificiais, largamente discutíveis, que
não ocorrem nas aulas, onde os temas se vão encadeando e permutando de forma quase
imperceptível. Não há uma tentativa de fazer uma reexposição de tudo “com palavra minhas” e
muitas das frases aqui presentes são quase indistintas das utilizadas nas aulas pelo professor Olavo de
Carvalho. Em termos gerais, a sequência dos resumos segue a das aulas, mas ocorre com frequência a
junção de material que estava na origem disperso e, por vezes, a separação do que antes estava junto.
3) Os resumos foram escritos em português de Portugal, com as limitações inerentes a uma ainda
deficiente capacidade expressiva.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 2

Aula 01 – 14/03/2009

Sinopse: Este curso deve ser uma oportunidade para a formação de verdadeiras amizades,
baseadas na comunidade de valores e objectivos. No Exercício do Necrológio iremos conceber o
nosso “eu ideal”, que será a imagem que nos irá orientar ao longo da vida e a base de construção
do nosso juiz interior. O juiz interior é a parte mais elevada em nós, a única qualificada para
falar com o observador omnisciente, que é uma noção fundamental não só em religião mas em
toda a filosofia, pois esta tem no seu cerne uma actividade confessional. O objectivo da filosofia
não é aprender a pensar mas obter conhecimento que nos possa orientar. Desde Sócrates que se
busca conhecimento que é ao mesmo tempo autoconhecimento e conhecimento científico do mais
alto nível, e o ambiente propício para desenvolver essa tradição é o clube de aficionados. A técnica
filosófica reside na conversão de conceitos gerais em experiência existencial efectiva e vice-versa. Só
valem as ideias dos náufragos, segundo Ortega y Gasset, o que nos dá uma imagem da seriedade
pretendida na filosofia. Sem uma adequada capacidade expressiva o conhecimento torna-se
impossível, pois nunca será possível transpor de forma adequada a experiência para conceitos
sobre os quais podemos raciocinar. No início da aprendizagem a ênfase será colocada na
formação literária, e começamos com o estudo da Gramática Latina, de Napoleão Mendes de
Almeida, que nos dará, para além de conhecimentos de latim, uma compreensão das relações
entre a estrutura gramatical e a estrutura lógica na língua portuguesa.

A formação de verdadeiras amizades

Para S. Tomás de Aquino, o nosso amigo é aquele que quer e rejeita as mesmas coisas que nós.
Só através da amizade é possível a existência da sociedade política, segundo Aristóteles, pois
só assim é possível a formação de grupos unidos pela comunidade de objectivos e valores. A
amizade é também um dos pilares sobre os quais se constitui a personalidade. Sem os amigos
adequados estaremos isolados perante grupos hostis que nos irão enfraquecer bastante ao
longo do tempo pela incompreensão, marginalização e julgamentos aviltantes. Esses grupos
vendem a sua amizade em troca da nossa corrupção, do abandono dos nossos valores, em
suma, em troca da nossa desistência em sermos o que somos. Este curso deve ser uma
oportunidade para a formação de verdadeiras amizades, formadas na comunidade de
objectivos vitais e valores; amar e odiar as mesmas coisas.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 3

Exercício do Necrológio

Neste exercício vamos imaginar que um nosso amigo, após a nossa morte, escreve a um
terceiro uma carta a nosso respeito. Vamos supor que realizamos as nossas aspirações mais
elevadas em temos humanos, não sociais. Esta imagem ideal da nossa vida altera-se ao longo
dos tempos, vai sendo aprofundada, sofre correcções mas sobretudo amputações. Sem a
imagem deste eu ideal para orientar a nossa vida, vamos permitir ser julgados por outras
instâncias, por medos, preconceitos, pelo falatório do grupo de referência incorporado em
nós pela audição contínua. A imagem do eu ideal afasta-nos do estado de dispersão geral; de
todas as vozes que nos falam apenas uma pode nos julgar, corrigir e orientar, e é essa mesma
voz a única capacitada para realizar a confissão. Começamos assim por ter uma noção prática
da filosofia, entendida como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência.

A filosofia praticada por um clube de aficionados

Este curso é inspirado na pessoa de Sócrates, naquilo que um exemplo tem de significativo e
essencial para nós hoje. A filosofia como actividade distintiva começou com Sócrates e nasceu
como filosofia política, uma meditação e análise crítica não só da sociedade em geral mas da
própria situação social de Sócrates e dos seus interlocutores, pois eles não eram observadores
externos da sociedade mas participantes. Na tradição socrática todo o conhecimento deve ser
auto-conhecimento e, ao mesmo tempo, conhecimento científico do mais alto grau. O
ambiente propício para a realização da filosofia assim estabelecida é o clube de aficionados,
como aconteceu nos casos de Sócrates, Platão e Aristóteles, no início da universidade e agora
no Curso Online de Filosofia. No seu início a universidade deu um grande impulso ao
progresso da técnica filosófica mas, com o passar do tempo, as exigências internas e as
impostas pela sociedade fizeram a instituição académica seguir directrizes contrárias ao
espírito da filosofia. A filosofia académica passou a ter um campo de actuação delimitado a
partir de fora, deixou de fazer um exame crítico das condições originárias, o que constitui um
retrocesso em relação a Sócrates.

O objectivo da filosofia

Nos Tópicos Aristóteles mostra que o objectivo do pensamento é provocar a intuição, ou seja,
a percepção directa. Na dialéctica as várias ideias confrontam-se até se formar uma massa
crítica e, num dado momento, veremos as coisas tal como elas são. O objectivo da filosofia é o
conhecimento, de preferência o conhecimento materializado numa evidência imediata, que é
preferível a uma certeza lógica. Aprender a pensar, ao contrário da opinião comum, não é o
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 4

objectivo da filosofia, pois o raciocínio lógico é apenas um dos instrumentos para conhecer,
mas até pode atrapalhar se não for domado. O conhecimento que obtemos em filosofia é para
a nossa própria orientação e para descobrirmos quem somos. Tem que ser conhecimento que
sirva para algo nas horas aflitivas. Aprender é saber algo que ou outros não sabem e que até
podem nem querer saber. Além de que podemos ser incapazes de exprimir esse
conhecimento. Mas o importante é que estaremos despertos e permanecendo algum tempo
nessa prática obteremos a deliciosa sensação de realidade.

A técnica filosófica e o observador omnisciente

A técnica filosófica consiste na conversão de conceitos gerais em experiência existencial


efectiva e vice-versa. Sem dominar esta técnica, quando estamos no mundo dos conceitos
apenas raciocinamos sobre coisas que não existem e, por outro lado, nada podemos entender
relativo ao mundo da experiência, pois perdeu-se a relação entre a estrutura conceptual e a
experiência.

Desde Sócrates que se busca o conhecimento para além do mero conteúdo da consciência
mediante a pergunta sincera de nós para nós mesmos, o que pressupõe um observador
omnisciente ao qual confrontamos a experiência individual. A filosofia académica exclui
totalmente a parte da auto-investigação, abstraindo-se assim da pessoa concreta que a realiza.
A actividade filosófica passou a ser apenas uma encenação de um papel delimitado pela
burocracia, rompendo com a tradição filosófica baseada na identidade entre a auto-
consciência e o conhecimento universal e científico. Essa tradição tornou-se evidente em
Santo Agostinho, nas Confissões, onde ele percebeu a raiz do conhecimento filosófico no
autoconhecimento tomado no sentido da confissão cristã. Agostinho sabia que existia um
obstáculo entre ele e as ideias universais da filosofia, o espelho obscuro mencionado por S.
Paulo. Esse espelho é a sua própria personalidade, que tem que ser contornada fazendo uma
narrativa para um observador omnisciente a partir da sua individualidade concreta, com
todas as suas falhas. Agostinho sabe que não pode revelar nada a Deus, está antes a pedir que
Deus lhe revele coisas sobre ele mesmo que não estavam na sua consciência mas apenas na
realidade.

O juiz interior

O desenvolvimento de um juiz interior é necessário para a realização da confissão, pois só


esta parte mais elevada de nós está qualificada para falar com o observador omnisciente.
Contudo, a noção do observador omnisciente é fundamental não só em religião mas em toda
a filosofia. A filosofia é a busca de uma capacidade interna para discernir a verdade dentro da
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 5

máxima medida humana, pressupõe por isso um julgamento interno que não pode ser
substituído por nenhuma instância externa. O juiz interior caracteriza-se pela consistência,
racionalidade, credibilidade, sinceridade e seriedade. A seriedade implica presença na
consciência, não algo na periferia que se esquece no dia seguinte. O juiz interior tem que ser a
parte mais elevada de nós, aquela que vê todas as outras e pode comparar e pesar os vários
factores. Se pensarmos na confissão, a parte que se arrepende é mais elevada que aquela que
pecou, que foi seduzida por uma recompensa momentânea e engoliu o resto da consciência.
O restauro da integridade da consciência é feito pela parte que se arrepende, que interpreta a
norma geral e mede a gravidade da situação para não cair num arrependimento excessivo.

Sem o juiz interior não é possível a actividade filosófica, que é a busca da credibilidade
máxima na articulação do pensamento com a realidade. Mas mesmo para a absorção da
cultura filosófica, se não existir esse juiz as coisas serão absorvidas pelo canal errado. O juiz
interior é o alicerce para a construção da personalidade filosófica, que idealmente pretende
cumprir o ideal remoto de nos tornarmos sábios. Essa caminhada refaz o percurso desde
Sócrates a Aristóteles, começando pelas especulações de ordem moral e política até chegar ao
domínio técnico que Aristóteles estabeleceu como padrão.

A atitude filosófica

A atitude filosófica é a seriedade no conhecimento, o que difere da atitude crítica, onde se


quer questionar tudo. A atitude de seriedade pretendida ficou expressa por Ortega y Gasset
quando ele disse que só valiam as ideias dos náufragos. Esta imagem ajuda a elucidar o que é
para nós superficial e aquilo que realmente tomamos como sério. Se uma investigação da
verdade não for ela mesma verdadeira, o que quer que daí se obtenha não terá sentido,
mesmo que se obtenha reconhecimento social. O método filosófico é a descoberta da
substância experiencial contida nos conceitos. É um trabalho de autoconhecimento e de auto-
análise, onde teremos de ir à raiz de experiências que já tivemos há décadas atrás, e por isso
transcende o aspecto intelectual, entrando bastante nas esferas moral e psicológica. Uma
filosofia despida desta seriedade vai estar cheia de conceitos que serão utilizados como
fetiches e restará um verbalismo desenfreado onde ninguém sabe do que se está a falar mas
apenas o quê.

A atitude filosófica não se compadece com a vaidade intelectual. Qualquer vaidade é a


exibição de um certo aspecto nosso que queremos ver reconhecido e valorizado pelos outros.
Mas esse aspecto pode não ter qualquer importância em nós e pode até ser a camuflagem de
alguma coisa. O interesse pelo conhecimento tem que estar desligado de vantagens
secundárias a serem obtidas, e neste curso tanto podemos vir a obter vantagens sociais como
grandes desvantagens, nada está prometido.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 6

Autoridade pública

Mário Ferreira dos Santos referia o ponto arquimédico como um ponto de credibilidade
máxima onde uma verdade se tornava tão patente que não podia ser esquecida por instante.
Esta seria a base firme segundo a qual se podia julgar todos os outros conhecimentos, uma
busca constante ao longo da história da filosofia. Quando não é possível obter este nível de
auto-evidência procura-se, então, a confiabilidade máxima. Mas para Sócrates não bastava o
melhor conhecimento que pudesse ser fundamentado em termos racionais, tinha de ser
também conhecimento com importância existencial para ele. A autoridade apenas advinha
desta síntese inseparável da consciência pessoal com o conteúdo do conhecimento.

A opinião geral hodierna reconhece a ciência como fonte de autoridade pública, o que
levanta vários problemas. Na ciência moderna as crenças são subscritas apenas a nível
profissional, não importando se a conduta privada as contraria. É apenas uma especulação
intelectual de segundo nível, que não tem importância existencial efectiva, pretendendo
obter validação social mas não tem autoridade intrínseca para julgar outros conhecimentos.
Depois, o próprio método científico tem um âmbito limitado e nem sempre funciona, não
podendo fornecer uma base irrefutável de julgamento de tudo o resto. A ciência não investiga
a realidade concreta mas um seu recorte hipotético, na suposição de nesse cenário existir uma
uniformidade interna que se possa exprimir como hipótese científica descritiva. Como
depois há um esforço para encontrar essa uniformidade interna, a actividade tem um carácter
tautológico; é um jogo de cartas marcadas que nem sempre funciona.

O terreno da filosofia

As constantes referências a Sócrates, Platão e Aristóteles não visam arrumar discussões


mediante argumentos de autoridade. O território da filosofia foi delimitado por eles, que
formularam as questões e as hipóteses que depois deram origem a quase todas as investigações
filosóficas. Para impugnar algo que eles tenham dito temos de partir deles novamente.
Renunciar a tudo o que eles tenham feito, como Nietzsche tentou fazer, é querer inaugurar
uma coisa nova que já não pode ser chamada filosofia.

O conhecimento humano e a paralaxe cognitiva

Há conhecimentos internos difíceis de transpor para pensamento e quanto maior o esforço


para o conseguir mais longe ficamos da intuição original. Este afastamento da experiência
original deve-se a uma deficiente capacidade expressiva e para perceber isso é preciso ter
noção do processo envolvido na formação do conhecimento. O conhecimento humano
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 7

começa como percepção, depois passa a memória e imaginação e só quando as coisas se


consolidam em conceitos verbalizáveis é possível exercer o raciocínio. Esta série de conversões
é necessária porque o material dos sentidos não é transportável. Contudo, uma entidade real,
com toda a sua estrutura e composição, não pode ser transposta totalmente para um
conceito. As conclusões a que se cheguem sobre os conceitos terão de sofrer uma nova série
de conversões para poderem ser aplicadas às entidades reais, caso contrário haverá apenas um
exercício de puro abstratismo, apagando a experiência. Esta é a situação que ocorre na
paralaxe cognitiva, onde é criada uma definição e feito um raciocínio sobre ela acreditando
que ainda se está a lidar com o objecto real. Mas o objecto real tem muito mais coisas que as
que pode conter uma definição, e esta pode até estar errada. Para evitar o fenómeno da
paralaxe cognitiva é necessário desenvolver o senso do concreto e do abstracto, para nunca
perder a ligação das frases à realidade. Mas antes disso é necessário aperfeiçoar o domínio da
linguagem, porque sem expressar a experiência correctamente ou, pior ainda, trocá-la logo
por um nome, tudo daí para a frente será desligado da realidade. O início da educação deve
começar pela arte literária porque o conhecimento tem início quando a experiência que
temos na memória encontra uma forma mental que pode ser repetida por palavras. Neste
curso não se pretende obter propriamente um domínio literário mas sim domínio sobre
alguns instrumentos de expressão literários.

As três funções da linguagem

Segundo Karl Bühler, a linguagem teria três funções: a função nominativa, que significa dar
nome às coisas e descrever a realidade; a função expressiva, relativa à expressão de sentimentos
e experiências; e a função apelativa, relacionada com a influência que se quer exercer no
receptor. Actualmente quase só a terceira função se encontra em uso, as outras são simuladas
para obter convencimento. Este decaimento da linguagem é muito grave porque a literatura é
a expressão directa e completa do imaginário e nenhuma outra arte a pode substituir e, por
isso, se a linguagem decai, tudo o resto será arrastado. Sem o trabalho dos escritores, poetas,
romancistas, que fazem uma primeira síntese da experiência para a tornar do domínio
público, os conceitos em circulação não veiculam nenhuma experiência real. Hugo von
Hofmannsthal salientava a importância da literatura a partir de outro ponto de vista,
chamando a atenção de que nada existe na política de um país sem antes ter estado na sua
literatura.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 8

Estudo da Gramática Latina

Napoleão Mendes de Almeida elaborou uma gramática de latim que é uma obra-prima para a
compreensão não só do latim mas do próprio português, ajudando também na aprendizagem
de outras línguas. Só é possível compreender uma frase em latim a partir dos seus elementos
constitutivos, pelo que a leitura é equivalente à análise sintáctica. Ao estudar o latim pela
Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida iremos perceber aos poucos as relações
subtis entre a construção material das frases e a sua estrutura lógica subentendida. Isto abre-
nos a porta para a própria técnica filosófica, que depois vai pegar na estrutura lógica e vai
transpô-la para a estrutura de percepção e desta para a realidade.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 9

Aula 02 – 21/03/2009

Sinopse: Nesta aula são feitas várias considerações sobre o Exercício do Necrológio, desde as
motivações para a sua realização e devido enquadramento a considerar, até chegar a alguns
conselhos práticos. O grosso da aula aborda alguns pré-requisitos à actividade filosófica,
entendida como a busca da verdade na realidade. O candidato a filósofo deverá ser uma
testemunha fidedigna que conquistou a própria voz e que começa por relatar para si mesma o
mundo da sua experiência genuína. Terá de ser iniciado através de um aprendizado artístico,
onde enriquecerá o seu imaginário e o seu equipamento expressivo. O poder do símbolo será
aludido a propósito de Platão.

Considerações sobre o Exercício do Necrológio

Uma verdadeira personalidade não pode existir numa vida onde não existe um elemento
unificante, onde qualquer sonho acaba sempre por se esfumar por nunca se transformar em
projecto. O Exercício do Necrológio visa proporcionar esse elemento unificante. Os
elementos dispersantes são também os inimigos da alma: o Mundo, o Diabo e a Carne. O
Mundo é a circunstância de Ortega y Gasset. Não existimos num teatro mental concebido
por nós mas num mundo partilhado por todos e que não é feito à nossa medida. Dentro
desse mundo surgem alguns dos elementos mais corruptores, como o nosso grupo de amigos,
os nossos pares, as pessoas que nos atraem e até a nossa família, que vendem a sua afeição a
um preço altíssimo. O Diabo e a Carne são elementos que se manifestam internamente, por
vezes difíceis de distinguir, que incluem os desejos de prazer, poder e riquezas, mas também, e
cada vez mais, a cobardia induzida. Temos também as nossas tendências hereditárias, que
Szondi aludia nas figuras dos nossos antepassados que nos exigem a repetição dos seus
destinos, em especial quanto piores esses destinos tenham sido. A isto ainda se juntam outras
figuras que se incorporaram em nós pela audição contínua e passaram a usar a nossa voz e a
mobilizar a nossa vontade.

Estes elementos externos e internos, que nos provocam anseios contraditórios, não
constituem o que realmente somos mas são o nosso ponto de partida para o qual devemos
ganhar consciência de modo a fazer os arranjos necessários. Estamos na situação de um
escritor que trabalha com uma nova língua, lutando para tornar suas as palavras para que
estas expressem o que ele quer realmente dizer e não veiculem apenas ideias estereotipadas.
Fazer com que o factor unificante prevaleça sobre o factor dispersante passa por, na linha de
Viktor Frankl, definir um objectivo que tenha real sentido para nós e buscar a sua consecução
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 10

sem contar apenas com circunstâncias favoráveis e integrando as desfavoráveis. Acabaremos,


assim, por realizar a reabsorção da circunstância que Ortega y Gasset dizia ser o destino
concreto do homem.

Para a realização do exercício não é necessário saber o que queremos fazer na vida, o próprio
génio não tem profissão definida. A nossa vocação pode até passar por estar à disposição, ou
pode ser uma vida pobre em realizações externas e concentrada em realizações interiores. O
importante é imaginar que realizamos o melhor de nós, algo louvável e que mereça ser
contado. A realização do exercício implica alguns dotes de romancista. Vamos conceber um
eu ideal sem começar logo a pensar que será impossível atingi-lo, temos de imaginar que sim,
mas temos de ser sinceros, aquilo tem de corresponder à nossa individualidade e, se não
soubermos bem para onde apontar, podemos começar logo por excluir tudo aquilo que não
queremos ser. Outras coisas que podem dificultar a realização do exercício são, por um lado, a
idolatria do prazer, mas também a pressão que a sociedade coloca sobre nós para
desvalorizarmos a realização da pessoa humana.
Mas o exercício é apenas o início do caminho, não só não tem de estar na forma definitiva
como deve ser refeito muitas vezes. Aquilo que queremos ser agora pode não ser a nossa
verdadeira vocação mas é a única pista que temos e ter vindo parar ao Curso Online de
Filosofia já terá algo a ver com a nossa vocação. Não devemos ter a pretensão de querer
cultivar todas as virtudes, algo inacessível ao ser humano, mas apenas algumas e depois estas
irradiarão para outras. Podemos até descobrir, ao realizar o exercício, que as nossas aspirações
são motivadas por vaidade, mas é só a partir desta sinceridade que podemos aspirar
verdadeiramente a um estágio mais elevado, onde faremos as nossas escolhas face à ideia da
morte. Aquilo que queremos ser deve ter validade para além da morte.
Existe ainda um exercício complementar a este, que ficará para mais tarde, e que consiste em
aceitar tudo o que nos sucede. Enquadra-se dentro da moral da investigação da verdade e
obriga-nos a colocar a realidade acima dos nossos desejos pois só assim saberemos distinguir a
realidade dos acrescentos que lhe colocamos em cima.

A dificuldade em praticar filosofia na instituição académica


A essência da filosofia ocorre na consciência do indivíduo num trabalho de apropriação de si
mesmo como portador de conhecimento, onde não é possível consultar uma entidade
externa. A filosofia é uma tradição e uma prática pela qual essa tradição é continuamente
recuperada, restaurada e assim adquire continuidade ao longo dos tempos. O que o aluno
tem de fazer é inserir-se nessa tradição e não procurar apenas obter conhecimentos, um
trabalho inevitável mas não representando mais que 10% do total. As universidades, com a
estabilização de rotinas burocráticas, prestam-se ao cumprimento de obrigações
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 11

regulamentares e mesmo que estas sejam do mais alto nível e transmitam o legado
acumulado, não se inserem naquilo que é pretendido na filosofia. Apenas em alguns períodos
a instituição académica beneficiou a filosofia, como no próprio aparecimento da
universidade, servindo no mais das vezes para a sufocar.

O testemunho fidedigno sufocado num universo de linguagem viciada


Um segundo pré-requisito da filosofia, depois do adestramento da linguagem, passa por nos
tornarmos testemunhas fidedignas. O conhecimento depende desse testemunho, mesmo no
caso da ciência, onde as experiências têm, no mínimo, de ser observadas por alguém que
depois as irá relatar. Ninguém pode refazer todas as experiências mas apenas um número
ínfimo. Maior importância ganha o testemunho em disciplinas onde nada pode ser repetido,
como na História. O testemunho individual não é subjectivo por natureza, pois subjectivo é
o que depende do arbítrio individual. Há certos dados que estão objectivamente em nós e só
nós sabemos. Sem o testemunho fidedigno o universo da filosofia fica fechado para nós. Mas
o testemunho autêntico torna-se difícil de obter num contexto onde a linguagem está
viciada, onde a concentração dos mídia serviu para veicular nas palavras o seu universo de
crenças, ideias e percepções. As palavras que usamos e as frases feitas, que são mais de metade
da nossa linguagem, são de domínio público e têm os seus significados próprios associados,
não sendo adequadas ao que queremos exprimir.

A tensão
tensão entre a experiência genuína e os análogos culturais
Um terceiro preliminar passa por averiguar se os termos da discussão filosófica estão fora do
eixo da situação real. Ocorrendo isto, a investigação levará a conclusões erradas ou a uma
série de perguntas sem fim que só pode ser terminada por decisão arbitrária. Apenas
conseguimos pensar sobre conceitos extraídos a partir de imagens que se consolidaram na
memória, segundo Aristóteles. Da passagem da experiência sensorial, individual, para a
retenção na memória já existe a intervenção de um elemento externo de ordem colectiva. As
imagens fornecidas pela cultura ajudam a reter os elementos dos dados sensoriais, mas
também introduzem uma interpretação. Vai existir uma tensão entre a experiência directa e
os análogos culturais que ajudam a exprimir a primeira. Nem sempre esses análogos são
adequados, mas eles têm uma força enorme, podendo asfixiar a nossa experiência originária e
o que permanecerá na nossa memória será apenas aquilo que esses análogos culturais
permitirem. A ampliação do imaginário torna-se fundamental para ter um conjunto de
análogos culturais, que se podem combinar entre si, grande o suficiente para se aproximar o
mais possível das experiências reais. Na literatura brasileira predominam idiotas e
personagens impotentes face à situação e, face a esta pobreza do imaginário, certas qualidades
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12

humanas passam a ser inverosímeis e deixam de ser colocadas em prática. Fica assim muito
mal preenchida a escala de Aristóteles e Northrop Fried que gradua as personagens
consoante o seu poder, onde, para além das personagens abaixo da situação havia também
Deus, personagens com poderes divinos, personagens sem poderes divinos mas de altíssima
qualidade e as pessoas de poder comum. Aristóteles dizia que aquelas coisas eram contadas
por serem possíveis.
Na passagem para a expressão verbal usamos palavras, que também são elementos culturais
consolidados. Torna-se fundamental encontrar uma linguagem própria que possa exprimir o
que realmente queremos dizer e não apenas os estereótipos da cultura dominante. Na origem
da actividade filosófica existe uma actividade confessional, a actividade da testemunha que
relata para si mesma de maneira fiel o mundo inteiro da experiência. Esta experiência pode
ser difícil ou impossível de expressar, porém é o material genuíno que temos e que nos
fornece os poucos elementos de certeza que possuímos. É daqui que percebemos claramente a
diferença entre observar, receber uma informação e criar uma informação.
Se conseguirmos transpor a experiência genuína, sem a desvirtuar, para um produto que
possa ser expresso na linguagem colectiva, então estaremos a realizar a função do escritor, que
não é obrigação do filósofo mas este terá de fazer algo disto pois é parte essencial da
actividade filosófica. Não é possível raciocinar sobre a realidade a partir dos dados brutos,
indizíveis, nem apenas sobre os elementos simbólicos fornecidos pela cultura de massas,
altamente dizíveis, que criam a perigosa ilusão de estarem a falar da realidade por terem com
esta uma relação analógica. Quem apenas se exprime através destes pobres análogos culturais
acabará por acreditar que não existe realidade, pois nunca foi uma testemunha que teve a
experiência do conhecimento genuíno por ela mesma descoberto, só sabe por ouvir falar. Esta
experiência genuína é algo muito mais modesto do que a presença total de que falava Louis
Lavelle, a experiência básica do ser, mas só podemos obter a segunda se já tivermos a primeira
consolidada.

A busca da verdade na realidade


realidade
O conhecimento começa e é recuperado por aquelas pessoas raras que não aprenderam com
ninguém. Para as restantes apenas é possível aprender filosofia na presença de um filósofo que
mostra como se faz. No início da formação o centro pedagógico é a presença do próprio
professor, que passará muitos elementos indizíveis, questões de estilo, indo depois o aluno
ganhando autonomia. O conhecimento que o filósofo irá instigar nos alunos não passa pela
obtenção de sentenças genéricas, como saber se Deus existe, pois coisas como essas não são
verdades mas crenças. A filosofia começou precisamente quando as crenças já não bastavam e
as pessoas queriam saber como as coisas eram mesmo. A verdade é o que pode ser dito e
confirmado pela experiência, ela reside na realidade e não em sentenças gerais. O objectivo da
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 13

filosofia é descobrir a verdade na realidade, partindo da experiência genuína e raciocinando


sobre ela com o auxílio dos elementos culturais absorvidos de forma a nos servirem. Se não
tivermos este cuidado em lidar com os elementos culturais, a acção inverte-se e seremos nós a
ser absorvidos por eles, tornar-nos-emos repetidores de frases feitas nas quais, por cruel
ironia, nos iremos reconhecer.

Na época em que vivemos a verdade e a objectividade são procuradas apenas nas coisas que
todos podem verificar ao mesmo tempo. Mas algo só é passível de ser verificado por todos
mediante via lógica, não por experiência genuína. A lógica lida com o mundo limitado das
possibilidades, não pode abarcar tudo o que o mundo contém. A lógica torna-se perigosa se
lhe dermos primazia e abandonarmos as experiências que não são à sua medida. Devemos ver
a lógica como uma ferramenta de processar os materiais que terão de ser apreendidos, em
primeiro lugar, numa aprendizagem artística. Quando pedimos a alguém para dizer como
chegou a determinada ideia, o mais frequente é a pessoa começar a montar um raciocínio
lógico na hora, algo automático e muito mais fácil de fazer do que recorrer à memória. Isto é
uma fuga à realidade e por isso a filosofia não pode servir para aprender a pensar. O seu
objectivo é conhecer a realidade. A verdade reside na realidade e representa o seu conteúdo
afirmativo, mas a realidade tem muitos mais aspectos do que a verdade.

A literatura como moeda de troca


troca e como meio de conquista da própria voz
A boa literatura funciona como moeda de troca entre as pessoas, permitindo um
relacionamento verdadeiramente humano através do intercâmbio de experiências internas e
externas. Sem verdadeira literatura a situação é análoga à de uma sociedade sem moeda, onde
a economia não tem qualquer eficiência. O caso presente não é o da ausência de moeda mas
da má qualidade da moeda existente, isto é, o que está em circulação são símbolos que não
veiculam a experiência real mas a encobrem. É a situação análoga à da inflação, onde o
dinheiro vale pouco porque não tem bens para garanti-lo. A primeira coisa a fazer para
restaurar a situação é absorver e actualizar a boa literatura do passado, começando pelos
autores de língua portuguesa. Isto deve ser feito com um interesse humano e documental e
não literário. Queremos conhecer a língua na qual as situações humanas são expressas mas
também as próprias personagens e para isso teremos de nos abrir mais tarde para a literatura
estrangeira. Apenas se tivermos a capacidade de imaginarmos personagens podemos
compreender as pessoas reais.

É preciso estar prevenido para a absorção de elementos linguísticos de outras línguas,


especialmente aqueles provindos do inglês, que podem dar origem a uma imitação directa de
efeito pavoroso, originando a perda da musicalidade do idioma, um dos seus principais
elementos expressivos. Isto é contraproducente com o objectivo de expressar a experiência
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 14

real por que o próprio acto de escrever já encobre a experiência real de estar falando. Primeiro
há que recuperar as influências das línguas latinas com estruturas mais próximas à do
português.

O equipamento linguístico terá de ser aperfeiçoado até deixar de constituir um problema e


uma vez conquistada a própria voz podemos exercer concentração directa no assunto que
temos em mãos. Os objectivos secundários da linguagem, como obter simpatia ou compensar
o desprezo por nós mesmos, têm que ser removidos da discussão filosófica. Isto também terá
um efeito terapêutico sobre a nossa vida, porque agora sabemos quem somos e também
sabemos que realmente sabemos algo, mesmo se não for possível provar isso para alguém.
Não será a obtenção de uma voz própria que nos tornará incompreensíveis para os outros
mas o conhecimento obtido. Subir na escala de consciência implica necessariamente
tornarmo-nos incompreensíveis para os outros. Ninguém foi mais incompreendido que
Cristo.

O poder do símbolo

A ideia da reminiscência em Platão é paradoxal pois implicaria uma sequência infinita de


reminiscências para poder funcionar. Contudo, esta ideia em Platão não é uma doutrina, é
uma figura de linguagem, um símbolo poético. Não nos chegou o ensinamento técnico de
Platão, destinado aos alunos mais avançados, mas apenas o seu material poético, que é a porta
de entrada onde nada é muito preciso. Em vez de doutrina existem imagens, símbolos a serem
compreendidos. Platão deve ser lido ficando aberto à sugestividade da linguagem, sem querer
tirar conclusões filosóficas porque elas não estão lá, estão no segundo andar, nas chamadas
leis não escritas. Sócrates vai discutindo as coisas, mostrando que as opiniões estão erradas e
quando perguntam qual é a opinião dele, ele conta um mito, não dá opinião nenhuma, ou
seja, ele sugere. O símbolo é uma matriz de ligações (Susanne Langer). A grande vantagem de
ler Platão está nos símbolos que ele fornece e proliferam em centenas de intuições. O símbolo
tem uma função hormonal na inteligência e as eventuais contradições estão montadas de
maneira a abrir a inteligência para outras percepções, não estão fechando conclusões. É neste
sentido que Platão nos alimenta de inspiração para o resto da vida.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 15

Aula 03 – 04/04/2009

Sinopse: Um dos grandes problemas da moralidade reside na transposição das normas e valores
universais para as situações concretas. Sem este problema resolvido corremos o risco de nos
tornarmos fundamentalistas, na acepção de Eric Voëgelin, e passarmos a acreditar em frases
independentemente do que queiram dizer. O Exercício do Testemunho, baseado num texto de
Louis Lavelle, tendo isto em mente, pretende criar as condições na nossa vida concreta para
mantermos a fidelidade à recordação do eu ideal delineado no Exercício do Necrológio. A
questão da honestidade intelectual coloca-se, acima de tudo, no momento da formulação do
testemunho individual e não podemos esperar que o escrutínio dos pares corrija a falta de
consciência moral. Essa mesma honestidade deve ser fortalecida pelo voto de abstinência em
matéria de opinião, onde nos iremos libertar aos poucos da necessidade de aprovação e nos iremos
preparar para formular uma opinião com suficiente experiência pessoal e cultural associada. A
transmissão de conhecimento em filosofia implica um longo percurso para o qual devemos ganhar
consciência e adestramento.

O problema da moralidade e a intromissão do fundamentalismo


Toda a regra moral é genérica, universal, e toda a situação humana é concreta e particular,
assim enunciou S. Tomás de Aquino um dos principais problemas da moralidade. Fazer a
transposição da situação concreta para o sistema geral de normas e valores implica uma
correcta categorização e classificação, onde as possibilidades de erro são muitas. O Exercício
do Necrológio pode ajudar neste processo, pois a ideia de quem queremos ser irá também nos
dar um critério de moralidade que nos ajudará a julgar os próprios actos. O eu ideal tem que
ser portador de virtudes reconhecidas por outros, logo universais, mas concretizáveis de
alguma forma por nós mesmos, caso contrário seria sempre um ideal tão longínquo que nem
tentaríamos colocá-lo em prática. O próprio exercício é uma forma de medirmos a distância a
que nos encontramos desse ideal.
Sem critérios de moralidade que nos obriguem a retroagir os pensamentos de volta à
realidade caímos o risco de nos tornarmos fundamentalistas, na acepção de Eric Voëgelin. Ele
definia um fundamentalista como alguém que acredita em frases independentemente do que
queiram dizer. Os fundamentalistas vêm certas palavras como símbolos queridos, fetiches
que defenderiam contra qualquer coisa. Um exemplo de fundamentalismo é a utilização do
conceito de “democracia integral”, pois a democracia é por natureza um sistema de
proporcionalidade entre poderes. É um conceito que não só não é realizável na prática como
é contraditório consigo mesmo, não corresponde a nada no plano conceptual-lógico. Mas
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 16

isso não impede um fundamentalista de tirar conclusões sobre a “democracia integral”, ter
sentimentos por ela e mesmo usá-la como critério de julgamento. Para o fundamentalista é
irrelevante que as suas palavras nada signifiquem no mundo exterior, porque elas
representam qualidades que ele atribui a si mesmo, além de serem emblemas de troca a usar
com outros fundamentalistas que os identificam como decentes e respeitáveis, ao passo que
outras frases classificarão os seus adversários como malignos e perversos. Mas até os 10
mandamentos podem tornar-se fetiches para um fundamentalista quando não é feito o
exercício de perceber o que significam os mandamentos na experiência real.
Outro exemplo de fundamentalismo é o do professor de Direito que disse que “extrair o
sentido de um texto é o mesmo que extrair o sentido de uma garrafa, o leitor antes atribui
sentido ao texto”. Foi uma frase a que ele se apegou sem perder um minuto para examinar o
sentido, pois bastaria pensar que as próprias garrafas que ele usa têm de ter um sentido ou ele
não saberia que uso lhes dar. E os seus alunos deviam logo ter perguntado se ele pretendia que
eles captassem algum sentido no que ele tinha dito ou se deviam antes atribuir um sentido,
pois a fala dele não deve ser assim tão privilegiada para ser a única a vir com sentido. A partir
dos desacertos que podem existir na comunicação alguém deduziu que está sempre tudo
errado, que apenas existe a projecção de sentido, mas se assim fosse o próprio indivíduo nem
saberia o que projectou, pois quando fosse analisar a sua própria projecção precisaria de fazer
outra em cima, o que levaria a uma série infinita.

A honestidade intelectual resolvida no seio do testemunho


test emunho individual
A confiabilidade do testemunho é essencial no conhecimento. No caso da filosofia temos de
pensar nos seus efeitos a longo prazo e nada provoca danos tão monstruosos como os erros e
mentiras dos filósofos, pensando apenas nos milhões de mortos do nazismo e do comunismo.
Por isso deve existir sempre uma honestidade intelectual proporcional à situação, já que não
existe honestidade integral. Se acreditarmos na nossa veracidade instintiva já estamos no
caminho do engano, pois o apelo da mentira em nós terá uma proporção semelhante ao da
verdade. Temos de nos lembrar sempre que podemos mentir como qualquer outra pessoa e
isso já tem um efeito paralisante. Também não podemos achar que o julgamento dos pares irá
resolver o problema, eles não garantem, pelo seu número, que o coeficiente de desonestidade
diminui. O número nunca pode compensar a falta de consciência moral. Os pares têm como
principal interesse nada mais que obter o seu próprio favorecimento, agora ou depois, porque
também eles irão sofrer o mesmo julgamento.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 17

Exercício do Testemunho – Louis Lavelle


Um novo exercício será baseado num excerto do texto “Testemunho”, colocado em apêndice
no livro “Da Intimidade Espititual”, de Louis Lavelle, publicado em 1955.

Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se


ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o
destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido.
Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e
miseráveis, já não caminhamos senão tacteando por um caminho obscuro
onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar
a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer
deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada
habitual do nosso espírito.

Este exercício, a realizar diariamente, consiste em reviver os momentos privilegiados, o que


remete directamente para o Exercício do Necrológio, que visava induzir a entrada nesse
estado. O grande problema da moralidade, a adaptação da regra geral à situação específica, é o
propósito do Exercício do Testemunho, onde os nossos actos individuais passam a ser
testemunho da realização progressiva do nosso eu ideal pela fidelidade à sua recordação. A
forma prática de realizar isto dá-se através da imaginação, que permite que os valores
universais sejam transpostos de forma concreta para a nossa pessoa.
Louis Lavelle refere os momentos privilegiados, onde o universo revela-nos a sua significação
e aceitamos a totalidade da nossa existência. Para aceitarmos a nossa vida temos de a ver no
seu conjunto, na sua forma final, daí o artifício do necrológio. Está aqui implícita a noção
básica no ser humano de chegar a ser, que está condicionada à noção da morte. Mas a vida que
retratamos não pode reflectir valores que apenas tenham sentido para nós, ela tem de alguma
forma de se inserir em valores universais. Esta vida só foi relatada em necrológio por ser
louvável, e como foi louvável é um exemplo que soa como um conselho. Mas estes são
momentos fugidios e no mundo a que chamamos de concreto tacteamos perdidos, somos
personagens que foram parar ao romance errado, rodeadas de pessoas que mais do que
estarem contra nós, simplesmente não têm forma de conceber o que tentamos fazer. A
tentação será evadirmo-nos para a fantasia ou deixarmo-nos corromper, mas qualquer uma
das opções é uma traição à nossa vocação. A nossa vida terá de ser concebida como um
romance que engloba a nossa situação real mas também as ideias e projectos mais elevados
que temos para nós mesmos.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 18

Sem a imaginação apenas podemos repetir os conceitos abstractos como um papagaio. É o


intermediário imaginativo que permite relacionar o universal com a situação concreta que
estamos vivendo. Existem mesmo sínteses de qualidades nas pessoas inseparáveis a tal ponto
que se tornam impossíveis de definir, mas são perfeitamente alcançáveis pela imaginação. A
imaginação permite conceber o arquétipo de alguma coisa, que pode ser uma vaca ou D.
Quixote, que abrange tudo aquilo que tenha aquelas qualidades de modo parcial, e é a partir
daqui que as verdades abstractas ganham substância de realidade.
O ser humano não enfrenta apenas uma dificuldade lógica para relacionar o universal com o
concreto, por este não vir com as suas categorias e conceitos lógicos correspondentes
explicitados. Ele tem o mesmo dilema em termos psicológicos, porque nele mesmo também
convivem o universal e o concreto; ele tem a sua vivência particular mas também a sua
concepção de um universo dotado de sentido. Será o mundo imaginário, através das analogias
que fornece, que poderá resolver esta dupla dificuldade e poderá dar corpo ao princípio
estruturante delineado no necrológio. Não podemos chegar ao objectivo apenas através do
pensamento lógico. O próprio génio distingue-se não pela inteligência mas pela organização e
riqueza da memória, que lhe permite transitar mais facilmente entre analogias.

A transmissão do conhecimento em filosofia


A técnica filosófica consiste em ligar pensamento a realidade. Neste processo o filósofo irá
conseguir transmitir muito pouco do que ele mesmo descobriu. Existe sempre um antes e um
depois que não está escrito, que no caso de Platão é muito maior do que aquilo que ficou
registado, e tem que ser completado por nós pela imaginação. Por isso é fundamental ter a
noção de que em filosofia só existe obra inacabada, é uma prática que está continuamente se
refazendo, nunca termina, e basta uma palavra que um filósofo disse 20 anos depois da
publicação de um livro para modificar completamente a sua interpretação. Na literatura não
é assim, a obra de Shakespeare contém tudo o que é necessário para a compreender e julgar.
Ao filósofo não basta ter ideias, é preciso memorizá-las. O processo já é em si criativo, o que
para Aristóteles era uma junção entre fantasia criativa com fantasia memorativa, e vai ser a
repetição na memória que vai criar fórmulas cada vez mais concretas e duráveis. A
experiência culturalmente compartilhada, ainda antes de nos oferecer pontos de referência
acessíveis a outros, já nos ajuda no processo memorativo e criativo, pois as nossas recordações
são evanescentes. Quando vamos contar as nossas ideias a alguém temos de usar a linguagem
que é composta de três aspectos. Existe a sua construção material dada pela gramática
(Dante). Dominando esta parte podemos avançar para a construção ideal, dada pela lógica.
Mas quem nos vai ler ou ouvir é uma pessoa real que necessita ser convencida, e por isso há
ainda uma construção psicológica, elaborada pela retórica. Este processo de construção da
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 19

linguagem é neutro em relação ao seu conteúdo objectivo, mas é através dele que podemos
comunicar as nossas intuições que ligam pensamento à realidade.

Voto de abstinência em matéria de opinião


Uma chamada de atenção repetida alerta-nos para nos privarmos de dar opinião. Devemos
logo evitar opiniões inúteis. Se não fomos convocados para dar opinião e se essa opinião não
acrescenta nada de válido, não há nenhum motivo para apresentá-la. Devemos também nos
abster da opinião que não estiver carregada de experiência pessoal e cultura suficiente. Antes
de elaborar uma opinião temos de saber o estado da questão. Sem isto, a opinião será um
conjunto de palavras onde projectamos valores naquele momento e no dia seguinte, no
parágrafo seguinte ou até na mesma sentença já estamos esquecidos do que estamos falando.
O direito de emitir uma opinião corresponde ao direito do outro em não ouvi-la. Repetir os
estereótipos que todos falam dá um certo ar de unidade que esconde a fragmentação na
mente que está por trás. Isto é loucura em sentido estrito. Muitas vezes estaremos numa
situação de conflito em que nem chega a existir divergência de opiniões; a única coisa que
podemos fazer será mostrar que o outro não pensou nada, nem chegou a ter uma opinião
errada, teve apenas uma reacção emotiva que, por ser similar à dos colegas, vai parecer que
significa alguma coisa. No fundo, isso é desejo de aprovação social.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 20

Aula 04 – 18/04/2009

Sinopse: Os elementos de dispersão moral diferem hoje bastante dos inimigos da alma inscritos
nos sete pecados capitais. Os novos factores de alienação derivam da intromissão do Estado em
todas as relações humanas e da pressão dos elementos exteriores, que fazem de nós fracas figuras
desejosas de aprovação. O Exercício do Testemunho mostra-nos que a realidade exterior não é
nenhum solo duro e a unidade da consciência só pode ser obtida quando assumimos o domínio da
nossa biografia. A literatura deve ser usada para fortalecer a consciência ao povoar o nosso
imaginário de um conjunto de situações e personagens humanas que nos sirvam para identificar
situações reais por analogia. O nosso plano de estudos deve responder ao nosso reportório de
ignorância, que tem que ser elaborado fazendo a distinção entre o que ignoramos mas devíamos
saber e aquilo que ignoramos porque faz parte do desconhecido próprio da estrutura dos objectos.
A paralaxe cognitiva coloca um mundo inventado no lugar do mundo real e teve origem na
divisão entre fenómenos primários e secundários estabelecida pelos filósofos da entrada da
modernidade. Para conhecermos uma pessoa temos de conhecer a sua biografia.

Continuação do Exercício do Testemunho

Na continuação da aula anterior, começamos por colocar um excerto mais alargado do texto
“Testemunho”, de Louis Lavelle.

Há na vida momentos privilegiados nos quais parece que o universo se


ilumina, que nossa vida nos revela sua significação, que nós queremos o
destino mesmo que nos coube, como se nós próprios o tivéssemos escolhido.
Depois o universo volta a fechar-se: tornamo-nos novamente solitários e
miseráveis, já não caminhamos senão tacteando por um caminho obscuro
onde tudo se torna obstáculo a nossos passos. A sabedoria consiste em conservar
a lembrança desses momentos fugidios, em saber fazê-los reviver, em fazer
deles a trama da nossa existência cotidiana e, por assim dizer, a morada
habitual do nosso espírito.
Não há homem que não tenha conhecido tais momentos, mas ele os esquece
depressa como um sonho frágil, pois ele se deixa captar, quase imediatamente,
por preocupações materiais ou egoístas que ele não consegue ultrapassar porque
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 21

ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo
que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos
privilegiados, mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo
horizonte é infinito, do qual todas as partes são solidárias e que está sempre
oferecido ao nosso pensamento e que, sem jamais dissipar as sombras da
caverna, nos ensina a reconhecer em cada uma delas o corpo luminoso do qual
ela é a sombra.

Com a realização deste exercício iremos perceber o nosso medo de uma existência
verdadeiramente humana. A desvalorização e esquecimento dos momentos privilegiados
decorrem da covardia que nos fez cair de joelhos diante das pressões exteriores e justificamo-
nos retroactivamente dizendo que abandonamos o mundo dos sonhos para pisar o solo duro
da realidade. As pressões exteriores estão sempre presentes e aqueles momentos onde existe
unidade da consciência, em que não existe hiato entre realidade e idealidade, são fugidios,
mas daqui não se pode concluir que a realidade resida nos primeiros. O mundo empírico e as
situações externas têm uma natureza transitória, apresentam-se à nossa consciência como um
fluxo de ilusões, mas se lhes prestarmos culto entraremos numa posição existencial onde a
compreensão da nossa existência e da própria realidade externa torna-se impossível. Uma
realidade mais estável e permanente remete necessariamente para a experiência da unidade da
consciência. É este poder de perseverar em si mesmo que se subentende na definição de
filosofia como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, mais do que a
mera aquisição de conhecimento. É uma prática espiritual onde todos os factos são encarados
à luz do que é definitivo e irrevogável, a morte, entendida como o final do ciclo de
transformações. Aquilo que foi, foi e aquilo que não foi jamais será. Apenas neste nível pode
existir uma verdadeira sinceridade e seriedade, caso contrário seremos presas fácies das
expectativas do momento, que não são mais que a materialização da opinião dos outros, os
nossos desejos e ilusões, a pressão que vem dos pares, da família, do emprego, de algo sempre
transitório. Damos tanta importância a estas coisas em parte por elas serem a negação de
tudo o que queremos ser. Traímos o que há de mais próprio, íntimo e verdadeiro em nós por
respeito medroso a uma transitoriedade que nos afasta sempre do centro da nossa
consciência. Tudo em filosofia tem de ser feito com a ideia da morte em nossa frente, só
valem as ideias dos náufragos, como dizia Ortega e Gasset. Mas não é a morte o grande risco
que corremos, segundo Georges Bernanos, mas sim morrermos como imbecis. Para quem é
religioso pode haver a tentação de substituir a ideia da morte pela atitude face a Deus. Mas
ninguém sabe o que é Deus, o nosso diálogo com Ele já está viciado pelos nossos preconceitos
e pelas pressões do meio. Antes de falar com Cristo temos de encontrar a nossa própria voz
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22

pois Ele recusa-se a ouvir outra. Mas todos sabemos algumas coisas definitivas sobre a morte e
esse será o nosso ponto de ancoragem.

Os factores de dispersão moral


Os elementos de dispersão moral, aqueles que fazem esquecer o propósito moral da nossa
vida, são muito diferentes daqueles que apareciam nas situações de vida no tempo de Santo
Agostinho e na Idade Média, quando os clássicos da educação apontavam como principais
inimigos da alma os próprios desejos, em especial os desejos de prazer e de riquezas. Naqueles
tempos a criação de riqueza era quase nula e não existiam os inúmeros serviços disponíveis
hoje. As doenças eram um flagelo e a insegurança generalizada. Mas estes problemas pesavam
sobre o conjunto da comunidade e não opunham o indivíduo a ela. Supomos hoje, pelas
conquistas de liberdades e direitos civis reflectidos na história jurídica, que aqueles tempos
eram também de grande opressão. Mas o que é jurídico só vale em tribunal e o que decide a
conduta no dia-a-dia passa muito mais pela organização económica das sociedades e pela
disposição física das cidades.
O ambiente de liberdade vivido na antiguidade e Idade Média é para nós inimaginável. A
relação com o trabalho era totalmente diferente da existente hoje e muito menos opressiva. A
maior parte das pessoas trabalhava em casa ou muito perto de casa, quando hoje é frequente
ser necessário mais de uma hora em transportes para chegar ao local de trabalho. Também
não existia uma separação rígida entre momentos de trabalho e de lazer. O elemento lúdico e
o de trabalho estavam tão indistintamente ligados que não era necessária uma data específica
para os lazeres. O cidadão comum também não vivia sobre a pressão dos horários. Apenas
para os monges existiam horários rígidos, por razões de disciplina que eles mesmo desejavam
e lhes faziam bem. Para as restantes pessoas era tudo altamente flexível, mas hoje uma
desobediência ao relógio pode destruir uma vida.
As inegáveis vantagens que a sociedade moderna oferece, progressivamente a partir da
Revolução Industrial, vieram associadas a um enorme conjunto de pressões e exigências que
seriam insuportáveis para um camponês da Idade Média. Nunca como hoje foi tão fácil ser
marginalizado e ostracizado e a própria organização física da sociedade contribui para isso.
São factores novos que não fazem parte da natureza humana e por isso não estamos
automaticamente habilitados a lidar com eles. Os elementos alienantes inscritos nos sete
pecados capitais, como a cobiça e a luxúria, pesam hoje muito menos que o próprio medo da
cobiça e da luxúria. Um dos principais elementos alienantes nas sociedades modernas é o
desejo de aprovação, o que faz de nós pessoas excepcionalmente tímidas que não têm a
sinceridade de se conhecer a si mesmas.
Os próprios elementos da moral cristã que se incorporaram nas leis do Estado e nos hábitos
sociais, ao se desvincularem da sua raiz original, tornaram-se elementos de pressão alienantes
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 23

ao ponto de impedirem uma vivência realmente cristã. O cristianismo intrometeu-se na


sociedade antiga para dar uma família aos escravos, para acudir as mulheres repudiadas e
proteger as crianças, que podiam ser alvo fácil de pedofilia ou até ser mortas à nascença se
indesejadas. Mas passados muitos séculos o Estado chamou a si a supervisão das instituições
criadas por inspiração cristã. O Estado passou a mediar todas as relações humanas e todos
passaram a estar sobre vigilância constante à espera de um erro para serem punidos. A
principal preocupação do Estado moderno é a sua própria manutenção e crescimento. Para
isso utiliza a estratégia “dividir para reinar”, coloca todos sobre suspeição mútua pela
exploração das pessoas que gostam de se vitimizar e fazer mexericos, e depois oferece a sua
protecção. Esta protecção do Estado é um poderoso elemento de alienação.
O tema do escritor cristão François Mauriac é mostrar que o maior obstáculo a uma vida
cristã é precisamente um meio social construído sob o nome de valores cristãos, que depois
foi contaminado pela ideologia burguesa e os valores positivistas. A alma assim sufocada
entra muitas vezes em transgressão por desespero, mas a saída da alienação terá de passar por
falar com Deus com a própria voz.
O nosso discurso interno de acusação e defesa acaba por ser também uma teatralização
alienante. Colocamo-nos numa posição do juiz omnisciente que julga as duas partes. Mas
quem nos acusa é o diabo e quem nos defende è a nossa vaidade, personificados numa plateia,
anónima ou de nossos conhecidos. Nem nós estamos qualificados para sermos juízes em casa
própria, isso cabe o verdadeiro observador omnisciente, nem nenhuma das partes, de
acusação e defesa, fala a verdade. Se nos viciarmos neste teatro vamos achar que todas as
outras pessoas com quem nos relacionamos também fazem parte dele e ficamos fechados à
verdadeira comunicação humana. Uma solução simples, usada há séculos, para terminar com
este teatro é simplesmente rezar, o que também serve para pôr fim ao discurso de queixas e
recriminações.

A restituição da unidade da consciência


Se somos oprimidos pela presença dos elementos alienantes, também ficamos angustiados
pela sua ausência. Já não sabemos viver sem a pressão dos horários ou sem as cidades que
maldizemos ou sem aquelas relações que nos esfrangalham. Os elementos alienantes já foram
integrados em nós. Há em nós um advogado que fala em seu favor e contra nós. Muitos
querem vencer a sociedade materialmente mas falham porque o que há a vencer é a sociedade
em nós, pois o nosso instinto alienante pesa mais que tudo o que venha de fora. Se tivermos a
ideia que somos melhores que a sociedade, a ruptura com a sociedade só nos tornará mais
falsos e alienados. Pior ainda é exibir uma pose de transgressão por saber que a caricatura do
alienado tem sempre uma certa aprovação da sociedade em tempos de contracultura. Isto
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 24

pode até ser recompensado com verbas públicas para recompensar os supostos serviços
prestados.
Temos um medo enorme das pressões exteriores, mas elas não nos irão destruir, como
supomos; o medo deve ser sempre proporcional à ameaça real. Não aceitar as pressões vai nos
tornar mais fortes, individualizados e até mais respeitados. Não devemos temer a solidão que
vem do afastamento das pessoas que só nos querem puxar para baixo. Nem devemos
continuar no jogo recorrendo aos alívios que a sociedade moderna coloca ao nosso dispor,
pois estes não resultam para os fins a que nos propomos. Goethe achava que se devia fugir à
escravidão da sociedade cumprindo todas as obrigações para com ela. Assim seremos
superiores à sociedade e não permitiremos que ela nos derrube, faça de nós uma vítima e nos
marginalize. No caso específico das pressões dos colegas, também não as devemos temer, é
preferível seguir o conselho de Maquiavel, ser temido em vez de amado, mostrar que sabemos
muito mais que eles e os podemos desmascarar a qualquer altura.
A noção de que existe uma alma contra a sociedade originou o género romance, definido por
autores como Balzac e Walter Scott. A identificação das pessoas com os heróis dos romances,
que vivem uma falta de harmonia com a sociedade, só foi possível com numa situação real
onde as forças de alienação tentavam demolir a unidade interior e onde a sociedade suscitasse
nos indivíduos anseios muito acima dos concretizáveis para a maioria. O problema assim
extremado e clarificado pode ser equacionado para uma solução, como fez Louis Lavelle. Ele
percebeu onde estava o fulcro do problema e que era a partir dali que tinha de ser resolvido.
A unidade da consciência é retomada assumindo o domínio da própria biografia. Passamos a
aceitar totalmente o destino que nos coube, que tem um sentido apontado pelos momentos
fugidios, dos quais devemos guardar memória, e a nossa oposição deve ir apenas para os
elementos alienantes. Precisamos pensar durante muitos anos sobre a nossa vocação, para
descobrir onde está a pureza daquilo que queremos ser, pois lidamos com material
ambivalente. Os meios que servem para realizar a nossa vocação também podem ser meios de
alienação, por isso temos de ser dotados de muita lucidez. Isto já é entrar no caminho da
filosofia e sem esta postura os próprios estudos serão uma busca vã de erudição motivada pelo
desejo de aprovação. É a nossa força moral que irá graduar a nossa quantidade de estudos, e
quando essa força já estiver suficientemente desenvolvida, quando já não tivermos nenhum
ponto de apoio na sociedade, nenhum ídolo mesmo que cristão, aí começamos a falar com
Deus.

A utilização da literatura
A consciência vai se apropriar da experiência através dos meios de expressão verbal e só
depois pode raciocinar em cima. A literatura fortalece a consciência ao fornecer um
dicionário de situações que será usado para reconhecimento de outras situações por analogia.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 25

O escritor, ao tornar a experiência dizível, vai retirá-la dos cofres individuais e transformá-la
num bem comum. Proust elucida-nos sobre os mistérios do cair no sono nas páginas
inaugurais de Em Busca do Tempo Perdido. Perceberemos também melhor os elementos de
alienação da cultura brasileira depois de ter lido O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, e as
obras de Lima Barreto como Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Queremos da literatura
aquilo que os escritores conseguiram verbalizar em termos de impressões autênticas. Os
estudos literários propriamente ditos podem nos afastar disso, mas têm a sua utilidade para
nos ensinar a ler autores antigos, elucidando questões formais e de vocabulário.
A literatura do século XX pode nos afastar do caminho da filosofia porque foi perdendo a
integridade do eu. Para a filosofia é fundamental essa integridade, pois só assim podemos
contar a nossa própria história e falar com a sinceridade mostrada por Santo Agostinho. A
dissolução do eu, que se vê em Kafka onde só existem fragmentos, ou em Proust que só lida
com estados mentais, vai criar uma consciência psicótica que já não consegue juntar causa e
efeito e onde a noção de responsabilidade individual torna-se impossível. Este padrão
começou na alta cultura e transferiu-se depois para toda a sociedade. A própria civilização
precisa de um referencial mínimo dado pela poesia e pela religião para poder existir. A poesia
moderna tornou-se muito hermética e de difícil compreensão por remeter para experiências
intelectuais e espirituais muito elaboradas. Mas a poesia usava originalmente toda uma série
de recursos sonoros e formas repetíveis para mais facilmente invocar a experiência relatada,
pois ela é a expressão mais primária da literatura que tenta exprimir de forma mais directa a
experiência.
O critério para saber se lemos com qualidade passa simplesmente por averiguar se as obras
literárias que estamos lendo nos ajudam a compreender as situações reais da vida. O processo
é gradual, só vamos poder fazer de início comparações muito genéricas, da mesma forma que
a fala da criança utiliza poucas palavras para muitos significados e só depois parte à conquista
do termo próprio. Devemos ir aumentando o nosso vocabulário de situações e personagens
humanas, para que este se ajuste cada vez mais às situações concretas, utilizando para isso, em
primeiro lugar, as grandes obras, pois estas possuem maior vitalidade e não são cópias de
cópias. Para ler bem um livro é necessário ter lido muitos livros, dizia Jorge Luís Borges.

A natureza do conhecimento
A ideologia científica parte do pressuposto que o estado de desconhecimento é algo
provisório e que será futuramente corrigido. Isto é uma recusa em aceitar a estrutura da
realidade, uma postura alienada. A realidade tem um coeficiente intrínseco de
desconhecimento que não pode ser vencido. Nenhum objecto pode se mostrar a nós em
todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Por outro lado, a ideia de um conhecimento total
aplicada a um ser humano não faz sentido, só seria aplicável a um ser eterno. O ser humano
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 26

lida naturalmente com o desconhecido na sua vida cotidiana, qualquer pessoa lida com o
desconhecido quando conduz um automóvel e não sabe o que está depois da curva. Mas no
domínio intelectual muitos acreditam que o desconhecido é um mero acidente a ser vencido.
Um indivíduo dominado pela ideologia científica pode acreditar que já conhece tudo a seu
respeito ou achar que tudo o que desconhece é irrelevante. Ele até acreditará que pode existir
uma concepção científica do cosmos, sendo isso impossível pois todo o conteúdo da ciência
não abarca um infinitésimo do cosmos e ela só pode se pronunciar sobre o que conhece. Se
queremos nos dedicar seriamente ao conhecimento devemos começar por distinguir dentro
do desconhecido aquilo que é fruto da nossa ignorância e aquilo que ignoramos por isso fazer
parte da própria estrutura dos objectos. Daqui vai sair o repertório da nossa ignorância, que
passa a ser um plano de estudos. Isto foi feito de forma notável por Eric Voëgelin a propósito
dos fenómenos de massas. O processo pode ser atrapalhado se não reduzirmos o número de
opiniões, que tornam difícil a graduação da confiabilidade dos conhecimentos. As opiniões
podem vir de múltiplos lugares, mas a partir do momento em que as expressamos passam a
compor a nossa auto-imagem.

A origem da Paralaxe Cognitiva


Na entrada da modernidade os filósofos começaram a fazer uma separação entre os dados da
realidade como primários e secundários. Os primários seriam os que podiam ser medidos,
como o peso e o tamanho; os secundários aqueles que dependiam da presença de um
observador, como a cor ou o gosto. Não é verdade que só os dados primários possam ser
matematizáveis por poderem ser medidos, já que os secundários também podem ser medidos.
Além de que as estruturas matemáticas não vão operar sobre os objectos em si mas sobre as
próprias medidas. Só Deus pode conhecer a lei de proporcionalidade intrínseca dos objectos
(conceito de Mário Ferreira dos Santos), e qualquer ciência faz as medições com vista a
responder às próprias perguntas que essa ciência faz, servindo-se de medidas extrínsecas para
tal, que também são relativas a um observador humano. Esta série de confusões colocou uma
fórmula matemática inventada como realidade primária no lugar do objecto concreto com
todo o seu tecido de relações e acidentes. Quando o mundo inventado substitui o mundo da
experiência fica consolidada a paralaxe cognitiva.

O conhecer uma pessoa em profundidade


Um exercício aconselhado consiste em imaginar a vida de pessoas que conhecemos como se
fosse um romance. O conhecimento que temos das pessoas é em geral muito superficial, mas
para aprofundarmos esse conhecimento será necessário abordar três níveis. O nível elementar
é o conhecimento intuitivo que advém dos simples sinais que nos chegam da presença de
alguém. Num segundo nível alargamos a nossa visão para abarcar a pessoa no meio onde ela
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 27

vive, com as suas tensões, os seus problemas, a sua situação própria. O terceiro nível, que se
enquadra dentro do exercício mencionado, consiste em conhecer a pessoa em termos
biográficos. Temos de imaginar a pessoa dentro de um fio de desenvolvimento temporal que
já começou há muito tempo e se irá projectar no futuro. Outro exercício, que também
implica a utilização da veia de romancista, é fazer um roteiro de um filme a partir de um livro
ou, pelo contrário, a partir de um filme elaborar uma narrativa verbal.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 28

Aula 05 – 25/04/2009

Sinopse: Em filosofia a exposição lógica baseia-se em experiências reais para as quais devemos
evocar análogos. Por vezes essa experiência está camuflada, como no caso de Descartes ao expor a
“dúvida radical”, e se aceitarmos as contradições entramos num jogo de cartas marcadas onde
seremos psicologicamente dominados. O filósofo só tem direito de argumentar em nome da
realidade. O treino literário serve para compreender as evocações presentes na linguagem
filosófica e para criar análogos experienciais. Refutar uma ideia poderá não limitar em nada os
seus efeitos sociais. Os nossos modelos de entendimento são dados pelas formas consolidadas na
memória. A ignorância faz parte da estrutura humana e o esquecimento persegue-nos sempre. A
fé originalmente significava confiança numa pessoa – a presença do Cristo agindo – e não se lhe
aplicam as mesmas categorias que a racionalidade. Para desenvolver o senso de realidade não se
deve colocar a tónica na sensibilização mas na presença. A realidade deve ser vista apenas como
indicadora dela mesma e não devemos querer tirar conclusões antes dos factos se desenrolarem.

O fundo de experiência por detrás da exposição lógica

Escreve Benedetto Croce na entrada do livro Lógica Como Ciência do Conceito Puro:

O pressuposto da actividade lógica são as representações ou intuições. Se o


homem não representasse coisa alguma não pensaria, se não fosse espírito
fantástico não seria também espírito lógico.

Na ficção e na vida a dificuldade é encontrar uma explicação para o sucedido. Na filosofia


acontece o oposto, parte-se da explicação mas falta saber ao quê aquela explicação se refere. As
coisas expressas na linguagem lógica exprimem apenas o mundo da possibilidade; se isto
aconteceu então aquilo também acontecerá, mas não sabemos se isto aconteceu mesmo.
Todas as certezas assim obtidas são vazias e uma filosofia trabalhada apenas a este nível pode
apenas ser compreendida convencionalmente e não realmente. O raciocínio pode apenas
lidar com conceitos verbalizáveis e não com dados puros da experiência, pois estes não são
transportáveis. Contudo, foi a partir de experiências humanas que as discussões lógicas
tiveram origem, pelo que é tarefa do filósofo retirar o fundo de experiência originário da
exposição lógica. Este é um trabalho imaginativo, trata-se de uma transposição da linguagem
filosófica para a linguagem poética. Não temos a obrigação de recriar exactamente as
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 29

experiências que motivaram os filósofos, bastam-nos análogos que nos coloquem numa
posição de compreensão tal que aquela exposição podia ter sido feita por nós. Isto é 90% do
trabalho de leitura. Esse trabalho deve ser feito de início sem julgamentos, sem achar que
aquilo é bom ou mau, verdadeiro ou falso. Tentaremos ver a experiência tal como o filósofo a
viu, não negaremos esse grau de co-participação e simpatia por receio de sermos
influenciados, pois essa influência será parcial e vai diluir-se no meio de outras influências.
A própria discussão filosófica tem um confronto dramático por detrás. Para compreender
uma filosofia temos de saber contra quem ela se levantou polemicamente, segundo Benedetto
Croce. Em consonância, Julian Marías dizia que a fórmula filosófica não era “A=B” mas sim
“A não é B mas sim C”. Mais que o confronto de ideias existe um confronto de pessoas que
tem que ser reconstituído. Para isso partimos das doutrinas e usamos a experiência literária.

O encobrimento da experiência por Descartes


Na apostila “Consciência e Estranhamento” (que se pode encontrar em
http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/descartes2.htm) é feito um trabalho de retirar o
fundo de experiência que se encontra por detrás das Meditações Metafísicas de René
Descartes. Este é um caso particularmente delicado pois a experiência sugerida por Descartes,
a “dúvida radical” não é algo que possa ser de facto vivenciado, nem em termos psicológicos.
Algo só é duvidoso por contraste com algo que não o é, e a própria formulação de uma
dúvida apoia-se em certezas prévias. Temos, então, o encobrimento propositado da
experiência, algo causado por um estado de grande angústia, incerteza e medo. Descartes teve
três sonhos onde o diabo o tentava enganar e ele tenta encontrar um ponto de apoio
puramente lógico e discursivo. Como o diabo domina melhor a lógica que Descartes, ele teve
de apelar duas vezes para Deus pois o seu problema era realmente teológico.
O método de Descartes, ao invés da fama de rigor que goza, deve ser desmascarado por ser
baseado numa camuflagem de uma alucinação. Não compreender que Descartes tentou
dominar-nos psicologicamente, ao impor os seus estados interiores como o único facto, é
aceitar entrar num jogo de cartas marcadas. Isto deu origem a uma série de jogos intelectuais
estéreis, onde nunca é possível encontrar a solução dos problemas propostos. A filosofia
moderna assim iniciada é caracteriza-se pelo embuste estrutural, mesmo que acerte em
muitos detalhes, ao contrário das filosofias de Platão e Aristóteles, que têm muitos erros de
detalhe mas mantêm a estrutura intacta.
Descartes mostrou um exemplo de alienação, aqui entendida como a acção amputada da
situação existencial real, criando por cima um esquema teatral onde nos forçamos a nós e a
outros, por acção psicológica, a entrar. É uma acção cognitivamente irresponsável pois o
indivíduo finge não estar fazendo aquilo que está a fazer. Descrates necessitou de muitas
certezas para exprimir uma dúvida, pelo que a dúvida não pode ser prioritária mas é apenas
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 30

um aspecto secundário de uma certeza incompleta. Ele ainda diz que só podemos acreditar
em algo quando temos uma prova, mas a prova é um elemento discursivo que, em última
instância, apoia-se sempre em evidências intuitivas não passíveis de prova. A prova é
requerida quando a evidência intuitiva não está presente.

A postura do filósofo
O filósofo só tem o direito de argumentar em nome da realidade e não o pode fazer para
justificar as próprias deficiências. Ele só tem o poder de investigar uma pequena parcela da
realidade; ele não é superior a ela, é apenas mais um no esforço milenar para a tornar
inteligível, podendo tornar translúcida a experiência que era opaca mas não pode superar a
substância ali presente. O filósofo tem de ser um leitor atento que detecta as contradições e
não se deixa manipular psicologicamente por outros pensadores ou acabará por se tornar
incongruente com ele mesmo. Para isso terá sempre de tentar retirar o fundo de experiência
que se encontra nas ideias.
Um exemplo de um conceito auto-contraditório é o “movimento perpétuo”, estabelecido
por Newton, pois algo que transcende tempo não pode ser medido temporalmente. Outra
armadilha “científica” está em achar que um objecto, como uma mesa, na realidade é um
aglomerado de átomos, que é o observado noutra escala. Mas uma mudança de escala não
pode significar uma passagem do aparente para o real. A ciência moderna promete oferecer
um terreno neutro onde tudo pode ser medido e quantificado, mas ela foi instaurada por
ocultistas, gnósticos, esotéricos, mágicos, e traz uma camuflagem que se for aceite vai fazer-
nos entrar num jogo de cartas marcadas onde seremos manipulados.

O enriquecimento através da literatura


Adquirir a linguagem elaborada e conceptual do meio académico só é um progresso se a
anterior linguagem não for desaprendida, caso contrário será a conquista de uma deficiência.
O progresso não pode ser feito desprezando o universo da experiência ou iremos adquirir
uma linguagem vazia. A formação literária que nos interessa, pelo contrário, pretende
fornecer elementos para podermos reconstituir experiências reais. Se enveredarmos pela
análise literária moderna estaremos a mudar o foco, deixamos de apontar para as personagens
e para as situações e iremos nos centrar nos meios de expressão utilizados.
O conjunto de situações humanas é limitado e, segundo Northrop Fried, já estaria dado na
própria Bíblia. Até ao século XIX o património comum dos filósofos era precisamente a
Bíblia e o teatro grego, sendo fundamental para nós absorver estes elementos literários para
compreender as alusões feitas. A linguagem filosófica não é autónoma, é construída sobre o
património literário existente.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 31

Ideias que se propagam para além do túmulo


Refutar uma ideia não é garantia que ela perca a sua capacidade de influência social. Averróis
achava que existia apenas uma inteligência superior para todos, algo totalmente refutado por
S. Tomás de Aquino, mas depois o conceito aparece no “Intelectual Colectivo” de António
Gramsci e na “Vontade Geral” de Rousseau. Um século antes da reforma protestante os
teóricos católicos já tinham deitado abaixo a doutrina protestante que tinha sido apresentada
por John Whitecliff. No final do século XIX e início do século XX, a escola austríaca, por
Ludwuig von Mises e Eugen von Böhm-Bawerk, refutou as teorias centrais de Marx mas a
influência marxista no mundo fez-se sentir sobretudo daí para a frente. Recentemente
Sylvain Gouguenheim mostrou no livro Aristotle au Mont Saint-Michel que era errada a ideia
das imensas contribuições islâmicas para a cultura europeia, pois a transmissão da cultura
grega deu-se por outras vias. Poderemos assistir se esta revelação será ignorada como tantas
outras.

As formas imaginárias como modelos de entendimento


Reconhecemos algo por comparação com as formas já consolidadas em nossa memória. É ao
fazer o jogo de semelhanças e diferenças – uma analogia – que iremos perceber o que é
repetido na nova situação e aquilo que ela tem de próprio. Quando esta situação já estiver
incorporada poderá servir de base para novas comparações. As formas imaginárias são os
nossos modelos de entendimento e se algo ocorrido não se enquadrar nelas não terá
inteligibilidade nem credibilidade. Poderosos criadores de formas imaginárias são o cinema, a
literatura e a ficção.

A ignorância
ignorância e o esquecimento como partes integrantes da estrutura humana
Apenas em Deus pode existir a unidade do conhecimento na unidade da consciência. A
filosofia é uma busca disto, interminável devido à finitude do ser humano. Imaginamos
poder chegar a um conhecimento divino, que em nós se incorporaria para sempre e nos
reconstituiria, mas apenas Deus pode fazer isso em nós sem qualquer intervenção nossa. Para
além de uma ignorância que nos é estrutural, há também um esquecimento que nos persegue
sempre. A humanidade também é assim, o esquecimento é um dos seus mecanismos
fundamentais ao ponto de ser um dos pressupostos de muitas operações internacionais. Uma
história do conhecimento não mostra a realidade, a ignorância é muitas vezes um
acontecimento mais relevante que todos os outros. A abstracção pode ser a fonte de alguns
desses erros, mas em si mesma é uma capacidade porque cria foco e dá visibilidade às coisas,
mas se esquecemos de onde saiu a abstracção estaremos a criar uma alucinação.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 32

O problema da transmissão
trans missão do conhecimento
A nossa personalidade intelectual, a camada 9, é em grande parte constituída por experiências
e símbolos incomunicáveis. O que é característico da nossa personalidade é ela ser nossa e não
compartilhada. Podemos explicar algo que daqui emana mas de preferência apenas a quem
está realmente interessado. Explicar algo a quem não está interessado em saber só deve ser
motivado pelo dever e ainda assim só quando estivermos preparados para isso. Essa
preparação advém de tanto explicarmos a nós mesmos, mas nunca devemos esquecer que é o
próprio conhecimento que nos torna incomunicáveis.

Exercício do Necrológio visto à luz da teoria das 12 camadas da personalidade


As camadas da personalidade são novos padrões de unificação da personalidade, que se abre
para novos interesses, diferentes objectivos e isso vai unificar a nossa vida naquela fase.
Devemos questionar a que camada da personalidade que achamos que conseguimos chegar e
até onde projectamos esse alcance no Exercício do Necrológio.

A coexistência
coexistência entre fé e razão
Na acepção moderna, fé significa acreditar numa doutrina. Mas no início, fé queria dizer
confiança numa pessoa, na própria presença do Cristo agindo. Não existia doutrina católica
nas origens. Ela foi sendo desenvolvida lentamente a partir das objecções que a narrativa dos
evangelhos suscitava, o que foi mostrado por Alois Demps no livro La concepcion del mundo
en la Edad Media. A doutrina apareceu para sustentar a confiança quando esta não bastava,
mas ao responder a objecções só deu pretexto a que mais objecções fossem levantadas. A
doutrina não pode substituir a fé, entendida como a confiança numa pessoa. Neste sentido a
fé não se opõe nem deixa de se opor à racionalidade, não têm nada a ver uma com a outra. A
racionalidade aplica-se ao mundo das ideias e não aos factos, que não se enquadram nas
categorias de racional ou irracional. Podemos questionar a veracidade de uma narrativa, não a
sua racionalidade. Confiar ou não numa pessoa é decisão nossa, em si nem racional nem
irracional. Podemos alegar contra uma narrativa motivos de verosimilhança que têm uma
estrutura racional. A discussão que se coloca em cima é que será racional ou irracional.

O círculo fechado das opiniões


Chesterton disse que a diferença entre o poeta e o louco é que o louco mete o mundo na
cabeça e o poeta a cabeça no mundo. A discussão com o louco é impossível porque este vive
num círculo perfeito e a única solução é mostrar que esse círculo é pequeno, mesquinho,
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 33

triste. O mundo não foi inventado por nós, nem as nossas ideias alguma vez o poderão
abranger, por isso temos de nos abrir para ele e deixar que a realidade nos ensine. O círculo
fecha-se na pressa de chegar a conclusões. Devemos ter noção de quando as nossas opiniões já
têm algum mérito e uma forma de medir o seu valor passa logo por ver o trabalho que
tivemos para obtê-las.

Desenvolvimento do senso de realidade


A distinção entre uma crença infundada e uma evidência intuitiva é ela mesma intuitiva. A
evidência intuitiva caracteriza-se pela presença do objecto, directa ou através da imaginação.
Já a crença infundada é difícil ser imaginada como uma realidade concreta. Para perceber a
diferença é necessário desenvolver o senso do concreto, o que implica uma abertura para a
realidade pois é dentro dela que a situação tem que ser imaginada. Um exercício para ir
obtendo esta abertura é ficar deitado num descampado à noite, sentindo a terra debaixo de
nós e olhando a infinitude do céu em cima; perceber que é ali mesmo que estamos naquele
momento, sem o nosso universo discursivo ou a rede social para nos apoiarmos. O exercício
não visa obter nenhuma conclusão, nem se trata de um exercício de sensibilização. É apenas
uma questão da realidade se revelar na sua plenitude, perceberemos coisas sem fim, algumas
que nem estarão presentes pelas sensações. Sentir mais coisas seria também uma forma de
centrar a atenção no nosso corpo, mas este e os nossos pensamentos são apenas uma parte da
realidade e o que querermos é que ela se manifeste por inteiro. Por isso a tónica não é a
sensibilização mas a presença. Por maior que seja o universo ele não nos chega caótico mas
terrivelmente organizado, manifestando-se consoante os seus modos de presença. Temos de
aceitar a realidade e não ir atrás dela. Não temos de nos esforçar para que os pensamentos
cessem, mas quando eles surgirem temos de nos lembrar que estamos pensando naquele
lugar, naquele momento e naquela situação precisa.
Com esta noção de presença física no universo, que é o senso da presença maciça da
realidade, percebemos a total impotência do nosso pensamento, uma impotência também
manifestada nas situações de grande perigo. A realidade vale mais que qualquer ideia e
desenvolvendo o senso dela perceberemos o que Voëgelin queria dizer ao afirmar que a
experiência da realidade é em si mesma transcendente e abre-nos para o infinito
necessariamente. É necessário um pouco disto para diferenciar uma crença infundada de uma
evidência intuitiva. A crença infundada só vale pela repetição mas nós sabemos que o chão
continua para além do que podemos ver sem precisar pensar. O universo filosófico devia logo
por começar a englobar este tipo de coisas, mas é o oposto e é enorme o número de ideias em
circulação que desmente a existência da própria realidade.
O caminho da filosofia consiste em vencer o medo de perceber que somos um átomo na
realidade e quase nada criamos, recebendo quase tudo de fora. Maior medo devemos ter de
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 34

escapar da realidade e impedir que esta nos ensine. Aristóteles chamava thambos ao espanto e
horror face à realidade. Mas ao invés de fugirmos da realidade pelo medo que elas nos
infunde, devemos nos abrir a ela pois foi assim que nasceu a filosofia. Em filosofia a realidade
não deve ser vista como fornecedora de sinais para outras coisas mas apenas como indicadora
dela mesma. Não devemos logo nos transpor do mundo da experiência para o mundo dos
nexos de significação antes da realidade nos dizer como as coisas são. Tudo é discurso divino,
pois Deus escreve com palavras e coisas, segundo S. Tomás de Aquino, temos de esperar que
Ele termine de dizer. Não se trata de decifração mas de aceitação. Um sonho que vem de
Deus não necessita ser interpretado. O que é básico é aceitar o estado de ignorância, não
devemos tirar conclusões antes dos factos se desenrolarem.
Uma cultura que se separa dos problemas fundamentais da vida vai limitar-se a abordar os
problemas da convivência social. A complexidade do ser humano fica assim reduzida ao que é
possível enquadrar numa psicologia medíocre.

Você também pode gostar