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COF Resumos Aulas 1 A 5 PDF
COF Resumos Aulas 1 A 5 PDF
Resumos de Aulas
Vol. I
Índice Pag.
Aula 01 – 14/03/2009 2
Aula 02 – 21/03/2009 9
Aula 03 – 04/04/2009 15
Aula 04 – 18/04/2009 20
Aula 05 – 25/04/2009 28
Notas:
1) Este material é para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia. Estes devem sempre
recorrer às gravações e transcrições das aulas, como fontes primárias, para limitar a propagação dos
erros involuntários aqui contidos e colmatar as lacunas.
2) Estes resumos são um primeiro esforço de apropriação do conteúdo das aulas. É sobretudo um
trabalho de compactação, edição e montagem que visa ultrapassar dificuldades de entendimento
através da criação de foco. Isso originou divisões e catalogações artificiais, largamente discutíveis, que
não ocorrem nas aulas, onde os temas se vão encadeando e permutando de forma quase
imperceptível. Não há uma tentativa de fazer uma reexposição de tudo “com palavra minhas” e
muitas das frases aqui presentes são quase indistintas das utilizadas nas aulas pelo professor Olavo de
Carvalho. Em termos gerais, a sequência dos resumos segue a das aulas, mas ocorre com frequência a
junção de material que estava na origem disperso e, por vezes, a separação do que antes estava junto.
3) Os resumos foram escritos em português de Portugal, com as limitações inerentes a uma ainda
deficiente capacidade expressiva.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 2
Aula 01 – 14/03/2009
Sinopse: Este curso deve ser uma oportunidade para a formação de verdadeiras amizades,
baseadas na comunidade de valores e objectivos. No Exercício do Necrológio iremos conceber o
nosso “eu ideal”, que será a imagem que nos irá orientar ao longo da vida e a base de construção
do nosso juiz interior. O juiz interior é a parte mais elevada em nós, a única qualificada para
falar com o observador omnisciente, que é uma noção fundamental não só em religião mas em
toda a filosofia, pois esta tem no seu cerne uma actividade confessional. O objectivo da filosofia
não é aprender a pensar mas obter conhecimento que nos possa orientar. Desde Sócrates que se
busca conhecimento que é ao mesmo tempo autoconhecimento e conhecimento científico do mais
alto nível, e o ambiente propício para desenvolver essa tradição é o clube de aficionados. A técnica
filosófica reside na conversão de conceitos gerais em experiência existencial efectiva e vice-versa. Só
valem as ideias dos náufragos, segundo Ortega y Gasset, o que nos dá uma imagem da seriedade
pretendida na filosofia. Sem uma adequada capacidade expressiva o conhecimento torna-se
impossível, pois nunca será possível transpor de forma adequada a experiência para conceitos
sobre os quais podemos raciocinar. No início da aprendizagem a ênfase será colocada na
formação literária, e começamos com o estudo da Gramática Latina, de Napoleão Mendes de
Almeida, que nos dará, para além de conhecimentos de latim, uma compreensão das relações
entre a estrutura gramatical e a estrutura lógica na língua portuguesa.
Para S. Tomás de Aquino, o nosso amigo é aquele que quer e rejeita as mesmas coisas que nós.
Só através da amizade é possível a existência da sociedade política, segundo Aristóteles, pois
só assim é possível a formação de grupos unidos pela comunidade de objectivos e valores. A
amizade é também um dos pilares sobre os quais se constitui a personalidade. Sem os amigos
adequados estaremos isolados perante grupos hostis que nos irão enfraquecer bastante ao
longo do tempo pela incompreensão, marginalização e julgamentos aviltantes. Esses grupos
vendem a sua amizade em troca da nossa corrupção, do abandono dos nossos valores, em
suma, em troca da nossa desistência em sermos o que somos. Este curso deve ser uma
oportunidade para a formação de verdadeiras amizades, formadas na comunidade de
objectivos vitais e valores; amar e odiar as mesmas coisas.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 3
Exercício do Necrológio
Neste exercício vamos imaginar que um nosso amigo, após a nossa morte, escreve a um
terceiro uma carta a nosso respeito. Vamos supor que realizamos as nossas aspirações mais
elevadas em temos humanos, não sociais. Esta imagem ideal da nossa vida altera-se ao longo
dos tempos, vai sendo aprofundada, sofre correcções mas sobretudo amputações. Sem a
imagem deste eu ideal para orientar a nossa vida, vamos permitir ser julgados por outras
instâncias, por medos, preconceitos, pelo falatório do grupo de referência incorporado em
nós pela audição contínua. A imagem do eu ideal afasta-nos do estado de dispersão geral; de
todas as vozes que nos falam apenas uma pode nos julgar, corrigir e orientar, e é essa mesma
voz a única capacitada para realizar a confissão. Começamos assim por ter uma noção prática
da filosofia, entendida como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência.
Este curso é inspirado na pessoa de Sócrates, naquilo que um exemplo tem de significativo e
essencial para nós hoje. A filosofia como actividade distintiva começou com Sócrates e nasceu
como filosofia política, uma meditação e análise crítica não só da sociedade em geral mas da
própria situação social de Sócrates e dos seus interlocutores, pois eles não eram observadores
externos da sociedade mas participantes. Na tradição socrática todo o conhecimento deve ser
auto-conhecimento e, ao mesmo tempo, conhecimento científico do mais alto grau. O
ambiente propício para a realização da filosofia assim estabelecida é o clube de aficionados,
como aconteceu nos casos de Sócrates, Platão e Aristóteles, no início da universidade e agora
no Curso Online de Filosofia. No seu início a universidade deu um grande impulso ao
progresso da técnica filosófica mas, com o passar do tempo, as exigências internas e as
impostas pela sociedade fizeram a instituição académica seguir directrizes contrárias ao
espírito da filosofia. A filosofia académica passou a ter um campo de actuação delimitado a
partir de fora, deixou de fazer um exame crítico das condições originárias, o que constitui um
retrocesso em relação a Sócrates.
O objectivo da filosofia
Nos Tópicos Aristóteles mostra que o objectivo do pensamento é provocar a intuição, ou seja,
a percepção directa. Na dialéctica as várias ideias confrontam-se até se formar uma massa
crítica e, num dado momento, veremos as coisas tal como elas são. O objectivo da filosofia é o
conhecimento, de preferência o conhecimento materializado numa evidência imediata, que é
preferível a uma certeza lógica. Aprender a pensar, ao contrário da opinião comum, não é o
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 4
objectivo da filosofia, pois o raciocínio lógico é apenas um dos instrumentos para conhecer,
mas até pode atrapalhar se não for domado. O conhecimento que obtemos em filosofia é para
a nossa própria orientação e para descobrirmos quem somos. Tem que ser conhecimento que
sirva para algo nas horas aflitivas. Aprender é saber algo que ou outros não sabem e que até
podem nem querer saber. Além de que podemos ser incapazes de exprimir esse
conhecimento. Mas o importante é que estaremos despertos e permanecendo algum tempo
nessa prática obteremos a deliciosa sensação de realidade.
Desde Sócrates que se busca o conhecimento para além do mero conteúdo da consciência
mediante a pergunta sincera de nós para nós mesmos, o que pressupõe um observador
omnisciente ao qual confrontamos a experiência individual. A filosofia académica exclui
totalmente a parte da auto-investigação, abstraindo-se assim da pessoa concreta que a realiza.
A actividade filosófica passou a ser apenas uma encenação de um papel delimitado pela
burocracia, rompendo com a tradição filosófica baseada na identidade entre a auto-
consciência e o conhecimento universal e científico. Essa tradição tornou-se evidente em
Santo Agostinho, nas Confissões, onde ele percebeu a raiz do conhecimento filosófico no
autoconhecimento tomado no sentido da confissão cristã. Agostinho sabia que existia um
obstáculo entre ele e as ideias universais da filosofia, o espelho obscuro mencionado por S.
Paulo. Esse espelho é a sua própria personalidade, que tem que ser contornada fazendo uma
narrativa para um observador omnisciente a partir da sua individualidade concreta, com
todas as suas falhas. Agostinho sabe que não pode revelar nada a Deus, está antes a pedir que
Deus lhe revele coisas sobre ele mesmo que não estavam na sua consciência mas apenas na
realidade.
O juiz interior
máxima medida humana, pressupõe por isso um julgamento interno que não pode ser
substituído por nenhuma instância externa. O juiz interior caracteriza-se pela consistência,
racionalidade, credibilidade, sinceridade e seriedade. A seriedade implica presença na
consciência, não algo na periferia que se esquece no dia seguinte. O juiz interior tem que ser a
parte mais elevada de nós, aquela que vê todas as outras e pode comparar e pesar os vários
factores. Se pensarmos na confissão, a parte que se arrepende é mais elevada que aquela que
pecou, que foi seduzida por uma recompensa momentânea e engoliu o resto da consciência.
O restauro da integridade da consciência é feito pela parte que se arrepende, que interpreta a
norma geral e mede a gravidade da situação para não cair num arrependimento excessivo.
Sem o juiz interior não é possível a actividade filosófica, que é a busca da credibilidade
máxima na articulação do pensamento com a realidade. Mas mesmo para a absorção da
cultura filosófica, se não existir esse juiz as coisas serão absorvidas pelo canal errado. O juiz
interior é o alicerce para a construção da personalidade filosófica, que idealmente pretende
cumprir o ideal remoto de nos tornarmos sábios. Essa caminhada refaz o percurso desde
Sócrates a Aristóteles, começando pelas especulações de ordem moral e política até chegar ao
domínio técnico que Aristóteles estabeleceu como padrão.
A atitude filosófica
Autoridade pública
Mário Ferreira dos Santos referia o ponto arquimédico como um ponto de credibilidade
máxima onde uma verdade se tornava tão patente que não podia ser esquecida por instante.
Esta seria a base firme segundo a qual se podia julgar todos os outros conhecimentos, uma
busca constante ao longo da história da filosofia. Quando não é possível obter este nível de
auto-evidência procura-se, então, a confiabilidade máxima. Mas para Sócrates não bastava o
melhor conhecimento que pudesse ser fundamentado em termos racionais, tinha de ser
também conhecimento com importância existencial para ele. A autoridade apenas advinha
desta síntese inseparável da consciência pessoal com o conteúdo do conhecimento.
A opinião geral hodierna reconhece a ciência como fonte de autoridade pública, o que
levanta vários problemas. Na ciência moderna as crenças são subscritas apenas a nível
profissional, não importando se a conduta privada as contraria. É apenas uma especulação
intelectual de segundo nível, que não tem importância existencial efectiva, pretendendo
obter validação social mas não tem autoridade intrínseca para julgar outros conhecimentos.
Depois, o próprio método científico tem um âmbito limitado e nem sempre funciona, não
podendo fornecer uma base irrefutável de julgamento de tudo o resto. A ciência não investiga
a realidade concreta mas um seu recorte hipotético, na suposição de nesse cenário existir uma
uniformidade interna que se possa exprimir como hipótese científica descritiva. Como
depois há um esforço para encontrar essa uniformidade interna, a actividade tem um carácter
tautológico; é um jogo de cartas marcadas que nem sempre funciona.
O terreno da filosofia
Segundo Karl Bühler, a linguagem teria três funções: a função nominativa, que significa dar
nome às coisas e descrever a realidade; a função expressiva, relativa à expressão de sentimentos
e experiências; e a função apelativa, relacionada com a influência que se quer exercer no
receptor. Actualmente quase só a terceira função se encontra em uso, as outras são simuladas
para obter convencimento. Este decaimento da linguagem é muito grave porque a literatura é
a expressão directa e completa do imaginário e nenhuma outra arte a pode substituir e, por
isso, se a linguagem decai, tudo o resto será arrastado. Sem o trabalho dos escritores, poetas,
romancistas, que fazem uma primeira síntese da experiência para a tornar do domínio
público, os conceitos em circulação não veiculam nenhuma experiência real. Hugo von
Hofmannsthal salientava a importância da literatura a partir de outro ponto de vista,
chamando a atenção de que nada existe na política de um país sem antes ter estado na sua
literatura.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 8
Napoleão Mendes de Almeida elaborou uma gramática de latim que é uma obra-prima para a
compreensão não só do latim mas do próprio português, ajudando também na aprendizagem
de outras línguas. Só é possível compreender uma frase em latim a partir dos seus elementos
constitutivos, pelo que a leitura é equivalente à análise sintáctica. Ao estudar o latim pela
Gramática Latina de Napoleão Mendes de Almeida iremos perceber aos poucos as relações
subtis entre a construção material das frases e a sua estrutura lógica subentendida. Isto abre-
nos a porta para a própria técnica filosófica, que depois vai pegar na estrutura lógica e vai
transpô-la para a estrutura de percepção e desta para a realidade.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 9
Aula 02 – 21/03/2009
Sinopse: Nesta aula são feitas várias considerações sobre o Exercício do Necrológio, desde as
motivações para a sua realização e devido enquadramento a considerar, até chegar a alguns
conselhos práticos. O grosso da aula aborda alguns pré-requisitos à actividade filosófica,
entendida como a busca da verdade na realidade. O candidato a filósofo deverá ser uma
testemunha fidedigna que conquistou a própria voz e que começa por relatar para si mesma o
mundo da sua experiência genuína. Terá de ser iniciado através de um aprendizado artístico,
onde enriquecerá o seu imaginário e o seu equipamento expressivo. O poder do símbolo será
aludido a propósito de Platão.
Uma verdadeira personalidade não pode existir numa vida onde não existe um elemento
unificante, onde qualquer sonho acaba sempre por se esfumar por nunca se transformar em
projecto. O Exercício do Necrológio visa proporcionar esse elemento unificante. Os
elementos dispersantes são também os inimigos da alma: o Mundo, o Diabo e a Carne. O
Mundo é a circunstância de Ortega y Gasset. Não existimos num teatro mental concebido
por nós mas num mundo partilhado por todos e que não é feito à nossa medida. Dentro
desse mundo surgem alguns dos elementos mais corruptores, como o nosso grupo de amigos,
os nossos pares, as pessoas que nos atraem e até a nossa família, que vendem a sua afeição a
um preço altíssimo. O Diabo e a Carne são elementos que se manifestam internamente, por
vezes difíceis de distinguir, que incluem os desejos de prazer, poder e riquezas, mas também, e
cada vez mais, a cobardia induzida. Temos também as nossas tendências hereditárias, que
Szondi aludia nas figuras dos nossos antepassados que nos exigem a repetição dos seus
destinos, em especial quanto piores esses destinos tenham sido. A isto ainda se juntam outras
figuras que se incorporaram em nós pela audição contínua e passaram a usar a nossa voz e a
mobilizar a nossa vontade.
Estes elementos externos e internos, que nos provocam anseios contraditórios, não
constituem o que realmente somos mas são o nosso ponto de partida para o qual devemos
ganhar consciência de modo a fazer os arranjos necessários. Estamos na situação de um
escritor que trabalha com uma nova língua, lutando para tornar suas as palavras para que
estas expressem o que ele quer realmente dizer e não veiculem apenas ideias estereotipadas.
Fazer com que o factor unificante prevaleça sobre o factor dispersante passa por, na linha de
Viktor Frankl, definir um objectivo que tenha real sentido para nós e buscar a sua consecução
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 10
Para a realização do exercício não é necessário saber o que queremos fazer na vida, o próprio
génio não tem profissão definida. A nossa vocação pode até passar por estar à disposição, ou
pode ser uma vida pobre em realizações externas e concentrada em realizações interiores. O
importante é imaginar que realizamos o melhor de nós, algo louvável e que mereça ser
contado. A realização do exercício implica alguns dotes de romancista. Vamos conceber um
eu ideal sem começar logo a pensar que será impossível atingi-lo, temos de imaginar que sim,
mas temos de ser sinceros, aquilo tem de corresponder à nossa individualidade e, se não
soubermos bem para onde apontar, podemos começar logo por excluir tudo aquilo que não
queremos ser. Outras coisas que podem dificultar a realização do exercício são, por um lado, a
idolatria do prazer, mas também a pressão que a sociedade coloca sobre nós para
desvalorizarmos a realização da pessoa humana.
Mas o exercício é apenas o início do caminho, não só não tem de estar na forma definitiva
como deve ser refeito muitas vezes. Aquilo que queremos ser agora pode não ser a nossa
verdadeira vocação mas é a única pista que temos e ter vindo parar ao Curso Online de
Filosofia já terá algo a ver com a nossa vocação. Não devemos ter a pretensão de querer
cultivar todas as virtudes, algo inacessível ao ser humano, mas apenas algumas e depois estas
irradiarão para outras. Podemos até descobrir, ao realizar o exercício, que as nossas aspirações
são motivadas por vaidade, mas é só a partir desta sinceridade que podemos aspirar
verdadeiramente a um estágio mais elevado, onde faremos as nossas escolhas face à ideia da
morte. Aquilo que queremos ser deve ter validade para além da morte.
Existe ainda um exercício complementar a este, que ficará para mais tarde, e que consiste em
aceitar tudo o que nos sucede. Enquadra-se dentro da moral da investigação da verdade e
obriga-nos a colocar a realidade acima dos nossos desejos pois só assim saberemos distinguir a
realidade dos acrescentos que lhe colocamos em cima.
regulamentares e mesmo que estas sejam do mais alto nível e transmitam o legado
acumulado, não se inserem naquilo que é pretendido na filosofia. Apenas em alguns períodos
a instituição académica beneficiou a filosofia, como no próprio aparecimento da
universidade, servindo no mais das vezes para a sufocar.
A tensão
tensão entre a experiência genuína e os análogos culturais
Um terceiro preliminar passa por averiguar se os termos da discussão filosófica estão fora do
eixo da situação real. Ocorrendo isto, a investigação levará a conclusões erradas ou a uma
série de perguntas sem fim que só pode ser terminada por decisão arbitrária. Apenas
conseguimos pensar sobre conceitos extraídos a partir de imagens que se consolidaram na
memória, segundo Aristóteles. Da passagem da experiência sensorial, individual, para a
retenção na memória já existe a intervenção de um elemento externo de ordem colectiva. As
imagens fornecidas pela cultura ajudam a reter os elementos dos dados sensoriais, mas
também introduzem uma interpretação. Vai existir uma tensão entre a experiência directa e
os análogos culturais que ajudam a exprimir a primeira. Nem sempre esses análogos são
adequados, mas eles têm uma força enorme, podendo asfixiar a nossa experiência originária e
o que permanecerá na nossa memória será apenas aquilo que esses análogos culturais
permitirem. A ampliação do imaginário torna-se fundamental para ter um conjunto de
análogos culturais, que se podem combinar entre si, grande o suficiente para se aproximar o
mais possível das experiências reais. Na literatura brasileira predominam idiotas e
personagens impotentes face à situação e, face a esta pobreza do imaginário, certas qualidades
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 12
humanas passam a ser inverosímeis e deixam de ser colocadas em prática. Fica assim muito
mal preenchida a escala de Aristóteles e Northrop Fried que gradua as personagens
consoante o seu poder, onde, para além das personagens abaixo da situação havia também
Deus, personagens com poderes divinos, personagens sem poderes divinos mas de altíssima
qualidade e as pessoas de poder comum. Aristóteles dizia que aquelas coisas eram contadas
por serem possíveis.
Na passagem para a expressão verbal usamos palavras, que também são elementos culturais
consolidados. Torna-se fundamental encontrar uma linguagem própria que possa exprimir o
que realmente queremos dizer e não apenas os estereótipos da cultura dominante. Na origem
da actividade filosófica existe uma actividade confessional, a actividade da testemunha que
relata para si mesma de maneira fiel o mundo inteiro da experiência. Esta experiência pode
ser difícil ou impossível de expressar, porém é o material genuíno que temos e que nos
fornece os poucos elementos de certeza que possuímos. É daqui que percebemos claramente a
diferença entre observar, receber uma informação e criar uma informação.
Se conseguirmos transpor a experiência genuína, sem a desvirtuar, para um produto que
possa ser expresso na linguagem colectiva, então estaremos a realizar a função do escritor, que
não é obrigação do filósofo mas este terá de fazer algo disto pois é parte essencial da
actividade filosófica. Não é possível raciocinar sobre a realidade a partir dos dados brutos,
indizíveis, nem apenas sobre os elementos simbólicos fornecidos pela cultura de massas,
altamente dizíveis, que criam a perigosa ilusão de estarem a falar da realidade por terem com
esta uma relação analógica. Quem apenas se exprime através destes pobres análogos culturais
acabará por acreditar que não existe realidade, pois nunca foi uma testemunha que teve a
experiência do conhecimento genuíno por ela mesma descoberto, só sabe por ouvir falar. Esta
experiência genuína é algo muito mais modesto do que a presença total de que falava Louis
Lavelle, a experiência básica do ser, mas só podemos obter a segunda se já tivermos a primeira
consolidada.
Na época em que vivemos a verdade e a objectividade são procuradas apenas nas coisas que
todos podem verificar ao mesmo tempo. Mas algo só é passível de ser verificado por todos
mediante via lógica, não por experiência genuína. A lógica lida com o mundo limitado das
possibilidades, não pode abarcar tudo o que o mundo contém. A lógica torna-se perigosa se
lhe dermos primazia e abandonarmos as experiências que não são à sua medida. Devemos ver
a lógica como uma ferramenta de processar os materiais que terão de ser apreendidos, em
primeiro lugar, numa aprendizagem artística. Quando pedimos a alguém para dizer como
chegou a determinada ideia, o mais frequente é a pessoa começar a montar um raciocínio
lógico na hora, algo automático e muito mais fácil de fazer do que recorrer à memória. Isto é
uma fuga à realidade e por isso a filosofia não pode servir para aprender a pensar. O seu
objectivo é conhecer a realidade. A verdade reside na realidade e representa o seu conteúdo
afirmativo, mas a realidade tem muitos mais aspectos do que a verdade.
real por que o próprio acto de escrever já encobre a experiência real de estar falando. Primeiro
há que recuperar as influências das línguas latinas com estruturas mais próximas à do
português.
O poder do símbolo
Aula 03 – 04/04/2009
Sinopse: Um dos grandes problemas da moralidade reside na transposição das normas e valores
universais para as situações concretas. Sem este problema resolvido corremos o risco de nos
tornarmos fundamentalistas, na acepção de Eric Voëgelin, e passarmos a acreditar em frases
independentemente do que queiram dizer. O Exercício do Testemunho, baseado num texto de
Louis Lavelle, tendo isto em mente, pretende criar as condições na nossa vida concreta para
mantermos a fidelidade à recordação do eu ideal delineado no Exercício do Necrológio. A
questão da honestidade intelectual coloca-se, acima de tudo, no momento da formulação do
testemunho individual e não podemos esperar que o escrutínio dos pares corrija a falta de
consciência moral. Essa mesma honestidade deve ser fortalecida pelo voto de abstinência em
matéria de opinião, onde nos iremos libertar aos poucos da necessidade de aprovação e nos iremos
preparar para formular uma opinião com suficiente experiência pessoal e cultural associada. A
transmissão de conhecimento em filosofia implica um longo percurso para o qual devemos ganhar
consciência e adestramento.
isso não impede um fundamentalista de tirar conclusões sobre a “democracia integral”, ter
sentimentos por ela e mesmo usá-la como critério de julgamento. Para o fundamentalista é
irrelevante que as suas palavras nada signifiquem no mundo exterior, porque elas
representam qualidades que ele atribui a si mesmo, além de serem emblemas de troca a usar
com outros fundamentalistas que os identificam como decentes e respeitáveis, ao passo que
outras frases classificarão os seus adversários como malignos e perversos. Mas até os 10
mandamentos podem tornar-se fetiches para um fundamentalista quando não é feito o
exercício de perceber o que significam os mandamentos na experiência real.
Outro exemplo de fundamentalismo é o do professor de Direito que disse que “extrair o
sentido de um texto é o mesmo que extrair o sentido de uma garrafa, o leitor antes atribui
sentido ao texto”. Foi uma frase a que ele se apegou sem perder um minuto para examinar o
sentido, pois bastaria pensar que as próprias garrafas que ele usa têm de ter um sentido ou ele
não saberia que uso lhes dar. E os seus alunos deviam logo ter perguntado se ele pretendia que
eles captassem algum sentido no que ele tinha dito ou se deviam antes atribuir um sentido,
pois a fala dele não deve ser assim tão privilegiada para ser a única a vir com sentido. A partir
dos desacertos que podem existir na comunicação alguém deduziu que está sempre tudo
errado, que apenas existe a projecção de sentido, mas se assim fosse o próprio indivíduo nem
saberia o que projectou, pois quando fosse analisar a sua própria projecção precisaria de fazer
outra em cima, o que levaria a uma série infinita.
linguagem é neutro em relação ao seu conteúdo objectivo, mas é através dele que podemos
comunicar as nossas intuições que ligam pensamento à realidade.
Aula 04 – 18/04/2009
Sinopse: Os elementos de dispersão moral diferem hoje bastante dos inimigos da alma inscritos
nos sete pecados capitais. Os novos factores de alienação derivam da intromissão do Estado em
todas as relações humanas e da pressão dos elementos exteriores, que fazem de nós fracas figuras
desejosas de aprovação. O Exercício do Testemunho mostra-nos que a realidade exterior não é
nenhum solo duro e a unidade da consciência só pode ser obtida quando assumimos o domínio da
nossa biografia. A literatura deve ser usada para fortalecer a consciência ao povoar o nosso
imaginário de um conjunto de situações e personagens humanas que nos sirvam para identificar
situações reais por analogia. O nosso plano de estudos deve responder ao nosso reportório de
ignorância, que tem que ser elaborado fazendo a distinção entre o que ignoramos mas devíamos
saber e aquilo que ignoramos porque faz parte do desconhecido próprio da estrutura dos objectos.
A paralaxe cognitiva coloca um mundo inventado no lugar do mundo real e teve origem na
divisão entre fenómenos primários e secundários estabelecida pelos filósofos da entrada da
modernidade. Para conhecermos uma pessoa temos de conhecer a sua biografia.
Na continuação da aula anterior, começamos por colocar um excerto mais alargado do texto
“Testemunho”, de Louis Lavelle.
ele pensa reencontrar nelas o solo duro e resistente da realidade. Mas aquilo
que é próprio de uma grande filosofia é reter e reunir esses momentos
privilegiados, mostrar como são janelas abertas para um mundo de luz cujo
horizonte é infinito, do qual todas as partes são solidárias e que está sempre
oferecido ao nosso pensamento e que, sem jamais dissipar as sombras da
caverna, nos ensina a reconhecer em cada uma delas o corpo luminoso do qual
ela é a sombra.
Com a realização deste exercício iremos perceber o nosso medo de uma existência
verdadeiramente humana. A desvalorização e esquecimento dos momentos privilegiados
decorrem da covardia que nos fez cair de joelhos diante das pressões exteriores e justificamo-
nos retroactivamente dizendo que abandonamos o mundo dos sonhos para pisar o solo duro
da realidade. As pressões exteriores estão sempre presentes e aqueles momentos onde existe
unidade da consciência, em que não existe hiato entre realidade e idealidade, são fugidios,
mas daqui não se pode concluir que a realidade resida nos primeiros. O mundo empírico e as
situações externas têm uma natureza transitória, apresentam-se à nossa consciência como um
fluxo de ilusões, mas se lhes prestarmos culto entraremos numa posição existencial onde a
compreensão da nossa existência e da própria realidade externa torna-se impossível. Uma
realidade mais estável e permanente remete necessariamente para a experiência da unidade da
consciência. É este poder de perseverar em si mesmo que se subentende na definição de
filosofia como a busca da unidade do conhecimento na unidade da consciência, mais do que a
mera aquisição de conhecimento. É uma prática espiritual onde todos os factos são encarados
à luz do que é definitivo e irrevogável, a morte, entendida como o final do ciclo de
transformações. Aquilo que foi, foi e aquilo que não foi jamais será. Apenas neste nível pode
existir uma verdadeira sinceridade e seriedade, caso contrário seremos presas fácies das
expectativas do momento, que não são mais que a materialização da opinião dos outros, os
nossos desejos e ilusões, a pressão que vem dos pares, da família, do emprego, de algo sempre
transitório. Damos tanta importância a estas coisas em parte por elas serem a negação de
tudo o que queremos ser. Traímos o que há de mais próprio, íntimo e verdadeiro em nós por
respeito medroso a uma transitoriedade que nos afasta sempre do centro da nossa
consciência. Tudo em filosofia tem de ser feito com a ideia da morte em nossa frente, só
valem as ideias dos náufragos, como dizia Ortega e Gasset. Mas não é a morte o grande risco
que corremos, segundo Georges Bernanos, mas sim morrermos como imbecis. Para quem é
religioso pode haver a tentação de substituir a ideia da morte pela atitude face a Deus. Mas
ninguém sabe o que é Deus, o nosso diálogo com Ele já está viciado pelos nossos preconceitos
e pelas pressões do meio. Antes de falar com Cristo temos de encontrar a nossa própria voz
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 22
pois Ele recusa-se a ouvir outra. Mas todos sabemos algumas coisas definitivas sobre a morte e
esse será o nosso ponto de ancoragem.
pode até ser recompensado com verbas públicas para recompensar os supostos serviços
prestados.
Temos um medo enorme das pressões exteriores, mas elas não nos irão destruir, como
supomos; o medo deve ser sempre proporcional à ameaça real. Não aceitar as pressões vai nos
tornar mais fortes, individualizados e até mais respeitados. Não devemos temer a solidão que
vem do afastamento das pessoas que só nos querem puxar para baixo. Nem devemos
continuar no jogo recorrendo aos alívios que a sociedade moderna coloca ao nosso dispor,
pois estes não resultam para os fins a que nos propomos. Goethe achava que se devia fugir à
escravidão da sociedade cumprindo todas as obrigações para com ela. Assim seremos
superiores à sociedade e não permitiremos que ela nos derrube, faça de nós uma vítima e nos
marginalize. No caso específico das pressões dos colegas, também não as devemos temer, é
preferível seguir o conselho de Maquiavel, ser temido em vez de amado, mostrar que sabemos
muito mais que eles e os podemos desmascarar a qualquer altura.
A noção de que existe uma alma contra a sociedade originou o género romance, definido por
autores como Balzac e Walter Scott. A identificação das pessoas com os heróis dos romances,
que vivem uma falta de harmonia com a sociedade, só foi possível com numa situação real
onde as forças de alienação tentavam demolir a unidade interior e onde a sociedade suscitasse
nos indivíduos anseios muito acima dos concretizáveis para a maioria. O problema assim
extremado e clarificado pode ser equacionado para uma solução, como fez Louis Lavelle. Ele
percebeu onde estava o fulcro do problema e que era a partir dali que tinha de ser resolvido.
A unidade da consciência é retomada assumindo o domínio da própria biografia. Passamos a
aceitar totalmente o destino que nos coube, que tem um sentido apontado pelos momentos
fugidios, dos quais devemos guardar memória, e a nossa oposição deve ir apenas para os
elementos alienantes. Precisamos pensar durante muitos anos sobre a nossa vocação, para
descobrir onde está a pureza daquilo que queremos ser, pois lidamos com material
ambivalente. Os meios que servem para realizar a nossa vocação também podem ser meios de
alienação, por isso temos de ser dotados de muita lucidez. Isto já é entrar no caminho da
filosofia e sem esta postura os próprios estudos serão uma busca vã de erudição motivada pelo
desejo de aprovação. É a nossa força moral que irá graduar a nossa quantidade de estudos, e
quando essa força já estiver suficientemente desenvolvida, quando já não tivermos nenhum
ponto de apoio na sociedade, nenhum ídolo mesmo que cristão, aí começamos a falar com
Deus.
A utilização da literatura
A consciência vai se apropriar da experiência através dos meios de expressão verbal e só
depois pode raciocinar em cima. A literatura fortalece a consciência ao fornecer um
dicionário de situações que será usado para reconhecimento de outras situações por analogia.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 25
O escritor, ao tornar a experiência dizível, vai retirá-la dos cofres individuais e transformá-la
num bem comum. Proust elucida-nos sobre os mistérios do cair no sono nas páginas
inaugurais de Em Busca do Tempo Perdido. Perceberemos também melhor os elementos de
alienação da cultura brasileira depois de ter lido O Feijão e o Sonho, de Orígenes Lessa, e as
obras de Lima Barreto como Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Queremos da literatura
aquilo que os escritores conseguiram verbalizar em termos de impressões autênticas. Os
estudos literários propriamente ditos podem nos afastar disso, mas têm a sua utilidade para
nos ensinar a ler autores antigos, elucidando questões formais e de vocabulário.
A literatura do século XX pode nos afastar do caminho da filosofia porque foi perdendo a
integridade do eu. Para a filosofia é fundamental essa integridade, pois só assim podemos
contar a nossa própria história e falar com a sinceridade mostrada por Santo Agostinho. A
dissolução do eu, que se vê em Kafka onde só existem fragmentos, ou em Proust que só lida
com estados mentais, vai criar uma consciência psicótica que já não consegue juntar causa e
efeito e onde a noção de responsabilidade individual torna-se impossível. Este padrão
começou na alta cultura e transferiu-se depois para toda a sociedade. A própria civilização
precisa de um referencial mínimo dado pela poesia e pela religião para poder existir. A poesia
moderna tornou-se muito hermética e de difícil compreensão por remeter para experiências
intelectuais e espirituais muito elaboradas. Mas a poesia usava originalmente toda uma série
de recursos sonoros e formas repetíveis para mais facilmente invocar a experiência relatada,
pois ela é a expressão mais primária da literatura que tenta exprimir de forma mais directa a
experiência.
O critério para saber se lemos com qualidade passa simplesmente por averiguar se as obras
literárias que estamos lendo nos ajudam a compreender as situações reais da vida. O processo
é gradual, só vamos poder fazer de início comparações muito genéricas, da mesma forma que
a fala da criança utiliza poucas palavras para muitos significados e só depois parte à conquista
do termo próprio. Devemos ir aumentando o nosso vocabulário de situações e personagens
humanas, para que este se ajuste cada vez mais às situações concretas, utilizando para isso, em
primeiro lugar, as grandes obras, pois estas possuem maior vitalidade e não são cópias de
cópias. Para ler bem um livro é necessário ter lido muitos livros, dizia Jorge Luís Borges.
A natureza do conhecimento
A ideologia científica parte do pressuposto que o estado de desconhecimento é algo
provisório e que será futuramente corrigido. Isto é uma recusa em aceitar a estrutura da
realidade, uma postura alienada. A realidade tem um coeficiente intrínseco de
desconhecimento que não pode ser vencido. Nenhum objecto pode se mostrar a nós em
todos os seus aspectos ao mesmo tempo. Por outro lado, a ideia de um conhecimento total
aplicada a um ser humano não faz sentido, só seria aplicável a um ser eterno. O ser humano
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 26
lida naturalmente com o desconhecido na sua vida cotidiana, qualquer pessoa lida com o
desconhecido quando conduz um automóvel e não sabe o que está depois da curva. Mas no
domínio intelectual muitos acreditam que o desconhecido é um mero acidente a ser vencido.
Um indivíduo dominado pela ideologia científica pode acreditar que já conhece tudo a seu
respeito ou achar que tudo o que desconhece é irrelevante. Ele até acreditará que pode existir
uma concepção científica do cosmos, sendo isso impossível pois todo o conteúdo da ciência
não abarca um infinitésimo do cosmos e ela só pode se pronunciar sobre o que conhece. Se
queremos nos dedicar seriamente ao conhecimento devemos começar por distinguir dentro
do desconhecido aquilo que é fruto da nossa ignorância e aquilo que ignoramos por isso fazer
parte da própria estrutura dos objectos. Daqui vai sair o repertório da nossa ignorância, que
passa a ser um plano de estudos. Isto foi feito de forma notável por Eric Voëgelin a propósito
dos fenómenos de massas. O processo pode ser atrapalhado se não reduzirmos o número de
opiniões, que tornam difícil a graduação da confiabilidade dos conhecimentos. As opiniões
podem vir de múltiplos lugares, mas a partir do momento em que as expressamos passam a
compor a nossa auto-imagem.
vive, com as suas tensões, os seus problemas, a sua situação própria. O terceiro nível, que se
enquadra dentro do exercício mencionado, consiste em conhecer a pessoa em termos
biográficos. Temos de imaginar a pessoa dentro de um fio de desenvolvimento temporal que
já começou há muito tempo e se irá projectar no futuro. Outro exercício, que também
implica a utilização da veia de romancista, é fazer um roteiro de um filme a partir de um livro
ou, pelo contrário, a partir de um filme elaborar uma narrativa verbal.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 28
Aula 05 – 25/04/2009
Sinopse: Em filosofia a exposição lógica baseia-se em experiências reais para as quais devemos
evocar análogos. Por vezes essa experiência está camuflada, como no caso de Descartes ao expor a
“dúvida radical”, e se aceitarmos as contradições entramos num jogo de cartas marcadas onde
seremos psicologicamente dominados. O filósofo só tem direito de argumentar em nome da
realidade. O treino literário serve para compreender as evocações presentes na linguagem
filosófica e para criar análogos experienciais. Refutar uma ideia poderá não limitar em nada os
seus efeitos sociais. Os nossos modelos de entendimento são dados pelas formas consolidadas na
memória. A ignorância faz parte da estrutura humana e o esquecimento persegue-nos sempre. A
fé originalmente significava confiança numa pessoa – a presença do Cristo agindo – e não se lhe
aplicam as mesmas categorias que a racionalidade. Para desenvolver o senso de realidade não se
deve colocar a tónica na sensibilização mas na presença. A realidade deve ser vista apenas como
indicadora dela mesma e não devemos querer tirar conclusões antes dos factos se desenrolarem.
Escreve Benedetto Croce na entrada do livro Lógica Como Ciência do Conceito Puro:
experiências que motivaram os filósofos, bastam-nos análogos que nos coloquem numa
posição de compreensão tal que aquela exposição podia ter sido feita por nós. Isto é 90% do
trabalho de leitura. Esse trabalho deve ser feito de início sem julgamentos, sem achar que
aquilo é bom ou mau, verdadeiro ou falso. Tentaremos ver a experiência tal como o filósofo a
viu, não negaremos esse grau de co-participação e simpatia por receio de sermos
influenciados, pois essa influência será parcial e vai diluir-se no meio de outras influências.
A própria discussão filosófica tem um confronto dramático por detrás. Para compreender
uma filosofia temos de saber contra quem ela se levantou polemicamente, segundo Benedetto
Croce. Em consonância, Julian Marías dizia que a fórmula filosófica não era “A=B” mas sim
“A não é B mas sim C”. Mais que o confronto de ideias existe um confronto de pessoas que
tem que ser reconstituído. Para isso partimos das doutrinas e usamos a experiência literária.
um aspecto secundário de uma certeza incompleta. Ele ainda diz que só podemos acreditar
em algo quando temos uma prova, mas a prova é um elemento discursivo que, em última
instância, apoia-se sempre em evidências intuitivas não passíveis de prova. A prova é
requerida quando a evidência intuitiva não está presente.
A postura do filósofo
O filósofo só tem o direito de argumentar em nome da realidade e não o pode fazer para
justificar as próprias deficiências. Ele só tem o poder de investigar uma pequena parcela da
realidade; ele não é superior a ela, é apenas mais um no esforço milenar para a tornar
inteligível, podendo tornar translúcida a experiência que era opaca mas não pode superar a
substância ali presente. O filósofo tem de ser um leitor atento que detecta as contradições e
não se deixa manipular psicologicamente por outros pensadores ou acabará por se tornar
incongruente com ele mesmo. Para isso terá sempre de tentar retirar o fundo de experiência
que se encontra nas ideias.
Um exemplo de um conceito auto-contraditório é o “movimento perpétuo”, estabelecido
por Newton, pois algo que transcende tempo não pode ser medido temporalmente. Outra
armadilha “científica” está em achar que um objecto, como uma mesa, na realidade é um
aglomerado de átomos, que é o observado noutra escala. Mas uma mudança de escala não
pode significar uma passagem do aparente para o real. A ciência moderna promete oferecer
um terreno neutro onde tudo pode ser medido e quantificado, mas ela foi instaurada por
ocultistas, gnósticos, esotéricos, mágicos, e traz uma camuflagem que se for aceite vai fazer-
nos entrar num jogo de cartas marcadas onde seremos manipulados.
A ignorância
ignorância e o esquecimento como partes integrantes da estrutura humana
Apenas em Deus pode existir a unidade do conhecimento na unidade da consciência. A
filosofia é uma busca disto, interminável devido à finitude do ser humano. Imaginamos
poder chegar a um conhecimento divino, que em nós se incorporaria para sempre e nos
reconstituiria, mas apenas Deus pode fazer isso em nós sem qualquer intervenção nossa. Para
além de uma ignorância que nos é estrutural, há também um esquecimento que nos persegue
sempre. A humanidade também é assim, o esquecimento é um dos seus mecanismos
fundamentais ao ponto de ser um dos pressupostos de muitas operações internacionais. Uma
história do conhecimento não mostra a realidade, a ignorância é muitas vezes um
acontecimento mais relevante que todos os outros. A abstracção pode ser a fonte de alguns
desses erros, mas em si mesma é uma capacidade porque cria foco e dá visibilidade às coisas,
mas se esquecemos de onde saiu a abstracção estaremos a criar uma alucinação.
Curso Online de Filosofia – Resumos de aulas 32
O problema da transmissão
trans missão do conhecimento
A nossa personalidade intelectual, a camada 9, é em grande parte constituída por experiências
e símbolos incomunicáveis. O que é característico da nossa personalidade é ela ser nossa e não
compartilhada. Podemos explicar algo que daqui emana mas de preferência apenas a quem
está realmente interessado. Explicar algo a quem não está interessado em saber só deve ser
motivado pelo dever e ainda assim só quando estivermos preparados para isso. Essa
preparação advém de tanto explicarmos a nós mesmos, mas nunca devemos esquecer que é o
próprio conhecimento que nos torna incomunicáveis.
A coexistência
coexistência entre fé e razão
Na acepção moderna, fé significa acreditar numa doutrina. Mas no início, fé queria dizer
confiança numa pessoa, na própria presença do Cristo agindo. Não existia doutrina católica
nas origens. Ela foi sendo desenvolvida lentamente a partir das objecções que a narrativa dos
evangelhos suscitava, o que foi mostrado por Alois Demps no livro La concepcion del mundo
en la Edad Media. A doutrina apareceu para sustentar a confiança quando esta não bastava,
mas ao responder a objecções só deu pretexto a que mais objecções fossem levantadas. A
doutrina não pode substituir a fé, entendida como a confiança numa pessoa. Neste sentido a
fé não se opõe nem deixa de se opor à racionalidade, não têm nada a ver uma com a outra. A
racionalidade aplica-se ao mundo das ideias e não aos factos, que não se enquadram nas
categorias de racional ou irracional. Podemos questionar a veracidade de uma narrativa, não a
sua racionalidade. Confiar ou não numa pessoa é decisão nossa, em si nem racional nem
irracional. Podemos alegar contra uma narrativa motivos de verosimilhança que têm uma
estrutura racional. A discussão que se coloca em cima é que será racional ou irracional.
triste. O mundo não foi inventado por nós, nem as nossas ideias alguma vez o poderão
abranger, por isso temos de nos abrir para ele e deixar que a realidade nos ensine. O círculo
fecha-se na pressa de chegar a conclusões. Devemos ter noção de quando as nossas opiniões já
têm algum mérito e uma forma de medir o seu valor passa logo por ver o trabalho que
tivemos para obtê-las.
escapar da realidade e impedir que esta nos ensine. Aristóteles chamava thambos ao espanto e
horror face à realidade. Mas ao invés de fugirmos da realidade pelo medo que elas nos
infunde, devemos nos abrir a ela pois foi assim que nasceu a filosofia. Em filosofia a realidade
não deve ser vista como fornecedora de sinais para outras coisas mas apenas como indicadora
dela mesma. Não devemos logo nos transpor do mundo da experiência para o mundo dos
nexos de significação antes da realidade nos dizer como as coisas são. Tudo é discurso divino,
pois Deus escreve com palavras e coisas, segundo S. Tomás de Aquino, temos de esperar que
Ele termine de dizer. Não se trata de decifração mas de aceitação. Um sonho que vem de
Deus não necessita ser interpretado. O que é básico é aceitar o estado de ignorância, não
devemos tirar conclusões antes dos factos se desenrolarem.
Uma cultura que se separa dos problemas fundamentais da vida vai limitar-se a abordar os
problemas da convivência social. A complexidade do ser humano fica assim reduzida ao que é
possível enquadrar numa psicologia medíocre.