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Arte, artesanato e indústria

O mundo industrial, totalmente entregue à sua nova potência, se desviou amplamente,


como vimos, da criação artística: ele se contenta com imitar o artesanato, utilizando materiais
substitutos que permitem a produção em série a custo mais baixo. No entanto, essa lógica vai
logo suscitar uma ampla reflexão crítica. No decorrer da segunda metade do século XIX, em
face dos prejuízos estéticos provocados pelo reinado da máquina moderna, duas grandes
correntes de pensamento se enfrentam.
A primeira, impulsionada por Ruskin, se propõe rejeitar o maquinismo voltando a um
trabalho artesanal cujo modelo se encontra na Idade Média. Denunciando o progresso
moderno, a feiura e a mentira dos produtos manufaturados, Ruskin considera que o
maquinismo industrial arrasta a sociedade para o seu declínio: há conflito irredutível entre arte
e indústria, beleza e maquinismo, qualidade e produção mecânica. Para escapar dos efeitos
desastrosos do mundo maquinista, nada é mais importante do que revalorizar o trabalho
manual e os métodos artesanais de antes da modernidade. William Morris e o movimento
Arts & Crafts também defendem a ideia de uma volta à dignidade do trabalho artesanal e da
obra bem-feita. Desejando reconciliar a arte e a vida cotidiana, Morris denuncia o dogma da
hierarquia das artes, rejeita a oposição entre a “Grande Arte” e as “artes menores”, proclama
a igual dignidade de todas as artes, procura elevar o artesão ao nível de artista, convida os
artistas a se interessarem pelos domínios do artesanato.
Foi na renovação das artes decorativas, na fusão da arte e do artesanato que se
buscou a solução para os estragos estéticos da mecanização moderna. Rejeitando uma arte
destinada a uma minoria, Morris considera que “nenhuma obra de arte é obra de arte se não
for útil”. Nessa perspectiva, as artes aplicadas são carregadas de uma dimensão utópica:
construir um mundo novo para o povo, fazer a arte entrar na vida de todos, realizar um
ambiente cotidiano de qualidade em tudo e para todos. Esse programa será reivindicado pelo
movimento Arts & Crafts assim como pelo Art Nouveau. Com os prejuízos da civilização
maquinista surgiu a utopia de uma sociedade estética democrática.
A segunda corrente é inaugurada por Henry Cole, que reúne a partir de 1850 um grupo
de pensadores e de artistas reformadores cuja ideia não é nem rejeitar a mecanização nem
voltar a métodos artesanais, como preconizam Ruskin, William Morris e os inspiradores do
Arts & Crafts, mas, ao contrário, promover a aliança da arte com a indústria, “demonstrar a
existência de um laço estreito entre as belas-artes e a indústria”. Contra os excessos da
mecanização, trata-se de inventar uma linguagem que seja adequada à Revolução Industrial
e que não reproduza os antigos modos de concepção artística em vigor no artesanato. Essa
concepção é marcada pela convicção de que é inútil e impossível voltar atrás e de que a
técnica industrial está em condições de fabricar produtos originais de qualidade que poderão
ser difundidos na vida cotidiana. Afirma-se uma perspectiva que vê na mecanização uma
oportunidade para o desenvolvimento de uma verdadeira originalidade criadora. Cole inventa
para tanto o conceito de “manufatura de arte”: “Entendam com isso”, diz ele, “a aliança das
belas-artes ou da beleza com a produção mecânica”.38 Essa corrente, que serviu de apoio às
concepções funcionalistas, já traz em germe o que será chamado de estética industrial ou
design e que consagrará, nos anos 1920, a Bauhaus (1919-33).
Essa escola, nascida da fusão da Academia de Belas-Artes e da escola de artes
aplicadas de Weimar, ocupa um lugar fundamental na história do design. Walter Gropius, que
dirige o estabelecimento, concebe o projeto de superar as fronteiras entre as disciplinas,
abolir a distinção entre arte e artesanato, belas-artes e artes úteis. Gropius pensa em fundir
novamente a arquitetura, a pintura e a escultura numa “catedral do futuro” que abrangeria
tudo numa só unidade. A escola se dá como missão redescobrir a unidade perdida das artes
plásticas, vencer o fosso existente entre a arte e a indústria, elevar o artesanato ao nível das
belas-artes, formar criadores capazes de trabalhar na indústria, lançando as bases de uma
arte que seria parte integrante da sociedade. A Bauhaus nasceu no prolongamento dos
princípios de William Morris e do movimento Arts & Crafts: tornar caduca a clivagem entre as
belas-artes e a produção artesanal, pois a arte devia corresponder às necessidades da
sociedade. No entanto, nada resta da nostalgia de um passado remoto: rejeitando qualquer
referência a este, os numerosos artistas e arquitetos que participam da Bauhaus propõem
uma linguagem universal das formas e do objeto, uma estética racional, destradicionalizada,
que deve estar a serviço da indústria.
A partir de 1922, a Bauhaus se afasta do seu objetivo inicial de síntese das artes ou de
unificação da arte e do artesanato. Efetua-se uma reviravolta que visa aproximar a arte e a
máquina, inventar protótipos reprodutíveis em série, trabalhar para a indústria em vez de
realizar objetos de luxo. A ambição é promover uma “estética mecânica”, produzir modelos
experimentais em que arte e técnica colaborem mutuamente para mudar o cenário da vida
cotidiana: construções e edifícios, claro, mas também decoração, tipografia, têxtil, louça,
luminárias, mobiliário. Nesse espírito são realizadas a Haus Am Horn (1923) e diversas
cozinhas, equipadas de maneira funcional e simples, notadamente as de Breuer (1923) e
Gropius (1926).
A escola preconiza um enfoque racionalista da criação que tenha o cuidado de
reconciliar valor plástico, utilidade funcional e fabricação industrial. Assim, um certo número
de modelos de mobiliário metálico concebidos notadamente por Mies van der Rohe, bem
como luminárias criadas por Marianne Brandt e Hin Bredendiek, foi fabricado industrialmente.
Não obstante, ainda que os protótipos da Bauhaus pareçam sair de uma linha de montagem,
poucos resultaram numa produção industrial: entre 1919 e 1933, somente uma vintena de
industriais se mostraram interessados numa produção desses projetos. Os materiais e a
fabricação desses produtos eram caros: a imensa maioria da população não pôde ter acesso
a eles, a despeito da afirmação de um ideal social ambicioso.
A escola se fez apóstola de um enfoque funcionalista cujos princípios foram
formulados nos anos 1890. Louis H. Sullivan enuncia sua célebre fórmula “form follows
function”1 em 1896, e no ano seguinte Van de Velde proclama: “Tudo o que não tem a ver com
a função e com a utilidade deve ser banido”. E o ensaio de Adolf Loos, Ornamento e crime,
aparece na Áustria em 1908. A concepção funcional da forma se afirma contra as gratuidades
estéticas, contra o decorativo então todo-poderoso, contra o desvio dos objetos do que faz
sua verdadeira destinação: a geometria, a simplicidade racional, o despojamento ortogonal, a
verdade do objeto, o respeito ao material são suas regras de ouro. O funcionalismo rejeita
todas as formas de narração simbólica e de ornamentação, todas as deformações mentirosas
que impedem que os objetos alcancem sua função de uso. Donde a exaltação de uma beleza
definida pela sobriedade e a economia dos meios, pela expressão exata de uma função, pela
adaptação das formas ao emprego, pela conformidade de uma coisa a seu fim. Beleza
racional, beleza universal, beleza técnica são uma só coisa.
Mas o projeto funcionalista não é redutível a um trabalho estilístico, por mais
despojado que seja: trata-se antes de mais nada de descobrir as funções da vida e a solução
ótima para concretizá-las, responder às novas exigências da produção industrial, fabricar ao
mais baixo preço de forma racional, encontrar as soluções mais econômicas para construir
em massa e para os mais desfavorecidos. Criticando as pesquisas puramente formalistas, a
escola busca a adequação da concepção dos produtos aos imperativos industriais de modo a
satisfazer as verdadeiras necessidades do homem. No número 4 da revista Bauhaus, Hannes
Meyer, que sucede a Gropius à frente da Bauhaus, escreve em 1923: “Tudo neste mundo é
produto da fórmula ‘função x economia’. Por isso nada é obra de arte: toda arte é composição
e, por conseguinte, antifuncional. Toda vida é função e, por conseguinte, não artística”. Antes
de ser um projeto estético, o funcionalismo é comandado por uma ambição demiúrgica (fazer
tábua rasa do passado e da tradição, remodelar integralmente o ambiente cotidiano de acordo
com uma perspectiva racional), ética (probidade, higiene, eliminação do desperdício e dos
engodos ornamentais, beleza simples e prática, verdade,39) social e democrática (melhorar a
vida da maioria).
A concepção funcionalista se construiu na oposição frontal aos artifícios da
ornamentação, da moda, da sedução. A ironia é que o capitalismo conseguiu, posteriormente,
fazer o próprio funcionalismo entrar na órbita do que ele inicialmente demonizava. De fato,
desenvolveu-se um funcionalismo sedutor dos consumidores. Na verdade, ele desempenhou
muito menos um papel moral (as “verdadeiras” necessidades) do que um papel econômico a
serviço do estímulo dos mercados, da exacerbação das necessidades e da rentabilidade das
empresas. Com o capitalismo artista, o design industrial se tornou um elemento da sociedade
e da economia de sedução.
(Lipovetsky, Gilles. A estetização do mundo. Companhia das Letras.)

Para complementar a leitura leia também as páginas XXXXXXX de seu livro de Artes.
Pesquise na internet sobre o artista e designer Max Bill e sua relação com o Brasil.

1 "A forma segue a função" ou "a forma se submete a função”.

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