Você está na página 1de 11

SENHORA

Resenha Crítica
(PROF. PAULO MONTEIRO)

1. INTRODUÇÃO
Este trabalho não tem a pretensão de realizar uma exegese, ou seja, uma análise profunda
no texto de Senhora, nem revelar aspectos novos e instigantes, diversos de tudo aquilo que
disseram os críticos, nestes mais de cem anos de existência dessa obra. Nossa proposta visa tão-
somente ao consumo imediato dos alunos que prestarão vestibular para a UFBA.
Queremos deixar claro que não trabalharemos o enredo, a essa altura do domínio dos
estudantes que se dispuseram à leitura deste romance. Procuraremos apenas salientar os
significados depreendidos do enunciado do texto.

2. A ESTRUTURA
Alencar compõe o enredo em quatro blocos cujos títulos mantêm um campo semântico
apropriado ao comportamento da sociedade, que é colocada sob uma perspectiva crítica.
Portanto, os títulos evocam negócios, interesses, transações comerciais, mercantilização do amor
e do casamento. São eles, os blocos:
PREÇO QUITAÇÃO POSSE RESGATE
PREÇO
Este bloco é deslocado, quebrando a linearidade do enredo. O autor coloca o leitor em
contato com os efeitos, cujas causas serão expostas no bloco seguinte, narrado em “flash-back”.
Tal procedimento mantém aceso o interesse do leitor além de conferir coerência aos fatos
narrados.
Neste bloco, colocam-se em cena: AURÉLIA CAMARGO, cujo perfil se define pela beleza e
brilho, e pelos elementos constituintes de sua personalidade: desprezo ao dinheiro e aos artifícios
sociais, orgulho e excentricidade. Ocupa o lugar do bem.
“Na sala, cercada de adoradores, no meio das esplêndidas reverberações de sua beleza,
Aurélia bem longe de inebriar-se da adoração produzida por sua formosura, e do culto que lhe
rendiam, ao contrário, parecia unicamente possuída de indignação por essa turba vil e abjeta.
Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação dessa gente ante sua
riqueza. Era um desafio que lançava ao mundo: orgulhosa de esmagá-la sob a planta, como
um réptil venenoso”.
Também aqui se toma conhecimento de SEIXAS, definido por um processo metonímico. Tem
na casa e nos objetos de uso o espelho de sua personalidade:
 Fusão do falso e do verdadeiro
 Vida de aparências
 Apego ao luxo
 Um caráter honesto mas frágil
 Deixa-se envolver pela sociedade
“Um observador reconheceria nesse disparate a prova material de completa divergência
entre a vida exterior e a vida doméstica da pessoa que ocupava esta parte da casa.
Se o edifício e os móveis estacionários e de uso particular denotavam escassez de meios,
senão extrema pobreza, a roupa e objetos de representação anunciavam um trato de
sociedade, como só tinham cavalheiros dos mais ricos e francos da corte”.
Por outro lado, surge na teia do romance a figura de LEMOS, tio e tutor de Aurélia, metáfora
do mal, perfil deformado caricatamente.
“Lemos não estava a gosto; tinha perdido aquela jovialidade saltitante, que dava um
gracioso ar de pipoca”.
É nesse momento do romance que se forma visível um dos fios condutores do enredo: o Bem
e o Mal. Uma situação maniqueísta, portanto.

 Desprendimento de bens  Bens materiais.


materiais.
 Casamento por interesse.
 União por amor.
 Vida social fútil.


 Culto do indivíduo.
 Artificialismo.
 Espontaneidade.
 Luxo.
 Procura da natureza.
 Venalidade.
 Procura de raízes
 Importação cultural.
culturais autênticas.
 
BEM MAL
Note-se que neste conflito Aurélia ocupa o lugar do Bem; o Mal é a sociedade, da qual Seixas
é uma metonímia. O indivíduo pelo grupo.
Na formulação do enredo, este bloco narrativo tem como fatos medulares a proposta do dote,
a aceitação, o casamento e a ação-clímax: Aurélia humilha Seixas, expondo-lhe a condição de
marido comparado.
QUITAÇÃO
Este é o único “flash-back” do romance. O narrador relata o passado de Aurélia, para justificar
seu comportamento. É, portanto a causa da qual o primeiro bloco foi o efeito.
Aqui desfilam personagens como D. EMÍLIA, mãe de Aurélia; EMÍLIO, seu fragilizado irmão; o
pai, PEDRO CAMARGO; LEMOS, tio (e mais tarde tutor), que lhe propõe uma prostituição de
luxo; FERNANDO SEIXAS, seu primeiro e definitivo amor; EDUARDO ABREU, um pretendente;
e, finalmente, LOURENÇO CAMARGO, o avô desconhecido que lhe deixou o rico testamento.
O narrador opera, romanticamente, o resgate de Aurélia. De gata borralheira ela vira princesa.
Mudam-se as circunstâncias: Aurélia pobre e Aurélia rica; Aurélia amada e Aurélia abandonada;
mas não se alteram seus caracteres psicológicos.
“A riqueza, que lhe sobreveio inesperada, erguendo-a subitamente da indigência ao fastígio,
operou em Aurélia rápida transformação; não foi, porém, no caráter, nem nos sentimentos que
se deu a revolução; estes eram inalteráveis, tinham a fina têmpera de seu coração. A mudança
operou-se apenas na atitude, se assim nos podemos exprimir dessa alma perante a
sociedade”.
O nome “Quitação” se deve ao fato de os dois personagens terminarem “quites”: ambos
desprezam e são desprezados.
POSSE

Nesse ponto, o narrador retoma a linha temporal de O PREÇO. O título constitui uma situação
irônica, uma vez que não haverá posse nenhuma. Aurélia e Seixas, de personagens viram atores,
e vão viver um casamento de aparências, com diálogos marcados por ironias e troca de farpas –
um verdadeiro “purgatório”.
Porém esse “desgaste”, que atinge a ambos, servirá para construí-los e humanizá-los.

2
Talvez para favorecer o diálogo, o narrador reduz o espaço físico do casal. O palacete das
laranjeiras é o palco onde os dois vão representar o seu drama. Os jardins são a natureza
resumida, mas de capital importância como contraponto entre o natural e o artificial.
“Aurélia conduziu o marido a um caramanchão que havia no meio da chácara, e cuja
espessa ramagem os escondia às vistas de D. Firmina, e do hortelão e jardineiro que andavam
na lide costumada”.
RESGATE

Nesta parte, intensificam-se os caprichos e as contradições de Aurélia, ora ferina, mordaz, ora
ciumenta, doce e apaixonada. Fernando Seixas, por sua vez, se transforma: torna-se modesto nos
trajes, assíduo na repartição onde trabalhava, alcançando, sem perder a elegância, a dignidade
de caráter, adquirindo, em relação ao todo do romance, uma mobilidade demonstrável nesta
parábola invertida:

SEIXAS
DESCONSTRUÇÃO CONSTRUÇÃO

CASAMENTO

Um ano após o casamento, Seixas devolve o dote a Aurélia e propõe a separação. Aurélia,
porém, ao invés de aceitar, cai-lhe aos pés e lhe pede perdão pelo duro castigo que lhe impusera.
Consagra-se, então, numa grande metáfora, a proposta do pedagogo Alencar: extingue-se o
casamento dotal, e os dois se unem pelo sacrossanto amor conjugal.

3. O NARRADOR
Narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente, o romance Senhora tem na
observação de detalhes exteriores, que iluminam a personalidade e os lances da vida, uma de
suas fortes características. E para garantir a verossimilhança, o enunciador atribui a “história” a
uma terceira pessoa que confessa tê-la ouvido dos próprios protagonistas.
Não veja o leitor da obra, neste artifício de narrador, sintomas verdadeiros de sua isenção na
obra. Na verdade o autor se reveste do papel de pedagogo e dirige a obra, no sentido de
satisfazer suas convicções e ideais. Aurélia torna-se sua “Santa Guerreira”, ungida de virtudes e
poderes para combater os supostos vícios da sociedade.
DISCURSO ÉTICO-MORALISTA DE ALENCAR

3
AMOR CASAMENTO FAMÍLIA SOCIEDADE

PAPEL DE AURÉLIA: CONDUZIR A NARRATIVA NESSA DIREÇÃO

4. PERSONAGENS
Cabe-nos observar que, sendo um romance cujo eixo é o casamento, somente interessam os
jovens casadoiros.
a) Principais:
AURÉLIA CAMARGO: Personagem construída nos parâmetros românticos. Sublima-
se ao ponto de suplantar as forças sociais, o seu próprio destino, tornando-se capaz de
resgatar valores e impor o amor como força redentora.
Mesmo analisada sob um prisma psicológico, constitui-se uma personagem fixa, uma
vez que mudam suas condições de vida, mas não altera a essência de seu caráter.

FERNANDO SEIXAS: Personagem híbrida. Não é bom nem mal. É fraco: deixa-se
envolver pelos hábitos sociais, mas será resgatado pelo amor de Aurélia. Adquire, no
decorrer do romance, maior mobilidade do que Aurélia. Passa por um processo de
desconstrução moral, porém se reconstrói e se torna digno do amor da heroína.

b) Secundários:
Têm pouca relevância na trama, já que não se envolvem nos assuntos importantes do
enredo: o amor, o dinheiro, os interesses.
ADELAIDE AMARAL, de quem Seixas aceita um dote, abandonando Aurélia quando
esta era pobre.
LOURENÇO CAMARGO, avô de Aurélia, provedor do testamento que a torna rica.
EMÍLIA, mãe de Aurélia.
PEDRO CAMARGO, pai de Aurélia, que a deixa órfã.
EMÍLIO, irmão de Aurélia, saúde frágil, morre jovem.
LEMOS, tio e tutor de Aurélia.

5. TEMPO/ESPAÇO
O tempo interno do romance se divide em duas dimensões: o presente e o passado.
O presente se relaciona com o lado cosmopolita, europeizado e refinado do romance, cujo
espaço é a sociedade aristocrática fluminense, colocada sob a ótica crítica do narrador que
denuncia a submissão aos costumes estrangeiros.
O passado, que é narrador em flash-back, associa-se à cor local brasileira, pela pobreza, o
provincianismo e o acanhamento.

6. O ESTILO
6.1. Quanto ao ESTILO DE ÉPOCA, Senhora – publicado em 1875, ainda é um romance
dominantemente romântico:
a) Na concepção da heroína sublimada e sem defeito, capaz de ímpar suas virtudes e seus
valores à sociedade.

4
b) No dirigismo do enredo: o narrador programa o final do romance, fazendo triunfar o bem
sobre o mal.
c) Na narrativa rápida na qual os fatos são muito pouco desdobrados nos seus reflexos
psicológicos.
Como integrante do ciclo social-urbano, já antecipa alguns critérios realistas:
a) Tendência para a análise psicológica, mesmo restrita a Aurélia e Seixas.
b) Sintomas de degradação social manifestados em Lemos.
c) Presença do anti-herói: Seixas se submete aos determinismos sociais.
d) A sociedade burguesa é colocada sob uma perspectiva crítica.
6.2. Quanto ao ESTILO INDIVIDUAL, sobressai em Alencar, do ponto de vista do significado, a
metáfora sublimada, que às vezes se torna “açucarada”, mas não perde sua beleza. No
tocante à sintaxe, torna-se admirável sua frase desembaraçada, marcada por pontuação
freqüente, frases curtas e preferência pelo sistema coordenativo dos períodos.

7. SÍNTESE GRÁFICA

UMA SÍNTESE DA PROPOSTA

Tensão Crítica

AURÉLIA  Protagonista Antagonista  A SOCIEDADE

O Amor
O Casamento de
A Autencidade
Conveniência
A Independência
VALORES Casamento Dotal ANTIVALORES
A Generosidade

– O Dinheiro
– A venalidade
– O Luxo
Personagem – As Aparências
Metonímico –O Artificialismo

POSSIBILISMO SEIXAS DETERMINISMO


Superação

5
EXERCÍCIOS
Seixas recuou um passo até o meio do aposento, e fez uma profunda cortesia, à qual
Aurélia respondeu. Depois atravessou lentamente a câmara nupcial agora iluminada.
Quando erguia o reposteiro ouviu a voz da mulher.
– Um instante! disse Aurélia.
05 – Chamou-me?
– O passado está extinto. Estes onze meses, não fomos nós que os vivemos, mas
aqueles que se acabam de separar, e para sempre. Não sou mais sua mulher; o senhor já
não é meu marido. Somos dois estranhos. Não é verdade?
Seixas confirmou com a cabeça.
10 – Pois bem, agora ajoelho-me eu a teus pés, Fernando, e suplico-te que aceites meu
amor, este amor que nunca deixou de ser teu, ainda quando mais cruelmente ofendia-te.
A moça travara das mãos de Seixas e o levara arrebatadamente ao mesmo lugar onde
cerca de um ano antes ela infligira ao mancebo ajoelhado a seus pés a cruel afronta.
– Aquela que te humilhou, aqui a tens abatida, no mesmo lugar onde ultrajou-te, nas
15 iras de sua paixão. Aqui a tens implorando seu perdão e feliz porque te adora, como o
senhor de sua alma.
Seixas ergueu nos braços a formosa mulher, que ajoelhara a seus pés; os lábios de
ambos se uniam já em férvido beijo, quando um pensamento funesto perpassou no espírito
do marido. Ele afastou de si com gesto grave a linda cabeça de Aurélia, iluminada por uma
20 aurora de amor, e fitou nela o olhar repassado de profunda tristeza.
– Não, Aurélia! Tua riqueza separou-nos para sempre.
A moça desprendeu-se dos braços do marido, correu ao toucador, e trouxe um papel
lacrado que entregou a Seixas.
– O que é isto, Aurélia?
25 – Meu testamento.
Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento
em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal
herdeiro.
– Eu o escrevi logo depois do nosso casamento; pensei que morresse naquela noite,
30 disse Aurélia com um gesto sublime.
Seixas contemplava-a com os olhos rasos de lágrimas.
– Esta riqueza causa-te horror? Pois faz-me viver, meu Fernando. É o meio de a
repelires. Se não for bastante, eu a dissiparei.
As cortinas cerraram-se, e as auras da noite, acariciando o seio das flores, cantavam o
35 hino misterioso do santo amor conjugal.
José de Alencar, In Senhora

01. A análise do fragmento e a leitura do romance respaldam as seguintes proposições:

6
( 01 ) A
ação de Seixas, no primeiro parágrafo, acentua seu comportamento
dissimulado, marca que ele conduz durante todo o romance.
( 02 ) A
fala de Aurélia – da linha 6 à 8 – confirma a intenção de sinalizar uma
mudança nas relações artificiais vividas por ambos.
( 04 ) No
fragmento em questão, o narrador sobrepõe a ação, à reflexão, como é
comum no estilo romântico.
( 08 ) O perfil de Aurélia, definido neste excerto, demonstra uma mudança completa na
personagem, tanto em atitude como em sentimentos.
( 16 ) O texto, no seu conteúdo e linguagem, dispõe de elementos capazes de preservar a
condição romântica da obra.
( 32 ) O comportamento de Seixas, no texto, confirma a inalterabilidade de comportamento que o
define na obra como personagem fixa.
( 64 ) O último parágrafo acentua o estilo metafórico de Alencar e uma forma de sublimar a
relação íntima do casal.

02.
A moça agitou então a fronte com uma vibração altiva:
– Mas o senhor não me abandonou pelo amor de Adelaide e sim por seu dote, um
mesquinho dote de trinta contos! Eis o que não tinha o direito de fazer, e que jamais lhe
podia perdoar! Desprezasse-me embora, mas não descesse da altura em que o havia
05 colocado dentro de minha alma. Eu tinha um ídolo; o senhor abateu-o de seu pedestal, e
atirou-o no pó. Essa degradação do homem a quem eu adorava, eis o seu crime; a
sociedade não tem leis para puni-lo, mas há um remorso para ele. Não se assassina assim
um coração que Deus criou para amar, incutindo-lhe a descrença e o ódio.
...................................................................................................................................................
.
10 – Ouça-me; desejo que em um dia remoto, quando refletir sobre este acontecimento,
me restitua uma parte da sua estima; nada mais. A sociedade no seio da qual me eduquei,
fez de mim um homem à sua feição; o luxo dourava-me os vícios, e eu não via através da
fascinação o materialismo a que eles me arrastavam. Habituei-me a considerar a riqueza
como a primeira força viva da existência, e os exemplos ensinavam-me que o casamento
15 era meio tão legítimo de adquiri-la, como a herança e qualquer honesta especulação.
Entretanto ainda assim, a senhora me teria achado inacessível à tentação, se logo depois
que seu tutor procurou-me, não surgisse uma situação que aterrou-me. Não somente vi-me
ameaçado da pobreza, e o que mais me afligia, da pobreza endividada, como achei-me o
causador, embora in-voluntário, da infelicidade de minha irmã cujas economias eu havia
20 consumido, e que ia perder um casamento por falta de enxoval. Ao mesmo tempo minha
mãe, privada dos módicos recursos que meu pai lhe deixara, e de que eu tinha disposto
imprevidentemente, pensando que os poderia refazer mais tarde!... Tudo isto abateu-me.
Não me defendo; eu devia resistir e lutar; nada justifica a abdicação da dignidade. Hoje
saberia afrontar a adversidade, e ser homem; naquele tempo não era mais do que um ator
25 de sala; sucumbi. Mas a senhora regenerou-me e o instrumento foi esse dinheiro. Eu lhe
agradeço.
José de Alencar, In Senhora

O fragmento transcrito e a leitura do romance respaldam as seguintes proposições:


( 01 ) As relações afetivas, na sociedade burguesa que serve de cenário ao romance, são
preteridas em favor da riqueza.
( 02 ) Seixas, buscando explicar seu comportamento passado, condena os valores vigentes na
sociedade da época.

7
( 04 ) Aurélia representa a figura feminina inicialmente rebelde, mas que, depois, se ajusta ao
padrão de mulher de sua época.
( 08 ) No fragmento, percebe-se uma oposição entre a indignação de Aurélia e o voluntarismo de
Seixas.
( 16 ) Seixas e Aurélia demonstram ser capazes de, por amor, romper de forma radical com as
convenções sociais.
( 32 ) As falas das duas personagens ilustram uma exacerbação de sentimentos que caracteriza
Aurélia no decorrer da narrativa e que se manifesta em Seixas após sua transformação.

03.
(I)
Na sala, cercada de adoradores, no meio das esplêndidas reverberações de sua
beleza, Aurélia bem longe de inebriar-se da adoração produzida por sua formosura, e do
culto que lhe rendiam; ao contrário parecia unicamente possuída de indignação por essa
turba vil e abjeta.
Não era um triunfo que ela julgasse digno de si, a torpe humilhação dessa gente ante
sua riqueza. Era um desafio, que lançava ao mundo; orgulhosa de esmagá-lo sob a planta,
como a um réptil venenoso.
(II)
Um observador reconheceria nesse disparate a prova material de completa divergência
entre a vida exterior e a vida doméstica da pessoa que ocupava esta parte da casa.
Se o edifício e os móveis estacionários e de uso particular denotavam escassez de
meios, se não extrema pobreza, a roupa e os objetos de representação anunciavam um
trato de sociedade, como só tinham cavalheiros dos mais ricos e francos da corte.
José de Alencar, In Senhora

Com base nos fragmentos dados e na leitura do romance Senhora, assinale as proposições
verdadeiras.
( 01 ) O fragmento I fixa o comportamento de Aurélia e os elementos constituintes de sua
personalidade.
( 02 ) O fragmento II é um índice da personalidade de Seixas: fusão do falso e do verdadeiro.
( 04 ) No decorrer da obra, o autor vai alterando o perfil de Aurélia: ela termina por aderir aos
hábitos da sociedade.
( 08 ) Seixas, porém, é um caráter imutável: sua vida de aparências e artifícios, retratada no
fragmento II, coloca-o como personagem rigorosamente plana.
( 16 ) Os dois textos contrapõem perfis humanos distintos, que, no decorrer da obra, passarão por
um conflito que os humanizam e equilibram.
( 32 ) Aurélia, no fragmento I e na obra, assume uma investidura ético-moralista.

Texto: Questões 04 e 05

8
Aurélia revoltava-se contra si mesma, por causa daquele momento de fragilidade. Como é
que ela depois de haver arrebatado à sua rival o homem a quem amava, e de haver desdenhado
esse triunfo, por indigno de sua alma nobre, dava a essa rival o prazer de recear-se de suas
seduções?
Descontente, contrariada, cogitava uma vindita desse eclipse de seu orgulho.
– O que é o ciúme? disse de repente sem olhar o marido, e com um tom incisivo.
Seixas compreendeu que aí vinha a refrega e preparou-se, chamando a si toda a calculada
resignação de que se costumava revestir.
– Exige uma definição fisiológica, ou a pergunta é apenas mote para conversa?
– Acredita na fisiologia do coração? Não lhe parece um disparate, esta ciência pretensiosa
que se mete a explicar e definir o incompreensível, aquilo que não entende o próprio que o sente,
e que sente-se, sem ter muitas vezes a consciência desse fenômeno moral? Só há um
fisiologista, mas esse não define, julga. É Deus, que formando sua criatura do limo da terra, como
ensina a Escritura, deixou-lhe ao lado esquerdo, por amassar, uma porção de caos de que a tirou.
Quanto ao ciúme, todos nós sabemos mais ou menos a significação da palavra. O que eu
desejava era saber sua opinião sobre este ponto: se o ciúme é produzido pelo amor?
– Assim pensam geralmente.
– E o senhor?
– Como nunca o senti, não posso ter opinião minha.
– Pois tenho-a eu, e por experiência. O ciúme não nasce do amor, e sim do orgulho. O que
dói neste sentimento, creia-me, não é a privação do prazer que outrem goza, quando também
nós podemos gozá-lo e mais. É unicamente o desgosto de ver o rival possuir um bem que nos
pertence ou cobiçamos, ao qual nos julgamos com direito exclusivo, e em que não admitimos
partilha. Há mais ardente ciúme do que o do avaro por seu ouro, do ministro por sua pasta, do
ambicioso por sua glória? Pode-se ter ciúme de um amigo, como de um traste de estimação, ou
de um animal favorito. Eu quando era criança tinha-o de minhas bonecas.

José de Alencar, In Senhora

04. O fragmento transcrito e a leitura do romance permitem afirmar:


( 01 ) O orgulho é apresentado como um sentimento nobre, que dignifica o ser humano.
( 02 ) O diálogo revela não só o esforço de Aurélia para dissimular sua indignação diante do
marido, como também a aparente indiferença de Seixas em relação aos sentimentos da
esposa.
( 04 ) Demonstrar ciúmes do marido era inadmissível para Aurélia, pois isso lhe revelaria sua
vulnerabilidade.
( 08 ) Aurélia, ao discorrer sobre o ciúme, busca uma explicação lógica para tal sentimento, ao
tempo em que sinaliza para Seixas que, se lhe pareceu ter ciúmes, é porque o considera
como sua propriedade.
( 16 ) A personagem Aurélia é movida por sentimentos apaixonados, mas justifica suas ações
através de uma argumentação racional.
( 32 ) O fragmento põe às claras o materialismo de Seixas e a religiosidade de Aurélia.

05. Sobre os fatos da linguagem, marque as proposições verdadeiras, a partir de destaques dos dois
fragmentos abaixo:
I- Seixas compreendeu que aí vinha a refega e preparou-se, chamando a si toda a calculada
resignação de que se costumava revestir.
II - O que eu desejava era saber sua opinião sobre este ponto: se o ciúme é produzido pelo
amor.
– Assim pensam geralmente.
– E o senhor?

9
– Como nunca o senti, não posso ter opinião minha.

( 01 ) “Compreendeu que...” (fragmento I): o “que” substitui um termo antecedente.


( 02 ) Em “preparou-se” e “se costumava revestir”, o “se” comunica reflexibilidade.
( 04 ) “... de que se costumava revestir”. O “que” substitui “resignação”.
( 08 ) “Se o ciúme é produzido pelo amor”. O “se” condiciona um fato a outro.
( 16 ) “Como nunca o senti”. O elemento destacado indica causa.
( 32 ) Em “nunca o senti”, há um pronome que substitui “amor”.

06. Convencida de que todos os seus inúmeros apaixonados, sem exceção de um, a pretendiam
unicamente pela riqueza, Aurélia reagia contra essa afronta, aplicando a esses indivíduos o
mesmo estalão.
Assim costumava ela indicar o merecimento de cada um dos pretendentes, dando-lhes certo
valor monetário. Em linguagem financeira, Aurélia cotava os seus adoradores pelo preço que
razoavelmente poderiam obter no mercado matrimonial.

O texto, entendido no conjunto da obra, permite algumas assertivas corretas sobre o romance
Senhora. Marque-as:
( 01 ) O casamento é apresentado como uma transação comercial e, por isso, o romance
estrutura-se em quatro partes: preço, quitação, posse, resgate.
( 02 ) Aurélia Camargo, preterida por Fernando Seixas, compra-o e ele, contumaz caça-dotes,
sujeita-se ao constrangimento de uma união por interesse.
( 04 ) O casamento é só de fachada e a união não se consuma, visto que resulta de acordo no
qual as aparências sociais devem ser mantidas.
( 08 ) A narrativa marca-se pelo choque entre o amor idealizado e o mundo da experiência
degradante governado pólo dinheiro.
( 16 ) O romance gira em torno de intrigas amorosas, de desigualdades, subjugando a
personagem principal ao jogo de interesses da sociedade que a corrompe.
( 32 ) O texto justifica que Aurélia, mesmo afrontada pelo comportamento dos pretendentes,
termina aderindo a eles, num imperioso determinismo.
( 64 ) O “mercado matrimonial” a que se refere o texto não constitui uma instituição social da
época. Apenas faz parte do jogo irônico de Aurélia.

Texto: Questões 07 a 10.


Sucedem-se no procedimento de Aurélia atos inexplicáveis e tão contraditórios, que
derrotam a perspicácia do mais profundo fisiologista.
Convencido de que também o coração tem uma lógica, embora diferente da que rege o
espírito, bem desejara o narrador deste episódio perscrutar a razão dos singulares movimentos
que se produzem n'alma de Aurélia.
Como porém não foi dotado com a lucidez precisa para o estudo dos fenômenos
psicológicos, limita-se a referir o que sabe, deixando à sagacidade de cada um atinar com a

10
verdadeira causa de impulsos tão encontrados.
Remontemos pois o curso dessa nova existência de Aurélia até à noite de seu casamento,
quando a exaltação que a animava durante a cena passada com Seixas, abatendo de repente, a
deixou prostrada no tapete da câmara nupcial.
Não foi propriamente um desmaio que a tomou, ou este não passou de breve síncope. Mas
o resto da noite, ela o passou ali, sem forças nem resolução de erguer-se, em um torpor intenso,
que se não lhe apagava de todo os espíritos, os sopitava em uma modorra pesada.
Tinha a consciência de sua dor; sofria acerbamente; porém faltava-lhe naquele instante a
lucidez para discriminar a causa de seu desespero e avaliar da situação que ela própria havia
criado.

07. Com base nos dados fornecidos pelo narrador, a personagem Aurélia pode ser enquadrada no
Romantismo porque:
01) se guia, sobretudo, pela emoção.
02) encara o sofrimento com altivez.
03) é uma pessoa altamente racional.
04) contesta a realidade na qual se insere.
05) assume um comportamento evasionista.

08. O narrador:
01) consegue revelar o motivo real da atitude da personagem.
02) censura a personagem por se deixar conduzir pela emoção.
03) reconhece o seu despreparo para a investigação do mundo interior humano.
04) defende o uso da razão como meio de se evitar um comportamento ambíguo.
05) afirma conhecer o íntimo da personagem, mas nega-se a desvendá-lo para o leitor.

09. A postura do narrador no texto, a partir do terceiro parágrafo, comprova que o romance
romântico se caracteriza, no geral, pela(a):
01) Profundidade da análise psicológica para a qual o enredo é apenas um pretexto.
02) Preferência pelo enfoque de perfis humanos mórbidos e decadentes.
03) Tendência às abordagens científicas.
04) Preocupação maior com o enredo em detrimento da análise.
05) Grande ênfase aos perfis psicológicos, antecipando-se ao romance realista.

10. Em Senhora, a narração é de:


01) terceira pessoa: narrador participante.
02) técnica teatral: não há narrador, mas atores que representam o enredo.
03) primeira pessoa: personagem-narrador.
04) múltiplos pontos de vista: cada personagem narra o incidente em que se envolve.
05) terceira pessoa: narrador onisciente.

11

Você também pode gostar