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Tratado da lei

Devemos, conseqüentemente, tratar dos princípios exteriores dos atos. Ora, o princípio externo, que
inclina para o mal, é o diabo, de cuja tentação já tratamos na Primeira Parte. E o princípio externo, que
move para o bem, é Deus, que nos instrui pela lei e nos ajuda pela graça.

Por onde, devemos tratar, primeiro, da lei e, segundo, da graça.

Ora, quanto à lei, devemos considerá-la, primeiro, em geral. Segundo, nas suas partes.

E, sobre a lei, em geral, há tríplice consideração a fazer. A primeira é sobre a essência dela. A segunda,
sobre a diferença entre as leis. A terceira, sobre os efeitos da lei.

Questão 90: Da essência da lei.


Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei é algo de racional.


O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nada tem de racional.

1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 7, 23): Sinto nos meus membros outra lei, etc. Ora, o racional não está nos
membros, porque a razão não se serve de órgãos corpóreos. Logo, a lei nada tem de racional.

2. Demais. — A razão só inclui a potência, o hábito e o ato. Ora, a lei não é nenhuma potência da razão.
E nem um hábito qualquer dela, porque os seus hábitos são as virtudes intelectuais, de que já se tratou
(a. 57). Nem um ato, pois, se o fosse, cessando ele, como se dá com os adormecidos, cessaria a lei. Logo,
a lei nada tem de racional.

3. Demais. — A lei move os que se lhe submetem, a agir retamente. Ora, mover à ação pertence
propriamente à vontade, como resulta claro do que já foi dito (q. 9, a. 1). Logo, a lei não depende da
razão, mas, antes, da vontade, conforme ao que também diz o Jurisperito: O que apraz ao príncipe tem
força de lei.

Mas, em contrário, à lei pertence ordenar e proibir. Ora, ordenar é ato da razão, como já se demonstrou
(q. 17, a. 1). Logo, a lei é algo de racional.

SOLUÇÃO. — A lei é uma regra e medida dos atos, pela qual somos levados à ação ou dela impedidos.
Pois, lei vem de ligar, porque obriga a agir. Ora, a regra e a medida dos atos humanos é a razão, pois é
deles o princípio primeiro, como do sobredito resulta (q. 1, a. 1 ad 3). Porque é próprio da razão ordenar
para o fim, princípio primeiro do agir, segundo o Filósofo. Ora, o que, em cada gênero, constitui o
princípio é a medida e a regra desse gênero. Tal a unidade, no gênero dos números, e o primeiro
movimento, no dos movimentos. Donde se conclui que a lei é algo de pertencente à razão.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Sendo a lei regra e medida, pode, de dois modos, ser
aplicada. De um, como o que mede e regula. Ora, como isto é próprio da razão, deste modo, a lei só na
razão existe. — De outro, como o que é regulado e medido. E, então existe em tudo o que em virtude
dela tem alguma inclinação. De sorte que qualquer inclinação proveniente de uma lei pode ser
considerada lei, não essencial, mas, participativamente. E deste modo, também a inclinação dos
membros para a concupiscência se chama lei dos membros.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Podemos considerar, nos atos exteriores, a obra e o obrado, como, p. ex., a
edificação e o edifício. Assim também podemos distinguir, nas obras da razão, o ato mesmo dela, que é
inteligir e raciocinar; e algo de constituído por esse ato. E isto, no concernente à razão especulativa, é,
primeiramente, a definição; depois, o enunciado; e, em terceiro lugar, o silogismo ou argumentação.
Ora, mesmo a razão prática emprega no agir um certo silogismo, conforme já demonstramos (q. 13, a. 3;
q. 76, a. 1), de acordo com o que ensina o Filósofo. Por onde, deve haver, na razão prática, o que esteja
para as obras, como, na razão especulativa, está a proposição para as conclusões. Ora, tais proposições
universais da razão prática, ordenadas para o ato, têm natureza de lei. E elas são, umas vezes,
consideradas atualmente, e, outras possuídas habitualmente pela razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão tira o seu poder motor da vontade, como já se disse (q. 17, a. 1). Pois,
é por querermos o fim que a razão ordena os meios. Mas para a vontade do que é ordenado vir a
constituir lei é preciso seja regulada pela razão. E deste modo compreende-se que a vontade do príncipe
tenha força de lei; do contrário seria antes iniqüidade que lei.

Art. 2 — Se a lei se ordena sempre para o bem comum, como para o fim.
(Inira, q. 95, a. 4; q. 96, a. 1; III Sent., dist. XXXVII, a. 2, qª 2, ad 5 V Ethic., lect. II).

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei não se ordena sempre para o bem comum, como para
o fim.

1. — Pois, é próprio da lei ordenar e proibir. Ora, a ordem visa um certo bem particular. Logo, o fim da
lei nem sempre é o bem comum.

2. Demais. — A lei dirige o homem para agir. Ora, os atos humanos versam sobre o particular. Logo,
também a lei se ordena a um bem particular.

3. Demais. — Isidoro diz: Se a lei participa da razão, será lei tudo o que desta participar. Ora, da razão
participa o que é ordenado não só para o bem comum, mas também para o privado. Logo, a lei não se
ordena só para o bem comum, mas também para o particular de cada um.

Mas, em contrário, Isidoro diz, que a lei é prescrita não para utilidade particular, mas para a utilidade
comum dos cidadãos.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), sendo a lei regra e medida, ela depende do que é o princípio dos
atos humanos. Ora, como a razão é o princípio desses atos, também nela há algum primeiro princípio,
que o é de tudo o mais. Por onde e necessàriamente a este há de a lei pertencer, principal e
maximamente. Ora, o primeiro princípio, na ordem das operações, à qual pertence a razão prática, é o
fim último. E sendo o fim último da vida humana a felicidade ou beatitude, como já dissemos (q. 2, a. 7;
q. 3, a. 1), há de por força a lei dizer respeito, em máximo grau, à ordem da beatitude. — Demais, a
parte ordenando-se para o todo, como o imperfeito para o perfeito; e sendo cada homem parte da
comunidade perfeita, necessária e propriamente, há de a lei dizer respeito à ordem para a felicidade
comum. E, por isso, o Filósofo, depois de dar a definição do legal, faz menção da felicidade e da
comunhão política. Assim, diz: consideramos como justo legal o que faz e conserva a felicidade, com
tudo o que ela compreende, em dependência da comunidade civil. Ora, a comunidade perfeita é a
cidade, como diz Aristóteles.
Porém, em qualquer gênero, o que é principal é princípio de tudo o mais que a esse gênero pertence, e
que é considerado em dependência dele. Assim, o fogo, quente por excelência, é a causa do calor dos
corpos mistos, considerados quentes na medida em que participam do fogo. Por onde e
necessariamente a lei sendo por excelência relativa ao bem comum, nenhuma outra ordem, relativa a
uma obra particular, terá natureza de lei, senão enquanto se ordena ao bem comum. Logo, a este bem
se ordena toda lei.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Uma ordem supõe a aplicação da lei ao que é por ela
regulado. Ora, o ordenar-se para o bem comum, que é próprio da lei, é aplicável a fins particulares. E a
esta luz, também se podem dar ordens relativas a certos fins particulares.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Certamente, as obras dizem respeito ao particular. Mas este pode ser
referido ao bem comum, não pela comunidade genérica ou específica, mas pela da causa final,
enquanto que o bem comum é considerado como fim comum.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como na ordem da razão especulativa nada tem firmeza senão pela
resolução aos primeiros princípios indemonstráveis, assim também nada a tem, na ordem da razão
prática, senão pela ordenação ao fim último, que é o bem comum. Ora, o que deste modo participa da
razão tem a natureza da lei.

Art. 3 — Se a razão particular pode legislar.


(Infra, q. 97, a. 3, ad 2; IIª-IIªª, q. 50, a. 1, ad 3).

O terceiro discute-se assim. — Parece que qualquer razão particular pode legislar.

1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 2, 14): Quando os gentios, que não tem lei, fazem naturalmente as coisas
que são da lei, esses tais a si mesmos servem de lei. Ora, isto é dito em geral de todos. Logo, quem quer
que seja pode impor a si mesmo a sua lei.

2. Demais. — Como diz o Filósofo, a intenção do legislador é levar os homens à virtude. Ora, qualquer
um pode fazê-lo. Logo, a razão de qualquer homem pode legislar.

3. Demais. — Assim como o chefe da cidade é o seu governador, assim qualquer pai de família é o
governador da casa. Ora, o chefe da cidade pode legislar para ela. Logo, também qualquer pai de família
pode legislar para a sua casa.

Mas, em contrário, diz Isidoro, e está nas Decretais: A lei é a constituição do povo pela qual os patrícios,
simultaneamente com a plebe, estabeleceram alguma disposição. Logo, qualquer um não pode legislar.

SOLUÇÃO. — A lei, própria, primária e principalmente, diz respeito à ordem para o bem comum. Ora,
ordenar para o bem comum é próprio de todo o povo ou de quem governa em lugar dele. E portanto,
legislar pertence a todo o povo ou a uma pessoa pública, que o rege. Pois, sempre, ordenar para um fim
pertence a quem esse fim é próprio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como já dissemos (a. 1 ad 1), a lei está num sujeito, não
só como em quem regula, mas também, participativamente, como em quem é regulado. E deste modo
cada qual é para si mesmo a sua lei, enquanto participa da ordem de quem regula. Por isso o Apóstolo
acrescenta: Os que mostram a obra da lei escrita nos seus corações.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Um particular não pode levar eficazmente à virtude. Pode apenas advertir;
mas, se a sua advertência não for aceita, não dispõe da força coativa, que a lei deve ter para levar
eficazmente à virtude, como diz o Filósofo. Ao passo que o povo, ou a pessoa pública, a quem compete
infligir as penas, tem essa força coativa, como a seguir se dirá (q. 92, a. 2 ad 3; IIa IIae q. 64, a.
3). E portanto, só ele pode legislar.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como o homem faz parte da casa, assim, esta, da cidade, que é uma
comunidade perfeita, segundo Aristóteles. Por onde, assim como o bem de um homem não é o fim
último, mas se ordena ao bem comum; assim, o bem de uma casa se ordena ao de toda a cidade, que é
uma comunidade perfeita. Portanto, quem governa uma família pode sem dúvida estabelecer certas
ordens ou estatutos, mas que propriamente não constituem leis.

Art. 4 — Se a promulgação é da essência da lei.


(De Verit., q. 17, a. 3: Quodl. I, q. 9, a. 2).

O quarto discute-se assim. — Parece que a promulgação não é da essência da lei.

1. — Pois, a lei natural é a lei por excelência. Ora, ela não precisa de promulgação. Logo, o ser
promulgada não é da essência da lei.

2. Demais. — Pertence propriamente à lei obrigar a fazer ou não fazer alguma coisa. Ora, são obrigados
a cumprir a lei não só aqueles que lhe sabem da promulgação, mas também os outros. Logo, não é a
promulgação da essência da lei.

3. Demais. — A obrigação da lei também liga para o futuro, pois, as leis impõem necessidades aos
negócios futuros, como diz o direito. Ora, a promulgação é feita para os negócios presentes. Logo, não é
da essência da lei.

Mas, em contrário, dizem as Decretais: As leis são instituídas quando promulgadas.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei é imposta aos que lhe estão sujeitos, como regra e medida.
Ora, a regra e a medida impõe-se aplicando-se aos regulados e medidos. Por onde, para a lei ter força de
obrigar — o que lhe é próprio — é necessário seja aplicada aos homens, que por ela devem ser
regulados. Ora, essa aplicação se faz por chegar a lei ao conhecimento deles, pela promulgação. Logo, a
promulgação é necessária para a lei vir a ter força.

E assim, desses quatro elementos referidos podemos deduzir a definição da lei, que não é mais do que
uma ordenação da razão para o bem comum, promulgada pelo chefe da comunidade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A promulgação da lei da natureza se dá por tê-la Deus
infundido na mente humana, de modo a ser naturalmente conhecida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Aqueles que não têm conhecimento da promulgação da lei são obrigados a
observá-la, enquanto sabem ou podem saber, por meio de outrem, da promulgação dela.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A promulgação presente se aplica ao futuro pela persistência da escritura,


que, de certo modo, está sempre promulgando a lei. E por isso Isidoro diz: A lei é assim chamada do
verbo ler, está escrita.
Questão 91: Da diversidade das leis.
Em seguida devemos tratar da diversidade das leis.

E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se há uma lei eterna.


(Infra, q. 93, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que não há nenhuma lei eterna.

1. — Pois, toda lei é imposta a alguém. Ora, como só Deus existe abeterno, nenhuma lei pode abeterno
ter sido imposta a ninguém. Logo, nenhuma lei é eterna.

2. Demais. — A promulgação é da essência da lei. Ora, esta não poderia sê-la abeterno porque ninguém
há para tê-la promulgado abeterno. Logo, nenhuma lei pode ser eterna.

3. Demais. — A lei importa em ordenação para um fim. Ora, nada do que se ordena para um fim é
eterno, porque só o último fim o é. Logo, nenhuma lei é eterna.

Mas, em contrário, Agostinho diz: A Lei, que é chamada a razão suma, não pode deixar de ser
considerada imutável e eterna por todo ser inteligente.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2; a. 3, a. 4), a lei não é mais do que um ditame da razão
prática, do chefe que governa uma comunidade perfeita. Ora, supondo que o mundo seja governado
pela Divina Providência, como estabelecemos na Primeira Parte (q. 22, a. 1, a. 2), é manifesto que toda a
comunidade do universo é governada pela razão divina. Por onde, a razão mesma do governo das
coisas, em Deus, que é o regedor do universo, tem a natureza de lei. E como a razão divina nada
concebe temporalmente, mas tem o conceito eterno, conforme a Escritura (Pr 8, 23), é forçoso dar a
essa lei a denominação de eterna.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As coisas que em si mesmas não existem, existem em
Deus, enquanto por ele pré conhecidas e pré ordenadas, conforme aquilo da Escritura (Rm 4, 17): Que
chama as coisas que não são como as que são. Assim, pois, o conceito eterno da lei divina tem a
natureza de lei eterna, enquanto ordenada por Deus para o governo das coisas por ele preconhecidas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A promulgação se faz verbalmente e por escrito. E de ambos os modos,


recebe a lei eterna promulgação, da parte de Deus, que a promulga. Pois, é eterno o Verbo divino e
eterna é a escritura do livro da vida. Mas essa promulgação não pode ser eterna por parte da criatura
que a ouve ou a observa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei implica, ativamente, ordem para um fim, enquanto por ela certas coisas
se ordenam para este. Mas não passivamente, no sentido em que a própria lei se ordena para um fim;
salvo, por acidente, no governador, cujo fim está fora dele, para o qual também necessariamente há de
a sua lei se ordenar. Ora, o fim do governo divino é Deus mesmo, nem a sua lei dele difere. Portanto, a
lei eterna não se ordena para outro fim.
Art. 2 — Se há em nós uma lei natural.
(IV Sent., dist. XXXIII: q. 1, a. 1).

O segundo discute-se assim. — Parece que não há em nós nenhuma lei natural.

1. — Pois, o homem é suficientemente governado pela lei eterna. Assim, Agostinho diz, que pela lei
eterna torna-se justo o serem todas as coisas ordenadíssimas. Ora, a natureza não abunda no supérfluo,
assim como não falha no necessário. Logo, não há no homem nenhuma lei natural.

2. Demais. — Pela lei o homem ordena os seus atos para o fim, como já se estabeleceu (q. 90, a. 2). Ora,
a ordenação dos atos humanos para o fim não se faz por natureza, como se dá com as criaturas
irracionais que buscam o fim pelo só apetite natural. Pois, o homem busca o fim pela razão e pela
vontade. Logo, não há nenhuma lei natural no homem.

3. Demais. — Quanto mais somos livres, tanto menos estamos sujeitos à lei. Ora, o homem é mais livre
que todos os animais, por causa do livre arbítrio que, ao contrário deles, possui. Por onde, não estando
eles sujeitos à lei natural, nem o está o homem.

Mas, em contrário, àquilo da Escritura (Rm 2, 14) – Porque quando os gentios, que não tem lei, fazem
naturalmente as coisas que são da lei – diz a Glosa: Embora sem a lei escrita, tem contudo a Lei natural,
pela qual todos tem entendimento e consciência do bem e do mal.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1), sendo a lei regra e medida, pode de dois modos estar num
sujeito: como no que regula e mede, e como no regulado e medido; pois, na medida em que um ser
participa da regra ou da medida, nessa mesma é regulado ou medido. Ora, todas as coisas sujeitas à
Divina Providência são reguladas e medidas pela lei eterna, como do sobredito resulta (a. 1). Por onde é
manifesto, que todas participam, de certo modo, da lei eterna, enquanto que por estarem impregnadas
dela se inclinam para os próprios atos e fins. Ora, entre todas as criaturas, a racional está sujeita à Divina
Providência de modo mais excelente, por participar ela própria da providência, provendo a si mesma e
às demais. Portanto, participa da razão eterna, donde tira a sua inclinação natural para o ato e o fim
devidos. E a essa participação da lei eterna pela criatura racional se dá o nome de lei natural. Por isso,
depois do Salmista ter dito (Sl 4, 6) – Sacrificai sacrifício de justiça – continua, para como que responder
aos que perguntam quais sejam as obras da justiça: Muitos dizem – quem nos patenteará os bens? A
cuja pergunta dá a resposta: Gravado está, Senhor, sobre nós o lume do teu rosto, querendo assim dizer
que o lume da razão natural, pelo qual discernimos o bem e o mal, e que pertence à lei natural, não é
senão a impressão em nós do lume divino. Por onde é claro, que a lei natural não é mais do que a
participação da lei eterna pela criatura racional.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procederia se a lei natural fosse algo diverso
da lei eterna;ora, ela não é mais do que uma participação desta, como dissemos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Toda operação da nossa razão e da nossa vontade deriva do que é segundo a
natureza, como dissemos (q. 10, a. 1). Pois, todo raciocínio deriva de princípios evidentes; e todo desejo
dos meios deriva do desejo natural do fim último. Por onde e necessariamente, a direção primeira dos
nossos atos para o fim há de depender da lei natural.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Mesmo os animais irracionais participam, a seu modo, da razão eterna, como
a criatura racional. Mas como esta dela participa intelectual e racionalmente, por isso essa participação
da lei eterna pela criatura racional chama-se propriamente lei;pois, a lei é algo de racional, como já
dissemos (q. 90, a. 1). Ora, a lei eterna não é participada racionalmente pela criatura irracional;
portanto, só por semelhança pode-se chamar lei a essa participação.

Art. 3 — Se há uma lei humana.


(Infra, q. 95, a. 1).

O terceiro discute-se assim. — Parece que não há nenhuma lei humana.

1. — Pois, a lei natural é uma participação da lei eterna, como já se disse (a. 2). Ora, pela lei eterna,
todas as coisas são ordenadíssimas, como diz Agostinho. Logo, a lei natural basta para ordenar todas as
coisas humanas, e portanto, não há necessidade de nenhuma lei humana.

2. Demais. — A lei é essencialmente medida, como se disse (q. 90, a. 1). Ora, a razão humana não é a
medida das coisas, mas antes inversamente, como diz Aristóteles. Logo, nenhuma lei pode proceder da
razão humana.

3. Demais. — A medida deve ser certíssima, como está em Aristóteles. Ora, o ditame da razão humana,
no concernente à direção das coisas, é incerto, conforme àquilo da Escritura (Sb 9, 14): Os pensamentos
dos mortais são tímidos, e incertas as nossas providências. Logo, nenhuma lei pode proceder da razão
humana.

Mas, em contrário, Agostinho ensina que há duas leis: uma eterna, e outra temporal, a que chama
humana.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2), a lei é um ditame da razão prática. Ora, dá-se que o
modo de proceder da razão prática é semelhante ao da especulativa, pois ambas procedem de certos
princípios para certas conclusões, como antes ficou estabelecido. Por onde devemos concluir que, assim
como a razão especulativa, de princípios indemonstráveis e evidentes tira as conclusões das diversas
ciências, cujo conhecimento não existe em nós naturalmente, mas são descobertos por indústria da
razão; assim também, dos preceitos da lei natural, como de princípios gerais e indemonstráveis,
necessariamente a razão humana há de proceder a certas disposições mais particulares. E estas
disposições particulares, descobertas pela razão humana, observadas as outras condições pertencentes
à essência da lei, chamam-se leis humanas como já dissemos (q. 90, a. 2, a. 3, a. 4). E por isso, Túlio, na
sua Retórica, diz que a origem do direito está na natureza; daí, em razão da utilidade, nasceram certas
disposições costumeiras; depois, o medo e a religião sancionaram essas disposições oriundas da
natureza e aprovadas pelo costume.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A razão humana não pode participar plenamente do
ditame da razão divina; mas o pode ao seu modo e imperfeitamente. Por onde, pela razão especulativa,
por uma participação natural da sabedoria divina, temos o conhecimento de certos princípios comuns,
mas não o conhecimento próprio de qualquer verdade, como a contém a sabedoria divina. Assim
também, pela razão prática, o homem naturalmente participa da lei eterna relativamente a certos
princípios comuns, mas não quanto a direções particulares de determinados atos, que contudo estão
contidos na lei eterna. Por onde, é necessário, ulteriormente, que a razão humana proceda a certas
disposições particulares das leis.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A razão humana, em si mesma, não é a regra das coisas; mas os princípios,
que lhe são naturalmente inerentes, são certas regras gerais, e medidas de tudo o que o homem deve
fazer; do que a razão natural é a regra e a medida, embora não seja a medida do que é natural.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão prática versa sobre os atos, que são particulares e contingentes; não
porém, sobre o que é necessário, como a razão especulativa. Por onde, as leis humanas não podem ter
aquela infalibilidade que têm as conclusões demonstrativas das ciências. Nem é necessário seja toda
medida absolutamente infalível e certa, mas deve sê-lo enquanto isso lhe é genericamente possível.

Art. 4 — Se é necessário haver uma lei divina.


(I, q. 1. a. 1; IIª-IIªª, q. 22, a. I, ad 1; III, q. 60, a. 5, ad 3; III Sent., dist. XXXVII, a. 1; In Psalm. XVIII; Ad
Galat., cap. III, lect. VII).

O quarto discute-se assim. — Parece que não é necessário haver nenhuma lei divina.

1. — Pois, como já se disse (a. 2), a lei natural é uma participação da lei eterna em nós. Ora, a lei eterna
é a lei divina, como já se disse (a. 1). Logo, não é necessário haver uma lei divina, além da natural e das
leis humanas dela derivadas.

2. Demais. — A Escritura diz (Sr 15, 14): Deus deixou o homem na mão do seu conselho. Ora, o conselho
é ato de razão, como já se estabeleceu (q. 14, a. 1). Logo, o homem foi deixado ao governo da sua razão.
Ora, o ditame da razão humana é a lei humana, como já se disse (a. 3). Logo, não é necessário seja o
homem governado por nenhuma lei divina.

3. Demais. — A natureza humana é mais capaz do que a das criaturas irracionais. Ora, as criaturas
irracionais não estão sujeitas a nenhuma lei divina, além da inclinação natural, que lhes é inerente.
Logo, com maior razão, não deve a criatura racional estar sujeita a qualquer lei divina, além da natural.

Mas, em contrário, David pede a Deus que lhe imponha uma lei, dizendo (Sl 118, 33): Impõe-me por lei,
Senhor, o caminho das tuas justificações.

SOLUÇÃO. — Além da lei natural e da humana, é necessário, para a direção da vida humana, haver uma
lei divina. E isto por quatro razões. — Primeiro, porque pela lei o homem dirige os seus atos em ordem
ao fim último. Ora, se ele se ordenasse só para um fim que lhe não excedesse a capacidade das
faculdades naturais, não teria necessidade de nenhuma regra racional, superior à lei natural e à humana
desta derivada. Mas como o homem se ordena ao fim da beatitude eterna, excedente à capacidade
natural das suas faculdades, como já estabelecemos (q. 5, a. 5), é necessário que, além da lei natural e
da humana, seja também dirigido ao seu fim por uma lei imposta por Deus. — Segundo, da incerteza do
juízo humano, sobretudo no atinente às coisas contingentes e particulares, originam-se juízos diversos
sobre atos humanos diversos;donde, por sua vez, procedem leis diversas e contrárias. Portanto, para
poder o homem, sem nenhuma dúvida, saber o que deve fazer e o que deve evitar, é necessário dirija os
seus atos próprios pela lei estabelecida por Deus, que sabe não poder errar. — Terceiro, porque o
homem só pode legislar sobre o que pode julgar. Ora, não pode julgar dos atos internos, que são
ocultos, mas só dos externos, que aparecem. E contudo, a perfeição da virtude exige que ele proceda
retamente em relação a uns e a outros. Portanto, a lei humana, não podendo coibir e ordenar
suficientemente os atos internos, é necessário que, para tal, sobrevenha a lei divina. — Quarto, porque,
como diz Agostinho, a lei humana não pode punir ou proibir todas as malfeitorias. Pois, se quisesse
eliminar todos os males, haveria conseqüentemente de impedir muitos bens, impedindo assim a
utilidade do bem comum, necessário ao comércio humano. Por onde, afim de nenhum mal ficar sem ser
proibido e permanecer impune, é necessário sobrevir a lei divina, que proíbe todos os pecados. —
E essas quatro causas estão resumidas no salmo, que diz o seguinte (Sl 118, 8): A lei do Senhor que é
imaculada, i. é, que não permite a torpeza de nenhum pecado; converte as almas, porque regula, não só
os atos externos, mas também os internos; o testemunho do Senhor é fiel, por causa da certeza da
verdade e da retitude; e dá sabedoria aos pequeninos, ordenando o homem a um fim sobrenatural e
divino.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Pela lei natural, o homem participa da lei eterna,
proporcionalmente à capacidade da sua natureza. Mas importa que, de modo mais alto, seja levado ao
fim último e sobrenatural. E por isso se lhe acrescenta a lei dada por Deus, pela qual a lei eterna é
participada de modo mais elevado.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O conselho é uma perquisição e, portanto, há de proceder de certos


princípios. Não basta porém que proceda de princípios naturalmente ínsitos, que são os da lei natural,
pelas razões já expostas. Mas é necessário que outros se lhes acrescentem e tais são os preceitos da lei
divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As criaturas irracionais não se ordenam a um fim mais elevado do que o
proporcionado à capacidade natural delas. Logo, a comparação não colhe.

Art. 5 — Se há só uma lei divina.


(Infra, q. 107, a. I; Ad Galat., cap. I, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que a lei divina é uma só.

1. — Pois, no mesmo reino, só uma é a lei do rei. Ora, todo o gênero humano está para Deus como para
um rei, conforme àquilo da Escritura (Sl 46, 8): Deus é o rei de toda a terra. Logo, há uma só lei divina.

2. Demais. — Toda lei se ordena ao fim que o legislador visa relativamente aqueles para os quais legisla.
Ora, em relação aos homens, Deus visa uma mesma coisa, segundo a Escritura (1 Tm 2, 4): Quer que
todos os homens se salvem, e que cheguem a ter o conhecimento da verdade. Logo, só uma é a lei
divina.

3. Demais. — A lei divina parece estar mais próxima da lei eterna, que é una, do que a lei natural, por ser
mais elevada a revelação dá graça do que o conhecimento da natureza. Ora, a lei natural é a mesma
para todos os homens. Logo, Com maior razão, a lei divina.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 7, 12): Mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça
também mudança da lei. Ora, como no mesmo lugar se diz, duplo é o sacerdócio: o levítico e o de Cristo.
Logo, também dupla há de ser a lei divina; a antiga e a nova.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos na Primeira Parte (q. 30, a. 3), a distinção é a causa do número. Ora, de
dois modos podem as coisas se distinguir. — De um, quando absoluta e especificamente diversas, como
o cavalo e o boi. — De outro, como o perfeito se distingue do imperfeito, dentro da mesma espécie;
assim, a criança, do homem. Ora, é deste modo que a lei divina se distingue em lei antiga e nova. Por
onde, o Apóstolo (Gl 3, 24-25) compara o estado da lei antiga ao da criança dirigida por um mestre; e o
da lei nova, ao do homem perfeito, que já não precisa de mestre.

Ora, a perfeição e imperfeição da lei se fundam nas suas três funções, já antes expostas. — Assim,
primeiramente, pertence à lei ordenar para o bem comum, como para o fim, segundo já dissemos (q.
90, a. 2). E esse bem pode ser duplo. Um é o bem sensível e terreno, ao qual ordenava diretamente a lei
antiga. Por isso, logo no princípio dela, o povo é convidado ao reino terrestre dos cananeus. O outro é o
bem inteligível e celeste, ao qual ordena a lei nova. Por isso, Cristo, logo no princípio da sua pregação,
convida para o reino dos céus, dizendo (Mt 4, 17): Fazei penitência, porque está próximo o reino dos
céus. Donde o dizer Agostinho, que as promessas das coisas temporárias estão contidas no Antigo
Testamento, que, por isso, se chama antigo; ao passo que a promessa da vida eterna pertence ao Novo
Testamento. Em segundo lugar, à lei pertence dirigir os atos humanos conforme à ordem da justiça. No
que também a lei nova extravaga da antiga, ordenando os atos internos da alma, conforme àquilo da
Escritura (Mt 5, 20): Se a vossa justiça não for maior e mais perfeita do que a dos Escribas e dos Fariseus,
não entrareis no reino dos céus. E, por isso se diz, que a lei antiga coíbe as mãos, a nova, a alma. — Em
terceiro lugar, à lei pertence levar os homens à observância dos mandamentos. E isto, que a lei antiga
fazia, pelo temor das penas, a nova o faz pelo amor, infundido em nossos corações pela graça de Cristo,
conferida na lei nova, e figurada apenas, na antiga. Donde o dizer Agostinho: O temor e o amor, eis a
breve diferença entre a Lei e o Evangelho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Na casa o pai de família propõe uma ordem aos filhos e
outra, aos adultos. Assim também o mesmo rei, Deus, dá, no seu reino, uma lei aos homens, que ainda
vivem na imperfeição, e outra, mais perfeita, aos que pela lei anterior chegaram à capacidade maior das
coisas divinas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A salvação dos homens não podia vir senão de Cristo, conforme à Escritura
(At 4, 12): Nenhum outro nome foi dado aos homens pelo qual nós devamos ser salvos. Por onde, a lei,
que perfeitamente conduz todos à salvação, não podia ser dada senão depois do advento de Cristo. Mas
antes dela, era necessário fosse dada ao povo, do qual Cristo havia de nascer, uma lei preparatória para
recebê-lo, em que já se achassem contidos certos rudimentos da justiça salvífica.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei natural dirige o homem por certos preceitos gerais, em que convêm
tanto os perfeitos como os imperfeitos. Por isso é a mesma para todos. Ao passo que a lei divina o dirige
mesmo em certas particularidades, em que os perfeitos não se comportam do mesmo modo que os
imperfeitos. Por isso, a lei tinha que ser dupla, como ficou dito.

Art. 6 — Se há uma lei constituída pelo estímulo da sensualidade.


(Infra. q. 93. a. 3; Ad Rom., cap. VII. lect. IV).

O sexto discute-se assim. — Parece que não há uma lei constituída pelo estímulo da sensualidade.

1. — Pois, como diz Isidoro, a lei consiste na razão. Ora, o estímulo da sensualidade, longe de consistir
na razão, desvia dela. Logo, não tem a natureza de lei.

2. Demais. — Toda lei é obrigatória, de modo que são considerados transgressores os que não a
observam. Ora, não é transgressor quem não se submete ao estímulo da sensualidade, mas, ao
contrário, quem lhe obedece. Logo, ele não tem natureza de lei.

3. Demais. —A lei se ordena para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, o estimulo da
sensualidade não inclina para esse bem, mas antes, para o particular. Logo, não tem natureza de lei.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 7, 23): Sinto nos meus membros outra lei, que repugna à lei do
meu espírito.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 2; q. 90, a. 1 ad 1), a lei está essencialmente no sujeito que regula e
mede; e, participativamente, no que é medido e regulado. De modo que toda inclinação ou ordenação,
existente em quem está sujeito à lei, chama-se lei participativamente, como do sobredito resulta (a. 2;
q. 90, a. 1 ad 1). Ora, de duas maneiras pode existir uma inclinação nos súbditos da lei, provinda do
legislador. Ou porque este neles causa diretamente uma inclinação e inclina, às vezes, diversos para atos
diversos; podendo-se, deste modo, dizer que uma é a lei dos soldados e outra, a dos mercadores. Ou,
indiretamente, quando o legislador, destituindo um seu súbdito de uma dignidade, falo, por
conseqüência, passar para outra ordem, ficando como que sujeito a outra lei. Assim, o soldado,
destituído da milícia, ficará sujeito à lei dos lavradores ou dos mercadores.

Assim, pois, sob Deus legislador, criaturas diversas têm inclinações naturais diversas, de modo que
aquilo que para uma é, de certo modo, lei, para outra é contrário à lei. Por exemplo, ser bravo é de
certo modo a lei do cão; mas é contra a lei da ovelha ou de outro animal de índole mansa. Ora, a lei do
homem, que lhe coube por ordenação divina, de acordo com a sua condição, é obrar de conformidade
com a razão. E tanta força tinha essa lei, no estado primitivo, que nada de preterracional ou de irra-
cional podia surpreender o homem. Mas quando ele se afastou de Deus, incorreu na pena de ser
arrastado pelo ímpeto da sensualidade. O que se dá com cada um em particular, quanto mais se afastar
da razão; que, assim, de certo modo se assemelha aos brutos, levados pelo ímpeto da sensualidade,
conforme àquilo da Escritura (Sl 48, 21):O homem, quando estava na honra, não o entendeu: foi
comparado aos brutos irracionais, e se fez semelhante a eles. Por onde, a inclinação mesma de sensuali-
dade, chamada estímulo, tem nos brutos, absolutamente, natureza de lei; do modo, porém, porque, em
relação a eles se pode falar em lei no sentido de inclinação direta. Ao contrário, relativamente ao
homem, essa inclinação não tem natureza de lei, sendo antes, um desvio da lei da razão. Mas, por ter
sido o homem, pela justiça divina, destituído da justiça original, e perdido o vigor da razão, o ímpeto
mesmo da sensualidade, que o arrasta, tem natureza de lei, mas penal e, por lei divina, inseparável do
homem, destituído da dignidade que lhe era própria.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede quanto ao estímulo da sensualidade,


em si mesmo considerado, e como inclinação para o mal. Pois, em tal sentido, não tem natureza de lei,
como já se disse, ao passo que a terá enquanto resultante da justiça da lei divina. Tal como se
disséssemos ser lei que a um nobre, por sua culpa, se permitisse ser submetido a obras servis.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto à lei como regra e medida; pois, assim, os que dela
desviam vêem a ser transgressores. Mas, nesse sentido, o estímulo da sensualidade não é uma lei mas,
sim, por uma certa participação, como já se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção colhe relativamente ao estímulo da sensualidade, quanto à sua


inclinação própria; não porém, quanto à sua origem. E contudo, considerada a inclinação da
sensualidade, tal como existe nos brutos, ela se ordena para o bem comum, i. é, para a conservação da
natureza da espécie ou do indivíduo. O que também se dá com o homem, desde que a sensualidade
esteja sujeita à razão. — Mas se chama estímulo da sensualidade na medida em que foge à ordem da
razão.
Questão 92: Dos efeitos da lei.
Em seguida devemos tratar dos efeitos da lei. E nesta questão dois artigos se discutem:

Art. 1 — Se o efeito da lei é tornar os homens bons.


(II Cont. Gent., cap. CXVI: X Ethic., Irect., Iect. XIV).

O primeiro discute-se assim. — Parece que o efeito da lei não é tornar os homens bons.

1. — Pois, os homens são bons pela virtude, que torna bom quem a tem, como diz Aristóteles. Ora, a
virtude do homem vem-lhe de Deus, que a produz em nós, sem nós, como se disse a propósito da
definição da virtude (q. 55, a. 4). Logo, não compete à lei tornar os homens bons.

2. Demais. — A lei não é útil ao homem se ele não lhe obedecer. Ora, já é por bondade que o homem
obedece à lei. Logo, antes da lei, é-lhe necessária a bondade. Logo, não é ela que torna os homens bons.

3. Demais. — A lei se ordena para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, certos, que pro-
cedem retamente no atinente ao bem comum, não o fazem em relação ao próprio. Logo, não pertence à
lei tornar os homens bons.

4. Demais. — Certas leis são tirânicas, como diz o Filósofo. Ora, o tirano não busca o bem dos súbditos,
mas a utilidade própria. Logo, não pertence à lei tornar os homens bons.

Mas, em contrário, diz o Filósofo: A vontade de todo legislador é tornar os cidadãos bons.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1 ad 2; a. 3, a. 4), a lei não é senão o ditame da razão do chefe,
que governa os súbditos. Ora, a virtude de todo súbdito está em submeter-se bem àquele por quem é
governado; assim como a virtude do irascível e do concupiscível consiste em serem bem obedientes à
razão. E assim, a virtude de qualquer súbdito está em sujeitar-se bem ao que governa, como diz o
Filósofo. Pois, toda lei é estabelecida para ser obedecida pelos súbditos. Por onde é manifesto, que é
próprio da lei levar os súbditos a serem virtuosos. Ora, como é a virtude que torna bom quem a tem,
segue-se que é efeito próprio da lei tornar bons, absoluta ou relativamente, aqueles para os quais foi
dada. Assim, se a intenção do legislador visar o verdadeiro bem, que é o bem comum; regulado pela
justiça divina, resulta que, pela lei, os homens se tornarão absolutamente bons. Se for, porém, a
intenção do legislador o bem não absoluto, mas o útil, o deleitável ou o que repugna à justiça divina,
então a lei tornará os homens bons, não absoluta, mas relativamente, em ordem a um determinado
regime. Por onde, existe bem, ainda nos que são, em si mesmos, maus; assim, chama-se bom ladrão o
que age bem em vista dos seus fins.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Dupla é a virtude, como do sobredito se colhe (q. 63, a.
2): a adquirida e a infusa. Ora, para uma e outra contribui o agir costumeiro, mas diversamente; pois,
causa a virtude adquirida, dispõe para a infusa, e conserva e promove a já adquirida. E como a lei é dada
para dirigir os atos humanos, na medida em que eles levam para a virtude, nessa mesma a lei torna bons
os homens. Donde o dizer o Filósofo: Os legisladores tornam os cidadãos bons, imprimindo-lhes bons
hábitos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Nem sempre obedecemos à lei pela bondade de uma virtude perfeita; mas
umas vezes, pelo temor da pena, outras, pelo só ditame da razão, que é um princípio de virtude, como
já estabelecemos (q. 63, a. 1).
RESPOSTA À TERCEIRA. — A bondade da parte é considerada relativamente à do todo; por isso, diz
Agostinho, é má toda parte que não se coaduna com o todo. Sendo pois cada homem parte da cidade, é
impossível seja bom sem ser bem proporcionado ao bem comum; nem o todo pode ter boa consistência
senão pelas partes, que lhe sejam proporcionadas. Por onde, é impossível manter-se o bem comum da
cidade sem os cidadãos serem virtuosos, ao menos aqueles a quem cabe governar. Pois basta, para o
bem da comunidade, que os cidadãos sejam virtuosos na medida em que obedecem às ordens do chefe.
E por isso o Filósofo diz: A virtude do chefe e a do bom cidadão é a mesma; mas não é a mesma que a do
bom cidadão a virtude de um cidadão qualquer.

RESPOSTA À QUARTA. — A lei tirânica, não estando de acordo com a razão, não é, absolutamente
falando, lei; antes, é uma perversão dela. E contudo, na medida em que participa da essência da lei,
tende a tornar bons os cidadãos. Ora, da essência da lei não participa, senão na medida em que é um
ditame de quem governa os seus súbditos e tende a que eles sejam obedientes à lei. O que é torná-los
bons, não absolutamente, mas em relação ao regime.

Art. 2 — Se os atos da lei estão convenientemente assinalados na


expressão: são atos da lei ordenar, proibir, permitir e punir.
O segundo discute-se assim. — Parece que os atos da lei não estão convenientemente assinalados na
expressão: são atos da lei ordenar, proibir, permitir e punir.

1. — Pois, toda lei é um preceito geral, como diz o jurisconsulto. Ora, ordenar é a mesma coisa que
preceituar. Logo, os três outros membros da enumeração tornam-se supérfluos.

2. Demais. — O efeito da lei é levar os súbditos para o bem, como já se disse (a. 1). Ora, o conselho visa
um bem melhor que o do preceito. Logo, à lei pertence, antes aconselhar que mandar.

3. Demais. — Assim como o homem é incitado ao bem pelas penas, também o é pelos prêmios. Logo, se
punir é considerado efeito da lei, também o premiar deve sê-lo.

4. Demais. — A intenção do legislador é tornar bons os homens, como já se disse (a. 1). Ora, quem só
por medo das penas obedece à lei não é bom. Pois embora pelo temor servil, que é o temor das penas,
alguém possa fazer o bem, não o faz contudo bem, como diz Agostinho. Logo, parece não ser próprio da
lei punir.

Mas, em contrário, diz Isidoro: Toda lei ou permite alguma coisa, p. ex., que o homem forte busque o
prêmio; ou proíbe, p. ex., que a ninguém é lícito desposar uma virgem consagrada; ou pune, p. ex., com
pena capital quem cometeu uma morte.

SOLUÇÃO. — Como um enunciado é um ditame da razão expresso pela enunciação, assim a lei o é,
expresso a modo de preceito. Ora, é próprio à razão passar de uma proposição para outra. Por onde,
assim como nas ciências demonstrativas a razão leva a assentirmos na conclusão, em virtude de certos
princípios, assim também leva a assentirmos no preceito de lei, por alguns princípios.

Ora, as ordens da lei regulam atos humanos, que ela dirige, como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2; q. 91, a.
4), e que são de diferentes espécies. Pois, segundo já ficou dito (q. 18, a. 8), certos atos são
genericamente bons, e são os das virtudes. E em relação a estes se diz que é ato da lei preceituar ou
ordenar, porque a lei preceitua todos os atos das virtudes, como diz Aristóteles. — Outros atos são
genericamente maus, como os atos viciosos. E estes a lei os proíbe. — Outros ainda são genericamente
indiferentes; e estes ela os permite. Também podem considerar-se indiferentes todos os atos que são
pouco bons ou pouco maus. — Enfim, o meio pelo qual a lei se faz obedecer é o temor da pena. E por
aqui se considera como efeito dela punir.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como cessar o mal é de certo modo bem; assim, a
proibição tem de certo modo natureza de preceito. E a esta luz, tomando em sentido lato a palavra
preceito, a lei é universalmente chamada preceito.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Aconselhar não é ato próprio da lei, e pode pertencer mesmo a um
particular, que não pode legislar. Por isso, o próprio Apóstolo, ao dar um conselho, disse: Eu é que digo,
não o Senhor. Por isso, não é considerado como efeito da lei.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Também o premiar pode pertencer a qualquer pessoa, ao passo que punir
não cabe senão ao ministro da lei, por cuja autoridade a pena é aplicada. Por isso, premiar não é
considerado como ato da lei, mas só punir.

RESPOSTA À QUARTA. — Começando alguém a acostumar-se a evitar o mal e a fazer o bem, pelo temor
da pena, é levado às vezes a praticá-lo por vontade própria e com prazer. E assim, a lei, mesmo punindo,
leva os homens a se tornarem bons.
Questão 93: Da lei eterna.
Em seguida devemos tratar das leis, em particular. E primeiro, da lei eterna. Segundo, da lei natural.
Terceiro, da lei humana. Quarto, da lei antiga. Quinto, da lei nova, que é a lei do Evangelho. E quanto à
sexta lei, que é a do estímulo, basta o que já foi dito quando tratamos do pecado original.

Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei eterna é a razão suma existente em Deus.


(Supra, q. 91, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que não é a lei eterna a razão suma existente em Deus.

1. — Pois, a lei eterna é uma só. Ora, as razões das coisas na mente divina são várias; assim, Agostinho
diz, que Deus fez todas as coisas com razões próprias. Logo, parece que a lei eterna não é o mesmo que
a razão existente na mente divina.

2. Demais. — É da natureza da lei ser promulgada verbalmente, como já se disse (q. 90, a. 4). Ora, em
Deus o Verbo é considerado pessoalmente, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 34, a. 1); ao passo
que a razão o é essencialmente. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão divina.

3. Demais. — Agostinho diz: A lei, que é chamada verdade, aparece como estando acima da nossa
mente. Ora, a lei existente como superior à nossa mente é a lei eterna. Logo, a verdade é a lei eterna.
Mas a verdade e a razão não têm a mesma essência. Logo, a lei eterna não é o mesmo que a razão
suma.

Mas, em contrário, Agostinho diz: A lei eterna é a razão suma, a que sempre devemos obedecer.

SOLUÇÃO. — Assim como em todo artífice preexiste à razão do que ele faz, com a sua arte, assim
também, em todo governante é necessário preexista à razão da ordem daquilo que devem fazer os que
lhe estão sujeitos ao governo. E como a razão das coisas, que devem ser feitas pela arte, chama-se arte
ou exemplar das coisas artificiadas, assim a razão de quem governa os atos dos súbditos assume a
natureza de lei, salvo tudo quanto já foi dito a respeito da essência da lei (q. 90). Ora, Deus, com sua
sabedoria, é o criador da universidade das coisas, para as quais está como o artífice, para as coisas arti-
ficiadas, conforme na Primeira Parte foi estabelecido (q. 14, a. 8). Pois, também é o governador de todos
os atos e moções de cada criatura, segundo também se estabeleceu na Primeira Parte (q. 103, a. 5). Por
onde, assim como a razão da sabedoria divina tem, como criadora de todas as coisas, natureza de arte,
exemplar ou idéia; assim a razão dessa mesma sabedoria, que move todas as coisas para o fim devido,
tem natureza de lei. E sendo assim, a lei eterna não é mais que a razão da sabedoria divina, enquanto
diretiva de todos os atos e moções.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Agostinho se refere, no passo aduzido, às razões ideais,
que respeitam às naturezas próprias de cada coisa. Por isso há nelas uma certa distinção e pluralidade,
conforme as diversas relações com as coisas, como se estabeleceu na Primeira Parte (q. 15, a. 2). Porém
a lei é considerada como diretiva dos atos em relação ao bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora,
coisas entre si diversas consideram-se como unificadas, quando se ordenam para algo de comum.
Portanto, a lei eterna é uma, ela que é a razão da referida ordem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Duas considerações podem ser feitas a propósito de qualquer palavra: sobre
a palavra mesma, e o que ela exprime. Ora, a palavra vocal é proferida pela boca humana; e por ela se
exprimem as coisas significadas pelas palavras humanas. E a mesma é a essência do verbo mental
humano, que não é senão um conceito da mente, pela qual o homem exprime mentalmente aquilo que
pensa. Por onde, em Deus, o Verbo, que é o conceito do intelecto paterno, significa uma pessoa; mas
tudo o que está na ciência do Pai, seja o que é essencial, ou pessoal, ou ainda as obras de Deus,
exprime-se por esse Verbo, como está claro em Agostinho. E entre outras expressões, por esse Verbo
também se exprime a lei eterna. Mas daqui não se segue que a lei eterna seja considerada como algo de
pessoal, em Deus. Pois ela é apropriada ao Filho, por causa da conveniência que a razão tem com o
Verbo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão do intelecto divino tem com as coisas uma relação diferente da que
com elas tem a do intelecto humano. Pois, o intelecto humano é medido pelas coisas, de modo que um
conceito humano não é verdadeiro em si mesmo, senão pela sua conformidade com as coisas. Porque
segundo uma coisa é ou não, a nossa opinião é verdadeira ou falsa. Ao contrário, o intelecto divino é a
medida das coisas; porque cada uma delas é verdadeira na medida em que imita o intelecto divino,
como na Primeira Parte se disse (q. 16, a. 1). E portanto, o intelecto divino é verdadeiro em si mesmo.
Por onde, a sua razão é a verdade mesma.

Art. 2 — Se a lei eterna é conhecida de todos.


(Supra, q. 19, a. 4, ad 3; In Iob, cap. XI, lect. I).

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei eterna não é conhecida de todos.

1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Co 2, 11), as coisas de Deus ninguém as conhece senão o Espírito de
Deus. Ora, a lei eterna é uma razão existente na mente divina. Logo, é desconhecida de todos, menos de
Deus.

2. Demais. — Como diz Agostinho, pela lei eterna é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas. Ora,
nem todos sabem como todas as coisas são ordenadissímas. Logo, nem todos conhecem a lei eterna.

3. Demais. — Agostinho diz: A lei eterna é a de que os homens não podem julgar. Ora, no dizer de
Aristóteles, cada qual julga bem aquilo que conhece. Logo, a lei eterna de nós não é conhecida.

Mas, em contrário, diz Agostinho: O conhecimento da lei eterna está impresso em nós.

SOLUÇÃO. — De dois modos pode um objeto ser conhecido: em si mesmo; e no seu efeito, onde se
encontra alguma semelhança dele. Assim, quem não vê o sol na sua substância conhece-o pela
irradiação. Por onde, deve-se dizer que a lei eterna ninguém pode conhecê-la como em si mesma é,
senão só os bem-aventurados, que vêem a Deus em essência. Mas toda criatura racional a conhece por
alguma maior ou menor irradiação dela. Pois, todo conhecimento da verdade é uma certa irradiação e
participação da lei eterna, que é a verdade imutável, como diz Agostinho. Ora, a verdade todos de certo
modo a conhecem, pelo menos quanto aos princípios comuns da lei natural. Quanto aos outros, uns
participam mais e outros, menos do conhecimento da verdade; e assim também conhecem mais ou
menos a lei eterna.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As coisas de Deus não podem, em si mesmas, ser
conhecidas de nós, mas se manifestam pelos seus efeitos, conforme àquilo da Escritura (Rm 1, 20): As
coisas invisíveis de Deus se vêem, consideradas pelas obras que foram feitas.
RESPOSTA À SEGUNDA. — Embora cada um conheça a lei eterna segundo a sua capacidade, do modo
por que acabamos de dizer, ninguém contudo pode compreendê-la, porque ela não pode manifestar-se
totalmente pelos seus efeitos. Por onde, não é necessário, que quem conhece a lei eterna, da maneira
predita, conheça toda a ordem das coisas, pela qual todas elas são ordenadíssimas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O julgar das coisas pode ser entendido em duplo sentido. — De um modo,
como a faculdade cognitiva julga do seu objeto próprio, conforme àquilo da Escritura (Jó 12,
11): Porventura o ouvido não julga das palavras e o paladar de quem come não julga do sabor? E
conforme a este modo de julgar, o Filósofo diz que cada qual julga bem aquilo que conhece, i. é,
julgando se o que lhe é proposto é verdade. — De outro modo, como o superior julga do inferior, por
um juízo prático, i. é, se deve ser de tal maneira e não de tal outra. E assim, ninguém pode julgar da lei
eterna.

Art. 3 — Se toda lei deriva da lei eterna.


O terceiro discute-se assim. — Parece que nem toda lei deriva da lei eterna.

1. — Pois, há uma lei do estímulo, como já se disse (q. 91, a. 6). Ora, não deriva da lei divina, que é
eterna, porque a ela pertence à prudência da carne, da qual diz o Apóstolo (Rm 8, 7), que não é sujeito
da lei eterna.

2. Demais. — Nada de iníquo pode proceder da lei eterna, pois, como já se disse (a. 2 arg. 2), pela lei
eterna é justo que todas as coisas sejam ordenadíssimas. Ora, certas leis são iníquas, conforme aquilo da
Escritura (Is 10, 1): Ai dos que estabelecem leis iníquas. Logo, nem toda lei procede da lei eterna.

3. Demais. — Agostinho diz: A lei escrita para governar o povo permite, retamente, muitas coisas que
são castigadas pela Providência Divina. Ora, a razão da Providência Divina é a lei eterna, como já se disse
(q. 93, a. 1). Logo, nem mesmo toda lei reta procede da lei eterna.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Pr 8, 15): Por mim reinam os reis, e por mim decretam os legisladores
o que é justo. Ora, a razão da divina sabedoria é a lei eterna, como já se disse (a. 1). Logo, todas as leis
procedem da eterna.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2), a lei implica uma certa razão diretiva dos atos para um
fim. Ora, em todos os motores ordenados, é necessário que a força do motor segundo derive da força
do primeiro; pois aquele não move senão enquanto movido por este. E vemos o mesmo se passar com
todos os governantes: a razão do governo deriva do primeiro governante para os segundos; assim como
a razão do que deve, na cidade, ser feito, deriva do rei, por meio de um preceito, para os
administradores subalternos. E também nas artes, a razão dos atos artísticos deriva do mestre de obras
para os artífices inferiores, que obram manualmente. Por onde, sendo a lei eterna a razão do governo
no supremo governador, é necessário que todas as razões do governo, existentes nos governantes
inferiores, derivem dela. Ora, todas essas razões dos governantes inferiores são leis outras que não a lei
eterna. Portanto, todas as leis, na medida em que participam da razão reta, nessa mesma derivam da lei
eterna. E por isso Agostinho diz: Nada há de justo e legítimo, nas leis temporais, que os homens não
tivessem para si ido buscar na lei eterna.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O estímulo tem no homem natureza da lei, enquanto
pena resultante da divina justiça, e sendo assim é manifesto que deriva da lei eterna. Mas enquanto
inclina para o pecado, contraria a lei de Deus e não tem natureza de lei, como do sobredito resulta (q.
91, a. 6).

RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei humana tem natureza de lei, na medida em que é conforme a razão
reta; e assim é manifesto, que deriva da lei eterna. Mas, na medida em que se afasta da razão, é
considerada lei iníqua; e então, não tem natureza de lei, mas antes, de violência. E contudo, a própria lei
iníqua, na medida em que guarda uma semelhança com a lei, pela ordem do poder de quem a fez, nessa
mesma medida também deriva da lei eterna; pois, não há potestade que não venha de Deus, no dizer do
Apóstolo (Rm 13, 1).

RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz-se que a lei humana permite certas coisas, não pelas aprovar, mas pelas
não poder dirigir. Pois, muitas coisas, das dirigidas pela lei divina, não o podem ser pela lei humana,
porque o domínio da lei superior é mais vasto que o da inferior. Por onde, o mesmo não intrometer-se a
lei humana naquilo que não pode dirigir, provém da ordem da lei eterna. O contrário se daria se
aprovasse o que a lei eterna reprova. Por isso daqui não se conclui, que não derive a lei humana da
eterna, mas sim, que não pode ter perfeita conformidade com ela.

Art. 4 — Se o necessário e o eterno estão sujeitos à lei eterna.


O quarto discute-se assim. — Parece que o necessário e o eterno estão sujeitos à lei eterna.

1. — Pois, tudo o que é racional está sujeito à razão. Ora, a vontade divina, sendo justa, é racional. Logo,
está sujeita à razão. Ora, a lei eterna é a razão divina. Portanto, a vontade de Deus está sujeita à lei
eterna. E como a vontade de Deus é algo de eterno, resulta que também o eterno e o necessário estão
sujeitos à lei eterna.

2. Demais. — Tudo o que está sujeito ao rei, está sujeito à lei do mesmo. Ora, o Filho, no dizer da
Escritura (1 Co 15, 28-29), quando lhe tiver entregado o reino, estará sujeito a Deus e ao Padre. Logo, o
Filho, que é eterno, está sujeito à lei eterna.

3. Demais. — A lei eterna é a razão da Divina Providência. Ora, muitas coisas necessárias estão sujeitas a
ela, como as substâncias incorpóreas e os corpos celestes permanentes. Logo, o necessário também
está sujeito à lei eterna.

Mas, em contrário. — O necessário, sendo impossível sofrer mudança, não precisa de coibição. Ora, a lei
é imposta ao homem para coibi-lo do mal, como do sobredito resulta (q. 92, a. 2). Logo, o necessário
não está sujeito à lei.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei eterna é a razão do governo divino. Por onde, tudo o que
está sujeito ao governo divino o está também à lei eterna; e o que não está sujeito a esse governo, nem
à lei eterna o está. E esta distinção pode se fundar nas coisas que nos circundam. Assim, ao governo
humano está sujeito o que pode ser feito pelos homens; o que porém pertence à natureza humana,
como ter alma, mãos ou pés, não depende do governo humano. Por onde, à lei eterna estão sujeitas
todas as coisas criadas por Deus, quer contingentes, quer necessárias; não está sujeito porém a essa lei
o que pertence à natureza ou à essência divina, que constitui realmente a lei eterna mesma.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A vontade de Deus podemos considerá-la de dois


modos. — De um modo, em si mesma. E então, sendo a vontade de Deus a essência mesma dele, não
está sujeita ao governo divino, nem à lei eterna, com a qual se identifica. — De outro modo podemos
considerá-la em relação àquilo que Deus quer das criaturas, as quais estão sujeitas à lei eterna, por
terem a sua razão na sabedoria divina. E por isso dizemos, que a vontade de Deus é racional. Pois, do
contrário, em si mesma, deveria ser considerada, antes como a própria razão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O Filho não foi feito por Deus, mas é dele naturalmente gerado. Por isso, não
está sujeito à Providência Divina, nem à lei eterna; antes, por uma certa apropriação, ele mesmo é a lei
eterna, como claramente o diz Agostinho. E dizemos que está sujeito ao Pai, em virtude da natureza
humana, pela qual também dizemos que o Pai é maior que ele.

À TERCEIRA OBJEÇÃO CONCEDEMOS. — Por proceder do necessário criado.

RESPOSTA À QUARTA. — Como diz o Filósofo, certas coisas necessárias têm, a causa da sua
necessidade; e assim, a mesma impossibilidade de existirem de outro modo provém-lhes de outro ser; e
isso mesmo é uma certa e eficacíssima coibição. Pois, tudo o que é coibido, em geral, dizemos que o é,
na medida em que não pode agir diferentemente da disposição que tem.

Art. 5 — Se os contingentes naturais estão sujeitos à lei eterna.


O quinto discute-se assim. — Parece que os contingentes naturais não estão sujeitos à lei eterna.

1. — Pois, a promulgação é da essência da lei, como já se disse (q. 90, a. 4). Ora, a promulgação não
pode ser feita senão para criaturas racionais, a que alguma coisa pode ser anunciada. Logo, só as
criaturas racionais estão sujeitas à lei eterna, e portanto não o estão os contingentes naturais.

2. Demais. — O que obedece à razão dela participa, de certo modo, como diz Aristóteles. Ora, a lei
eterna é a razão suma, como já se disse (a. 1). Logo, como os contingentes naturais não participam de
nenhum modo da razão, mas ao contrário, são irracionais, parece que não estão sujeitos à lei eterna.

3. Demais. — A lei eterna é eficacíssima. Ora os contingentes naturais são susceptíveis de deficiências.
Logo, não estão sujeitos à lei eterna.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Pr 8, 29): Quando circunscrevia ao mar o seu termo, e punha lei às
águas para que não passassem os seus limites.

SOLUÇÃO. — O que se diz da lei humana não é o mesmo que o dito da lei eterna, que é a lei de Deus.
Pois, a lei humana se estende somente às criaturas racionais sujeitas ao homem. E a razão é que a lei é
diretiva dos atos próprios aos súbditos de um governo; por isso, ninguém, propriamente falando, impõe
lei aos próprios atos. Ora, tudo o que o homem faz, usando dos seres irracionais, que lhe estão sujeitos,
ele o faz por um ato próprio, que move tais seres. Pois, essas criaturas irracionais não agem por si
mesmas, mas são levadas por outras, como já se disse (q. 1, a. 2). Por onde, o homem não pode impor
lei aos seres irracionais, embora lhe estejam sujeitos. Mas o pode para os seres racionais, que lhe estão
sujeitos, imprimindo-lhes no espírito, por um preceito ou um anúncio qualquer, uma certa regra, que é
o princípio do agir.

Ora, assim como o homem, por um enunciado, imprime um princípio interior aos atos de quem lhe está
sujeito, assim também Deus imprime a toda a natureza os princípios dos atos próprios dela. E assim
sendo, dizemos que Deus põe preceito para toda a natureza, conforme a Escritura (Sl 148, 6): Preceito
pôs e não se quebrantará. E por esta mesma razão, todos os movimentos e ações de toda a natureza
estão sujeitos à lei eterna. Por onde, é de outro modo que as criaturas irracionais estão sujeitas à lei
eterna: enquanto movidas pela Divina Providência e não, pela inteligência do preceito divino, como as
criaturas racionais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A impressão ativa de um princípio intrínseco está para as
coisas naturais, assim como a promulgação da lei está para os homens. Porque a promulgação da lei
imprime nos homens um princípio diretivo dos seus atos, como já se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As criaturas irracionais não participam da razão humana, nem lhe obedecem;
participam porém, a modo de obediência, da razão divina. Pois, o poder da razão divina tem maior
extensão que o da razão humana. E assim como os membros do corpo humano movem-se pelo império
da razão, mas dela não participam, porque não têm nenhuma apreensão ordenada para a razão, assim
também as criaturas irracionais são movidas por Deus, sem por isso virem a ser racionais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As deficiências ocorrentes nos seres naturais, embora estejam fora da ordem
das causas particulares, não escapam contudo, à das causas universais. E principalmente não escapam à
ordem da causa primeira, que é Deus, a cuja Providência nada pode fugir, como dissemos na Primeira
Parte (q. 22, a. 2). E sendo a lei eterna a razão da Divina Providência, como já dissemos (a. 1), as
deficiências dos seres naturais estão sujeitas à lei eterna.

Art. 6 — Se todas as coisas humanas estão sujeitas à lei eterna.


O sexto discute-se assim. — Parece que nem todas as coisas humanas estão sujeitas à lei eterna.

1. — Pois, diz o Apóstolo (Gl 5, 18): Se vós sois guiados pelo espírito, não estais, debaixo da lei. Ora, os
homens justos, filhos de Deus por adoção, são levados pelo espírito de Deus, conforme àquilo da
Escritura (Rm 8, 14):Os que são levados pelo espírito de Deus, estes são filhos de Deus. Logo, nem todos
os homens estão sujeitos à lei eterna.

2. Demais. — O Apóstolo diz (Rm 8, 7): A sabedoria da carne é inimiga de Deus, pois não é sujeita à lei
de Deus. Ora, há muitos homens em quem domina a sabedoria da carne. Logo, à lei eterna, que é a lei
de Deus, não estão sujeitos todos os homens.

3. Demais. — Agostinho diz: Pela lei eterna é que os maus merecem a miséria e os bons, a vida feliz. Ora,
os homens já bem-aventurados ou condenados não estão mais em estado de merecer. Logo, não estão
sujeitos à lei eterna.

Mas, em contrário, Agostinho: De nenhum modo, qualquer ser pode fugir às leis do sumo Criador e
Ordenador, que estabelece a paz do universo.

SOLUÇÃO. — Duplo é o modo por que um ser está sujeito à lei eterna, como do sobredito resulta (a. 5).
De um modo, enquanto pelo conhecimento participa da lei eterna; de outro, pela ação e pela
passividade, participando dela como de princípio motivo interno. Ora, é deste segundo modo que à lei
eterna estão sujeitas as criaturas irracionais, como já dissemos (a. 5). Mas a natureza racional tendo,
além do que lhe é comum com todas as criaturas, algo de próprio, como racional que é, está sujeita à lei
eterna de um e de outro modo. Pois, de um lado, tem de certa maneira a noção da lei eterna, segundo
já dissemos (a. 2); e de outro, em toda criatura racional existe uma inclinação natural para o que está de
acordo com a lei eterna, pois, é-nos natural possuir as virtudes, como diz Aristóteles.

Ambos esses modos, porém, são nos maus, imperfeitos, e de certa maneira, corruptos. Pois, além de
terem a inclinação natural para a virtude depravada pelos hábitos viciosos, o próprio conhecimento
natural do bem lhes está entenebrecido pelas paixões e pelos hábitos pecaminosos. Ao contrário, nos
bons um e outro modo existe da maneira mais perfeita, porque ao conhecimento natural do bem se lhes
acrescenta o da fé e da sapiência; e à inclinação natural para o bem, o motivo interior da graça e da
virtude.

Por onde, os bons estão perfeitamente sujeitos à lei eterna, por agirem sempre de acordo com ela. Os
maus, por seu lado também lhe estão sujeitos, embora imperfeitamente, pelas suas ações, pela
conhecerem imperfeitamente, e deste mesmo modo se inclinarem ao bem. Mas o que lhes falta na ação
é-lhes suprido pela paixão, pois, na medida em que deixaram de fazer o que exigia a lei eterna, nessa
mesma hão de sofrer o que ela deles demanda. Donde o dizer Agostinho: Penso que os justos agem
sujeitos à lei eterna. E, noutra obra: Deus, por justa comiseração das almas que o abandonam, soube
ordenar com leis convenientíssimas as partes inferiores da sua criação.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O lugar citado do Apóstolo pode ser entendido em duplo
sentido. Num, aquele que está sujeito à lei está, contra a sua vontade, sujeito à obrigação que ela
impõe, como se suportasse um peso. Donde o dizer a Glosa: Está sujeito à lei quem se abstém das más
obras, pelo temor do suplício, que a lei comina, e não, pelo amor da justiça. E deste modo, os homens
espirituais não estão sujeitos à lei porque, pela caridade, que o Espírito Santo lhes infunde nos corações,
cumprem voluntariamente a exigência legal. — Noutro, o lugar citado pode ser entendido como
querendo significar, que as obras do homem levado pelo Espírito Santo são consideradas, mais, como do
Espírito Santo, que do homem mesmo. Por onde, o Espírito Santo, não estando sujeito à lei, como não o
está o Filho, segundo já foi dito (a. 4 ad 2), segue-se que as obras em questão, enquanto do Espírito
Santo, não estão sob o império da lei. O que está conforme ao dito do Apóstolo (2 Cor 3, 17): Onde há o
Espírito do Senhor aí há liberdade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A sabedoria da carne, não pode estar sujeita à lei de Deus, no concernente à
ação, pois inclina a ações contrárias à lei divina. Mas lhe está sujeita, no concernente à paixão, porque
merece sofrer uma pena segundo a lei da divina justiça. Contudo, em nenhum homem a sabedoria da
carne domina a ponto de corromper totalmente o bem da natureza. Por isso, permanece no homem a
inclinação para agir de conformidade com a lei eterna. Pois, como já ficou estabelecido (q. 85, a. 2), o
pecado não priva totalmente do bem da natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O que conserva um ser no seu fim, também o move para ele. Assim, o corpo
pesado a gravidade falo repousar no lugar inferior, e também o move para esse lugar. Por onde,
devemos dizer que, os que, pela lei eterna, merecem a beatitude ou a miséria, também são, pela mesma
lei, conservados naquela ou nesta. E assim sendo, os bem-aventurados e os condenados estão sujeitos à
lei eterna.
Questão 94: Da lei natural.
Em seguida, devemos tratar da lei natural. E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei natural é um hábito.


No que concerne ao primeiro artigo, assim se procede. Parece que a lei natural é um hábito.

1. – Pois, como diz o Filósofo, “é tríplice o que há na alma: a potência, o hábito e a afecção”. Ora, a lei
natural não é uma das potências da alma e nem uma das afecções, o que é patente se forem estas
enumeradas uma a uma. Portanto, a lei natural é um hábito.

2. Demais – Além disso, Basílio diz que a consciência ou sindérese é “a lei do nosso intelecto”, o que não
se pode inteligir senão da lei natural. Ora, a sindérese é certo hábito. Portanto, a lei natural é um hábito.

3. Demais – Além disso, a lei natural permanece sempre no homem, como adiante se tornará patente.
Ora, nem sempre a razão do homem, à qual pertence, pensa na lei natural. Logo, a lei natural não é um
ato, mas um hábito.

Em sentido contrário, há o que diz Agostinho: “um hábito é algo de que se utiliza quando é necessário”.
Ora, não é assim a lei natural, pois é inerente aos recém-nascidos e aos condenados, que por ela não
podem agir. Portanto, a lei natural não é um hábito.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que algo pode ser dito hábito de dois modos. De um modo, própria e
essencialmente e, assim, a lei natural não é hábito. Foi dito acima que a lei natural é algo constituído
pela razão, assim como a proposição é uma obra da razão. Ora, não é idêntico o que alguém faz e o por
que alguém age: assim, alguém, pelo hábito da gramática, produz uma oração correta. Dado pois ser o
hábito aquilo “por que” alguém age, não pode ocorrer que alguma lei seja hábito própria e
essencialmente. De outro modo, pode dizer-se hábito aquilo que se possui por meio de um hábito,
como se diz fé aquilo que se possui pela fé. E, desse modo, porque os preceitos da lei natural são por
vezes considerados em ato pela razão; por vezes, porém, são-lhe inerentes de modo somente habitual,
pode dizer-se do segundo modo ser a lei natural um hábito. Da mesma forma, os princípios
indemonstráveis dos atos especulativos não são o próprio hábito dos princípios, mas são os princípios
aos quais se refere o hábito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que, na passagem, o Filósofo intenciona investigar o gênero da virtude: e como é manifesto ser a virtude
certo princípio do ato, relaciona apenas os princípios dos atos humanos: as potências, os hábitos, as
afecções. Todavia, além destes, há na alma outros três a considerar: certos atos, como o querer é
naquele que quer e aquilo que se conhece no conhecedor e também as propriedades naturais da alma
são-lhe inerentes, como, por exemplo, a imortalidade e outras semelhantes.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a sindérese diz-
se lei do nosso intelecto, enquanto é o hábito que contém os princípios da lei natural, que são os
primeiros princípios das obras humanas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a razão alegada
conclui que a lei natural é algo de que se é dotado habitualmente. E isto, nós o concedemos.No que
concerne à objeção em sentido contrário, deve dizer-se que alguém pode, por vezes, não usar o que lhe
é habitualmente inerente por força de algum impedimento, como um homem não pode usar o hábito
da ciência em razão do sono. E também, a criança não pode usar o hábito de inteligência dos princípios
e mesmo da lei natural, que lhe é habitualmente inerente, por causa da deficiência própria à idade.

Art. 2— Se a lei natural contém muitos preceitos ou um só.


No que concerne ao segundo artigo, assim se procede. Parece que a lei natural não contém muitos
preceitos, mas somente um.

1. – Com efeito, a lei está contida no gênero do preceito. Se houvesse, portanto, múltiplos preceitos da
lei natural, seguir-se-ia haver também múltiplas leis naturais.

2. Demais – Além disso, a lei natural é consequente à natureza do homem. Ora, a natureza humana é
uma em seu todo, embora seja múltipla em suas partes. Assim, pois, ou é um apenas o preceito da lei da
natureza, por causa da unidade do todo, ou são muitos, por causa da multiplicidade das partes da
natureza humana. E assim será necessário que também as inclinações próprias ao concupiscível
pertençam à lei natural.

3. Demais – Além disso, a lei é algo pertinente à razão. Ora, a razão é, no homem, somente uma. Logo,
só há um preceito da lei natural.

Há, em sentido contrário, que no homem os preceitos da lei natural estão para as obras a realizar-se
como estão os primeiros princípios da demonstração. Ora, os primeiros princípios indemonstráveis são
múltiplos. Portanto, são também múltiplos os preceitos da lei da natureza.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que os preceitos da lei da natureza estão para a razão prática do mesmo
modo que os princípios primeiros da demonstração estão para a razão especulativa: uns e outros são
princípios conhecidos por si mesmos. Ora, algo diz-se por si mesmo conhecido duplamente: de um
modo, em si; de outro modo, quanto a nós. Em si, qualquer proposição diz-se por si conhecida se o seu
predicado é da razão do sujeito. Ocorre porém que, para aquele que ignora a definição do sujeito, tal
proposição não será conhecida por si mesma. Assim, esta proposição: “o homem é racional”, é por si
mesma conhecida segundo sua natureza, pois quem diz homem, diz racional. Todavia, para quem ignora
o que é o homem, esta proposição não é por si conhecida. Disto segue-se, como o diz Boécio, há
dignidades ou proposições conhecidas por si mesmas comumente a todos e são tais aquelas
proposições cujos termos são conhecidos por todos, como “qualquer todo é maior que sua parte” e “os
que são iguais a um terceiro, são iguais entre si”.

Há, porém, certas proposições conhecidas por si mesmas apenas para os sábios, os quais inteligem o
significado de seus termos: assim àquele que intelige que um anjo não é corpo, é conhecido por si
mesmo não ser circunscrito a um lugar, o que não é manifesto aos rudes, que não o captam. Ora, entre
aquelas proposições ao alcance da apreensão de todos há, porém, certa ordem. Pois o que primeiro cai
sob a apreensão é o ente, cuja intelecção está inclusa em tudo que alguém apreende. Eis por que o
primeiro princípio indemonstrável é que não se pode simultaneamente afirmar e negar, que está
fundado sobre a razão do ente e do não ente. Sobre este princípio todos os demais estão
fundamentados, como se diz na Metafísica. Ora, assim como o ente é aquilo que, primeiro, pura e
simplesmente, cai sob a apreensão, assim também o bem é aquilo que primeiro cai sob a razão prática,
a qual está ordenada para a obra, pois todo agente age em vista do fim e este é dotado da razão de
bem. Dessa forma, o primeiro princípio da razão prática está fundamentado sobre a razão de bem e é o
seguinte: “o bem é aquilo que todos apetecem”. Portanto, este é o primeiro preceito da lei: “o bem
deve ser praticado e procurado, o mal deve ser evitado”. Sobre isso estão fundamentados todos os
demais preceitos da lei da natureza, de tal modo que tudo o que deve ser praticado ou evitado, que a
razão prática naturalmente apreende ser bem humano, pertence aos preceitos da lei da natureza. Ora,
porque o bem tem razão de fim e o mal razão de seu contrário, daí segue-se que tudo aquilo para que
tem o homem uma inclinação natural, a razão naturalmente apreende como bom e, por conseguinte,
como obra a ser praticada, e o seu contrário como mal a ser evitado. Assim, segundo a ordem das
inclinações naturais, segue-se a ordem dos preceitos da lei da natureza. Pois é primeiro inerente ao
homem a inclinação para o bem segundo a natureza que tem em comum com todas as substâncias, qual
seja, toda a substância apetece a conservação de seu ser segundo a sua natureza.E segundo essa
inclinação pertence à lei natural tudo aquilo porque é conservada a vida do homem e que impede o que
lhe é contrário. Em segundo lugar é inerente ao homem a inclinação para algo mais especial, segundo a
natureza que tem em comum com os outros animais.

E segundo isso, diz-se ser da lei natural “aquilo que a natureza ensinou a todos os animais”, como a
união do macho e da fêmea, a educação dos filhos e similares. Em terceiro lugar é inerente ao homem a
inclinação para o bem segundo a natureza da razão que lhe é própria, como ter o homem uma
inclinação natural para conhecer a verdade sobre Deus e viver em sociedade. E segundo isto pertence à
lei natural aquilo que diz respeito a esta inclinação como que o homem evite a ignorância, não ofenda a
outros com os quais deve conviver, e tudo o mais que a isso diz respeito.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que todos esses preceitos da lei da natureza, na medida em que são referentes a um só primeiro
preceito, têm a razão de uma única lei natural.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que todas as
inclinações de quaisquer partes da natureza humana, como as do concupiscível e do irascível, segundo
são reguladas pela razão, pertencem à lei natural, e são reduzidas a um primeiro preceito, como se
disse. E, segundo isso, são múltiplos, em si mesmos, os preceitos da lei da natureza, os quais,
entretanto, têm em comum uma só raiz.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a razão, embora
seja em si una, é, todavia, a ordenadora de tudo o que diz respeito ao homem. E, segundo isto, está
contido sob a lei da razão tudo o que pode ser regulado pela razão.

Art 3 — Se todos os atos das virtudes são de lei da natureza.


No que concerne ao terceiro artigo assim se procede. Parece que nem todos os atos das virtudes são
da lei da natureza.

1. – Isto porque, é de razão da lei ordenar para o bem comum. Ora, certos atos das virtudes ordenam-se
para o bem particular de alguém, como é patente, sobretudo, nos atos da temperança. Portanto, nem
todos os atos das virtudes são subordinados à lei natural.

2. Demais – Além disso, todos os pecados opõem-se a alguns atos virtuosos. Se, pois, todos os atos das
virtudes são da lei da natureza, parece, por conseguinte, serem todos os pecados contra a natureza.
Ora, isto diz-se em especial de alguns pecados.

3. Demais – Além disso, todos estão de acordo quanto àquilo que é segundo a natureza. Mas nem todos
estão de acordo quanto aos atos das virtudes. Com efeito, algo é virtuoso para um, é vicioso para
outros. Portanto, nem todos os atos as virtudes pertencem à lei da natureza.
Há em contrário o que diz Damasceno: “as virtudes são naturais”. Portanto, também os atos virtuosos
são subordinados à lei da natureza.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que podemos falar duplamente dos atos virtuosos. De um modo, enquanto
são virtuosos; de outro modo, enquanto são tais atos considerados em suas espécies próprias. Se
falamos dos atos das virtudes enquanto são virtuosos, dessa forma todos os atos virtuosos pertencem à
lei da natureza. Foi dito, com efeito, que pertence à lei da natureza tudo aquilo para que o homem se
inclina segundo sua natureza. Ora, cada qual se inclina para a operação que lhe é conveniente segundo a
sua forma, como o fogo para aquecer. Donde, por ser a alma racional a forma própria do homem, a
inclinação natural é inerente a qualquer homem em vista de agir segundo a razão e isto é precisamente
o agir segundo a virtude. Donde, segundo isto, todos os atos das virtudes são da lei natural, pois a
própria razão dita a cada um precisamente isto: agir virtuosamente. Mas se falamos dos atos virtuosos
segundo eles próprios, na medida em que são considerados em suas próprias espécies, então nem todos
os atos virtuosos são da lei da natureza. Com efeito, muito se faz, segundo a virtude, para o que a
natureza não inclina, em primeiro lugar, mas que os homens vieram a descobrir mediante a pesquisa da
razão como sendo útil para o bem viver.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que a temperança concerne às concupiscências naturais do alimento, da bebida e do sexo, as quais se
ordenam ao bem comum da natureza, assim como outras matérias legais ordenam para o bem comum
moral.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que se pode dizer
natureza do homem de um lado a que é própria ao homem, e, quanto a isto, todos os pecados, por
serem contra a razão, são também contra a natureza, como é patente na argumentação de Damasceno
no “Sobre a fé ortodoxa”. De outro lado, a que é comum aos homens e aos outros animais e, quanto a
isto, alguns pecados especiais dizem-se ser contra a natureza, como, por oposição à união do macho e
da fêmea, que é natural a todos os animais, há o coito dos machos que se diz especialmente vício contra
a natureza.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que a razão alegada
procede da consideração dos atos em si mesmos. Assim sendo, por causa das diversas condições dos
homens, ocorre que alguns atos sejam virtuosos para alguns enquanto são-lhes proporcionados e
convenientes, os quais, entretanto, são viciosos para outros, por não lhes serem proporcionados.

Art. 4 — Se a lei da natureza é uma em todos.


No que concerne ao quarto artigo assim se procede. Parece que a lei da natureza não é uma em todos.

1. – Com efeito, diz-se nos Decretos que “o direito natural é o que está contido na lei e no Evangelho”.
Ora, isto não é comum para todos, pois, como se diz na carta aos Romanos, “nem todos obedecem ao
Evangelho”. Portanto, a lei natural não é a mesma para todos.

2. Demais – Além disso, “aquelas ações que são segundo a lei dizem-se justas”, como está escrito na
Ética. Mas no mesmo livro diz-se que nada é de tal modo justo em todos, sem que seja diversificado em
alguns. Portanto, também a lei natural não é a mesma em todos.

3. Demais – Além disso, à lei da natureza pertence aquilo para o que está inclinado o homem segundo
sua natureza. Mas homens diversos inclinam-se naturalmente para bens diversos: alguns para a
concupiscência das volúpias, outros, para os desejos das honrarias, outros, para outros bens. Portanto, a
lei natural não é uma em todos.

Em sentido contrário, há o que diz Isidoro: “o direito natural é comum a todas as nações”.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que, pertence à lei da natureza aquilo para que o homem naturalmente se
inclina e nisto está incluído o que é próprio ao homem, inclinar-se para agir segundo a razão. Ora,
pertence à razão proceder do comum ao próprio, como é patente na Física. Todavia, a este respeito, um
é o comportamento da razão especulativa e outro o da razão prática.Assim, porque a razão especulativa
trabalha sobretudo na esfera do necessário, ao qual é impossível ser de outro modo, descobre-se sem
nenhuma falha a verdade nas conclusões próprias, como nos princípios comuns. Mas a razão prática
trabalha com o contingente, no qual estão as operações humanas e, assim, embora no que é comum
haja alguma necessidade, quanto mais se desce ao próprio, tanto mais se encontra falha.Dessa forma,
portanto, no especulativo é a mesma a verdade para todos, tanto nos princípios quanto nas conclusões,
embora, nas conclusões, a verdade não seja conhecida por todos, mas apenas nos princípios que se
dizem concepções comuns.No que é operativo, porém, não é a mesma a verdade ou a retidão prática
em todos quanto ao que é próprio, mas somente quanto ao que é comum, e mesmo para aqueles, para
os quais é a mesma a retidão no que é próprio, não é ela igualmente conhecida por todos. Desse modo
é patente que, quanto aos princípios comuns da razão especulativa ou prática, a verdade ou retidão é
para todos a mesma e igualmente conhecida.

Quanto, porém, às conclusões próprias da razão especulativa, é a mesma a verdade para todos, mas não
é por todos igualmente conhecida: para muitos, com efeito, é verdadeiro que o triângulo tem três
ângulos iguais a dois retos, embora isto não seja por todos conhecido. Mas quanto às conclusões
próprias da razão prática, nem é a mesma para todos a verdade ou retidão, nem para aqueles para os
quais é a mesma, é igualmente conhecida. Com efeito, para todos é reto e verdadeiro agir segundo a
razão. Deste princípio segue-se uma conclusão própria: é obrigatório restituir os depósitos. E isto é
verdadeiro na maioria dos casos; mas pode ocorrer em algum caso que seja danoso e, por conseguinte,
contra a razão, que se restituam os depósitos, por exemplo, se alguém os reivindica para combater a
pátria. Esta deficiência se manifesta tanto mais, quanto mais se desce ao particular, por exemplo, se se
estipula que os depósitos devem ser restituídos com tal caução ou de tal modo: quanto mais numerosas
forem as condições particulares apostas, tanto mais serão os modos segundo os quais se poderá falhar,
de maneira que não seja reto dever-se ou não restituir.Assim, deve dizer-se que a lei da natureza,
quanto aos primeiros princípios comuns, é a mesma em todos, tanto segundo a retidão, quanto segundo
o conhecimento. Mas quanto ao que é próprio e como que as conclusões dos princípios comuns é a
mesma para todas as mais das vezes, tanto segundo a retidão, quanto segundo o conhecimento; mas
em poucos casos pode ela falhar, seja quanto à retidão, por causa de alguns impedimentos (como
também as naturezas sujeitas à geração e à corrupção falham em uns poucos casos por causa de
impedimentos), seja quanto ao conhecimento. Isto ocorre porque alguns têm a razão depravada pela
paixão, por um mal costume ou por uma disposição má da natureza como, por exemplo, entre os
antigos germanos o latrocínio não era reputado iníquo, embora seja expressamente contra a lei da
natureza, como o relata Júlio César.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que tal palavra não deve ser entendida como se todos os preceitos que estão contidos na lei ou no
Evangelho, sejam da lei da natureza, já que muito do que aí é transmitido está acima da natureza, mas
no sentido de a lei da natureza ser aí transmitida de forma plena. Assim, ao dizer Graciano que “o direito
natural é o que está contido na Lei e no Evangelho”, de imediato acrescentou: “por força do qual, cada
um recebe a ordem de fazer a outrem o que quer que lhe façam”.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que a palavra do
Filósofo deve entender-se do que é naturalmente justo, não enquanto princípios comuns, mas como
certas conclusões destes derivadas, as quais são dotadas de retidão, as mais da vezes, e umas poucas
vezes falham.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que, assim como a
razão no homem domina as demais potências, assim também é necessário que todas as inclinações
naturais, pertencentes às demais potências, sejam ordenadas segundo a razão. Donde ser comumente
reto para todos que todas as inclinações dos homens sejam dirigidas segundo a razão.

Art. 5 — Se a lei da natureza pode ser mudada.


No que concerne ao quinto artigo assim se procede. Parece que a lei da natureza pode ser mudada.

1. – Pois, sobre a passagem do Eclesiástico: “Acrescentou-lhes a disciplina e a lei da vida”, diz a glosa:
“Quis fosse a lei escrita para a correção da lei natural”. Mas o que é corrigido é mudado. Portanto, a lei
natural pode ser mudada.

2. Demais – Além disso, a morte de um inocente, o adultério e o furto são contra a lei natural. Ora, isto
encontra-se mudado por Deus, seja quando Este ordenou a Abraão que matasse o filho inocente,
conforme Gênesis, seja quando ordenou aos judeus que levassem consigo os vasos tomados de
empréstimo aos egípcios, segundo Êxodo, seja quando ordenou a Oséias que recebesse por esposa uma
prostituta. Portanto, a lei natural pode ser mudada.

3. Demais – Além disso, diz Isidoro no Livro das Etimologias que “a posse comum de todos os bens e
igual liberdade é de direito natural”. Mas vemos que tais leis foram mudadas pelas leis humanas.
Portanto, parece que a lei natural é mutável.

Em sentido contrário, há o que se diz nos Decretos: “o direito natural vigora desde a origem da criatura
racional. Não varia no tempo, mas permanece imutável”.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que se pode entender a mudança da lei natural duplamente. De um modo,
por meio de algo que se lhe acrescenta. Dessa forma, nada proíbe ser a lei natural mudada, pois muito
foi acrescentado à lei natural, tanto pela lei divina, quanto por leis humanas para utilidade da vida
humana. De outro modo se entende a mudança da lei natural a modo de subtração, de forma que algo
deixe de ser de lei natural, que primordialmente vigorara segundo a lei natural.E, assim, quanto aos
primeiros princípios da lei da natureza é esta de todo imutável. Quanto, porém, aos preceitos segundos,
que dissemos ser como que conclusões próprias próximas dos primeiros princípios, nisto a lei natural
não muda sem que as mais das vezes seja sempre reto o que a lei natural contém. Pode, porém, mudar
em algo particular e em poucos casos, em razão de algumas causas especiais que impedem a
observância de tais preceitos, como se disse acima.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que se diz que a lei escrita foi dada para a correção da lei da natureza, ou porque pela lei escrita
completou-se o que faltava à lei da natureza, ou porque a lei da natureza, quanto a alguns preceitos,
corrompera-se nos corações de alguns, de modo tal a julgarem ser boas ações naturalmente más e tal
corrupção necessitava de correção.
RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que, por morte
natural comum, morrem todos, tanto os nocivos quanto os inocentes. Tal morte natural foi introduzida
pelo poder divino em razão do pecado original, conforme se diz em Reis: “Deus faz morrer (e viver)”.
Dessa forma, por mandado divino, pode infligir-se a morte a qualquer homem, nocivo ou inocente sem
nenhuma injustiça. Da mesma forma, o adultério é o coito com a mulher de outrem, a qual é-lhe
destinada segundo lei divinamente transmitida. Donde, se alguém tem acesso a qualquer mulher por
mandado divino, não há adultério nem fornicação. E o mesmo vale para o furto, que é a tomada de
coisa alheia. O que alguém recebe por mandado de Deus, que é o Senhor de tudo, não o recebe sem a
vontade do Senhor, no qual consiste o furto. Mas não é só nas coisas humanas que, se algo é ordenado
por Deus, isto é devido, mas também nas coisas naturais o que é obra de Deus é a seu modo natural,
como se disse na Primeira Parte.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que algo diz-se de
direito natural duplamente. De um modo, porque a natureza a isto inclina, como não se dever fazer
injúria a outrem. De outro modo, porque a natureza não induziu o contrário, como podemos dizer que
estar o homem nu é de direito natural, porque a natureza não o dotou de veste, mas inventou-a a arte.
Desse modo “a posse comum de todos os bens e a igual liberdade de todos diz-se ser de direito
natural”. Com efeito, a distinção das posses e a servidão não foram introduzidas pela natureza, mas pela
razão dos homens, para utilidade da vida humana. E, assim, nisto a lei da natureza não foi mudada a não
ser por uma adição.

Art. 6 — Se a lei da natureza pode ser abolida do coração do homem.


No que concerne ao sexto artigo, assim se procede. Parece que a lei da natureza pode ser abolida do
coração do homem.

1. – Pois, sobre Romanos: “para os gentios, que não têm a lei...”, diz a glosa: “no homem interior,
renovado pela graça, inscreve-se a lei da justiça, que a culpa apagara”. Ora, a lei da justiça é lei da
natureza. Portanto, a lei da natureza pode apagar-se.

2. Demais – Além disso, a lei da graça é mais eficaz que a lei da natureza. Ora, a lei da graça é apagada
pela culpa. Portanto, muito mais pode apagar-se a lei da natureza.

3. Demais – Além disso, aquilo que a lei estatui é estabelecido como justo. Ora, muito foi estatuído pelos
homens contra a lei da natureza. Portanto, a lei da natureza pode abolir-se do coração do homem.

Em sentido contrário, há o que diz Agostinho: “A tua lei está escrita no coração do homem e nenhuma
iniquidade pode apagá-la”. Ora, a lei inscrita no coração dos homens é a lei natural. Portanto, a lei
natural não pode ser apagada.

SOLUÇÃO. — Deve dizer-se que, como acima se disse, pertencem primeiro à lei natural certos preceitos
generalíssimos, os quais são conhecidos por todos; além disso, há outros preceitos secundários mais
particulares, que são como que conclusões próximas dos princípios. Assim, quanto a tais princípios
comuns, a lei natural de nenhum modo pode ser abolida do coração humano de forma universal. É
abolida, porém, em algo de operável, na medida em que a razão é impedida de aplicar o princípio geral
ao operável particular por óbice da concupiscência ou de alguma outra paixão, como se disse acima.
Quanto aos preceitos segundos, entretanto, pode ser a lei natural abolida dos corações dos homens, ou
por força das más persuasões, do mesmo modo que, no especulativo, ocorrem erros a respeito das
conclusões necessárias, ou ainda por causa dos maus costumes e hábitos corruptos. Dessa forma, por
exemplo, entre alguns não eram os latrocínios reputados pecados e também os vícios contra a natureza,
como o diz o Apóstolo em Romanos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No que concerne ao primeiro argumento, deve dizer-se
que a culpa abole a lei da natureza no particular, não no universal, a não ser talvez quanto aos preceitos
segundos da lei da natureza.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No que concerne ao segundo argumento, deve dizer-se que, embora a graça
seja mais eficaz do que a natureza, a natureza é mais essencial ao homem e, por isso, dotada de maior
permanência.

RESPOSTA À TERCEIRA. — No que concerne ao terceiro argumento, deve dizer-se que aquela razão
procede quanto a preceitos segundos da lei da natureza, contra os quais alguns legisladores produziram
alguns estatutos iníquos.
Questão 95: Da Lei humana
Em seguida devemos tratar da lei humana.

E primeiro, da lei humana em si mesma. Segundo, do seu poder. Terceiro, da sua mutabilidade.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se é útil terem os homens estabelecido leis.


(Supra, q. 91, a. 3; X Ethic., lect XIV).

O primeiro discute-se assim. — Parece que não é útil terem os homens estabelecido leis.

1. — Pois, a intenção de qualquer lei é tornar os homens bons, como já se disse (q. 92, a. 1). Ora, eles
são levados melhor ao bem, voluntariamente, por advertências, do que coagidos por leis. Logo, não é
necessário estabelecê-las.

2. Demais. — O Filósofo diz: Os homens buscam o juiz, como sendo a justiça animada. Ora, a justiça
animada é melhor que a inanimada, contida nas leis. Logo, melhor seria cometer a execução da justiça
ao arbítrio dos juízes, do que legislar a esse respeito.

3. Demais. — Toda lei é diretiva dos atos humanos, como do sobredito resulta (q. 90, a. 1, a. 2). Ora,
como os atos humanos versam sobre situações particulares, que são infinitas, o que respeita à direção
dos atos humanos não pode ser levado em conta suficientemente, senão por alguém que tenha a
ciência dos particulares. Logo, é melhor serem os atos humanos dirigidos pelo arbítrio dos prudentes, do
que fazer leis para eles. Portanto, não é necessário estabelecer leis humanas.

Mas, em contrário, Isidoro diz: As leis foram feitas para que, por medo delas, seja coibida a audácia
humana, a inocência defendida contra os maus e dos próprios maus refreada a faculdade de fazer mal,
pelo temor do suplício. Ora, tudo isto é em máximo grau necessário ao gênero humano. Logo,
necessário é que se tenham estabelecido leis humanas.

SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta (q. 63, a. 1; q. 94, a. 3), o homem tem aptidão natural para a
virtude; mas a perfeição mesma da virtude é forçoso adquiri-la por meio da disciplina. Assim, vemos que
é por alguma indústria, que satisfaz às suas necessidades, p. ex., as do comer e do vestir-se. Dessa
indústria já a natureza lhe forneceu o início, a saber, a razão e as mãos; não porém o complemento,
como o fez para os outros animais, a que deu a cobertura dos pêlos e alimentação suficiente. Ora, para
a disciplina em questão, o homem não se basta facilmente a si próprio. Pois, a perfeição da virtude
consiste principalmente em retraí-lo dos prazeres proibidos, a que sobretudo é inclinado, e, por
excelência, os jovens, para os quais a disciplina é mais eficaz. Logo, é necessário que essa disciplina, pela
qual consegue a virtude, o homem a tenha recebido de outrem. Assim, para os jovens naturalmente
inclinados aos atos de virtude, por dom divino, basta a disciplina paterna, que procede por advertências.
Certos, porém, são protervos, inclinados aos vícios e se não deixam facilmente mover por palavras. Por
isso é necessário sejam coibidos do mal pela força e pelo medo, para que ao menos assim, desistindo de
fazer mal, e deixando a tranqüilidade aos outros, também eles próprios pelo costume sejam levados a
fazer voluntariamente o que antes faziam por medo, e deste modo se tornem virtuosos. Ora, essa
disciplina, que coíbe pelo temor da pena, é a disciplina das leis. Por onde é necessário, para a paz dos
homens e para a virtude, que se estabeleçam leis. Pois, como diz o Filósofo, o homem se, aperfeiçoado
pela virtude, é o melhor dos animais, afastado da lei e da justiça, é o pior de todos. Porque tem as armas
da razão, para satisfazer as suas paixões e crueldades, que os outros animais não têm.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os homens bem dispostos são melhor induzidos à
virtude por advertências, que voluntariamente aceitam, do que pela coação. Certos, porém, mal
dispostos, não se deixam levar à virtude, senão coagidos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Filósofo, é melhor que tudo seja regulado por lei, do que
entregue ao arbítrio de juízes. E isto por três razões. — Primeiro, por ser mais fácil encontrar uns poucos
homens prudentes, suficientes para fazer leis retas, do que muitos que seriam necessários, para julgar
bem de cada caso particular. — Segundo, porque os legisladores, com muita precedência consideram
sobre o que é preciso legislar; ao contrário, os juízos sobre fatos particulares procedem de casos
nascidos subitamente. Ora, mais facilmente pode o homem ver o que é reto, depois de ter refletido
muito, do que apoiado só num único fato. — Terceiro, porque os legisladores julgam em geral e para o
futuro; ao passo que os homens, que presidem ao juízo, julgam do presente, apaixonados pelo amor ou
pelo ódio, ou por qualquer cobiça; o que lhes deprava o juízo. — Portanto, como, a justiça animada do
juiz não se encontra em muitos e é flexível, é necessário, sempre que for possível, seja determinado por
lei como se deva julgar, deixando pouquíssima margem ao arbítrio humano.

RESPOSTA À TERCEIRA. — É necessário cometer a juízes certos casos particulares, que a lei não pode
abranger, conforme o Filósofo o diz, no mesmo lugar; p. ex., saber se um fato se deu ou não, ou coisas
semelhantes.

Art. 2 — Se toda lei feita pelos homens é derivada da lei natural.


(III Cont. Gent., cap. CXXIII; III Sent., dist. XXXVII, a. 3; IV, dist. XV, q. 3, a. 1, qª 4; a. 2, qª 1; V Ehtic.,
lect. XII).

O segundo discute-se assim. — Parece que nem toda lei feita pelos homens é derivada da lei natural.

1. — Pois, diz o Filósofo: Ao justo legal é inicialmente indiferente vir a ser de um ou de outro modo. Ora,
tal indiferença não existe no que depende da lei natural. Logo, nem tudo o que é estabelecido pelas leis
humanas deriva da lei natural.

2. Demais. — O direito positivo divide-se, por oposição, do direito natural, como se vê claramente em
Isidoro, e no Filósofo. Ora, o que deriva dos princípios comuns da lei natural, como conclusão, pertence
à lei natural, como já se disse (Q. 94, a. 4). Logo, o que é de lei humana não deriva da lei natural.

3. Demais. — A lei da natureza é a mesma para todos; pois, no dizer do Filósofo, o justo natural tem em
toda parte o mesmo vigor. Ora, se as leis humanas derivassem da lei natural, também haveriam de ser
as mesmas para todos, o que é evidentemente falso.

4. Demais. — Ao que deriva da lei natural pode-se assinalar uma razão. Ora, nem de tudo o que foi
estatuído pelas leis dos antepassados pode-se dar razão, como diz o jurisperito. Logo, nem todas as leis
humanas derivam da lei natural.

Mas em contrário, diz Túlio: O temor das leis e a religião sancionaram o que, derivado da natureza, foi
sancionado pelo costume.

SOLUÇÃO. — Como diz Agostinho, não é considerado lei o que não for justo. Por onde, uma disposição é
justa na medida em que tem a virtude da lei. Ora, na ordem das coisas humanas, chama-se justo ao que
é reto segundo a regra da razão. E como da razão a primeira regra é a lei da natureza, conforme do
sobredito resulta (q. 91, a. 2 ad 2), toda lei estabelecida pelo homem tem natureza de lei na medida em
que deriva da lei da natureza. Se, pois, discordar em alguma coisa, da lei natural, já não será lei, mas
corrupção dela.

Deve-se, porém, saber que, de dois modos pode ser a derivação da lei natural; como conclusões
derivadas dos princípios, ou como determinações de certos princípios gerais. Ora, o primeiro modo é
semelhante ao porque, nas ciências, derivam-se, dos princípios, conclusões demonstrativas. O segundo
é semelhante ao que se dá com as artes, em que formas gerais se determinam em algo de especial.
Assim, o artífice há de necessariamente determinar a forma geral, de modo a constituir a figura de uma
casa. Por onde, certas disposições derivam dos princípios gerais da lei da natureza, a modo de
conclusões; assim, o dever de não matar pode derivar, como conclusão, do princípio que a ninguém se
deve fazer mal. Outras disposições derivam por determinação; assim, a lei da natureza estatui que quem
peca seja punido; mas a pena com que deve sê-lo é uma determinação da lei da natureza.

Ora, ambos estes modos se encontram nas leis estabelecidas pelo homem. Porém, as disposições
pertencentes ao primeiro modo estão contidas na lei humana, não só como estabelecidas por ela, mas
também por elas receberem, da lei natural, algo do seu vigor. Ao passo que as disposições pertencentes
ao segundo modo haurem o seu vigor só na lei humana.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo se refere nesse lugar às disposições de lei, por
uma certa determinação ou especificação dos preceitos da lei da natureza.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto ao que deriva da lei da natureza como conclusão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os princípios gerais da lei da natureza não podem ser aplicados a todos do
mesmo modo, por causa da múltipla variedade das coisas humanas. E daí provém a diversidade das leis
positivas dos diversos povos.

RESPOSTA À QUARTA. — A expressão do jurisperito deve ser entendida das disposições estabelecidas
pelos antepassados e que versam sobre determinações particulares da lei natural. E a essas
determinações se referem, como a uns princípios, o juízo dos peritos e dos prudentes, que logo vêm,
assim, o que seja mais congruente determinar num caso particular. E por isso o Filósofo diz: em tais
casos, é preciso atender ao juízo dos peritos, dos anciães ou dos prudentes, embora manifestado por
enunciados e opiniões indemonstráveis, não menos que se fossem demonstrações.

Art. 3 — Se Isidoro expõe convenientemente a qualidade da lei positiva.


O terceiro discute-se assim. — Parece que Isidoro expõe inconvenientemente as qualidades da lei
positiva, dizendo: A lei há de ser honesta, justa, possível, natural, conforme aos costumes pátrios,
conveniente ao lugar e ao tempo, necessária, útil e também clara, de modo a não iludir pela
obscuridade; escrita, não para a utilidade privada, mas para a utilidade comum dos cidadãos.

1. — Pois, antes, atribuía à qualidade de lei três condições, dizendo: Lei será tudo o que estiver de
acordo com a razão; que, ao menos, concorde com a religião, convenha à disciplina,
aproveite à salvação. Portanto, é superfluamente que, depois, multiplica as condições da lei.

2. Demais. — A justiça faz parte da honestidade, como diz Túlio. Logo, depois de ter dito — honesta,
superfluamente acrescenta — justa.

3. Demais. — A lei escrita, segundo Isidoro, divide-se do costume, por oposição. Logo, não devia dizer,
na definição da lei — conforme ao costume pátrio.
4. Demais. — Necessário tem dupla acepção. Numa é o que, sendo-o absolutamente, não pode sofrer
mudança; e esta necessidade, não dependendo do juízo humano, não pertence à lei humana. Mas,
noutra acepção, necessário pode ser o que tende para um fim, e tal necessidade é o mesmo que
utilidade. Logo, é supérfluo dizer — necessária e útil.

Mas, em contrário, é a autoridade do próprio Isidoro.

SOLUÇÃO. — A forma de um ser, que tende para um fim, há de necessariamente ser determinada por
proporção com esse fim. Assim, a forma de uma serra há de ser tal que sirva para cortar, como está
claro em Aristóteles. Assim também, tudo o que é reto e medido há de necessariamente ter a forma
proporcionada à sua regra e medida. Ora, uma e outra coisa se encontra na lei humana; pois, ordena-se
a um fim; e é uma regra ou medida, regulada ou medida por uma medida superior. E esta é dupla a
saber, a lei divina e a lei da natureza, como do sobredito resulta (a. 2; q. 93, a. 3). Ora, o fim da lei
humana é a utilidade dos homens, como também o diz o jurisperito. Por isso Isidoro discriminou, em
primeiro lugar, três condições da lei: ser concorde com a religião, enquanto proporcionada à lei divina;
conveniente a disciplina, enquanto proporcionada à lei da natureza; aproveitar à salvação enquanto;
proporcionada à utilidade humana.

E a estas três se reduzem todas as outras condições, referidas em seguida. Assim, a denominação de
honesta se refere a ser concorde com a religião; o que acrescenta — justa, possível, natural, conforme
aos costumes pátrios, conveniente ao lugar e ao tempo, tudo se reduz a ser conveniente à disciplina.
Pois, a disciplina humana se refere, primeiro, à ordem da razão, que está incluída na palavra — justa.
Segundo, à faculdade do agente. Pois, a disciplina deve convir a cada um, segundo a sua possibilidade,
observada a possibilidade da natureza. Assim, não se pode impor às crianças o mesmo que se impõe aos
homens perfeitos. E deve ela ser conforme aos costumes humanos, pois, o homem não pode, só, viver
em sociedade, sem conformar os seus costumes com os dos outros. Terceiro quanto às circunstâncias
devidas, Isidoro diz — conveniente ao lugar e ao tempo. E o que acrescenta — necessária, útil, etc. — se
refere ao que importa à salvação. De modo que a necessidade se refere à remoção dos males; a
utilidade, à consecução dos bens; a clareza acautela contra danos que poderiam provir da própria lei. E,
ordenando-se a lei para o bem comum, como já dissemos (q. 90, a. 2), esta mesma condição está
exposta na última parte da enumeração.

Donde se deduzem claras AS RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.

Art. 4 — Se Isidoro estabelece convenientemente a divisão das leis


humanas ou do direito humano.
(V Ethic., lect. XII).

O quarto discute-se assim. — Parece que Isidoro estabelece inconvenientemente a divisão das leis
humanas, ou do direito humano.

1. — Pois, neste direito compreende o direito das gentes, assim chamado, como ele próprio o diz,
porque por eles se regem todos os povos. Ora, como diz ainda o mesmo, o direito natural é comum a
todas as nações. Logo, o direito das gentes não está contido no direito positivo humano, mas antes, no
direito natural.

2. Demais. — Causas que têm a mesma virtude não diferem formal, mas só, materialmente. Ora, as leis,
os plebiscitos, os senatus-consultos e outras disposições legais, que o autor enumera, têm todos a
mesma virtude. Logo, parece que só hão de diferir materialmente. Ora, não se deve, na arte, levar em
conta essa distinção que pode se dividir ao infinito. Logo, é inconveniente estabelecer tal divisão das leis
humanas.

3. Demais. — Como há, na cidade, príncipes, sacerdotes e soldados, há também muitos outros ofícios
humanos. Logo, parece que, assim como se introduz de certo modo um direito militar e um direito
público exercido pelos sacerdotes e pelos magistrados, assim também devem se introduzir outros
direitos e outros ofícios próprios da cidade.

4. Demais. — Deve-se preterir o acidental. Ora, uma lei pode, acidentalmente, ser feita por um ou outro
indivíduo. Logo, é inconveniente estabelecer uma divisão das leis humanas fundada em os nomes dos
legisladores, de modo que, p. ex., uma se chame Cornélia, outra, Falcídia, etc.

Mas, em contrário, basta a autoridade de Isidoro.

SOLUÇÃO. — Uma divisão pode ser feita, essencialmente, pelo que constitui a essência do ente a ser
dividido. Assim, a essência do animal compreende a alma, que pode ser racional ou irracional. Por onde,
própria e essencialmente, o animal é dividido em racional e irracional, e não em branco e preto,
totalmente estranhos à sua essência. Ora, há muitos elementos constitutivos da essência da lei humana,
segundo os quais qualquer pode ser, própria e essencialmente, dividida.

Assim, primeiramente, é da sua essência ser derivada da lei natural, como do sobredito resulta (a. 2). E,
a esta luz, o direito positivo se divide em direito das gentes e direito civil, conforme aos dois modos
porque se dá a derivação da lei natural, como já antes se disse (a. 2). Pois, ao direito das gentes
pertence o que deriva da lei natural como as conclusões derivam dos princípios; tais as justas compras,
vendas e outras transações sem as quais os homens não podem ter convivência, que é de direito
natural, porque o homem é um animal naturalmente social, como o prova Aristóteles. O que, porém,
deriva da lei da natureza, por determinação particular, pertence ao direito civil, pelo qual cada Estado
determina O que lhe é acomodado.

Em segundo lugar, da essência da lei humana é ordenar-se ao bem comum da cidade. E, a esta luz, a lei
humana pode se dividir conforme à diversidade dos que especialmente trabalham para o bem comum.
Assim, os sacerdotes, orando a Deus pelo povo; os príncipes, governando o povo; e os soldados,
pugnando pela salvação dele. Por onde, a estes homens se aplicam certos direitos especiais.

Em terceiro lugar, é da essência da lei humana ser instituída pelo governador da comunidade civil, como
já dissemos. E assim sendo, as leis humanas se distinguem conforme aos diversos regimes da cidade. —
Dos quais um, segundo o Filósofo, se chama reino, i. é, quando a cidade é governada por um só chefe.
Ao qual correspondem as constituições. Outro regime é o chamado aristocracia, que é o principado dos
melhores ou optimatas. E a estes correspondem as respostas dos prudentes e também os senatus-
consultos. — Outro é a oligarquia, i. é, o principado de poucos, ricos e poderosos ao qual corresponde o
direito pretoriano, também chamado honorário. — Outro, ainda, é o regime do povo chamado
democracia, ao qual correspondem os plebiscitos. — Outro por fim é o tirânico, absolutamente
corrupto, e por isso nenhuma lei lhe corresponde. — Mas há também um regime composto de todos
esses, que é o melhor. E a esse corresponde a lei, estabelecida simultaneamente pelos patrícios e pelos
plebeus, como diz Isidoro.

Enfim, em quarto lugar, é da essência da lei humana ser diretiva dos atos humanos. E a esta luz,
conforme aos assuntos diversos para os quais as leis foram estabelecidas, assim se distinguem as leis, às
vezes denominadas pelos nomes dos seus autores. Tais são as distinções de lei Júlia, sobre os adultérios;
lei Cornélia, sobre os sicários, e assim por diante, não por causa dos seus autores, mas por causa dos
seus objetos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O direito das gentes, sendo racional, é, de certo modo,
natural ao homem, enquanto derivado da lei natural, a, modo de conclusão não muito remota dos
princípios; por isso os homens facilmente se põem de acordo relativamente a ele.

Distingue-se, contudo, do direito natural, sobretudo do que é comum a todos os animais.

Pelo que foi dito se deduzem claras as RESPOSTAS ÀS OUTRAS OBJEÇÕES.


Questão 96: Do poder da lei humana.
Em seguida devemos tratar do poder da lei humana.

E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei humana deve ser feita para o bem comum ou antes, para
o particular.
(V Ethic., lect XVI).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei humana não deve ser feita para o bem comum, mas
antes, para o particular.

1. — Pois, o Filósofo diz: Legal é a lei estabelecida para casos particulares; e também os decretos que
regulam, como o legal, casos particulares, pois são expedidos para se aplicarem a atos particulares.
Logo, a lei não é feita só para o bem comum, mas também para o particular.

2. Demais. — A lei é diretiva dos atos humanos, como já se disse (q. 90, a. 1, a. 2). Ora, os atos humanos
versam sobre o particular. Logo, a lei humana deve ser feita, não para o bem comum, mas antes, para o
particular.

3. Demais. — A lei é a regra e a medida dos atos humanos, como já se disse (q. 90, a. 1, a. 2). Ora, a
medida deve ser certíssima, como diz Aristóteles. Logo, nos atos humanos, não podendo haver nada a
tal ponto certo que não falhe em casos particulares, parece que as leis devem ser feitas, não para o bem
geral, mas para o particular.

Mas, em contrário, diz o jurisperito: O direito deve ser constituído para regular o que freqüentemente se
dá e não, para o que acontece fortuitamente.

SOLUÇÃO. — Tudo o que existe para um fim deve ser-lhe proporcionado. Ora, o fim da lei é o bem
comum; pois, como diz Isidoro, a lei deve ser estabelecida para a utilidade comum dos cidadãos, e não,
para a utilidade privada. Por onde, devem as leis humanas ser proporcionadas ao bem comum. Ora, este
consta de muitos elementos, que portanto, a lei há de necessariamente visar; no concernente às
pessoas, aos atos e aos tempos. Pois, a comunidade civil é composta de muitas pessoas, cujo bem é
buscado por meio de muitas ações. Nem a lei é instituída para durar pouco tempo, mas para perdurar
longamente, através da sucessão dos cidadãos, como diz Agostinho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo distingue três partes na justiça legal, que é o
direito positivo. Pois certas leis são, em si mesmas, estabelecidas para o bem geral; e são as leis gerais. E
a esta luz, diz: ao legal é indiferente vir a ser de um ou de outro modo mas já não o é, quando está
estabelecido: p. ex., que os prisioneiros sejam resgatados por um certo preço estatuído. — Outras são
gerais, sob certo respeito e particulares, sob outro. E essas se chamam privilégios, quase leis privadas,
porque respeitam pessoas singulares, embora o seu vigor se estenda a muitos outros casos. E por isso
acrescenta: além disso, todas as leis feitas para casos particulares. — Certas determinações também se
chamam legais, não por serem leis, mas por constituírem aplicação das leis comuns a certos fatos
particulares; e tais são os decretos, tidos como leis. E, por isto, acrescenta: os decretos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O que é diretivo deve sê-lo de muitas coisas. Por isso, o Filósofo diz, que
tudo o pertencente a um mesmo gênero é medido pelo que é primeiro nesse gênero. Pois, se fossem as
regras ou as medidas tantas quantas as coisas medidas ou reguladas, cessaria por certo a utilidade
daquelas, que consiste em podermos conhecer muitas coisas por meio de uma só. E assim, nenhuma
utilidade teria a lei, se não abrangesse senão um ato particular. Ora, para dirigir atos particulares são
estabelecidos os preceitos singulares dos prudentes. A lei, ao contrário, é um preceito comum, como já
se disse (q. 92, a. 2 arg. 2).

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não devemos buscar em tudo a mesma certeza, diz Aristóteles. Por onde, nas
coisas contingentes, como as naturais e as humanas, basta uma certeza tal, que seja um princípio
verdadeiro, na maior parte dos casos, embora, em alguns possa a não vir a sê-lo.

Art. 2 — Se à lei humana pertence coibir todos os vícios.


(Supra, q. 91, a. 4; q. 93, a. 3, ad 3; infra, a. 3, ad 1; q. 98, a. 1; IIª-IIªª, q. 69, a. 2, ad 1; q. 77, a. 1 ad 1; q.
78, a.1, ad 3; D Malo, q. 13, a. 4. ad 6;Quodl. II, q. 5, a. 2, ad 1, 2; In Iob, cap. XI, lect. I; In Psalm., XVIII).

O segundo discute-se assim. — Parece que à lei humana pertence coibir todos os vícios.

1. — Pois, diz Isidoro: As leis são feitas para, sendo temidas, coibirem a audácia. Ora, esta não será
suficientemente coibida, sem que todos os vícios sejam por aquela coibidos. Logo, a lei humana deve
coibi-los a todos.

2. Demais. — A intenção do legislador é tornar os cidadãos virtuosos. Ora, ninguém pode ser virtuoso se
se não coibir de todos os vícios. Logo, à lei humana pertence coibir de todos eles.

3. Demais. — A lei humana deriva da lei natural, como já se disse (q. 95, a. 2). Ora, todos os vícios
repugnam à lei natural. Logo, ela deve coibi-los a todos.

Mas, em contrário, diz Agostinho: Parece-me que esta lei, escrita para governar o povo, permite
retamente tais coisas e vindica a Providência Divina. Ora, a Providência Divina não vinga senão os vícios.
Logo, se não os coíbe, a lei humana permite, retamente, certos vícios.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 1, a. 2), a lei é posta como uma certa regra e medida dos atos
humanos. Ora, a medida deve ser homogênea com o medido, como diz Aristóteles: pois, coisas diversas
têm medidas diversas. Por onde e necessariamente, também as leis hão de ser impostas aos homens
segundo a condição deles; pois, como Isidoro diz, a lei deve ser possível, quanto à natureza e quanto aos
costumes pátrios. Ora, a faculdade de agir procede do hábito ou disposição interior; pois, o mesmo não
é possível tanto ao que não tem o hábito da virtude como ao virtuoso, assim como a mesma coisa não é
possível à criança e ao homem feito. E por isso não se estabelece a mesma lei para as crianças e para os
adultos, e muitas coisas permitidas aquelas são, por lei, punidas ou ainda vituperadas nestes.
Semelhantemente, muitas coisas se permitem ao homem de virtude imperfeita, que se não tolerariam
em homens virtuosos. Ora, a lei humana é feita para a multidão dos homens, composta na sua maior
parte de homens de virtude imperfeita. Por isso ela não proíbe todos os vícios, de que se os virtuosos
abstêm, mas só os mais graves, dos quais é possível à maior parte da multidão abster-se. E
principalmente os que causam dano a outrem, ou aqueles sem cuja proibição a sociedade humana não
pode subsistir; assim, a lei humana proíbe o homicídio, o furto e atos semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — À audácia é próprio atacar os outros. Por onde, entra
principalmente em o número dos pecados que causam injúria ao próximo e são proibidos pela lei
humana, como já se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei humana visa dirigir os homens para a virtude, não súbita, mas
gradativamente. Por isso não impõe imediatamente à multidão dos imperfeitos o que só é próprio dos
virtuosos, de modo que se abstenham de todos os vícios. Do contrário, os imperfeitos, não podendo
observar tais preceitos, cairiam em piores males, como diz a Escritura (Sl 30, 33): Aquele que com força
espreme a teta para tirar leite faz sair desta o sangue; e noutro lugar (Mt 9, 17): Se deitarem vinho novo,
i. é, preceitos da vida perfeita, em odres velhos, i. é, em homens imperfeitos, vai-se o vinho e se perdem
os odres, i. é, os preceitos são desprezados e os homens, do desprezo, caem em piores males.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei natural é uma participação da lei eterna em nós; ao passo que a lei
humana é deficiente em relação à eterna. Pois, diz Agostinho: A lei estabelecida para reger a cidade
permite e deixa impunes muitos atos, que são vingados pela Providência Divina. Mas nem por deixar de
fazer tudo há de se lhe reprovar o que faz. Por onde, também a lei humana não pode proibir tudo o que
a lei da natureza proíbe.

Art. 3 — Se a lei humana ordena os atos de todas as virtudes.


(Infra, q. 100, a. 2; V Ethic., lect II).

O terceiro discute-se assim. — Parece que não ordena a lei humana os atos de todas as virtudes.

1. — Pois, aos atos virtuosos se opõem viciosos. Ora, não proíbe a lei humana todos os vícios, como já se
disse (a. 2). Logo, também não ordena os atos de todas as virtudes.

2. Demais. — Os atos virtuosos procedem da virtude. Ora, a virtude é o fim da lei; a ponto que não pode
cair sob o preceito da lei o concernente à virtude. Logo, não ordena a lei humana os atos de todas as
virtudes.

3. Demais. — A lei humana se ordena para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2). Ora, certos atos
virtuosos não se ordenam para o bem comum, mas para o particular. Logo, não ordena a lei os atos de
todas as virtudes.

Mas, em contrário, o Filósofo diz: A lei preceitua a prática de atos de fortaleza, de temperança e de
mansidão; e semelhantemente, no referente às outras virtudes e malícias, ordena uns atos e proíbe
outros.

SOLUÇÃO. — As virtudes se especificam pelos seus objetos, como do sobredito resulta (q. 54, a. 2; q. 60,
a. 1; q. 62, a. 2). Ora, todos os objetos das virtudes podem se referir ao bem particular de alguém, ou ao
bem comum da multidão. P. ex., podemos praticar atos de fortaleza para a conservação da cidade ou
dos direitos de um amigo; e assim por diante. Ora, como dissemos (q. 90, a. 2), a lei se ordena para o
bem comum. Logo, não há nenhuma virtude cujos atos a lei não os possa ordenar. Contudo não
preceitua sobre todos os atos de todas as virtudes, mas só dos ordenados para o bem comum. E isto
imediatamente, como quando alguma coisa se faz diretamente para o bem comum; ou, mediatamente,
como quando o legislador estabelece certas disposições pertinentes à boa disciplina, que informe os
cidadãos, para conservarem o bem comum da justiça e da paz.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não proíbe a lei humana todos os atos viciosos, com
obrigação de preceito, assim como desse modo, também não ordena todos os atos virtuosos. Proíbe,
porém, os atos de certos vícios particulares, assim como ordena os de certas e determinadas virtudes.
RESPOSTA À SEGUNDA. — De dois modos pode um ato ser considerado virtuoso. — De um modo,
porque o homem pratica atos virtuosos;assim, o ato da virtude da justiça consiste em agir retamente; o
da fortaleza, em agir corajosamente. E dessa maneira a lei ordena certos atos de virtude. — De outro
modo, quando alguém pratica atos virtuosos, como os que pratica o virtuoso. E tais atos sempre
procedem da virtude, nem caem sob o preceito da lei;mas é o fim a que o legislador pretende levar.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Não há nenhuma virtude cujos atos se não ordenem ao bem comum,
mediata ou imediatamente, como já dissemos.

Art. 4 — Se a lei humana obriga no foro da consciência.


O quarto discute-se assim. — Parece que a lei humana não obriga no foro da consciência.

1. — Pois, o poder inferior não pode impor lei ao juízo do poder superior. Ora, o poder humano, que faz
a lei humana, é inferior ao poder divino. Logo, a lei humana não pode impor lei ao juízo divino, que é o
juízo da consciência.

2. Demais. — O juízo da consciência depende sobretudo dos mandamentos divinos. Ora, às vezes os
mandamentos divinos são contraditos pelas leis humanas, conforme a Escritura (Mt 15, 6): Tendes feito
vão o mandamento de Deus pela vossa tradição. Logo, a lei humana não obriga ao homem no foro da
consciência.

3. Demais. — As leis humanas freqüentemente danificam e oprimem o homem, conforme àquilo da


Escritura (Is 10, 1 ss): Ai dos que estabelecem leis iníquas, e, escrevendo, escrevam injustiça, para
oprimirem os pobres em juízo, e fazerem violência à causa dos fracos do meu povo. Ora, é lícito a todos
evitar a violência e a opressão. Logo, as leis humanas não obrigam ao homem no foro da consciência.

Mas, em contrário, diz a Escritura (1 Pd 2, 19): Isto é uma graça, se alguém, pelo conhecimento do que
deve a Deus, sofre moléstias, padecendo injustamente.

SOLUÇÃO. — As leis estabelecidas pelos homens são justas ou injustas. — Se justas, têm, da lei eterna,
donde derivam, força para obrigar no foro da consciência, conforme àquilo da Escritura (Pr 8, 15): Por
mim reinam os reis e por mim decretam os legisladores o que é justo. Ora, as leis se consideram justas:
pelo fim, i. é, quando se ordenam para o bem comum;pelo autor, i. é, quando a lei feita não excede o
poder do seu autor; e pela forma, i. é, quando, por igualdade proporcional, impõe ônus aos governados,
em ordem ao bem comum. Ora, como cada homem e parte da multidão, cada um é da multidão por
aquilo mesmo que é e que tem; assim como qualquer parte, por aquilo mesmo que a constitui, pertence
ao todo; por isso, se a natureza faz sofrer à parte algum detrimento, é para salvar o todo. E assim sendo,
as leis, que impõem tais ônus proporcionais, são justas, obrigam no foro da consciência e são leis legais.

Por outro lado, as leis injustas podem sê-lo de dois modos. — Por contrariedade com o bem humano, de
modo oposto às razões que as tornam justas, antes enumeradas. Pelo fim, como quando um chefe
impõe leis onerosas aos súbditos, não pertinentes à utilidade pública, mas antes, à cobiça ou à glória
próprias deles; ou também pelo autor, quando impõe leis que ultrapassam o poder que lhe foi
cometido; ou ainda pela forma, p. ex., quando impõe desigualmente ônus à multidão, mesmo que se
ordenem para o bem comum. E estas são, antes, violências, que leis, pois, como diz Agostinho, não se
considera lei o que não for justo. Por onde, tais leis não obrigam no foro da consciência, salvo talvez
para evitar escândalo ou perturbações, por causa do que o homem deve ceder mesmo do seu direito,
segundo a Escritura: E se qualquer te obrigar a ir carregando mil passos, vai com ele ainda mais outros
dois mil; e ao que tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. — De outro modo, as leis podem ser
injustas por contrariedade com o bem divino. Tais as leis dos tiranos, obrigando à idolatria, ou ao que
quer que seja contra a lei divina. E tais leis de nenhum modo se devem observar, porque, como diz a
Escritura (At 5, 29), importa obedecer antes a Deus que aos homens.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz o Apóstolo (Rm 13, 1-2), não há potestade que
não venha de Deus; e portanto, aquele que resiste à potestade, no que lhe concerne à ordem,
resiste à ordenação de Deus. E assim, torna-se réu, quanto a sua consciência.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto às leis humanas que ordenam o contrário dos
mandamentos de Deus; ao que se não pode estender a ordem do poder. Por isso, em tais casos, não se
deve obedecer à lei humana.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A objeção procede quanto à lei que impõe injusto gravame aos súbditos; ao
que também não pode estender-se a ordem do poder concedido por Deus. Por onde, também nesses
casos o homem não está obrigado a obedecer à lei e, sem escândalo ou maior detrimento, pode resistir-
lhe.

Art. 5 — Se todos estão sujeitos à lei.


(Ad Rom., cap. XII, lect I).

O quinto discute-se assim. — Parece que nem todos estão sujeitos à lei.

1. — Pois, só estão sujeitos à lei aqueles para quem ela foi feita. Ora, o Apóstolo diz (1 Tm 1, 9): A lei não
foi posta para o justo. Logo, o justo não está sujeito à lei humana.

2. Demais. — Urbano II, Papa, diz, conforme está nas Decretais: Nenhuma razão exige que seja
governado por uma lei pública quem o é por uma lei particular. Ora, pela lei particular do Espírito Santo
são governados todos os homens espirituais, que são filhos de Deus, segundo àquilo da Escritura (Rm 8,
14): Todos os que são levados pelo Espírito de Deus estes tais são filhos de Deus. Logo, nem todos os
homens estão sujeitos à lei humana.

3. Demais. — O jurisperito diz: O príncipe está a salvo da lei. Ora, quem está a salvo da lei a ela não está
sujeito. Logo, nem todos estão sujeitos à lei.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 13, 1): Todo homem está sujeito às potestades superiores. Ora,
não está sujeito ao poder quem não o está à lei estabelecida por ele. Logo, todos os homens devem
estar sujeitos à lei.

SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta (q. 90, a. 1, a. 2; a. 3 ad 2), duas coisas a lei é por essência:
regra dos atos humanos e dotada de força coativa. Logo, de dois modos pode um estar sujeito à lei. —
Primeiro, como o regulado à regra. E deste modo, todos os que estão sujeitos ao poder o estão à lei, que
ele estabelece. De duas maneiras, porém, pode dar-se que alguém não esteja sujeito à lei. Ou por estar
absolutamente livre da sua sujeição; por isso os que fazem parte de um Estado ou reino não estão
sujeitos às leis nem ao domínio do chefe de outro Estado ou reino. Ou por ser governado por uma lei
superior; assim, quem está sujeito a um procónsul deve regular-se pelas suas ordens, não porém
naquilo que lhe ordena o imperador; no que não está sujeito à ordem de um poder inferior, desde que é
mandado por um superior. E assim, pode dar-se que quem, absolutamente falando, está sujeito à lei,
não o está, de algum modo, desde que é governado por uma lei superior. — De outra maneira, diz-se
que alguém está sujeito à lei como o coagido o está a quem coage. E deste modo, os homens justos e
virtuosos não lhe estão sujeitos, mas só os maus. Pois, o coagido e violento é contrário à vontade. Ora, a
vontade dos bons submete-se à lei, à qual não se submete a dos maus. Por onde, assim sendo, os bons
não estão sujeitos à lei, mas só os maus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção procede quanto à sujeição a modo de coação.
Pois, assim, a lei não foi posta para os justos, que são a sua própria lei, porque mostram a obra da lei,
escrita nos seus corações, como diz o Apóstolo (Rm 2, 14-15). Por onde, para eles a lei não tem força
coativa, como para os maus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei do Espírito Santo é superior a toda lei posta pelo homem. Por isso, os
homens espirituais, enquanto levados pela lei do Espírito Santo, não estão sujeitos à lei, enquanto ela
repugne à direção desse Espírito. Mas é a direção mesma do Espírito Santo que leva os homens
espirituais a serem sujeitos à lei humana, conforme àquilo da Escritura (1 Pd 2, 13): Submetei-vos pois, a
toda humana criatura, por amor de Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Diz-se que o príncipe está a salvo da lei, quanto a força coativa dela. Pois
ninguém pode ser obrigado por si mesmo; e a lei não tem força coativa senão pelo poder do príncipe.
Por onde, diz-se que o príncipe está a salvo da lei, porque ninguém pode pronunciar contra ele um juízo
condenatório, se agir contra ela. Por isso, àquilo da Escritura — Contra ti só pequei, etc. — diz a Glosa:
Não há homem que possa julgar as ações do rei. Mas quanto à força diretiva da lei, o príncipe, por
vontade própria, a ela está sujeito, conforme esta disposição: Quem estabeleceu uma lei para outrem
também deve se lhe submeter. E a autoridade do Sábio o diz: Obedece à lei que fizeste. E no Código os
imperadores Teodósio e Valentiniano escrevem ao prefeito Volusiano: É palavra digna da majestade
reinante, que o príncipe se considere ligado pelas leis; pois, da autoridade da lei depende a nossa
autoridade. E por certo, é mais que o império sujeitar-se o principado às leis. E também o Senhor
repreende os que dizem e não fazem, e os que impõem cargas pesadas e nem com o seu dedo as
querem mover, como está no Evangelho (Mt 23, 3-4). Por onde, o príncipe não está a salvo do poder
diretivo do juízo de Deus; mas deve cumprir a lei, não coagido, mas voluntariamente. Está ainda o
príncipe acima da lei por poder mudá-la, se for conveniente, e dispensar dela conforme ao lugar e ao
tempo.

Art. 6 — Se é lícito a quem está sujeito à lei agir fora dos termos dela.
(IIª-IIªe, q. 60, a. 5, ad 2, 3; q. 120, a. 1; q. 147, a. 4; III Sent., dist. XXXVII, a. 4; IV, dist. XV, q. 3, a. 2, q. 1,
2; V Ethic., lect. XVI).

O sexto discute-se assim. — Parece que não é lícito a quem está sujeito à lei agir fora dos termos dela.

1. — Pois, diz Agostinho: Embora os homens julguem as leis temporais, quando as estabelecem,
contudo uma vez instituídas e firmadas já não é lícito julgá-las, mas deve-se julgar de acordo com elas.
Ora, quem omitir palavras da lei, dizendo conservar a intenção do legislador, julga a lei. Logo, não é lícito
a quem está sujeito à lei omitir-lhe palavras, para conservar a intenção do legislador.

2. Demais. — Só pode interpretar as leis quem as pode fazer. Ora, a nenhum dos submetidos à lei é lícito
fazê-las. Logo, não podem interpretar a intenção do legislador, mas devem agir sempre conforme às
palavras da lei.
3. Demais. — Todo sapiente sabe explicar verbalmente as suas intenções. Ora, devem-se considerar
sapientes os que estabeleceram leis; pois, diz a Sabedoria: Por mim reinam os reis e por mim decretam
os legisladores o que é justo. Logo, não se deve julgar da intenção do legislador senão pelas palavras da
lei.

Mas, em contrário, diz Hilário: A inteligência das palavras deve fundar-se nas causas que as levaram a
ser proferidas; pois, não é a realidade que deve depender da palavra, mas esta, daquela. Logo, devemos
atender, antes à causa que moveu o legislador, do que às palavras mesmas da lei.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 4), toda lei se ordena ao bem comum dos homens, e nessa medida é
que obtém força e razão de lei; e na medida em que assim não se ordene, nessa mesma não tem força
para obrigar. Por isso, o jurisperito diz: Nenhuma razão de direito ou equitativa benignidade sofre, que
as medidas salutares introduzidas para a conservação da sociedade, nós as transformemos em
severidades, interpretando-as duramente, contra o que pede a comodidade humana. Acontece porém,
muitas vezes, que uma medida quase sempre útil a ser observada, para o bem comum, seja nociva, por
exceção, em algum caso particular. Por onde, como o legislador não pode prever todos os casos
particulares, propõe a lei para os casos mais freqüentes, dirigindo a sua intenção para a utilidade
comum. Portanto, se surgir um caso em que seja danosa ao bem comum a observância de uma lei, esta
não deve ser observada. Assim, se for estabelecido que todas as portas de uma cidade sitiada devam
ficar fechadas, isso é útil para o bem comum, na maior parte dos casos. Se porém acontecesse, que os
inimigos perseguissem certos cidadãos, pelos quais a cidade é conservada, seria danosíssimo para ela se
as portas se lhes não abrissem. Por onde, em tal caso, as portas se deveriam abrir, contra a letra da lei,
para se conservar a utilidade comum, que o legislador tinha em vista.

Devemos porém considerar, que se a observância da letra da lei não implicar um perigo súbito, a que é
preciso imediatamente obviar, não é lícito a quem quer que seja interpretar o que seja útil ou inútil à
cidade. Mas isso só pertence aos chefes, que, por causa de tais casos, têm a autoridade para dispensar
na lei. Se porém o perigo for súbito e não sofra demora, de modo a se poder recorrer ao superior, a
própria necessidade traz consigo a dispensa, porque a necessidade não está sujeita à lei.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quem, em caso de necessidade, age fora da letra da lei,
julga, não da lei, mas de um caso particular, onde vê que se não deve observar a letra da lei.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Quem segue a intenção do legislador não interpreta, absolutamente,


falando, a lei. Mas assim o faz, em caso em que seja manifesto, pela evidência do dano, que o legislador
tinha outra intenção. Se porém houver dúvida, deve agir segundo as palavras da lei, ou consultar o
superior.

RESPOSTA À TERCEIRA. — De nenhum homem é tão grande a sabedoria a ponto de poder prever todos
os casos particulares; e portanto, ninguém poderá suficientemente exprimir, com palavras, o que
convém ao fim intencionado. E mesmo que o legislador pudesse prever todos os casos, não deveria
exprimi-los todos, para evitar confusão. Mas deve fazer a lei para o que comumente se dá.
Questão 97: Da mudança das leis.
Em seguida devemos tratar da mudança das leis. E nesta questão discutem-se quatro artigos;

Art. 1 — Se a lei humana deve de algum modo ser mudada.


(Infra, q. 104, a. 3, ad 2; Ad. Galat., cap. I, lect. II. V Ethic., lect. XII).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei humana de nenhum modo deve ser mudada.

1. — Pois, a lei humana deriva da lei natural, como já se disse (q. 95, a. 2). Ora, a lei natural perdura
imutável. Logo, também a lei humana deve permanece imutável.

2. Demais. — Como diz o Filósofo, a medida deve, por excelência, ser permanente. Ora, a lei humana é a
medida dos atos humanos, como já se disse (q. 90, a. 1, a. 2). Logo, deve permanecer imutável.

3. Demais. — Da essência da lei é ser justa e reta, como já se disse (q. 95, a. 2). Ora, o que é uma vez
reto o é sempre. Logo, o que foi uma vez lei deve sê-lo sempre.

Mas, em contrário, Agostinho diz: A lei temporal, embora justa, pode, no decurso do tempo, ser
justamente mudada.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (q. 91, a. 3), a lei humana é um ditame da razão por que se dirigem os
atos humanos. E assim, por dupla causa pode a lei humana ser justamente mudada: uma fundada na
razão; outra, proveniente dos homens, cujos atos são regulados por lei.

Uma é fundada na razão, porque à razão humana é natural ascender gradualmente do imperfeito para o
perfeito. Por isso vemos, nas ciências especulativas, que os primeiros filósofos transmitiram aos seus
sucessores umas doutrinas imperfeitas, que estes por sua vez transmitiram aos seus sucessores mais
aperfeiçoadas. Ora, o mesmo se dá na ordem das ações. Assim, os primeiros que intencionaram
descobrir mais útil disposição para a comunidade humana, não podendo prever tudo, por si mesmos,
fizeram certas instituições imperfeitas e falhas em muitos casos, que os pósteros modificaram,
estabelecendo por sua vez certas outras, que, em alguns casos, podem não realizar a utilidade comum.

Por outro lado, por parte do homem, cujos atos são regulados por lei, esta pode retamente mudar-se,
por causa da mudança das condições dos homens, aos quais convêm coisas diversas segundo as suas
diversas condições. Assim Agostinho dá o exemplo seguinte. Se um povo for de boa moderação, grave e
guarda diligentíssimo da utilidade comum, a lei é justamente feita para que a tal povo seja lícito
estabelecer os seus magistrados, que administrem a república. Mas se, depravado esse povo
paulatinamente, venha a tornar venal o seu sufrágio e entregar o governo a homens flagiciosos e
celerados, é justo cassar-lhe o poder de distribuir as honras, e transferi-lo ao arbítrio de uns poucos
bons.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei natural é uma participação da lei eterna, como já se
disse (q. 91, a. 2), e por isso permanece imutável; e essa imutabilidade ela a tem da perfeição da razão
divina, que institui a natureza. Ao contrário, a razão humana é mutável e imperfeita. E portanto, a sua
lei é mutável. Além disso, a lei natural contém certos preceitos universais, que sempre permanecem; ao
passo que a lei estabelecida pelo homem contém preceitos particulares, provocados pelos casos
emergentes.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A medida deve ser permanente quanto possível. Mas na ordem das coisas
mutáveis nada pode haver que permaneça imutável. Por onde, a lei humana não pode ser
absolutamente imutável.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Na ordem das coisas materiais a retidão é considerada absolutamente; e por
isso permanece na sua essência. Ao passo que a retidão da lei é considerada em relação à utilidade
comum, a qual não é sempre proporcionada uma mesma realidade, como já se disse. Por isso essa
retidão é susceptível de mudança.

Art. 2 — Se a lei humana há de sempre ser mudada quando aparecerem


melhores instituições.
(II Polit., lect. XII).

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei humana há de sempre ser mudada quando
aparecerem melhores instituições.

1. — Pois, as leis humanas são fundadas na razão humana, assim como também as demais artes. Ora,
nestas, muda-se o que estava estabelecido, se aparecer algo de melhor. Logo, o mesmo se deve fazer
com as leis humanas.

2. Demais. — Pelo passado podemos prever o futuro. Ora, se as leis humanas não mudassem com a
superveniência de melhores instituições, daí resultariam muitos inconvenientes, porque segundo
parece, as leis antigas eram muito rudes. Logo, as leis hão-se de mudar, sempre que for possível fazer
melhores instituições.

3. Demais. — As leis humanas são feitas para governar atos particulares dos homens. Ora, na ordem dos
atos particulares, não podemos alcançar conhecimento perfeito senão pela experiência, que exige
tempo, como diz Aristóteles. Logo, parece que, no decurso do tempo, pode ser que ocorra algo de
melhor a ser estatuído.

Mas, em contrário, dizem as Decretais: É ridículo e desonra bastante abominável sofrer a destruição das
tradições que recebemos, desde a antiguidade, dos nossos antepassados.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei humana pode ser retamente mudada, na medida em que
essa mudança responda a uma utilidade pública. Mas a mudança, em si mesma, da lei, acarreta um
certo detrimento para o bem da comunidade. Porque para a observância da lei contribui muito o
costume; a ponto de o que se faz contra o costume geral, embora em si mesmo leve, ser, na verdade,
grave. Por onde, mudada, a lei perde da sua força obrigatória, na medida em que se destrói o costume.
Portanto, nunca deve ser mudada a lei humana, a menos que, por outro lado, haja compensação, para o
bem comum, correlativa à parte de rogada da lei. E isto se dá: ou porque, da nova disposição legal,
provém alguma utilidade máxima e evidentíssima; ou porque havia máxima necessidade de mudança;
ou porque a lei costumeira continha manifesta iniqüidade ou a sua observância era nociva para muitos.
Por isso, o jurisperito diz: No constituir uma nova ordem de coisas deve ser evidente a utilidade para nos
afastarmos da lei tida diuturnamente como justa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O que pertence à arte tem uma eficácia fundada só na
razão; e portanto, sempre que ocorrer qualquer melhora, deve-se mudar o que antes estava
estabelecido. Ora, as leis tiram do costume a sua máxima virtude, como diz o Filósofo. De aí o não
deverem ser facilmente mudadas.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção conclui, que as leis se devem mudar; não porém para darem lugar
a qualquer melhoria; mas por causa de alguma grande utilidade ou necessidade, como já se disse.

E semelhantemente se deve RESPONDER À TERCEIRA OBJEÇÃO.

Art. 3 — Se o costume pode obter força de lei e abrogar a lei.


(IIª-IIªª, q. 79, a 2; ad 2; IV Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 1, ad 1; Quodl. II, q. 4, a. 3; IX, q. 4, a. 2).

O terceiro discute-se assim. — Parece que o costume não pode obter força de lei nem abrogar a lei.

1. — Pois, a lei humana deriva da lei da natureza e da lei divina, como do sobredito resulta (q. 93, a. 3; q.
95, a. 2). Ora, o costume dos homens não pode mudar a lei da natureza, nem a lei divina. Logo, também
não pode mudar a humana.

2. Demais. — Muitos males não podem fazer um bem. Ora, quem primeiro começou a agir contra a lei
fez mal. Logo, a multiplicação de atos semelhantes nada poderá fazer de bom. Ora, a lei, sendo regra
dos atos humanos, é um bem. Portanto, o costume não pode abrogar a lei, de modo que obtenha força
de lei.

3. Demais — Legislar é próprio de pessoas públicas, a quem pertence governar a comunidade; por isso
pessoas particulares não podem fazer leis. Ora, o costume se avigora por atos de particulares. Logo, o
costume não pode obter força tal que abrogue a lei.

Mas, em contrário, Agostinho diz: o costume do povo de Deus e as instituições dos maiores devem ser
considerados como lei. E assim como os prevaricadores contra as leis divinas, assim também os
contentores dos costumes eclesiásticos devem ser reprimidos.

SOLUÇÃO. — Toda lei procede da razão e da vontade do legislador: a divina e a natural, da vontade
racional de Deus; a humana, da vontade do homem, regulada pela razão. Ora, a razão e a vontade se
manifestam, não só pela palavra, quanto aos atos que o homem vai praticar, mas também pelos
próprios atos. Pois, cada um pratica o que considera bom. Ora, é claro, pela palavra humana a lei não só
pode ser mudada, mas também exposta, manifestando o movimento interior e o conceito da razão
humana. Por onde, também atos, sobretudo multiplicados, e geradores do costume podem mudar e
expor a lei, e mesmo produzir uma disposição com força de lei. Pois por atos exteriores e multiplicados
revela-se eficacìssimamente o movimento interior da vontade e o conceito da razão. Porque se
considera proveniente do juízo deliberado da razão o que se faz mui repetidamente. E sendo assim, o
costume tanto pode ter força de lei, como abrogá-la e interpretá-la.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei natural e a divina procedem da vontade divina,
como já se disse. Por isso não pode ser mudada pelo costume procedente da vontade humana, mas só
por autoridade divina. Por onde, nenhum costume pode ter força de lei contra a lei divina ou a natural.
Pois, diz Isidoro: Ceda o uso à autoridade; o mau uso estirpe a lei e a razão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como já dissemos (q. 96, a. 6), as leis humanas são deficientes em certos
casos. Por isso é possível às vezes, em caso de deficiência da lei, agir fora dos seus termos, sem ser mau
o ato assim praticado. Ora, a multiplicação de tais casos, por alguma mudança existente nos homens,
manifesta, pelo costume, que a lei já não é útil, assim como isso mesmo se manifestaria se uma lei
contrária fosse verbalmente promulgada. Se, porém ainda permanecer a mesma razão, pelo qual a
primeira lei era útil, não é o costume que suplanta a lei, mas a lei, o costume. Salvo talvez se a lei for
considerada como inútil só por não ser exeqüível, de acordo com o costume pátrio, o que era uma das
condições dela. Pois, é difícil remover o costume do povo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O povo, em que se realiza o costume, pode ter dupla condição. — Se for livre
e capaz de legislar, vale mais o consenso de toda a multidão, para o fim de se observar alguma
disposição manifestada pelo costume, do que a autoridade do chefe, que não tem o poder de legislar
senão enquanto representa a personalidade do povo. Por onde, embora pessoas singulares não possam
legislar, contudo a totalidade do povo o pode. — Outro caso é o do povo que não tem poder livre de
legislar para si ou de remover a lei estabelecida por um poder superior. Em tal caso, contudo, o próprio
costume, que prevalece na multidão, obtém força de lei, por ser tolerado por aqueles a quem pertence
impor a lei ao povo. Pois, por isso mesmo são considerados como tendo aprovado o que o costume
introduziu.

Art. 4 — Se os chefes do povo podem dispensar nas leis humanas.


(Supra, q. 96. a. 6; infra, q. 100. a. 8; IIª-IIªª, q. 88, a. 10; q. 89. a. 9; q. 717, a. 4; III Sent., dist. XXXVII, a.
4; IV. dist. XV, q. 3, a. 2, qª 1; dist. XXVII, q. 3, a. 3, ad 4; III Cont. Gent., cap. CXXV).

O quarto discute-se assim. — Parece que os chefes do povo não podem dispensar nas leis humanas.

1. — Pois, a lei é estabelecida para a utilidade geral, como diz Isidoro. Ora, o bem comum não pode ser
preterido em benefício da utilidade particular de ninguém. Porque, no dizer do Filósofo, o bem da nação
é mais divino que o de um só homem. Logo, parece que não se deve dispensar ninguém de modo a
poder contrariar o bem comum.

2. Demais. — Aos constituídos como chefes a Escritura preceitua (Dt 1, 17): Do mesmo modo ouvireis o
pequeno que o grande, nem tereis acepção de pessoa alguma, porque este é o juízo de Deus. Ora,
conceder a um o que se nega a todos, comumente, é fazer acepção de pessoas. Logo, sendo isto contra
o preceito da lei divina, os chefes do povo não podem conceder tais dispensas.

3. Demais. — A lei humana, quando reta, há de estar de acordo com a lei natural e a divina; do contrário
não estaria de acordo com a religião, nem conviria com a disciplina, o que entretanto a lei exige, como
diz Isidoro. Ora, na lei natural e divina ninguém pode dispensar. Logo nem na lei humana.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (1 Cor 9, 17): A dispensação me veio só a ser encarregada.

SOLUÇÃO. — A dispensa, propriamente, implica a comensuração entre o comum e o particular. Por


onde, também o chefe de família se chama dispensador, por distribuir a cada membro dela, com peso e
medida, as obras e o necessário à vida. Assim também, em qualquer povo, diz-se que dispensa quem
ordena como cada preceito geral há de ser cumprido pelos particulares.

Ora, pode acontecer que um preceito correspondente, na maior parte dos casos, à utilidade da
multidão, não convenha a uma determinada pessoa ou a um determinado caso. E isso, quer por ser
impedimento do melhor, quer por provocar algum mal, como do sobredito se colhe (q. 96, a. 6). Ora,
seria perigoso cometer tal dispensa ao juízo de qualquer, salvo se houver perigo evidente e súbito,
como antes se disse (q. 96, a. 6). Por onde, quem tem o múnus de governar a multidão tem o poder de
dispensar na lei humana, que se lhe apóia na autoridade. De modo que, nas pessoas ou nos casos em
que a lei é deficiente, dê licença para não se observar o preceito dela.
Se porém, der tal licença, sem a mencionada razão, e só por sua vontade, não será fiel na dispensação,
ou será imprudente. Infiel, se não visar intencionalmente o bem comum; imprudente, se ignorar a razão
de dispensar. Pelo que diz o Senhor (Lc 12, 42): Quem crês que é o dispenseiro fiel e prudente que faz o
senhor sobre a sua família?

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Não deve ser em prejuízo do bem comum que alguém
seja dispensado de observar a lei geral; mas com a intenção de isso aproveitar a tal bem.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Não há acepção de pessoas se não se estabelecem situações iguais para
pessoas desiguais. Por onde, quando a condição de uma pessoa exige que racionalmente se observe
para com ela alguma disposição especial,não há acepção de pessoas, se lhe fizer uma graça especial.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei natural, por conter preceitos gerais, que nunca falham, não é
susceptível de dispensa. Mas às vezes o homem pode dispensar nos outros preceitos, que são umas
quase conclusões dos preceitos comuns. Por exemplo, que não se restitua o mútuo ao traidor da pátria,
ou coisa semelhante. Quanto à lei divina, cada homem está para ela, como uma pessoa privada, para a
lei pública, a que está sujeito. Por onde, assim como ninguém pode dispensar na lei pública humana,
senão aquele de quem ela tira a sua autoridade, ou quem dele receber permissão para tal, assim,
ninguém, a não ser Deus, ou quem Ele especialmente determinar, pode dispensar nos preceitos do
direito divino, procedentes de Deus.
Questão 98: Da lei antiga.
Em seguida devemos tratar da lei antiga. E, primeiro, da lei em si mesma. Segundo, dos seus preceitos.

Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei antiga era boa.


(Art. seq., ad 1, 2; Ad Rom., cap. VII, lect. II, III; Ad Galat., cap. III, lect. VII, VIII; I Tim., cap. I, lect. II).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga não era boa.

1. — Pois, diz a Escritura (Ez 20, 25): Eu lhes dei uns preceitos não bons, e umas ordenanças nas quais
eles não acharam a vida. Ora, uma lei não é considerada boa senão pela bondade dos preceitos que
contém. Logo, a lei antiga não era boa.

2. Demais. — Pela sua bondade é que a lei é útil para o bem público, como diz Isidoro. Ora, a lei antiga
não era salutar, mas antes, mortífera e nociva. Pois, diz o Apóstolo (Rm 7, 8): Sem a lei o pecado estava
morto. E eu nalgum tempo vivia sem lei; mas quando veio o mandamento reviveu o pecado; e eu sou
morto. E ainda (Rm 5, 20): Sobreveio a lei para que abundasse o pecado. Logo, a lei antiga não era boa.

3. Demais. — Pela sua bondade é que a lei é de observância possível, quanto à natureza e quanto ao
costume humano. Ora, tal não era a lei antiga, conforme diz Pedro (At 15, 10): Porque tentais pôr um
jugo sobre ascervizes dos discípulos, que nem nossos pais nem nós pudemos suportar. Logo, parece que
a lei antiga não era boa.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 7, 12): Assim que, a lei é na verdade santa, e o mandamento é
santo, e justo, e bom.

SOLUÇÃO. — Sem nenhuma dúvida, a lei antiga era boa. Pois, assim como se manifesta verdadeira uma
doutrina, por estar de acordo com a razão; assim, mostra ser boa uma lei, por estar de acordo com a
razão reta. Ora, a lei antiga estava de acordo com a razão, pois reprimia a concupiscência, que lhe é
contrária a ela, como o prova aquele mandamento (Ex 20, 17): Não cobiçaras os bens do teu próximo. E
também proibia todos os pecados contrários à razão. Por onde é manifesto, que era boa. E esta é a
razão do Apóstolo, quando diz (Rm 7, 22): Eu me deleito na lei de Deus, segundo o homem interior; e
ainda (Rm 7, 16): consinto com a lei, tendo-a por boa.

Devemos porém notar que a bondade tem diversos graus, como diz Dionísio. Assim há uma bondade
perfeita e outra, imperfeita. A perfeita relativamente aos meios consiste em ser um meio tal, que por si
mesmo é conducente ao fim. A imperfeita consiste em praticarmos algum ato para a consecução do fim,
mas não bastante a atingi-lo. Assim, o remédio perfeitamente bom nos cura; o imperfeito ajuda, mas
não pode curar.

Ora, como sabemos um é o fim da lei humana, e outro, o da divina. O fim da lei humana é a
tranqüilidade temporal da cidade. E esse fim a lei o consegue coibindo os atos exteriores, excluindo os
males capazes, de perturbar a paz civil. Ao passo que a lei divina visa levar o homem ao fim da felicidade
eterna, fim que todo pecado impede; e não só por atos externos, como também por internos. Portanto,
o bastante à perfeição da lei humana, que é proibir os pecados e cominar a pena, não o é à perfeição da
lei divina, que há de tornar o homem totalmente capaz de participar da felicidade eterna. Ora, isto não
pode ser senão por graça do Espírito Santo, pela qual se difunde a caridade nos nossos corações, que
cumpre a lei; pois, a graça de Deus é a vida eterna, como diz o Apóstolo (Rm 5, 5). Mas, esta graça a lei
antiga não a podia conferir, pois isso estava reservado a Cristo. Porque, como diz João, a lei foi dada por
Moisés, a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Donde vem, que a lei antiga era, por certo boa,
mas imperfeita, conforme àquilo (Heb 7, 19): a lei nenhuma coisa levou à perfeição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — No lugar citado o Senhor fala dos preceitos cerimoniais,
chamados não bons por não conferirem a graça, que purifica os homens do pecado, embora por eles os
homens se mostrassem pecadores. Por isso assinaladamente diz: e umas ordenanças nas quais eles não
achavam a vida, i. é, pelas quais não podem obter a vida da graça. E depois acrescenta: E permiti que
eles se manchassem nos seus dons, i. é, mostrei-os manchados, quando para expiação dos seus pecados
ofereciam lodo o que rompe o claustro materno.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Diz-se que a lei matava, não certo efetiva, mas, ocasionalmente, por causa
da sua imperfeição, por não conferir a graça, pela qual os homens pudessem cumprir o que ela mandava
e evitar o que proibia. E assim, essa ocasião não era dada, mas tomada pelos homens. E por isso o
Apóstolo diz, no esmo lugar (Rm 5, 11): o pecado, tomando ocasião do mandamento, me enganou, e me
matou pelo mesmo mandamento. E por esta razão diz: sobreveio a lei para que abundasse o pecado;
onde se deve considerar a expressão — para que — não consecutiva, mas causalmente, i. é, porque os
homens, tomando ocasião da lei, pecaram mais intensamente. Quer por ser o pecado mais grave, depois
da proibição da lei; quer ainda porque a concupiscência aumentasse, pois, maior é a nossa
concupiscência quando se trata do proibido.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O jugo da lei não podia ser suportado sem a graça coadjuvante, que a lei não
dava. Pois, diz o Apóstolo (Rm 9, 16): querer e correr nos preceitos de Deus não depende do que quer,
nem do que corre, mas de usar Deus da sua misericórdia. Donde o dizer a Escritura (Sl 118, 32): Corri
pelo caminho dos teus mandamentos, quando dilataste o meu coração, i. é, pelo dom, da graça e da
caridade.

Art. 2 — Se a lei antiga procedia de Deus.


(Ad Hebr., cap. VII, lect. III).

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei antiga não procedia de Deus.

1. — Pois, diz a Escritura (Dt 32, 4): As obras de Deus são perfeitas. Ora, a lei antiga era imperfeita, como
se disse (a. 1). Logo, não procedia de Deus.

2. Demais. — A Escritura diz (Ecle 3, 14): Eu aprendi que todas as obras que Deus fez perseveram para
sempre. Ora, a lei antiga não perseverou para sempre; pois, diz o Apóstolo (Heb 7, 18): O mandamento
primeiro é na verdade abrogado pela fraqueza e inutilidade. Logo, a lei antiga não procedia de Deus.

3. Demais. — Do legislador sábio é próprio extirpar não só os males, como as suas ocasiões. Ora, a lei
antiga era ocasião de pecado, como já se disse (a. 1 ad 2). Logo, não convinha a Deus, a quem nenhum é
semelhante entre os legisladores, no dizer da Escritura (Jó 36, 22), impor tal lei.

4. Demais. — A Escritura diz (1 Tm 2, 4): Deus quer que todos os homens se salvem. Ora, a lei antiga não
bastava para a salvação dos homens, como já se disse (a. 1). Logo, a Deus não convinha dar tal lei, e
portanto a lei antiga não procedia de Deus.

Mas, em contrário, diz o Senhor, falando dos Judeus, a quem foi dada a lei antiga (Mt 15, 6): vós tendes
feito vão o mandamento de Deus pela vossa tradição. E pouco antes tinha dito (Mt 15, 4): Honra a teu
pai e a tua mãe, o que, manifestamente, está contido na lei antiga (Ex 20, 12; Dt 5, 16). Logo, esta
procedia de Deus.

SOLUÇÃO. — A lei antiga foi dada pelo Deus de bondade, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo. Pois, a lei
antiga ordenava os homens para Cristo, de dois modos. — De um modo, dando testemunho de Cristo.
Por isso, o Evangelho diz (Lc 24, 44): é necessário cumprir-se tudo o que de mim estava escrito na lei,
nos Salmos e nos Profetas; e ainda (Jo 5, 46): Porque se vós crêsseis a Moisés, certamente me creríeis
também a mim, porque ele escreveu de mim. — De outro modo, por uma como disposição, enquanto
que, retraindo os homens do culto da idolatria, encerrava-os no culto do Deus único, que, por meio de
Cristo, devia salvar o gênero humano. Por onde, diz o Apóstolo (Gl 3, 23): Antes que a fé viesse,
estávamos debaixo da guarda da lei, encerrados para aquela fé que havia de ser revelada. Ora, é
manifesto, que quem dispõe para o fim também conduz para ele; quero dizer que conduz por si mesmo,
ou por meio de seus subordinados. Ora, o diabo não iria fazer uma lei, conducente dos homens a Cristo,
por quem ele havia de ser lançado fora, conforme àquilo da Escritura (Mt 12, 26): se Satanás lança fora a
Satanás, está ele dividido contra si mesmo. Logo, a lei antiga foi dada por Deus mesmo, donde veio a
salvação aos homens, pela graça de Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Nada impede o temporalmente perfeito não o ser,
absolutamente. Assim, diz-se que uma criança é perfeita, não absolutamente, mas conforme a sua
condição no tempo; e portanto, os preceitos impostos às crianças são perfeitos, não absolutamente,
mas segundo a condição delas. E tais foram os preceitos da lei. Por isso o Apóstolo diz (Gl 3, 24): a lei
nos serviu de pedagogo que nos conduziu a Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Perseveram eternamente as obras de Deus, que ele fez para assim
perseverarem; e essas são as obras perfeitas. Ora, a lei antiga foi rejeitada no tempo da perfeição da
graça, não por má, mas como insuficiente e inútil para esse tempo; porque, como acrescenta o mesmo
lugar, a lei nenhuma coisa levou à perfeição. Por onde, diz o Apóstolo (Gl 3, 24): Depois que veio a fé, já
não estamos debaixo de pedagogo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como já dissemos (q. 79, a. 4), Deus às vezes permite certos caírem em
pecado para desse modo se humilharem. Assim também, quis dar uma lei tal que, por suas próprias
forças, os homens não pudessem cumprir, para, presumindo de si mesmos e reconhecendo-se
pecadores, recorrerem, humilhados, ao auxílio da graça.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora a lei antiga não bastasse para salvar os homens, contudo,
simultaneamente com ela, Deus deu outro auxílio aos homens, com o qual poderiam salvar-se. E esse foi
a fé no Mediador, pela qual se justificaram os padres antigos, como também nós nos justificamos. E
assim, Deus não abandonava os homens, deixando-os sem os auxílios da salvação.

Art. 3 — Se a lei antiga foi dada pelos anjos, ou imediatamente por Deus.
(In Isaiam, cap. VI; Ad Galat., cap. III, lect. VII; Ad. Coloss., cap. II, lect. IV; Ad Hebr., cap. II, lect. I).

Parece que a lei antiga não foi dada pelos anjos, mas imediatamente por Deus.

1. — Pois, anjo significando núncio, esse nome implica um ministério e não domínio, conforme àquilo da
Escritura (Sl 102, 20-21): Bendizei ao Senhor, todos os anjos dele. Ora, a mesma Escritura diz, que a lei
antiga foi dada pelo Senhor (Ex 33, 11): Falou o Senhor todas estas palavras; e acrescenta: Eu sou o
Senhor teu Deus. E o mesmo modo de falar é freqüentemente repetido no Êxodo e nos livros seguintes
da lei. Logo, a lei foi imediatamente dada por Deus.

2. Demais. — A Escritura diz (Jo 1, 17): A lei foi dada por Moisés. Ora, este a recebeu de Deus,
imediatamente, conforme ainda a Escritura (Ex 33, 11): O Senhor falava a Moisés cara a cara, bem como
um homem costuma falar ao seu amigo. Logo, a lei antiga foi imediatamente dada por Deus.

3. Demais. — Só o chefe pode legislar, como se disse (q. 90, a. 3). Ora, só Deus é o chefe, no atinente à
salvação das almas; os anjos são apenas espíritos administradores, como diz a Escritura (Heb 1, 14).
Logo, a lei antiga não devia ser dada pelos anjos, pois se ordenava à salvação das almas.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 3, 19): a lei foi dada pelos anjos na mão dum Mediador; e ainda (At
7, 53): recebestes a lei por ministério dos anjos.

SOLUÇÃO. — A lei foi dada por Deus, por meio dos anjos. E além da razão geral assinalada por Dionísio,
que as coisas divinas devem ser transmitidas aos homens por meio dos anjos, há uma razão especial
pela qual era necessário fosse a lei antiga dada por meio deles. Pois, como já dissemos (a. 1, a. 2), a lei
antiga era imperfeita, mas dispunha para a salvação perfeita do gênero humano, que haveria de vir de
Cristo. Ora, vemos que em todas as faculdades e artes ordenadas, o superior pratica por si mesma o ato
principal e perfeito, e, pelos seus ministros, os disponentes à perfeição última. Assim, o construtor de
um navio o compõe por si mesmo; mas prepara o material diante artífices, trabalhando sob suas ordens.
Por isso foi conveniente a lei perfeita do Novo Testamento ter sido dada imediatamente por Deus
mesmo; e que a lei antiga fosse dada aos homens pelos ministros de Deus, i. é, pelos anjos. E deste
modo o Apóstolo mostra a eminência da lei nova sobre a antiga; porque, em o Novo Testamento, Deus
nos falou pelo Filho; ao passo que, no antigo, falou pelos anjos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz Gregório, o anjo que se descreve como tendo
aparecido a Moisés, é tido, ora, como anjo, ora, como o Senhor. Anjo porque, falando, exteriormente,
servia; Senhor, por outro lado, porque, presidindo interiormente, dava eficácia à linguagem. E por isso,
também o anjo representava a pessoa de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como explica Agostinho, o Êxodo diz: O Senhor falava a Moisés cara a cara; e
pouco depois, acrescenta: Mostra-me a tua glória. Logo, sentia o que via e desejava o que não via. Logo,
não via a essência mesma de Deus, e portanto não era instruído imediatamente por ela. Por onde, o dito
da Escritura — falava com ele cara a cara — é de acordo com a opinião do povo, que pensava que
Moisés falava cara a cara com Deus, por aparecer-lhe Deus e falar-lhe por meio de uma sua criatura,
como o anjo e a nuvem. Ou, por essa visão da face se entende uma certa contemplação eminente e
familiar, inferior à essência da visão divina.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Só o chefe pode, por sua autoridade, instituir a lei; mas às vezes promulga
instituída por outros. Assim, Deus institui a lei por sua autoridade, mas a promulgou pelos anjos.

Art. 4 — Se a lei antiga devia ter sido dada só ao povo judeu.


O quarto discute-se assim. — Parece que a lei antiga não devia ter sido dada só ao povo judeu.

1. — Pois, a lei antiga dispunha da salvação, que viria de Cristo, como se disse (a. 2, a. 3). Ora, essa
salvação não havia de vir só para os judeus, mas para todas as gentes, conforme a Escritura (Is 49,
6): Pouco é que tu sejas meu servo para suscitar as tribos de Jacó e converter as fezes de Israel; eu te
estabeleci para Luz das gentes, a fim de seres tu a salvação que eu envio até a última extremidade da
terra. Logo, a lei antiga devia ter sido dada a todas as gentes e não só ao povo judeu.

2. Demais. — Como diz a Escritura (At 10, 34-35), Deus não faz acepção de pessoas; mas em toda a
nação aquele que o teme e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Logo, não devia ter aberto o caminho
da salvação a um povo de preferência a outro.

3. Demais. — A lei foi dada pelos anjos, como se disse (a. 3). Ora, o ministério dos anjos Deus sempre o
deu, não só aos judeus, mas a todas as gentes, conforme a Escritura (Sr 17, 14): Ele estabeleceu a cada
nação seu príncipe que a governasse. E todas as gentes também são favorecidas por bens temporais, de
que Deus cura menos que dos espirituais. Logo, também devia ter dado a lei a todos os povos.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Rm 3, 1-2): Que tem, pois, demais o Judeu? Muita vantagem logra em
todas as maneiras; principalmente porque lhes foram por certo confiados os oráculos de Deus. E noutro
lugar (Sl 147, 9): Não fez assim a toda outra nação, e não lhes manifestou os seus juízos.

SOLUÇÃO. — Poder-se-ia dar uma razão de a lei ter sido outorgada antes ao povo judeu, do que aos
outros povos, e é a seguinte. Enquanto os outros caíam na idolatria, só o povo judeu conservava o culto
do Deus único; por isso eram aqueles indignos de receberem a lei, para não se darem as coisas santas
aos cães.

Mas esta razão não pode ser considerada conveniente. Porque o povo judeu, mesmo depois de a lei lhe
ter sido dada, caiu na idolatria, o que era mais grave, conforme está claro na Escritura (Ex 32; Am 5, 25-
26): Porventura, ó casa de Israel; oferecestes-me vós algumas hóstias e sacrifícios no deserto onde
estivestes quarenta anos? e levastes o tabernáculo ao vosso Moloch, e a imagem dos vossos ídolos, o
astro do vosso Deus, coisas que fizestes por vossas mãos. E, noutro lugar, diz expressamente (Dt 9, 6):
Sabe, pois, que não é pela tua justiça que o Senhor teu Deus te fará possuir esta terra tão excelente,
pois que tu és um povo de cerviz duríssima.

Mas a razão está exposta no mesmo lugar: Porque o Senhor queria cumprir o que tinha prometido com
juramento a teus pais Abraão, Isaac e Jacó. E qual fosse essa promessa o Apóstolo a indica (Gl 3, 16): as
promessas foram ditas a Abraão e a sua semente. Não diz: E às sementes, como de muitos, senão como
de um: E à tua semente, que é Cristo. Portanto, Deus deu ao povo judeu a lei e os outros benefícios
especiais, por causa da promessa que lhes fora feita aos pais, para que deles nascesse Cristo. Pois
convinha que o povo, donde Cristo haveria de nascer, fosse distinguido com uma santificação especial,
conforme aquilo da Escritura (Lv 19, 2): Sede santos, porque eu sou santo. Nem foi pelo mérito de
Abraão, que a promessa lhe foi feita, de Cristo haver de nascer da sua semente, mas por escolha e
vocação gratuita de Deus. Donde o dizer a Escritura (Is 41, 2): Quem suscitou do Oriente o justo e o
chamou para que o seguisse?

Por onde é claro que só por eleição gratuita os Patriarcas receberam a promessa e o povo, deles
oriundo, recebeu a lei, segundo àquilo da Escritura (Dt 4, 36-37): tu ouviste as suas palavras do meio do
jogo, porque amou a teus pais e escolheu depois deles a sua posteridade.

Se porém ainda se objetar a escolha de tal povo, e não outro, para Cristo nascer dele, é boa a resposta
de Agostinho, onde diz: Porque chama a um e não a outro, não o queiras decidir se não queres errar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora a salvação futura estivesse preparada para
todos por Cristo, contudo era necessário nascesse ele de um povo, que por isso teve acima de todos,
prerrogativa, conforme a Escritura (Rm 9, 4): os judeus, dos quais é a adoção de filhos, e a aliança, e a
legislação, cujos pais são os mesmos de quem descende de Cristo segundo a carne.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A acepção de pessoas tem lugar em relação ao que é dado por dívida; no que
porém é conferido por vontade gratuita, não tem lugar. Assim, não faz acepção de pessoas quem por
liberalidade dá do seu a um e não a outro; mas se fosse dispensador dos bens comuns e não os
distribuísse equitativamente, segundo os méritos das pessoas, então haveria acepção delas. Ora, os seus
benefícios salutares Deus os confere ao gênero humano gratuitamente. Por onde, não faz acepção de
pessoas, se os confere a uns de preferência a outros. Por isso, Agostinho diz: Todos os que Deus ensina,
misericordiosamente os ensina; e os que não ensina, pelo seu juízo o faz; o que procede da danação do
gênero humano, por causa do pecado do primeiro pai.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os benefícios da graça são subtraídos ao homem por causa da culpa; mas os
benefícios naturais não o são. Entre os quais estão os ministérios dos anjos; pois a ordem mesma das
naturezas exige, que as ínfimas sejam governadas pelas médias. E também os auxílios materiais, que
Deus confere, não só aos homens, mas também aos brutos, conforme àquilo da Escritura (Sl 35, 7): Tu,
Senhor, salvarás os homens e as bestas.

Art. 5 — Se todos os homens estavam obrigados a observar a lei antiga.


(In Math., cap. XXIII; Ad Rom., cap. II, lect. III; cap. VI, lect. III).

O quinto discute-se assim. — Parece que todos os homens estavam obrigados a observar a lei antiga.

1. — Pois, quem está sujeito ao rei há de necessariamente estar-lhe sujeito à lei. Ora, a lei antiga foi
dada por Deus, que é o rei de toda a terra, como diz a Escritura (Sl 46, 8). Logo, todos os habitantes da
terra estavam obrigados à observância da lei.

2. Demais. — Os judeus não podiam se salvar sem observarem a lei antiga. Pois, diz a Escritura (Dt 27,
26):Maldito o que não permanece firme nas ordenações desta lei, e que as não cumpre efetivamente.
Se portanto, os outros homens podiam salvar-se sem a observância da lei antiga, pior que a deles seria a
condição dos judeus.

3. Demais. — Os gentios eram admitidos ao rito judaico e à observância da lei, conforme a Escritura (Ex
12, 48): Se algum peregrino quiser passar para a vossa terra e celebrar a Páscoa do Senhor, circuncidem-
se primeiro todos os seus varões, e então a celebrará como é devido e será como natural da mesma
terra. Ora, inutilmente foram os estrangeiros admitidos, por ordem divina, à observância da lei, se sem
esta pudessem salvar-se. Logo, ninguém podia salvar-se sem observar a lei.

Mas, em contrário, diz Dionísio, que muitos gentios foram pelos anjos convertidos a Deus. Ora, é certo
que os gentios não observavam a lei. Logo, sem esta observância certos puderam salvar-se.

SOLUÇÃO. — A lei antiga manifestava os preceitos da lei da natureza, acrescentando-lhes certos


preceitos próprios. Por onde, todos estavam obrigados a observar todos os preceitos da lei antiga, que
também o eram da lei natural; não por serem daquela, mas por pertencerem a esta. Mas ninguém, a
não ser o povo judaico, estava obrigado a observar os preceitos que a lei antiga acrescentou. E a razão
disso é que, como já dissemos (a. 4), a lei antiga foi dada ao povo judaico, para obterem uma certa
prerrogativa de santidade, pela reverência a Cristo, que desse povo devia nascer. Ora, tudo o que é
estatuído para a santificação especial de alguém, só a este obriga. Assim os clérigos, ligados pelo divino
ministério, têm certas obrigações, que não têm os leigos. Semelhantemente, os religiosos estão em
virtude da sua profissão, obrigados a certas obras de perfeição, a que não estão os sacerdotes seculares.
Assim, do mesmo modo, o povo judeu tinha certas obrigações especiais, que não tinham os outros
povos. Por isso diz a Escritura (Dt 18, 13): Tu serás perfeito e sem mancha com o Senhor teu Deus. Pelo
que também usavam de uma certa confissão, como se lê na Escritura (Dt 26, 3): Confesso hoje diante do
Senhor teu Deus, etc.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Todos os sujeitos ao rei estão obrigados a observar a lei,
que ele propõe a todos em geral. Mas, se instituir certas disposições a serem observadas pelos seus
servidores particulares, os demais não estão obrigados a observá-las.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Quanto mais o homem se une a Deus tanto mais melhora a sua condição.
Por onde, quanto mais adstrito era ao culto divino o povo judaico, tanto mais sobrepujava os outros
povos em dignidade. Por isso, diz a Escritura (Dt 4, 8): onde há outro povo tão célebre, que tenha
cerimônias e ordenações cheias de justiça e toda uma lei? — E semelhantemente, também a este
respeito são de melhor condição os clérigos, que os leigos e os religiosos, que os padres seculares.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os gentios mais perfeita e seguramente conseguiam a salvação na


observância da lei, do que seguindo só a lei natural; por isso eram admitidos a observá-la. Assim como
também, entre nós, os leigos entram para o estado clerical e os padres seculares, para as ordens
religiosas, embora sem isso possam salvar-se.

Art. 6 — Se a lei antiga foi dada, no tempo conveniente, a Moisés.


(III, q. 70, a. 2, ad 2; IV Sent., dist. I, q. 1, a. 2, qª 4; Ad Galat., cap. III, lect.VII).

O sexto discute-se assim. — Parece que a lei antiga não foi dada, no tempo conveniente, a Moisés.

1. — Pois, a lei antiga dispunha para a salvação, que haveria de vir de Cristo, como se disse (a. 2, a. 3).
Ora, logo depois do pecado, o homem precisava do remédio dessa salvação. Logo, a lei antiga devia ter
sido dada imediatamente depois do pecado.

2. Demais. — A lei antiga foi dada para a santificação daqueles de quem Cristo devia nascer. Ora, a
Abraão começou a ser feita a promessa da semente, que é Cristo, como está na Escritura (Gl 3, 16).
Logo, a lei devia ter sido dada imediatamente, no tempo de Abraão.

3. Demais. — Assim como Cristo não veio a nascer dos outros descendentes de Noé, mas, de Abraão, a
quem a promessa foi feita, assim também não nasceu dos outros filhos de Abraão, senão de David, a
quem, conforme a Escritura, a promessa foi renovada (2 Sm 23, 1): Disse o varão a favor do qual se
decretou sobre o Cristo do Deus de Jacó. Logo, a lei antiga devia ter sido dada depois de David, como o
foi depois de Abraão.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 3, 19): A lei foi posta por causa das transgressões, até que viesse a
semente, a quem havia feito a promessa, ordenada por anjos na mão de um mediador, i. é, dada orde-
nadamente, como diz a Glosa. Logo, foi conveniente que a lei antiga fosse outorgada naquela época.

SOLUÇÃO. — Foi muito conveniente que a lei antiga tivesse sido dada no tempo de Moisés. E podemos
assinalar disto dupla razão, fundada em ser toda lei imposta a dois gêneros de homens. — Ora, é
imposta a homens duros e soberbos, para coibi-los e dominá-los. — Ora, é imposta também aos bons
que, por ela instruídos, são ajudados a cumprir aquilo que visam.
Por onde, foi conveniente ter sido dada, no tempo em questão, a lei antiga, para conter a soberba dos
homens. Pois, de duas coisas o homem se ensoberbecia: da ciência e do poder. — Da ciência, como se a
razão natural lhe pudesse bastar para a salvação. E então, para lhe vencer a soberba, nesse ponto foi
entregue ao regime da sua razão, sem o adminículo da lei escrita. E assim, pôde aprender
experimentalmente, que sofria deficiência de razão, pois caíram os homens, no tempo de Abraão, até na
idolatria e em vícios torpíssimos. Por onde, depois desse tempo, foi necessário dar-lhe a lei escrita, para
remédio da sua ignorância; pois, pela lei conhecemos o pecado, como diz o Apóstolo (Rm 3, 20). — Mas,
depois de ter sido o homem instruído pela lei, a sua soberba foi vencida pela fraqueza, por não poder
cumprir a lei conhecida. Por isso, o Apóstolo conclui (Rm 8, 3-4), o que era impossível à lei, em razão de
que se achava debilitada pela carne, enviou Deus a seu filho, para que a justificação da lei se cumprisse
em nós.

Por outro lado, para os bons a lei foi dada como auxílio. E isso então era sobretudo necessário, quando a
lei natural começava a obscurecer-se pela freqüência dos pecados. Assim, era necessário fosse tal
auxílio dado numa certa ordem, para, pelo imperfeito, serem levados ao perfeito. Por onde, entre a lei
da natureza e a da graça foi necessário ser dada a lei antiga.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Logo depois do pecado do primeiro homem, não era
oportuno outorgar a lei antiga. Quer porque o homem, confiado na sua razão, ainda não se reconhecia
necessitado dela; quer por não estar o ditame da lei da natureza ainda obscurecido pelo costume de
pecar.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei não deve ser dada senão ao povo, pois é um preceito comum, como já
dissemos (q. 90, a. 2, a. 3). Por isso, no tempo de Abraão, foram impostos certos preceitos familiares, e
quase domésticos, de Deus aos homens. Mas depois, multiplicada a sua posteridade, de modo a
constituir um povo; e libertada da escravidão, a lei podia ser-lhe convenientemente outorgada. Pois, os
escravos não fazem parte do povo, ou da cidade, a quem a lei deve ser aplicada, como diz o Filósofo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como a lei devia ser dada a um povo, receberam-no, não só aqueles de que
Cristo nasceu, mas, todo o povo foi marcado com o sinal da circuncisão, sinal da promessa feita a
Abraão, e em que ele acreditou, como diz o Apóstolo. Logo, mesmo antes de David, foi necessário da a
lei a um tal povo já constituído.
Questão 99: Dos preceitos da lei antiga.
Em seguida devemos tratar dos preceitos da lei antiga. E primeiro, da distinção deles. Segundo, de cada
um dos gêneros distintos.

Na primeira questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se a lei antiga continha só um preceito.


O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga não continha senão um preceito.

1. — Pois, a lei não é senão um preceito, como já se disse (q. 90, a. 2, a. 3). Ora, a lei antiga é uma só.
Logo, não contém senão um preceito.

2. Demais. — O Apóstolo diz (Rm 13, 9): se há algum outro mandamento, todos eles vêm a resumir-se
nesta palavra: Amarás a teu próximo como a ti mesmo. Ora, este é um só mandamento. Logo, a lei
contém só um mandamento.

3. Demais. — A Escritura diz (Mt 7, 12): tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o
também vós a eles; porque esta é a lei e os projetas. Ora, toda a lei antiga está contida na lei e nos
profetas. Logo, ela na tem senão um preceito.

Mas, em contrário, o Apóstolo diz (Ef 2, 15): Abolindo com os seus decretos a lei dos preceitos;
referindo-se à lei antiga, como é claro pela Glosa a esse lugar. Logo, a lei antiga continha em si muitos
mandamentos.

SOLUÇÃO. — O preceito da lei, sendo obrigatório, tem por objeto aquilo que deve ser feito. Ora, por
força de um fim é que alguma coisa deve ser feita. Por onde é manifesto, que da essência de um
preceito é ordenar-se para um fim, isto é, o preceituado deve ser necessário ou conveniente a um fim.
Ora, a este podem muitas coisas ser necessárias ou convenientes. E assim sendo, podemos, para coisas
diversas, dar preceito diversos, enquanto ordenados para um mesmo fim. Por onde, devemos concluir
que todos os preceitos da lei antiga constituem um só preceito por ser ordenarem a um mesmo fim. São
porém muitos conforme a diversidade das coisas que se ordenam para esse fim.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz-se que a lei antiga é una por ordenar-se a um fim
único; e contudo, contêm diversos preceitos, relativos à distinção das coisas ordenadas para esse fim.
Assim como a arte da construção é uma pela unidade de fim, por visar à edificação da casa; e contudo,
contém preceitos diversos, conforme a diversidade dos atos para esse fim ordenados.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Apóstolo (1 Tm 1, 5), o fim do preceito é a caridade. Pois, toda a
lei visa constituir a amizade dos homens entre si, ou deles para com Deus. Por isso, toda lei está
completa neste só mandamento — Amarás a teu próximo como a ti mesmo — que é como o fim de
todos os mandamentos. Pois, no amor do próximo também se inclui o de Deus, quando ele é amado por
amor de Deus. Por isso, o Apóstolo pôs este único preceito, pelos dois, referentes ao amor de Deus e do
próximo, dos quais diz o Senhor (Mt 22, 40): destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Aristóteles, a amizade para com outrem vem da nossa para
conosco mesmo, porque procedemos para com outrem como procedem para conosco. Por onde, o dito
— tudo o que vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também vós a eles — deve ser entendido
como regra de amor do próximo, implicitamente contida naquele outro lugar: amarás a teu próximo
como a ti mesmo. E assim, é uma explicação deste mandamento.
Art. 2 — Se a lei antiga continha preceitos morais.
(Infra, a. 4; In Matth., cap. XXIII).

O segundo discute-se assim. — Parece que a lei antiga não continha preceitos morais.

1. — Pois, a lei antiga distingue-se da lei natural, como já se estabeleceu (q. 91, a. 4, a. 5; q. 98, a. 5).
Ora, os preceitos morais pertencem à lei da natureza. Logo, não pertencem à lei antiga.

2. Demais. — A lei divina devia vir em socorro do homem quando lhe falhasse a razão; como se dá
claramente com as coisas da fé, supra-racionais. Ora, para se observarem o preceito moral basta-nos a
razão. Logo, eles não pertencem à lei antiga, que é uma lei divina.

3. Demais. — A lei antiga é considerada como a letra que mata, conforme a Escritura (2 Cor 3, 6). Ora, os
preceitos morais não matam, mas vivificam, segundo a Escritura (Sl 118, 93): Nunca jamais me
esquecerei das tuas justificações, porque nelas me vivificaste. Logo, os preceitos morais não pertencem
à lei antiga.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sr 17, 9): acrescentou-lhes a disciplina, e deu-lhes em herança a lei da
vida. Ora, a disciplina diz respeito aos costumes, conforme diz a Glosa ao lugar, a disciplina consiste na
aquisição de bons costumes, vencendo dificuldades. Logo, a lei dada por Deus continha preceitos
morais.

SOLUÇÃO. — A lei antiga continha certos preceitos morais, como está claro na Escritura (Ex 20, 13-
15): Não matarás, não furtarás. E isto, racionalmente. Pois, assim como a intenção principal da lei
humana é procurar a amizade dos homens entre si, assim a da lei divina é constituir principalmente a
amizade entre o homem e Deus. Ora, como a semelhança é a razão do amor, conforme aquilo da
Escritura — Todo animal ama ao seu semelhante — é impossível haver amizade entre o homem e Deus,
que é ótimo, sem o homem se tornar bom. Por onde, diz a Escritura (Lv 19, 2; 11, 45): Sede Santos,
porque eu sou santo. Ora, a bondade do homem é a virtude, que torna bom quem a tem. Logo, era
necessário fossem dados os preceitos da lei antiga, mesmo relativos aos atos das virtudes. E estes são os
preceitos morais da lei.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei antiga distingue-se da lei natural, não como
absolutamente diferente dela, mas por lhe fazer certos acréscimos. Pois, assim como a graça pressupõe
a natureza, assim é necessário pressuponha a lei divina à natural.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Era conveniente que a lei divina providenciasse, não só quanto ao que a
razão humana não pode alcançar, mas também em relação ao que ela pode errar. Ora, em relação aos
preceitos morais, no atinente aos preceitos generalíssimos da lei natural, a razão humana não podia
errar completamente; mas o costume de pecar a obscurecia quanto às ações particulares.
Relativamente porém aos outros preceitos morais, que são quase conclusões deduzidas dos princípios
gerais da lei da natureza, a razão de muitos aberrava, de modo a julgar lícitas certas coisas em si
mesmas más. Por isso, era necessário, contra uma e outra deficiência, ser o homem socorrido pela
autoridade da lei divina. Assim também, entre as verdades que devemos crer, são-nos propostas, não só
aquelas que a razão não pode alcançar, como a Trindade de Deus; mas também, as que o pode a razão
reta, como a unidade divina. E isso para obviar o erro da razão humana, em que muitos caíam.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como o prova Agostinho, também se diz, ocasionalmente, que a letra da lei,
em relação aos preceitos morais, mata, quando ordena o bem, sem conceder o auxílio da graça para
realizá-lo.
Art. 3 — Se a lei antiga continha preceitos cerimoniais, além dos morais.
(Infra, a. 4, 5; q. 101, a. 1; q. 103, a. 3. q. 104, a. 1; IIª-IIae, q. 122, a. 1, ad 2; IV Sent., dist. I, q. 1, exposit.
Litt.; Quodl. II, q. 4, a. 3; In Matth., cap. XXIII).

Parece que a lei antiga não continha preceitos cerimoniais, além dos morais.

1. — Pois, toda lei é-nos imposta para ser a regra diretiva dos nossos atos humanos. Ora, os atos
humanos chamam-se morais, como já se disse (q. 1, a. 3). Logo, parece que a lei antiga dada aos homens
não devia conter senão preceitos morais.

2. Demais. — Os preceitos chamados cerimoniais pertencem ao culto divino. Ora, o culto divino é um
ato de virtude, i. é, de religião que, como Túlio diz, à divina natureza rende um culto e cerimônia. Ora,
visando os preceitos morais aos atos das virtudes, como já se disse (a. 2), parece que os preceitos
cerimoniais não se devem distinguir dos morais.

3. Demais. — Preceitos cerimoniais são os de significação figurativa. Ora, como diz Agostinho, entre os
homens as palavras são principalmente significativas. Logo, nenhuma necessidade havia de a lei conter
preceitos cerimoniais sobre certos atos figurativos.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 4, 13-14): As dez palavras que escreveu em duas tábuas de pedra,
mandou-me naquele tempo que vos ensinasse as cerimônias e as ordenações que vós devíeis guardar.
Ora, os dez preceitos da lei são morais. Logo, além dos preceitos morais, há outros que são cerimoniais.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 2), a lei divina foi principalmente instituída a fim de ordenar os
homens para Deus; ao passo que a lei humana, a fim de ordená-los principalmente uns para os outros.
Por isso, as leis humanas não cuidaram em instituir nada sobre o culto divino, senão em ordem ao bem
comum humano. E também por isso instituíram muitas disposições, relativas às coisas divinas, por lhes
parecerem convenientes a informar os costumes humanos, como o demonstra o rito dos gentios. A lei
divina, inversamente, ordenou os homens uns para os outros, enquanto isso convinha com a ordenação
para Deus, que ela principalmente visava. Ora, o homem se ordena para Deus, não só pelos atos
interiores do espírito, — crer, esperar e amar — mas também por certas obras exteriores, pelas quais
confessa a sua dependência, de Deus. E essas obras se consideram como pertencentes ao culto de Deus.
E esse culto se chama cerimônia, quase munia, i. é, dons de Ceres, chamada a deusa dos frutos, como
certos dizem; porque, dos frutos se fizeram as primeiras oblações a Deus. Ou, como refere Valério
Máximo, o nome de cerimônia foi introduzido para significar o culto divino, entre os latinos, por causa
de um lugar fortificado perto de Roma chamado Caere. Porque, quando Roma foi tomada pelos
Gauleses, para ali foram transferidos os sacrifícios dos Romanos, reverentissimamente feitos. Por onde,
os preceitos da lei, pertencentes ao culto de Deus, chama-se especialmente cerimoniais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os atos humanos entendem também com o culto divino.
Por isso, a lei antiga, dada aos homens, contém preceitos referentes a eles.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como já se disse (q. 91, a. 3), os preceitos da lei da natureza são comuns e
precisam de determinação. Ora, determinam-se pela lei humana e pela divina. E assim como as
determinações mesmas, feitas pela lei humana, não se consideram como de lei natural, mas de direito
positivo; assim também, essas determinações dos preceitos da lei da natureza, feitas pela lei divina,
distinguem-se dos preceitos morais, pertencentes à lei da natureza. Ora, cultuar a Deus, sendo ato de
virtude, pertence ao preceito moral; mas, a determinação desse preceito, i. é, que deva ser cultuado
com tais vítimas e tais dons, pertence aos preceitos cerimoniais. Por onde, os preceitos cerimoniais
distinguem-se dos preceitos morais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz Dionísio, as coisas divinas não podem se manifestar aos homens
senão sob certas semelhanças sensíveis. E estas semelhanças movem mais o ânimo, quando não são
expressas só pela palavra, mas também falam aos sentidos. Por isso, a Divina Escritura manifesta as
coisas divinas, não só por semelhanças expressas verbalmente, como o mostram as locuções
metafóricas; mas também por semelhanças das coisas propostas à vista, o que pertence aos preceitos
cerimoniais.

Art. 4 — Se, além dos preceitos morais e cerimoniais, há preceitos


judiciais, na lei antiga.
(Art. Seq.: q. 103, a. 1; q. 104, a. 1; IIª-IIae, q. 87, a. 1; q. 122, a. 1, as 2; Quodl. II, q. 4, a. 3; In Math., cap.
XXIII).

O quarto discute-se assim. — Parece que, além dos preceitos morais e cerimoniais, não há nenhum
preceito judicial, na lei antiga.

1. — Pois, diz Agostinho, que, na lei antiga, há preceitos para dirigir e para significar a vida. Ora, os
preceitos para dirigir a vida são os morais; os para significá-la são os cerimoniais. Logo, além desses dois
gêneros de preceitos, não se podem descobrir, na lei antiga, preceitos judiciais.

2. Demais. — Aquilo da Escritura — Dos teus juízos não me tenho apartado — diz a Glosa: Isto é,
daqueles de que fizeste a regra de viver. Ora, a regra de viver pertence aos preceitos morais. Logo, os
preceitos judiciais não se devem distinguir dos morais.

3. Demais. — O juízo é um ato de justiça, segundo a Escritura (Sl 93, 15): Até que a justiça venha a fazer
juízo. Ora, o ato de justiça, como o das demais virtudes morais, pertence aos preceitos morais. Logo,
estes incluem em si os judiciais e, portanto, não devem se distinguir deles.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 6, 1): Estes são os preceitos e as cerimônias e as ordenações. Ora,
por preceitos se entendem, antonomasticamente, os morais. Logo, além dos preceitos morais e dos
cerimoniais, há também os judiciais.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 2, a. 3), à lei divina pertence ordenar os homens uns para os outros e
para Deus. Ora, ambas essas coisas pertencem, em comum, ao ditame da lei da natureza, à qual se
referem os preceitos morais; mas devem ser determinadas pela lei divina ou humana, por serem os
princípios evidentes comuns tanto à especulação como à ação. Por onde, assim como a determinação
do preceito comum sobre o culto divino se faz pelos preceitos cerimônias, assim a determinação do
preceito comum relativo à observação da justiça entre os homens é determinada pelos preceitos
judiciais.

E a esta luz, é necessário admitirem-se três espécies de preceitos da lei antiga: os morais, relativos ao
ditame da lei natural; os cerimoniais, que são as determinações do culto divino; e os judiciais, que são as
determinações da justiça a ser observada entre os homens. Por onde, depois de ter dito o Apóstolo, que
a lei é santa, acrescenta: o mandamento é santo, e justo, e bom. Justo, quanto aos preceitos judiciais;
santo, quanto aos cerimoniais, pois santo se chama ao que é consagrado a Deus; e bom, i. é, honesto,
quanto aos preceitos morais.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tanto os preceitos morais como os judiciais visam à
direção da vida humana. Por onde, uns e outros estão contidos numa das partes expostas por
Agostinho, a saber, nos preceitos para dirigir a vida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Juízo significa execução da justiça, que se faz pela aplicação da razão a certos
casos particulares determinados. Por onde, os preceitos judiciais comunicam, por um lado, com os
morais, enquanto derivados da razão; e por outro, com os cerimoniais, enquanto certas determinações
dos preceitos comuns. Por isso, às vezes, os preceitos judiciais e os morais estão compreendidos, pela
Escritura, nos juízos: Ouve, ó Israel, as cerimônias e ordenações. Outras vezes, os judiciais e os
cerimoniais: Executareis as minhas ordenações e observareis os meus preceitos, onde, preceitos são os
morais; e ordenações, os judiciais e cerimoniais. RESPOSTA À TERCEIRA. — O ato de justiça pertence,
em geral, aos preceitos morais; mas a sua determinação em especial, aos preceitos judiciais.

Art. 5 — Se a lei antiga contém outros preceitos, além dos morais, dos
judiciais e dos cerimoniais.
(Art. Praeced.; Ad Galad., cap. V., lect III; Ad Hebr., cap. VII, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que a lei antiga contém outros preceitos, além dos morais, dos
judiciais e dos cerimoniais.

1. — Pois, os judiciais tem por objeto os atos de justiça, de homem para homem; ao passo que os
cerimoniais, o ato de religião, pelo qual se cultua a Deus. Ora, além destes, há muitas outras virtudes,
como a temperança, a fortaleza, a liberalidade e ainda outras, conforme já se disse (q. 60, a. 5). Logo,
além dos preceitos referidos, a lei antiga havia de conter muitos outros.

2. Demais. — A Escritura diz (Dt 11, 1): Ama ao Senhor teu Deus, e guarda em todo o tempo os seus
preceitos e cerimônias, os seus juízos e mandamentos. Ora, preceitos são os morais, como se disse (a.
4). Logo, além dos preceitos morais, judiciais e cerimoniais, a lei ainda contém outros chamados
mandamentos.

3. Demais. — A Escritura diz (Dt 6, 17): Guarda os preceitos dos Senhor teu Deus, e as ordenações e as
cerimônias, que te prescreveu. Logo, além de todos os preceitos, ainda a lei contém as ordenações.

4. Demais. — Diz a Escritura (Sl 118, 93): Nunca jamais me esquecerei das tuas justificações; e a Glosa: i.
é, da lei. Logo, os preceitos da lei antiga são, não só morais, cerimoniais e judiciais, mas também,
justificações.

Mas, em contrário, a Escritura (Dt 6, 1): Estes são os preceitos e as cerimônias e as ordenações, que o
Senhor Deus vos mandou. E estas palavras se dizem no princípio da lei. Logo, todos os preceitos dela
estão compreendidos nestes.

SOLUÇÃO. — A lei abrange umas disposições, que são os preceitos; e outras, ordenadas ao
cumprimento deles. Ora, os preceitos se referem aos atos, que devemos praticar. E, ao cumprimento
deles o homem é levado por dois móveis: a autoridade de quem os fez; e a utilidade da sua observância,
que está na consecução de algum bem útil, deleitável ou honesto, ou na fuga do mal contrário. — Pois,
era necessário que a lei antiga estabelecesse certas disposições indicativas da autoridade de Deus
ordenador, como as seguintes (Dt 6, 4): Ouve, ó Israel, o Senhor teu Deus é o Deus único; (Gn 1, 1) No
princípio criou Deus o céu e a terra. E estas se chamam ordenações. — Também era preciso que
estabelecesse certos prêmios para os que a observassem, e penas, para os que a transgredissem, como
claramente o fez (Dt 28): Se tu ouvires a voz do Senhor teu Deus, ele te exaltará sobre todas as noções,
etc. E estas se chamam justificações, por distribuir Deus, justamente, as punições ou os prêmios.

Por outro lado, os atos que devemos praticar não caem sob a alçada do preceito, senão enquanto tem
natureza de obrigação devida. Ora, há uma dupla obrigação: uma, fundada na regra da razão; outra, na
regra da lei determinante; assim também o Filósofo distingue duas espécies de justiça: a moral e a legal.
Ora, a obrigação moral é dupla. Pois, a razão dita à prática de certos atos ou como necessários, sem o
que não pode subsistir a ordem da virtude, ou como úteis, para que melhor se conserve essa ordem. —
E a esta luz, a lei (antiga) preceitua ou proíbe precisamente certos atos morais, como: não matarás, não
furtarás. E estes se chamam propriamente preceitos. — Outros atos, porém são preceituados ou
proibidos, não como obrigações precisas, mas para um fim melhor. E estes podem se chamar
mandamentos, por implicarem uma certa resolução e persuasão, como (Ex 22, 26): Se receberes do teu
próximo em penhor a sua capa, restitui-lha antes do sol posto; e outros semelhantes. Por onde, diz
Jerônimo: nos preceitos está a justiça; nos mandamentos, porém, a caridade. — Quanto à obrigação
fundada na determinação da lei, ela pertence, na ordem das coisas humanas, aos preceitos judiciais; e
na ordem das coisas divinas, aos cerimoniais.

Embora também os preceitos atinentes à pena ou aos prêmios possam chamar-se ordenações,
enquanto protestações da divina justiça. Mas todos os preceitos da lei podem se chamar justificações,
enquanto execuções da justiça legal. — De outro modo, podem também os mandamentos se distinguir
dos preceitos, em que preceitos se chamem os ordenados diretamente por Deus; e mandamentos,
como o próprio nome parece significar, o que mandou por meio de outros.

Disso tudo resulta, que todos os preceitos da lei estão contidos nos morais, cerimoniais e judiciais; ao
passo que as outras disposições não tem natureza de preceitos; mas se ordenam à observância deles,
como se disse.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Só a justiça, entre as outras virtudes, implica a noção de
obrigação devida. Por onde, os preceitos morais são determináveis pela lei, na medida em que
pertencem à justiça, de que faz parte a religião, como diz Túlio. Portanto, o justo legal não pode ser algo
diferente dos preceitos cerimoniais e judiciais.

ÀS OUTRAS OBJEÇÕES AS RESPOSTAS SÃO CLARAS pelo que acaba de ser dito.
Questão 100: Dos preceitos morais da lei antiga.
Em seguida devemos tratar de cada um dos gêneros dos preceitos da lei antiga. E primeiro, dos
preceitos morais. Segundo, dos cerimoniais. Terceiro, dos judiciais.

Na primeira questão discutem-se doze artigos:

Art. 1 — Se todos os preceitos morais pertencem à lei da natureza.


(Infra, q. 104, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que nem todos os preceitos morais pertencem à lei da
natureza.

1. — Pois, diz a Escritura (Sr 17, 9): acrescentou-lhes a disciplina, e deu-lhes em herança a lei da vida.
Ora, a disciplina se divide, por oposição, da lei da natureza; porque a lei natural não se aprende, mas se
tem por instinto natural. Logo, nem todos os preceitos morais pertencem à lei da natureza.

2. Demais. — A lei divina é mais perfeita que a humana. Ora, esta faz, aos preceitos da lei da natureza,
certos acréscimos relativos aos bons costumes. E isso é claro por ser a lei da natureza a mesma para
todos, ao passo que essas instituições morais variam com os diversos povos. Logo, com muito maior
razão, a lei divina devia acrescentar à lei da natureza certos preceitos relativos aos bons costumes.

3. Demais. — Assim como a razão natural produz bons costumes, assim também a fé; donde o dizer a
Escritura (Gl 5, 6): a fé obra por caridade. Ora, a fé não está contida na lei da natureza, porque as suas
verdades são superiores à razão natural. Logo, nem todos os preceitos morais da lei divina pertencem à
lei da natureza.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Rm 2, 14): os gentios, que não têm lei, fazem naturalmente as coisas
que são da lei. O que se deve entender como referente ao que respeita aos bons costumes. Logo, todos
os preceitos morais da lei pertencem à lei da natureza.

SOLUÇÃO. — Os preceitos morais são distintos dos cerimoniais e dos judiciais. Pois, os morais respeitam
ao que, em si mesmo, pertence aos bons costumes. Ora, como os costumes humanos se consideram em
relação à razão, que é o princípio próprio dos atos humanos, chamam-se bons os costumes congruentes
com a razão, e maus, os que dela se afastam. Ora, assim como todo juízo da razão especulativa procede
do conhecimento natural dos primeiros princípios, assim também todo juízo da razão prática procede de
certos princípios naturalmente conhecidos, conforme já dissemos (q. 94, a. 2, a. 4). Donde podemos
proceder diversamente para julgar coisas diversas. Pois, há certos atos humanos de tal modo explícitos,
que, com pouca reflexão, podem logo ser aprovados ou reprovados, tendo-se em vista esses princípios
comuns e primeiros. Outros há porém, para cuja apreciação é preciso refletir aturadamente nas diversas
circunstâncias, que podem ser consideradas diligentemente só pelo homem prudente, e não por
qualquer pessoa. Assim como, considerar as conclusões particulares das ciências não pertence a todos,
mas só aos filósofos. Outros há enfim que, para julgá-las, o homem precisa ser ajudado pela instrução
divina, como é o caso do que pertence à fé.

Por onde é claro que, dizendo respeito os preceitos morais aos bons costumes e estes sendo os que
estão de acordo com a razão; e todo juízo da razão humana derivando, de certo modo, da razão natural,
necessariamente todos os preceitos morais hão de pertencer à lei da natureza, mas diversamente. —
Assim, há certos de que a razão natural de qualquer homem pode logo julgar, que devem ser
obedecidos. Tais são: honrarás a teu pai e a tua mãe; e não matarás, não furtarás. E estes pertencem
absolutamente à lei da natureza. — Há porém outros que são tidos, pelos homens prudentes, e em
virtude de uma consideração mais subtil da razão, como devendo ser observados. E estes pertencem à
lei natural, mas precisam de uma certa doutrina pela qual os prudentes ensinem os que não o são. Tal
aquilo da Escritura: Levanta-te diante dos que têm a cabeça cheia de cãs e honra a pessoa do velho; e
outros semelhantes. — Há outros enfim, para julgar dos quais a razão humana precisa da instrução
divina, que nos ensina sobre as coisas divinas. Tais aqueles:não farás para ti imagem de escultura, nem
figura alguma; não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão.

Donde se deduzem claras AS RESPOSTAS ÀS OBJEÇÕES.

Art. 2 — Se os preceitos morais da lei abrangem todos os atos virtuosos.


(IIª-IIae, q. CXL., a. 2).

O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos morais da lei não abrangem todos os atos
virtuosos.

1. — Pois, à observância dos preceitos da lei antiga se chama justificação, conforme aquilo da Escritura
(Sl 118, 8): observarei as tuas justificações. Ora, a justificação é a execução da justiça. Logo, os preceitos
morais não abrangem senão os atos de justiça.

2. Demais. — O que cai sob a alçada de um preceito tem natureza de obrigação. Ora, a noção de
obrigação não inclui as demais virtudes, senão só a justiça, cujo ato próprio é dar a cada um o que lhe é
devido. Logo, os preceitos da lei moral não abrangem os atos das outras virtudes, mas só os da justiça.

3. Demais. — Toda lei é estabelecida para o bem comum, como diz Isidoro. Ora, dentre as virtudes, só a
justiça visa o bem comum, conforme diz o Filósofo. Logo, os preceitos morais abrangem só os atos de
justiça.

Mas, em contrário, diz Ambrósio: o pecado é a transgressão da lei divina e a desobediência aos
mandamentos celestes. Ora, os pecados contrariam todos os atos virtuosos. Logo, a lei divina deve
ordenar sobre os atos de todas as virtudes.

SOLUÇÃO. — Ordenando-se os preceitos da lei para o bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2), eles
hão de forçosamente diversificar-se conforme as diversas maneiras de ser da comunidade. Por isso, o
Filósofo ensina, que umas serão as lei estabelecidas para a cidade governada por um rei, e outras as
estabelecidas para a que é governada pelo povo ou pelos mais poderosos, dos habitantes dela. Ora, um
é o feitio da comunidade, para que se ordena a lei humana, e outro, para que se ordena a lei divina. —
Pois, a lei humana se ordena à comunidade civil, a constituída pelos homens entre si; e estes se
ordenam uns para os outros pelos seus atos exteriores, com que se entre comunicam. E essa
comunicação pertence essencialmente à justiça, que é propriamente diretiva da comunidade humana.
Por onde, a lei humana só propõe preceitos referentes aos atos de justiça; e se ordenar outros atos de
virtude, não será senão enquanto se revestem da essência da justiça, como está claro no Filósofo.

A comunidade porém, a que se ordena a lei divina, é a dos homens enquanto tendem para Deus, na vida
presente ou na futura. Por isso, essa lei propõe preceitos sobre todos os atos pelos quais os homens
bem se ordenam à comunicação com Deus. Ora, o homem se une a Deus pela razão, ou espírito, que
reproduz a imagem d’Êle. Por onde, a lei divina propõe preceitos sobre todos os atos pelos quais bem
ordenada fica a razão do homem. Ora, isto se dá pelos atos de todas as virtudes. Assim, as virtudes
intelectuais ordenam com acerto os atos da razão em si mesmos; as morais, por seu lado, impõem
ordem aos atos da razão relativamente às paixões internas e as obras externas. Por onde é manifesto,
que a lei divina propõe convenientemente preceitos sobre os atos de todas as virtudes. De modo porém
que certos atos, sem os quais a ordem da virtude, que é a da razão, não pode ser observada, são
impostos pela obrigação de preceitos; e outros, relativos à existência completa da virtude perfeita,
pertencem à advertência do conselho.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O cumprir os mandamentos da lei, mesmo os que


pertencem aos atos das outras virtudes, implica a idéia de justificação. Enquanto é justo o homem
obedecer a Deus; ou ainda enquanto é justo que todo o humano esteja sujeito à razão.

DONDE A RESPOSTA À SEGUNDA. — A justiça propriamente dita implica a dívida de um homem para
com outro; ao passo que todas as outras virtudes implicam o débito das faculdades inferiores para com
as superiores. E, conforme a natureza desse débito, o Filósofo distingue uma certa justiça metafórica.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A resposta se deduz clara do que dissemos sobre as diversas comunidades.

Art. 3 — Se todos os preceitos morais da lei antiga reduzem-se aos dez


preceitos do decálogo.
(Infra. A. 2; IIª-IIae, q. 122, a. 6, ad. 2; III Sent., dist. XXXVII, a. 3; De Malo, q. 14, a. 2, ad 14; Quodl. VII, q.
7, a. 1, ad 8).

O terceiro discute-se assim. — Parece que nem todos os preceitos morais da lei antiga se reduzem aos
dez preceitos do decálogo.

1. — Pois, os primeiros e principais preceitos da lei são: Amarás o Senhor teu Deus e amarás o teu
próximo, como está na Escritura (Mt 22, 37-39). Ora, estes dois preceitos não fazem parte dos do
decálogo. Logo, nem todos os preceitos morais estão contidos nos do decálogo.

2. Demais. — Os preceitos morais não se reduzem aos cerimoniais, mas antes, inversamente. Ora, entre
os preceitos do decálogo, um é cerimonial, a saber: Lembra-te de santificar o dia de sábado. Logo, os
preceitos morais não se reduzem a todos os do decálogo.

3. Demais. — Os preceitos morais regulam todos os atos da virtude. Ora, os do decálogo abrangem só os
atos de justiça, como claramente verá quem examinar cada um deles. Logo, os preceitos do decálogo
não contêm todos os preceitos morais.

Mas, em contrário, aquilo da Escritura. — Bem aventurados sois quando vos injuriarem — diz a Glosa,
que Moisés, depois de ter proposto os dez preceitos, explicou-os por partes. Logo, todos os preceitos da
lei fazem parte dos preceitos do decálogo.

SOLUÇÃO. — Os preceitos do decálogo diferem dos outros preceitos da lei, por, como está dito, terem
sido propostos por Deus mesmo ao povo; ao passo que os outros Ele os propôs por meio de Moisés. Por
onde, pertencem aos preceitos do decálogo aqueles cujo conhecimento o homem tem, por si mesmo,
de Deus. Ora, estes são os que, com pouca reflexão, podem ser logo conhecidos, como o auxílio dos
primeiros princípios comuns; e os que também se tornam logo conhecidos pela fé divinamente infusa.
Logo, entre os preceitos do decálogo não se contam dois gêneros de preceitos. Os primeiros e comuns,
como — a ninguém se deve fazer mal, e outros semelhantes — que não precisam de nenhuma
transmissão, mas, quase evidentes, estão escritos na razão natural. Nem os que a perquirição diligente
dos prudentes considera como pertencentes à razão; pois, esses Deus os transmitiu ao povo, mediante
o ensinamento dos prudentes. Ora, ambos estes gêneros de preceitos estão contidos nos do decálogo,
mas diversamente. Os primeiros e comuns neles estão contidos como os princípios, nas conclusões
próximas; e os conhecidos por meio dos prudentes, inversamente, como as conclusões, nos princípios.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os dois preceitos referidos são preceitos primeiros e
comuns da lei da natureza, quase evidentes à razão humana, pela natureza ou pela fé. Por onde, todos
os preceitos do decálogo se referem a esses dois, como conclusões, aos princípios comuns.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O preceito sobre a observância do sábado é, de certo modo, moral; pois
preceitua que o homem, em algum tempo, se entregue às coisas de Deus, conforme aquilo da Escritura
(Sl 45, 11):Cessai e vede que eu sou o Deus. E assim se contam entre os preceitos do decálogo. Não
porém quanto à determinação do tempo; porque, por aí, é cerimonial.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A noção de dívida é, nas outras virtudes, mais lata que na justiça. E assim, os
preceitos referentes aos atos das outras virtudes não são conhecidos do povo como os preceitos sobre
os atos de justiça. E por isso os atos de justiça caem especialmente sob a alçada dos preceitos do
decálogo, que são os primeiros elementos da lei.

Art. 4 — Se os preceitos do decálogo se distinguem convenientemente.


O quarto discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo se distinguem
inconvenientemente.

1. — Pois, a latria é uma virtude distinta da fé. Ora, os preceitos são dados para regular os atos de
virtude. E o que se diz no princípio do decálogo — Não terás deuses estrangeiros diante de mim —
pertence à fé; o que se acrescenta — não farás para ti imagem de escultura, etc. — à latria. Logo, há
duas sortes de preceitos, e não uma só, como diz Agostinho.

2. Demais. — Os preceitos afirmativos da lei, como — Honrarás a teu pai e a tua mãe — distinguem-se
dos negativos, como — Não matarás. Ora, o preceito — Eu sou o Senhor teu Deus — é afirmativo; e o
que se lhe acrescenta — Não terás deuses estrangeiros diante de ti — é negativo. Logo, há duas
espécies de preceitos, e não uma só, como quer Agostinho.

3. Demais. — O Apóstolo diz (Rm 7, 7): eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissera — não
cobiçaras. E, por aí se vê que o preceito — não cobiçarás — é um só. Logo, não devia dividir-se em dois.

Mas, em contrário, é a autoridade de Agostinho, ensinando que três são os preceitos relativos a Deus, e
sete, ao próximo.

SOLUÇÃO. — Os preceitos do decálogo diversos os distinguem diversamente. Assim, Hesíquio,


comentando o lugar — dez mulheres cozam pães num só forno — diz que o preceito sobre a observação
do sábado não é um dos dez, porque não deve ser observado literalmente, em todo tempo. Distingue
contudo quatro preceitos relativos a Deus. O primeiro é — Eu sou o Senhor teu Deus — o segundo —
Não terás deuses estrangeiros diante de mim; e Jerônimo também distingue estes dois, comentando
Oseas (Os 10, 10), por causa das suas duas iniqüidades; o terceiro preceito diz que é: não farás para ti
imagem de escultura; o quarto, enfim: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão. Os relativos ao
próximo diz serem seis. O primeiro: Honrarás a teu pai e a tua mãe; o segundo: Não matarás; o
terceiro: Não fornicarás; o quarto: não furtarás; o quinto:não dirás falso testemunho; o sexto: não
cobiçarás.
Mas, é inadmissível, que o preceito sobre a observação do sábado seja posto entre os do decálogo, se
de nenhum modo faz parte deles. Em segundo lugar, o dito — Ninguém pode servir a dois Senhores —
parece ter a mesma razão e cair sob a alçada desses mesmos preceitos — Eu sou o Senhor teu Deus,
e, Não terás deuses estrangeiros. E por isso Orígenes, distinguindo também quatro preceitos relativos a
Deus, considera esses dois supra-referidos como um só; considera como segundo: não farás para ti
imagem de escultura;como terceiro: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; e como
quarto: lembra-te de santificar o dia de sábado. Quanto aos outros seis, ele os considera como Hesíquio.

Mas, como fazer imagem de escultura, ou semelhança, não é proibido senão para que não seja adorada
como Deus, pois, no tabernáculo, Deus mandou fazer a imagem de um serafim, como se lê na Escritura
(Ex 25, 18), por isso, Agostinho, mais convenientemente, considera um só preceito — Não terás deuses
estrangeiros — e — Não farás imagem de escultura. Semelhantemente, desejar relação com mulher
alheia é manifestação da concupiscência da carne. Ao passo que a cobiça das outras coisas, que se
desejam possuir, pertence à concupiscência dos olhos. Por onde, o mesmo Agostinho considera como
dois preceitos: não cobiçar a casa alheia e a mulher alheia. E assim, considera três preceitos como
relativos a Deus, e sete, ao próximo. E esta opinião é melhor.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A latria não é mais que uma protestação de fé. Por isso,
não se deviam estabelecer uns preceitos sobre a latria e outros, sobre a fé. Mas, antes, deviam se
estabelecer alguns referentes à latria, que, à fé. Porque, o preceito sobre a fé é um pressuposto aos do
decálogo, bem como o preceito do amor. Pois, assim como os primeiros preceitos comuns da lei da
natureza são evidentes para quem tem a razão natural, e não precisam de promulgação; assim também
o de crer em Deus é, em si e primariamente, conhecido a quem tem fé; porquanto, diz a Escritura, é
necessário que o que se chega a Deus creia que há Deus. Por isso não precisa de nenhuma promulgação,
senão da infusão da fé.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os preceitos afirmativos se distinguem dos negativos, quando um não está
compreendido no outro. Assim, honrar os pais não inclui que não se mate ninguém, nem inversamente.
Mas, quando o afirmativo está compreendido no negativo, ou inversamente, não se constituem
preceitos diversos. Assim, — não furtarás — não constitui preceito diverso de — conservar a coisa
alheia, ou, restituí-la. E por isto, crer em Deus e não crer em deuses alheios não são preceitos diversos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Toda a concupiscência convém numa mesma razão; e por isso o Apóstolo se
refere, singularmente, ao mandamento relativo à concupiscência. Como, porém, há razões diversas
especiais de cobiçar, Agostinho distingue diversos preceitos relativos à repressão daconcupiscência.
Pois, as espécies dela diferem segundo a diversidade das ações ou dos concupiscíveis, como diz o
Filósofo.

Art. 5 — Se os preceitos do decálogo estão convenientemente


enumerados.
(III Sent., dist. XXXVII, a. 2, qª 2; III Cont., Gent., cap. CXX, CXXVIII; De Virtut., q. 2, a. 7, ad 10; Ad Rom.,
cap. XIII, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo estão inconvenientemente


enumerados.

1. — Pois, o pecado, como diz Ambrósio é a transgressão da Lei divina e a desobediência aos
mandamentos do céu. Ora, os pecados se distinguem por pecar o homem contra Deus, contra o
próximo, ou contra si mesmo. Entre os preceitos do decálogo porém, não há nenhum que ordene o
homem para si mesmo, mas só há os que o ordenam para Deus e o próximo. Logo, é insuficiente a
enumeração dos preceitos do decálogo.

2. Demais. — Assim como ao culto de Deus pertencia à observância do sábado, assim também lhe
pertencia à observância das outras solenidades e a imolação dos sacrifícios. Ora, entre os preceitos do
decálogo, há um pertencente à observância do sábado. Logo, também devia haver outros pertencentes
às outras solenidades e ao rito dos sacrifícios.

3. Demais. — Contra Deus pode-se pecar, tanto perjurando, como blasfemando ou, de qualquer modo,
mentindo contra a divina doutrina. Ora, foi estabelecido um preceito proibindo o perjúrio, quando se
disse: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão. Logo, os pecados de blasfêmia e de falsa
doutrina deviam ter sido proibidos por algum outro preceito.

4. Demais. — O homem tem amor natural tanto para com os pais como para com os filhos. Demais
disso, o mandamento da caridade se estende a todos os próximos. Ora, os preceitos do decálogo se
ordenam para a caridade, conforme àquilo da Escritura (1 Tm 1, 5): o fim do preceito é a caridade. Logo,
assim como foi feito um preceito relativo aos pais, assim também deveriam ter sido feitos outros
relativos aos filhos e aos demais próximos.

5. Demais. — Em qualquer gênero de pecados podemos pecar pelo desejo ou por obras. Ora em certos
gêneros de pecados, como o do furto e do adultério, proíbe-se o pecado por obra, quando se diz — Não
fornicarás, não furtarás, separadamente do pecado de desejo, quando se diz — Não cobiçarás os bens
do teu próximo, e não cobiçarás a mulher do teu próximo. Logo, o mesmo se deveria ter feito em
relação aos pecados do homicídio e de falso testemunho.

6. Demais. — O pecado tanto pode provir da desordem do concupiscível como da do irascível. Ora,
certos preceitos proíbem a concupiscência desordenada, como o que diz — não cobiçarás. Logo, o
decálogo também devia conter certos outros proibitivos da desordem do irascível. Logo, parece que os
dez preceitos do decálogo não estão convenientemente enumerados.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 4, 13): Ele vos mostrou o seu pacto, que ordenou que
observásseis, e as dez palavras que escreveu em duas tábuas de pedra.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 2), assim como os preceitos da lei humana ordenam o homem para
uma certa comunidade humana, assim os da lei divina, para uma certa comunidade ou república dos
homens sob a direção de Deus. Ora, para que alguém possa fazer parte de uma comunidade, duas
condições se exigem. A primeira é comportar-se devidamente para com o chefe da comunidade; a
segunda, comportar-se devidamente para com os outros companheiros e co-participes dessa
comunidade. Logo, era necessário que, na lei divina, se estabelecessem, primeiro, certos preceitos que
ordenassem o homem para Deus; e, segundo, outros que o ordenassem para os próximos com quem
convive simultaneamente, sob a direção de Deus.

Ora, para com o chefe da comunidade o homem tem três obrigações: primeiro, a fidelidade; segundo, a
reverência; terceiro, o famulado. — A fidelidade para com o senhor consiste em não deferir a outro a
honra do principado. E é isto que visa o primeiro preceito, quando diz: não terás deuses estrangeiros. —
Em segundo lugar, a reverência para com o senhor exige que não se lhe faça nada de injurioso. E isto
visa o segundo preceito, quando diz: não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão. — Por fim, o
famulado é devido ao senhor em recompensa dos benefícios que dele recebem os súbditos. E isto visa o
terceiro preceito, sobre a santificação do sábado, em memória da criação das coisas.
Quanto aos próximos, para com eles procedemos devidamente, em especial e em geral. — Em especial,
pagando o débito aos a quem devemos. E isto visa o preceito de honrar os pais. — Em geral, em relação
a todos, não causando dano a ninguém, nem por obras, nem por palavras, nem por intenção. — Pois,
por obra causamos dano ao próximo, ora atingindo-lhe a existência pessoal; o que é proibido pelo
mandamento que diz — não matarás. Ora, atingindo uma pessoa que lhe é conjunta, para a propagação
da prole, o que proíbe o preceito quando diz: não fornicarás. Outras vezes, causamos-lhe dano no bem
que ele possui, que se ordena para uma e outra coisa; e isto visa quando diz: não furtarás. — Causar
dano por palavras é proibido quando se diz: não dirás falso testemunho contra o teu próximo. — Por
fim, o dano por intenção e proibido quando se diz: não cobiçarás

Ora, de acordo com esta diferença, podem-se distinguir três preceitos, que ordenam para Deus. Dos
quais o primeiro respeita a obra, e por isso diz: não farás imagem de escultura. O segundo, à palavra,
quando diz: não tomarás o nome do Senhor teu Deu; em vão. O terceiro, à intenção; porque na
santificação do sábado, enquanto preceito moral, se preceitua o descanso do coração em Deus. — Ou,
segundo Agostinho, pelo primeiro preceito reverenciamos a unidade do primeiro princípio; pelo
segundo, a verdade divina; pelo terceiro, a sua bondade, pela qual nos santificamos, e na qual
descansamos, como no fim.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Podemos dar dupla resposta. — A primeira é que os
preceitos do decálogo se referem ao mandamento do amor. Pois, era necessário dar ao homem um
preceito sobre o amor de Deus e do próximo, porque, neste ponto, a lei natural ficou obscurecida pelo
pecado. Mas, não era necessário preceituar sobre o amor de si mesmo, por que neste ponto, vigorava a
lei natural. Ou porque o amor de si mesmo se inclui no de Deus e do próximo; pois, o homem
verdadeiramente se ama a si mesmo, ordenando-se para Deus. Por isso, os preceitos do decálogo só se
referem ao próximo e a Deus.

De outro modo, podemos dizer, que os preceitos do decálogo são os que o povo imediatamente
recebeu de Deus. Por isso, diz a Escritura (Dt 10, 4): Escreveu em tábuas o que antes tinha escrito, as dez
palavras que o Senhor vos tinha falado. Por onde, era necessário fossem esses preceitos tais que
pudessem logo entrar na mente do povo, pois, um preceito tem natureza de obrigação devida. Ora, que
o homem, necessariamente tem deveres para com Deus e o próximo, é facilmente compreensível para
qualquer e, principalmente, para um fiel. Mas não é facilmente compreensível que, pelo que a si mesmo
lhe pertence, e não a outrem, um homem tenha necessariamente algum dever para com outro. Pois,
parece, ao primeiro aspecto, que cada um é livre quanto ao que lhe pertence. Por isso, os preceitos, que
proíbem as desordens do homem para consigo mesmo, chegaram ao povo mediante a instrução dos
prudentes. Donde o não pertencerem ao decálogo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todas as solenidades da lei antiga foram instituídas em comemoração de


algum benefício divino, ou já realizado no passado, ou prefigurado, para o futuro. E semelhantemente,
todos os sacrifícios eram oferecidos por isso. Ora, entre todos os benefícios de Deus a serem
comemorados, o primeiro e o principal é o da criação, comemorado na santificação do sábado. Por
onde, a Escritura, como razão deste preceito, diz (Ex 20, 11): Porque o Senhor fez em seis dias o céu e a
terra etc. Quanto a todos os benefícios futuros, que deviam ser prefigurados, o principal e final era o
repouso da mente em Deus, no presente, pela graça, ou, no futuro, pela glória, o que também estava
figurado na observância do sábado. Por isso, diz a Escritura (Is 58, 13): Se apartares do sábado o teu pé,
o fazer a tua vontade no meu santo dia, e chamares ao sábado delicado e santo para glória do Senhor.
Pois, estes benefícios estão, primeira e principalmente, na mente dos homens, sobretudo, fiéis. Quanto
às outras solenidades, eram celebradas por causa de alguns benefícios temporais passageiros; como a
celebração da Páscoa, por causa do benefício da passada libertação, do Egito, e por causa da paixão
futura de Cristo, realizada no tempo, e que nos conduz ao repouso do sábado espiritual. Por onde,
preteridas todas as outras solenidades e sacrifícios, só do sábado se faz menção nos preceitos do
decálogo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Apóstolo (Heb 6, 16), os homens juram pelo que há maior que
eles, e o juramento é a maior segurança para terminar todas as suas contendas. Por onde, sendo o jura-
mento comum a todos, a desordem em relação a ele é especialmente proibida por um preceito do
decálogo. O pecado porém de falsa doutrina não é senão de poucos; por isso, não era necessário fazer
menção disso entre os preceitos do decálogo. Embora, segundo um modo de entender, o preceito —
não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão — proíba a falsidade da doutrina; pois, uma Glosa
expõe: não dirás que Cristo é uma criatura.

RESPOSTA À QUARTA. — A razão natural logo dita ao homem que a ninguém faça injúria; e por isso, os
preceitos que proíbem o dano estendem-se a todos. A razão natural, porém, não dita imediatamente
que se deva fazer alguma coisa em benefício de outrem, senão para com quem se tenha algum dever.
Ora, os deveres do filho para com o pai são tão manifestos a ponto de não poderem ser negados por
nenhuma tergiversação. Porque o pai é o principio da geração e do ser e, além disso, da educação e da
instrução. Por isso, não está entre os preceitos do decálogo, que devamos prestar algum benefício ou
obséquio a alguém, salvo aos pais. Os pais porém não são considerados como devedores aos filhos, por
quaisquer benefícios que deles houvessem recebido, mas, ao contrário. Pois, o filho é algo do pai,
e os pais amam os filhos como algo deles,segundo diz o Filósofo. Por onde, pelas mesmas razões, não se
estabeleceram nenhuns preceitos, no decálogo, relativos ao amor dos filhos, como também nenhuns,
que ordenassem o homem para si mesmo.

RESPOSTA À QUINTA. — O prazer do adultério e a utilidade das riquezas são desejáveis por si mesmos,
enquanto têm a natureza de bem deleitável ou útil. E por isso os preceitos haviam necessariamente de
proibir, não só a obra, mas também, a concupiscência. Ao contrário, o homicídio e a falsidade são em si
mesmos horríveis; pois, o próximo e a verdade são naturalmente amados e não são desejados senão por
causa de outra coisa. Por onde, não era necessário, quanto aos pecados de homicídio e de falso
testemunho, proibir o pecado de intenção, mas, só o de obra.

RESPOSTA À SEXTA. — Como já se disse (q. 25, a. 1), todas as paixões do irascível derivam das do
concupiscível. Por isso, nos preceitos do decálogo, que são quase os primeiros elementos da lei, não se
deviam mencionar as paixões do irascível, mas, só as do concupiscível.

Art. 6 — Se os dez preceitos do decálogo estão convenientemente


ordenados.
(IIª-IIae, q. 122, a. 2, sqq; III Sent., dist. XXXVII, a. 2, qª 3).

O sexto discute-se assim. — Parece que os dez preceitos do decálogo estão inconvenientemente
ordenados.

1. — Pois, a dileção do próximo é a que conduz para a de Deus, porque o próximo nos é mais conhecido
que Deus, conforme a Escritura (1 Jo 4, 20): aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, como pode
amar a Deus, a quem não vê? Ora, os três primeiros preceitos pertencem ao amor de Deus; e os sete
outros, ao do próximo, Logo, os preceitos do decálogo estão inconvenientemente ordenados.
2. Demais. — Os preceitos afirmativos ordenam atos de virtude; os negativos, proíbem os do vício. Ora,
segundo Boécio, hão-se, primeiro, de extirpar os vícios, que semear as virtudes. Logo, entre os preceitos
pertencentes ao próximo, era mister estabelecerem-se os negativos antes dos afirmativos.

3. Demais. — Os preceitos da lei são feitos para dirigir os atos dos homens. Ora, o ato do coração é
anterior ao da palavra e ao da obra externa. Logo, os preceitos, que proíbem a concupiscência e que
respeitam o coração, estão inconvenientemente postos em último lugar.

Mas, em contrário, o Apóstolo diz (Rm 13, 1): as coisas que vêem de Deus são ordenadas. Ora, os
preceitos do decálogo foram imediatamente dados por Deus, como já se disse (a. 3). Logo, estão
convenientemente ordenados.

SOLUÇÃO. — Como já se estabeleceu (a. 3; a. 5 ad 1), os preceitos do decálogo versam sobre o que de
pronto a razão do homem compreende. Ora, é manifesto que a razão apreende tanto mais facilmente
um objeto, quanto mais o contrário deste lhe é grave e repugnante a ela. E claro porém que a ordem da
razão, começando pelo fim, vai sobretudo contra ela o proceder o homem desordenadamente, em
relação ao fim. Ora, o fim da vida humana e da sociedade é Deus. Por onde, era primeiramente
necessário, pelos preceitos do decálogo, ordenar o homem para Deus, por ser gravíssimo o que a isto
contraria. Assim também, num exército, ordenado para o chefe como para o fim, primeiro hão de os
soldados estar sujeitos ao chefe, sendo o contrário gravíssimo; em segundo lugar, hão-se de coordenar
entre si.

Ora, entre os meios pelos quais o homem se ordena para Deus, ocorre em primeiro lugar submeter-se
fielmente, sem lhe ter nenhuma participação com os inimigos. Em segundo lugar, há de prestar-lhe
reverência. Em terceiro, há de lhe servir pelo famulado. Assim também, num exército, maior falta
dosoldado é agir infielmente, tendo inteligência com o inimigo, do que fazer qualquer irreverência ao
chefe; e isto é ainda mais grave do que deixar de prestar qualquer serviço ao chefe.

Quanto aos preceitos, que ordenam para o próximo, é manifesto que mais repugna à razão e é mais
grave pecado o homem não conservar a ordem devida para com as pessoas a quem mais deve. Por isso,
entre os preceitos que ordenam para o próximo, vem em primeiro lugar o que respeita aos pais. E, entre
os outros preceitos, também a ordem se funda na da gravidade dos pecados. Assim, é mais grave e mais
repugnante à razão pecar por obra, que por palavra; e por palavra, do que por intenção. E, entre os
pecados por obra, é mais grave o homicídio, que priva da vida, do que o adultério, que torna incerta a
prole nascitura. E o adultério é mais grave que o furto, relativo aos bens exteriores.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Embora, por via dos sentidos, o próximo seja mais
conhecido que Deus, contudo, o amor de Deus é a razão do amor do próximo, como a seguir ficará claro
(IIa IIae, q. 25, a. 1; IIa IIae, q. 26, a. 2). Por isso é que se estabeleceram, em primeiro lugar, os preceitos
que ordenam para Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como Deus é a causa universal e o princípio da existência de todas as
coisas, assim o pai é o princípio da existência do filho. Por isso era conveniente, depois dos preceitos
relativos a Deus, estabelecer o concernente aos pais. Mas a objeção colhe, quando os preceitos
afirmativos e os negativos respeitam ao mesmo gênero de obras. Embora também, neste ponto, não
tenha omnímoda eficácia. Pois, na execução de uma obra, hão-se primeiro extirpar os vícios que semear
as virtudes, conforme àquilo da Escritura (Sl 33, 15): Desvia-te do mal e faze o bem; (Is 1, 16-
17), cessai d' obrar perversamente, aprendei a fazer o bem. Contudo, quanto ao conhecimento, a
virtude precede o pecado, pois, pelo reto é que se conhece o obliquo, como diz Aristóteles. Ora, pela lei
se conhece o pecado, no dizer da Escritura (Rm 3, 20). E sendo assim, o preceito afirmativo devia ser
posto em primeiro lugar. A razão da ordem porém não é esta, mas a exposta acima. Porque, nos
preceitos referentes a Deus, concernentes à primeira tábua, está posto em último lugar o preceito
afirmativo, porque a sua transgressão implica menor reato.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Embora o pecado intencional tenha precedência quanto à execução, contudo
a razão lhe apreende a proibição posteriormente.

Art. 7 — Se os preceitos do decálogo foram dados convenientemente.


(IIª-IIae, q. 122, a. 2 sqq.; III Sent., dist. XXXVII, a. 2, qª 1).

O sétimo discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo foram dados inconvenientemente.

1. — Pois, os preceitos afirmativos ordenam para os atos virtuosos; ao passo que os negativos os
separam dos atos viciosos. Ora, em qualquer matéria, virtudes e vícios entre si se opõem. Logo, em
qualquer matéria, sobre que verse um preceito do decálogo, devia se estabelecer um preceito
afirmativo e um negativo. Logo, inconvenientemente se estabeleceram certos afirmativos e certos,
negativos.

2. Demais. — Isidoro diz: toda lei se funda na razão. Ora, todos os preceitos do decálogo concernem à lei
divina. Logo, de todos se devia dar a razão, e não só do primeiro e do terceiro.

3. Demais. — Pela observação dos preceitos merecemos prêmios, de Deus. Ora, as promessas divinas
concernem os prêmios dos preceitos. Logo, devia se fazer uma promessa relativa a cada preceito e não
só, ao primeiro e ao quarto.

4. Demais. — A lei antiga é chamada a lei do temor porque pela cominação de penas induzia à
observação dos preceitos. Ora, todos os preceitos do decálogo pertencem à lei antiga. Logo, em todos
se devia fazer a cominação da pena e não só no primeiro e no segundo.

5. Demais. — Todos os preceitos de Deus devem-se conservar na memória, conforme a Escritura (Pr 3,
3):Grava-os sobre as tábuas do teu coração. Logo é inconveniente fazer menção da memória só no
terceiro preceito. Por onde, os preceitos do decálogo foram dados inconvenientemente.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sb 11, 21): Deus fez todas as coisas com conta e peso e medida. Logo,
com maior razão, observou modo conveniente no dar os preceitos da sua lei.

SOLUÇÃO. — Nos preceitos da lei divina está contida a máxima sabedoria; por isso, diz a Escritura (Dt 4,
6):Esta é a vossa sabedoria e inteligência aos povos. Ora, do sapiente é próprio dispor todas as coisas em
devido modo e ordem. Por onde é manifesto, que os preceitos da lei foram ministrados de modo
conveniente.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A afirmação implica sempre a negação do contrário; mas
nem sempre, da negação de um contrário, resulta a afirmação do outro. Assim, resulta sempre de que,
se alguma coisa é branca, não é negra; mas não se pode dizer que, se não é negra, é portanto branca;
por ter a negação maior extensão que a afirmação. Daí vem que o preceito negativo — não se deve
fazer injúria a outrem — estende-se a maior número de pessoas, conforme o primeiro ditame da razão,
do que o preceito pelo qual se deve prestar a outrem um obséquio ou um benefício. Pois,
primeiramente, o ditame da razão implica, que devemos fazer benefícios ou serviços aqueles de quem
recebemos benefícios, se ainda não os recompensamos. Mas duas pessoas há cujos benefícios ninguém
pode suficientemente pagar: Deus e o próprio pai, como diz Aristóteles. Por isso, estabeleceram-se só
dois preceitos afirmativos: um, que manda honrar ospais; outro, sobre a celebração do sábado, em
comemoração dos benefícios divinos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os preceitos puramente morais têm razão manifesta; por isso, não era
necessário acrescentar-lhes nenhuma outra. Mas a certos preceitos se acrescenta um cerimonial
determinativo do preceito moral comum. Assim, ao primeiro: Não farás imagem de escultura; e no
terceiro é determinado o dia do sábado. Por isso, num e noutro caso, era preciso assinalar a razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os homens, de ordinário, dirigem os seus atos para alguma utilidade. Por
isso, era necessário estabelecer a promessa de um prêmio, naqueles preceitos dos quais não se via
proceder nenhuma utilidade, mas antes, serem impedimentos dela. Ora, como os pais cada vez mais se
vão separando de nós, deles não esperamos nenhuma utilidade. Por onde, ao preceito que manda
honrá-los se acrescentou uma promessa. Semelhantemente, quanto ao que proíbe a idolatria, que os
homens consideravam como obstáculo a uma utilidade aparente, que criam poder conseguir, por pactos
feitos com os demônios.

RESPOSTA À QUARTA. — As penas sobretudo são necessárias contra os inclinados ao mal, como diz
Aristóteles. Por onde, a lei acrescenta a cominação de penas só naqueles preceitos, que supõem
inclinação para o mal. Ora, os homens eram inclinados à idolatria, por causa do costume geral das
nações. Semelhantemente, são também inclinados ao perjúrio, por causa da freqüência do juramento.
Por isso, aos dois primeiros preceitos se acrescentou uma cominação.

RESPOSTA À QUINTA. — O preceito sobre o sábado foi estabelecido como comemorativo do benefício
passado. Por isso, nele especialmente se faz menção da memória. — Ou, porque o preceito sobre o
sábado tem uma determinação adjunta, que não é da lei da natureza; e portanto, esse preceito
precisava de uma advertência especial.

Art. 8 — Se os preceitos do decálogo admitem dispensa.


(Supra, q. 94, a. 5, ad 2.; IIª-IIae., q. 104, a. 5, ad 2; Sent., dist. XLVII, a.4; III, dist. XXXVII, a. 4; De Malo, q.
3, a. 1, ad 17; q, 15, a. 1, ad 8).

O oitavo discute-se assim. — Parece que os preceitos do decálogo admitem dispensa.

1. — Pois, os preceitos do decálogo são de direito natural. Ora, o justo natural admite, em certos casos,
exceções e é mutável, assim como a natureza humana, no dizer do Filósofo. Ora, a deficiência da lei, em
certos casos particulares, é a razão da dispensa, como já se disse (q. 96, a. 6; q. 97, a. 4). Logo, os
preceitos do decálogo admitem dispensa.

2. Demais. — O homem está para a lei humana como Deus para a lei divina. Ora, o homem pode ser
dispensado do preceito legal, que ele mesmo estabeleceu. Logo, tendo sido os preceitos do decálogo
instituídos por Deus, resulta que Deus pode dispensar neles. Ora, os prelados desempenham, na terra, o
papel de Deus, conforme àquilo do Apóstolo (2 Cor 2, 10): pois eu também, se dei alguma coisa, foi por
amor de vós em pessoa de Cristo. Logo, também os prelados podem dispensar nos preceitos do
decálogo.

3. Demais. — Entre os preceitos do decálogo está incluída a proibição do homicídio. Ora, os homens
podem dispensar neste preceito; assim quando, segundo os preceitos da lei humana, certos, como os
malfeitores ou os inimigos da pátria, são mortos licitamente. Logo, os preceitos do decálogo admitem
dispensa.

4. Demais. — A observância do sábado está contida entre os preceitos do decálogo. Ora, houve dispensa
neste preceito, conforme a Escritura (1 Mc 2, 4): Tomaram naquele dia esta resolução dizendo: Todo
homem, quem quer que ele seja, que nos atacar em dia de sábado, não façamos dificuldade de pelejar
contra ele. Logo, os preceitos do decálogo admitem dispensa.

Mas, em contrário, na Escritura (Is 24, 5), certos são censurados porque mudaram o direito, romperam a
aliança sempiterna; e isto se deve entender sobretudo dos preceitos do decálogo. Logo, estes não
podem sofrer mudança por dispensa.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (q. 96, a. 6; q. 97, a. 4), deve-se dispensar nos preceitos, quando ocorrer
algum caso particular, em que, observadas as palavras da lei, contrariar-se-ia a intenção do legislador.
Ora, a intenção de qualquer legislador se ordena, primeiro e principalmente, para o bem comum; e
segundo, para a ordem da justiça e da virtude, pela qual se conserva o bem comum e a ele se chega.
Portanto, se estabelecerem preceitos conducentes à conservação mesma do bem comum, ou, à ordem
mesma da justiça e da virtude, tais preceitos exprimem a intenção do legislador, e portanto não
admitem dispensa. Por exemplo, se uma comunidade estabelecesse como preceito, que ninguém deve
destruir a república, nem entregar a cidade aos inimigos; ou que ninguém deve fazer nada de injusto ou
de mal, tais preceitos não admitiriam dispensa. Mas se estabelecesse outros, ordenados para estes, que
lhes determinassem certos modos especiais, estes poderiam admitir dispensa, quando a omissão deles,
em certos casos particulares, não prejudicasse aos primeiros, expressivos da intenção do legislador.
Assim se, para a conservação da república, uma cidade estabelecesse que certos, de cada aldeia,
velassem pela guarda da outra cidade sitiada, poderiam alguns ser disso dispensados, em vista de uma
utilidade maior.

Ora, os preceitos do decálogo exprimem a intenção mesma de Deus legislador. Pois, os da primeira
tábua, que ordenam para ele, contêm a ordem mesma para o bem comum e final, que é Deus. E os da
segunda, a ordem da justiça a ser observada entre os homens, de modo que, p. ex., a ninguém se lhe
faça o que se lhe não deve fazer, e a cada um lhe seja pago o devido; pois, a esta luz é que devem ser
entendidos os preceitos do decálogo. Logo, esses preceitos são absolutamente indispensáveis.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Filósofo não se refere ao justo natural, que contém a
ordem mesma da justiça; pois, a observância da justiça não admite nenhuma exceção. Mas ele se refere
a determinados modos de observá-la, que sofrem exceção, em certos casos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Apóstolo (2 Tm 2, 13), Deus permanece fiel, não pode negar-se a
si mesmo. Ora, negar-se-ia a si mesmo, se, sendo a própria justiça, ele próprio lhe eliminasse a ordem.
Portanto, Deus não pode dispensar o homem de tender ordenadamente para si, ou de sujeitar-se à
ordem da sua justiça, mesmo, em matéria conducente a se ordenarem os homens uns para os outros.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O decálogo proíbe matar a outrem, na medida em que esse ato tem natureza
de indébito; pois, então, esse preceito exprime a essência mesma da justiça. Ora, a lei humana não pode
conceder seja lícito matar alguém indebitamente. Não é porém indevido matar os malfeitores ou os
inimigos da república. Por isso, tal não contraria ao preceito do decálogo; nem tal morte constitui o
homicídio proibido pelo preceito, como diz Agostinho. E semelhantemente, privar do seu a quem
devidamente deve ser privado não é o furto nem a rapina proibidos pelo preceito do decálogo. Por isso,
quando os filhos de Israel, por preceito de Deus, espoliaram os egípcios, não cometeram furto; pois
deviam fazê-lo por sentença divina. — Semelhantemente, quando Abraão consentiu em matar o filho,
não consentiu num homicídio, porque devia matá-lo, por mandado de Deus, senhor da vida e da morte.
Pois, Ele é quem infligiu a pena de morte a todos os homens, justos e injustos, por causa do pecado do
primeiro pai. E o homem que for executor de tal sentença, por autoridade divina, não será homicida,
como não o é Deus. — Do mesmo modo ainda, Oséas, tendo tido relação com uma esposa fornicária ou
uma mulher adúltera, não cometeu adultério nem fornicou; porque buscou a que era sua por ordem de
Deus, autor da instituição do matrimônio. — Assim pois, os referidos preceitos do decálogo, quanto à
razão de justiça que contêm, são imutáveis. Mas, são mutáveis no tocante a alguma determinação,
quando se aplicam a casos particulares, p. ex., quanto a saber-se se há ou não homicídio, furto ou
adultério. E isso, ora, pela só autoridade divina, no caso do que só por Deus foi instituído, como o
matrimônio e instituições semelhantes; ora, também por autoridade humana, em matéria cometida à
jurisdição dos homens; pois, estes governam em nome de Deus, neste ponto, e não em relação a tudo.

RESPOSTA À QUARTA. — A resolução de que se trata foi, antes, interpretação, que dispensa no
preceito. Pois, não se considera como violador do sábado quem obra por necessidade da salvação
humana, como o Senhor o mostra (Mt 12, 3 ss).

Art. 9 — Se o modo da virtude está na alçada do preceito da lei.


(Supra, q. 96, a. 3, ad 2; IIª-IIae, q. 44, a. 4, ad 1; II Sent., dist. XXVIII, a. 3; IV, dist. XV, q. 3. a. 4. qª 1. ad 3).

O nono discute-se assim. — Parece que o modo da virtude está na alçada do preceito da lei.

1. — Pois, o modo da virtude está em praticarmos justamente atos justos; fortemente, atos fortes, e
assim com as demais virtudes. Ora, a Escritura ordena (Dt 26, 20): administrarás a justiça com retidão.
Logo, o modo da virtude está na alçada do preceito.

2. Demais. — O que está na intenção do legislador é o que sobretudo está na alçada do preceito. Ora,
essa intenção visa principalmente tornar os homens virtuosos, como diz Aristóteles. E sendo próprio do
homem virtuoso agir virtuosamente, o modo da virtude há de estar na alçada do preceito.

3. Demais. — O modo da virtude está propriamente em agirmos voluntária e deleitavelmente. Ora, isto
está na alçada do preceito da lei divina. Pois, diz a Escritura (Sl 99, 2): servi ao Senhor em alegria; e (2
Cor 9, 7):não com tristeza, nem como por força, porque Deus ama ao que dá com alegria; ao que a Glosa
diz: tudo o que fizeres falo com alegria, e falo-as bem; se porém o fizeres com tristeza, o jeito vem de ti,
mas não o fizeste tu. Logo, o modo da virtude está na alçada do preceito da lei.

Mas, em contrário. — Ninguém pode obrar como o virtuoso, sem ter o hábito da virtude, como está
claro no Filósofo. Ora, quem quer que, transgrida o preceito da lei merece pena. Donde se seguiria que
todo aquele que não tivesse o hábito da virtude mereceria pena por tudo o que fizesse. Ora, isto é
contra a intenção da lei, que visa induzir o homem à virtude, acostumando-o às boas obras. Logo, o
modo da virtude não está na alçada do preceito.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 3 ad 2), o preceito de lei tem força coativa. Por onde, aquilo a
que a lei obriga entra diretamente no seu preceito. Ora, a coação da lei se realiza pelo medo da pena,
como diz Aristóteles. Pois, está propriamente na alçada do preceito da lei, aquilo pelo que ela inflige
uma pena. No instituir porém a pena, a lei divina procede diferentemente da humana. Pois, a pena da
lei não é infligida senão relativamente àquilo de que o legislador tem que julgar; porque a lei pune em
virtude de um juízo. Ora, os homens autores da lei não devem julgar senão dos atos externos,
porque vêem o que está patente, como diz a Escritura (1 Sm 16, 7). E só Deus, autor da lei divina, é que
pode julgar dos movimentos interiores das vontades, segundo àquilo da Escritura (Sl 7, 10): Deus, que
sonda os corações e as entranhas.

Ora, a esta luz, devemos dizer, que o modo da virtude, sob certo aspecto, é levado em consideração
pela lei humana e pela divina; sob outro, pela lei divina e, não, pela humana; e, enfim, sob um terceiro,
nem pela lei humana, nem pela divina. Pois, esse modo consiste em três coisas, segundo o Filósofo. A
primeira em obrarmos cientemente; o que é julgado, tanto pela lei divina, como pela humana. Pois, é
acidental o que fazemos por ignorância. E assim, por ignorância, os atos humanos são julgados dignos de
pena ou de vênia, tanto pela lei humana, como pela divina. — A segunda consiste em obrarmos
voluntariamente, ou por eleição, e eleição de um objeto particular, o que implica um duplo movimento
interior — o da vontade e o da intenção, de que já tratamos (q. 8; q. 12), e das quais a lei humana não
pode julgar, mas só, a divina. Pois, a lei humana não pode punir quem quer matar, mas não matou. Ao
passo que a lei divina o pune, conforme a Escritura (Mt 5, 22): todo o que se ira contra seu irmão será
réu no juízo. — A terceira consiste em agirmos e conservarmo-nos firme e imovelmente. E esta firmeza
pertence propriamente ao hábito, i. é, está em obrarmos por um hábito enraigado. Ora, neste ponto, o
modo da virtude não está na alçada do preceito nem da lei divina, nem da humana. Pois, nem pelos
homens, nem por Deus é punido,como transgressor do preceito, quem retribui aos pais a honra devida,
embora sem o hábito da piedade.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O modo de praticar um ato de justiça, pertencente ao


preceito, é praticá-lo segundo a ordem do direito, e não pelo hábito da justiça.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Duas coisas visa a intenção do legislador. Uma é a para a qual, pelo preceito
da lei, quer levar, e essa é a virtude. Outra é a sobre a qual quer fazer o preceito, e esta é a que leva ou
dispõe para a virtude, a saber, o ato de virtude. Pois, o fim do preceito não se confunde com o seu
objeto; assim como, no demais, o fim não se identifica com os meios.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Praticar sem tristeza obras de virtude entra no preceito da lei divina, porque
quem quer que obre com tristeza não obra voluntariamente. Mas, obrar deleitavelmente, ou com ledice
e alegria, está, de certo modo, no preceito, i. é, enquanto que a deleitação resulta do amor de Deus e do
próximo, incluídos no preceito, por ser o amor a causa da deleitação. Mas, de outro modo, não está,
enquanto que a deleitação resulta do hábito; porque a deleitação na obra é sinal de um hábito
existente, como diz Aristóteles. Pois, um ato pode ser deleitável pelo fim ou pela conveniência com o
hábito.

Art. 10 — Se o modo da caridade está na alçada do preceito da lei divina.


(III Sent., dist. :XXXVI, a. 6; De Verit., q. 23, a. 7, ad 8; q. 24, a. 12. ad 16; De Malo, q. 2, a. 5, ad 7).

O décimo discute-se assim. — Parece que o modo da caridade está na alçada do preceito da lei divina.

1. — Pois, diz a Escritura (Mt 19, 17): se tu queres entrar na vida, guarda os mandamentos; por onde se
vê que a observância dos mandamentos basta para fazer entrar na vida. Ora, para isso não bastam as
boas obras, se não forem feitas pela caridade, conforme a Escritura (1 Cor 13, 3): E se eu distribuir todos
os meus bens em o sustento dos pobres, e se entregar o meu corpo para ser queimado, se todavia não
tiver caridade, nada disto me aproveita. Logo, o modo da caridade está na alçada do preceito.
2. Demais. — Ao modo da caridade propriamente pertence fazer tudo por Deus. Ora, isto está na alçada
do preceito, conforme diz o Apóstolo (1 Cor 10, 31): fazei tudo para a glória de Deus. Logo, o modo da
caridade está na alçada do preceito.

3. Demais. — Se o modo da caridade não estivesse na alçada do preceito, poderíamos cumprir os


preceitos da lei, sem a caridade. Ora, o que podemos fazer sem a caridade, podemos fazer sem a graça,
que sempre a acompanha. Logo, podemos cumprir os preceitos da lei, sem a graça, o que é o erro
pelagiano, como está claro em Agostinho. Logo, o modo da caridade está na alçada do preceito.

Mas, em contrário, todo aquele que não observa o preceito, peca mortalmente. Se, pois, o modo da
caridade é da alçada do preceito — quem fizer qualquer obra, sem caridade, pecará mortalmente. Ora,
quem não tem caridade obra sem ela, e portanto, peca mortalmente em tudo o que fizer, embora seja o
ato bom. O que é inadmissível.

SOLUÇÃO. — No tocante a este assunto emitiram-se duas opiniões. — Uns consideram, absolutamente,
o modo da caridade como da alçada do preceito. Mas não é impossível observe o preceito quem não
tem caridade, pois pode dispor-se do modo a Deus lha infundir. E nem peca sempre mortalmente quem,
sem a caridade, pratica o bem; porque obrar pela caridade é um preceito afirmativo, que não obriga
sempre, senão só no tempo em que a tiver. — Outros porém disseram que, absolutamente, o modo da
caridade não está na alçada do preceito.

Ora, ambas, a certo respeito, exprimem a verdade; pois, o ato de caridade pode ser considerado à dupla
luz. — Primeiro, enquanto é, em si mesmo, um ato. E deste modo cai sob a alçada da lei, o que é
especialmente determinado sobre a caridade, a saber: Amarás ao Senhor teu Deus, e, amarás ao teu
próximo. E neste ponto a primeira opinião exprime a verdade. Pois, não é impossível observar o preceito
sobre o ato de caridade, porque podemos nos dispor a tê-la; e, quando a tivermos, podemos usar dela.
— Em segundo lugar, pode ser considerado o ato de caridade enquanto modo dos atos das outras
virtudes; i. é, enquanto os atos das outras virtudes se ordenam para ela, que é o fim do preceito, como
diz a Escritura (1 Tm 1, 5). Pois, como já dissemos (q. 12, a. 4), a intenção do fim é um certo modo
formal do ato ordenado para o fim. E sendo assim, é verdadeira a segunda opinião, pela qual o modo da
caridade não é da alçada do preceito. Isto é, o preceito — honra ao pai — não inclui o honrá-lo pela
caridade, mas somente, honrá-lo. Por onde, quem honra ao próprio pai, embora sem caridade, não se
torna transgressor desse preceito, embora o seja do que preceitua o ato de caridade, por cuja
transgressão merece uma pena.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor não disse — se tu queres entrar na vida,
guarda um mandamento — mas — guarda todos os mandamentos. Entre os quais também está o do
amor de Deus e do próximo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — No preceito da caridade está incluído o amar a Deus de todo o coração; e
isso implica em referir tudo a Deus. Portanto, o homem não pode cumprir o preceito da caridade, se não
referir tudo a Deus. Por onde, quem honra aos pais está obrigado a honrá-los pela caridade, não por
força do preceito — Honra a teus pais — mas, por força do outro — Amarás ao Senhor teu Deus de todo
o teu coração. E como estes são dois preceitos afirmativos que não obrigam para sempre, podem
obrigar em tempos diversos. E assim, pode alguém cumprir o preceito de honrar os pais sem transgredir
o outro, sobre a omissão do modo da caridade.
RESPOSTA À TERCEIRA. — O homem não pode observar todos os preceitos da lei, sem cumprir o da
caridade; porque isso não o fará sem a graça. Portanto, é impossível o que disse Pelágio, que o homem
pode cumprir a lei sem a graça.

Art. 11 — Se se distinguem convenientemente outros preceitos morais


da lei, além do decálogo.
(Supra. a. 3).

O undécimo discute-se assim. — Parece que inconvenientemente se distinguem outros preceitos


morais da lei, além do decálogo.

1. — Pois, como diz o Senhor (Mt 22, 40), destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas.
Ora, estes dois preceitos se explicam pelos dez do decálogo. Logo, não é necessário se estabeleçam
outros preceitos morais

2. Demais. — Os preceitos morais distinguem-se dos judiciais e dos cerimoniais, como já se disse (q. 99,
a. 3, a. 4). Ora, as determinações dos preceitos morais comuns pertencem aos judiciais e aos
cerimoniais; pois, esses preceitos morais comuns estão contidos no decálogo, ou mesmo, a ele se
pressupõem, como se disse (a. 3). Logo, é inconveniente estabelecerem-se outros preceitos morais,
além do decálogo.

3. Demais. — Os preceitos morais respeitam os atos de todas as virtudes, como já se disse (a. 2). Por
onde, assim como a lei estabelece preceitos morais, além do decálogo, relativos à latria, à liberalidade, à
misericórdia, à castidade; assim também deveria ter estabelecido relativos às demais virtudes, p. ex., à
da fortaleza, da sobriedade, e outras; e entretanto não o fez. Logo, não se distinguem
convenientemente, na lei, outros preceitos morais, além do decálogo.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 18, 8): A lei do Senhor, que é imaculada, converte as almas. Ora,
também pelos outros preceitos morais, acrescentados ao decálogo, o homem se conserva sem a mácula
do pecado, e a sua alma se converte para Deus. Logo, pertencia à lei estabelecer também outros
preceitos morais.

SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta (q. 99, a. 3, a. 4), os preceitos judiciais e os cerimoniais têm
força de lei em virtude da só instituição; pois antes de terem sido instituídos não importava que se
agisse de um ou de outro modo. Ao passo que os preceitos morais têm eficácia pelo próprio ditame da
razão natural, mesmo que nunca sejam determinados por lei. Ora, estes preceitos têm três graus. —
Assim, uns são certíssimos e de tal modo manifestos, que não precisam de publicação, como os
atinentes ao amor de Deus e do próximo, e semelhantes, conforme já dissemos (a. 3), que são quase os
fins dos preceitos. Por onde, quanto a eles, não pode errar o juízo da razão de ninguém. — Outros
porém são mais determinados, cuja razão qualquer, mesmo um simples homem vulgar, pode facilmente
compreender. E contudo, como algumas vezes, em relação a estes, o juízo humano pode estar
pervertido, precisam de publicação. E tais são os preceitos do decálogo. — Outros enfim há, cuja razão
não é manifesta a todos, mas só aos sapientes; e esses são os preceitos morais, acrescentados ao
decálogo, dados por Deus ao povo, por meio de Moisés e Aarão.

Mas, como o manifesto é o princípio pelo qual conhecemos o que não o é, os preceitos morais,
acrescentados ao decálogo, reduzem-se aos deste, a modo de adição com eles. — Pois, o primeiro
preceito do decálogo proíbe o culto dos outros deuses, a que se acrescentaram outros preceitos
proibitivos detudo o que se funda no culto dos ídolos, como está na Escritura (Dt 18, 10-11): Nem se
ache entre vós quem pretenda purificar seu filho ou filha, fazendo-os passar pelo jogo; nem quem seja
feiticeiro, ou encantador, nem quem consulte aos pilões ou adivinhos, ou indague dos mortos a
verdade. — O segundo preceito proíbe o perjúrio, ao qual se acrescenta a proibição da blasfêmia (Lv 24,
15 ss) e a da falsa doutrina (Dt 13). — Ao terceiro se acrescentam todos os preceitos cerimoniais. — Ao
quarto, sobre a honra devida aos pais, acrescenta-se o de honrar aos velhos, conforme o lugar (Lv 19,
32): Levanta-te diante dos que têm a cabeça cheia de cãs e honra a pessoa do velho. E, em geral, todos
os preceitos, que mandam reverenciar os maiores, ou beneficiar os iguais ou os menores. — Ao quinto
preceito, sobre a proibição do homicídio, acrescenta-se a do ódio ou de qualquer violência contra o
próximo, conforme o lugar (Lv 19, 16): Não conspirarás contra o sangue do teu próximo; e também a
proibição do ódio fraterno, conforme aquilo (Lv 19, 17): Não aborrecerás o teu irmão no teu coração. —
Ao sexto preceito, sobre a proibição do adultério, acrescenta-se o que proíbe o meretrício (Dt 23,
17): Não haverá entre as filhas de Israel mulher prostituta, nem fornicador nos filhos de Israel; e
também a proibição do vício contra a natureza (Lv 18, 22-23): Não usarás do macho como fosse fêmea;
não te ajuntarás com animal algum. — Ao sétimo, sobre a proibição do furto, acrescenta-se o que
proíbe a usura (Dt 23, 19):Não emprestarás com usura a teu irmão; e a proibição da fraude (Dt 25,
13): Não terás no teu saco diversos pesos; e, universalmente, tudo o que pertence à proibição da calúnia
e da rapina. — Ao oitavo, que proíbe o falso testemunho, acrescenta-se a proibição do falso juízo (Ex 23,
2): Nem em juízo te deixarás arrastar do sentimento do maior número, para te desviares da verdade. E a
proibição da mentira, como no mesmo cap. se acrescenta: Fugirás à mentira; e a da detração, conforme
outro lugar (Lv 19, 16): Não serás delator de crimes, nem mexeriqueiro entre o povo. — Enfim, aos
outros dois preceitos nada se acrescentou, porque proíbem universalmente todas as más
concupiscências.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ao amor de Deus e do próximo se ordenam certos


preceitos do decálogo, conforme a razão manifesta de débito; outros, porém, conforme uma razão mais
oculta.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os preceitos cerimoniais e os judiciais são determinativos dos preceitos do


decálogo, por força da instituição; e não por força do instinto natural, como os preceitos morais a eles
acrescentados.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos da lei se ordenam ao bem comum, como já se disse (q. 90, a. 2).
E como as virtudes, que ordenam para outrem, visam diretamente o bem comum; e semelhantemente a
virtude da castidade, enquanto o ato de geração serve ao bem comum da espécie, por isso se
estabeleceram diretamente preceitos sobre essas virtudes, tanto os do decálogo, como os que se lhes
acrescentaram. Quanto ao ato de fortaleza, deu-se um preceito a ser proposto pelos chefes, que
exortam à guerra, empreendida pelo bem comum, como está claro quando se ordena ao sacerdote (Dt
20, 3): não temais, não receeis. Semelhantemente, do ato da gula cometeu-se a proibição à advertência
paterna, porque contraria o bem doméstico; por onde, diz a Escritura, da pessoa dos pais (Dt 21,
20): despreza ouvir as nossas admoestações, passa a vida em comezainas e dissoluções e banquetes.

Art. 12 — Se os preceitos morais da lei antiga justificavam.


(Supra, q. 98, a. 1; III Sent., dist. XL, a.3; Ad Rom., cap. II, lect. III; cap. III lect. II; Ad Galat., cap. II, lect;
cap. III, lect. IV).

O duodécimo discute-se assim. — Parece que os preceitos morais da lei antiga justificavam.
1. — Pois, diz o Apóstolo (Rm 2, 13): Porque não são justos diante de Deus os que ouvem a lei; mas os
que fazem o que manda a lei serão justificados. Ora, obedientes à lei são os que lhe cumprem os
preceitos. Logo, esses preceitos, cumpridos, justificavam.

2. Demais. — A Escritura diz (Lv 18, 5): Guardai as minhas leis e mandados, os quais fazendo o homem,
viverá neles.Ora, a vida espiritual o homem a vive pela justiça. Logo, os preceitos da lei, sendo
cumpridos, justificavam.

3. Demais. — A lei divina é mais eficaz que a humana. Ora, esta justifica, pois há uma certa justiça em
lhe cumprir os preceitos. Logo, os preceitos da lei justificavam.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (2 Cor 3, 6): A letra mala. O que, segundo Agostinho, também se
entende dos preceitos morais. Logo, estes não justificavam.

SOLUÇÃO. — Própria e primariamente chama-se a quem tem saúde, são; e em significação derivada, ao
que exprime ou conserva a saúde. Assim também, em sentido próprio e primário, chama-se justificação
à prática mesma da justiça; e em sentido derivado e quase impróprio, pode-se chamar
justificação à figuração da justiça ou à disposição para ela. E desses dois modos é manifesto, que os
preceitos da lei justificavam, por disporem os homens para a graça de Cristo justificante, a qual também
figuravam. Pois, como diz Agostinho, também a vida do povo judaico era profética e figurativa de Cristo.

Se porém nos referimos à justificação propriamente dita, então devemos considerar que a justiça pode
ser tomada como habitual, ou como atual. E a esta luz, a justificação tem duplo sentido: Num, é porque
o homem se torna justo, adquirindo o hábito da justiça; noutro, significa a execução dos atos de justiça,
e neste sentido a justificação nada mais é do que a execução da justiça. — Como as outras virtudes
porém, a justiça pode ser considerada como adquirida e infusa, conforme do sobredito resulta (q. 63, a.
4). A adquirida é causada pelas obras. Ao passo que a infusa, por Deus mesmo, por meio da sua graça. E
esta é a verdadeira justiça, de que agora tratamos, pela qual somos considerados justos, em Deus,
conforme a Escritura (Rm 4, 2): Se Abraão foi justificado pelas obras, tem de que se gloriar, mas não,
diante de Deus. Por onde, esta justiça não podia ser causada pelos preceitos morais, relativos aos atos
humanos. E por aí os preceitos morais não podiam justificar, causando a justiça. Se porém
considerarmos a justiça como a execução da mesma, então todos os preceitos da lei justificavam, por
conterem o que é em si mesmo justo, mas de modos diversos. Assim, os preceitos cerimoniais
continham, certo, a justiça em si mesma e em geral, enquanto se manifestava no culto de Deus. Mas,
em especial, não a continham, em si mesma, senão pela só determinação da lei divina. Por isso, destes
preceitos se diz, que não justificavam senão pela devoção e obediência dos que lhes praticavam os
ditames. Por outro lado, os preceitos morais e os judiciais continham o que era em si mesmo justo, em
geral, ou também em especial. Mas os preceitos morais continham o que era em si mesmo justo, con-
forme a justiça geral, que é toda a virtude, como diz Aristóteles; ao passo que os preceitos judiciais
pertenciam à justiça especial, relativa aos contratos que na vida, os homens pactuam entre si.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Apóstolo, no lugar citado, toma a justificação no


sentido de execução da justiça.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Do que cumpre os preceitos da lei se diz que vive neles, por não incorrer na
pena de morte, que a lei infligia aos transgressores. E neste sentido é que determina o Apóstolo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos da lei humana justificam pela justiça adquirida, da qual agora
não tratamos, senão só da que justifica perante Deus.
Questão 101: Dos preceitos cerimoniais em si mesmos.
Em seguida devemos tratar dos preceitos cerimoniais. Primeiro, em si mesmos. Segundo, da causa
deles. Terceiro, da duração dos mesmos.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a razão dos preceitos cerimoniais está em serem


concernentes ao culto de Deus.
(Supra, q. 99, a. 3; infra, q. 104, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a razão dos preceitos cerimoniais não está em concernirem
ao culto de Deus.

1. — A lei antiga impunha aos judeus certos preceitos sobre a abstinência dos alimentos, como se vê na
Escritura (Lv 11); e também proibia o uso de certas vestes (Lv 19, 19): Não usarás de vestido que seja
tecido de fios diferentes. E ainda (Nm 15, 38): que se façam umas guarnições nos remates das suas
capas. Ora, estes não são preceitos morais, porque não permaneceram na lei nova; e nem judiciais, por
não dizerem respeito a juízos dirimentes de questões entre as partes. Logo, são cerimoniais, mas, que
em nada concernem ao culto de Deus. Portanto, não é da essência dos preceitos cerimoniais serem
concernentes ao culto de Deus.

2. Demais. — Certos consideram cerimoniais os preceitos concernentes às solenidades, quase assim


chamados por causa dos círios que se nelas acendiam. Ora, além das solenidades, há muitas mais
cerimônias concernentes ao culto de Deus. Donde se conclui que os preceitos cerimoniais da lei não se
chamam assim por concernirem ao culto de Deus.

3. Demais. — Certos consideram os preceitos cerimoniais como quase normas, i. é, regra da salvação;
pois,chaireem grego significa salve, em latim. Ora, todos os preceitos da lei são regras de salvação, e não
só os atinentes ao culto de Deus. Logo, não se chamam cerimoniais só os preceitos concernentes ao
culto de Deus.

4. Demais. — Rabbi Moisés diz que se chamam preceitos cerimoniais aqueles cuja razão não é
manifesta. Ora, muitos dos preceitos concernentes ao culto de Deus tem razão manifesta, como, a
observância do sábado, a celebração da Fase e da Scenopegia, e muitas outras, cuja razão é sinalada na
lei. Logo, cerimoniais não são os preceitos concernentes ao culto de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Ex 18, 19-20): Presta-te ao povo naquelas coisas que dizem respeito a
Deus, para lhes ensinares as cerimônias e o modo com que devem honrar a Deus.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 99, a. 4), os preceitos cerimoniais determinam os preceitos morais
relativos a Deus, assim como os judiciais os determinam em relação ao próximo. Ora, o homem se
ordena para Deus por meio do culto devido. Por onde, cerimoniais propriamente se chamam os
preceitos concernentes ao culto de Deus. E a razão deste nome já a demos antes, quando distinguimos
esses preceitos, dos outros.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ao culto de Deus não dizem respeito só os sacrifícios e
coisas semelhantes, considerados como se ordenando a Deus imediatamente, mas também a
preparação conveniente dos ministros do culto a Deus devido. Assim, em tudo, os meios conducentes
ao fim pertencem à ciência do fim. Ora, esses preceitos sobre as vestes e os alimentos dos ministros de
Deus, estabelecidos pela lei, e outros semelhantes, respeitam-lhes de certo modo a preparação a fim de
serem idôneos para tal culto; assim como os que estão a serviço do rei seguem certas observâncias
especiais. Por isso, tais preceitos estão contidos nos cerimoniais.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa derivação do nome em questão não parece muito apropriada;
sobretudo por não ser freqüente ler-se, na lei, que se acendessem círios nas solenidades; senão que, no
próprio candelabro, eram preparadas lâmpadas com azeite de oliveira como está claro na Escritura (Lv
24, 2). Contudo, pode-se dizer, que nas solenidades tudo o mais pertencente ao culto de Deus era
diligentemente observado; e sendo assim, na observância das solenidades incluem-se todos os preceitos
cerimoniais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Também não parece muito apropriada a derivação desse nome, pois, o nome
“cerimônia” não é grego, mas latino. Pode-se dizer, contudo, que, vindo de Deus a salvação do homem,
são aqueles preceitos sobretudo considerados como regras da salvação, que o ordenam para Deus. E
assim, preceitos cerimoniais se chamam os relativos ao culto de Deus.

RESPOSTA À QUARTA. — Essa explicação dos preceitos cerimoniais é de algum modo provável. Não que
se chamem cerimoniais por não terem explicação manifesta, mas por ser isso uma conseqüência. Pois,
de os preceitos concernentes ao culto de Deus serem figurativos, como a seguir se dirá (a. 2), procede o
não terem a razão manifesta.

Art. 1 — Se a razão dos preceitos cerimoniais está em serem


concernentes ao culto de Deus.
(Supra, q. 99, a. 3; infra, q. 104, a. 1).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a razão dos preceitos cerimoniais não está em concernirem
ao culto de Deus.

1. — A lei antiga impunha aos judeus certos preceitos sobre a abstinência dos alimentos, como se vê na
Escritura (Lv 11); e também proibia o uso de certas vestes (Lv 19, 19): Não usarás de vestido que seja
tecido de fios diferentes. E ainda (Nm 15, 38): que se façam umas guarnições nos remates das suas
capas. Ora, estes não são preceitos morais, porque não permaneceram na lei nova; e nem judiciais, por
não dizerem respeito a juízos dirimentes de questões entre as partes. Logo, são cerimoniais, mas, que
em nada concernem ao culto de Deus. Portanto, não é da essência dos preceitos cerimoniais serem
concernentes ao culto de Deus.

2. Demais. — Certos consideram cerimoniais os preceitos concernentes às solenidades, quase assim


chamados por causa dos círios que se nelas acendiam. Ora, além das solenidades, há muitas mais
cerimônias concernentes ao culto de Deus. Donde se conclui que os preceitos cerimoniais da lei não se
chamam assim por concernirem ao culto de Deus.

3. Demais. — Certos consideram os preceitos cerimoniais como quase normas, i. é, regra da salvação;
pois,chaireem grego significa salve, em latim. Ora, todos os preceitos da lei são regras de salvação, e não
só os atinentes ao culto de Deus. Logo, não se chamam cerimoniais só os preceitos concernentes ao
culto de Deus.

4. Demais. — Rabbi Moisés diz que se chamam preceitos cerimoniais aqueles cuja razão não é
manifesta. Ora, muitos dos preceitos concernentes ao culto de Deus tem razão manifesta, como, a
observância do sábado, a celebração da Fase e da Scenopegia, e muitas outras, cuja razão é sinalada na
lei. Logo, cerimoniais não são os preceitos concernentes ao culto de Deus.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Ex 18, 19-20): Presta-te ao povo naquelas coisas que dizem respeito a
Deus, para lhes ensinares as cerimônias e o modo com que devem honrar a Deus.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 99, a. 4), os preceitos cerimoniais determinam os preceitos morais
relativos a Deus, assim como os judiciais os determinam em relação ao próximo. Ora, o homem se
ordena para Deus por meio do culto devido. Por onde, cerimoniais propriamente se chamam os
preceitos concernentes ao culto de Deus. E a razão deste nome já a demos antes, quando distinguimos
esses preceitos, dos outros.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Ao culto de Deus não dizem respeito só os sacrifícios e
coisas semelhantes, considerados como se ordenando a Deus imediatamente, mas também a
preparação conveniente dos ministros do culto a Deus devido. Assim, em tudo, os meios conducentes
ao fim pertencem à ciência do fim. Ora, esses preceitos sobre as vestes e os alimentos dos ministros de
Deus, estabelecidos pela lei, e outros semelhantes, respeitam-lhes de certo modo a preparação a fim de
serem idôneos para tal culto; assim como os que estão a serviço do rei seguem certas observâncias
especiais. Por isso, tais preceitos estão contidos nos cerimoniais.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Essa derivação do nome em questão não parece muito apropriada;
sobretudo por não ser freqüente ler-se, na lei, que se acendessem círios nas solenidades; senão que, no
próprio candelabro, eram preparadas lâmpadas com azeite de oliveira como está claro na Escritura (Lv
24, 2). Contudo, pode-se dizer, que nas solenidades tudo o mais pertencente ao culto de Deus era
diligentemente observado; e sendo assim, na observância das solenidades incluem-se todos os preceitos
cerimoniais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Também não parece muito apropriada a derivação desse nome, pois, o nome
“cerimônia” não é grego, mas latino. Pode-se dizer, contudo, que, vindo de Deus a salvação do homem,
são aqueles preceitos sobretudo considerados como regras da salvação, que o ordenam para Deus. E
assim, preceitos cerimoniais se chamam os relativos ao culto de Deus.

RESPOSTA À QUARTA. — Essa explicação dos preceitos cerimoniais é de algum modo provável. Não que
se chamem cerimoniais por não terem explicação manifesta, mas por ser isso uma conseqüência. Pois,
de os preceitos concernentes ao culto de Deus serem figurativos, como a seguir se dirá (a. 2), procede o
não terem a razão manifesta.

Art. 2 — Se os preceitos cerimoniais são figurativos.


(Infra, q. 103, a. 1, 3; q. 104, a. 2).

O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos morais não são figurativos.

1. — Pois, é da obrigação de quem quer que ensine exprimir-se de modo a ser facilmente entendido,
como diz Agostinho. E isto é sobretudo necessário na legislação, porque os preceitos da lei são
propostos ao povo. Por isso ela deve ser clara, como diz Isidoro. Se portanto, os preceitos foram dados
como figurativos de alguma coisa, parece que foram transmitidos inconvenientemente a Moisés, sem
manifestarem o que figuravam.
2. Demais. — Todos os atos do culto divino devem revestir-se da máxima dignidade. Ora, fazer uma
coisa para representar outra parece ser próprio do teatro ou da poesia. Pois, antigamente, nos teatros,
faziam-se umas coisas para representarem feitos de outrem. Logo, conclui-se que tal não se deve fazer
no culto de Deus, como já se disse. Logo, os preceitos cerimoniais não devem ser figurados.

3. Demais. — Agostinho diz, que Deus é cultuado sobretudo pela fé, pela esperança e pela caridade:
Ora, os preceitos relativos à fé, à esperança e a caridade não são figurativos. Logo, figurativos não
devem ser os preceitos cerimoniais.

4. — Demais. — O Senhor diz (Jo 4, 24): Deus é espírito, e em espírito e verdade é que o devem adorar
os que o adoram. Ora, a figura não é a verdade mesma; antes, uma se divide da outra por oposição.
Logo, os preceitos cerimoniais, pertencentes ao culto de Deus, não devem ser figurativos.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Cl 2, 16-17): Ninguém vos julgue pelo comer nem pelo beber, nem
por causa dos dias de festa, ou das luas novas, ou dos sábados, que são sombras das coisas vindouras.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1; q. 99, a. 3), chamam-se preceitos cerimoniais os ordenados ao
culto. Ora, duplo é o culto de Deus — o interno e o externo. Pois, sendo o homem composto de corpo e
alma, esta e aquele devem aplicar-se ao culto de Deus, de modo que a alma o cultue com culto interno,
e o corpo, com o externo. Por isso, diz a Escritura (Sl 83, 3): O meu coração e a minha alma se
regozijaram no Deus vivo. E assim como o corpo se ordena a Deus, pela alma, assim, o culto externo, ao
interno. Ora, o culto interno consiste em a alma unir-se com Deus pelo intelecto e pelo afeto. Por onde,
segundo os modos diversos por que o intelecto e o afeto, de quem cultua a Deus, se une retamente com
ele, assim os modos diversos por que os atos externos do homem se aplicam ao culto de Deus.

Ora, no estado da felicidade futura, o intelecto humano contemplará a verdade divina em si mesma. Por
onde, o culto externo não consistirá em nenhuma figura, mas só em louvor a Deus, o que procede do
conhecimento interior e do afeto, conforme aquilo da Escritura (Is 51, 3): Nela se achará o gosto e a
alegria, ação de graças e voz de louvor.

Ao contrário, no estado da vida presente, não podemos contemplar a divina verdade em si mesma, mas
é necessário que o seu raio nos ilumine, sob certas figuras sensíveis, como diz Dionísio; mas,
diversamente, conforme os estados diversos do conhecimento humano. — Ora, na lei antiga, nem a
verdade divina era em si mesma clara, nem estava ainda preparada a via para chegar a ela, como diz o
Apóstolo (Heb 9, 8). Por isso era necessário que o culto externo da lei antiga fosse figurativo, não só da
verdade futura, que deverá manifestar-se na pátria celeste, mas também de Cristo, via conducente a
essa verdade celeste. — No estado da lei nova, ao contrário, essa via já foi revelada. Por isso não precisa
de ser prefigurada como futura, mas deve ser comemorada a modo de passada ou presente; devendo-
se prefigurar só a verdade futura da glória ainda não revelada. E isto diz o Apóstolo (Heb 11, 1): a lei tem
a sombra dos bens futuros, não a mesma imagem das coisas. Pois, a sombra é menos que a imagem: ao
passo que esta pertence à lei nova, aquela pertence à antiga.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As verdades divinas não devem ser reveladas aos
homens, senão de acordo com a capacidade deles; do contrário dar-se-lhes-ia ocasião de caírem, por
desprezarem o que não podiam entender. Por isso foi mais útil terem sido os mistérios divinos
transmitidos ao povo rude sob o véu de figuras; de modo que os conhecessem implicitamente ao
menos, servindo a essas figuras, em honra de Deus.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Assim como as criações poéticas não são compreendidas pela razão humana,
por causa da deficiência de verdade que encerram, assim também a razão humana não pode
compreender perfeitamente as coisas divinas, por encerrarem verdades que a excedem. Por isso, em
um e outro caso, é necessária a representação por meio de figuras sensíveis.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Agostinho se refere, no lugar aduzido, ao culto interno, ao qual contudo é
preciso ordenar o externo, como dissemos.

E semelhantemente se deve RESPONDER À QUARTA OBJEÇÃO. — Porque, por Cristo, os homens foram
introduzidos, mais plenamente, no culto espiritual de Deus.

Art. 3 — Se deviam ter sido muito os preceitos cerimoniais.


(IV Sent., dist. I, q. 1, a. 5, qª 2, ad 2; Ad Rom., cap. V. lect. VI).

O terceiro discute-se assim. — Parece que não deviam ter sido muitos os preceitos cerimoniais.

1. — Pois, os meios devem ser proporcionados ao fim. Ora, os preceitos cerimoniais, como já se disse (a.
1, a. 2), ordenavam-se ao culto de Deus e a figurar Cristo. Ora, há um só Deus, de quem tiveram o ser
todas as coisas; e só um Senhor Jesus Cristo, por quem todos existem, como diz a Escritura (1 Cor 8, 6).
Logo, os preceitos cerimoniais não deviam ter-se multiplicado.

2. Demais. — A multidão dos preceitos cerimoniais era ocasião de transgressões, segundo a Escritura (At
15, 10): Porque tentais a Deus, pondo um jugo sobre as cervizes dos discípulos, que nem nossos pais
nem nós pudemos suportar? Ora, a transgressão dos preceitos divinos encontra a salvação humana. E
toda lei, devendo buscar o bem estar dos homens, como diz Isidoro, resulta que se não deviam ser dado
muitos preceitos cerimoniais.

3. Demais. — Os preceitos cerimoniais diziam respeito ao culto externo e material de Deus, como já se
disse (a. 2). Ora, a lei devia diminuir esse culto material por se ordenar para Cristo, que ensinou aos
homens adorarem a Deus em espírito e em verdade, como está na Escritura (Jo 4, 23). Logo, não se
deviam ter dado muitos preceitos cerimoniais.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Os 8, 12): Eu lhe tinha prescrito um grande número de leis minhas; e
(Jó 11, 6): Para te descobrir os segredos da sua sabedoria, é que a sua lei é de muitas maneiras.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 96, a. 1), toda lei é dada a algum povo. Ora, este abrange duas
espécies de homens: uns, inclinados ao mal, devem ser coibidos pelos preceitos da lei, como já se disse
(q. 95, a. 1); outros, com inclinação para o bem, por natureza, costume, ou, melhor, por graça, e esses
devem ser instruídos e melhorados pelo preceito da lei.

Por onde, quanto a essas duas espécies de homens, importava fossem os preceitos cerimoniais da lei
antiga multiplicados. Pois, no povo judeu, havendo certos inclinados à idolatria, era necessário fossem
desviados desse culto para o de Deus pelos preceitos cerimoniais. E como os homens de muitas
maneiras serviam à idolatria, era necessário, ao contrário, fazerem-se muitas instituições para reprimir
casos particulares. E além disso, que a esses tais fossem impostos tantos preceitos, de modo a serem
quase onerados pela contribuição que deviam dar para o culto de Deus, e assim não lhes sobrasse
tempo para servir à idolatria. — Quanto aos inclinados ao bem, também era necessária a multiplicação
dos preceitos cerimoniais. E isso para que a mente deles, diversa e mais assiduamente, assim se
referisse a Deus; ou também porque o mistério de Cristo, figurado por esses preceitos cerimoniais,
trouxe ao mundo muitas utilidades, e muitas considerações se deviam fazer relativas a ele, que era
necessário fossem figuradas pelos mesmos diversos preceitos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Quando os meios são suficientes para conduzir ao fim,
então basta um meio para um fim; assim, um remédio eficaz basta às vezes, a restaurar a saúde, não
sendo então necessário multiplicarem-se os remédios. Mas por causa da sua debilidade e imperfeição,
torna-se necessário multiplicar os meios; por isso dão-se muitos remédios a um enfermo, quando um só
não basta para curar. Ora, as cerimônias da lei antiga eram imprestáveis e imperfeitas para representar
o mistério de Cristo, que é sobreexcelente, e para submeter a mente dos homens a Deus. Por isso, o
Apóstolo diz (Heb 7, 18-19): O mandamento primeiro é na verdade abrogado pela fraqueza e
inutilidade; porque a lei nenhuma coisa levou à perfeição. Por onde, era necessário que as cerimônias
em questão fossem multiplicadas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Do legislador sábio é próprio permitir transgressões menores para evitar as
maiores. Por onde, nem por evitar a transgressão da idolatria e da soberba, que haveria de prorromper
nos corações dos judeus, se cumprissem todos os preceitos da lei, deixou Deus de impor muitos
preceitos cerimoniais, que lhes ofereciam facilmente a ocasião de transgredir.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei antiga em muitos casos diminuiu o culto material. Para o que estatuiu
não se oferecessem sacrifícios em qualquer lugar, nem por quem quer que fosse. E muitos deles
estabeleceu para a diminuição do culto externo, como o mesmo Rabbi Moisés Egípcio diz. Era
necessário, porém não atenuar a ponto o culto material a Deus, que os homens resvalassem no culto
dos demônios.

Art. 4 — Se as cerimônias da lei antiga se dividiam convenientemente em


sacrifícios, coisas sagradas, sacramentos e observâncias.
(Ad Coloss., cap. II, lect. IV).

O quarto discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei antiga se dividiam inconvenientemente
em sacrifícios, coisas sagradas, sacramentos e observâncias.

1. — Pois, as cerimônias da lei antiga figuravam a Cristo. Ora, isto só se fazia pelos sacrifícios, figurativos
do sacrifício pelo qual Cristo se entregou a si mesmo por nós outros como oferenda e hóstia a Deus,
como diz a Escritura (Ef 5, 2). Logo, só os sacrifícios pertenciam ao cerimonial.

2. Demais. — A lei antiga ordenava-se para a nova. Ora, nesta o sacrifício é o sacramento do altar. Logo,
na antiga, não se deviam opor os sacramentos aos sacrifícios.

3. Demais. — Sagrado se chama ao dedicado a Deus; e nesse sentido diziam-se santificados o


tabernáculo e os seus vasos. Ora, todas as coisas usadas na cerimônia se ordenavam ao culto de Deus,
como se disse (a. 1). Logo, todos eram sagradas, e portanto não se devia considerar como sagrada só
uma parte delas.

4. Demais. — Observância vem de observar. Ora, todos os preceitos da lei deviam ser observados,
conforme a Escritura (Dt 8, 11): Toma sentido e tem cuidado que jamais te não esqueças do Senhor teu
Deus, e que não desprezes os seus preceitos e leis e cerimônias. Logo, as observâncias não deviam ser
consideradas como parte das cerimônias.

5. Demais. — As solenidades eram consideradas cerimônias, sendo, como eram, sombra das coisas
vindouras, como diz a Escritura (Cl 2, 16-17). Semelhantemente, as oblações, sacrifícios e dons, segundo
claramente o diz o Apóstolo (Heb 9, 9). Entretanto, nada disso tudo está contido na enumeração supra.
Logo, é inconveniente a referida divisão das cerimônias.
Mas, em contrário, a lei antiga designa cada uma dessas preditas cerimônias. — Pois, os sacrifícios são
chamados cerimônias (Nm 15, 24): oferecerá um bezerro, com a sua oferenda e libações, como o pede o
cerimonial. — Do sacramento da ordem se diz (Lv 7, 35): Esta é a unção d’Arão e de seus filhos nas
cerimônias. — Das coisas sagradas também se diz (Ex 38, 21): Estas são as partes, que compunham o
tabernáculo do testemunho, nas cerimônias dos Levitas. — Por fim, das observâncias (1 Rs 9, 6): Se vos
desviardes de mim, não me seguindo, nem guardando as cerimônias, que eu vos prescrevi.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1, a. 2), os preceitos cerimoniais ordenavam-se ao culto de Deus, no
qual podemos considerar o culto em si mesmo, os que cultuavam e os seus instrumentos. — Ora, em si
mesmo, o culto consiste nos sacrifícios oferecidos para reverenciar a Deus. — Os instrumentos do culto
constituíam as coisas sagradas, como o tabernáculo, os vasos e objetos semelhantes. — Quanto aos que
cultuavam, duas considerações podemos fazer: a sua instituição para o culto divino, feita por uma
consagração do povo, ou dos ministros, a isto pertence aos sacramentos; e, depois, o modo de vida
peculiar deles, pelo qual se distinguiam dos que não cultuavam a Deus, e a isto pertencem as
observâncias, p. ex., quanto aos alimentos e às vestes e coisas semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Era necessário que os sacrifícios fossem oferecidos em
lugares e por homens determinados, o que tudo pertencia ao culto de Deus. Por onde, assim como os
sacrifícios significavam Cristo imolado, assim também os sacramentos e as coisas sagradas a eles
pertencentes figuravam os sacramentos e as coisas sagradas da lei nova; e as observâncias dos mesmos
figuravam o gênero de vida do povo dessa lei. O que tudo diz respeito a Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O sacrifício da lei nova, i. é, a Eucaristia, contém Cristo mesmo, autor da
santificação, pois, santificou ao povo pelo seu sangue, como diz a Escritura (Heb 13, 12). Por onde, este
sacrifício também é um sacramento. Mas, os sacrifícios da lei antiga não continham Cristo, senão que o
figuravam, e por isso não se chamavam sacramentos. Mas, para designá-lo havia certos sacramentos
especiais da lei antiga, que eram as figuras da futura consagração. — Embora também a certas
consagrações se acrescentassem determinados sacrifícios.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Também os sacrifícios e os sacramentos eram coisas sagradas. Mas havia
certas coisas sagradas, por serem dedicadas ao culto de Deus, que, nem por isso, eram sacrifícios nem
sacramentos. E por isso, se lhes aplicava a denominação comum de coisas sagradas.

RESPOSTA À QUARTA. — As coisas pertencentes ao gênero de vida do povo, que cultuava a Deus,
aplicava-se a denominação comum de observâncias, por serem menos que as outras coisas. Pois, não se
consideravam objetos sagrados porque não respeitavam imediatamente ao culto de Deus, como o
tabernáculo e os seus vasos. Mas, por uma conseqüência, eram preceitos cerimoniais, enquanto
condicentes com uma certa conveniência do povo, que cultuava a Deus.

RESPOSTA À QUINTA. — Assim como os sacrifícios eram oferecidos num determinado lugar, assim
também o eram em determinados tempos. Por onde, também as solenidades eram contadas entre as
coisas sagradas. — Ao passo que as oblações e os dons eram enumerados entre os sacrifícios, por serem
oferecidos a Deus. Por isso, diz o Apóstolo (Heb 5, 1): Todo o pontífice assunto dentre os homens é
constituído a favor dos homens naquelas coisas que tocam a Deus, para que ofereça dons e sacrifícios
pelos pecados.
Questão 102: Das causas dos preceitos cerimoniais.
Em seguida devemos tratar das causas dos preceitos cerimoniais.

E nesta questão discutem-se seis artigos:

Art. 1 — Se os preceitos cerimoniais tem causa.


O primeiro discute-se assim. — Parece que os preceitos cerimoniais não tem causa.

1. — Pois, aquilo da Escritura (Ef 2, 15) — Abolindo com os seus decretos a lei dos preceitos — diz a
Glosa: Isto é, abolindo a lei antiga, quanto às observâncias carnais, com decretos, i. é, com os preceitos
evangélicos, fundados na razão. Ora, se as observâncias da lei antiga eram fundadas na razão, seriam
abolidas em vão pelos decretos racionais da lei nova. Logo, as observâncias cerimoniais da lei não se
fundavam em nenhuma razão.

2. Demais. — A lei antiga sucedeu à lei da natureza. Ora, nesta havia um preceito, que não tinha
nenhuma razão de ser, senão provar a obediência do homem, como diz Agostinho, sobre a proibição da
árvore da vida. Logo, também a lei antiga devia estabelecer certos preceitos, que provassem a
obediência do homem, e que, em si mesmos, nenhuma razão de ser tivessem.

3. Demais. — Chamam-se morais as obras do homem procedentes da razão. Se pois os preceitos


cerimoniais se fundassem nalguma razão, não haviam de diferir do morais. Logo, parece que aqueles
não tem nenhuma causa; pois, a razão de um preceito é deduzida de alguma causa.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 18, 9): o preceito do Senhor é claro, que esclarece os olhos. Ora, os
preceitos cerimoniais são de Deus. Logo, são claros; o que não seriam se não tivessem uma causa
racional.

SOLUÇÃO. — Sendo próprio do sapiente ordenar, segundo o Filósofo, o procedente da sabedoria divina
há de ser ordenado, como diz o Apóstolo (Rm 13, 1). Ora, para haver ordem duas condições se
requerem. — A primeira, que ela tenha um fim devido, que é o princípio de toda a ordem dos nossos
atos; pois, do que acontece por acaso, fora de uma intenção final, bem como do que se não faz
seriamente, mas, por diversão, dizemos que é desordenado. — Em segundo lugar, é necessário seja o
meio proporcionado ao fim; donde se segue que a razão dos meios se deduz do fim, assim como a razão
da disposição da serra se tira do seu fim, que é cortar, como diz Aristóteles.

Ora, é manifesto, que os preceitos cerimoniais, bem como todos os outros preceitos da lei foram
instituídos pela sabedoria divina; donde o dizer a Escritura (Dt 4, 6): esta é a vossa sabedoria e
inteligência em face do povo. Por onde, é necessário concluir, que os preceitos cerimoniais eram
ordenados a algum fim, donde se lhes possam assinalar as causas racionais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As observâncias da lei antiga podem considerar-se sem
razão por não terem razão, em si mesmas e por natureza, as coisas que se faziam; p. ex., que as vestes
não fossem feitas de lã e de linho. Mas podiam ter razão relativamente à outra coisa, quer por a
figurarem, quer por a excluírem. — Ao passo que os decretos da lei nova, principalmente consistentes
na fé e no amor de Deus, pela própria natureza do ato são racionais.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A proibição da árvore da ciência do bem e do mal não se fundava em ser
essa árvore naturalmente má; mas essa proibição, em si mesma, tinha a sua razão de ser em se ordenar
a outra coisa, que figurava. E assim também os preceitos cerimoniais da lei antiga tinham a sua razão de
ser no se ordenarem a outra coisa.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos morais, como estes — não matarás, não furtarás — tem por
natureza causas racionais. Ao passo que os cerimoniais tiram as suas causas racionais de se ordenarem
para outro fim, como se disse.

Art. 2 — Se os preceitos cerimoniais tinham causa literal ou, se só


figurada.
(Ad Rom., cap. IV, lect. II).

O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos cerimoniais não tinham causa literal, mas só
figurada.

1. — Pois, dentre os preceitos cerimoniais, os principais eram a circuncisão e a imolação do cordeiro


pascal. Ora, uma e outra tinham só causa figurada, porque só como sinais foram estabelecidos,
conforme a Escritura (Gn 17, 11): Circuncidareis a carne do vosso prepúcio, para que seja o sinal do
concerto que há entre mim e vós. E da celebração da Páscoa diz (Ex 13, 9): Será como um sinal na tua
mão, e como um memorial diante de teus olhos. Logo, com maior razão, os outros preceitos cerimoniais
só tinham causa figurada.

2. Demais. — O efeito se proporciona à sua causa. Ora, todos os preceitos cerimoniais eram figurados,
como se disse (q. 101, a. 2). Logo, não tinham causa senão figurada.

3. Demais. — O que é indiferente a ser cumprido de um ou de outro modo não pode ter causa literal.
Ora, certos preceitos cerimoniais eram indiferentes a serem cumpridos de um modo ou de outro, como,
p. ex., os que se referiam ao número dos animais a serem oferecidos, e em outras semelhantes
circunstâncias particulares. Logo, os preceitos da lei antiga não tinham razão literal.

Mas, em contrário. — Assim como os preceitos cerimoniais figuravam a Cristo, assim também as
histórias do Velho Testamento; pois, diz a Escritura (1 Cor 10, 11): todas estas coisas lhes aconteciam a
eles em figura. Ora, nas histórias do Velho Testamento, além do sentido místico ou figurado, há também
um sentido literal. Logo, também os preceitos cerimoniais além das causas figuradas, tinham causas
literais.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 1), a razão dos meios há de ser deduzida da do fim. Ora, duplo era o
fim dos preceitos cerimoniais, pois ordenavam-se ao culto de Deus, naquele tempo, e a figurar a Cristo;
assim como também as palavras dos profetas diziam respeito ao tempo presente, mas também
representavam figuradamente o futuro, como diz Jerônimo.

Por onde, as razões dos preceitos cerimoniais da lei antiga são susceptíveis de dupla consideração.
Primeiro, em razão do culto divino, que naquele tempo devia ser observado. E essas razões eram
literais, quer dissessem respeito a evitar o culto da idolatria, quer a rememorar certos benefícios de
Deus, quer a insinuar a excelência divina, quer ainda à por à mostra a disposição da mente então exigida
dos que cultuavam a Deus. — Em segundo lugar, as razões desses preceitos podem ser fundadas em se
ordenarem a figurar a Cristo. E assim tinham razões figuradas e místicas, quer deduzidas de Cristo
mesmo e da Igreja, o que pertence à alegoria; quer por serem relativas aos costumes do povo cristão, o
que pertence à moralidade; quer ao estado da glória futura, enquanto somos nela introduzidas por
Cristo, o que pertence à analogia.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Assim como o sentido da locução metafórica, na
Escritura, é literal, porque as palavras foram expressas para terem tal significação; assim também as
significações das cerimônias da lei — comemorativas dos benefícios de Deus, por causa dos quais foram
instituídas, — ou de instituições semelhantes, que diziam respeito a esse estado, não transcendem a
ordem das causas literais. Por onde, por uma causa literal é que se determinou a celebração da Páscoa,
porque era o sinal da libertação do cativeiro do Egito; e a circuncisão, que era sinal do pacto feito entre
Deus e Abraão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção procederia se os preceitos cerimoniais tivessem sido dados só


para figurar o futuro, e não para nesse tempo cultuar a Deus.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Assim como, conforme já dissemos (q. 96, a. 1) as leis humanas se fundam na
razão universal, e não em condições particulares dependentes do arbítrio dos que as instituem, assim
também, muitas determinações particulares das cerimônias da lei antiga, não tinham nenhuma causa
literal, senão só figurada; mas, em comum, também tinham causa literal.

Art. 3 — Se se pode assinalar uma razão conveniente das cerimônias


relativas aos sacrifícios.
(In Psalm. XXXIX; In Isaiam., cap. I; In Ioann., cap. I, lect. XIV).

O terceiro discute-se assim. — Parece que não se pode assinalar razão conveniente das cerimônias
relativas aos sacrifícios.

1. — Pois, no sacrifício se oferecia o necessário ao sustento da vida humana, como certos animais e
certos pães. Ora, Deus não precisa de tal sustento, conforme a Escritura (Sl 49, 13): Porventura comerei
carnes de touros? Ou beberei sangue de cabrito? Logo, inconveniente era oferecer tais sacrifícios a
Deus.

2. Demais. — No sacrifício divino não se ofereciam senão animais quadrúpedes dos três gêneros
seguintes: bois, ovelhas e cabras. E quanto às aves, em geral, a rôla e a pomba; e em especial, para a
cura dos leprosos, fazia-se o sacrifício de pardais. Ora, muitos animais há mais nobres que esses. E como
devemos oferecer a Deus tudo o que é ótimo, resulta que se lhe deviam oferecer sacrifícios não só dos
animais supra-referidos.

3. Demais. — Assim como o homem recebeu de Deus o domínio sobre as aves e os animais, assim
também sobre os peixes. Logo, inconveniente era excluir a estes do sacrifício divino.

4. Demais. — Ordenava-se oferecem-se indiferentemente rôlas e pombas. Por onde, assim como
mandavam oferecer os filhotes dos pombos, assim também deviam mandar se oferecessem os das
rôlas.

5. Demais. — Deus é o autor da vida, não só dos homens, mas também dos animais, como é claro pelo
que diz a Escritura (Gn 1, 20). Ora, a morte se opõe à vida. Logo, não deviam oferecer a Deus animais
mortos, mas ao contrário vivos, e tanto mais quanto também o Apóstolo adverte (Rm 12,
1): ofereçamos os nossos corpos como uma hóstia viva, santa, agradável a Deus.

6. Demais. — Se a Deus não se deviam oferecer em sacrifícios senão animais mortos, parece que não se
devia fazer nenhuma diferença entre os modos por que o era. Logo, inconveniente era determinar o
modo da imolação, sobretudo no que respeita às aves, como se vê na Escritura (Lv 1, 15 ss).
7. Demais. — Toda imperfeição do animal é via para a corrupção e a morte. Se pois se ofereciam a Deus
animais mortos, era inconveniente proibir a oferta de qualquer animal imperfeito, p. ex., manco, cego
ou com algum outro defeito.

8. Demais. — Os que oferecem vítimas a Deus devem participar delas, conforme aquilo do Apóstolo (1
Cor 10, 18): os que comem as vítimas por ventura não tem parte com o olhar? Logo, era inconveniente
subtrair aos oferentes certas partes das vítimas, como o sangue e a gordura, o peitinho e a espádua
direita.

9. Demais. — Assim como os holocaustos eram oferecidos em honra de Deus, assim também o eram as
hóstias pacíficas e as pelo pecado. Ora, nenhum animal do sexo feminino era oferecido a Deus como
vítima; faziam-se entretanto holocaustos tanto de quadrúpedes, como de aves. Logo, era inconveniente
oferecer animais do sexo feminino, como hóstias pacíficas e pelo pecado, sem entretanto, se
oferecerem aves para esse mesmo fim.

10. Demais. — Todas as hóstias pacíficas se consideravam como de um só gênero. Logo, não se devia
fazer diferença entre as hóstias, cuja carne não se podia, e outros, de que se podia comer no dia
seguinte, como se lê na Escritura (Lv 7, 15 ss).

11. Demais. — Todos os pecados tem isto de comum o afastarem de Deus. Logo, devia se oferecer um
só gênero de sacrifícios, por todos os pecados, para reconciliar com Deus.

12. Demais. — Todos os animais oferecidos em sacrifícios, o eram de um mesmo modo, i. é, mortos.
Logo, não parece conveniente se fizessem oblações de diversos modos de todos os produtos da terra;
pois, ora, eram oferecidas espigas, ora, flor de farinha, ora, pão cozido, umas vezes, no forno, outras, em
frigideira, outras, em grelhas.

13. Demais. — Devemos reconhecer como provindo de Deus tudo o que temos para o nosso uso. Logo,
era inconveniente, além dos animais, oferecer a Deus só pão, vinho, azeite, incenso e sal.

14. Demais. — Os sacrifícios de corpos exprimem o sacrifício interno do coração, pelo qual o homem
oferece o seu espírito a Deus. Ora, nesse sacrifício interior há mais da doçura, representada pelo mel, do
que do picante, representado pelo sal, conforme o dito da Escritura (Sr 24, 27): o meu espírito é mais
doce que o mel. Logo, inconvenientemente se proibia trazer, para o sacrifício, mel e fermento, que
também dá sabor ao pão; e se mandava oferecer sal, que é picante, e incenso, que é amargo de sabor.
— Logo, as coisas pertencentes às cerimônias dos sacrifícios não tinham causa racional.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Lv 1, 13): o sacerdote queimará tudo sobre o altar em holocausto e
suave cheiro para o Senhor. Ora, como se diz noutro lugar (Sb 7, 28), Deus a ninguém ama senão ao que
habita com a sabedoria. Donde se pode concluir que tudo o que é recebido por Deus o é com sabedoria.
Logo, aquelas cerimônias dos sacrifícios se fundavam em sabedoria, tendo, como tinham, causas
racionais.

SOLUÇÃO. — Como já se disse (a. 2), as cerimônias da lei antiga tinham dupla causa: uma literal, pela
qual se ordenavam ao culto de Deus; outra, figurada ou mística, enquanto ordenadas a figurar Cristo.
E, num e noutro caso, podemos convenientemente assinalar a causa das cerimônias relativas aos
sacrifícios.

Assim, enquanto se ordenavam ao culto de Deus, de dois modos podemos compreender a causa dos
sacrifícios. — De um modo, enquanto representavam a ordenação da mente para Deus, para quem se
elevava o que oferecia o sacrifício. Ora, a ordenação reta da mente para Deus consiste em o homem
considerar como procedente dele, como do primeiro princípio, todas as coisas que tem; e para ele as
ordenar, como para o último fim. E isto era expresso pelas oblações e sacrifícios, pelos quais o homem
oferecia das suas coisas em honra de Deus, como em reconhecimento de as ter recebido d'Êle,
conforme o que disse Davi (1 Cr 29, 14):Tudo é teu; e o que recebemos da tua mão, nós isso mesmo te
oferecemos. Por onde, na oblação dos sacrifícios o homem proclamava que Deus é o princípio primeiro
da criação das coisas, e o fim último a que tudo se deve referir. — E como a ordenação reta da mente
para Deus consiste em a mente humana não reconhecer nenhum outro princípio, autor das coisas,
senão só Deus, nem constituir o seu fim em nenhuma outra coisa, por isso a lei proibia oferecer
sacrifício a quem quer que fosse, exceto Deus, conforme àquilo (Ex 22, 20): aquele que sacrificar aos
deuses, à exceção só do Senhor, morrerá. Por onde e de outro modo, podemos dar a razão da causa das
cerimônias relativas ao sacrifício, dizendo, que por elas os homens deixavam de fazer sacrifícios aos
ídolos. Por isso, também os preceitos sobre os sacrifícios não foram dados ao povo judeu, senão depois
que caiu na idolatria, adorando um bezerro de metal fundido. Sendo assim, esses sacrifícios foram
instituídos, para que o povo, pronto a sacrificar, os oferecesse antes a Deus que aos ídolos. Donde o
dizer Jeremias (Jr 7, 22) — Eu não falei com vossos pais, nem lhes mandei, no dia em que os tirei da
terra do Egito, coisa alguma acerca dos holocaustos e das vítimas.

Dentre todos os dons, porém, que Deus fez ao gênero humano, já caído no pecado, o principal foi o de
seu Filho. Donde o dizer a Escritura (Jo 3, 16): assim amou Deus ao mundo, que lhe deu o seu Filho
unigênito, para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. Por isso, o maior dos
sacrifícios foi o de Cristo, que se entregou a si mesmo, em odor de suavidade, no dizer da Escritura (Ef 5,
2). E, todos os outros sacrifícios da lei antiga eram oferecidos para figurarem esse sacrifício singular e
precípuo, como o perfeito é figurado pelo imperfeito. Donde o dito do Apóstolo (Heb 10, 11), que o
sacerdote da lei antiga oferecia muitas vezes as mesmas hóstias, que nunca podem tirar os pecados;
mas, Cristo, ofereceu uma só hóstia pelos pecados, sempiternamente. E como do figurado se deduz a
razão de ser da figura, as razões dos sacrifícios figurativos da lei antiga devem-se deduzir do verdadeiro
sacrifício de Cristo.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Deus não queria que tais sacrifícios lhe fossem
oferecidos, por causa das coisas mesmas oferecidas, como se delas precisasse; donde o dizer a Escritura
(Is 1, 11): não quero mais holocaustos de carneiro, nem gordura d'animais médios, nem sangue de
bezerros, nem de cordeiros, nem de bodes. Mas, queria que lh'os oferecessem como já se disse, quer
para excluir a idolatria, quer para fazer sentir a ordem devida da mente humana para Deus; quer
também para figurar o mistério da redenção humana operado por Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Havia uma razão conveniente para que fossem oferecidos a Deus em
sacrifício todos esses animais referidos e não, outros. — A primeira era para excluir a idolatria. Porque
todos os outros animais os idólatras os ofereciam aos seus deuses, ou deles usavam para malefícios. Ao
passo que era abominável imolar os animais referidos, entre os egípcios, com quem conviviam os
judeus; e por isso aqueles não os ofereciam aos seus deuses, em sacrifício. Por isso, diz a Escritura (Ex 8,
26): Viremos a fazer sacrifícios ao Senhor nosso Deus, o que os Egípcios têm por uma abominação. Pois,
prestavam culto às ovelhas; veneravam os bodes, porque na figura deles os demônios apareciam; e
enfim, usavam dos bois para a agricultura, que tinham como parte das coisas sagradas. — A segunda
razão era por serem os sacrifícios desses animais convenientes para a referida ordenação da mente para
Deus. E isto de dois modos. Primeiro, porque com esses animais é que sobretudo se sustenta a vida
humana; e sendo eles os mais puros, dão a mais pura nutrição. Ao passo que, dos outros animais, uns
são silvestres e não apropriados comumente ao uso dos homens; ou, se domésticos, proporcionam
nutrição imunda, como o porco e a galinha. Ora, só o que é puro devemos oferecer a Deus. Quanto às
aves referidas, eram as especialmente sacrificadas, por existirem copiosamente na terra da promissão.
Segundo, porque a imolação desses animais designava a pureza da mente. Pois, diz a Glosa: oferecemos
o bezerro, quando vencemos a soberba da carne; o cordeiro, quando corrigimos os movimentos
irracionais; o bode, quando superamos a lascívia; a pomba, quando somos simples; a rola, quando
guardamos a castidade; os pães ázimos, quando nos nutrimos do ázimo da sinceridade.Pois, é
manifesto, que a pomba exprime a caridade e a simplicidade do coração. — Em terceiro lugar, era
conveniente serem oferecidos tais animais, como figurando a Cristo. Pois, diz a mesma Glosa: Cristo era
oferecido no bezerro, por causa da virtude da cruz; no cordeiro, por causa da inocência; no carneiro, por
causa do principado; no bode, por causa da semelhança com a carne do pecado; na rôla e na pomba,
mostrava-se a união das duas naturezas; ou a rola significava a castidade, e a pomba, a caridade. Com
flor de farinha, figurava-se a aspersão dos crentes pela água do batismo.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os peixes, que vivem na água, são mais alheios ao homem que os outros
animais, que vivem no ar, como ele próprio. E além disso, tirados dela logo morrem; por isso não
podiam, como os outros animais, ser oferecidos no templo.

RESPOSTA À QUARTA. — As rolas já crescidas são melhores que os filhotes; com as pombas, porém, dá-
se o contrário. Por isso, como diz Rabbi Moisés, mandavam se oferecer rolas e filhotes de pombas;
porque devemos oferecer a Deus tudo o que é ótimo.

RESPOSTA À QUINTA. — Os animais oferecidos em sacrifício eram mortos, para assim, serem
consumidos pelos homens; pois Deus lhos deu como alimento. E também eram queimados no fogo,
porque, cozidos nele, se tornam apropriados à alimentação humana. — Semelhantemente, a imolação
dos animais significava a destruição dos pecados; e que os homens eram dignos de morte, pelos seus
pecados, isso significando esses animais sacrificados em lugar deles, para a expiação de tais pecados. —
E também a imolação desses animais significava a imolação de Cristo.

RESPOSTA À SEXTA. — A lei determinava um modo especial de imolar os animais, para excluir outros
modos pelos quais os idólatras os imolavam aos ídolos. Ou também, como diz Rabbi Moisés, a lei
escolhia o gênero de morte que menos fizesse sofrer os animais imolados, pelo que também se excluía a
falta de misericórdia dos oferentes, e a deterioração dos animais mortos.

RESPOSTA À SÉTIMA. — Os animais defeituosos são de ordinário desprezados, mesmo pelos homens;
por isso era proibido oferecê-los em sacrifício a Deus. Pela mesma razão era proibido oferecer na casa
de Deus o ganho da prostituta ou o preço do cão. E por isso também não ofereciam animais antes do
sétimo dia de terem nascido; por serem quase abortivos e não ainda plenamente constituídos, pela sua
tenra idade.

RESPOSTA À OITAVA. — Havia três gêneros de sacrifícios. — Um era aquele em que se consumiam
totalmente as vítimas; e por isso se chamava holocausto, que significa queimado totalmente. E esse
sacrifício era oferecido a Deus especialmente para Lhe reverenciar a majestade e o amor da sua
bondade; e convém ao estado de perfeição, no implemento dos conselhos. Por isso tudo se queimava
para significar que, assim como o animal todo, resolvido em vapor, sobe aos ares, assim também o
homem todo, com tudo o que lhe pertence, está sujeito ao domínio de Deus, a quem deve oferecer-se.

Outro era o sacrifício pelos pecados, oferecido a Deus, pela necessidade de os remir; e convém ao
estado dos penitentes para a satisfação dos pecados. Continha duas partes, das quais, uma se queimava
e cedia-se a outra para ser consumida pelos sacerdotes, para significar que a expiação dos pecados sefaz
por Deus, pelo ministério dos sacerdotes. Salvo, quando o sacrifício era oferecido pelo pecado de todo o
povo, ou especialmente, pelo do sacerdote; pois então as vítimas eram totalmente queimadas. Porque
não devia destinar-se a alimento dos sacerdotes o que era oferecido pelo pecado deles, para que neles
não ficasse nada de pecaminoso. E porque, em tal caso, não haveria satisfação pelo pecado; pois, se as
vítimas devessem ser comidas por aqueles por cujos pecados eram oferecidas, seria o mesmo que não o
terem sido.

O terceiro sacrifício era o chamado hóstia pacífica, oferecido a Deus, ou em ação de graças, ou pela
saúde e prosperidade dos oferentes, como dívida do benefício a receber ou já recebido. E convém ao
estado dos que progridem, no cumprir os mandamentos. E estes sacrifícios continham três partes, das
quais, uma era queimada em honra de Deus; a outra cedia-se para ser comida pelos sacerdotes; a
terceira, enfim, para ser comida pelos oferentes. Isto tudo para significar que a salvação do homem vem
de Deus, sob a direção dos seus ministros, e com a cooperação dos próprios homens que são salvos.

Além disso, era geralmente observado, que o sangue e a gordura não deviam ser comidos pelos
sacerdotes nem pelos oferentes. Sendo o sangue derramado na base do altar, em honra de Deus; e a
gordura, consumida no fogo. — E uma razão disso era excluir a idolatria; pois, os idólatras bebiam o
sangue das vítimas e comiam as gorduras, conforme a Escritura (Dt 32, 38): De cujas vítimas comiam as
banhas e bebiam o vinho das libações. — A segunda razão era a direção da vida humana. Pois, proibia-se
o uso do sangue para causar horror da efusão do sangue humano; donde o dizer a Escritura (Gn 9, 4-
5): Não comereis carne com sangue; porque eu requererei o sangue das vossas almas. E comer as
gorduras, para evitar a lascívia; donde a Escritura (Ez 34, 3): matáveis o que era mais gordo. — A terceira
razão se fundava na reverência divina. Pois, o sangue é o que há de mais necessário à vida, vindo de aí o
dizer-se, que a alma está no sangue; ao passo que a gordura indica a abundância da nutrição. Por onde,
para se mostrar que de Deus nos vem a vida e a abundância de todos os bens, em honra d'Êle se
derramava o sangue e queimava a gordura. — A quarta razão era que a efusão do sangue significava a
do sangue de Cristo; e a gordura, a abundância da sua caridade, pela qual se ofereceu a Deus por nós.

Das hóstias pacíficas cediam-se para serem comidos pelos sacerdotes, o peitinho e a espádua direita,
para excluir uma certa espécie de adivinhação, chamada espatulamância. Pois faziam-se adivinhações
com as espáduas dos animais imolados e, semelhantemente, com os ossos do peito; razão pela qual
dessas partes eram privados os oferentes. — Mas isso também significava que ao sacerdote era
necessária a sabedoria do coração, para instruir o povo, significada pelo peito, que cobre o coração; e
também a fortaleza, para suportar os defeitos, significada pela espádua direita.

RESPOSTA À NONA. — Como o holocausto era o perfeitíssimo dos sacrifícios, só o macho era desse
modo oferecido, porque a fêmea é um animal imperfeito. Por outro lado, a oblação das rolas e das
pombas era por causa da pobreza dos oferentes, que não podiam oferecer animais maiores. E como as
hóstias pacíficas eram oferecidas gratuitamente, e ninguém as oferecia obrigado, senão
espontaneamente, as aves referidas não eram oferecidas como hóstias dessa espécie, mas como
holocaustos e vítimas pelo pecado, que às vezes era necessário oferecer. E demais, essas aves, por causa
da altura do seu vôo, convinham à perfeição dos holocaustos; e também a serem vítimas pelo pecado,
por terem, como canto, o gemido.

RESPOSTA À DÉCIMA. — O holocausto era o principal dentre todos os sacrifícios; porque a vítima toda
era queimada em honra de Deus e nada dela se comia. — O segundo lugar, na santidade, tinha-o a
vítima pelo pecado, comida só no átrio, pelos sacerdotes, no dia mesmo do sacrifício. — O terceiro, era
o da vítima pacífica, em ação de graças, comida no mesmo dia, mas em todos os lugares de Jerusalém.
— O quarto, o da hóstia pacífica, em virtude de voto, cujas carnes podiam ser comidas no dia seguinte.
— E a razão desta ordem é que o homem tem obrigações, para com Deus, sobretudo, por causa da sua
majestade; em segundo lugar, por causa da ofensa cometida; em terceiro, pelos benefícios já recebidos;
em quarto, pelos benefícios esperados.

RESPOSTA À UNDÉCIMA. — Os pecados se agravam pelo estado do pecador, como dissemos (q. 73, a.
10). Por isso, mandavam-se oferecer as outras vítimas pelo pecado do sacerdote e do príncipe, ou de
alguma pessoa privada. Pois, deve-se atender, como diz Rabbi Moisés, a que, quanto mais grave era o
pecado, tanto mais vil era a espécie do animal por ele oferecida. Por isso, a cabra, o mais vil de todos,
era oferecida pela idolatria, o gravíssimo dos pecados; ao passo que, pela ignorância do sacerdote, era
oferecido um bezerro; e pela negligência do príncipe, um bode.

RESPOSTA À DUODÉCIMA. — A lei, nos sacrifícios, quis prover à pobreza dos oferentes. De modo que,
quem não pudesse ter um quadrúpede, oferecesse pelo menos uma ave; o que não a pudesse ter,
oferecesse ao menos um pão; e quem ainda esse não o pudesse ter, oferecesse ao menos farinha ou
espigas. — E a causa figurada disso era que o pão significava Cristo, pão vivo, como diz a Escritura (Jo 6,
41-51). E Cristo, na fé dos patriarcas, existia como espiga, no estado da lei da natureza; como flor de
farinha, na doutrina da lei e dos profetas; como pão formado, depois que assumiu a humanidade; como
pão cozido, i. é, formado pelo Espírito Santo, no forno do útero virginal;que também foi cozido em
frigideira, por causa dos trabalhos que sofreu no mundo; e enfim, na cruz, como que queimado em
grelhas.

RESPOSTA À DÉCIMA TERCEIRA. — Os produtos da terra, de que o homem lança mão, ou lhe servem de
comida, e desses se oferecia o pão; ou de bebida, dos quais se oferecia o vinho; ou de condimento, e
dentre esses se oferecia o azeite e o sal; ou de remédios, e dentre esses se oferecia incenso, que é
aromático e fortificante. — Ora, o pão figurava a carne de Cristo; o vinho, o seu sangue, que nos remiu;
o azeite, a graça de Cristo; o sal a ciência; o incenso, a oração.

RESPOSTA À DÉCIMA QUARTA. — O mel não era oferecido em sacrifício a Deus, quer por costumarem
oferecê-lo em sacrifício aos ídolos; quer, também para excluir toda doçura carnal e todo prazer dos que
pretendiam sacrificar a Deus. O fermento não era oferecido, para excluir a corrupção; e talvez também
era costume oferecê-lo nos sacrifícios aos ídolos. O sal o era, por impedir a corrupção pútrida, pois os
sacrifícios a Deus deviam ser puros; etambém porque o sal significava a discreção da sabedoria, ou
ainda, a mortificação da carne. O incenso era oferecido a Deus, para significar a devoção do coração,
necessária aos oferentes; e também o odor da boa fama, pois o incenso é resinoso e odorífero. E como o
sacrifício da inveja não procedia da devoção, mas antes, da suspeição, nele não se oferecia incenso.

Art. 4 — Se se pode dar razão suficiente das cerimônias da lei antiga


relativas às coisas sagradas.
(Ad Coloss., cap. II, lect. IV; Ad Hebr., cap. IX,lect. I).

O quarto discute-se assim. — Parece que das cerimônias da lei antiga, relativas às coisas sagradas, não
se pode dar razão suficiente.

1. — Pois, diz Paulo (At 17, 24): Deus, que fez o mundo, e tudo o que nele há, sendo ele o Senhor do céu
e da terra, não habita em templos feitos pelos homens. Logo, a lei antiga institui inconvenientemente,
para o culto de Deus, o tabernáculo ou templo.
2. Demais. — A estrutura da lei antiga não foi mudada senão por Cristo. — Ora, o tabernáculo designava
a estrutura dessa lei. Logo, não devia ser mudado pela edificação de nenhum templo.

3. Demais. — A lei divina deve sobretudo induzir os homens ao culto divino. Ora, para o desenvolver-se
do culto divino é necessário fazerem-se muitos altares e templos, como claramente se vê na lei nova.
Logo, mesmo no regime da lei antiga, não devia haver só um templo ou tabernáculo, mas muitos.

4. Demais. — O tabernáculo ou templo ordenava-se ao culto de Deus. Ora, em Deus devemos venerar
sobretudo a unidade e a simplicidade. Logo, não era conveniente que o tabernáculo ou templo se
distinguisse por certos véus.

5. Demais. — A virtude do primeiro motor, que é Deus, se manifesta primeiro na parte do Oriente, onde
começa o primeiro movimento. Ora, o tabernáculo foi instituído para a adoração de Deus. Logo, devia
estar voltado mais para o Oriente que para o Ocidente.

6. Demais. — O Senhor mandou (Ex 20, 4) não se fizesse imagem de escultura, nem figura alguma. Logo,
inconvenientemente se esculpiram, no tabernáculo ou templo, imagens de querubins.
Semelhantemente, aí se viam, sem causa racional, a arca, o propiciatório, o candelabro, a mesa e o altar
duplo.

7. Demais. — O Senhor mandou (Ex 20, 24): Far-me-eis um altar de terra. — E ainda (Ex 20, 26): Não
subirás por degraus ao meu altar. Logo, inconvenientemente se mandou, depois, fazer um altar de ma-
deira, ouro ou cobre, e de tanta altura, que só por degraus se podia subir a ele. Pois, diz a Escritura (Ex
27, 1-2): Farás também um altar de pau setim, o qual terá cinco côvados ao cumprimento e outros
tantos de largura, e terá três côvados de alto, e o cobrirás de cobre. E (Ex 30, 1-3): Farás um altar de
madeira de setim para queimar os perfumes. E o cobrirás de puríssimo ouro.

8. Demais. — Nas obras de Deus nada deve ser supérfluo, porque nem nas da natureza isso se dá. Ora, a
um tabernáculo ou casa basta uma coberta. Logo, era inconveniente se lhe sobre-porem muitas
cobertas, a saber: cortinas, cobertas de pele de cabra, peles de carneiro tintas de vermelho e peles
tintas de roxo.

9. Demais. — A consagração exterior significava a interior, cujo sujeito é a alma. Logo,


inconvenientemente era consagrado o tabernáculo e os seus vasos, que eram corpos inanimados.

10. Demais. — A Escritura diz (Sl 33, 2): Bendirei o Senhor em todo o tempo; seu louvor será semprena
minha boca. Ora, as solenidades são instituídas para louvar a Deus. Logo, não era conveniente se
estatuírem certos dias para realizar as solenidades. — De tudo isso resulta, que as cerimônias das coisas
sagradas não tinham causas convenientes.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 8, 4): os que oferecem os dons segundo a lei servem de modelo
e sombra das coisas celestiais; como foi respondido a Moisés quando estava para acabar o tabernáculo:
Olha, disse, faze todas as coisas conforme o modelo que te foi mostrado no monte. Ora, é muito
racional o que representa a imagem das coisas celestes. Logo, as cerimônias das coisas sagradas tinham
causa racional.

SOLUÇÃO. — Todo o culto externo de Deus se ordena principalmente a os homens o reverenciarem.


Ora, é próprio do afeto humano reverenciar menos o que é comum e sem distinção particular; e prestar
mais reverência e admiração ao que tem alguma excelência e se distingue do comum. E daí vem ter o
costume humano estabelecido, que os reis e os príncipes, que devem ser reverenciados pelos súbditos,
sejam ornados de vestes mais preciosas e também possuam habitações mais amplas e mais belas. E por
isso, era necessário fossem ordenados ao culto de Deus, certos tempos especiais, um tabernáculo
especial, vasos especiais e ministros especiais, para assim provocarem o espírito dos homens à maior
reverência d'Ele. — Semelhantemente, como já dissemos (a. 2; q. 100, a. 12; q. 101, a. 2), a estrutura da
lei antiga tinha por fim figurar o mistério de Cristo. Ora, é forçoso seja algo de determinado aquilo que
deve figurar alguma coisa; de modo que representa uma semelhança dela. Por onde, também era
necessário se observassem certas disposições especiais concernentes ao culto de Deus.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O culto de Deus implica duas condições: o Deus adorado
e os homens que o adoram. Ora, Deus, que é adorado, não se encerra em nenhum lugar material e por
isso, não era preciso se lhe construísse um tabernáculo especial ou um templo. Ao contrário, os homens
que o adoram, são seres corpóreos; e, por causa deles, era necessário se construísse um tabernáculo
especial ou um templo, para o culto de Deus. E isto por duas razões. — A primeira, que os homens,
reunidos nesse lugar, com o pensamento de serem destinados a adorar a Deus, o fizessem com maior
reverência. — A segunda, que a disposição desse templo ou do tabernáculo significasse algo de
condescende com a excelência da divindade ou humanidade de Cristo. E é o que diz Salomão (1 Rs 8,
27): se o céu e céu dos céus te não podem compreender, quanto menos esta casa que eu edifiquei? E,
em seguida acrescenta (1 Rs 8, 29-30): os teus olhos estejam abertos de noite e de dia sobre esta casa
da qual disseste: O meu nome estará nela; para ouvires a oração do teu servo e do teu povo de Israel.
Por onde é claro, que a casa do santuário não foi instituída para compreender a Deus, como se nela
habitasse localmente;mas para que aí habitasse o nome de Deus. Isto é, para que o conhecimento de
Deus se manifestasse pelo que se aí fazia e dizia; e para, pela reverência ao lugar, as orações se
tornarem mais dignas de serem ouvidas, pela devoção dos que oravam.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A estrutura da lei antiga, quanto ao seu cumprimento, não foi mudada antes
de Cristo; mas só por Cristo isso se fez. Foi mudada, porém, quanto à condição do povo que ela regia.
Pois, primeiro, esteve no deserto, sem morada certa; depois, teve várias guerras com as nações vizinhas;
ultimamente, no tempo de Davi e de Salomão, viveu tempos tranqüilos. E então foi, pela primeira vez,
edificado o templo no lugar designado por Abraão, por indicação divina, para se aí fazerem as
imolações. Pois, como diz a Escritura (Gn 22, 2), o Senhor mandou a Abraão oferecesse o seu filho em
holocausto sobre um dos montes que eu te mostrar; e depois disse (Gn 22, 14), que pôs por nome
aquele lugar: O Senhor vê, quase, por previsão de Deus, fosse aquele lugar escolhido para o culto divino.
Pelo que diz a Escritura (Dt 12, 5-6): Vireis ao lugar que o Senhor vosso Deus escolher e oferecereis os
vossos holocaustos e vítimas. Ora, esse lugar, para a edificação do templo, não devia ser designado
antes do tempo predito, por duas razões dadas pelo Rabbi Moisés. A primeira, para que os gentios se
não apropriassem desse lugar. A segunda, para que não o destruíssem. A terceira enfim, para que
qualquer das tribos não pretendesse tê-lo como seu lote, donde nascessem demandas e litígios. Por
isso, não se devia edificar o templo enquanto não houvesse um rei, capaz de impedir esses litígios. E,
antes dessa edificação, ordenava-se ao culto de Deus um tabernáculo portátil por diversos lugares,
quase ainda não existente um lugar determinado para o culto divino. E esta é a razão literal da
diversidade do tabernáculo e do templo. — A razão figurada pode ser que essas duas coisas significavam
um duplo estado. O tabernáculo, que era mutável, significa o regime da vida presente também mutável.
O templo, por seu lado, fixo e permanente, o regime da vida futura, absolutamente invariável. E por
isto, na edificação do templo, diz a Escritura, que não se ouvia o som de martelo nem machado, para
significar que toda atividade perturbadora era estranha ao estado futuro. Ou, o tabernáculo significava o
regime da lei antiga; e o templo, construído por Salomão, o da lei nova. Por onde, na construção do
tabernáculo, só os judeus trabalharam; ao passo que, na do templo, cooperavam também os tírios e
sidónios, que eram gentios.
RESPOSTA À TERCEIRA. — A razão da unidade do templo ou do tabernáculo pode ser literal e figurada.
— A literal era a exclusão da idolatria; porque os gentios atribuíam templos diversos aos diversos
deuses. Por onde, para que se radicasse no espírito dos homens a fé na unidade divina, quis Deus se lhe
oferecesse sacrifício só num lugar. Ademais disso, para assim mostrar que o culto material não lhe é em
si mesmo aceito. Pelo que, impedia se oferecessem sacrifícios a cada passo e em toda parte. Ao
contrário, o culto da lei nova, em cujo sacrifício está contida a graça espiritual, é, em si mesmo, aceito
de Deus. Por isso, a lei nova admite a multiplicação dos altares e dos templos. Quanto ao pertencente
ao culto espiritual de Deus, que consistia na doutrina da lei e dos profetas, havia ainda, na lei antiga,
diversos lugares determinados, chamados sinagogas, em que o povo se reunia para louvar a Deus.
Assim, chamam-se também agora igrejas os lugares em que para louvá-Lo, se congrega o povo cristão.
Por onde, a nossa Igreja tomou o lugar do templo e da sinagoga; porque, sendo o seu sacrifício
espiritual, não distinguimos agora o lugar do sacrifício do lugar da doutrina. — A razão figurada pode
ser, que o templo e o tabernáculo significam a unidade da Igreja, militante, ou triunfante.

RESPOSTA À QUARTA. — Assim como a unidade do templo ou do tabernáculo representam a de Deus


ou da Igreja, assim também, a distinção entre um e outro representa a distinção entre as coisas sujeitas
a Deus, e que nos elevam a venerá-Lo. Pois, distinguiam-se no tabernáculo duas partes: a ocidental
chamada o Santo dos Santos; e a oriental, chamada Santo. E, enfim, ante ele, havia o átrio.

Ora, esta distinção se fundava em dupla razão. — Uma, pela qual o tabernáculo se ordenava ao culto de
Deus. E assim, as diversas partes do mundo estavam figuradas nas duas partes do tabernáculo. Pois, a
chamada Santo dos Santos simbolizava o mundo superior, que é o das substâncias espirituais; e a
chamada Santo, o mundo corpóreo. Por onde, o Santo se separava do Santo dos Santos por um véu, pin-
tado de quatro cores, símbolos dos quatro elementos. Essas eram: o bisso, símbolo da terra, porque o
bisso, i. é, o linho nasce da terra; a púrpura, símbolo da água, porque a cor purpúrea era feita de certas
conchas que se encontram no mar; o jacinto, que significava o ar, que tem cor de ouro; e a escarlata
duas vezes tinta, que designava o fogo. E isto era assim porque a matéria dos quatro elementos é um
impedimento que nos vela as substâncias incorpóreas. Por onde, no tabernáculo interior, i. é, no Santo
dos Santos, só o sumo sacerdote entrava, e uma só vez no ano, para significar que a perfeição final do
homem é a entrada no mundo espiritual. No tabernáculo exterior, i. é, no Santo, o sacerdote entrava
todos os dias, não porém o povo, que tinha acesso só ao átrio. Porque as coisas corpóreas o povo pode
percebê-las, mas as razões internas delas só os sapientes, refletindo, podem atingi-las. Quanto à razão
figurada, o tabernáculo exterior, chamado Santo simboliza o regime da lei antiga, como diz o Apóstolo
(Heb 9, 6 ss). Porque nele sempre entravam os sacerdotes para cumprirem o ofício de sacrificar.
Enquanto o tabernáculo interior, chamado Santo dos Santos significa a glória celeste, ou também o
regime espiritual da lei nova, que é um quase começo da glória futura, estado, em que Cristo nos
introduziu. E era figurado pela entrada só do sumo sacerdote, uma vez no ano, no Santo dos Santos. —
O véu, por seu lado, significava a ocultação dos sacrifícios antigos; e era ornado de quatro cores signifi-
cativas. O bisso, símbolo da pureza da carne; a púrpura, dos sofrimentos que os santos padeceram por
Deus; a escarlata duas vezes tinta, da dupla caridade para com Deus e o próximo; o jacinto, da
meditação celeste. — Mas o povo e os sacerdotes tinham relações diferentes com a lei antiga. Pois,
aquele assistia aos sacrifícios corporais que se ofereciam no átrio; ao passo que os sacerdotes
meditavam na essência deles, com fé mais explícita nos mistérios de Cristo. Por isso entravam no
tabernáculo exterior, que também estava separado do átrio por um véu, porque certas coisas, sobre o
mistério de Cristo eram veladas ao povo e conhecidas dos sacerdotes. Mas não lhes eram plenamente
reveladas, como depois, no Novo Testamento, conforme a Escritura (Ef 3, 5).
RESPOSTA À QUINTA. — Os judeus adoravam com a cara voltada para o ocidente; o que foi introduzido
na lei para excluir a idolatria, pois, todos os gentios, em reverência ao sol, adoravam voltados para o
oriente. Donde o dizer a Escritura (Ez 8, 16), que certos tinham as costas voltadas para o templo do
Senhor e as caras viradas para o oriente, e adoravam o sol nascendo. E era para excluir isso, que o
tabernáculo tinha o Santo dos Santos voltado para o ocidente, para o adorarem voltados para esse
ponto. — Quanto à razão figurada, pode ser que a estrutura do antigo tabernáculo se ordenava a
significar a morte de Cristo, figurada pelo ocaso, conforme a Escritura (Sl 67, 5): Aquele que sobe sobre
o ocidente, o Senhor é o seu nome.

RESPOSTA À SEXTA. — Pode-se dar uma razão literal e, outra, figurada do que se continha no
tabernáculo. — A literal é relativa ao culto divino. Ora, como já dissemos (ad 4), o tabernáculo interior,
chamado Santo dos Santos, significa o mundo superior das substâncias espirituais. Por isso, três coisas
continha esse tabernáculo: a arca do testamento, na qual havia uma urna de ouro, que continha o
maná, e a vara de Aarão, que tinha florescido, e as tábuas do testamento, nas quais estavam escritos os
dez preceitos do decálogo. — E essa arca estava situada entre dois querubins, olhando um para outro.
— Sobre a arca havia uma tábua, chamada propiciatório, apoiada nas azas dos querubins, como se fosse
levada por eles, e levando a imaginar que essa tábua fosse o assento de Deus. E se chamava
propiciatório, querendo significar que Deus, daí, se tornava propício ao povo, pelas preces do sumo
sacerdote. E era conduzido pelos querubins, como sendo os que seguem a Deus. Quanto à arca do
testamento, era um como escabelo de quem estava sentado no propiciatório.

Ora, essas três coisas simbolizam três outras existentes no referido mundo superior. — Deus, que está
acima de todas as coisas e é incompreensível a todas as criaturas. E por isso, não punham nenhuma
figura que lhe representasse a invisibilidade, mas sim, a do seu assento, porque concebemos criatura
enquanto sujeita a Deus, como o assento a quem se assenta. — Há também, nesse mundo superior,
substâncias espirituais chamadas anjos. E estes eram simbolizados pelos dois querubins, olhando um
para o outro, para designar a concórdia dos anjos entre si, conforme àquilo da Escritura (Jó 25,
2): aquele que mantém a concórdia nas alturas. Também não havia um só querubim, para que se de-
signasse a multidão dos espíritos celestes, e se impedisse o culto deles aqueles a quem foi ordenado
adorassem um só Deus. — Demais, nesse mundo inteligível, estão de certo modo, encerradas as razões
eternas do que neste mundo fazemos, assim como as razões dos efeitos estão encerradas nas suas
causas, e, no artífice, as das coisas artificiadas. O que é simbolizado pela arca, que continha três coisas
representativas das três coisas humanas de maior valor, a saber: a sabedoria, simbolizada nas tábuas do
testamento; o poder governamental, na vara de Aarão; e a vida, representada pelo maná, que foi o
sustento dela. Ou ainda, essas três coisas significam os três atributos de Deus: as tábuas, a sabedoria; a
vara, o poder; o maná, a bondade, quer pela sua doçura, quer porque Deus o deu ao seu povo, por
misericórdia, sendo, por isso, conservado, em memória dessa misericórdia.

Essas três coisas também estão figuradas na visão de Isaías. Viu ele ao Senhor sentado num sólio excelso
e elevado, assistido de Serafins, e o templo cheio da glória de Deus. Por isso, clamavam os Serafins:
Cheia está toda a terra da sua glória (Is 6, 1-3). E assim, as imagens dos Serafins não foram aí postas para
receberem culto, o que era proibido pelo primeiro preceito da lei, mas como sinal de ministério,
conforme dissemos.

Por seu lado, o tabernáculo exterior, significativo do século presente, também continha três coisas: o
altar do timiama, posto diretamente contra a arca; a mesa da proposição, na qual se punham os doze
pães, colocada na parte norte; e o candelabro, na parte sul.
E essas três coisas são consideradas como correspondentes às três encerradas na arca, representando,
mas mais manifestamente, o mesmo que elas. Pois é necessário seja, das razões eternas das coisas,
dada mais clara manifestação da existência que têm na mente divina e dos anjos, para poderem os
sábios conhecê-las, sábios simbolizados nos sacerdotes que entram no tabernáculo. — Por isso, o
candelabro designa como em sinal sensível, a sabedoria, expressa nas tábuas por palavras inteligíveis. —
O altar do timiama, o ofício dos sacerdotes, a quem pertence trazer o povo para Deus; o que também é
significado pela vara. Pois, nesse altar se queimava o timiama do bom odor, que significa a santidade do
povo, agradável a Deus; porque, como diz a Escritura (Ap 8, 3), o fumo dos aromas exprime as
justificações dos santos. A dignidade sacerdotal é significada, na arca, pela vara, e no tabernáculo
exterior, pelo altar do timiama. Porque o sacerdote é o mediador entre Deus e o povo, que governa por
poder divino, simbolizado pela vara; e oferecia a Deus, quase no altar do timiama, o fruto do seu
governo, i. é, a santidade do povo. — A mesa, bem como o maná, significam o sustento temporal da
vida; mas o que estava naquela era um alimento mais comum e grosseiro, ao passo que o maná era mais
suave e delicado. O candelabro estava convenientemente colocado na parte austral, e a mesa, na aqui-
lonar; porque aquela é a parte direita do mundo, ao passo que esta é a esquerda, como diz Aristóteles.
A sabedoria pertencia à parte direita, assim como os outros bens espirituais; enquanto que a nutrição
temporal, à esquerda, conforme a Escritura (Pr 3, 16): Na sua esquerda, as riquezas e a glória. Enfim, o
poder sacerdotal é um meio termo entre as coisas temporais e a sabedoria espiritual, pois por ela é
dispensada a sabedoria espiritual e as coisas temporais.

Mas também se pode dar dessas coisas outra razão, mais literal. — Na arca estavam contidas as tábuas
da lei, para impedir o esquecimento dela; donde o dizer a Escritura (Ex 24, 12): dar-te-ei duas tábuas de
pedra e a lei e os mandamentos, que eu escrevi para ensinares os filhos de Israel. — A vara de Aarão
estava aí colocada para reprimir a dissensão entre o povo e o sacerdócio do mesmo, conforme a
Escritura (Nm 17, 10):Torna a levar a vara de Aarão para o tabernáculo do testemunho, para se guardar
ali em memória dos rebeldes filhos de Israel. — O maná era conservado na arca, para comemorar o
benefício que Deus fez aos filhos de Israel no deserto, e por isso, diz a Escritura (Ex 16, 32): Enche um
gomor dele e guarde-se para todas as gerações futuras, para que saibam qual foi o manjar com que eu
vos sustentei no deserto. — O candelabro foi instituído para a honorificência do tabernáculo; pois
importa à magnificência da casa o ser bem iluminada. Tinha sete ramos, como diz Josefo, para significar
os sete planetas, que iluminam todo o mundo. E foi colocado na parte austral, porque dela é que se
movem os planetas, em relação a nós. — O altar, do timiama foi instituído para que sempre houvesse
no tabernáculo o fumo do bom odor, quer para veneração do tabernáculo, quer também para remédio
contra o mau cheiro, que necessariamente resultava do sangue derramado e da imolação dos animais.
Pois, o fétido é desprezado como vil; ao passo que todos apreciam muito o que tem bom odor. — A
mesa foi posta para significar que os sacerdotes, servidores do templo, deviam nele se alimentar. Por
isso, só eles podiam comer dos doze pães superpostos na mesa, em memória das doze tribos, conforme
se lê na Escritura (Mt 12, 4). E não estava colocada diretamente no meio, diante do propiciatório, para
excluir o rito da idolatria. Porque os gentios, nos sacrifícios à lua, colocavam a mesa em frente do ídolo
da lua; donde o dizer a Escritura (Jr 7, 18): as mulheres misturam a manteiga para fazerem tortas à
rainha do céu. — O átrio, fora do tabernáculo, continha o altar dos holocaustos, onde se ofereciam a
Deus, em sacrifício, das coisas pertencentes ao povo. E por isso, este podia ficar no átrio, e oferecia os
seus bens a Deus, por mãos dos sacerdotes. Mas só os sacerdotes, a quem competia oferecer o povo a
Deus, é que podiam ter acesso ao altar interior, no qual era oferecida a devoção e a santidade do povo.
E esse altar estava colocado no átrio, fora do tabernáculo, para impedir o culto da idolatria; pois os
gentios levantavam altares, dentro dos templos, para imolar aos ídolos. Quanto à razão figurada de
todas essas coisas, pode ser descoberta na relação do tabernáculo com Cristo, a quem figura. Por onde,
devemos considerar que, para designar a imperfeição das figuras legais, instituíram-se, no templo,
diversas figuras significativas de Cristo. — Assim, é significado pelo propiciatório, porque ele é a
propiciação pelos nossos pecados, como diz a Escritura (1 Jo 2, 2). E era conveniente fosse o propi-
ciatório levado pelos Querubins, porque de Cristo foi escrito (Heb 1, 6): E todos os anjos de Deus o
adorem. — Também a arca significa a Cristo, porque, assim como era construída de pau setim, assim, o
corpo de Cristo é composto de membros puríssimos. Era dourada, porque Cristo é cheio de sabedoria e
caridade, simbolizadas pelo ouro. Dentro da arca havia uma urna de ouro, isto é, a alma santa, que
encerra o maná, i. é, toda a plenitude da divindade. E ainda nela estava a vara, i. é, o poder sacerdotal,
porque Cristo foi constituído pontífice eterno. Também nelas estavam as tábuas do testamento, para
significar que Cristo mesmo é legislador. — Demais, Cristo é simbolizado pelo candelabro, porque, ele
próprio o disse (Jo 8, 12): Eu sou a luz do mundo. As sete lâmpadas significam os sete dons do Espírito
Santo. — É também simbolizado pela mesa, porque Ele é o alimento espiritual, conforme a Escritura (Jo
6, 41-51): Eu sou o pão vivo; os doze pães significam os doze apóstolos ou a doutrina deles. Ou então, o
candelabro e a mesa podem significar a doutrina e a fé da Igreja, que ilumina e refaz ao mesmo tempo.
Também Cristo é simbolizado no duplo altar, o das holocaustos e o do timiama. Porque, por Ele,
devemos oferecer a Deus todas as obras virtuosas, tanto aquelas pelas quais mortificamos a carne,
como que oferecidas no altar dos holocaustos; como as que, com maior perfeição da mente, pelos
desejos espirituais dos perfeitos, oferecemos a Deus em Cristo, como que no altar do timiama,
conforme a Escritura (Heb 13, 15): Ofereçamos, pois, por ele a Deus sem cessar sacrifício de louvor.

RESPOSTA À SÉTIMA. — O Senhor mandou se construísse um altar onde se deviam oferecer os


sacrifícios e os dons, em honra de Deus e para sustento dos ministros, que serviam no tabernáculo. E
sobre a construção desse altar, o Senhor deu duplo preceito.

Um, no princípio da lei, quando mandou que fizessem um altar de terra, ou ao menos, de pedras não
lavradas; e demais, que não fizessem um altar elevado onde devessem subir por degraus. E isto para
detestarem o culto da idolatria. Pois os gentios construíam aos ídolos altares ornados e altos, onde
acreditavam haver algo da santidade e da divindade. Razão pela qual também o Senhor mandou (Ex 20,
24 ss): Não plantarás bosque nem árvore alguma ao pé do altar do Senhor teu Deus; porque os idólatras
costumavam sacrificar debaixo das árvores, por causa da amenidade do lugar e da sombra. — E destes
preceitos também há uma razão figurada. Pois, em Cristo, que é o nosso altar, devemos admitir a verda-
deira natureza da carne, quanto à sua humanidade — e isso significa o construir um altar de terra; e
também, quanto à divindade, devemos admitir nele a igualdade com o Pai — e isso significa o não subir
por degraus ao altar. E nem devemos, ao lado de Cristo, admitir a doutrina dos gentios, que provoca a
lascívia.

Feito porém o tabernáculo em honra de Deus, não eram para temer tais ocasiões de idolatria. Por isso, o
Senhor mandou se fizesse, para os holocaustos, um altar de bronze, que estivesse patente a todo o
povo; e de ouro, o altar do timiama, que só os sacerdotes viam. Assim, não era tanta a preciosidade do
bronze, que provocasse o povo a alguma idolatria.

Mas, a Escritura dá como razão do preceito (Ex 20, 26) — não subirás por degraus ao meu altar — o que
logo acrescenta: para que se não descubra a tua torpeza. Por onde, devemos considerar que também
isso foi instituído para excluir a idolatria; pois, nos sacrifícios a Priapo, os gentios descobriam as partes
pudendas. Mas depois, foi ordenado aos sacerdotes usassem calções que lhes cobrissem essas partes. E,
assim, sem perigo, podia ser determinada uma altura tal do altar que, para oferecer os sacrifícios, a ele
subissem por uns degraus de madeira, não permanentes, mas trazidos na hora do sacrifício.
RESPOSTA À OITAVA. — O corpo do tabernáculo constava de umas tábuas eretas no sentido do
comprimento, cobertas por dentro de umas cortinas de quatro cores variadas, o saber, de bisso
retorcido, de cor de jacinto, de púrpura e de escarlata tinta duas vezes. Mas, essas cortinas cobriam só
os lados do tabernáculo. No teto do mesmo havia uma coberta de peles tintas de roxo; e, sobre esta,
outra de peles de carneiro tintas de vermelho; e por cima uma terceira, de umas peles de cabra, que
cobriam, não só o teto do tabernáculo, mas desciam até a terra e cobriam, exteriormente, as tábuas do
mesmo.

Ora, desta coberta, a razão literal, em comum, era servir de ornato e proteção do tabernáculo, de modo
que este fosse reverenciado. Em especial, porém, segundo alguns, as cortinas designam o céu sidéreo,
cheio de diversas e variegadas estrelas. As peles de cabra, as águas que estão sobre o firmamento; as
tintas de vermelho, o céu empíreo, em que estão os anjos; as tintas de roxo, o céu da santa Trindade.

A razão figurada dessas coisas é a seguinte. As tábuas, de que o tabernáculo era construído, significavam
os fiéis de Cristo, de que é a Igreja construída. O tabernáculo era coberto por dentro de tábuas de
quatro cores, porque os fiéis são ornados interiormente de quatro virtudes. Pois, como diz a Glosa, o
bisso retorcido significa a carne resplendente pela castidade; o jacinto, a mente desejosa das coisas
celestes; a púrpura, a carne sujeita ao sofrimento; a escarlata tinta duas vezes, a mente refulgente entre
os sofrimentos por amor de Deus e o amor do próximo. As cobertas do teto designam os prelados e os
doutores, que devem brilhar pela vida repassada das coisas celestes, o que é simbolizado pelas peles de
cor de jacinto; pela prontidão para o martírio, simbolizado pelas de escarlata tintas duas vezes; pela
austeridade de vida e a paciência nas adversidades, simbolizado pelas de cabra, que estavam expostas
aos ventos e às chuvas, como diz a Glosa.

RESPOSTA À NONA. — A santificação do tabernáculo e dos seus vasos tem uma causa literal, que era
fazer com que fossem tidos na maior reverência, como destinados que eram ao culto divino por essa
consagração. — A razão figurada é que essa santificação significa a espiritual, do tabernáculo vivo, i. é,
dos fiéis, que constituem a Igreja de Cristo.

RESPOSTA À DÉCIMA. — Na lei antiga havia sete solenidades temporais e uma contínua, como se pode
coligir da Escritura (Nm 28; 29). — Havia uma festividade quase contínua, porque todos os dias, de
manhã e de tarde, era imolado o cordeiro. E essa contínua festividade de um sacrifício perene
representa a perpetuidade da beatitude divina.

Das festas temporais, a primeira era a que se renovava em cada semana. E essa era a solenidade do
Sábado, celebrada em memória da criação das coisas, como já se disse. — Outra a que se repetia cada
mês, era a da Neomenia, celebrada para comemorar a obra do governo divino. Pois, as coisas do nosso
mundo inferior variam principalmente conforme o movimento da lua. Por isso, celebrava-se essa festa
na lua nova; e não no plenilúnio, para evitar o culto dos idólatras, que, nesse tempo, prestavam à lua. —
E como esses dois referidos benefícios são comuns a todo o gênero humano, essas festas se repetiam
mais freqüentemente.

As outras cinco festas celebravam-se uma vez por ano, e nelas se rememoravam os benefícios
especialmente feitos ao povo judeu. — Assim, celebrava-se a festa da Fase, no primeiro mês, para
comemorar o benefício da libertação do Egito. — A de Pentecostes, depois de cinqüenta dias, para
rememorar o benefício da lei que lhes foi dada.

As outras três festas eram celebradas no sétimo mês, que, como o sétimo dia, era quase inteiramente
solene, para os judeus. — Assim, no primeiro dia do sétimo mês, havia a festa das Trombetas, em
memória da liberação de Isaac, quando Abraão encontrou o carneiro preso pelos chifres, o qual
representavam pelas cornetas em que buzinavam. — E era a festa das Trombetas um quase convite para
se prepararem para a festa seguinte, celebrada no décimo dia. Era essa a da Expiação, em memória do
benefício de ter-se Deus tornado propício ao povo, a pedido de Moisés, depois do pecado da adoração
do bezerro. — A seguir, celebravam a da Scenopegia, i. é, dos Tabernáculos, durante sete dias, para
comemorar o benefício da divina proteção, guiando-os pelo deserto, onde habitaram em tabernáculos.
Por isso, nesse dia, deviam tomar o fruto da árvore mais formosa, i. é, do limoeiro; e uma árvore de
densas folhas, i. é, a murta, cujas folhas são odoríferas; e folhas de palmeira; e salgueiros da torrente,
que conservam por muito tempo o verdor. Tudo isso se encontra na terra da promissão, e era para
significar que Deus os conduziu através da terra árida do deserto, para uma terra deliciosa. — No oitavo
dia celebrava-se outra festa, a da Congregação e do Ajuntamento, em que se recebia do povo o
necessário para as despesas com o culto divino. E significava a união do povo e a paz concedida na terra
da promissão.

As razões figuradas dessas festas são as seguintes. O sacrifício perene do cordeiro figura a perpetuidade
de Cristo, que é o Cordeiro de Deus, conforme a Escritura (Heb 13, 8): Jesus Cristo era ontem e é hoje; o
mesmo será também por todos os séculos. — O Sábado designa a réquie espiritual, que Cristo nos deu,
como se lê na Escritura (Heb 4). — A Neomênia, começo da lua nova, significa a iluminação da primitiva
Igreja por Cristo, quando pregava e fazia milagres. — A festa de Pentecostes simboliza a descida do
Espírito Santo sobre os Apóstolos. — A das Trombetas, a pregação dos Apóstolos. — A da Expiação, a
purificação dos pecados do povo cristão. — A dos Tabernáculos, a peregrinação dos cristãos neste
mundo, onde passam progredindo nas virtudes. — A da Congregação e do Ajuntamento, a congregação
dos fiéis no reino celeste; e por isso essa festa era considerada santíssima. E essas três festas eram
contínuas, umas em relação às outras; porque é necessário progridam na virtude os que expiaram os
vícios, até chegarem à visão de Deus, como diz a Escritura (Sl 83, 8).

Art. 5 — Se se podem dar causas convenientes aos sacramentos da lei


antiga.
(III, q. 70, a. 1, 3; Ad Bom., cap. IV, lect. II; I Cor., cap. V, lect. II).

O quinto discute-se assim. — Parece que não se podem dar causas convenientes aos sacramentos da
lei antiga.

1. — Pois, o que se fazia para o culto divino não devia ser semelhante ao que observavam os idólatras.
Donde o dizer a Escritura (Dt 12, 31): Não farás assim com o Senhor teu Deus; porque eles fizeram pelos
seus deuses todas as abominações, que o Senhor aborrece. Ora, os adoradores dos ídolos, ao adorá-los,
cortavam-se com canivetes até a efusão do sangue, como refere a Escritura (1 Rs 18, 28), que se
retalhavam, segundo o seu costume, com canivetes e lancetas, até se cobrirem de sangue. Pelo que o
Senhor mandou (Dt 14, 1):Não fareis incisões, nem vos fareis abrir calva para chorardes algum morto;
porque és um povo santo para com o Senhor teu Deus, e ele te escolheu, dentre todas as nações que há
na terra para serdes particularmente o seu povo. Logo, a circuncisão era inconvenientemente instituída
pela lei.

2. Demais. — O que se faz para o culto divino deve ter dignidade e gravidade, conforme a Escritura (Sl
34, 18): No meio do povo numeroso te louvarei. Ora, implicauma certa leviandade o comer-se
apressadamente. Logo, é um preceito inconveniente o de comer apressadamente o cordeiro pascal. E
também se fizeram certas instituições sobre o modo de comer esse cordeiro, que parecem totalmente
irracionais.

3. Demais. — Os sacramentos da lei antiga são figuras dos da nova. Ora, o cordeiro pascal significa o
sacramento da Eucaristia, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa, foi imolado.
Logo, também a lei devia ter alguns sacramentos que prefigurassem outros da lei nova, como, a
confirmação, a extrema-unção, o matrimônio e os outros sacramentos.

4. Demais. — Só se pode fazer purificação do que constitui imundície. Ora, para Deus, nada é imundo,
porque todo corpo é criatura sua; e toda a criatura de Deus é boa, e não é para desprezar nada do que
se participa com ação de graças, como diz a Escritura (1 Tm 4, 4). Logo, era inconveniente que se
purificassem, por causa do contato com um homem morto, ou com qualquer infecção corporal
semelhante.

5. Demais. — A Escritura diz (Sr 34, 4): Que coisa será alimpada por um imundo? Ora, a cinza da vaca
vermelha queimada era imunda, porque tornava imundo. Pois, como diz a Escritura (Nm 19, 7 ss), o
sacerdote que a imolava ficava imundo até a tarde. Do mesmo modo, o que a queimava e quem lhe
ajuntava as cinzas. Logo, era um preceito inconveniente que, com essa cinza aspergida, os imundos se
purificassem.

6. Demais. — O pecado não é nada de material, que possa ser levado de um lugar para outro; nem pode
o homem purificar-se dele por meio do que é imundo. Logo, era inconveniente, para a expiação dos
pecados do povo, que o sacerdote confessasse sobre um bode os pecados dos filhos de Israel, para que
os levasse para o deserto. E por outro bode, que os sacerdotes imolavam, para as purificações, e era
queimado juntamente com um novilho, fora do arraial se tornassem imundos, de modo que
precisassem lavar as vestes e o corpo com água.

7. Demais. — O que já está limpo não precisa ser de novo purificado. Logo, era inconveniente que ao
homem ou a casa, purificados da lepra, se impusesse outra purificação.

8. Demais. — A imundícia espiritual não podia ser limpa pela água material ou pela raspagem dos pelos.
Logo, era irracional o Senhor ter ordenado se fizesse uma bacia de bronze com sua base, para lavatório
das mãos e dos pés dos sacerdotes, que houvessem de entrar no tabernáculo. Bem como também o era,
que se mandasse aos levitas lavarem-se com a água da expiação, e rasparem todos os pelos do corpo.

9. Demais. — O mais não pode santificar-se pelo menos. Logo, era inconveniente que, na lei, se fizesse a
consagração dos sacerdotes maiores e menores, e dos levitas por unção, sacrifícios e oblações
corpóreas.

10. Demais. — Como diz a Escritura (1 Sm 16, 7) o homem vê o que está patente, mas o Senhor olha
para o coração. Ora, o que é exteriormente patente, no homem, é a disposição corpórea e também as
vestes. Logo, era inconveniente se destinassem aos sacerdotes, maiores e menores, certas vestes
especiais, que refere a Escritura (Ex 28). E parece sem razão que alguém fosse impedido de ser
sacerdote, por causa de defeitos corpóreos, conforme se diz (Lv 21, 17): O homem de qualquer das
famílias da tua linhagem que tiver deformidade não oferecerá pães ao seu Deus; nem se for cego, se
coxo, etc. Por onde se conclui, que os sacramentos da lei antiga eram irracionais.

Mas, em contrario, diz a Escritura (Lv 20, 8): Eu sou o Senhor que vos santifico. Ora, Deus não faz nada
sem razão, conforme o salmo (Sl 103, 24): Todas as coisas fizeste com sabedoria. Logo, nos sacramentos
da lei antiga, que se ordenavam à santificação dos homens, nada havia sem causa racional.
SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 101, a. 4), sacramentos propriamente se chamavam às coisas
atribuídas aos sacerdotes de Deus para alguma consagração, por meio de quem, elas, de certo modo, se
destinavam ao culto divino. Ora, o culto de Deus, de maneira geral, pertencia a todo o povo; mas, de
modo especial, aos sacerdotes e levitas, que eram os seus ministros. Por isso, nos sacramentos da lei
antiga, certas disposições pertenciam comumente a todo o povo; e certas outras, especialmente, aos
ministros. E em relação a ambos, três coisas eram necessárias. — A primeira, que cada um fosse posto
em estado de adorar a Deus, o que em geral todos faziam pela circuncisão, sem a qual ninguém era
admitido a nenhuma das cerimônias legais; e quanto aos sacerdotes, pela consagração. — Em segundo
lugar, era exigido o uso daquilo que pertencia ao culto divino. Por isso o povo fazia o banquete pascal,
ao qual não era admitido nenhum incircunciso, como se vê na Escritura (Ex 12, 43 ss). E os sacerdotes
faziam a oblação das vítimas, comiam o pão da proposição, e o mais para o que eram destinados. — Por
fim, exigia-se a remoção do que impedia o culto divino, i. é, das imundícias. E assim, para o povo,
instituíram-se certas purificações de determinadas imundícias exteriores, e também expiações dos
pecados. Para os sacerdotes e levitas instituiu-se a oblação das mãos, dos pés e a raspagem dos pêlos.
— E tudo isto tinha causas racionais literais, porque se ordenava ao culto de Deus, naquele tempo; e
figuradas, porque se ordena a figurar Cristo, como ficará claro por um exame minucioso.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A razão literal da circuncisão, e a principal, era ser um
protesto de fé na unidade de Deus. E como Abraão foi o primeiro, que se separou dos infiéis, saindo da
sua casa e da sua parentela, foi o primeiro a receber a circuncisão. E nessa causa toca o Apóstolo (Rm 4,
9 ss): Recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé que está no prepúcio; porque, como
nesse mesmo lugar se lê, pela fé de Abraão foi-lhe imputada a justiça, porque creu em esperança contra
a esperança, i. é, contra a esperança da natureza, na esperança da graça, para que se tornasse pai de
muitas gentes; pois era velho e velha também e estéril a sua esposa. E para que esse protesto e imitação
da fé de Abraão se firmasse nos corações dos judeus, recebiam na carne um sinal que não pudessem
esquecer. Donde a Escritura (Gn 17, 13):Este meu pacto será na vossa carne para concerto eterno. E, por
isso fazia-se no oitavo dia, porque, antes, a criança é muito tenra e podia causar-lhe mal grave, por ser
considerada como algo de ainda não consolidado. Razão por que nem os animais eram oferecidos antes
do oitavo dia. E não se deixava a circuncisão para mais tarde, afim de que, por causa da dor, não se lhe
quisesse fugir ao sinal; e também afim de que os pais, cujo amor para com os filhos vai aumentando
com a convivência continuada e com o crescimento deles, não quisessem subtraí-los a ela. — A segunda
razão podia ser o enfraquecimento da concupiscência no membro circunciso. — A terceira o escárnio
dos sacrifícios a Venus e a Priapo, nos quais era honrada essa parte do corpo. — Mas o Senhor não
proibiu senão a incisão, que se fazia no culto dos ídolos, ao que não se assemelhava a circuncisão de que
se trata.

A razão figurada da circuncisão é simbolizar que Cristo poria termo à corrupção; o que faria completa e
perfeitamente na oitava idade, que é a dos ressurretos. E como toda corrupção da culpa e da pena tem
em nós origem carnal, proveniente do pecado do primeiro pai, a circuncisão fazia-se no membro da
geração. Donde o dizer o Apóstolo (Cl 2, 11): Estais circuncidados em Cristo de circuncisão não feita por
mão de homem no despojo do corpo da carne, mais sim na circuncisão de Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A razão literal do banquete pascal era a comemoração do benefício, de Deus
ter tirado os judeus do Egito; por isso, com a celebração desse banquete, confessavam constituir o povo
que Deus para si tirara do Egito. Mas, quando foram libertados, foi-lhes dado como preceito untarem a
padieira nas casas, significando isso um como protesto que não aceitavam os ritos dos egípcios, que
adoravam um carneiro. Por isso ficaram livres, pela aspersão do sangue do cordeiro, ou por untarem os
limiares das casas, do perigo de extermínio, iminente para os egípcios. Ora, a saída dos judeus do Egito
se realizou com as duas circunstâncias seguintes. Com pressa no andar, porque os egípcios os apertavam
a saírem velozmente, como se lê na Escritura (Ex 12, 33); e era iminente o perigo a quem não se
apressasse em sair com o povo, pois ficando, seria morto pelos egípcios. Essa pressa era significada, de
dois modos. Pelo que comiam; pois tinham como preceito comerem pães ázimos, em sinal de que os
egípcios lhes tinham dado tanta pressa a partir que não puderam meter-lhes o fermento. E também por
comerem o cordeiro assado ao fogo, porque assim era preparado mais rapidamente; e por não o despe-
daçarem, porque na pressa, não havia tempo de quebrar os ossos. De outro modo, quanto à maneira de
comer. Assim, diz a Escritura: cingireis os vossos rins, e tereis sapatos nos pés e bordões nas mãos, e
comereis à pressa, o que manifestamente designa homens que faziam caminho rápido. E o mesmo fim
visava o outro preceito: Há de comer-se em cada casa, nem das suas carnes tirareis nada para fora;
porque, pela pressa, não havia tempo de fazer brindes uns aos outros. Quanto às amarguras, que
sofreram no Egito, eram simbolizadas pelas alfaces agrestes. As razões figuradas são claras. A imolação
do cordeiro pascal significa a de Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 5, 7): Cristo, que é a nossa Páscoa,
foi imolado. O sangue do cordeiro, que livrava do extermínio, untado nas padieiras das casas, significa a
fé na paixão de Cristo, no coração e na boca dos fiéis. Por ela nos libertamos do pecado e da morte,
conforme a Escritura (1 Pd 1, 18): Fostes redimidos pelo precioso sangue do cordeiro imaculado.
Comiam-lhe a carne para significar que comemos a carne do corpo de Cristo no sacramento.Eram
assadas ao fogo para significar a paixão ou a caridade de Cristo. Comiam-nas com pães ázimos para
significar a pureza do banquete dos fiéis, que comem o corpo de Cristo, segundo a Escritura (1 Cor 5,
8): Solenizemos o nosso convite, com os ázimos da sinceridade e da verdade. Acrescentavam asalfaces
agrestes; em sinal da penitência dos pecadores, necessária aos que recebem o corpo de Cristo. Os rins
devem ser cingidos com o cinto da castidade. Os sapatos dos pés são a imagem dos patriarcas mortos. O
báculo, que deviam ter nas mãos, significa a custódia pastoral. Também se mandava comessem numa
casa o cordeiro pascal, i. é, na Igreja dos Católicos e não, nos conventículos dos heréticos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos sacramentos da lei nova correspondem, figuradamente, a outros da


lei antiga. Assim, à circuncisão corresponde o batismo, que é o sacramento da fé. Por isso, diz a Escritura
(Cl 2, 11-12): Vós estais circuncidados na circuncisão de N. S. Jesus Cristo, estando sepultados
juntamente com ele no batismo. Ao banquete do cordeiro pascal corresponde, na lei nova, o
sacramento da Eucaristia. A todas as purificações da lei antiga, o sacramento da penitência. A
consagração do pontífice e dos sacerdotes, ao sacramento da ordem. Ao sacramento da confirmação,
que implica a plenitude da graça, nenhum sacramento da lei antiga podia corresponder, pois, ainda não
chegara o tempo da plenitude, porque, a lei ninguém levou àperfeição. O mesmo se dá com o da
extrema unção, que é uma preparação imediata para a entrada na glória, cujo adito ainda não fora
franqueado na lei antiga, porque o resgate ainda não tinha sido pago. O matrimônio estava, certo,
compreendido na lei antiga, enquanto pertencente à lei da natureza; mas não, enquanto sacramento
significativo da união de Cristo e da Igreja, ainda não realizada. Por isso, na lei antiga, dava-se libelo de
repúdio, que encontra a essência desse sacramento.

RESPOSTA À QUARTA. — Como já se disse, as purificações da lei antiga ordenavam-se a remover os


impedimentos do culto divino. Este era duplo: o espiritual, que consistia na elevação da mente para
Deus; e o corpóreo, consistente nos sacrifícios, nas oblações e coisas semelhantes. — Ora, do culto
espiritual, os homens ficavam privados pelo pecado, que, como se pensava, os poluía; assim, pela
idolatria e pelo homicídio, pelos adultérios e incestos. E dessas manchas se purificavam por certos
sacrifícios, ou oferecidos, em geral, por todo o povo, ou mesmo pelos pecados de cada um. Não que
esses sacrifícios carnais tivessem por si mesmos a virtude de expiar o pecado. Mas porque significam a
futura expiação dos pecados por Cristo, de que os antigos eram participantes, protestando a fé no
Redentor, em figuras de sacrifícios.
Do culto externo os homens ficavam privados por certas imundícias corpóreas. Estas eram, primeiro,
consideradas em relação a eles próprios, e, conseqüentemente, em relação às vestes, às casas e aos
vasos. Essas imundices provinham, em parte, dos homens mesmos; em parte, do contato com coisas
imundas. Quanto às primeiras, era considerado imundo o que já tinha alguma corrupção ou a alguma
estava exposto. Por isso, sendo a morte uma corrupção, o cadáver de um homem era considerado
imundo. Do mesmo modo, como a lepra provém da corrupção dos humores, que também irrompem
para fora e contaminam os outros, os leprosos eram considerados imundos. Semelhantemente, as
mulheres que sofriam de fluxo de sangue, por doença, ou também por natureza, ou no tempo do
mênstruo, ou, ainda, no da concepção. E pela mesma razão os homens eram considerados imundos, que
sofriam de fluxo seminal, quer por doença, quer por polução noturna, ou ainda, pelo coito. Pois, toda a
umidade saída do homem, desses modos sobreditos, implicavam infecção imunda. Também eles
contraíam uma certa imundícia pelo contacto com determinadas coisas imundas.

Ora, d' essas imundices podem-se assinalar razão literal e figurada. — A literal era a reverência ao que
pertencia ao culto divino; quer porque os homens não costumavam tocar nas coisas preciosas, quando
imundos, quer porque o raro acesso às coisas sagradas as tornava mais veneradas. Pois, como ninguém
podia, senão raramente, acautelar-se contra todas essas imundices, acontecia que só raramente podiam
tocar nas coisas pertencentes ao culto divino; e assim, quando se lhes achegavam, faziam-no com maior
reverência e humildade da mente. — Certas dessas imundices também tinham, como razão literal, fazer
com que os homens não temessem chegar-se ao culto divino, fugindo à sociedade dos leprosos e
semelhantes enfermos, cuja doença era abominável e contagiosa. — De certas outras a razão era fazer
evitar o culto da idolatria; porque os gentios, no rito dos seus sacrifícios, empregavam às vezes o sangue
e o sêmen humanos. — Mas, todas essas imundices corpóreas se purificavam, ou só pela aspersão da
água, ou, quando eram maiores, por algum sacrifício para expiar o pecado, donde provinham as tais
enfermidades.

A razão figurada é que, dessas imundícias as externas figuram diversos pecados. Assim, a de um
cadáver, significa a do pecado, que é a morte da alma. A da lepra, a da doutrina herética, quer porque
esta é contagiosa como aquela; quer porque não há nenhuma falsa doutrina que não vá mesclada com
alguma verdade; assim como também, na superfície do corpo do leproso, aparece uma certa distinção
entre as manchas e a carne sã. A imundice da mulher que sofre fluxo de sangue significa a da idolatria,
por causa do cruor da imolação. A do homem com fluxo seminal, a do vanilóquio, porque sêmen é a
palavra de Deus. A do coito e a da mulher que deu à luz, a do pecado original. A da mulher menstruada,
a da mente embotada pelos prazeres. E em geral, a imundice do contacto com coisa imunda designa a
do consentimento no pecado de outrem, conforme a Escritura (2 Cor 6, 17): Saí do meio deles, e
separai-vos dos tais e não toqueis o que é imundo.

E essa imundícia do contado atingia também as coisas inanimadas; pois, tudo o que, de qualquer modo,
o imundo tocava, ficava imundo. No que a lei atenuou a superstição dos gentios, que consideravam
contraída a imundice, não só pelo contado com o imundo, mas também pelo colóquio ou pela vista,
como refere Rabbi Moisés, sobre a mulher menstruada. E isto misticamente significava o que diz a
Escritura (Sb 14, 9): Deus igualmente aborrece ao ímpio e à sua impiedade.

Havia também uma certa imundice das coisas inanimadas em si mesmas, como era a da lepra, na casa e
nas vestes. Pois, assim como a doença da lepra procede, no homem, do humor corrupto, que putrefaz e
corrompe a carne, assim também, por uma certa corrupção e excesso de umidade ou de secura, opera-
se uma certa corrupção nas pedras da casa, ou ainda nas vestes. Por isso a lei chama lepra a essa
corrupção, que fazia considerar imunda uma casa ou a roupa. Quer, porque toda corrupção implica
imundice, como se disse; quer também porque, para evitar tais corrupções, os gentios prestavam culto
aos deuses Penates. Por isso a lei mandava destruir a casa em que tal corrupção perseverasse, e que as
vestes fossem queimadas, para evitar a ocasião da idolatria. Havia também uma imundice própria dos
vasos, da qual diz a Escritura (Nm 19, 15): O vaso que não tiver tapadura nem atadura sobre si, será
imundo. E a causa dessa imundice era que, em tais vasos, podia facilmente cair algo de imundo que os
contaminasse. Também tinha esse preceito por fim evitar a idolatria. Pois, os idólatras acreditavam, que
se ratos, lagartos ou outros animais semelhantes, que imolavam aos deuses, caíssem nos vasos ou nas
águas, estes lhes seriam gratos. E também certas mulheres do povo deixavam os vasos descobertos em
obséquio às divindades a que chamavam Ianas.

A razão figurada dessas imundices é a seguinte. A lepra na casa significa a imundice da reunião dos
heréticos; a no vestido de linho, a perversidade dos costumes, pela amargura da mente; a na roupa de
lã, a perversidade dos aduladores; a na urdidura, os vícios da alma; a na trama, os pecados carnais, pois,
assim como a urdidura está na trama, assim, a alma, no corpo. O vaso sem tapadura nem atadura, o
homem sem qualquer velame de taciturnidade, ou o que não é constrangido por nenhuma correção da
disciplina.

RESPOSTA À QUINTA. — Como já se disse (a. 4), a lei considerava dupla imundice. Uma, proveniente de
corrupção da mente ou do corpo, e esta era a maior. A outra, do só contato com o imundo, e era a
menor e expiável com rito mais fácil. Pois, a primeira era expiada por meio dos sacrifícios pelo pecado;
porque toda corrupção procede deste e o significa. Ao passo que a segunda o era só pela aspersão de
uma certa água de expiação, de que fala a Escritura (Nm 19).

Pois, nesse lugar, o Senhor manda que tomassem uma vaca vermelha, em memória do pecado, que
cometeram quando adoraram o bezerro. E diz uma vaca, e não um bezerro, porque, assim costumava
chamar à sinagoga, conforme àquilo (Os 4, 16): Israel se desencaminhou como uma vaca que não pode
sofrer o jugo. E isto talvez porque adoravam as vacas, seguido o costume do Egito, conforme o lugar da
Escritura (Os 10, 5):Adoravam as vacas de Bethaven. — E para fazer detestar o pecado da idolatria, era
imolada fora do arraial. E onde quer que se fizesse o sacrifício expiatório da multidão dos pecados, toda
ela era queimada fora do arraial. — E como se quisesse significar, por esse sacrifício, que o povo ficava
limpo da totalidade dos pecados, o sacerdote molhava o dedo no sangue dela e fazia com ele sete
aspersões, voltado para a porta do tabernáculo. E essa aspersão mesma do sangue era para fazer
detestar a idolatria, na qual o sangue da imolação não era espalhado, mas reunido, e em redor dele, os
homens comiam em honra dos ídolos. — A vaca era, ademais disso, queimada no fogo, quer porque
Deus, no fogo, apareceu a Moisés, e no mesmo foi dada a lei; quer para significar que se devia extirpar
totalmente a idolatria e tudo o que a ela pertencia; assim como da vaca eram consumidos na chama
tanto a pele e as carnes como o sangue e o excremento. — E acrescentava-se, na combustão, pau de
cedro, hissopo, escarlata duas vezes tinta, para significar que, como o pau de cedro não apodrece
facilmente, e a escarlata duas vezes tinta não perde a cor, e o hissopo conserva o cheiro, ainda depois
de estar dessecado; assim também esse sacrifício era pela conservação do povo, e da sua honestidade e
devoção. Por isso, diz a Escritura, das cinzas da vaca: Para que as guarde a multidão dos filhos de Israel.
Ou, segundo Josefo, nesse sacrifício simbolizavam-se os quatro elementos. Punha-se o cedro no fogo
para significar a terra, por causa da sua fixidez no solo; o hissopo, pelo seu cheiro, significava o ar; a
escarlata duas vezes tinta, a água, pela mesma razão por que também a significava a púrpura, por causa
da tinta, que se faz com água. De modo que tudo isto significava, que se oferecia ao Criador o sacrifício
dos quatro elementos. E como esse sacrifício era oferecido para fazer detestar o pecado da idolatria,
eram considerados imundos tanto o que queimou, como o que recolheu as cinzas e o que fazia a
aspersão da água misturada com a cinza. Isto porque tudo o atinente, de certo modo, à idolatria devia
ser rejeitado como imundo. E dessa imundice se purificavam pela só ablução das vestes. Nem era
necessário fizessem aspersão da água, porque então o processo iria ao infinito. Pois, o que aspergia a
água tornava-se imundo e então, aspergindo-se a si mesmo, continuaria imundo; mas quem o
aspergisse também ficaria imundo; e semelhantemente, quem a este aspergisse, e assim ao infinito.

A razão figurada desse sacrifício é que a vaca vermelha significa a Cristo, por causa da natureza humana
enferma, de que se revestiu, designada pelo sexo feminino da vaca. A cor desta designa o sangue da
paixão. A vaca vermelha estava na força da idade, porque toda obra de Cristo é perfeita. Não tinha
nenhum defeito e não tinha ainda levado o jugo, porque Cristo é inocente, nem levou o jugo do pecado.
Devia ser levada a Moisés, porque lhe imputavam a transgressão da lei mosaica quanto à violação do
sábado. Devia ser entregue ao sacerdote Eleazar, porque Cristo, condenado à morte, foi entregue nas
mãos dos sacerdotes. Era imolada fora do arraial porque Cristo padeceu fora da porta. O sacerdote
tingia o dedo no sangue dela, porque o mistério da paixão de Cristo deve ser meditado e imitado com
sabedoria, significada pelos dedos. O sacerdote fazia aspersão voltado para o tabernáculo, para
significar a sinagoga, quer para a condenação dos judeus incrédulos, quer para a purificação dos crentes.
E isto sete vezes, por causa dos sete dons do Espírito Santo, ou dos sete dias, que simbolizam todos os
tempos. Também tudo o que aludia à encarnação de Cristo devia ser queimado no fogo, i. é,
espiritualmente entendido. Assim, a pele e a carne significam as obras externas de Cristo; o sangue, a
virtude sutil e interior, vivificante das obras externas; o excremento, a lassidão, a sede e tudo o mais
próprio à fraqueza. Acrescentavam-se ainda três coisas, a saber: o cedro, para significar a sublimidade
da esperança, ou da contemplação; o hissopo, símbolo da humildade ou da fé; a escarlata duas vezes
tinta, da dupla caridade. Pois, por essas virtudes devemos nos unir com a paixão de Cristo. A cinza da
combustão era recolhida por um homem limpo, porque os resultados da paixão aproveitaram aos
gentios, que não foram culpados da morte de Cristo. Era posta na água da expiação, porque pela paixão
de Cristo o batismo produz o efeito de purificar dos pecados. O sacerdote, que imolava e queimava a
vaca, e aquele que a queimava, e o que lhe recolhia as cinzas, ficavam imundos, bem como o que fazia
aspersão da água. Isso, quer porque os judeus ficaram imundos por terem morto a Cristo, que expiou os
nossos pecados; e até a tarde, i. é, até o fim do mundo, quando o que restar de Israel se converterá. Ou
porque os que tratam as coisas santas, procurando a purificação dos outros, eles próprios também
contraem certas imundices, como diz Gregório; e isto até a tarde, i. é, até o fim da vida presente.

RESPOSTA À SEXTA. — Como já se disse, a imundice proveniente da corrupção da mente ou do corpo


era expiada pelos sacrifícios pelo pecado. E ofereciam-se sacrifícios especiais pelos pecados de cada um.
Ora, certos eram negligentes em expiar tais pecados e imundices; ou deixavam de o fazer por
ignorância. Por isso, foi instituído que, uma vez por ano, no dia dez do sétimo mês, se fizesse um
sacrifício expiatório por todo o povo. E porque, no dizer do Apóstolo (Heb 7, 28), a lei constitui
sacerdotes a homens que têm enfermidade, era necessário que o sacerdote oferecesse primeiro por si
mesmo o bezerro, pelo pecado, em lembrança do que Aarão cometeu ao fundir o bezerro de ouro. E um
carneiro em holocausto, para significar que a escolha do sacerdote, significado pelo carneiro, chefe do
rebanho, devia ordenar-se à honra de Deus. — Em seguida o sacerdote oferecia, pelo povo, dois bodes.
Um era imolado para expiar o pecado do povo. Porque o bode é um animal fétido e, da sua pele, fazem-
se vestes que picam o corpo; o que significa o mau cheiro, a imundice e o aguilhão dos pecados. O
sangue do bode imolado era conduzido, junto com o do bezerro, ao Santo dos Santos, e com ele se
aspergia todo o santuário, para significar que o tabernáculo era purificado das imundices dos filhos de
Israel. O corpo do bode e o do bezerro, imolados pelo pecado, deviam ser queimados, para significar a
consumpção dos pecados. Não porém no altar, onde só se queimavam totalmente os holocaustos. Por
isso, era ordenado que fossem queimados fora do arraial, em detestação dos pecados; e isto se fazia
sempre que era imolada a vítima do sacrifício por algum pecado grave, ou pela multidão deles. — O
outro bode era mandado para o deserto, não, certo, para ser oferecido aos demônios, que aí os gentios
adoravam, porque nada era lícito lhes imolar; mas, para significar o efeito da imolação da vítima desse
sacrifício. Por isso, o sacerdote impunha-lhe a mão sobre a cabeça, confessando os pecados dos filhos
de Israel; e então o bode era mandado para o deserto, para ser comida das feras, como sofrendo a pena
pelos pecados do povo. E consideravam-no como carregando esses pecados, quer porque o ser ele
mandado para o deserto significasse a remissão de tais pecados; quer porque se lhe ligava à cabeça
algum bilhete, onde estes estavam escritos.

A razão figurada desses sacrifícios é significar a Cristo. O bezerro significa-lhe a virtude; o carneiro, que é
chefe dos fiéis; o bode, a sua semelhança da carne do pecado. E o próprio Cristo foi imolado pelo
pecado dos sacerdotes e do povo, porque, pela sua paixão, tanto os grandes como os pequenos são
limpos do pecado. O sangue do bezerro e do bode era introduzido no Santo pelo pontífice, porque o
sangue da paixão de Cristo nos abriu a porta do reino dos céus. Os corpos desses animais eram
queimados fora do arraial, porque Cristo padeceu fora da porta; como diz o Apóstolo (Heb 13, 12).
Quanto ao bode emissário, podia significar a divindade mesma de Cristo, que foi para a solidão, no
sofrimento da sua humanidade, não, certo, por mutação de lugar, mas por coibição da virtude. Ou
significava a má concupiscência, que devemos expulsar de nós, e os movimentos virtuosos, que
devemos imolar ao Senhor. — A imundice dos que queimavam essas vítimas no sacrifício tinha a mesma
razão já assinalada no sacrifício da vaca vermelha (ad 5).

RESPOSTA À SÉTIMA. — Pelo rito da lei, o leproso não era limpo da mácula da lepra, mas, era
encontrado já limpo. Isso significa o lugar da Escritura, que diz (Lv 14, 3 ss): mandará ao que se purifica,
vendo que a lepraestá curada. Logo, já estava purificado da lepra; mas era considerado como se
purificando ao ser restituído, pela decisão do sacerdote, ao convívio social e ao culto divino. Acontecia
porém às vezes que, por milagre divino, fosse purificado da lepra, segundo o rito da lei material, quando
o sacerdote se enganava no julgar. — Essa purificação do leproso fazia-se de dois modos. Pois, primeiro,
era julgado como estando limpo; depois, como tal, era restituído ao convívio social e ao culto divino, i. é,
depois de sete dias. — Na primeira purificação o leproso, que devia purificar-se, oferecia por si duas
avezinhas vivas, pau de cedro, escarlata e hissopo, de modo que com um fio escarlate fosse ligada a
avezinha junto com o hissopo e o pau de cedro. E de maneira que este servisse de cabo ao aspersório;
ao passo que o hissopo e a avezinha eram as partes do aspersório que eram molhadas no sangue da
outra avezinha imolada em águas vivas. E essas quatro coisas eram oferecidas contra os quatro defeitos
da lepra. Pois, contra a putrefação era oferecido o cedro, árvore incorruptível; contra a fetidez, o
hissopo, que é uma erva odorífera; contra a insensibilidade, a avezinha viva; contra a fealdade da cor, a
escarlata, que tem cor viva. Deixava-se a avezinha viva voar para o campo, porque o leproso era
restituído à liberdade antiga. — No oitavo dia, era o purificado admitido ao culto divino e restituído ao
convívio social. Porém, depois de ter rapado todo os pêlos do corpo, lavado os vestidos, porque a lepra
corroe aqueles e contamina estes e os torna fétidos. Depois oferecia um sacrifício pelo seu pecado,
porque a lepra era, quase sempre, apanhada, por causa dele. Com o sangue do sacrifício o sacerdote
molhava a extremidade da orelha do que devia purificar-se, e os polegares da mão e pé direitos; pois é
nesses lugares que primeiro se distingue e sente a lepra. Acrescentavam ainda a esse rito três líquidos: o
sangue contra a corrupção do mesmo; o azeite, para designar a cura da doença; a água viva, para limpar
a espurcícia.A razão figurada é, que as duas avezinhas significam a divindade e a humanidade de Cristo.
Uma delas, símbolo da humanidade, era imolada num vaso de barro sobre águas vivas, porque a paixão
de Cristo consagrou as águas do batismo, a outra, símbolo da impassibilidade divina, ficava viva, porque
a divindade não pode morrer. Por isso voava, por não poder a divindade ser atingida pelo sofrimento, A
avezinha viva era posta na água, para ser aspergida, simultaneamente com o pau de cedro, a escarlata,
o carmesim e o hissopo, i. é, com a fé, a esperança e a caridade, como dissemos, porque somos bati-
zados na fé em Deus e no homem. O homem lava, na água do batismo e das lágrimas, as suas vestes, i.
é, as suas obras, e todos os pêlos, i. é, os pensamentos. A extremidade da orelha direita daquele que se
purificava era molhada no sangue e no azeite, para precaver o ouvido contra as palavras corruptoras. Os
polegares da mão direita e do pé eram molhados, para as suas ações serem santas. O mais, que diz
respeito a esta purificação, ou a das outras imundices, nada tem de especial que não esteja
compreendido nos outros sacrifícios pelos pecados ou pelos delitos.

RESPOSTA À OITAVA E À NONA. — Assim como o povo judeu foi instituído para o culto de Deus, pela
circuncisão, assim o ministro, por alguma especial purificação ou consagração. Por isso foi-lhe ordenado
que se separasse dos outros povos, como destinado especialmente ao ministério do culto divino, o que
com esses se não dava. E tudo o que era feito com respeito à consagração ou instituição deles, visava
mostrar que tinham uma prerrogativa de pureza, virtude e dignidade. Por isso, três coisas se faziam na
instituição dos ministros. Primeiro, eram purificados; segundo, ordenados e consagrados; terceiro,
aplicados ao uso do ministério.

Comumente todos se purificavam pela ablução com água e por certos sacrifícios; em especial, porém, os
levitas raspavam todos os pêlos do corpo, como se lê na Escritura (Lv 8).

A consagração dos pontífices e dos sacerdotes fazia-se na ordem seguinte. Primeiro, depois de terem
feito a ablução, revestiam-se de certas vestes especiais próprias a designar-lhes a dignidade.
Especialmente porém o pontífice era ungido na cabeça com o óleo da unção, para significar que dele
promanava para outrem o poder de consagrar, assim como o óleo, da cabeça, escorre para os membros
inferiores, conforme se lê na Escritura (Sl 132, 2): Como o perfume derramado na cabeça, que desceu
sobre toda a barba de Aarão. Os levitas não tinham outra consagração senão o serem oferecidos ao
Senhor pelos filhos de Israel, por meio das mãos do pontífice, que orava por eles. Os sacerdotes
menores eram consagrados só nas mãos, que deviam aplicar-se aos sacrifícios; e com o sangue do
animal imolado era molhada a extremidade da orelha direita deles, e os polegares do pé e da mão
direita. Isso para que fossem obedientes a Deus, no oferecer os sacrifícios, o que era significado pelo
umedecimento da orelha direita; e para que fossem solícitos e prontos na execução deles, o que era
significado pelo umedecimento do pé e da mão direita. Aspergiam-lhes também as vestes com o sangue
do animal imolado, em memória do sangue do cordeiro por quem foram libertos do Egito. Ofereciam-se
também na consagração deles os seguintes sacrifícios. Um bezerro, pelo pecado, em memória da
remissão do pecado de Aarão, quando fundiu o bezerro de bronze. Um carneiro em holocausto, em
memória da oblação de Abraão, cuja obediência o pontífice devia imitar. O carneiro da consagração, que
era uma como hóstia pacífica, em memória da libertação do Egito pelo sangue do cordeiro. E um
canistrel de pães, em memória do maná dado ao povo.

Também concernia à aplicação do ministério o se lhes impor sobre as mãos a gordura do carneiro, a
torta de um pão, e a espádua direita, para mostrar que recebiam o poder de fazertais oferendas ao
Senhor. Os levitas enfim se aplicavam ao ministério por serem introduzidos no tabernáculo da aliança,
como que para ministrarem nos vasos do santuário.

A razão figurada disso tudo é a seguinte. Os que vão ser consagrados ao ministério espiritual de Cristo
devem, primeiro, purificar-se pela água do batismo e das lágrimas, em fé da paixão de Cristo; é um
sacrifício expiatório e purgativo. E devem raspar todos os pêlos do corpo, i. é. todos os pensamentos
maus. Também devem ornar-se de virtudes e se consagrar com o óleo do Espírito Santo e com a
aspersão do sangue de Cristo. E assim, devem estar preparados para desempenhar os ministérios
espirituais.
RESPOSTA À DÉCIMA. — Como já dissemos, a intenção da lei era despertar a reverência do culto divino.
Isto de dois modos: excluindo do culto o que podia ser desprezível; e aplicando-lhe tudo o que fosse
considerado como honorificente. E se isto se observava em relação ao tabernáculo, aos seus vasos e aos
animais que iam ser imolados, com maioria de razão devia ser observado em relação aos ministros. —
Por onde, para remover deles o que quer que fosse de desprezível, foi ordenado que não tivessem
deformidade ou defeito corpóreo, porque homens que o têm costumam ser tomados pelos outros em
má conta. Pelo que também foi instituído que não fossem escolhidos para o ministério de Deus, a esmo
e de qualquer família; mas os de uma certa prosápia, e conforme à sucessão da família, para assim se
conseguirem ministros mais ilustres e nobres.

E para que fossem tidos em reverência, acrescentavam -lhes vestes de ornato especial, e uma especial
consagração. E esta é em geral a causa desses ornatos. — Em especial porém importa saber-se que o
pontífice tinha oito ornamentos. — Primeiro, vestes de linho. Segundo, uma túnica de jacinto, em cujas
extremidades, aos pés e ao redor, punham-se umas campainhas e umas como romãs de jacinto, de
púrpura e de escarlata tinta duas vezes. — Terceiro, o efod, que cobria os ombros e a parte anterior até
a cintura, e que era de ouro, de jacinto, de púrpura, de escarlata tinta duas vezes, e de linho fino
retorcido. E nos ombros tinha duas pedras cornalinas, onde estavam gravados os nomes dos filhos de
Israel. — Quarto, o racional, feito da mesma matéria; que era quadrado, colocado no peito e ligado ao
efad. E nesse racional havia doze pedras preciosas separadas em quatro fileiras, nas quais também
estavam escritos os nomes dos filhos de Israel. Isso como para significar que o pontífice carregava com o
peso de todo o povo, por lhe ter os nomes nos ombros; e que, por trazê-las no peito, i. é, guardando-os
quase no coração, devia perenemente pensar na salvação dele. No racional também o Senhor mandou
escrever: Doutrina e Verdade, porque nele estavam escritas certas determinações relativas à verdade da
justiça e da doutrina. Os judeus porém fabulavam, que no racional havia uma pedra capaz de revestir-se
de cores diversas conforme aos diversos sucessos por que deviam passar os filhos de Israel, e lhe
chamavam — Doutrina e Verdade. — Quinto, o cíngulo, i. é, uma cinta feita das quatro cores já referidas
— Sexto, a tiara, i. é, uma mitra de bisso — Sétimo, a lâmina de ouro, pendente da cabeça, na qual
estava escrito o nome do Senhor. — Oitavo, calções de linho, para lhes cobrirem as partes, quando
subissem ao santuário ou ao altar. Destes oito ornatos menores os sacerdotes tinham quatro, a saber, a
túnica, os calções, o cíngulo e a tiara.

Desses ornamentos a razão literal era, segundo alguns, significar a disposição do orbe terrestre, como se
o pontífice se considerasse ministro do Criador do mundo. Donde o dizer a Escritura (Sb 18, 24): Na
vestidura de Aarão estava descrito o orbe da terra. Assim, os calções de linho figuravam a terra, donde
ele nasce. A circunvolução do cíngulo, o oceano, que circunda a terra. A túnica de jacinto, com a sua cor,
significava o ar; as suas campainhas, o trovão; as romãs, os relâmpagos. O efod significava, na sua
variedade, o céu sidéreo; as duas cornalinas, os dois hemisférios, ou o sol e a lua. As doze pedras
preciosas no peito, os doze signos do zodíaco; estavam postas no racional, porque, nos fenômenos
celestes estão as razões essenciais dos terrestres, conforme a Escritura (Jó 18, 33): Acaso entendes a
ordem do céu e darás disso a razão estando na terra? A mitra ou tiara significava o céu empíreo. A
lâmina de ouro, Deus, que tudo governa.

A razão figurada é manifesta. Pois, as deformidades ou defeitos corpóreos, de que os sacerdotes deviam
estar imunes, significam os diversos vícios e pecados que não deviam ter. Não deviam ser cegos, i. é,
ignorantes. Nem coxos, i. é, instáveis e sujeitos a inclinações diversas. Nem de nariz pequeno, grande ou
torcido; i. é, não deviam por falta de discreção, cair em exageros por excesso ou defeito; ou ainda, não
praticar atos maus; pois, o nariz designa o discernimento, capaz de distinguir os odores. Não deviam ter
quebrado o pé ou a mão, i. é, perder a virtude de agir ou proceder virtuosamente. Seria também
rejeitado o corcovado, anterior ou posteriormente; o que significa o amor supérfluo das coisas terrenas.
O remeloso, i. é, entenebrecido de engenho pelo afeto carnal, pois a remelosidade provém do fluxo dos
humores. O de belide no olho, i. é, o que no pensamento nutrisse a presunção de ser puro na
justificação. Também quem tivesse sarna pertinaz, i. é, a petulância da carne. Quem tivesse impigem,
pois esta sem dor se dissemina pelo corpo e ofende a beleza dos membros; e isso designa a avareza, E
também quem tivesse quebradura ou fosse obeso; i. é, trouxesse a carga da torpeza no coração,
embora não a realizasse por obras.

Os ornamentos designam as virtudes dos ministros de Deus. Pois, as quatro seguintes lhe são
necessárias a todos. A castidade, significada pelos calções; a pureza da vida, pela túnica de linho; o
moderado discernimento, pelo cíngulo; a retitude de intenção, pela tiara protetora da cabeça. — Mas,
além destas, os pontífices devem ter quatro outras. Primeiro, lembrarem-se de Deus, pela
contemplação, isto simbolizado na lâmina de ouro com o nome de Deus na fronte. Segundo, deviam
suportar as fraquezas do povo, o que era simbolizado pelo efod. Terceiro, trazer o povo no coração e no
íntimo, pela solicitude da caridade; e isso significa o racional. Quarto, viver um gênero de vida celeste,
pelas obras de perfeição, o que é significado pela túnica de jacinto. Essa túnica tinha, na extremidade,
campainhas de ouro, símbolo da doutrina das coisas divinas que deve ir de par com o gênero de vida
celeste do pontífice. Acrescentavam-se ainda umas romãs, símbolo da unidade da fé e da concórdia nos
bons costumes, porque a sua doutrina deve ser conexa, de modo a não romper a unidade da fé e da paz.

Art. 6 — Se as observâncias cerimoniais tinham causa racional.


(IIª-IIªª, q. 86., a. 3, ad 1, 2, 3; Ad Rom., cap. XIV, lect. I, III; I Tim., cap. IV, lect. I; Ad Tit., cap. I, lect. IV).

O sexto discute-se assim. — Parece que as observâncias cerimoniais não tinham nenhuma causa
racional.

1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Tm 4, 4) toda criatura de Deus é boa e não é para desprezar nada do
que se participa com ação de graças. Logo, proibia-se inconvenientemente o uso de certos alimentos,
por imundos (Lv 11).

2. Demais. — Como os animais eram dados em alimento ao homem, assim também as ervas; donde o
dizer a Escritura (Gn 9, 3): eu vos entreguei toda carne, como as viçosas hortaliças. Ora, a lei não
distinguia ervas imundas, apesar de algumas delas serem venenosas e muito nocivas. Logo, também não
devia proibir certos animais, por imundos.

3. Demais. — Se a matéria de que alguma coisa provém é imunda, pela mesma razão há de sê-lo o dela
gerado. Ora, a carne é gerada do sangue. E como nem todas as carnes eram proibidas, como imundas,
pela mesma razão não devia sê-lo, como tal, o sangue, nem a gordura dele gerada.

4. Demais. — O Senhor diz (Mt 10, 28), que não são para temer os que matam o corpo, porque depois
dessa morte, nada mais podem fazer. Ora, tal não seria verdade se se convertesse em mal do homem o
que se lhe viesse a fazer ao cadáver. Logo, com maior razão, não importava o modo por que se viessem
a cozer as carnes do animal já morto. E portanto, parece irracional o que diz a Escritura (Ex 23, 19): Não
cozerás o cabrito no leite da sua mãe.

5. Demais. — Era de preceito oferecer ao Senhor, por mais perfeitas, as primícias dos homens e dos
animais. Logo, era inconveniente o seguinte preceito (Lv 19, 23): Quando entrares na terra e plantares
nela árvores frutíferas, cortar-lhes-ei os seus prepúcios, i. é, os primeiros germens, e serão imundos
para vós e não comereis deles.

6. Demais. — As vestes são exteriores ao corpo do homem. Logo, não se deviam proibir aos judeus
certas vestes especiais, p. ex., como as referidas nos lugares da Escritura (Lv 19, 19): Não usarás de
vestido que seja tecido de fios diferentes; (Dt 22, 5) a mulher não se vestirá de homem, nem o homem
se vestirá de mulher; e ainda (Dt 22, 11): Não te vestirás de coisa que seja tecida de lã e de linho.

7. Demais. — A memória dos mandamentos de Deus não respeita ao corpo, mas ao coração. Logo, era
inconveniente o ordenar a Escritura (Dt 6, 8 ss), que os preceitos de Deus ligavam como um sinal na sua
mão; e que se deviam escrever no limiar das portas; e que fizessem umas guarnições nos remates das
capas, pondo nelas fitas de cor de jacinto, para que se recordem dos mandamentos do Senhor.

8. Demais. — O Apóstolo diz (1 Cor 9, 9), que Deus não tem cuidado dos bois; e, por conseqüência, nem
dos outros animais irracionais. Logo, eram inconvenientes os preceitos (Dt 22, 6): Se, indo por um
caminho, achares o ninho duma ave, não apanharás a mãe com os filhinhos; e (Dt 25, 4): Não atarás a
boca ao boi que trilha na eira; e (Lv 19, 19): Não lançarás a tua besta a ter cópula com animais doutra
espécie.

9. Demais. — Não se fazia nenhuma separação entre plantas mundas e imundas. Logo, com maior razão,
não se devia fazer qualquer distinção relativamente à cultura delas. Portanto eram inconvenientes os
preceitos (Lv 19, 19): Não semearás o teu campo com diversa semente; e (Dt 22, 9 ss): Não semearás a
tua vinha de outra semente; e: Não lavrarás com boi e asno juntamente.

10. Demais. — Os seres inanimados, sobretudo, estão sujeitos ao poder do homem. Logo, era
inconveniente o preceito da lei, que privava o homem do uso da prata e do ouro, de que se fabricavam
os ídolos, e do mais que se encontrava no templo destes. E também era ridículo o outro preceito, que se
lê (Dt 7, 25): tendo satisfeito à tua necessidade, cavarás ao redor e cobrirás com a terra que tiraste.

11. Demais. — Sobretudo dos sacerdotes se exige a piedade. Ora, esta manda assistirmos aos funerais
dos amigos; e por isso Tobias foi louvado (Tb 1, 20 ss). Também algumas vezes, por piedade, pode
alguém receber uma meretriz como esposa, pela livrar assim do pecado e da infâmia. Logo, tais coisas se
proibiam inconvenientemente aos sacerdotes (Lv 21).

Mas, em contrário, diz a Escritura (Dt 18, 14): tu, porém, foste instruído de outra sorte pelo Senhor teu
Deus. Donde se pode coligir, que as observâncias de que se trata foram instituídas por Deus por uma
certa prerrogativa especial do povo judeu. Logo, não eram irracionais ou sem causa.

SOLUÇÃO. — O povo judeu, como já dissemos (a. 5), foi especialmente destinado ao culto divino; e dele,
em especial, os sacerdotes. E assim como as coisas aplicadas a esse culto deviam ter algo de particular,
exigido pela honorificência do mesmo; assim, o gênero de vida do povo judeu e, sobretudo, dos
sacerdotes, devia especialmente ter uma certa congruência, espiritual ou corporal com tal culto. Ora, o
culto da lei figura o mistério de Cristo. Por isso, todas as suas observâncias figuram o concernente a
Cristo, conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. Por isso,
duas razões se podem assinalar a essas observâncias: a congruência com o culto divino, e o figurarem o
que respeita à vida dos Cristãos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como já dissemos (a. 5 ad 4, 5), a lei estabelecia dupla
corrupção ou imundice. Uma, da culpa, que mancha a alma; a outra, a de qualquer corrupção que de
certo modo contamina o corpo. — Quanto, pois, à primeira imundice, não havia nenhum gênero de
comida por natureza imundo ou susceptível de contaminar o homem; donde o dizer a Escritura (Mt 15,
11): Não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem; mas o que sai da boca, isso é o que faz
imundo o homem; o que é aplicado aos pecados. Contudo certas comidas podiam acidentalmente
manchar a alma, por serem tomadas contra a obediência, o voto, ou por nímia concupiscência; ou
enquanto constituíam fomento à luxúria, razão pela qual certos se abstinham do vinho e da carne.

Quanto à imundice corpórea, a proveniente de alguma corrupção, certas carnes dos animais a tinham.
Ou porque estes se nutrem de coisas imundas, como o porco. Ou vivem imundamente, como alguns,
que habitam debaixo da terra, p. ex., as toupeiras, os ratos e semelhantes, que contraem também por
isso mau cheiro. Ou porque a carne deles, por causa da demasiada umidade ou secura, geram humores
corruptos no corpo humano. Por isso, eram proibidas aos judeus as carnes dos animais que têm sola, i.
é, unha inteira, não fendida por causa da sua terreneidade. Semelhantemente, era-lhes proibida a carne
dos animais que têm muitas fendas nos pés, como a do leão e outros semelhantes porque são muito
coléricos e ardentes. Pela mesma razão, certas aves de rapina, demasiado secas; e certas aves aquáticas,
pelo excesso de umidade. Também certos peixes sem barbatanas e escamas, como as enguias e outros,
por causa do excesso de umidade. Era-lhes permitido comer os animais ruminantes, de unha fendida,
porque tem humores bem digeridos e de compleição média; e porque nem são demasiado úmidos,
como as unhas o significam; nem demasiado terrenos, por não terem a unha inteira, mas fendida. Dos
peixes eram-lhes permitido os mais secos, como o davam a entender as escamas e as barbatanas, que
tornam temperada a compleição úmida deles. Das aves, as melhor constituídas, como a galinha, a perdiz
e outras. — A outra razão era fazer detestar a idolatria. Pois, os gentios e principalmente os egípcios,
entre os quais os judeus viviam, imolavam aos ídolos esses animais proibidos ou os empregavam para
feitiçarias. Ao passo que não comiam aqueles que era permitido aos judeus comerem; mas os adoravam
como deuses. Ou por alguma outra causa se abstinham deles, como já dissemos (a. 3, ad 2). — A
terceira razão era para impedir a diligência demasiada em relação à comida. Por onde, concediam-lhes
os animais susceptíveis de serem conseguidos fácil e prontamente.

Contudo geralmente era-lhes proibido comerem o sangue e a gordura de qualquer animal. — O sangue,
quer para evitarem a crueldade e detestarem derramar sangue humano, como já dissemos (a. 3, ad 8).
Quer também para fazer evitar o rito da idolatria; porque era costume dos idólatras reunirem-se ao
redor do sangue recolhido, para comerem em honra dos ídolos, a quem o consideravam muitíssimo
agradável. Por isso o Senhor mandou, que o sangue fosse derramado e coberto com terra. E também
lhes era proibido comer animais sufocados ou estrangulados, porque o sangue deles não se separa da
carne; ou porque tais gêneros de morte fazem os animais sofrer muito, e o Senhor queria afastá-los da
crueldade, mesmo para com os brutos, para que, habituando-se a tratá-los, mesmo a estes, com
comiseração, mais se afastassem da crueldade para com os homens. — Também era-lhes proibida a
gordura, quer porque os idólatras a comiam em honra dos seus deuses;quer também porque era
queimada em honra de Deus; quer enfim porque o sangue e a gordura não fazem boa nutrição, causa
essa dada pelo Rabbi Moisés. A causa de ser proibido comer os nervos está na Escritura (Gn 32, 32): os
filhos de Israel não comem nervo, porque o anjo tocou o nervo da coxa de Jacó, e ficou entorpecido.

A razão figurada dessas observâncias é que todos esses animais eram proibidos por serem figuras de
certos pecados. Donde o dizer Agostinho: A quem indagar se o porco e o cordeiro são limpos por
natureza, por ser boa toda criatura de Deus, respondemos que, em certo sentido, o cordeiro é limpo e o
porco é imundo. Mas, perguntar isto seria o mesmo que perguntar, considerando a natureza da
expressão, e as letras e sílabas, de que constam, se as palavras — estulto e sábio — são puras. Pois, uma
é pura e a outra, imunda. Assim, o animal ruminante e de casco fendido era puro porsignificação.
Porque a fenda das unhas significa a distinção entre os dois Testamentos; ou a do Padre e do Filho; ou a
das duas naturezas de Cristo; ou a separação entre o bem e o mal. A ruminação significa a meditação
das Escrituras e a sã inteligência das mesmas. Ora, quem não é capaz de compreender alguma destas
coisas é imundo.

Semelhantemente, os peixes, que têm escamas e barbatanas eram puros, por significação. Pois, as
barbatanas significam a vida sublime ou a contemplação; e as escamas, a vida áspera. Sendo ambas elas
necessárias à pureza espiritual.

Das aves eram proibidos certos gêneros especiais. Na águia, de vôo alto, proíbe-se a soberba. No grifo,
nocivo aos cavalos e aos homens, a crueldade dos poderosos. O halieto, que se nutre de pequenas aves,
significa os molestos aos pobres. O milhano, muito dado a preparar insídias, os fraudulentos. O abutre,
que acompanha os exércitos, no fito de comer os cadáveres dos mortos — os que provocam mortes e
sedições entre os homens, para daí tirarem lucro. Os animais do gênero dos corvos significam os
difamados pelos prazeres; ou os desprovidos de bons afetos, pois o corvo, uma vez mandado fora da
arca, não voltou. O avestruz, apesar de ave, incapaz de voar e sempre apegado à terra, os que militando
por Deus vivem, contudo, implicados em negócios seculares. O bufo, de visão noturna aguda, mas que
não vê de dia, os astutos nas coisas temporais, mas botos nas espirituais. A gaivota, que voa no ar e
nada na água, os que veneram a circuncisão a par do batismo; ou, ainda, os que querem alçar o vôo da
contemplação, mas vivem nas águas dos prazeres. O açor, empregado para caçar, os que servem aos
poderosos para depredarem os pobres. O mocho, que busca alimento de noite e se esconde de dia, os
luxuriosos que buscam ocultar o que fazem, agindo de noite. O mergulo, capaz de ficar muito tempo
debaixo da água, os gulosos que se atacam nas águas dos prazeres. O íbis, ave da África, de bico
comprido, e que se nutre de serpentes e é talvez o mesmo que a cegonha, os invejosos que se nutrem,
como de serpentes, dos males dos outros. O cisne, de cor branca e de pescoço comprido, com o qual
tira o alimento do fundo da terra ou da água, pode significar os homens que, sob candor da justiça
externa buscam lucros terrenos. O onocrótalo, ave dos países orientais, de bico comprido, com umas
bolsinhas na garganta onde repõe, primeiro, o alimento que, depois de uma hora, manda ao ventre,
significa os avarentos que, com cuidados imoderados, acumulam o necessário à vida. O porfirião,
diferente das outras aves, tem um pé espalmado para nadar e outro fendido para andar, pois nada na
água como os adens e anda na terra como as perdizes; e só bebe, ao comer, molhando na água a
comida. Significa os que nada querem fazer por vontade de outrem, senão só o que for banhado na
água da vontade própria. A cegonha, vulgarmente chamada falcão, significa aqueles cujos pés são
ligeiros para derramar sangue. O carádrio, ave gárrula, os loquazes. A poupa, que nidifica no estrume e
nutre-se de excrementos fétidos, e simulando no canto um gemido, significa a tristeza do século
geradora de morte, nos homens imundos. O morcego, que voa achegado à terra, aqueles a quem,
ornados da ciência profana, só sabem as coisas terrenas.

Além disso, das aves e dos quadrúpedes só lhes eram permitidos os de pernas posteriores mais longas,
para poderem saltar. Eram porém proibidos os que vivem mais apegados à terra, por serem
considerados imundos os que abusam da doutrina dos quatro Evangelistas, afim de não serem por ela
elevados para o alto.

No sangue enfim, na gordura e no nervo entendiam-se proibidas a crueldade, a volúpia e a contumácia


no pecado.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Já antes do dilúvio os homens nutriam-se de plantas e mais ervas da terra.
Mas parece que o uso da carne foi introduzido depois, conforme a Escritura (Gn 9, 3): eu vos dei toda
carne como viçosas hortaliças. E isto porque alimentar-se dos frutos da terra é mais próprio da
simplicidade da vida; ao passo que comer carne revela antes o prazer e o apego ao viver. Pois
naturalmente a terra germina em ervas, ou, com pequeno esforço, obtém-se em grande cópia esses,
produtos; ao contrário, só com grande diligência podem-se nutrir ou apanhar os animais. Por onde,
querendo o Senhor reduzir o seu povo a uma vida mais simples, proibiu-lhes muitos gêneros de animais,
e não dos produtos da terra. Ou também porque aqueles eram imolados aos ídolos e não, estes.

À TERCEIRA OBJEÇÃO É CLARA A RESPOSTA, pelo já dito.

RESPOSTA À QUARTA. — Embora o bode imolado não sinta como, lhe sejam as carnes cozidas, contudo,
ao espírito de quem o coze parece implicar uma certa crueldade, empregar, para lhes consumir o leite
materno, que lhe foi dado como nutrição. Ou pode-se dizer, que os gentios, na solenidade dos ídolos,
coziam totalmente as carnes do bode, para imolá-las ou comê-las. E por isso, a Escritura, depois de ter
tratado das solenidades que se deviam, pela lei, celebrar, acrescenta (Ex 23): Não cozerás o cabrito no
leite de sua mãe.

A razão simbólica dessa proibição é figurar que Cristo, comparado com o bode, por causa da semelhança
da carne do pecado, não devia ser cozido, i. é, morto, pelos judeus, no leite materno i. é, no tempo da
infância. Ou significa que o bode, i. é, o pecador, não deve ser cozido no leite materno, i. é, corrompido
pelas lisonjas.

RESPOSTA À QUINTA. — Os gentios ofereciam aos seus deuses as primícias dos frutos, que julgavam
afortunadas; ou então os queimavam para fazer certas magias. Por isso, foi preceituado aos judeus
considerassem imundos os frutos dos três primeiros anos. Pois, em três anos, quase todas as árvores da
terra deles, cultivadas de semente, pela enxertia ou pela plantação, produziam fruto. E raramente acon-
tecia que os caroços dos frutos da árvore, ou as sementes latentes fossem semeados, por produzirem
frutos mais retardados. Ora, a lei diz respeito ao que mais freqüentemente se faz. Por onde, os pomos
do quarto ano, como sendo as primícias dos frutos puros, eram oferecidos a Deus; os do quinto, porém
e seguintes, comidos.

A razão figurada desses preceitos é simbolizar que, depois dos três estados da lei — o primeiro, de
Abraão até Davi; o segundo, até a transmigração de Babilônia; o terceiro, até Cristo — Cristo, que, é o
fruto dela, devia ser oferecido a Deus. Ou que as primícias das nossas obras nos devem ser suspeitas,
por causa da sua imperfeição.

RESPOSTA À SEXTA. — Como diz a Escritura (Sr 19, 27), o vestido do corpo dá a conhecer qual o homem
é. Por onde, o Senhor quis que o seu povo se distinguisse dos outros, não só pelo sinal carnal da
circuncisão, mas também: por uma diferença no vestir. E por isso, foi-lhe proibido vestir-se de roupa
tecida de lã e de linho; e que as mulheres usassem trajes masculinos e inversamente, por duas razões.
— A primeira fazer evitar a idolatria. Pois, os gentios, no culto dos seus deuses, usavam de várias vestes
de diversas contexturas. E também, no culto de Marte, as mulheres usavam das armas dos homens; no
de Vênus, ao inverso, os homens usavam trajes femininos. A outra razão era fazer evitar a luxúria. Pois,
pela exclusão de várias misturas nos tecidos das vestes, excluía-se toda união em coitos desordenados.
Porque é um incentivo à concupiscência e dá ocasião à libidinagem o vestir a mulher trajes masculinos.

A razão figurada de proibir nas vestes, tecidas de lã e de linho, é evitar a união da inocência e da
simplicidade, representadas pela lã, como a sutileza e a malícia, figuradas pelo linho. Também proibia a
mulher usurpar para si a doutrina ou os ofícios dos homens; ou ao homem o pendor para a efeminação.

RESPOSTA À SÉTIMA. — Diz Jerônimo: O Senhor mandou que se fizesse umas guarnições de jacinto nas
quatro pontas das capas, para distinguir o povo de Israel dos outros povos. Pois, assim, mostravam ser
judeus e, à vista desse sinal, despertavam a memória da sua lei. E o que diz a Escritura — E as atarás
com um sinal na tua mão, e estarão sempre diante dos teus olhos — os Fariseus interpretavam mal,
escrevendo em pergaminho o decálogo de Moisés, e prendendo-o na fronte, como coroa, para que se
movesse diante dos olhos. Entretanto a intenção do Senhor, mandando assim fazer, era que fossem
ligadas na mão, i. é, nas obras, e estivessem diante dos olhos, i. é, na meditação. As fitas cor de jacinto,
entremeadas nas capas significam a intenção celeste, inspiradora de todas as nossas obras. E também
pode-se dizer que, como o povo judeu era carnal e de cerviz dura, era necessário excitá-los à
observância da lei por esses sinais sensíveis.

RESPOSTA À OITAVA. — Há no homem duplo afeto: o racional e o passional. — Ao primeiro não


importa como se tratem os brutos, porque Deus lhe sujeitou todas as coisas ao poder, conforme a
Escritura (Sl 8, 8): Todas as coisas sujeitastes debaixo de seus pés. E neste sentido o Apóstolo diz que
Deus não cuida dos bois, por não exigir lhe dê o homem contas de como trata os bois ou os outros
animais. — Mas, pelo afeto da paixão o homem é movido em relação aos brutos. Pois, como a paixão da
misericórdia nasce dos sofrimentos alheios, e sofrer também podem os brutos, no homem pode nascer
o afeto da misericórdia mesmo para com os sofrimentos deles. Ora, quem com os animais exerce o
afeto da misericórdia está mais próximo a tê-lo para com os homens. Donde o dizer a Escritura (Pr 11,
10): O justo atende pela vida dos seus animais; mas as entranhas dos ímpios são cruéis. E por isso o
Senhor, para provocar a misericórdia no povo judaico, inclinado à crueldade, quis exercê-lo na miseri-
córdia, mesmo para com os brutos, proibindo-lhe tratá-los com qualquer crueldade. Por onde, era
proibido aos judeus cozer o bode no leite da mãe, prender a boca do boi que trilhava, matar a mãe com
os filhos.Embora também se possa dizer, que isso lhes era proibido para levá-los a detestar a idolatria.
Pois, os egípcios reputavam por nefário os bois comerem dos grãos que trilhavam. E alguns feiticeiros
também empregavam a ovelha, enquanto amamentava os filhos, e estes, apanhados simultaneamente
com ela, para conseguir a fecundidade e a boa fortuna em a nutrição dos filhos. E também porque nos
augúrios tinha-se como boa fortuna encontrar a mãe criando os filhos.

Do cruzamento entre animais de espécies diversas pode-se assinalar tríplice razão literal. — Uma, fazer
detestar a idolatria dos egípcios, que provocavam esses cruzamentos diversos, para cultuar aos planetas
que, conforme as suas diversas conjunções, produzem efeitos vários e sobre diversas espécies de coisas.
— Outra razão era excluir o coito contra a natureza. — A terceira, tolher universalmente, toda ocasião
de concupiscência. Pois, animais de espécies diversas não se cruzam facilmente, se não forem
provocados pelo homem; e a vista do coito provoca no homem movimentos de concupiscência. Por isso,
ainda mesmo nas tradições dos judeus, preceitua-se, como refere Rabbi Moisés, que os homens
desviem os olhos de animais em cópula.

A razão figurada é que o boi que trilha; i. é, o pregador, que distribui as sementes da doutrina, não deve
ser privado da subsistência necessária à vida, como diz o Apóstolo (1 Cor 9, 4 ss). — Também não
devemos tomar a mãe juntamente com os filhos; porque em certos casos devemos seguir o sentido
espiritual, como filho; e abandonar como nas cerimônias da lei a observância literal, como mãe. —
Também era proibido fazer os jumentos, i. é, os homens do povo cristão, ter cópula, i. é, ter sociedade,
com animais de outra espécie, i. é, com os gentios ou judeus.

RESPOSTA À NONA. — Todos os cruzamentos a que se alude, eram proibidos na agricultura,


literalmente, para fazer detestar a idolatria. Porque os egípcios, em veneração das estrelas, faziam
diversas misturas de sementes, animais e roupas, representativas das diversas conjunções delas. — Ou,
todas essas várias mesclas eram proibidas para fazer detestar o coito contra a natureza.

Mas também têm uma razão figurada. Pois, o preceito — Não semearás a tua vinha doutra semente —
deve ser entendido, espiritualmente, da Igreja, que, sendo a vinha espiritual, não deve ser semeada com
doutrina estranha. — E semelhantemente, o campo, i. é, a Igreja, não o semearás com diversa semente,
i. e, com a doutrina católica e a herética. — Não lavrarás com boi e asno juntamente, porque o fátuo, na
predicação, não se deve unir com o sábio, porque um é empecilho ao outro.

RESPOSTA À DÉCIMA. — Com razão a Escritura (Dt 7) proibia a prata e o ouro, não por não estarem
sujeitos ao poder dos homens, mas porque tanto os ídolos, como tudo aquilo de que eram fundidos,
estavam sujeitos àmaldição, como soberanamente abomináveis a Deus. E isso está claro no seguinte
passo do referido capítulo (Dt 7, 26): Nem em tua casa meterás coisa alguma que seja de ídolo, por não
vires a ser anátema, como ele o é também. Ou ainda para que, recebendo cobiçosamente o ouro e a
prata, não viessem com facilidade a cair na idolatria, à qual eram os judeus inclinados. — O segundo
preceito, de cobrir as dejeções com terra, era justo e honesto, quer por limpeza corporal;quer para
conservar a salubridade do ar; quer pela reverência devida ao tabernáculo da aliança, colocá-lo no
arraial, onde se dizia habitar o Senhor. E isto está claramente dito no lugar em que, depois de se
estabelecer esse preceito, dele se dá a razão: O Senhor teu Deus anda no meio do campo para te livrar
de todo o perigo etc.; e para que o teu campo seja santo, i. é, limpo, e não apareça nele coisa de
fealdade.

A razão figurada desse preceito, segundo Gregório, é significar que os pecados oriundos do instinto da
nossa mente, como excrementos fétidos, devem ser cobertos pela penitência, para sermos aceitos a
Deus, conforme aquilo da Escritura (Sl 31, 1): Bem-aventurados aqueles cujas iniqüidades são
perdoados, e cujos pecados são cobertos. Ou, conforme a Glosa: Para que, conhecida a miséria da
condição humana, a surdisse da mente enaltecida e soberba fosse coberta e purgada pela humildade, na
fossa da profunda meditação. RESPOSTA À UNDÉCIMA. — Os feiticeiros e os sacerdotes dos ídolos
empregavam, nos seus ritos, os ossos ou as carnes dos mortos. E por isso, para extirpar o culto da
idolatria, o Senhor mandou os sacerdotes menores, que ministravam no santuário em tempos
determinados, não se contaminarem nas mortes, senão só dos parentes muito próximos, como o pai e a
mãe, e outras pessoas assim chegadas. Porém, o pontífice devia estar sempre preparado para o
ministério do santuário; e por isso lhe era totalmente proibido achegar-se aos mortos, embora lhe
tivessem sido próximos. — Também lhes era proibido tomar mulher meretriz ou repudiada; mas que a
tomassem virgem. Quer pela reverência para com eles, cuja dignidade pareceria, de certo modo,
diminuída com uma tal união; quer também por causa dos filhos, por quem seria uma ignomínia a
torpeza da mãe. O que era sobretudo para evitar, quando a dignidade do sacerdócio era conferida
conforme àsucessão na família. — Também lhes era preceituado não raspassem a cabeça nem a barba,
nem fizessem incisão no corpo; para remover o rito da idolatria. Pois, os sacerdotes aos gentios
raspavam a cabeça e a barba; por isso, diz a Escritura (Br 6, 30): Estão assentados os sacerdotes tendo as
túnicas rasgadas e as cabeças e a barba rapada. E também, no culto dos ídolos, eles se retalhavam com
canivetes e lancetas, como se diz em outro lugar (1 Rs 18, 28). Por onde, mandou-se o contrário aos
sacerdotes da lei antiga.

A razão espiritual desses preceitos é deverem os sacerdotes ser absolutamente imunes de obras mortas,
que são as do pecado. E também não devem raspar a cabeça, i. é, perder a sabedoria; nem a barba, i. é,
perder a perfeição da sabedoria; nem ainda cindir as vestes ou fazer incisão no corpo, isto é, não
incorrer no vício do cisma.
Questão 103: Da duração dos preceitos cerimoniais.
Em seguida devemos tratar da duração dos preceitos cerimoniais.

E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a cerimônias da lei existiram antes dela.


(III, q. 60, a. 5, ad3; q. 61, a. 3 ad2; q. 70, a. 2, ad 1; IV Sent., dist. 1, q. 1, a. 2, qª 3, ad2; q. 2, a 6, qª 3; Ad
Hebr., cap. VII, lect I).

O primeiro discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei existiram antes dela.

1. — Pois, os sacrifícios e os holocaustos pertenciam às cerimônias da lei antiga, como já se disse (q.
101, a. 4). Ora, uns e outros existiram antes dela. Assim, diz a Escritura (Gn 4, 3-40, que Caim ofereceu
ao Senhor os seus dons dos frutos da terra; Abel também ofereceu das primícias do seu rebanho e das
suas gorduras. Noé também ofereceu holocaustos ao Senhor (Gn 18, 20). Abraão, do mesmo modo (Gn
22, 13). Logo, as cerimônias da lei antiga existiram antes dela.

2. Demais. — Entre as cerimônias concernentes às coisas sagradas estava construir e untar o altar. Ora,
isto se fazia antes da lei, como se lê na Escritura (Gn 13, 18): Abraão edificou um altar ao Senhor; e diz
de Jacó (Gn 28, 18): tirou a pedra e a erigiu em padrão, derramando óleo sobre ela. Logo, as cerimônias
legais existiram antes da lei.

3. Demais. — Entre os sacramentos legais era considerado como o primeiro a circuncisão. Ora, esta
existia antes da lei, como se lê na Escritura (Gn 17). Também o sacerdócio existia antes da lei; pois, diz a
Escritura (Gn 14, 18), que Melquisedeque era Sacerdote do Deus altíssimo. Logo, as cerimônias dos
sacramentos existiram antes da lei.

4. Demais. — A discriminação entre animais limpos e imundos pertencia às cerimônias das observâncias,
como se disse (q. 100, a. 2, a. 6 ad 1). Ora, essa discriminação já existia antes da lei, como se vê na
Escritura (Gn 7, 2-3): Toma de todos os animais limpos sete machos e sete fêmeas; e dos animais
imundos dois machos e duas fêmeas. Logo, as cerimônias legais existiram antes da lei.

Mas, em contrário, a Escritura (Dt 6, 1): Estes são os preceitos e as cerimônias que o Senhor nosso Deus
me mandou que vos ensinasse. Ora, os judeus não precisavam ser ensinados sobre elas, se tais
cerimônias já tivessem existido antes. Logo, as cerimônias da lei não existiram antes dela.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 101, a. 2; q. 102, a. 2), as cerimônias da lei se ordenavam a dois fins:
o culto de Deus e a figuração de Cristo. Ora, quem adora a Deus há de necessariamente fazê-lo por
determinados meios, constitutivos do culto externo. E determinar o culto divino pertencia às
cerimônias; assim como pertence aos preceitos judiciais determinar as disposições que nos ordenam ao
próximo, como já dissemos (q. 99, a. 4). Por onde, assim como entre os homens havia geralmente certos
preceitos judiciais, sem contudo serem instituídos por autoridade da lei divina, mas ordenados pela
razão deles, assim também havia certas cerimônias, não certo, determinadas pela autoridade de alguma
lei, mas só pela vontade e devoção dos que adoravam a Deus. — Ora, ainda antes da lei, existiram certos
homens notáveis, dotados de espírito profético. Por onde é de crer que, por instinto divino e como por
uma lei privada, fossem levados a algum modo certo de adorar a Deus, conveniente ao culto interior e
também próprio a significar os mistérios de Cristo, que também eram figurados por outros atos deles,
conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura. — Existiram,
logo, antes da lei, certas cerimônias; não porém as da lei, porque não eram instituídas por nenhuma
disposição legal.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essas oblações e sacrifícios e holocaustos os antigos os


ofereciam por uma certa devoção da vontade própria, por lhes parecer conveniente. Para que, pelas
coisas recebidas de Deus e pelas que ofereciam em reverência divina, se afirmassem como adoradores
de Deus, princípio e fim de todas as coisas.

RESPOSTA À SEGUNDA. — E também instituíram certas coisas como sagradas; pois lhes parecia
conveniente, em reverência de Deus haverem certos lugares, distintos dos outros, destinados ao culto
divino.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O sacramento da circuncisão foi estabelecido por preceito divino, antes da
lei. Por isso não se pode chamar sacramento da lei, como se fosse por ela instituído, mas só como
observado no seu regime. E foi isto o que disse o Senhor (Jo 7, 20): a circuncisão não vem do Senhor,
mas dos patriarcas. Também o sacerdócio existia antes da lei, entre os que adoravam a Deus, por
determinação humana, e que atribuíam essa dignidade aos primogênitos.

RESPOSTA À QUARTA. — A discriminação entre animais limpos e imundos, para o efeito de serem
comidos, não era anterior à lei, pois a Escritura diz (Gn 9, 3): Tudo o que se move e vive vos poderá
servir de sustento. Mas só para o efeito da oblação dos sacrifícios, porque os ofereciam de certos
determinados animais. Se porém havia certas discriminações de animais, para o fim da alimentação, isto
não era por se reputar ilícito o comê-los, pois nenhuma lei o proibia; mas por causa da abominação ou
do costume. Assim como ainda agora vemos serem certos alimentos abomináveis em certas terras,
comidos em outras.

Art. 2 — Se as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de justificar no


tempo dessa lei.
(Supra, q. 100, a. 12; q. 102, a. 5, ad 4; III, q. 62, a. 6; IV Sent., dist. I, q. 1, a. 5, qª 1, 3; Ad Gatal., cap. II,
lect. IV; cap. III, lect. IV; Ad Hebr., cap. IX, lect, II).

O segundo discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de justificar,
no tempo dessa lei.

1. — Pois, a expiação do pecado e a consagração do homem pertencem à justificação. Ora, a Escritura


diz (Ex 39, 21) que pela aspersão do sangue e unção com o óleo eram consagrados os sacerdotes e as
suas vestes. E noutro lugar diz (Lv 16, 16), que o sacerdote, pela aspersão do sangue do bezerro, expiava
o santuário das impuridades dos filhos de Israel e das suas prevaricações e dos seus pecados. Logo, as
cerimônias da lei antiga tinham a virtude de justificar.

2. Demais. — Aquilo pelo que o homem agrada a Deus pertence à justificação, conforme a Escritura (Sl
10, 8): O Senhor é justo e amou a justiça. Ora, pelas cerimônias certos agradavam a Deus, conforme
ainda a Escritura (Lv 10, 19): Como poderia eu agradar ao Senhor nas cerimônias, achando-me com o
coração tão penalizado? Logo, as cerimônias da lei antiga tinha o poder de justificar.

3. Demais. — O que é do culto divino mais pertence à alma que ao corpo, conforme a Escritura (Sl 18,
8): A lei do Senhor, que é imaculada, converte as almas. Ora, pelas cerimônias da lei antiga, purificavam-
se os leprosos. Logo, com maior razão, essas cerimônias podiam purificar a alma, justificando.
Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 2): Se tivesse sido dada uma lei que pudesse justificar, Cristo
morreu em vão, i. é, sem causa. Ora, isto é inadmissível. Logo, as cerimônias da lei antiga não
justificavam.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 102, a. 5 ad 4), a lei antiga estabelecia uma dupla imundice: a
espiritual, i. é, a da culpa; e a corporal, que privava da idoneidade para o culto divino. Assim como era
considerado imundo o leproso, ou aquele que tocava algum cadáver: Por onde, a imundice não era
senão uma certa irregularidade.

Ora, as cerimônias da lei antiga tinham a virtude de purificar dela. Pois, eram uns remédios
determinados por ordenação da lei, para purificar da referida imundice, estatuída pela própria lei. Por
isso, o Apóstolo diz (Heb 9, 13): o sangue dos bodes e dos touros, e a cinza espalhada duma novilha,
santifica aos imundos para purificação da carne. E assim como a imundice de que se era purificado, por
essas cerimônias, era mais da carne que da mente, assim também as cerimônias mesmas da justiça da
carne o Apóstolo as considera como justiças da carne postas até ao tempo da correção.

Elas porém não tinham a virtude de expiar a imundice da mente, que é imundice da culpa. E isto porque
a expiação dos pecados só pode ser feita por Cristo, que tira os pecados do mundo, como diz o
Evangelho (Jo 1, 29). E como o mistério da encarnação e da paixão de Cristo ainda não estava
totalmente consumado, as cerimônias da lei antiga não podiam conter realmente em si uma virtude
profluente dessa encarnação e dessa paixão, como a contêm os sacramentos da lei nova. E por isso não
podiam purificar do pecado, como diz o Apóstolo (Heb 10, 4): é impossível que com sangue de touros e
de bodes se tirem os pecados. E a isto o Apóstolo chama elementos fracos e pobres; fracos, porque não
podem purificar dos pecados; fraqueza essa proveniente de serem pobres, i. é, de não conterem em si a
graça.

A mente dos fiéis contudo podia, na vigência da lei, unir-se a Cristo, que se encarnou e sofreu a paixão, e
assim justificar-se pela fé em Cristo. Da qual era uma afirmação a observância dessas cerimônias,
enquanto figura de Cristo. Por isso, no regime da lei antiga ofereciam-se certos sacrifícios pelos pecados;
não que por si mesmos eles purificassem do pecado, mas por serem uma afirmação de fé, que dele
purificava. E isso mesmo a lei o indica pelo modo de exprimir-se. Pois, determina que, na oblação das
hóstias pelo pecado, o sacerdote rogará por ele (pelo príncipe) e o seu pecado lhe será perdoado; como
se o pecado fosse perdoado, não por força dos sacrifícios, mas pela fé e devoção dos oferentes.

Deve-se contudo saber, que a expiação, pela cerimônia da lei antiga, das imundices corpóreas, era figura
da expiação dos pecados operada por Cristo.

Por onde é claro, que as cerimônias, no regime da lei antiga; não tinham a virtude de justificar.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Essa santificação do sacerdote, dos seus filhos, das suas
vestes e de tudo o mais, pela aspersão do sangue, não passava de uma preparação ao culto divino e
remoção dos impedimentos, para a purificação da carne, como diz o Apóstolo (Heb 9, 13). E prefigurava
a outra purificação, pela qual Jesus, pelo seu sangue, santificou o povo. Ora, a expiação deve referir-se à
remoção dessas imundices corpóreas, e não à da culpa. Donde a referência à expiação do santuário, que
entretanto não podia ser sujeito de culpa.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sacerdotes agradavam a Deus, nas cerimônias, pela obediência, devoção
e fé no que prefiguravam; não porém por elas, em si mesmas consideradas.
RESPOSTA À TERCEIRA. — As cerimônias instituídas para a purificação dos leprosos não se ordenavam a
tirar a imundice da enfermidade da lepra; o que se patenteia por se aplicarem só ao que já estava limpo.
Por isso, diz a Escritura (Lv 14, 3-4): o sacerdote, saindo fora do arraial, vendo que a lepra está curada,
mandará ao que se purifica, que ofereça, etc. Por onde é claro que era constituído juiz da lepra já curada
e não, da que devia selo. E as cerimônias de que se trata foram estabelecidas para tirar a imundice da
irregularidade. Diz-se contudo que às vezes se acontecesse o sacerdote errar no juízo, o leproso era
limpo miraculosamente por Deus, por virtude divina e não por virtude dos sacrifícios. Assim também,
milagrosamente, apodrecia a coxa de uma mulher adúltera, depois de ter bebido a água que o
sacerdote carregou de maldições, como está na Escritura (Nm 5, 19-27).

Art. 3 — Se as cerimônias da lei antiga cessaram com o advento de Cristo.


(IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5, qª 1, 2).

O terceiro discute-se assim. — Parece que as cerimônias da lei antiga não cessaram com o advento de
Cristo.

1. — Pois, diz a Escritura (Br 4, 1): Este é o livro dos mandamentos de Deus, e a lei que subsiste
eternamente. Ora, as cerimônias da lei a ela pertenciam. Logo, haviam de durar eternamente.

2. Demais. — A oblação do leproso purificado pertencia às cerimônias da lei. Ora, também o Evangelho
preceitua ao leproso purificado fazer essas oblações. Logo, com a vinda de Cristo não cessaram as
cerimônias da lei antiga.

3. Demais. — Permanecendo a causa, permanece o efeito. Ora, as cerimônias da lei antiga tinham certas
causas racionais, enquanto ordenadas ao culto divino, além de se ordenarem a figurar a Cristo. Logo, as
cerimônias da lei antiga não deviam cessar.

4. Demais. — A circuncisão foi instituída em sinal da fé de Abraão; a observação do sábado, para


rememorar o benefício da criação; e as demais solenidades da lei, para lembrarem os outros benefícios
de Deus, como já dissemos (q. 102, a. 4 ad 10; a. 5 ad 1). Ora, ainda nós devemos imitar a fé de Abraão;
e devemos sempre rememorar o benefício da criação e os outros benefícios de Deus. Logo, pelo menos
a circuncisão e as solenidades da lei não deviam cessar.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Cl 2, 16-17): Ninguém vos julgue pelo comer nem pelo beber, nem
por causa dos dias de festa, ou das luas novas, ou dos sábados, que são sombras das coisas vindouras. E
(Heb 8, 13): chamando-lhe novo testamento deu por antiquado o primeiro; e o que se dá por antiquado
e envelhece perto está de perecer.

SOLUÇÃO. — Todos os preceitos cerimoniais da lei antiga ordenavam-se ao culto de Deus, como já
dissemos (q. 101, a. 1, a. 2). Ora, o culto externo deve proporcionar-se ao interno, por consistir na fé, na
esperança e na caridade. Por onde, à diversidade do culto externo devia corresponder a do interno. Ora,
podemos distinguir três estados no culto interno. — Um, no qual se tem fé e esperança nos bens
celestes e no que nos leva a esses bens; tudo porém considerado como coisas futuras. E tal foi o estado
da fé e da esperança, na lei antiga. — Outro é o estado do culto interno, no qual se tem fé e esperança
nos bens celestes, como em bens futuros; e nos meios que nos levam a esses bens, mas como meios
presentes ou pretéritos. E este é o estado da lei nova. — O terceiro estado é o em que ambas essas
coisas se crêem como presentes, e não se espera nada de futuro. E este é o dos bem-aventurados.
Ora, nesse estado da bem-aventurança, nada há de figurado no atinente ao culto divino senão só a ação
de graças e louvor. E por isso diz a Escritura (Ap 21, 22): E não vi templo nela; porque o Senhor Deus
todo poderoso e o cordeiro é o seu templo. Logo e pela mesma razão, as cerimônias do primeiro estado,
que figuravam o segundo e o terceiro, deveram cessar, com o advento do segundo. E deviam ser
estabelecidas outras cerimônias, convenientes ao estado do culto divino, para o tempo em que, sendo
futuros os bens celestes, os benefícios de Deus, que nos levam aqueles bens, são presentes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Diz-se que a lei antiga deve existir eternamente,
absolutamente falando, quanto aos seus preceitos morais; e, quanto aos cerimoniais, no concernente à
verdade por eles figurada.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O mistério da redenção do gênero humano ficou completo com a paixão de
Cristo. Por isso então o Senhor exclamou (Jo 19, 30): Tudo está cumprido, como se lê na Escritura. E
portanto, nesse momento teve de cessar todo o regime da lei antiga, cumprido por assim dizer na sua
verdade. E em sinal disso, como se lê na Escritura, na paixão de Cristo o véu do templo rasgou-se (Mt 27,
51). Por onde, antes da paixão de Cristo, enquanto pregava e fazia milagres, vigoravam ao mesmo
tempo a lei e o Evangelho, porque o seu mistério estava começado, mas ainda não cumprido. Pelo que,
N. S. Jesus Cristo mandou, antes da sua paixão, o leproso observar as cerimônias legais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — As razões literais das cerimônias supra-referidas respeitam o culto divino,
baseado na fé do que deveria vir. Por onde, com o advento do que devia vir, cessou esse culto, e com
ele todas as razões que o justificavam.

RESPOSTA À QUARTA. — A fé de Abraão se fundava na sua crença na promessa divina, relativa à


descendência futura, e que seriam abençoados todos os povos. Por isso, enquanto isso era futuro, era
necessário afirmar a fé de Abraão pela circuncisão. Mas depois da promessa realizada, deve ela
manifestar-se por outro sinal, a saber, o batismo, que, assim, substitui a circuncisão, conforme aquilo do
Apóstolo (Cl 2, 11-12): Vós estais circuncidados de circuncisão não feita por mão de homem no despojo
do corpo da carne, mas sim na circuncisão de N. S. J. Cristo, estando sepultado juntamente com ele no
batismo. Por isso o sábado, que significava a criação inicial, foi mudado no domingo, em que se
comemora a nova criação, começada com a ressurreição de Cristo. E semelhantemente, às outras
solenidades da lei antiga sucederam-se novas, pois, os benefícios feitos ao povo judeu significam os que
Cristo nos concedeu. Assim, à festa da Fase sucedeu a da Paixão e da Ressurreição de Cristo; à de
Pentecostes, em que foi dada a lei antiga, a de Pentecostes, em que foi dada a do Espírito da vida; à da
Neomênia, a da beata Virgem, com a qual primeiro apareceu a luz do sol; i. é, de Cristo, pela abundância
da graça; à das Trombetas, a dos Apóstolos; à da Expiação, a dos Mártires e Confessores; à dos
Tabernáculos, a da Consagração da Igreja; à da Congregação e do Ajuntamento, a dos Anjos, ou ainda, a
de Todos os Santos.
Art. 4 — Se depois da paixão de Cristo, podem-se observar as cerimônias
legais, sem pecado mortal.
(Infra, q. 104, a. 3; q. 107, a. 2 ad 1; Iª-IIªª, q. 93, a. 7; IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5; qª 3,4; Ad Rom., cap. XIV,
lect. I; Ad Galad., cap. II, lect. III; cap. 5, lect. I; Ad Coloss., cap. II, lect. IV).

O quarto discute-se assim. — Parece que depois da paixão de Cristo, podem-se observar as cerimônias
legais, sem pecado mortal.

1. — Pois, não se pode crer que os Apóstolos, depois de terem recebido o Espírito Santo, pecassem
mortalmente; pois, pela plenitude do Espírito, foram revestidos da virtude do alto, conforme a Escritura
(Lc 24, 49). Ora, os Apóstolos, depois do advento do Espírito Santo, observaram a lei. Assim, a Escritura
diz (At 16, 3), que Paulo circuncidou a Timóteo. E, noutro lugar (At 21, 26), que Paulo, por conselho de
Tiago, depois de tomar consigo aqueles varões, purificado com eles, no seguinte dia entrou no templo,
fazendo saber o cumprimento dos dias da purificação, até que se fizesse a oferenda por cada um
deles. Logo, as cerimônias legais podem ser observadas, depois da paixão de Cristo, sem pecado mortal.

2. Demais. — Pertencia às cerimônias da lei evitar a convivência com os gentios. Ora, isto foi observado
pelo primeiro pastor da Igreja, conforme aEscritura (Gl 2, 12): quando chegaram os que vieram a
Antioquia, Pedro subtraía-se e separava-se dos gentios. Logo, sem pecado, depois da paixão de Cristo,
podem observar-se as cerimônias da lei.

3. Demais. — Os preceitos dos Apóstolos não podiam induzir os homens ao pecado. Ora, por decisão
dos Apóstolos, foi estabelecido, que os gentios observassem algumas das disposições da lei, como se lê
na Escritura (At 15, 28-29): Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós, não vos impor mais encargos do que
os necessários, que são estes: a saber, que vos abstenhais do que tiver sido sacrificado aos ídolos, e do
sangue e das carnes sufocadas e da fornicação. Logo, sem pecado, as cerimônias legais podem ser
observadas, depois da paixão de Cristo.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Gl 5, 2): se vos fazeis circuncidar, Cristo não vos aproveitará
nada. Ora, só o pecado mortal faz perder o fruto da paixão de Cristo. Logo, observar a circuncisão e as
outras cerimônias da lei, depois dessa paixão, é pecado mortal.

SOLUÇÃO. — Todas as cerimônias da lei eram uma afirmação de fé, na qual consiste o culto interno de
Deus. Ora, a fé interior o homem pode manifestá-la por atos e por palavras; e, em ambos os casos,
quem afirmar alguma coisa falsamente comete pecado mortal. Pois, embora seja a fé que temos em
Cristo a mesma que tiveram os antigos Patriarcas, contudo, como eles o precederam e nós viemos
depois, a mesma fé é expressa por nós e por eles por palavras diferentes. Assim, a eles se lhes disse: Eis
que uma virgem conceberá no seu ventre e dará à luz um filho, sendo o verbo empregado no futuro; ao
contrário, nós o afirmamos com o verbo no passado: concebeu no seu ventre e deu à Luz.
Semelhantemente, as cerimônias da lei antiga significavam que Cristo havia de nascer e sofrer; ao passo
que os nossos sacramentos significam que nasceu e sofreu.

Por onde, assim como pecaria mortalmente quem, afirmando a sua fé, dissesse, como os antigos pia e
verdadeiramente faziam, que Cristo havia de nascer, assim também pecaria mortalmente quem agora
observasse as cerimônias da lei, que os antigos observavam pia e fielmente. E é isto o que diz Agostinho:
Jánão é prometido como havendo de nascer, de sofrer, de ressurgir, conforme o significavam os
sacramentos antigos; mas se anuncia que nasceu, sofreu, ressurgiu, conforme o significavam os
sacramentos recebidos pelos Cristãos.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Neste ponto diferem as opiniões de Jerônimo e de
Agostinho. — Aquele distingue dois tempos. Um anterior à paixão de Cristo, em que as cerimônias legais
não eram peremptas, como se não tivessem, a seu modo, força obrigatória ou expiatória; nem
mortíferas, porque não pecava quem as observasse. Mas logo depois da paixão de Cristo começaram,
não só a ser letra morta, i. é, sem força e obrigatoriedade, mas também mortíferas, e assim pecava
mortalmente quem quer que as observasse. Por isso dizia que os Apóstolos nunca mais observaram
essas cerimônias, depois da paixão verdadeira, mas só por uma como pia simulação, para os judeus não
se escandalizarem e ficar-lhes impedida a conversão. Essa simulação deve ser entendida, não como
querendo dizer, que não praticassem os referidos atos, na verdade das coisas, mas que não os
praticavam como observantes das cerimônias da lei. Seria esse o caso daquele que cortasse o prepúcio
do membro viril, por motivo de saúde, e não para observar a circuncisão legal.

Mas era inconveniente que os Apóstolos ocultassem, por causa do escândalo, o que pertence à verdade
da vida e da doutrina, e usassem de simulação no atinente à salvação dos fiéis. Por isso e mais
apropriadamente, Agostinho distingue três tempos. Um, anterior à paixão de Cristo, em que as
cerimônias legais nem eram letra morta, nem mortíferas. Outro, posterior à divulgação do Evangelho,
em que são letra morta e mortíferas. Um terceiro tempo é médio, isto é, compreendido entre a paixão
de Cristo e a divulgação do Evangelho, em que eram, certo, letra morta, porque já não tinham nenhuma
força nem estava ninguém obrigado a observá-las. Contudo não eram mortíferas, porque os judeus, que
se converteram a Cristo, podiam observá-las licitamente; contanto que nelas não pusessem toda a
esperança, de modo a reputarem-nas necessárias à salvação, como se, sem elas, a fé em Cristo não
pudesse justificar. Os gentios porém, que se convertiam a Cristo, nenhuma razão tinham para observar
tais cerimônias. Por isso Paulo circuncidou Timóteo, que era nascido de mãe judia; ao contrário, não
quis circuncidar Tito, que nasceu gentio.

Por onde, o Espírito Santo não quis que se proibisse imediatamente aos judeus convertidos a
observância dessas cerimônias, como o eram aos gentios convertidos os ritos da gentilidade. Isto para
estabelecer uma diferença entre esses dois ritos. Pois, o da gentilidade era repudiado como
absolutamente ilícito e sempre proibido por Deus; ao passo que o rito da lei cessava, como tendo a sua
plenitude na paixão de Cristo e como instituído que fora por Deus para figurar Cristo.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Segundo Jerônimo, Pedro subtraía-se simuladamente aos gentios, para
evitar o escândalo dos judeus, dos quais era o Apóstolo. Por isso, assim agindo, de nenhum modo
pecou. Ao passo que Paulo repreendeu-o também simuladamente, para evitar o escândalo dos gentios,
de quem era o Apóstolo.

Mas, Agostinho refuta essa opinião. Porque Paulo, na Escritura canônica, na qual não se pode crer que
haja nada de falso, diz que Pedro era repreensível. Logo, é verdade que Pedro pecou e Paulo o
repreendeu verdadeira e não, simuladamente. Ora, Pedro não pecou por ter observado, fora do tempo,
as cerimônias da lei; pois, isso lhe era lícito, como judeu convertido. Mas pecou por ter posto demasiada
diligência em observar tais cerimônias, para não escandalizar os judeus; de modo porém que daí
resultava escândalo para os gentios.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Certos disseram, que a referida proibição dos Apóstolos não deve ser
entendida em sentido literal, mas espiritual. De modo que, pela proibição do sangue se entenda a do
homicídio; pela das carnes sufocadas, a da violência e da rapina; pela das vítimas imoladas, a da
idolatria; a fornicação, enfim, era proibida por ser má em si mesma. E deduzem esta opinião de certas
glosas, que expõem esses preceitos misticamente. — Mas como o homicídio e a rapina eram reputados
ilícitos,mesmo entre os gentios, não era preciso, nesse ponto, fazer um mandamento especial aos que,
da gentilidade se convertiam a Cristo.

Por isso outros dizem, que era proibido comer de tais causas, literalmente, não por causa da
observância das cerimônias legais, mas para reprimir a gula. Por onde, Jerônimo, comentando aquilo da
Escritura — Tudo o que por si mesmo haja morrido, etc. — diz: Condena os sacerdotes que, a propósito
dos tordos e de aves semelhantes, não guardam tais mandamentos, por avidez da gula. — Mas como há
certas comidas mais delicadas e provocadoras da gula, não havia razão para essas de que trata, serem,
mais que outras, proibidas.

E portanto, devemos dizer, de conformidade com a terceira opinião, que essas comidas foram
literalmente proibidas, não para se observarem as cerimônias da lei, mas para poder consolidar-se a
união dos gentios e dos judeus, habitando em comum. Pois, aos judeus, por costume antigo, era
abominável o sangue e as carnes sufocadas; e o comer do que fora imolado aos ídolos podia despertar-
lhes, em relação aos gentios, a suspeita de que retornavam à idolatria. Por isso fizeram-se as referidas
proibições, em tempo ainda recente, quando gentios e judeus deviam viver juntos. Mas, com o correr
dos anos, cessando a causa, cessou o efeito, uma vez manifestada a verdade da doutrina evangélica, em
que o Senhor ensina (Mt 15, 11), que não é o que entra pela boca o que faz imundo o homem; e que (1
Tm 4, 4) não é para desprezar nada do que se participa com ação de graças. Quanto à fornicação, foi
especialmente proibida, pela não considerarem os gentios como pecado.
Questão 104: Dos preceitos judiciais.
Em seguida devemos tratar dos preceitos judiciais. E primeiro, devemos considerá-los em comum.
Segundo, as suas razões.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a razão dos preceitos judiciais está em se ordenarem ao


próximo.
(Supra, q. 99, a. 4).

O primeiro discute-se assim. — Parece que a razão dos preceitos judiciais não está em se ordenarem
ao próximo.

1. — Pois, os preceitos judiciais eram assim chamados por causa do juízo. Ora, há muitos outros
preceitos por que se o homem ordena para o próximo, e não pertencem à ordenação dos juízos. Logo,
não se chamam preceitos judiciais aqueles pelos quais o homem se ordena para o próximo.

2. Demais. — Os preceitos judiciais distinguem-se dos morais, como já se disse (q. 99, a. 4). Ora, há
muitos preceitos morais por que o homem se ordena para o próximo, como o demonstram os da
segunda tábua. Logo, os preceitos judiciais não se chamam assim por se ordenarem ao próximo.

3. Demais. — Os preceitos cerimoniais estão para Deus, como os judiciais, para o próximo, conforme se
disse (q. 99 a. 4; q. 101, a. 1). Ora, entre os preceitos cerimoniais, certos respeitam à pessoa mesma,
como as observâncias sobre os alimentos e as vestes, de que já se tratou (q. 102, a. 6 ad 1, 6). Logo, os
preceitos judiciais não se chamam assim por ordenarem o homem para o próximo.

Mas, em contrário, diz a Escritura, referindo-se às outras boas obras do varão justo (Ez 18, 8): se fizer um
verdadeiro juízo entre homem e homem. Ora, os preceitos judiciais são assim chamados por causa do
juízo. Logo, assim se chamam os que dizem respeito à ordenação dos homens uns para os outros.

SOLUÇÃO. — Como do sobredito resulta (q. 95, a. 2; q. 99, a. 4), certos preceitos de qualquer lei têm
força obrigatória, em virtude de um ditame da razão, pela razão natural ditar seja tal ato praticado ou
evitado. E esses preceitos se chamam morais, por na razão se fundarem os costumes humanos. — Há
outros preceitos sem força obrigatória em virtude do ditame mesmo da razão. Porque, em si mesmos
considerados, não implicam em absoluto a noção de obrigação ou não-obrigação; mas têm força de
obrigar em virtude de alguma instituição divina ou humana. E tais são certas determinações dos
preceitos morais.

Se portanto forem determinados preceitos morais, por instituição divina, relativos à ordenação do
homem para Deus, esses preceitos se chamarão cerimoniais. Se relativos à ordenação dos homens uns
para os outros, chamar-se-ão judiciais. Logo, dois fundamentos têm a razão dos preceitos judiciais:
concernirem à ordenação dos homens uns para os outros; e terem força obrigatória fundada, não só na
razão, mas na instituição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os juízos se exercem por ofício de chefes com o poder
de julgar. Ora, ao príncipe pertence não só ordenar sobre os litígios, mas também sobre os contratos
voluntários dos homens entre si, e de tudo o atinente à comunidade do povo e ao regime. Por onde, os
preceitos judiciais não são somente os concernentes às lides judiciais, mas todos os que respeitam à
ordenação mútua dos homens, sujeita à ordenação do príncipe como juiz supremo.
RESPOSTA À SEGUNDA. — A objeção colhe quanto aos preceitos, que ordenam para o próximo, com
força obrigatória pelo só ditame da razão.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Mesmo em relação ao que se ordena para Deus, há certos preceitos morais,
que a razão dita, informada pela fé. Assim, que devemos amar e adorar a Deus. Outros preceitos, porém
são cerimoniais e não têm força obrigatória senão por instituição divina. Ora, a Deus pertencem não só
os sacrifícios, que lhe são oferecidos, mas tudo o concernente à idoneidade dos oferentes e dos que o
cultuam; pois, o homem se ordena para Deus como para o fim. Portanto, o culto de Deus de par com os
preceitos cerimoniais exige uma certa idoneidade para o culto divino. — Ao contrário, o homem não se
ordena para o próximo, como para o fim, de modo que devesse por essência dispor-se ordenadamente
para o próximo; pois seria relação de escravos para senhor, fundada em pertencerem, por aquilo
mesmo que são, ao senhor, segundo o Filósofo. E portanto, não há preceitos judiciais que ordenem o
homem para si mesmo; mas todos os preceitos dessa natureza são morais. Pois, a razão, princípio da
moralidade, desempenha no homem, em relação ao que lhe diz respeito, o mesmo papel que, na
cidade, o príncipe ou o juiz. Deve-se porém saber, que a ordenação do homem para o próximo está mais
sujeita à razão do que a do homem para Deus. Por isso, são em maior número os preceitos morais
ordenadores do homem para o próximo, do que aqueles que o ordenam para Deus. E assim havia de
conter a lei mais preceitos cerimoniais que judiciais.

Art. 2 — Se os preceitos judiciais são figurativos.


(Art. Seq.; IIª-IIªª, q. 87, a.1).

O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais não são figurativos.

1. — Pois, parece próprio dos preceitos cerimoniais serem figurativos de alguma instituição. Se
portanto, os preceitos judiciais também fossem figurativos, não difeririam dos cerimoniais.

2. Demais. — Assim como aos judeus, assim também aos gentios foram dados certos preceitos judiciais.
Ora, os preceitos judiciais dos outros povos nada figuravam, mas só ordenavam o que devia ser feito.
Logo, parece que também os preceitos judiciais da lei antiga nada figuravam.

3. Demais. — Era necessário dar a entender por figuras o pertencente ao culto divino, porque as coisas
de Deus são superiores à nossa razão. Ora, o que respeita ao próximo não a excede. Logo, os preceitos
judiciais, que nos ordenam para o próximo, nada deviam figurar.

Mas, em contrário, é que na Escritura, os preceitos judiciais são expostos alegórica e moralmente.

SOLUÇÃO. — De dois modos pode um preceito ser figurativo — Primariamente e em si mesmo, quando
foi principalmente instituído para ter alguma significação. E deste modo, os preceitos cerimoniais são
figurativos; pois, foram instituídos para figurar o pertencente ao culto de Deus e ao mistério de Cristo.
— Outros preceitos porém são figurativos, não primariamente e em si mesmos, mas por conseqüência.
E deste modo, os preceitos judiciais da lei antiga são figurados. Certo, não foram instituídos para figurar
nada; mas para ordenar o estado do povo judeu segundo a justiça e a eqüidade. Por conseqüência,
porém, eram figurativos, porque todo o estado desse povo, regulado por esses preceitos, era figurativo,
conforme a Escritura (1 Cor 10, 11): Todas estas coisas lhes aconteciam a eles em figura.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os preceitos cerimoniais são figurativos de modo


diferente dos judiciais, como já se disse.
RESPOSTA À SEGUNDA. — O povo judeu foi escolhido de Deus para dele nascer Cristo. Por isso, todo o
estado desse povo havia de ser profético e figurativo, como diz Agostinho. E por isso também, os
preceitos judiciais, que lhe foram dados, são mais figurativos do que os dados aos outros povos. Assim
também, as guerras e os feitos desse povo se entendem misticamente;não porém as guerras ou os
feitos dos assírios ou dos romanos, embora, humanamente falando, sejam muito mais famosos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A ordenação para o próximo, no povo judeu, em si mesma considerada era
accessível à razão. Mas enquanto referida ao culto de Deus, a superava, sendo por aí, figurativa.

Art. 3 — Se os preceitos judiciais da lei antiga implicam obrigação


perpétua.
(Infra, q. 108. a. 2; IIª-IIªª, q. 87, a. 1: IV Sent., dist. XV, q. 1 a. 5, qª 2, ad 5 Quodl. II, q. 4., a. 3; IV, q. 8, a.
2; Ad Hebr., cap. VII. Lect. II).

O terceiro discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais da lei antiga implicam obrigação
perpétua.

1. — Pois, os preceitos judiciais pertencem à virtude da justiça;porque juízo se chama à execução da


justiça. Ora, a justiça é perpétua e imortal, como diz a Escritura (Sb 1, 15). Logo, a obrigação dos
preceitos judiciais é perpétua.

2. Demais. — As instituições divinas são mais estáveis que as humanas. Ora, os preceitos judiciais das
leis humanas obrigam perpetuamente. Logo, com maior razão, os da lei divina.

3. Demais. — O Apóstolo diz (Heb 7, 18): O mandamento primeiro é na verdade abrogado pela sua
fraqueza e inutilidade. O que é verdadeiro dos mandamentos cerimoniais, que não podiam purificar a
consciência do que sacrificava, por meio somente de manjares e bebidas e de diversas abluções e
justiças da carne, como diz o mesmo Apóstolo (Heb 9, 9-10). Mas os preceitos judiciais eram úteis e
eficazes para aquilo ao que se ordenavam, i. é, para constituir a justiça e a eqüidade entre os homens.
Logo, os preceitos judiciais da lei antiga não são rejeitados, mas vigem até agora.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 7, 12): mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça
também mudança da lei. Ora, o sacerdócio foi transferido de Aarão para Cristo. Logo, também toda a lei
foi mudada. Logo, os preceitos judiciais não obrigam ainda agora.

SOLUÇÃO. — Os preceitos judiciais não implicaram obrigação perpétua, e por isso foram anulados com
o advento de Cristo. Porém, de modo diferente por que o foram os cerimoniais. Pois, estes o foram de
modo a não só ficarem sendo letra morta, mas ainda mortíferos para os que os observarem, depois de
Cristo, sobretudo depois da divulgação do Evangelho. Ao passo que os preceitos judiciais são, por cedo,
letra morta, por não terem força de obrigar, mas não são mortíferos. Assim, príncipe, que mandasse
observá-los no seu reino não pecaria, salvo se fossem observados ou se mandasse que o fossem, como
tendo força obrigatória, em virtude da instituição da lei antiga. Pois, essa intenção de observá-los seria
mortífera. E a razão dessa diferença pode ser encontrada no que já ficou dito (a. 2). Pois, como
dissemos, os preceitos cerimoniais são figurativos, primariamente e em si mesmos, como tendo sido
principalmente instituídos para figurar os mistérios futuros de Cristo. Portanto, a observância mesmo
deles prejudica à verdade da fé, pela qual confessamos esses mistérios já se terem cumprido. Ao passo
que os preceitos judiciais não foram instituídos para figurar, mas para dispor o estado do povo judeu,
que se ordenava para Cristo. Por onde, mudado o estado desse povo, com o advento de Cristo, os
preceitos judiciais perderam a força obrigatória; pois a lei era um pedagogo conducente a Cristo, como
diz o Apóstolo (Gl 3, 24). Como porém esses preceitos judiciais não se ordenavam a figurar, mas a levar
à prática de certos atos, a observância deles, absolutamente, não prejudica a verdade da fé. A intenção
porém, de observá-los como lei obrigatória prejudica à referida verdade, por daí se concluir que o
estado do povo judeu ainda dura, e que Cristo ainda não veio.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A justiça, certo, há de ser observada perpetuamente;


mas a determinação do que é justo, por instituição humana ou divina, há de necessariamente variar
segundo os diversos estados dos homens.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os preceitos judiciais instituídos pelos homens obrigam perpetuamente,


enquanto permanecer o regime. Mas se a cidade ou o povo passar para outro regime, por força as leis
hão-se de mudar. Pois, as mesmas leis não convêm à democracia, que é o governo do povo, e à
oligarquia, que é o dos ricos, como está claro no Filósofo. E portanto, mudado o primitivo estado do
povo judeu, haviam necessariamente de mudar-se os preceitos judiciais.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos judiciais dispunham o povo para a justiça e a eqüidade, na


medida em que isso era possível ao estado dos judeus. Mas depois de Cristo, esse estado teve de
mudar-se, de modo que no regime da lei cristã não haveria distinção entre gentios e judeus, como havia
antes. E por isso, era forçoso se mudassem também os preceitos judiciais.

Art. 4 — Se os preceitos judiciais podem ter divisão certa.


O quarto discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais não podem ter nenhuma divisão certa.

1. — Pois, os preceitos judiciais ordenavam os homens uns para os outros. Ora, sendo infinitas as coisas
de que os homens necessitam e precisavam de ordenar, entre si, elas não podem depender de nenhuma
distinção certa. Logo, os preceitos judiciais não podem ter divisão certa.

2. Demais. — Os preceitos judiciais são determinações dos morais. Ora, estes não têm nenhuma divisão
senão enquanto se reduzem aos do decálogo. Logo, os preceitos judiciais não são susceptíveis de
nenhuma distinção certa.

3. Demais. — Dos preceitos cerimoniais, por serem susceptíveis de divisão certa, a lei indica uma certa
divisão, chamando a uns sacrifícios, e a outros, observâncias. Mas nenhuma distinção a lei indica entre
os preceitos judiciais. Logo, parece, não são susceptíveis de divisão certa.

Mas, em contrário. — Onde há ordem há de necessariamente haver distinção. Ora, a noção de ordem é
própria, sobretudo, dos preceitos judiciais, pelos quais se ordenava o povo judeu. Logo, devem ter, por
excelência, uma divisão certa.

SOLUÇÃO. — A lei é uma como arte para instituir e ordenar a vida humana. Ora, cada arte tem uma
certa divisão nas suas regras. Portanto, toda lei deve conter uma certa divisão nos seus preceitos; do
contrário, a confusão viria aniquilar-lhe a utilidade. Por onde devemos concluir, que os preceitos
judiciais da lei antiga, que ordenavam os homens uns para os outros, comportam uma distinção fundada
na da ordenação humana. Ora, em qualquer povo, podemos descobrir quádrupla ordem. Uma, a dos
chefes em relação aos súbditos; outra, a dos súbditos entre si; a terceira, a dos indivíduos desse povo
para com os estranhos; a quarta, a dos membros da sociedade doméstica, como a do pai para o filho, da
esposa para o esposo, do senhor para o escravo. E conforme a estas quatro ordens, podem se dividir os
preceitos judiciais da lei antiga. — Assim, ela estabeleceu certos preceitos sobre a constituição e o dever
dos chefes, e sobre o respeito a eles devido. E esta é uma parte dos preceitos judiciais. — Outras, sobre
as relações aos cidadãos entre si; como sobre a compra e venda, os julgamentos e as penas. E esta é a
segunda parte dos preceitos judiciais. — Outros, relativos aos estrangeiros; p. ex., sobre as guerras
contra os inimigos e o modo de receber os estranhos e os ádvenas. E esta é a terceira parte dos
preceitos judiciais. — Enfim, a lei estabeleceu certos preceitos sobre a sociedade doméstica, como os
relativos aos escravos, às mulheres e aos filhos. E esta é a quarta parte dos preceitos judiciais.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os preceitos relativos à ordenação dos homens entre si
são, sem dúvida, em número infinito. Contudo, podem reduzir-se a um certo número deles, conforme à
diferença das ordenações humanas, como já se disse.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os preceitos do decálogo são os primeiros no gênero dos preceitos morais,
como já dissemos (q. 100, a. 3). Por onde, os outros preceitos morais se dividem relativamente a eles.
Os preceitos judiciais porém e os cerimoniais têm a sua força obrigatória fundada, não na razão natural,
mas na só instituição. Portanto, a divisão deles tem outra razão de ser.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei indica a divisão dos preceitos judiciais pela matéria mesma que regulam.
Questão 105: Da razão de ser dos preceitos judiciais.
Em seguida devemos tratar da razão de ser dos preceitos judiciais.

E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei antiga constituiu convenientemente os chefes.


O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei antiga constituiu inconvenientemente os chefes.

1. — Pois, como diz o Filósofo, a ordenação do povo depende precipuamente do chefe máximo.

Ora, a lei não determina como esse chefe supremo devia ser constituído; só determina sobre os chefes
inferiores. Assim, diz, primeiro (Ex 18, 21): Escolhe dentre os do povo uns tantos homens tementes a
Deus, etc.; e (Nm 11, 16): Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel; e (Dt 1, 13): Daí dentre vós
homens sábios e capazes, etc. Logo, a lei antiga constituiu insuficientemente os chefes do povo.

2. Demais. — É próprio do que é ótimo fazer coisas ótimas, como diz Platão. Ora, a ótima constituição
de um estado ou de um povo qualquer é ser governado por um rei. Pois esse regime representa por
excelência o governo divino, pelo qual o Deus único governa o mundo desde o princípio. Logo, a lei
devia ter constituído um rei para o povo e não deixar a escolha ao arbítrio deles, como o permitiu; (Dt
17, 14-15): Quando disseres eu constituirei um rei para me governar, elegerás aquele, etc.

3. Demais. — Dia a Escritura (Mt 12, 25): todo reino dividido contra si mesmo será desolado, o que ficou
experimentalmente patenteado no povo judeu, cuja causa da destruição foi a divisão do reino. Ora, a lei
deve principalmente buscar o que respeita ao bem comum do povo. Logo, a lei antiga devia ter proibido
a divisão do reino em dois governos. E nem devia isso ter sido feito por autoridade divina, como,
segundo se lê na Escritura (1 Rs 11, 29), o foi por autoridade de Ahias Silonita.

4. Demais. — Assim como os sacerdotes são constituídos para a utilidade do povo, no concernente a
Deus, conforme o diz a Escritura (Heb 5, 1), assim os príncipes são constituídos tais para essa mesma
utilidade, na ordem das coisas humanas. Ora, aos sacerdotes e aos levitas da lei destinavam-se certos
proventos de que deviam viver, como os dízimos, as primícias e muitas outras semelhantes. Logo e pela
mesma razão, aos príncipes do povo devia se ordenar o que lhes servisse de sustento; e tanto mais
quando lhes era proibido aceitar donativos, como diz a Escritura (Ex 23, 8): Não aceitarás donativos,
porque eles fazem cegar ainda aos prudentes e pervertem as palavras dos justos.

5. Demais. — Assim como o regime real é o melhor de todos, assim o regime do tirano é a pior
corrupção do governo. Ora, o Senhor, ao constituir o rei, instituiu um direito tirânico, conforme a
Escritura (1 Sm 8, 11):Este será o direito do rei que vos há de governar; ele tomará os vossos filhos etc.
Logo, a lei dispôs inconvenientemente sobre a constituição dos príncipes.

Mas, em contrário, o povo de Israel se gabava da formosura do seu governo (Nm 24, 5): Que formosos
são os teus pavilhões, ó Jacó, e que belas as tuas tendas, ó Israel! Ora, a formosura o governo do povo
depende de príncipes bem constituídos. Logo, pela lei o povo foi bem constituído em relação aos seus
reis.

SOLUÇÃO. — A respeito da boa constituição dos chefes de uma cidade ou nação, duas coisas devemos
considerar. Uma, que todos tenham parte no governo; assim se conserva a paz do povo e todos amam e
guardam um tal governo, como diz Aristóteles. A outra é relativa à espécie do regime ou à constituição
dos governos. E tendo estes diversas espécies, como diz o Filósofo, as principais são as seguintes. A
monarquia, onde o chefe único governa segundo o exige a virtude; a aristocracia, i. é, o governo dos
melhores, na qual alguns poucos governam segundo também o exige a virtude. Ora, o governo melhor
constituído, de qualquer cidade ou reino, é aquele onde há um só chefe, que governa segundo a
exigência da virtude e é o superior de todos. E, dependentes dele, há outros que governam, também
conforme a mesma exigência. Contudo esse governo pertence a todos, quer por poderem os chefes ser
escolhidos dentre todos, quer também por serem eleitos por todos. Por onde, essa forma de governo é
a melhor, quando combinada: monarquia, por ser só um o chefe; aristocracia, por muitos governarem
conforme o exige a virtude; democracia i. é, governo do povo, por, deste, poderem ser eleitos os chefes
e ao mesmo pertencer à eleição deles.

E isto foi o que instituiu a lei divina. Pois Moisés e os seus sucessores governavam o povo, sendo, como
singularmente, os chefes de todos; e isso é uma espécie de monarquia. Mas eram escolhidos setenta e
dois anciões, conforme a virtude. Pois, diz a Escritura (Dt 1, 15) Eu tirei das vossas tribos homens sábios
e nobres e os constitui príncipes; sinal de um regime aristocrático.

Mas era também democrático por serem esses escolhidos dentre todo o povo: Escolhe dentre os do
povo uns tantos sábios, etc. E também era o povo quem os escolhia: Daí entre vós homens sábios, etc.
Por onde é claro que a melhor constituição dos chefes foi a estabelecida pela lei.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O povo judeu era governado por Deus, com especial
cuidado. Por isso diz a Escritura (Dt 7, 6): O Senhor teu Deus te escolheu para seres o seu povo próprio.
Por isso, o Senhor reservou para si a escolha do chefe supremo. E foi isto que Moisés pediu (Nm 27,
16): O Senhor Deus dos espíritos de todos os homens escolha algum homem que vigie sobre essa
multidão. Assim, por ordem de Deus, foi Josué constituído no principado, depois de Moisés. E a respeito
de cada um dos juízes, sucessores de Josué, se lê que Deus suscitou ao povo um salvador; e que o
espírito do Senhor esteve neles, como está claro na Escritura. Por isso o Senhor também não cometeu
ao povo a eleição do rei, mas a reservou para si, como se lê na Escritura (Dt 17, 15): Constituirás rei
aquele a quem o Senhor teu Deus tiver escolhido.

RESPOSTA À SEGUNDA. — O governo real é o melhor regime para o povo, se não se corromper. Mas,
por causa do grande poder de que o rei é dotado, o seu governo facilmente degenera em tirania, se não
for perfeita a virtude de quem foi investido nesse poder. Pois, como diz Aristóteles, só o virtuoso pode
suportar a boa fortuna. Ora, são poucos os de virtude perfeita; e principalmente os judeus eram cruéis e
inclinados à avareza, vícios que sobretudo fazem os homens cair na tirania. Por isso o Senhor, desde o
princípio, não lhes deu nenhum rei com amplos poderes; mas juízes e governadores, que lhes servissem
de guardas. Mas depois, o pedido do povo, concedeu-lhe, quase indignado, um rei, como é claro pelo
que disse a Samuel (1 Sm 8, 7):Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não reinar sobre eles.
Contudo, desde o princípio, para a escolha do rei, instituiu, primeiro, o modo de elegê-lo. Para isso
estabeleceu as duas condições seguintes. Que, ao elegê-lo, procurassem conhecer o juízo de Deus. E não
constituíssem reis de outra nação, por terem esses pouca afeição à nação de que foram feitos chefes, e
por conseqüência não cuidam dela. Em segundo lugar, ordenou como os reis já constituídos deviam ter
o seu gênero de vida: não multiplicarem os seus carros e cavalos, nem as mulheres, nem acumular
riquezas imensas. Pois é por tais cobiças, que resvalam na tirania e se divorciam da justiça. Também
determinou o modo de se haverem para com Deus: lerem sempre e meditarem a sua lei, e tê-lo sempre
em temor e obediência. Ordenou ainda como havia de proceder em relação aos súditos: não os
desprezar soberbamente, nem oprimi-los nem se desviarem da justiça.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A divisão do reino e a multidão dos reis foram dadas, antes, como pena aos
judeus, por causa das suas muitas dissensões, que suscitaram principalmente contra o reinado justo de
David, do que para a perfeição deles. Donde o dizer a Escritura (Os 13, 11): Eu te darei um rei no seu
furor: e ainda (Os 8, 4): Eles reinaram por si mesmos e não por mim; eles foram príncipes e eu não os
conheci.

RESPOSTA À QUARTA. — Os sacerdotes eram destinados ao culto, conforme à sucessão na família. E


isto para serem tidos em maior reverência, por não poder qualquer do povo vir a ser sacerdote. Por isso,
a honra que lhes era devida redundava em reverência ao culto divino. Por onde, era necessário se lhes
destinassem certos bens especiais de que vivessem, os quais eram tirados dos dízimos, das primícias,
como também das oblações e dos sacrifícios. Os príncipes, porém, eram tirados dentre todo o povo; e
por isso tinham certos bens próprios de que podiam viver. E tanto mais quanto o Senhor proibira que
mesmo o rei superabundasse em riquezas ou em magnificência de aparato. Quer porque, assim, não
lhes era fácil serem arrastados pela soberba e caírem na tirania; ou também porque, não sendo os
príncipes muito ricos e sendo laborioso o principado e cheio de cuidados, este não era muito desejado
pela gente do povo, e assim desapareciam os motivos de sedição.

RESPOSTA À QUINTA. — O direito referido não era devido ao rei por instituição divina; mas antes,
prenunciava a usurpação dos reis, que para si constituíram um direito iníquo, degenerando em tiranos e
depredadores do povo. Isso é claro pelo que a Escritura acrescenta: E vós sereis seus servos, o que
constitui, propriamente, a tirania; pois, os tiranos governam os seus súditos como se estes fossem
escravos. E o dito de Samuel tinha por fim aterrá-los para não pedirem um rei. Mas, continua ainda a
Escritura, o povo não quis dar ouvidos às razões de Samuel. Pode porém acontecer que um bom rei, sem
tirania, tome os filhos do povo, constituindo-se seus tribunos e centuriões, e se apodere de muitos bens
dos seus súditos, a fim de procurar o bem comum.

Art. 2 — Se os preceitos judiciais relativos ao convívio social foram


convenientemente estabelecidos.
O segundo discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais relativos ao convívio social foram
inconvenientemente estabelecidos.

1. — Pois, os homens não podem conviver pacificamente, se um se apoderar do pertencente a outro.


Ora, isto parece estar permitido na lei, quando diz (Dt 23, 24): Se entrares na vinha de teu próximo,
come quantas uvas quiseres. Logo, a lei antiga não cuida convenientemente da paz social.

2. Demais. — Muitos estados e reinos foram destruídos sobretudo por se ter permitido às mulheres o
direito de propriedade, como diz o Filósofo. Ora, isto foi estabelecido pela lei antiga (Nm 27, 8): Quando
algum homem morrer sem filhos, a herança passará à sua filha. Logo, a lei não cuidou
convenientemente do bem do povo.

3. Demais. — A sociedade humana se conserva principalmente por os homens, comprando e vendendo,


comunicarem-se entre si os bens de que precisam, como diz Aristóteles. Ora, a lei antiga tirou o poder
de vender, pois, ordenava que a propriedade vendida revertesse ao vendedor no qüinquagésimo ano do
jubileu, como está claro na Escritura (Lv 25, 28). Logo, neste ponto, a lei preceituou inconvenientemente
ao povo judeu.

4. Demais. — As necessidades humanas exigem, antes de tudo, que os homens estejam prontos a fazer
concessões mútuas. Ora, essa disposição se elimina se os credores não restituem o que recebem. Por
isso, diz a Escritura (Sr 29, 10): Muitos deixaram de emprestar, não por desumanidade, mas porque
temeram ser defraudados sem o merecerem. Ora, a lei permitia isso. Primeiro, porque mandou (Dt 15,
2): Aquele a quem seu amigo ou seu próximo ou seu irmão dever alguma coisa não a poderá repetir,
porque é o ano da remissão do Senhor. E noutro lugar (Ex 22, 15) diz, que, presente o dono, se o animal
emprestado tiver morrido, não estará obrigado a restituí-lo. Segundo, porque se anula a garantia
fundada no penhor; pois, diz a lei (Dt 24, 10): Quando requereres de teu próximo alguma coisa que ele
te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor; e ainda (Dt 24, 12-13): Não
pernoitará em tua casa o penhor, mas, imediatamente lho tornarás a dar. Logo, a lei dispôs
insuficientemente sobre o mútuo.

5. Demais. — Como a defraudação do depósito leva a um perigo máximo, é mister empregar nisso a
máxima cautela. Por isso, diz a Escritura (2 Mc 3, 15): Os sacerdotes invocavam aquele que está do céu
dominando tudo, que fez uma lei sobre os depósitos, rogando-lhe que os guardasse salvos para aqueles
que os tinham depositado. Ora, nos preceitos da lei antiga estabelece-se uma pequena cautela relativa
aos depósitos. Se o depósito for perdido, ficará garantido pelo juramento do depositário. Logo, neste
ponto, a lei não dispôs convenientemente.

6. Demais. — Assim como um mercenário aluga o seu trabalho, assim outros alugam a casa ou bens
semelhantes. Ora, não era necessário que o locatário pagasse imediatamente o preço da coisa alugada.
Logo, também era muito duro o seguinte preceito da lei (Lv 19, 13): Não deterás em teu poder até o dia
seguinte a paga do jornaleiro.

7. Demais. — Como freqüentemente se tem necessidade do juiz, deve ser fácil o acesso ao mesmo.
Logo, a lei estatuiu inconvenientemente, que fossem a um lugar determinado a fim de obter julgamento
nas suas questões.

8. Demais. — É possível não só dois, mas ainda três ou mais concordarem em mentir. Logo,
inconvenientemente estabelece a lei (Dt 19, 15): tudo passará por constante sobre o depoimento de
duas ou três testemunhas.

9. Demais. — A pena deve ser infligida conforme a gravidade da culpa. Por isso diz a lei (Dt 25, 2): O
número dos golpes regular-se-á pela qualidade do pecado. Ora, a certas culpas iguais a lei estatuiu
penas desiguais: Assim, quando diz (Ex 22, 1): o ladrão restituirá cinco bois por um boi e quatro ovelhas
por uma ovelha. Também alguns pecados não muito graves punia com pena grave; assim, quem era
colhido enfeixando lenha no sábado era apedrejado (Nm 15, 32 ss). Também o filho insolente, porque
cometeu um pequeno delito, i. é, porque passava a vida em comezainas e banquetes, mandava-o
lapidar (Dt 21, 18 ss). Logo, as penas da lei foram inconvenientemente estatuídas.

10. Demais. — Diz Agostinho: as leis estabelecem oito gêneros de penas, segundo escreve Túlio e são os
seguintes: a multa, os ferros, os açoites, o talião, a infâmia, o exílio, a morte, a servidão. Dessas, a lei
antiga estatuiu algumas. Assim, a multa, quando o ladrão era condenado a pagar o quíntuplo ou o
quádruplo. Os ferros, quando mandava encerrar num cárcere o delinqüente. Os açoites, quando
determina (Dt 25, 2): Se virem que o delinqüente merece açoites, deitá-lo-ão em terra e fá-lo-ão açoitar
na sua presença. A infâmia era aplicada contra aquele que, não querendo desposar a mulher do seu
irmão defunto, esta lhe tirava o sapato e lhe cuspia na face. (Dt 25, 9) Também aplicava a pena de
morte, quando diz (Lv 20, 9): O que amaldiçoar o seu pai ou a sua mãe morra de morte. E enfim, a de
talião (Ex 21, 24): Olho por olho, dente por dente. Logo, inconvenientemente, a lei deixava de infligir as
outras duas penas — a da escravidão e a do exílio.

11. Demais. — A pena só é devida à culpa. Ora, os brutos não são passíveis de culpa. Logo,
inconvenientemente a lei lhe infligia pena, quando diz (Ex 21, 29): O boi, que matar um homem ou uma
mulher, será apedrejado; e (Lv 20, 16): A mulher que se ajuntar com qualquer bruto será morta
juntamente com ele. Donde se conclui que a lei antiga ordenou inconvenientemente sobre o convívio
social dos judeus.

12. Demais. — O Senhor mandou, que o homicídio fosse punido com a morte do homicida. Ora, a morte
de um bruto tem muito menos importância que a de um homem. Logo, a pena do homicídio não pode
ser suficientemente compensada pela de um bruto. Logo, é inconveniente a seguinte disposição da lei
(Dt 21, 1-4): Quando for achado o cadáver de um homem que foi morto, sem que se saiba quem foi o
matador, sairão os anciões da cidade mais vizinha e tomarão da manada uma novilha, que não tenha
ainda carregado como o jugo nem fendido a terra como o relho do arado; e levá-lo-ão a um vale áspero
e pedregoso, que nunca tivesse sido lavrado nem semeado, e ali cortarão o pescoço à novilha.

Mas, em contrário, a Escritura lembra o seguinte, como benefício (Sl 147, 20): Não fez assim a toda
outra nação e não lhes manifestou o seu juízo.

SOLUÇÃO. — Como diz Agostinho, citando Túlio, um povo é a associação de muitos indivíduos, baseada
no consenso jurídico e na utilidade comum. Por onde, a noção de povo implica uma comunhão de
homens ordenada por justos preceitos legais. Ora, há duas espécies de comunhão entre os homens.
Uma fundada na autoridade do príncipe; outra, na vontade própria dos indivíduos. E como cada um
pode dispor do que lhe pertence, é necessário que, pela vontade do príncipe, a justiça se exerça entre os
seus súditos e penas sejam infligidas aos malfeitores. Por outro lado, aos indivíduos lhes pertence o que
possuem; e portanto, por autoridade própria, podem dispor disso, uns em relação aos outros, por
compra, venda, doação e modos semelhantes.

Ora, sobre uma e outra espécie de comunhão a lei ordenou suficientemente. Assim, estabeleceu juízes
(Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tuas portas, para que julguem o povo com
retidão de justiça. Instituiu também a ordem justa do julgamento (Dt 1, 16-17): Julgai o que for justo, ou
ele seja cidadão ou estrangeiro: nenhuma distinção haverá de pessoas. Evitou ainda a ocasião de juízos
injustos, proibindo aos juízes aceitarem dádivas (Ex 23, 8; Dt 16, 19). Determinou, além disso, o número
duplo ou triplo das testemunhas. E enfim, estabeleceu penas certas pelos diversos delitos, como depois
se dirá (ad 10).

Quando à propriedade, é ótimo, como diz o Filósofo, que ela seja exercida separadamente; e o uso dela,
em parte, comum, e, em parte, dividido, por vontade dos proprietários.

Ora, estes três modos de possuir foram estabelecidos pela lei antiga. — Pois, primeiro, a propriedade foi
dividida entre particulares (Nm 33, 53-54): Eu vos dei a terra para a possuirdes, a qual repartireis entre
vós por sorte. Ora, como diz o Filósofo, muitas cidades foram destruídas pelos modos irregulares de
propriedade. Por isso a lei estabeleceu tríplice remédio para regular a propriedade. — O primeiro, que
fosse dividida igualmente pelo número de homens; por isso se diz: Aos que forem em maior número
dareis maior porção, e aos que forem menos, porção mais pequena. — O segundo, que a propriedade
não pudesse ser alienada perpetuamente, mas que, depois de certo tempo, revertesse aos seus
proprietários para que não se confundissem os lotes possuídos. — O terceiro, para evitar a confusão, de
os parentes próximos sucederem aos mortos. No primeiro grau, o filho; no segundo, a filha; no terceiro,
os irmãos; no quarto, os tios paternos; no quinto, quaisquer outros parentes próximos. E para conservar
ulteriormente a distinção dos lotes, a lei estatuiu que as mulheres herdeiras se casassem com homens
das suas tribos.
Quanto ao segundo modo de propriedade a lei instituiu que sob certos aspectos o uso das coisas fosse
comum. — Primeiro, quanto ao cuidado delas, preceitua (Dt 22, 1-4): Vendo extraviados o boi ou a
ovelha de teu irmão, não passarás de largo, mas conduzi-los-ás a teu irmão; e assim em casos
semelhantes. — Segundo, quanto ao fruto. Pois, era permitido em comum a todos entrar lìcitamente na
vinha do amigo e comer dela, contanto que não levasse frutos para fora. E mandava, especialmente,
que se deixassem para os pobres as gamelas esquecidas, os frutos e os cachos de uva remanescentes (Lv
19, 9; Dt 24, 19). E também eram repartidos, os frutos nascidos no sétimo ano.

Quanto ao terceiro modo, a lei estatuía a repartição feita pelos proprietários. — Uma, puramente
gratuita (Dt 14, 28-29): Todos os três anos separarás outro dízimo; e virão os levitas e o peregrino e o
órfão e a viúva e comerão e se fartarão. — Outra, em recompensa da utilidade, como, por compra e
venda, locação e condução, mútuo e, ainda, por depósito. E a respeito de tudo isso encontram-se
ordenações certas na lei.

Por onde claro fica, que a lei antiga ordenou suficientemente sobre as relações sociais do povo judeu.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Como diz o Apóstolo (Rm 13, 8), aquele que ama ao
próximo tem cumprido com a lei; porque todos os preceitos da lei, sobretudo os ordenados ao próximo,
o foram para o fim de os homens se amarem uns aos outros. Ora, do amor procede ao repartirem entre
si os seus bens, conforme a Escritura (1 Jo 3, 17): O que vir a seu irmão ter necessidade e lhe fechar as
suas entranhas, como está nele à caridade de Deus? Por isso a lei visava acostumar os homens a
repartirem facilmente entre si os seus bens; e também o Apóstolo manda aos ricos dêem facilmente e
repartam (1 Tm 6, 18). Ora, não reparte facilmente quem não suporta que o próximo tire, sem causar
grande detrimento, um pouco dos seus bens. Por isso, a lei ordenou que fosse lícito ao que entrasse na
vinha do próximo comer quantas uvas quisesse, sem levar consigo para fora, para que isso não fosse
ocasião de causar graves danos, que iria perturbar a paz. Pois, entre disciplinados, ela não se perturba
por tirar alguém um pouco dos bens de outrem, o que, ao contrário, confirma a amizade e acostuma os
homens a repartir facilmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A lei determinou que só na falta de filhos varões as mulheres sucedessem
nos bens paternos. Pois então era necessário que a sucessão fosse concedida às mulheres, para
consolação do pai, a quem seria penoso ver a sua herança passar completamente a estranhos. Mas a lei
acrescenta neste ponto a cautela necessária ordenando que as mulheres, sucedendo na herança
paterna, casassem com homens da sua tribo, para se não confundirem os lotes das tribos.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como diz o Filósofo, a regulamentação da propriedade contribui muito para a
conservação da cidade ou da nação. Por isso, como ele ainda diz, certas nações gentias estatuíram, que
ninguém pudesse vender as suas propriedades, senão por manifesta necessidade. Pois, se as vendessem
a cada passo, poderia acontecer viesse à propriedade a cair totalmente em mãos de poucos; e então,
haveria necessariamente a cidade ou a região de ficar vazia de habitantes. Por isso a lei antiga, a fim de
evitar esse perigo, ordenou de modo a satisfazer às necessidades dos homens, permitindo a venda das
propriedades durante um certo tempo. Mas simultaneamente evitou o perigo, ordenando que depois
desse tempo, a propriedade vendida revertesse ao vendedor. E assim o fez para os lotes se não
confundirem, e permanecesse sempre a mesma distinção determinada das tribos. — Mas como os
edifícios urbanos não constituíam lotes distintos, a lei permitia que como os bens móveis, pudessem ser
vendidos definitivamente. Pois, não era fixo o número das casas da cidade, como era certa a medida dos
lotes, que não podia ser aumentada. Ao passo que o podia o número das casas urbanas. As casas, porém
que não eram urbanas e que não tinham muros em torno do terreno, não podiam ser vendidas em
caráter perpétuo; porque tais casas não eram construídas senão para a cultura e a guarda da
propriedade. Por isso e justamente, a lei estabeleceu a mesma disposição para elas que para os lotes.

RESPOSTA À QUARTA. — Como já se disse, a intenção da lei, nos seus preceitos, era levar a se
acostumarem os homens a satisfazer mutuamente às necessidades uns dos outros. Por isso sobretudo
fomenta a amizade. E essa facilidade de se proverem uns aos outros ela quis estabelecer, não só no
atinente às prestações gratuitas e absolutas, mas ainda ao concedido por mútuo. Porque este contrato é
o mais freqüente e o mais necessário ao maior número.

Por isso, institui muitas disposições para facilitar essa transação. Primeiramente, determinou que
fossem os judeus fáceis em fazer empréstimo, nem de tal se retraíssem por aproximar-se o ano da
remissão. — Segundo, não gravassem, aquele a quem concedessem mútuo, com usuras, ou recebendo
como penhor coisas absolutamente necessárias à vida, e se as recebessem, que as restituíssem
imediatamente. Pois assim se lê na Escritura (Dt 23, 19): Não emprestarás com usura a teu irmão; e (Dt
24, 6): Não receberás em lugar do penhor nem a mó de cima nem a de baixo, porque te deu por penhor
a sua própria vida; e ainda (Ex 22, 26):Se receberes do teu próximo em penhor a sua capa, restitua antes
do sol posto — Terceiro, não exigissem o pagamento importunamente. Assim, estatui (Ex 22, 25): Se
emprestares algum dinheiro ao necessitado do meu povo que habita contigo, não o apertarás como um
exator. E por isso também ordenava (Dt 24, 10-11):Quando requereres de teu próximo alguma coisa que
ele te deve, não entrarás em sua casa para dela levares algum penhor; mas estarás de fora e ele te trará
o que tiver. Isso, ou porque a casa, sendo o nosso mais seguro abrigo, é molesta ao dono que lha
invadam ou para não permitir ao credor tomasse o penhor que quisesse, mas antes, de modo que o
devedor desse como penhor aquilo de que menos precisasse. — Em quarto lugar, instituiu que, no
sétimo ano, os débitos fossem completamente perdoados. Pois era provável que os que podiam
restituir, comodamente, o fizessem antes do sétimo ano e não defraudasse, voluntariamente, o
prestamista. Se porém fossem os devedores absolutamente insolventes, os credores lhes deviam de
perdoar o débito em virtude do mesmo amor por que deviam dar de novo, por causa de indigência.

Quanto aos animais emprestados, a lei estatuiu o seguinte. Se morressem ou se estropiassem, na


ausência daquela a quem foram emprestados, e por negligência do mesmo, era ele obrigado à
restituição. Se porém morressem ou se estropiassem, apesar da sua presença e do cuidado diligente,
não estava obrigado a restitui. E sobretudo, se tivessem sido alugados. Porque, então, como podiam
morrer e estropiar-se em poder do mutuante, este, conseguida a conservação do animal, como já tinha
tirado lucro do mútuo, não teria mutuado de graça. Isto principalmente devia observar-se quando os
animais eram tomados por aluguel. Porque então, o uso deles, sendo pago por um certo preço, nada
mais se devia pagar, com a restituição dos mesmos, salvo por algum dano resultante da negligência do
prestamista. Se porem os animais não tivessem sido tomados de aluguel, poderia haver uma certa
eqüidade, de modo a pelo menos se pagar tanto quanto pudesse dar de aluguel o uso do animal morto
ou estropiada.

RESPOSTA À QUINTA. — O mútuo e o depósito diferem em ser o primeiro feito em benefício do


mutuado, enquanto o segundo, em benefício do depositante. Por isso, em certos casos, havia maior
obrigação de restituir o mútuo do que o depósito. Pois este podia perder-se de dois modos. Por uma
causa inevitável ou natural; p. ex., se o animal depositado morreu ou estropiou-se. Ou por uma causa
extrínseca, p. ex., se foi tomado por inimigos ou devorado por uma fera. E neste caso, havia obrigação
de restituir ao dono o que restava do animal morto. Nos demais casos supra-referidos, não havia
nenhuma obrigação de restituir; mas somente a de prestar juramento, para evitar a suspeita de fraude.
De outro modo, o depósito podia ser perdido por uma causa evitável, p. ex., o furto. E então, por causa
da sua negligência, o depositário tinha obrigação de restituir. Mas, como já dissemos (a. 4), quem
recebia um animal em mútuo, estava obrigado a restituí-lo, mesmo que, na sua ausência, o animal
tivesse morrido ou ficado estropiado. Assim, respondia por uma negligência menor que a por que
respondia o depositário, que era só a do furto.

RESPOSTA À SEXTA. — Os mercenários, que alugavam o seu trabalho, eram pobres e tiravam dele o
sustento quotidiano. Por isso a lei sabiamente ordenou que logo se lhes pagassem o salário, para lhes
não faltar o sustento. Mas os que alugavam outras coisas eram em geral ricos, e assim não precisavam
do preço da locação para o sustento quotidiano. Por onde, não é em ambos os casos a mesma a
situação.

RESPOSTA À SÉTIMA. — Os juízes são constituídos para resolverem os casos duvidosos de justiça entre
os homens. Ora, pode haver dupla dúvida. — Uma, entre pessoas simples. E para resolvê-la a lei
ordenava (Dt 16, 18): Estabelecerás juízes e magistrados em todas as tribos, para que julguem o povo
em retidão de justiça. — Mas também, pode haver dúvidas mesmo entre peritos. E, para o evitar, a lei
determinou que todos buscassem o lugar principal escolhido por Deus, em que haveria de estar o sumo
sacerdote, para resolver as dúvidas relativas às cerimônias do culto divino; e estabeleceu um juiz sumo
do povo, que resolvesse sobre o atinente aos julgamentos entre as partes. Assim também hoje, por
apelação ou consulta, as causas dos juízes inferiores são deferidas aos superiores. Por isso diz a lei (Dt
17, 8-9): Se acontecer que penda diante de ti algum negócio difícil e escabroso, e vires que dentro das
tuas portas são vários os pareceres dos juízes, levanta-te e sobe ao lugar que o Senhor teu Deus tiver
escolhido; e encaminhar-te-ás aos sacerdotes da linhagem da Levi e ao juiz que nesse tempo for. Mas,
como esses julgamentos de causas duvidosas não sucediam freqüentemente, o povo não ficava com isso
onerado.

RESPOSTA À OITAVA. — Os negócios humanos não são susceptíveis de prova demonstrativa e infalível;
mas basta uma probabilidade conjectural, como a de que usam os oradores. Por onde, embora seja
possível duas ou três testemunhas combinarem para mentir, não é contudo fácil nem provável que o
façam. Por isso recebesse o testemunho como verdadeiro, e sobretudo se neles não vacilarem e não
forem, por outras causas, suspeitas. E assim, porque as testemunhas não se desviavam facilmente da
verdade, a lei instituiu que fossem diligentíssimamente examinadas, e punidas gravemente as falsas.
Havia ainda alguma razão de determinar-lhes o número, que é significar a infalível verdade das Pessoas
divinas. Estas são às vezes consideradas como duas, porque o Espírito Santo é o nexo entre elas; ora,
como três, segundo Agostinho, comentando aquilo da Escritura (Jo 8, 17): E na vossa mesma lei está
escrito que o testemunho de duas pessoas é verdadeiro.

RESPOSTA À NONA. — Não só pela gravidade da culpa, mas também por outras inflige-se uma pena
grave. Primeiro, pela gravidade do pecado; pois, todas as condições sendo iguais, ao maior pecado é
devido pena mais grave. Segundo, por causa do costume no pecar; porque de pecados habituais os
homens não se afastam facilmente senão por meio de penas graves. Terceiro, por causa da intensa
concupiscência ou deleitação no pecado; coisas de que se os homens não apartam facilmente, senão
por causa de penas graves. Quarto, pela facilidade em cometer o pecado e perdurar nele; pois tais
pecados, quando manifestados, devem ser sobretudo punidos para aterrorizar os outros pecadores.

Quanto à gravidade do pecado, devemos atender a um quádruplo grau, ainda relativamente a um


mesmo fato. — O primeiro era quando alguém cometia o pecado involuntariamente. Então, se fosse
absolutamente involuntário, havia escusa completa da pena. Por isso, diz a lei, que se uma donzela for
violentada no campo, não é ré de morte, porque gritou e não houve alguém que a livrasse. Se porém o
pecado fosse de algum modo voluntário, mas cometido por fraqueza, p. ex., quando se peca por paixão,
esse pecado ficaria diminuído. E então a pena, conforme a um verdadeiro julgamento, devia diminuir.
Salvo, se merecesse ser agravada, por causa do bem comum, a fim de afastar os outros de cometerem
tal pecado, como já se disse. — O segundo grau era quando alguém pecava por ignorância. E então de
certo modo era reputado réu, por causa da negligência em informar-se; contudo, não era punido pelos
juízes, mas expiava o pecado com sacrifícios. Por isso dia a Escritura (Lv 4, 2): Se alguém pecar por
ignorância oferecerá uma cabra sem defeito. Mas, isto deve entender-se da ignorância de fato e não, da
ignorância do preceito divino, que todos eram obrigados a conhecer. — O terceiro grau era quando
alguém pecava por soberba, i. é, por eleição ou por malícia certas. E então era punido conforme a
gravidade do delito. — O quarto grau, quando pecava por protérvia e pertinácia. E nesse caso devia
absolutamente ser morto como rebelde e infrator da ordem legal.

Ora, conforme estas disposições devemos concluir que, na pena do furto, a lei considerava o que podia
freqüentemente acontecer. Por onde, no furto de coisas fáceis de se guardarem dos ladrões, estes não
deviam restituir senão o duplo. Ora, ovelhas não se podem facilmente guardar de serem furtadas, pois,
pastando nos campos, acontecia freqüentemente que o eram. Por isso a lei impôs pena maior,
estabelecendo se restituíssem quatro por uma. Mas já os bois se guardam mais dificilmente, por
viverem largados nos campos e não pastarem em rebanhos, como as ovelhas. Por isso, impôs em tal
caso pena ainda maior, mandando restituir cinco bois por um. E isto digo, não fosse o caso em que o
animal furtado fosse encontrado vivo em poder do ladrão; pois então, como nos demais furtos, restituía
só o duplo; por poder-se presumir que, conservando-o vivo, pensava em restituí-lo. Ou pode-se dizer,
segundo a Glosa, que o boi e a vaca têm cinco utilidades: serem imolados, arar, dar a carne, dar leite e
ainda fornecer couro para muitos ursos. Por isso, por um boi furtado, o ladrão devia restituir cinco.
Também a ovelha tem quatro utilidades: ser imolado, dar carne, leite, e fornecer a lã.

Quanto ao filho contumaz, era morto, não por ter comido e bebido; mas por causa da contumácia e da
rebelião, sempre punidas de morte, como se disse. — O que colhia lenha ao sábado era lapidado, como
violador da lei, que mandava observar o sábado em comemoração da criação do mundo, como já
dissemos (q. 100, a. 5); por isso era morto como infiel.

RESPOSTA À DÉCIMA. — A lei antiga infligia a pena de morte nos crimes mais graves, i. é, nos pecados
contra Deus, no homicídio, no furto de homens, na irreverência para com os pais, no adultério e no
incesto. Mas, no furto de outras coisas, estabeleceu a pena da multa. Nos ferimentos e mutilações, a
pena de talião, e semelhantemente, no pecado de falso testemunho. Nas outras culpas menores, a de
flagelação ou de infâmia.

A pena de escravidão infligiu-a em dois casos. Primeiro, quando, no sétimo ano da remissão, o escravo
não queria usar do benefício da lei e sair livre; por isso era-lhe infligida a pena de ficar perpetuamente
escravo. Segundo, ao ladrão, quando não tinha como o que restituir.

A pena do exílio a lei não a cominou, absolutamente falando, porque, enquanto os demais povos jaziam
na corrupção da idolatria, só o povo judeu adorava a Deus. Por isso, se alguém fosse excluído
completamente desse povo, correria perigo de cair na idolatria. Por onde, a Escritura refere que Davi
disse a Saul (1 Sm 26, 19): Malditos são os que me arrojaram hoje, para que eu não habite na herança
do Senhor, dizendo: Vai, serve a deuses estrangeiros. Havia porém um exílio particular, e era o seguinte.
Quem ferisse, sem o cuidar, o próximo, não podendo provar-se que nutria qualquer ódio contra ele,
devia refugiar-se numa das cidades destinadas para tal e aí permanecer até a morte do sumo sacerdote.
E então era-lhe lícito voltar para a casa; porque as iras particulares costumam aplacar-se com
calamidade geral do povo; e assim, já os parentes próximos do morto não estavam mais propensos a
matar o homicida.
RESPOSTA À UNDÉCIMA. — Mandavam-se matar os animais, não por qualquer culpa deles, mas como
pena dos donos, que não os impediram de cometerem as referidas transgressões da lei. Por isso, o dono
era sobretudo punido se o boi já era muito avezado a marrar; pois nesse caso podia obviar o perigo mais
facilmente, que se o boi se pusesse subitamente a dar marradas. Ou os animais eram mortos para fazer
detestar o pecado, e pelo seu aspecto, não incutirem horror nos homens.

RESPOSTA À DUO DÉCIMA. — A razão literal da disposição citada estava, como diz Rabbi Moisés, em ser
freqüentemente o homicida de alguma cidade próxima. E matava-se a novilha para descobrir o
homicídio oculto; o que se fazia por três meios. Um era que os anciãos convocados juravam nada ter
omitido para guardar os caminhos. Outros, que o dono da novilha era danificado com a morte da
mesma; de modo que se, antes, o homicídio fosse descoberto, o animal não seria morto. O terceiro, que
o lugar em que a novilha fosse morta permanecia inculto. Por isso, a fim de evitar um e outro dano, os
homens da cidade facilmente indicariam o homicida, se o soubessem; e raramente aconteceria que não
se viesse a saber quaisquer palavras ou indícios relativos a ele. — Ou isso se fazia para incutir o terror do
homicídio e fazer detestá-lo. Assim, a morte da novilha, animal útil e robusto, principalmente antes de
trabalhar sob o jugo, significava que quem quer que cometesse um homicídio, embora útil e forte, devia
ser morto e com morte cruel, significada pela degolação. E que, como vil e objeto, devia ser excluído do
convívio humano. Isso era significado pelo abandono da novilha morta num lugar áspero e inculto, para
apodrecer.

Misticamente porém, a novilha do rebanho significa a carne de Cristo, que não sofreu o jugo, não
cometeu pecado nem fendeu a terra com o arado, i. é, não se manchou com mácula nenhuma de
sedição. O ser morta num vale áspero, significa a desprezada morte de Cristo, que purgou todos os
pecados; e mostra que o diabo é o autor do homicídio.

Art. 3 — Se os preceitos judiciais relativos aos estrangeiros foram


convenientemente estabelecidos.
O terceiro discute-se assim. — Parece que os preceitos judiciais relativos aos estranhos não foram
convenientemente estabelecidos.

1. — Pois, diz Pedro (At 10, 34-35): Tenho na verdade alcançado que Deus não faz acepção de pessoas;
mas que em toda nação aquele que teme a Deus e obra o que é justo, esse lhe é aceito. Ora, os que são
aceitos de Deus, não devem ser excluídos da sua igreja. Logo, a lei mandava inconvenientemente; que o
Amonita e o Moabita não entrarão jamais na congregação do Senhor, ainda depois da décima geração. E
ao contrário, no mesmo capítulo, ordena, a respeito de certas nações (Dt 23, 7): Não abominarás o
Idumeu, porque é teu irmão, nem o Egiptano, porque tu foste estrangeiro na sua terra.

2. Demais. — Pelo que não depende de nós não podemos merecer nenhuma pena. Ora ser eunuco ou
nascer de mulher pública não depende de ninguém. Logo, a lei ordena inconvenientemente (Dt 23, 1-
2): O eunuco e o que nasceu de mulher pública não entrarão na congregação do Senhor.

3. Demais. — A lei antiga ordenou misericordiosamente, que o estrangeiro não fosse afligido, quando
diz (Ex 22, 21): Não molestarás nem afligirás o estrangeiro, porque também vós mesmos fostes
estrangeiros na terra do Egito; e ainda (Ex 23, 9): Não será molesto ao estrangeiro, porque vós sabeis
que almas são as dos estrangeiros, pois que também vós o fostes na terra do Egito. Ora, aflige a outrem
quem o aprime com usuras. Logo, a lei permitiu inconvenientemente emprestar usurariamente dinheiro
aos outros.
4. Demais. — Muito mais nossos próximos são os homens que as árvores. Ora, devemos, aos que nos
são mais próximos, ter mais afeto e mostrar os efeitos do amor, conforme a Escritura (Sr 13, 19): Todo
animal ama ao seu semelhante; assim também todo homem ama ao seu próximo. Logo, o Senhor
mandou, inconvenientemente, que matassem todos os prisioneiros das cidades inimigas e que
entretanto não cortassem as árvores frutíferas.

5. Demais. — O bem comum deve, por natureza, ser preferido por todos ao bem particular. Ora, na
guerra feita contra os inimigos visa-se o bem comum. Logo, a lei mandava, inconvenientemente que, na
iminência de um combate, voltasse para a casa o que, p. ex., acabou de edificar um prédio novo, ou o
que plantou uma vinha, ou o que desposou uma mulher.

6. Demais. — Ninguém deve tirar vantagem de uma culpa. Ora, é culpado o homem medroso e de
coração pávido; pois falta-lhe a virtude da fortaleza. Logo, eram inconvenientemente escusados dos
trabalhos do combate os medrosos e os pávidos de coração.

Mas, em contrário, diz a Divina Sabedoria (Pr 8, 8): Justos são todos os meus discursos: neles não há
coisa má nem depravada.

SOLUÇÃO. — Podem os homens ter com os estrangeiros dupla relação: uma, pacífica; outra hostil. E a
lei estabeleceu preceitos convenientes para regularem ambos esses casos.

Assim, aos judeus se oferecia tríplice ocasião de conviver pacificamente com os estrangeiros. —
Primeiro, quando, peregrinos, os estrangeiros passavam pelas terras deles. — Segundo, quando vinham
para elas afim de aí habitarem ádvenas. E em ambos os casos a lei estabeleceu preceitos de
misericórdia. Assim diz (Ex 22, 21): Não molestarás o estrangeiro; e (Ex 22, 9): Não serás molesto ao
estrangeiro. — Terceiro, quando alguns estrangeiros queriam ser admitidos totalmente ao convívio e
rito deles, no que se atendia a uma certa ordem. Assim, não eram logo recebidos como cidadãos; do
mesmo modo certos povos gentios tinham estabelecido, que não fossem considerados cidadãos senão
os que tivessem tido avós ou bisavós com essa qualidade, conforme o refere o Filósofo. E isto porque se
os estrangeiros, logo ao chegarem, fossem admitidos ao gozo dos direitos dos nacionais, poderiam dar
lugar a muitos perigos. Assim, não tendo ainda um amor comprovado pelo bem público, poderiam
atentar contra o povo. Por isso a lei estabeleceu, que podiam ser recebidos a fazer parte do povo, na
terceira geração, os que provinham de certas nações, de alguma afinidade com os judeus. Tais eram os
egípcios, entre os quais nasceram e foram criados, e os idumeus, filhos de Esaú, irmão de Jacó. Outras
porém, como os amonitas e os moabitas, que se portaram hostilmente para com eles, nunca os
admitiam no seu seio. Enfim os amalecitas, que foram os seus piores inimigos, e com os quais não
tinham nenhuma cognação, eles os consideravam como inimigos perpétuos. Por isso, diz a Escritura (Ex
17, 16): A guerra do Senhor será contra Amalec de geração em geração.

Também, quanto às relações hostis como os estrangeiros, a lei estabeleceu preceitos adequados. —
Assim, primeiro, instituiu que se fizesse a guerra justamente, mandando que, quando fossem atacar
uma cidade, primeiro oferecessem a paz. — Segundo, que continuassem fortemente a guerra
empreendida, confiando em Deus; e para ser isso melhor observado, instituiu que, na iminência do
combate, o sacerdote os animasse, prometendo o auxílio de Deus. — Terceiro, ordenou que se
removessem os impedimentos ao combate, mandando voltassem para a casa certos que podiam causar
tais impedimentos. — Quarto, instituiu que usassem moderadamente da vitória, poupando mulheres e
crianças, e também não cortando as árvores frutíferas da região.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei não excluía do culto de Deus os homens de
nenhuma nação, e nem do que dizia respeito à salvação da alma. Assim, diz (Ex 12, 48): Se algum
peregrino quiser passar para a vossa terra e celebrar a Páscoa do Senhor, circuncidem-se primeiro todos
os seus varões, e então o celebrará como é devido e será como natural da mesma terra. Mas, na ordem
das coisas temporais, no concernente à comunidade do povo, nela não se admitia nenhum estrangeiro
imediatamente, pela razão supra dita. Mas alguns, como os egípcios e os idumeus, só depois da terceira
geração; outros eram excluídos perpetuamente, em detestação da culpa passada, como os moabitas, os
amonitas e os amalecitas. Pois, assim como um homem é punido pelo pecado que cometeu, afim de os
outros, com esse exemplo, temerem e se absterem de pecar; assim também, por algum pecado, uma
nação ou cidade pode ser punida, para as outras se absterem de pecado semelhante. Podia porém
alguém, excepcionalmente, ser admitido no grêmio do povo, por algum ato de virtude. Assim, como se
lê na Escritura (Jd 14, 6), Aquior, o general dos filhos de Amon, foi incorporado no povo de Israel, e toda
a descendência da sua linhagem. E semelhantemente, Rute moabita, que era mulher virtuosa. Embora
se possa dizer, que a referida proibição se aplicava aos homens e não, às mulheres, que não podem ser,
absolutamente falando, cidadãs.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz o Filósofo, um cidadão pode ser considerado à dupla luz: absoluta
e relativamente. Do primeiro modo, é cidadão quem pode praticar atos próprios de cidadão; p. ex.,
tomar parte no conselho ou nos juízos do povo. Do segundo, pode ser considerado cidadão todo
habitante da cidade, mesmo os escravos, as crianças e os velhos, sem a capacidade que lhes dê poder
sobre o pertencente à comunidade. Por isso, também os espúrios eram excluídos, por causa da sua
origem vil, da igreja e do grêmio do povo, até a décima geração. Semelhantemente, os eunucos, por não
poderem ter a honra de serem pais; e, sobretudo, no povo judeu, em que o culto de Deus era
conservado segundo a geração carnal. Pois, mesmo entre os gentios, os que geravam muitos filhos eram
distinguidos com alguma honra insigne, como diz o Filósofo. Contudo, no atinente à graça de Deus, os
eunucos, bem como os estrangeiros, não eram separados dos demais, como se disse. Assim, diz a
Escritura (Is 56, 3): E não diga o filho do estrangeiro, o qual se une ao Senhor, proferindo: O senhor com
uma divisão me separará do seu povo. E não diga o eunuco: Eis-me aqui um lenho seco.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Receber usuras dos outros, não estava na intenção da lei, que apenas o
permitia, por causa da inclinação dos judeus para a avareza. E para se comportar mais pacificamente
para com os estrangeiros dos quais auferiam lucros.

RESPOSTA À QUARTA. — A lei fazia uma certa diferença relativa às cidades inimigas. Umas eram
remotas e não do número das que lhes eram prometidas. E nessas, uma vez vencidas, matavam os
varões que lutaram contra o povo de Deus; poupando porém mulheres e crianças. Mas, das cidades
vizinhas, que lhes estavam prometidas, mandavam-se matar todos, por causa das iniqüidades dos
antepassados, para punir as quais o Senhor mandava o povo de Israel, como, por assim dizer, executor
da divina justiça. Assim, diz a lei (Dt 9, 5):Porque elas obraram impiamente, por isso foram destruídas à
tua entrada. Quanto às árvores frutíferas mandava-se fossem poupadas, para utilidade do próprio povo,
a cujo bem estar devia servia a cidade com o seu território.

RESPOSTA À QUINTA. — O construtor de uma casa nova, ou o plantador da vinha, ou o que desposou
uma mulher eram excluídos do combate, por duas razões. Primeiro, por os homens costumarem amar
mais o que acabam ou estão a ponto de possuir, e por isso temendo muito perdê-lo. Por onde, era
provável que, por causa de tal amor, também temessem muito a morte, e assim fossem menos fortes na
luta.
Segundo, porque, como diz o Filósofo, é considerado um infortúnio perdermos um bem que estávamos
a ponto de possuir. Ora, os parentes, que ficavam, haviam de se contristar demasiado com a morte dos
que foram para a guerra, sem poderem tomar conta dos bens que estavam a ponto de possuir. E
também o povo, considerando nisso, havia de ficar horrorizado. Por isso, tais homens ficavam livres do
perigo da morte, afastados da luta.

RESPOSTA À SEXTA. — os medrosos eram mandados para a casa não em benefício próprio, mas para ao
povo não advirem danos, da presença deles. Pois o temor e a fuga dos mesmos provocariam também os
outros a temer e a fugir.

Art. 4 — Se a lei antiga estabeleceu convenientemente preceitos


relativos à sociedade doméstica.
(IV. Sent., dist. XXXIII, q. 1, a. 3, qª 3, ad 3 ; q. 2, a 2, qª 1, 2, 4. III Cont. Gent., cap. CXXIII, CXXV).

O quarto discute-se assim. — Parece que a lei antiga estabeleceu inconvenientemente preceitos
relativos à sociedade doméstica.

1. — Pois, tudo quanto o escravo é pertence ao dono, como diz o Filósofo. Ora, o que pertence a alguém
deve pertencer-lhe perpetuamente. Logo, a lei ordenava inconvenientemente, que, no sétimo ano, os
escravos ficassem livres.

2. Demais. — Assim como um asno ou um boi é propriedade do dono, assim também o escravo. Ora, a
lei ordenava, que os animais extraviados fossem restituídos ao dono. Logo, ordenava
inconvenientemente ao dizer (Dt 23, 15): Não entregarás a seu senhor o escravo que se tiver acolhido a
ti.

3. Demais. — A lei divina deve ser mais misericordiosa que a humana. Ora, as leis humanas punem
gravemente os que castigam demasiado asperamente os escravos ou as escravas. Ora, o mais áspero
dos castigos é o que produz a morte. Logo, a lei estatuía inconvenientemente ao dizer (Ex 21, 20-21): O
que ferir o seu escravo ou a sua escrava com uma vara, se sobrevier um ou dois dias, não ficará ele
sujeito à pena, porque é dinheiro seu.

4. Demais. — O domínio do senhor sobre os escravo é diferente do domínio do pai sobre o filho como
diz Aristóteles. Ora, é por causa do domínio servil, que o dono podia vender o escravo ou a escrava.
Logo, a lei permitia inconvenientemente que o pai pudesse vender, para criada ou escrava, a sua filha.

5. Demais. — O pai tem poder sobre o filho. Ora, punir em excesso pertence a quem tem poder sobre o
pecador. Logo, a lei mandava inconvenientemente, que o pai levasse o seu filho aos anciãos da cidade,
para ser punido.

6. Demais. — O Senhor proibiu que se contraíssem casamentos com estrangeiros, e se dissolvessem os


assim contraídos. Logo, a lei permitia inconvenientemente que se pudesse casar com as cativas
estrangeiras.

7. Demais. — O Senhor ordenou que, ao se casarem, evitassem certos graus de consangüinidade e


afinidade. Logo, a lei mandava inconvenientemente que o irmão do que morresse sem filhos lhe
desposasse a mulher.
8. Demais. — Entre marido e mulher, havendo a máxima familiaridade, deve também haver a fidelidade
mais firme. Ora, tal não poderá ser se o matrimonio for dissolúvel. Logo, o Senhor permitiu
inconvenientemente, que o marido pudesse demitir a mulher, depois de escrito o libelo de repúdio; e
que, ulteriormente, não pudesse retomá-la.

9. Demais. — Assim como a mulher pode romper a fidelidade para com o marido, assim também o pode
o dono em relação ao escravo e o filho, ao pai. Ora, para investigar a injúria do escravo contra o senhor
ou do filho contra o pai, a lei não instituiu nenhum sacrifício. Logo, parece supérfluo ter instituído o
sacrifício da zelotipia, para investigar o adultério da mulher. Assim, pois, a lei estabeleceu
inconvenientemente os preceitos judiciais relativos à sociedade doméstica.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Sl 18, 10): Os juízos do Senhor são verdadeiros, cheios de justiça em si
mesmos.

SOLUÇÃO. — A sociedade doméstica se funda, como diz o Filósofo, na conveniência quotidiana,


ordenada às necessidades da vida. Ora, a vida humana se conserva de dois modos. — Individualmente,
enquanto cada homem constitui um indivíduo. E para conservar essa vida, ajuda-se o homem dos bens
exteriores, donde tira a alimentação, a roupa e o mais, necessário para viver. E para tomar conta disso
tudo precisa de escravos. — De outro modo, especificamente, pela geração, para o que precisa de
mulher, que lhe gere filhos. Por isso, na comunhão doméstica, há três relações: a do dono para como o
escravo; do marido para com a mulher; do pai para com os filhos. — Ora, a esses três casos, a lei antiga
estabeleceu preceitos adequados.

Assim, mandava que os escravos fossem tratados benevolamente. Para não sofrerem trabalhos
imoderados, o Senhor ordenou que (Dt 5, 14), no dia do sábado, descansasse o teu escravo e a tua
escrava bem como tu. E, além disso, no infligir às penas, impôs que os mutiladores dos escravos os
deixassem ir livres. E o mesmo estabeleceu relativamente à escrava com quem alguém tivesse casado.
Também e especialmente determinou, que os escravos que faziam parte do povo, saíssem livres, no
sétimo ano, com tudo o que trouxeram, mesmo com a roupa. Mandava ainda a lei que se lhes desse
viático.

Quanto ao casamento, a lei estatuía que os homens se casassem com mulheres da sua tribo; isso para se
não confundirem os lotes das tribos. E que um irmão se casasse com a mulher do seu irmão defunto e
sem filhos. Isto para que quem não pode ter sucessores do seu sangue, tivesse-os ao menos por adoção,
e assim não se lhe delisse totalmente a memória. Proibia também o casamento entre certas pessoas.
Assim com mulheres estrangeiras, por causa do perigo da sedução; e com próximas parentas, pela
reverência natural a elas devida. Estipulou também como os maridos deviam tratar a mulher com quem
casaram. Assim, nem de leve deviam infamá-la; por isso mandava punir o que atribuía um falso crime à
sua mulher. E também, por ódio dele contra a mulher, que o filho não sofresse nenhum detrimento. E
ainda, que, por ódio, o marido não castigasse a mulher, mas antes, escrevendo um libelo, a repudiasse.
E, enfim, para que, desde o princípio, os cônjuges se ligassem com grande amor, mandava que a quem
tivesse casado de pouco não se lhe impusesse nenhum encargo público, a fim de poder livremente gozar
da convivência com sua mulher.

Quanto aos filhos, instituiu que os pais lhes dessem educação, instruindo-os na fé. Por isso diz (Ex 12, 26
ss):Quando os vossos filhos vos disserem: Que rito é este? Responder-lhes-eis: É a vítima da passagem
do Senhor. E que lhes ensinassem os bons costumes. Por isso, os pais deviam dizer-lhes (Dt 21,
20): Despreza ouvir as nossas admoestações, passa a vida em comezainas e dissoluções e banquetes.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor não quis que os filhos de Israel, por Ele libertos
da escravidão, e transferidos para o serviço divino, ficassem perpetuamente escravos. Por isso diz a
Escritura (Lv 25, 39): Se, constrangido da pobreza, se vender a ti teu irmão, não o oprimirás com a
servidão de escravo; mas o tratarás como jornaleiro e colono; porque eles são meus servos e eu os tirei
da terra do Egito, não se vendam em qualidade de escravos. Por onde, como eram escravos, não
absoluta, mas relativamente falando, terminado o prazo, eram mandados livres.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A ordenação referida entende-se do escravo procurado pelo dono para
matá-lo, ou para algum ministério pecaminoso.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei distinguia se os ferimentos feitos nos escravos eram certos ou incertos.
Se certos, impunha uma pena. Assim, no caso de mutilação, impunha a pena da perda do escravo, que
devia ser posto em liberdade; no de morte, a pena do homicídio, quando o escravo morria nas mãos do
dono, que o castigava. Se porém a lesão fosse certa, mas, só aparente, i. é, se o escravo castigado não
morria imediatamente, mas, só depois de alguns dias, a lei não infligia nenhuma pena, por ser ele
propriedade do dono. Pois, em tal caso era incerto se morrera do ferimento. Se porém o ferido fosse um
homem livre, que não morrera imediatamente, mas andasse encostado ao seu bordão, não era réu de
homicídio quem o feriu, mesmo que o ferido viesse a morrer subseqüentemente. Mas estava obrigado a
pagar as despesas que a vítima fez com os médicos. Ora, isto não se dava com o escravo, propriedade
do dono; porque tudo quanto o escravo tinha, e até mesmo a sua pessoa, era propriedade daquele. Por
isso, a lei dava como causa de não sofrer o dono a pena pecuniária, ser o escravo dinheiro seu.

RESPOSTA À QUARTA. — Como já se disse (ad 1), nenhum judeu podia possuir outro como escravo,
absolutamente, mas só, de certo modo, como mercenário, por algum tempo. E, assim, a lei permitia
que, por pobreza premente, o pai vendesse o filho ou a filha. Isto o dizem claramente as palavras
mesmas da lei: Se alguém vender sua filha para ser serva, esta não sairá como costumam sair às
escravas. E do mesmo modo, alguém podia vender, não só o filho, mas também a si mesmo, mais como
mercenário, que como escravo, conforme aquilo (Lv 25, 39-40): Se, constrangido da pobreza, se vender
a ti teu irmão, não o oprimirás com a servidão de escravo, mas o tratarás como jornaleiro e colono.

RESPOSTA À QUINTA. — Como diz o Filósofo, o governo paterno só tem o poder de admoestar; mas não
tem poder coativo, pelo qual podem ser coibidos os rebeldes e os contumazes. Por isso, neste caso, a lei
mandava que o filho contumaz fosse punido pelos governadores da cidade.

RESPOSTA À SEXTA. — O senhor proibia que as mulheres estrangeiras fossem tomadas em matrimônio,
por causa do perigo de sedução, afim de não caírem na idolatria. E especialmente o proibia se essas
mulheres pertencessem às nações vizinhas, a cujos ritos os judeus podiam mais facilmente se apegar.
Aquela porém, que quisesse deixar o culto dos ídolos e converter-se ao culto da lei, podia ser tomada
em matrimônio. Tal foi o caso de Rute, que casou com Booz, a qual disse à sua sogra (Rt 1, 16): O teu
povo será o meu povo e o teu Deus, o meu Deus. Por isso a cativa não podia ser aceita como esposa,
senão depois de raspada a cabeleira, cortadas as unhas e deixadas às vestes com que foi prisioneira, ter
chorado o pai e a mãe; o que significava a perpétua rejeição da idolatria.

RESPOSTA À SÉTIMA. — Como diz Crisóstomo, a morte era mal inconsolável para os judeus, que faziam
tudo para a vida presente. Por isso foi-lhes estatuído que ao defunto se lhe nascesse um filho, do irmão;
o que era uma como mitigação da morte. Determinava-se porém que ninguém, a não ser o irmão ou um
parente próximo, desposasse a mulher do defunto, porque, do contrário, o que nascesse de tal união
não era considerado filho do que morrera. Além disso, um estranho não tinha tanto interesse em
perpetuar a família do defunto, como o tinha o irmão, ao qual também, pelo parentesco, era justo que
assim procedesse. Por onde é claro que o irmão, ao desposar a mulher de seu irmão, fazia às vezes da
pessoa do defunto.

RESPOSTA À OITAVA. — A lei permitia o repúdio da esposa; não que isso fosse absolutamente justo,
mas por causa da dureza dos judeus, como diz o Senhor (Mt 19, 8). Mas isto devemos versar mais
desenvolvidamente, quando tratarmos do matrimonio (IIa IIae, q. 67).

RESPOSTA À NONA. — A esposa quebra a fé do matrimonio pelo adultério; e isso facilmente, levada do
prazer, e às escondidas, porque o olho do adúltero observa a escuridão como diz a Escritura (Jó 24, 15).
Mas, não há a mesma relação entre o pai e o filho que entre o escravo e o senhor. Porque a infidelidade
entre eles não procede do desejo do prazer, mas antes, da malícia; nem pode ficar oculto, como a
infidelidade da mulher adúltera.
Questão 106: Da lei do Evangelho, chamada nova, em si mesma
considerada.
Em seguida devemos tratar da lei do Evangelho, chamada lei nova. E primeiro, em si mesmo
considerada. Segundo, comparada com a lei antiga. Terceiro, do que a lei nova contém.

Na primeira questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei nova é uma lei escrita.


[Art. Seq.; q. 107, a. 1, ad 2, 3; q. 108, a. 1. II Cor., cap. III, lect, II; Ad Hebr., cap. VIII, lect. II].

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova é uma lei escrita.

1. — Pois, a lei nova é o Evangelho mesmo. Ora, este é escrito (Jo 20, 31): Mas, foram escritas estas
coisas, afim de que vos creiais. Logo, a lei nova é uma lei escrita.

2. Demais. — A lei infusa é a da natureza, conforme a Escritura (Rm 2, 14-15): Naturalmente fazem as
coisas que são da lei os que mostram a obra da lei escrita nos seus corações. Se pois a lei do Evangelho
fosse infusa, não diferiria da lei natural.

3. Demais. — A lei do Evangelho é própria dos que vivem no regime do Novo Testamento. Ora, a lei
infusa é comum tanto a esses como aos que viveram no regime do Velho Testamento. Pois, diz a
Escritura (Sb 7, 27), que a divina Sabedoria, pelas nações, se transfunde nas almas santas, forma os
amigos de Deus e os profetas. Logo, a lei nova não é uma lei infusa.

Mas, em contrário, a lei nova é a lei do Novo Testamento. Ora, esta é infusa no coração. Pois, o
Apóstolo, citando a autoridade da Escritura (Jr 31, 31-33) — Eis aí virão os dias, diz o Senhor, e farei
nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá — e expondo qual seja essa aliança, diz (Heb 8, 8-
10): Porque este é o testamento que ordenarei à casa de Israel, imprimindo as minhas leis na mente
deles, e as escreverei sobre o seu coração. Logo, a lei nova é infusa.

SOLUÇÃO. — Todo ser é considerado como sendo o que nele é principal, consoante o Filósofo. Ora, o
que há de principal na lei do Novo Testamento, e no que consiste toda a sua virtude, é a graça do
Espírito Santo, dada pela fé em Cristo. Por onde, a lei nova é principalmente a graça mesma do Espírito
Santo, dada aos fiéis de Cristo. E isto se torna manifesto pelas palavras do Apóstolo (Rm 3, 27): Onde
está o motivo de te gloriares? Todo ele foi excluído. Por que lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da
fé — chamando, assim, lei à graça mesma da fé. E mais expressamente (Rm 8, 2): A lei do espírito de
vida em Jesus Cristo me livrou da lei do pecado e da morte. Por isso diz Agostinho, que, assim como a lei
das ações foi escrita em tábuas de pedra, assim, a lei da fé o foi nos corações dos fiéis. E noutro lugar do
mesmo livro: Que são as leis de Deus por Ele próprio escritas nos corações, senão a presença mesma do
Espírito Santo?

Contudo, a lei nova encerra certos preceitos como que secundários disponentes à graça do Espírito
Santo e ao uso dessa graça. E sobre eles era necessário que os fiéis de Cristo fossem instruídos por
palavras e escrituras, tanto em relação ao que devem crer como ao que devem agir.

Por onde, devemos dizer, que a lei nova é principalmente uma lei infusa; e, secundariamente, uma lei
escrita.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O escrito nos Evangelhos não contém senão o que diz
respeito à graça do Espírito Santo, quer dispondo, quer ordenando para o uso dessa graça. Dispondo o
intelecto pela fé, pela qual se obtém a graça do Espírito Santo, o Evangelho encerra o concernente à
manifestação da divindade ou da humanidade de Cristo. Quanto ao afeto, ele contém a atinente ao
desprezo do mundo, que torna o homem capaz da graça do Espírito Santo; pois, o mundo, i. é, os
amantes do mundo, não pode receber o Espírito Santo, como diz a Escritura (Jo 14, 17). Quanto ao uso
da graça espiritual, ele consiste nos atos virtuosos, aos quais freqüentemente o escrito do Novo
Testamento exorta os homens.

RESPOSTA À SEGUNDA. — De dois modos pode haver algo de infuso no homem. — Primeiro, como
fazendo parte da natureza humana. E nesse sentido a lei natural é nela infusa. — De outro modo, como
lhe sendo acrescentado à natureza pelo dom da graça. E deste modo a lei nova é infusa no homem, e
indica não só o que ele deve fazer, mas também o ajuda a cumprir a lei.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Ninguém nunca teve a graça do Espírito Santo, senão por fé explícita ou
implícita em Cristo. Ora, pela fé em Cristo o homem pertence ao Novo Testamento. Por onde, aqueles a
quem foi infundida a lei da graça pertenciam ao Novo Testamento.

Art. 2. — Se a lei nova justifica.


O segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova não justifica.

1. — Pois, ninguém se justifica sem obedecer à lei de Deus, conforme a Escritura (Heb 5, 9): Cristo veio a
fazer-se autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem. Ora, o Evangelho nem sempre
consegue que todos lhe obedeçam, consoante a Escritura (Rm 10, 16): Nem todos obedecem ao
Evangelho. Logo, a lei nova não justifica.

2. Demais. — O Apóstolo prova que a lei antiga não justificava, pois, na vigência dela, aumentou a
prevaricação. Assim, diz (Rm 4, 15): A lei obra ira; por quanto onde não há lei não há transgressão. Ora,
a lei nova é causa de muitas outras prevaricações; pois é digno de maior pena quem ainda peca, no
regime da lei nova, conforme a Escritura (Heb 10, 28-29): Se alguém quebranta a lei de Moisés, sendo-
lhe provado com duas ou três testemunhas, morre sem dele se ter comiseração alguma, pois, quanto
maiores tormentos credes vós que merece o que pisar aos pés ao Filho de Deus? etc. Logo, como a
antiga, também a lei nova não justifica.

3. Demais. — Justificar é efeito próprio de Deus, conforme aquilo da Escritura (Rm 8, 33): Deus é o que
justifica. Ora, tanto a lei antiga como a nova foram dadas por Deus. Logo, esta não justifica, mais que
aquela.

Mas, em contrário diz o Apóstolo (Rm 1, 16): Eu não me envergonho do Evangelho; porquanto a virtude
de Deus é para dar a salvação a todo o que crê. Logo há salvação só para os justificados. Logo, a lei do
Evangelho justifica.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), duas coisas encerra a lei do Evangelho. — Uma principal, que é a
graça do Espírito Santo dada interiormente. E neste respeito, a lei nova justifica. Por isso, Agostinho diz:
Lá, i. é, no Antigo Testamento, a lei foi posta extrinsecamente, para que os injustos se aterrorizassem;
aqui, i. é, no Novo Testamento, foi dada intrinsecamente, para que se justificassem — Secundariamente,
pertencem à lei do Evangelho os ensinamentos da fé e os preceitos, que ordenam os afetos e os atos
humanos. E neste respeito, a lei nova não justifica. Por isso o Apóstolo diz (2 Cor 3, 6): A letra mata e o
espírito vivifica. E como expõe Agostinho, pela letra se entende qualquer escritura existente
independentemente dos homens, mesmo a dos preceitos morais, tais como estão contidos no
Evangelho. Por onde, mesmo a letra do Evangelho mataria se não existisse interiormente a graça, que
salva.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A objeção colhe, quanto à lei nova; não quanto ao que
nela é principal, senão quanto ao secundário. Isto é, quanto aos ensinamentos e preceitos
extrinsecamente dados ao homem, por escrito ou verbalmente.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A graça do Novo Testamento, embora ajude o homem a não pecar, todavia
não o confirma no bem, de modo a não poder mais pecar; pois isto é próprio do estado da glória. Por
onde, quem pecar, depois de ter recebido a graça do Novo Testamento, é digno de maior pena, como
ingrato a maiores benefícios e como não tendo usado do auxílio que lhe foi dado. Mas nem por isso se
diz que a lei nova produz a ira; pois em si mesma dá auxílio suficiente para o homem não pecar.

RESPOSTA À TERCEIRA. — O mesmo Deus deu a lei nova e a antiga, mas diferentemente. Pois, a antiga
deu-a escrita em tábuas de pedra; a nova, porém, em tábuas de carne do coração. Por onde, diz
Agostinho: O Apóstolo denomina essa lei literal, escrita fora do homem, transmissora da morte e da
condenação. Ao passo que à lei do Novo Testamento a considera transmissora do espírito e da justiça.
Porque, pelo dom do Espírito, praticamos a justiça e nos livramos de ser condenados por prevaricação.

Art. 3 — Se a lei nova devia ter sido dada desde o princípio do mundo.
[Supra, q. 96, a. 5, ad 2].

O Terceiro discute-se assim. — Parece que a lei nova devia ter sido dada desde o princípio do mundo.

1. — Pois, não há para com Deus acepção de pessoas, como diz a Escritura (Rm 2, 11). Ora, todos os
homens pecaram e necessitam da glória de Deus, segundo o Apóstolo (Rm 3, 23). Logo, a lei do
Evangelho devia ter sido dada desde o princípio do mundo, para que socorresse a todos.

2. Demais. — Tanto em lugares como em tempos diversos os homens são diversos. Ora, Deus, que quer
que todos os homens se salvem, mandou fosse o Evangelho pregado em todos os lugares, como está
claro na Escritura (1 Tm 2, 4). Logo, a lei do Evangelho devia ter existido em todos os tempos, e
portanto, dada desde o princípio do mundo.

3. Demais. — A salvação espiritual, sendo eterna, é mais necessária ao homem que a saúde corpórea,
que é temporal. Ora, Deus desde o princípio do mundo, providenciou sobre o necessário à saúde do
corpo submetendo ao homem todos os seres, por causa dele criados, como se lê na Escritura (Gn 1, 26-
29). Logo, também a lei nova necessária por excelência à salvação espiritual, devia ter sido dada aos
homens desde o princípio do mundo.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (1 Cor 15, 46): Não primeiro o que é espiritual, senão o que é animal.
Ora, a lei nova é por excelência espiritual. Logo, não devia ter sido dada desde o princípio do mundo.

SOLUÇÃO. — Pode-se dar tríplice razão de não ter sido a lei nova dada desde o princípio do mundo. — A
primeira é que, como já dissemos (a. 1), a lei nova consiste principalmente na graça do Espírito Santo,
que não devia ser dada abundantemente, antes de ter sido o gênero humano livrado do pecado, depois
de consumada a redenção de Cristo. Por isso, diz a Escritura (Jo 7, 39): Ainda o Espírito Santo não fora
dado, por não ter sido ainda glorificado Jesus. E esta razão o Apóstolo a assinala manifestamente,
quando acrescenta, depois de ter tratado da lei do Espírito Santo (Rm 8, 2 ss): Enviando Deus a seu filho
em semelhança de carne de pecado, ainda do pecado condenou ao pecado na carne, para que a
justificação da lei se cumprisse em nós.

A segunda razão pode ser tirada da perfeição da lei nova. Pois nada alcança imediatamente, desde a
origem, um estado perfeito; se não depois de uma certa ordem sucessiva no tempo. Assim, primeiro
somos crianças, e depois homem. E esta razão o Apóstolo a assinala, quando diz (Gl 3, 24-25): A lei nos
serviu de pedagogo, que nos conduziu a Cristo, para sermos justificados pela fé; mas, depois que veio a
fé, já não estamos debaixo do pedagogo.

A terceira se funda em ser a lei nova a lei da graça. Por onde, era primeiro necessário fosse o homem
abandonado a si mesmo, no regime da lei antiga, para que, caindo no pecado e conhecendo a sua
fraqueza, reconhecesse a necessidade da graça. E nesta razão toca o Apóstolo, quando diz (Rm 5,
20): Sobreveio a lei para que abundasse o pecado, mas onde abundou o pecado, superabundou a graça.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O gênero humano mereceu, por causa do seu primeiro
pai, ser privado do auxílio da graça. E assim, este não é dado a uns, por justiça, e o é a outros, por graça,
como diz Agostinho. Por onde, Deus não faz acepção de pessoas, por não ter desde o princípio do
mundo proposto a todos a lei da graça, que devia ser proposta na ordem devida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — A diversidade dos lugares não faz variar a diversidade dos estados do gênero
humano, que varia conforme a sucessão dos tempos. Por isso, a lei nova é proposta para todos os
lugares, mas não, para todos os tempos. Embora em todos existissem certos homens pertencentes ao
Novo Testamento, como já dissemos (a. 1, ad 3).

RESPOSTA À TERCEIRA. — O que respeita à saúde do corpo serve ao homem, em virtude da natureza,
que não é destruída pelo pecado. Ao passo que o atinente à saúde espiritual se ordena para a graça, que
se perde pelo pecado. Portanto, os casos não são idênticos.

Art. 4 — Se a lei nova há de durar até o fim do mundo.


O quarto discute-se assim. — Parece que a lei nova não há de durar até o fim do mundo.

1. — Pois, como diz o Apóstolo (1 Cor 13, 10), quando vier o que é perfeito, abolido será o que é em
parte. Ora, a lei nova é em parte, conforme diz o mesmo (1 cor 13, 9): Em parte conhecemos e em parte
profetizamos. Logo, a lei nova deve ser abolida, sucedendo-lhe um estado mais perfeito.

2. Demais. — O Senhor prometeu aos seus discípulos (Jo 16, 13), com o advento do Espírito Santo
Paráclito, o conhecimento de toda a verdade. Ora, a Igreja ainda não conhece toda a verdade, no regime
do Novo Testamento. Logo, devemos esperar outro estado, em que toda a verdade será manifestada
pelo Espírito Santo.

3. Demais. — Assim como o Pai difere o Filho e o Filho do Pai, assim o Espírito Santo, do Pai e do Filho.
Ora, houve um estado conveniente à pessoa do Pai, i. é, o do regime da lei antiga, em que os homens
punham o fito na geração. Semelhantemente, há outro estado conveniente à pessoa do Filho, i. é, o
estado da lei nova, em que dominam os clérigos, que buscam a sabedoria, apropriada ao Filho. Logo,
haverá um terceiro estado, o do Espírito Santo, em que dominarão os varões espirituais.

4. Demais. — O Senhor diz (Mt 24, 14): Será pregado este Evangelho do reino por todo o mundo, e
então chegará o fim. Ora, o Evangelho de Cristo, já há tanto tempo é pregado por todo o mundo, e
contudo ainda não chegou o fim. Logo, o Evangelho de Cristo não é o Evangelho do reino, mas há de
haver outro Evangelho, o do Espírito Santo, que será como que outra lei.

Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 24, 34): Digo-vos que não passará esta geração, sem que se
cumpram todas estas coisas; o que Crisóstomo entende da geração dos fiéis de Cristo. Logo, o estado
dos fiéis de Cristo permanecerá até a consumação dos séculos.

SOLUÇÃO. — O estado do mundo pode variar de dois modos. — Primeiro, pela diversidade das leis. E
assim, ao regime atual da lei nova não sucederá nenhum outro estado. Pois, o regime da lei nova
sucedeu ao da lei antiga, como sucede o mais perfeito ao menos perfeito. Ora, nenhum estado da vida
presente pode ser mais perfeito que o da lei nova. Porque nada pode ser mais próximo do fim último do
que aquilo que leva imediatamente para ele. Mas é isso o que faz a lei nova. Donde o dizer o Apóstolo
(Heb 10, 19-22): Portanto, irmãos, tendo confiança de entrar no santuário pelo sangue de Cristo,
acheguemo-nos ao caminho novo, que ele nos abriu. Por onde, não pode haver na vida presente
nenhum estado mais perfeito do que o da lei nova; porque há tanto maior perfeição quanto mais
proximidade houver do fim último. — De outro modo, o estado dos homens pode variar conforme eles
se comportam mais ou menos perfeitamente, em relação a uma mesma lei. E assim, o regime da lei
antiga mudou freqüentemente; pois, ora, as leis eram otimamente guardadas; ora, absolutamente
abandonadas. Assim como também o regime da lei nova se diversifica pelos diversos lugares, tempos e
pessoas, enquanto que a graça do Espírito Santo é mais ou menos perfeitamente aproveitada. Por onde,
não se deve esperar nenhum estado futuro em que a graça do Espírito Santo seja aproveitada mais
perfeitamente do que até agora o foi; e sobretudo, pelos Apóstolos, que receberam as primícias do
Espírito, i. é, com prioridade no tempo e mais abundantemente que os outros, como diz o Glosa.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Segundo Dionísio, tríplice é o estado dos homens:
primeiro, o da lei antiga; segundo o da lei nova; terceiro, o que virá, não nesta vida, mas na futura, i. é,
na pátria celeste. Ora, assim como o primeiro estado foi figurado e imperfeito, em relação ao do
Evangelho; assim, o atual é figurado e imperfeito, em relação ao da pátria celeste, que, quando chegar,
abolirá aquele, conforme a Escritura (1 Cor 13, 12): Agora vemos como por um espelho, em enigmas;
mas então face a face.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, Montano e Priscila afirmavam, que a promessa do
Senhor, de dar o Espírito Santo, não se cumpriu nos Apóstolos, mas neles. E semelhantemente, os
Maniqueus, que se cumpriu em Maniqueu, que diziam ser o Espírito Paráclito. Por isso uns e outros não
admitiam os Atos dos Apóstolos, onde está manifesto, que a promessa se cumpriu nos Apóstolos. Assim
o Senhor repetidamente o prometeu (At 1, 5): vós sereis batizados no Espírito Santo, não muito depois
destes dias, que se completaram, como se lê no mesmo livro. Mas essas pretensões se excluem pelo que
diz o Evangelho (Jo 7, 39): Ainda o Espírito Santo não fora dado, por não ter sido ainda glorificado Jesus.
Por onde se dá a entender, que, logo depois de Jesus glorificado, na ressurreição e na ascensão, foi dado
o Espírito Santo. Ora, o Espírito Santo ensinou aos Apóstolos todas as verdades necessárias à salvação, a
saber, relativas ao que devemos saber e praticar. Mas não lhes ensinou sobre todos os acontecimentos
futuros, pois isso não lhes importava saber, conforme diz a Escritura (At 1, 7): Não é da vossa conta
saber os tempos nem momentos, que o Padre reservou ao seu poder.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei antiga, era, não só do Pai, mas também do Filho, porque Cristo estava
nelas figurado. Por isso, diz o Senhor (Jo 5, 46): Se vós crêsseis a Moisés, certamente me creríeis
também a mim, porque ele escreveu de mim. Semelhantemente, também a lei nova não é somente de
Cristo, mas ainda do Espírito Santo, conforme aquilo (Rm 8, 2): A lei do Espírito de vida em Jesus Cristo,
etc. Por onde, não devemos esperar outra vida, além da do Espírito Santo.
RESPOSTA À QUARTA. — Cristo disse, logo no princípio da pregação evangélica (Mt 4, 17): Está próximo
o reino dos céus. Logo, é estultíssimo dizer que o Evangelho de Cristo não é o Evangelho do reino
celeste. Mas, a pregação do Evangelho de Cristo pode entender-se de dois modos. — Primeiro, quanto à
divulgação do conhecimento de Cristo. E então, o Evangelho foi pregado em todo o mundo, ainda no
tempo dos Apóstolos, como Crisóstomo diz. E sendo assim, o que se acrescenta — E então chegará o fim
— entende-se da destruição de Jerusalém, da qual, no caso, literalmente se falava. — De outro modo, a
predicação do Evangelho em toda a terra pode ser entendida como quando produzir o seu efeito pleno,
de maneira que a Igreja se estabeleça em todas as nações. E neste sentido, como diz Agostinho, o
Evangelho ainda não foi pregado em toda a terra; mas, quando o tiver sido, chegará o fim do mundo.
Questão 107: Da comparação entre a lei nova e a antiga.
Em seguida devemos comparar a lei nova com a antiga.

E, sobre este ponto, discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei nova difere da antiga.


[Supra, q. 91, a. 5; Ad Galat., cap. I, lect. II].

O primeiro discute-se assim. Parece que a lei nova não difere da antiga.

1. — Pois, uma e outra foram dadas para os que têm fé em Deus, conforme a Escritura (Heb 11, 6): sem
fé é impossível agradar a Deus. Ora, fé tanto a tiveram os antigos como os modernos, conforme a Glosa.
Logo, a lei é a mesma.

2. Demais. — Agostinho diz, que a pequena diferença entre a lei e o Evangelho é o temor e o amor. Ora,
este e aquela não bastam para diversificar a nova lei da antiga, porque também esta estabelecia
preceitos de caridade, como os seguintes (Lv 19, 18): Amarás a teu próximo; (Dt 6, 5) Amarás ao Senhor
teu Deus. Nem podem as duas leis se diversificar pela diferença assinalada por Agostinho: O Antigo
Testamento prometia bens temporais, o Novo os promete espirituais e eternos. Porque também o Novo
promete certos bens temporais, conforme se lê no Evangelho (Mr 10, 30): Receberá já de presente
neste mesmo século o cento por um, das casas e dos irmãos, etc. E no Antigo Testamento esperava-se
em promessas espirituais e eternas conforme o Apóstolo (Heb 11, 16): Agora aspiram outra pátria
melhor, i. é, a celestial, referindo-se aos antigos patriarcas. Logo, a lei nova não difere da antiga.

3. Demais. — O Apóstolo parece distinguir uma lei da outra (Rm 3, 27), quando chama à lei antiga lei das
obras, e à nova, lei da fé. Ora, segundo o mesmo, a lei antiga também era lei da fé (Heb 11, 39): Todos
estão provados pelo testemunho da fé, referindo-se aos patriarcas do Velho Testamento.
Semelhantemente, a lei nova, por sua vez, é a lei das obras, como diz o Evangelho (Mt 5, 44): Fazei bem
aos que vos têm ódio; e (Lc 22, 19): Fazei isto em memória de mim. Logo, a lei nova não difere da antiga.

Mas, em contrário, diz o Apóstolo (Heb 7, 12): Mudado que seja o sacerdócio, é necessário que se faça
também a mudança da lei. Ora, o sacerdócio do Novo Testamento difere do sacerdócio do Antigo, como
o mesmo Apóstolo o prova. Logo, a lei nova também difere da antiga.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 90, a. 2; q. 91, a. 4), toda lei ordena a vida humana para um fim. Ora,
todas as coisas ordenadas para um fim podem diversificar-se de duplo modo, conforme a idéia do fim.
De um modo, por se ordenarem a diversos fins; e esta é uma diferença específica, sobretudo se o fim for
próximo. De outro modo, pela proximidade ou afastamento do fim. Assim, é claro que os movimentos
diferem especificamente segundo se ordenam para termos diversos. Mas, quando uma parte do
movimento está mais próximo do termo que outra, elas entre si diferem, como o perfeito, do
imperfeito.

Por onde, podemos distinguir duas leis diversas. — Primeiro, como que absolutamente, enquanto
ordenadas a fim diversos. Assim, a lei da cidade, que se ordenasse a servir ao governo do povo, seria
especificamente diferente da que se ordenasse a servir aos melhores da cidade. — De outro modo, uma
lei pode se distinguir de outra por estar uma ordenada ao fim, mais proximamente e, a outra, mais
remotamente. Assim, na cidade, uma é a lei imposta aos homens perfeitos, capazes de praticar logo o
que respeita ao bem comum; outra é a que manda ministrar ensino às crianças, que devem ser
instruídas para praticarem mais tarde ações de homem.
Por onde, devemos dizer que, do primeiro modo, a lei nova não difere da antiga, pois o fim de ambas é
trazer o homem sujeito a Deus. Ora, o Deus do Novo e do Velho Testamento é o mesmo, conforme o
Apóstolo (R 3, 30): Não há senão um Deus, que justifica pela fé os circuncidados e que também pela fé
justifica os incircuncidados. Do outro modo, a lei nova difere da antiga. Porque esta era como um
pedagogo de crianças, no dizer do Apóstolo (Gl 3, 24). Ao passo que a lei nova é a perfeição, lei da
caridade, da qual diz o Apóstolo (Cl 3, 14), que é o vínculo da perfeição.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A unidade da fé em ambos os Testamentos prova a


unidade do fim. Pois, como já dissemos (q. 62, a. 2), o objeto das virtudes teologais, entre as quais está a
fé, é o fim último. Contudo, uma era a função da fé na antiga lei, e outra, a na lei nova. Pois, o que os
antigos criam como futuro, nós cremos como realizado.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Todas as diferenças assinaladas entre a lei nova e a velha fundam-se nas
idéias de perfeito e de imperfeito. Pois os preceitos de toda lei são dados para regular os atos virtuosos.
Ora, para praticar tais atos, os imperfeitos, ainda sem o hábito da virtude, agem de um modo, e de
outro os que já são perfeitos por esse hábito. Assim, os que ainda não tem o hábito da virtude são
levados a praticar atos virtuosos por uma causa extrínseca, p. ex., por causa da cominação de penas ou
pela promessa de certas remunerações extrínsecas, como a honra, as riquezas, ou coisas semelhantes.
Por isso a lei antiga, dada para imperfeitos, i. é, que ainda não tinham conseguido a graça espiritual, era
chamada lei do temor, porque levava à observância dos preceitos pela cominação de determinadas
penas, e dela se diz que fazia certas promessas temporais. Os que tem virtudes, porém, são levados a
praticá-la por amor da mesma, e não por qualquer pena ou remuneração extrínseca. Por onde, a lei
nova que é a principal, por consistir na graça espiritual mesma, infundida nos corações, chama-se lei do
amor. E a Escritura diz que ela promete bens espirituais e eternos, que são os objetos da virtude,
principalmente da caridade, que por isso tende para esses bens, não como algo de extrínseco, senão de
próprio. E também por isso se diz que a lei eterna coibia as mãos e não, a alma. Porque, quem se
abstém do pecado, por temor da pena, não afasta a sua vontade do pecado, absolutamente falando,
como o faz a vontade do que se abstém por amor da justiça. E por isso se diz que a lei nova que é a lei
do amor, coíbe a alma. — Houve porém no regime do Velho Testamento, quem, tendo a caridade e a
graça do Espírito Santo, esperava principalmente as promessas espirituais e eternas, e portanto
pertencia ao regime da lei nova. E semelhantemente, há no regime do Novo Testamento certos homens
carnais, que ainda não alcançaram a perfeição da lei nova. E esses, embora desse regime, tornam
necessário sejam levados às obras virtuosas pelo temor das penas e por meio de certas promessas
temporais. A lei antiga, porém, não obstante esses preceitos de caridade, não os dava por ela o Espírito
Santo, por quem está derramada a caridade em nossos corações, como diz a Escritura (Rm 5, 5).

RESPOSTA À TERCEIRA. — Como já dissemos (q. 106, a. 1, 2), a lei nova é chamada lei da fé por
consistir, principalmente, na graça mesma, dada internamente aos crentes; daí o denominar-se graça da
fé.Secundariamente, ela contém certos atos morais e sacramentais, que não lhe constituem a parte
principal, como constituíam a parte principal da lei antiga. Mas os que, no regime do Velho Testamento,
foram, pela fé, aceitos a Deus, pertenceram por isso ao Novo Testamento. Pois, não se justificaram
senão pela fé em Cristo, autor do Novo Testamento. Por onde, de Moisés diz o Apóstolo (Heb 11,
26): Tinha por maiores riquezas o opróbrio de Cristo que os tesouros dos egípcios.
Art. 2 — Se a lei nova cumpriu a antiga.
[IV Sent., dist. I, q. 2, a. 5, qª 2, ad 1, 3; Ad Rom., cap. III, lect. IV, cap. IX, lect. V; Ad Ephes, cap. II, lect.
V].

O Segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova não cumpriu a antiga.

1. — Pois, o cumprimento contraria a abolição. Ora, a lei nova vem abolir ou excluir a observância da
antiga, conforme diz o Apóstolo (Gl 5, 2): Se vos fazeis circuncidar, Cristo vos não aproveitará
nada. Logo, a lei nova não veio cumprir a antiga.

2. Demais. — Um contrário não cumpre o outro. Ora, o Senhor propôs, na lei nova, certos preceitos
contrários aos da lei antiga. Assim, diz (Mt 5, 27-32): Ouvistes que foi dito aos antigos: Qualquer que se
desquitar de sua mulher dê-lhe carta de repúdio. Mas eu vos digo que todo o que repudiar a sua
mulher, a faz ser adúltera. E a seguir, o mesmo se dá com a proibição do juramento, e ainda com a pena
de talião e com o ódio aos inimigos. Semelhantemente, parece que o Senhor excluiu os preceitos da lei
antiga relativos ao discernimento dos alimentos, quando diz (Mt 15, 11): Não é o que entra pela boca o
que faz imundo o homem. Logo, a lei nova não cumpriu a antiga.

3. Demais. — Quem age contra a lei não a cumpre. Ora, em certos casos, Cristo agiu contra ela. Assim,
tocou o leproso, como diz o Evangelho (Mt 8, 3), o que era contra a lei. Também foi visto violar muitas
vezes o sábado, pelo que dele diziam os judeus (Jo 9, 16): Este homem, que não guarda o sábado, não é
de Deus.Logo, Cristo não cumpriu a lei. Logo, a lei nova, dada por Cristo, não veio cumprir a antiga.

4. Demais. — A lei antiga continha preceitos morais cerimoniais e judiciais, como já se disse (q. 99, a. 4).
Ora, num lugar do Evangelho, onde se vê que o Senhor, a certos respeitos, cumpriu a lei, nenhuma
menção se faz dos preceitos judiciais e cerimoniais. Logo, parece que a lei nova não veio totalmente
cumprir a antiga.

Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 5, 17): Não vim destruir a lei, mas a dar-lhe cumprimento. E depois
acrescenta (Mt 5, 18): não passará da lei um só i, ou um til, sem que tudo seja cumprido.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei nova está para a antiga como o perfeito para o imperfeito.
Ora, o perfeito completa o que falta ao imperfeito. E assim, a lei nova completa a antiga, suprindo-a no
que lhe faltava.

Ora, duas coisas podem considerar-se na lei antiga: o fim e os preceitos nela contidos. — O fim da lei é
tornar os homens justos e virtuosos, como já se disse (q. 92, a. 1). Por onde, o fim da lei antiga era a
justificação dos homens; o que porém não podendo fazer, o figurava por meio de certos atos
cerimoniais e o prometia por palavras. E neste ponto a lei nova cumpre a antiga, justificando pela
virtude da paixão de Cristo. E isto diz o Apóstolo (Rm 8, 3-4): O que era impossível à lei, enviando Deus a
seu Filho em semelhança de carne de pecado, por causa do pecado, condenou ao pecado na carne, para
que a justificação da lei se cumprisse em nós. E neste ponto a lei nova realiza o que a antiga prometeu,
conforme aquilo do Apóstolo (2 Cor 1, 20):Todas as promessas de Deus são em seu Filho, i, é, em
Cristo. E além disso, nesta matéria, cumpre também o que a lei antiga figurava. Por isso, a Escritura diz
(Cl 2, 17), que as cerimônias eram à sombra das coisas vindouras; mas o corpo é um Cristo, i. é, a
verdade pertence a Cristo. Por isso, a lei nova se chama lei da verdade, e a antiga, lei da sombra ou da
figura.

Quanto aos preceitos da lei antiga, Cristo os cumpriu com as suas obras e a sua doutrina. — Com as
obras, porque quis circuncidar-se e observar as outras disposições legais, que devia no seu tempo
observar, segundo aquilo da Escritura (Gl 4, 4): Feito sujeito à lei. — E com a sua doutrina cumpriu os
preceitos da lei de três modos. — Primeiro, explicando-lhe o sentido, como se vê no caso do homicídio e
do adultério, na proibição dos quais os Escribas e os Fariseus não viam senão o ato exterior proibido. Por
onde, o Senhor cumpriu a lei, mostrando que a sua proibição abrange também os atos internos dos
pecados. — Segundo, o Senhor cumpriu os preceitos da lei ordenando como se haviam de observar mais
perfeitamente as disposições da lei antiga. Assim, a lei antiga estatuía que se não perjurasse, o que se
observa mais perfeitamente se a gente se abstém de todo de jurar, salvo em caso de necessidade. — Em
terceiro lugar, o Senhor cumpriu os preceitos da lei, acrescentando certos conselhos de perfeição, como
se vê no Evangelho onde, a quem afirmava observar os preceitos da lei antiga diz (Mt 19, 21): Falta-te
uma coisa: Se queres ser perfeito, vai, vende o que tens, etc.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A lei nova não veio abolir a observância da antiga, senão
na parte das cerimônias, como já dissemos (q. 13, 1. 3, 4), pois elas eram figurativas do futuro. Por onde,
pelo fato mesmo de estarem cumpridos os preceitos cerimoniais, já realizado o que eles figuravam, já
não deviam ser observados. Pois se o fossem, significariam algo de futuro, ainda não realizado. Assim
também a promessa do dom futuro já não tem lugar, uma vez a promessa cumprida pela realização do
dom. E deste modo, uma vez cumpridas, desapareceram as cerimônias da lei.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Como diz Agostinho, os preceitos referidos, do Senhor, não são contrários
aos da lei antiga. — Pois, o preceito do Senhor de não repudiar a esposa, não é contrário ao que a lei
preceituava. E nem a lei disse — Quem quiser repudia a esposa — do que o contrário seria não repudiar.
Mas certamente, não queria fosse à esposa repudiada pelo marido, quem interpôs um prazo para que o
de ânimo pressuroso em separar-se, peado pela redação do libelo, se abstivesse da separação. Por isso
o Senhor, a fim de o confirmar, para que a esposa não fosse repudiada facilmente, excetuou só o caso
da fornicação. — E o mesmo também se deve dizer quanto à proibição do juramento, conforme já
advertimos — E o mesmo é patente na proibição do talião. A lei taxou o modo da vindicta, para que não
a tomassem imoderadamente; da qual o Senhor mais perfeitamente demoveu aquele a quem advertiu
se abstivesse dela completamente. — Quanto ao ódio dos inimigos, o Senhor removeu a falsa
inteligência dos Fariseus, advertindo-nos que devemos odiar, não as pessoas, mas a culpa. — Enfim,
quanto ao discernir dos alimentos, que era cerimonial, o Senhor não mandou que deixasse de ser
observado, mas mostrou que nenhuma comida é em si mesma imunda, mas, só figuradamente, como já
se disse (q. 102, a. 6 ad 1).

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei antiga proibia tocar no leproso, por que, fazendo-o, incorria-se numa
certa imundice de irregularidade, assim como por tocar num morto, segundo já dissemos (q. 102, a. 5 ad
4). Ora, o Senhor, que era o curador do leproso, não podia incorrer em imundice. — Pelas coisas porém
que fez no sábado, não aboliu em verdade a lei do sábado, como ele próprio o mostra no Evangelho.
Quer porque fizesse milagre por virtude divina, que sempre age sobre as coisas; quer porque praticasse
obras para a salvação humana, pois os Fariseus também providenciavam pela conservação dos animais,
no dia de sábado; quer também porque, em razão da necessidade, desculpou os discípulos que colhiam
espigas no sábado. Mas realmente, aboliu a lei do sábado como supersticiosamente a entendiam os
Fariseus, pensando que a gente se devia abster mesmo das obras da salvação, nesse dia, o que ia contra
a intenção da lei.

RESPOSTA À QUARTA. — No lugar aduzido do Evangelho não se lembram os preceitos cerimoniais da


lei, porque a observância deles desapareceu totalmente, por terem sido realizados, segundo já dissemos
(a. 1). — Dos preceitos judiciais só foi lembrado o do talião, de modo a ser entendido de todos os mais o
que fosse dito deste. E o Senhor ensinou que, nesse preceito, a intenção da lei não era que se aplicasse
a pena de talião pelo prazer da vingança, que ele exclui, advertindo que cada um deve estar preparado a
sofrer injúrias ainda maiores; mas só por amor da justiça. E deste modo ainda permanece na lei nova a
referida pena.

Art. 3 — Se a lei nova está contida na antiga.


O terceiro discute-se assim. — Parece que a lei nova não está contida na antiga.

1. — Pois, a lei nova consiste principalmente na fé, sendo por isso chamada lei da fé, como diz o
Apóstolo (Rm 3, 27). Ora, a lei nova estabeleceu muitos preceitos da fé, que não estão contidos na lei
antiga. Logo, a lei nova não está contida na antiga.

2. Demais. — Sobre aquilo do Evangelho (Mt 5, 19) — Aquele que quebrar um destes mínimos
mandamentos — diz uma Glosa, que os mandamentos da lei são menores; e os do Evangelho, maiores.
Ora, o mais não pode estar contido no menos. Logo, a lei nova não está contida na antiga.

3. Demais. — A coisa contida em outra é possuída simultaneamente com esta. Ora, se a lei nova
estivesse contida na antiga, resultaria que quem estivesse sob o regime desta estaria também sob o
daquela. Logo, foi supérfluo dar uma lei nova a quem já tinha a antiga. Portanto, a lei nova não está
contida na antiga.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Ez 1, 16): E a roda estava na roda, i. é, o Novo Testamento no Velho,
como expõe Gregório.

SOLUÇÃO. — De dois modos pode uma coisa estar contida em outra: atualmente, como a que está
colocada num lugar; ou, virtualmente, como o efeito na causa ou o completo no incompleto. Assim, o
gênero contém potencialmente a espécie, e toda a árvore está contida na semente. E deste modo a lei
nova está contida na antiga: pois, como já se disse, aquela está para esta, como o perfeito, para o
imperfeito. Por isso, Crisóstomo, expondo aquilo do Evangelho (Mr 4, 28) — A terra por si mesma
produz, primeiramente a erva, depois a espiga e, por último, o grão graúdo na espiga — diz assim:
Primeiro, frutifica a erva, na lei da natureza; depois, as espigas na lei de Moisés; enfim, o grão graúdo,
no Evangelho. Assim, pois, a lei nova está na antiga, como o grão na espiga.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Tudo o que o Novo Testamento ensina explícita e
abertamente para ser crido, também já se encontrava no Velho Testamento, mas implícita e
figuradamente. E assim, mesmo quanto ao que devemos crer, a lei nova está contida na antiga.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Diz-se que os preceitos da lei nova são maiores que os da antiga, quanto à
sua manifestação explícita. Mas, pela substância mesma, os preceitos do Novo Testamento estão todos
contidos no do Velho. Donde o dizer Agostinho: Quase tudo o que o Senhor ensinou ou preceituou,
quando acrescentava — Eu, porém, vos digo — já se encontra naqueles livros antigos. Mas, como não se
compreendia no homicídio senão a morte dada ao corpo humano, o Senhor explicou, que todo ato
injusto, para prejudicar o próximo, está incluído no gênero do homicídio. E por tais explicações, os
preceitos da lei nova consideram-se maiores que os da lei antiga. Mas, nada impede esteja o maior
virtualmente contido no menor, como a árvore, na semente.

RESPOSTA À TERCEIRA. — É preciso explicar o dito implicitamente. Por onde, depois de dada a lei
antiga, era necessária dar também a lei nova.
Art. 4 — Se a lei nova é mais onerosa do que a antiga.
[III Sent., dist. XL, a. 4, qª 3 ; Quodl. IV, q. 8, a. 2 ; In Matth, ; cap. IX].

O quarto discute-se assim. — Parece que a lei nova é mais onerosa que a antiga.

1. — Pois, sobre aquilo da Escritura — Aquele que quebrar um destes mínimos mandamentos — diz
Crisóstomo: Os mandamentos de Moisés, como — não matarás, não fornicarás — são mais fáceis de
praticarem. Enquanto que os de Cristo, como — Não te encolerizarás, não cobiçaras — são mais
difíceis. Logo, a lei nova é mais onerosa que a antiga.

2. Demais. — É mais fácil usar da prosperidade terrena, do que sofrer tribulações. Ora, no Antigo
Testamento, a prosperidade temporal era consecutiva à observância da lei, como se vê na Escritura (Dt
28, 1-14). Ao passo que muitas adversidades perseguem os observantes da lei nova, consoante o
Apóstolo (2 Cor 6, 4-10):Portemo-nos em nossas mesmas pessoas como ministros de Deus, na muita
paciência, nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, etc. Logo, a lei nova é mais onerosa que a
antiga.

3. Demais. — Um preceito acrescentado a outro é mais difícil de ser observado. Ora, a lei nova foi
acrescentada à antiga. Assim, esta proibiu o perjúrio; ao passo que aquela, até mesmo o juramento. A
lei antiga proibia a separação da mulher sem o libelo de repúdio; a nova proibiu absolutamente a
separação, como o diz a Escritura (Mt 5, 31 ss), conforme a exposição de Agostinho. Logo, a lei nova é
mais onerosa que a antiga.

Mas, em contrário, diz a Escritura (Mt 11, 28): Vinde a mim, todos os que andam em trabalho e vos
achais carregados. E segundo a explicação de Hilário: Chama a si os que padecem as dificuldades da lei e
estão carregados com os pecados do século. E depois, o Senhor acrescenta, falando do jugo do
Evangelho: O meu jugo é suave, e o meu peso leve. Logo, a lei nova é mais leve que a antiga.

SOLUÇÃO. — Em relação às obras virtuosas, para regular as quais foram dados os preceitos da lei, surge
dupla dificuldade. — Uma, relativa às obras externas, que em si mesmas trazem uma certa dificuldade e
onerosidade. E neste ponto a lei antiga será muito mais onerosa que a nova. Pois, com as suas múltiplas
cerimônias, obrigava a mais atos externos que a lei nova. Esta, além dos preceitos da lei natural, poucas
coisas acrescentou, com a doutrina de Cristo e dos Apóstolos. Embora muitos acréscimos se fizessem
depois, por instituição dos santos padres. Mas ainda neste ponto, Agostinho diz, que não se deve perder
de vista a moderação, para não se tornar onerosa a vida dos fiéis. Assim, referindo-se a certos,
diz: Carregam com obras servis a própria religião nossa, que, com manifestíssimas e pouquíssimas
cerimônias de sacrifícios, a misericórdia de Deus quis que fosse livre. De modo que é mais tolerável a
condição dos judeus, sujeitos, a sacramentos legais e não a presunções humanas.

A outra dificuldade versa sobre os atos virtuosos internos, como quando praticados pronta e
agradavelmente. Ora, atacar essa dificuldade é a função da virtude. Pois, a prática desses atos, muito
difícil para quem não possui a virtude, torna-se fácil para o virtuoso. E neste ponto os preceitos da lei
nova são mais onerosos que os da antiga. Pois, aquela proíbe os movimentos internos da alma, que a lei
antiga não proibia expressamente em todos os casos, embora o fizesse em certos, em que porém não se
acrescentava nenhuma pena à proibição. Ora, o que a lei nova dispõe é dificílimo para quem é sem
virtude. Pois, como diz o Filósofo, é fácil fazer o que faz o justo; mas agir como ele age, deleitável e
prontamente, é difícil para quem não tem justiça. E assim também diz a Escritura (1 Jo 5, 3): os seus
mandamentos não são custosos; o que Agostinho explica:o que não é difícil para quem ama o é para
quem não ama.
DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — A autoridade aduzida se refere expressamente à
dificuldade da lei nova, quanto à expressa proibição dos movimentos internos.

RESPOSTA À SEGUNDA. — As contrariedades que sofrem os observantes da lei nova não são impostas
pela lei mesma; contudo, como o amor, em que a lei consiste, são facilmente toleradas. Pois, como diz
Agostinho o amor torna fácil e quase destrói o que é cruel e duro.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Esses acréscimos aos preceitos da lei antiga têm por fim facilitar-lhe a
observância, como diz Agostinho. Logo, daí não se conclui que a lei nova seja mais onerosa, mas ao
contrário, mais fácil.
Questão 108: Do conteúdo da lei nova.
Em seguida devemos tratar do conteúdo da lei nova.

E nesta questão discutem-se quatro artigos:

Art. 1 — Se a lei nova devia ordenar ou proibir certos atos externos.


(Quodl. IV, q. 8, a. 2; Ad Rom., cap. III, lect. IV)

O primeiro discute-se assim. — Parece que a lei nova não devia ordenar nem proibir certos atos
externos.

1. — Pois, a lei nova é o Evangelho do reino celeste, conforme a Escritura (Mt 24, 14): Serás pregado
este Evangelho do reino por todo o mundo. Ora, o reino de Deus não consiste em atos externos, senão
só em internos, conforme a Escritura (Lc 17, 21): Está o reino de Deus dentro de vós; e (Rm 14, 17): O
reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça e paz e gozo no Espírito Santo. Logo, a lei nova não
devia ordenar nem proibir qualquer ato externo.

2. Demais. — A lei nova é a lei do Espírito, como diz a Escritura (Rm 8, 2), onde há o Espírito do Senhor,
aí há liberdade, como diz o Apóstolo (2 Cor 3, 17). Logo, não há liberdade, quando o homem é obrigado
a fazer ou a evitar certos atos externos. Logo, a lei nova não contem nenhum preceito ou proibição
sobre atos externos.

3. Demais. — Todos os atos externos dependem das mãos, como os internos, da alma. Ora, a diferença
entre a lei nova e a antiga é que esta coibia as mãos, e aquela coíbe a alma. Logo, a lei nova não devia
estabelecer proibições e preceitos sobre os atos externos, mas somente sobre os internos.

Mas, em contrário, pela lei nova os homens se tornam filhos da luz; e por isso diz a Escritura (Jo 12,
36):Crede na luz, para que sejais filhos da luz. Ora, os filhos da luz devem fazer as obras da luz e não as
das trevas, conforme o Apóstolo (Ef 5, 8): Noutro tempo éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor;
andai como filhos da luz. Logo, a lei nova devia proibir certas obras externas e ordenar outras.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (q. 106, a. 1, 2), o que há de principal na lei nova é a graça do Espírito
Santo, que se manifesta na fé que obra por caridade. E esta graça os homens a conseguem pela
mediação do Filho de Deus humanado, cuja humanidade foi primeiro, cheia de graça, que, depois, se
nos comunicou. Por isso, diz a Escritura (Jo 1, 14): O verbo se fez carne; e em seguida: Cheio de graça e
de verdade; e em seguida: E todos nós participamos da sua plenitude, e graça por graça. E por isso
acrescenta: a graça e a verdade foi trazida por Jesus Cristo. Por onde, convém que, por certos meios
sensíveis externos, a graça que promana do Verbo encarnado chegue até nós; e que a graça interior,
que torna a carne sujeita ao espírito, produza certas obras sensíveis externas.

Assim pois os atos externos podem de dois modos pertencer à graça — Primeiro, por levarem de certo
modo a ela. E tal é a ação dos sacramentos instituídos pela lei nova, como, o batismo, a Eucaristia e
outros. — De outro modo, há atos externos produzidos por inspiração da graça. Mas aqui devemos fazer
uma distinção. Certos atos externos têm conveniência ou contrariedade necessária com a graça interior,
consistente na fé que obra por caridade. E esses atos são ordenados ou proibidos pela lei nova; assim
ela ordena a confissão da fé e proíbe a negação. Por isso a Escritura diz (Mt 10, 32-33): Todo aquele que
me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai; e o que me negar diante
dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai. Há outros atos porém que não têm contrariedade
ou conveniência necessária com a fé que obra por caridade. E esses a lei nova não os ordenou nem os
proibiu na sua instituição primitiva, mas foi deixado pelo legislador, i. é, por Cristo, ao arbítrio de cada
um determinar como deve proceder em relação a eles. Assim, cada qual é livre, relativamente a esses
atos, de determinar o que lhe convém fazer ou evitar; e o mesmo deve ordenar aos seus súditos o
chefe, determinando o que, em tal caso, deve ser feito ou evitado. Por isso, neste ponto, a lei do
Evangelho é chamada lei da liberdade; porque a lei antiga fazia muitas determinações e pouco deixava
para ser determinado pela liberdade humana.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O reino de Deus consiste principalmente nos atos
internos; por conseqüência, também pertence ao reino de Deus tudo aquilo sem o que esses atos não
podem ser praticados. Assim se o reino de Deus consiste na justiça interior e na paz e alegria espiritual,
necessariamente todos os atos exteriores, que repugnam à justiça, à paz ou à alegria espiritual
repugnam também ao reino de Deus, e portanto devem ser proibidas pelo Evangelho desse reino. O
reino de Deus, ao contrário, não consiste no que é indiferente à vida interior, como, p. ex., comer tais
comidas ou tais outras. Por isso o Apóstolo disse antes:reino de Deus não é comida nem bebida.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Segundo o Filósofo, é livre quem é causa de seus atos. Logo, pratica um ato
livremente quem de si mesmo o faz. Ora, o que o homem pratica por um hábito conveniente à sua
natureza, por si mesmo o pratica; porque o hábito inclina ao que é conforme à natureza. Se pois o
hábito fosse repugnante á natureza, o homem não agiria por si mesmo, mas levado por uma corrupção
sobreveniente. Ora, a graça do Espírito Santo é como um hábito interior infuso em nós, que nos inclina a
agir retamente. Logo faz-nos praticar livremente o que convém à graça e evitar o que lhe repugna. —
Assim pois, a lei nova se chama lei da liberdade, em dois sentidos. Primeiro, por não nos obrigar a fazer
nem a evitar nada, senão o em si mesmo necessário, ou contrário à salvação; e isso entra na ordenação
ou na proibição da lei. Em segundo sentido, porque essas ordenações ou proibições ela nos faz cumpri-
las livremente, enquanto as cumprimos por inspiração interna da graça. E por estas duas razões a lei
nova é chamada lei da perfeita liberdade.

RESPOSTA À TERCEIRA. — A lei nova, proibindo os movimentos desordenados da alma, também havia
necessariamente de coibir os atos desordenados das mãos, efeitos dos atos internos.

Art. 2 — Se a lei nova ordenou suficientemente os atos externos.


O segundo discute-se assim. — Parece que a lei nova ordenou insuficientemente os atos externos.

1. — Pois, parece que à lei nova pertence principalmente a fé que obra por caridade, conforme a
Escritura (Gl 5, 6): Em Jesus Cristo nem a circuncisão vale alguma coisa, nem o prepúcio; mas, a fé que
obra por caridade.Ora, a lei nova explicitou certas verdades de fé, que não estavam explícitas na lei
antiga, como p. ex., a fé na Trindade. Logo, também devia ter acrescentado certas obras morais
externas, não determinadas pela antiga lei.

2. Demais. — A lei antiga instituiu não somente sacramentos, mas também certas coisas sagradas, como
já se disse (q. 101, a. 4; a. 102, a. 4). Ora, na lei nova embora tenha instituído certos sacramentos, não se
vê que tivesse Deus determinado coisas sagradas, como as que respeitam à santificação de um templo,
ou de vasos, ou mesmo relativas à celebração de alguma solenidade. Logo, a lei nova ordenou
insuficientemente as obras externas.

3. Demais. — A antiga lei continha certas observâncias relativas aos ministros de Deus, e também certas
outras relativas ao povo, como já se disse (q. 101, a. 4; q. 102, a. 6), ao tratar dos cerimoniais da lei
antiga. Ora, vemos que a lei nova estabeleceu certas observâncias para os ministros de Deus (Mt 10,
9): Não possuías ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, e o mais que nesse lugar se
segue e ainda em outro (Lc 9; 10). Logo, a lei nova também devia ter instituído outras observâncias,
relativas ao povo fiel.

4. Demais. — Na lei antiga havia, além dos preceitos morais e cerimoniais, certos, judiciais. Ora, a lei
nova não deu nenhum preceito judicial. Logo, ordenou insuficientemente as obras externas.

Mas, em contrário, diz o Senhor (Mt 7, 24): Todo aquele que ouve estas minhas palavras, e as observa,
será comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre rocha. Ora, o edificador sábio não omite
nada de necessário ao edifício. Logo, nas palavras de Cristo, está suficientemente estabelecido tudo o
que pertencer à salvação humana.

SOLUÇÃO. — Como já dissemos (a. 1), a lei nova devia ordenar ou proibir só os atos externos, que nos
levam à graça, ou que respeitam necessariamente ao reto uso da mesma. Ora, a graça não podemos
segui-la por nós mesmos, mas só por Cristo. Por onde, os sacramentos, pelos quais conseguimos a graça,
o Senhor, Ele próprio, os instituiu. São eles: o batismo, a eucaristia, a ordem dos ministros da lei nova,
quando instituiu os Apóstolos e os setenta e dois discípulos; a penitência; o matrimonio indissolúvel;
enfim, a confirmação, prometida pela missão do Espírito Santo. Lê-se também no Evangelho, que, por
sua instituição, os Apóstolos curavam os enfermos, ungindo-os com óleo. São esses os sacramentos da
lei nova.

Quanto ao bom uso da graça, ele é obra da caridade. E as obras da caridade, enquanto necessárias à
virtude, pertencem aos preceitos morais, que também a lei antiga estabeleceu. Por onde, neste ponto, a
lei nova não devia acrescentar nada à antiga, quanto a tais obras externas. E quanto à determinação
delas, quando ordenadas ao culto de Deus, ela pertence aos preceitos cerimoniais da lei; quando
ordenadas ao próximo, aos judiciais, como dissemos (q. 99, a. 4). Ora, essas determinações não são em
si mesmas necessárias à graça interior, no que consiste a lei nova. Por onde, não se incluem nos
preceitos desta, mas são deixadas ao arbítrio humano. Delas, umas respeitam os súditos, e são relativas
a cada um em particular; outras, aos superiores temporais ou espirituais, e são relativas à utilidade
comum.

Assim pois a lei nova não devia determinar, ordenado ou proibido, quaisquer obras externas, além dos
sacramentos e preceitos morais, que de si mesmos constituem a essência da virtude. Tais são os
preceitos de não matar, não furtar e outros semelhantes.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — As verdades da fé são superiores à razão humana, e por
isso não podemos alcançá-las sem ser pela graça. Por onde, com graça mais abundante podem-se
explicitar mais verdades da fé. Ao passo que, na prática de atos virtuosos, nós nos dirigimos pela razão
natural, que é uma determinada regra das ações humanas, com já dissemos (q. 19, a. 3; q. 63, a. 2_. E
por isso neste ponto não havia necessidade de se estabelecerem preceitos, além dos da lei moral, que
são ditames da razão.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os sacramentos da lei nova conferem a graça, que não é dada senão por
Cristo; e por isso era necessário dele recebessem a instituição. Ao contrário, as coisas sagradas, como
um templo ou um altar consagrado, ou coisas semelhantes, não conferem nenhuma graça, como
também não a confere a celebração mesma das solenidades. Por onde, como essas coisas, em si
mesmas, não, pertencem à necessidade interna da graça, o Senhor deixou ao arbítrio dos fiéis a
instituição delas.
RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos referidos o Senhor deu aos Apóstolos, não como observâncias
cerimoniais, mas como instituições morais. E podem se entender em duplo sentido. — Ou, conforme
Agostinho, como concessões e não, como preceitos. Assim o Senhor concedeu-lhes pudessem exercer o
ofício da pregação sem alforje nem bordão nem coisas semelhantes, por terem como que o poder de
receber o necessário à vida daqueles a quem pregavam; e por isso acrescentou: porque é digno o
trabalhador do seu alimento. Mas também, não peca, antes, faz mais do que deve, quem leva consigo o
de que vive, desempenhando o dever da pregação, sem receber paga daqueles a quem prega o
Evangelho, como fez Paulo. — De outro, pode-se entender, conforme a exposição de outros Santos, que
foram dados aos Apóstolos certos preceitos temporais, no tempo em que foram mandados a pregar o
Evangelho na Judéia, antes da paixão de Cristo. Pois, como que ainda pequenos e vivendo sob a
proteção de Cristo, precisavam os discípulos de receber certas instituições especiais feitas pelo Mestre,
como os súditos as recebem dos seus superiores. E principalmente, porque deviam exercitar-se aos
poucos, para se deixarem do cuidado com as coisas temporais. E assim se tornavam idôneas para pregar
o Evangelho por todo o mundo: Nem é para admirar se, ainda na vigência do regime da lei antiga, e sem
terem os Apóstolos recebido a perfeita liberdade do Espírito, instituiu certos modos determinados de
viver, os quais, nas vésperas da paixão, aboliu, por estarem os discípulos já neles suficientemente
exercitados. Donde o dizer o Evangelho (Lc 22, 35-36): Quando eu vos mandei caminhar sem bolsa e
sem alforje e sem sapatos, faltou-vos porventura alguma coisa? E eles responderam: Nada. Prosseguiu
logo Jesus: Pois agora quem tem bolsa tome-a, e também alforje. Porque já estava iminente o tempo da
perfeita liberdade, em que seriam entregues totalmente ao próprio arbítrio, quanto às coisas que, em si
mesmas, não são necessariamente exigidas pela virtude.

RESPOSTA À QUARTA. — Os preceitos judiciais, em si mesmos considerados, também não concernem


necessariamente à virtude, de um modo determinado; senão só quanto à idéia geral de justiça. Por isso,
a aplicação deles o Senhor a deixou aos diretores dirigir os outros, espiritual ou temporalmente. Ao
passo que fez certas explicações dos preceitos judiciais da lei antiga, por causa da má inteligência dos
Fariseus, como a seguir se dirá (a. 3, ad 2).

Art. 3 — Se a lei nova ordenou suficientemente os atos internos do


homem.
O terceiro discute-se assim. — Parece que a lei ordenou insuficientemente os atos internos do
homem.

1. — Pois, são dez os mandamentos que ordenam o homem para Deus e para o próximo. Ora, o Senhor
deu complemento só a três deles, a saber: sobre a proibição do homicídio, sobre a do adultério, e sobre
a do juramento falso. Logo, ordenou o homem insuficientemente, omitido o complemento aos outros
preceitos.

2. Demais. — O Senhor nada ordenou, no Evangelho, sobre os preceitos judiciais, salvo sobre o repúdio
da esposa, sobre a pena de talião e sobre a perseguição aos inimigos. Ora, há muitos outros preceitos
judiciais na lei antiga, como já se disse (q. 104, a. 4; q. 105). Logo, neste ponto, ordenou
insuficientemente a vida do homem.

3. Demais. — A lei antiga, além dos preceitos morais e judiciais, continha certos outros, cerimoniais,
sobre os quais o Senhor nada ordenou. Logo, ordenou insuficientemente.

4. Demais. — É da boa disposição interna da mente não fazer o homem nenhuma boa obra visando
qualquer fim temporal. Ora, há muitos outros bens temporais que não o aplauso humano; pois, há
muitas outras obras boas além do jejum, da esmola e da oração. Logo, o Senhor ensinou
inconvenientemente quando, só em relação a essas três obras, mandou evitar a glória do aplauso
humano, e nada ensinou sobre os demais bens terrenos.

5. Demais. — É naturalmente ínsito no homem procurar as coisas necessárias à vida, e isso lhe é comum
com os irracionais. Por onde, diz a Escritura (Pr 6, 6-8): Vai ter, ó preguiçoso, com a formiga, e considera
os seus caminhos; a qual, não tendo condutor, nem mestre, faz o seu provimento no estio, e ajunta no
tempo da ceifa de que se sustentar. Ora, todo preceito estabelecido contra a inclinação da natureza é
iníquo, por ser contra a lei natural. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente ao homem a busca do
alimento e do vestuário.

6. Demais. — Não se deve proibir nenhum ato virtuoso. Ora, o juízo é um ato de justiça, conforme a
Escritura (Sl 18, 15): Até que a justiça venha a fazer juízo. Logo, o Senhor proibiu inconvenientemente o
juízo. E portanto, a lei nova ordenou insuficientemente os atos internos.

Mas, em contrário, Agostinho diz: Devemos considerar que, quando o Senhor disse: — Quem ouve estas
minhas palavras — significa com isso suficientemente que o seu sermão contem plenamente todos os
preceitos que regulam a vida cristã.

SOLUÇÃO. — Como resulta do lugar aduzido de Agostinho, o sermão que o Senhor fez na montanha
contém toda a regulamentação da vida cristã, e ordena perfeitamente os atos humanos internos. Pois,
depois de declarar o fim da beatitude e de exaltar a dignidade dos Apóstolos, que deviam divulgar a
doutrina evangélica, ordena os atos humanos internos. Primeiro, os do homem para consigo mesmo;
depois, os relativos ao próximo.

Os atos relativos a nós mesmos, ele os ordena de dois modos, conforme aos nossos dois movimentos
internos, que levam aos atos — a vontade de agir e a intenção final. — Por isso, primeiro ordena a
vontade do homem, pelos diversos preceitos da lei, de modo que se ele abstenha, não só das obras
externas más, em si mesmas, mas também das internas e das ocasiões más. — Depois, ordena a
intenção humana, dizendo que, em nossos atos não devemos buscar nem a glória humana, nem as
riquezas mundanas, o que é entesourar na terra.

Em seguida, ordena o movimento interior do homem relativamente ao próximo. Assim, não devemos
julgá-lo temerária, injusta ou presunçosamente. Nem devemos ser de tal modo negligentes que lhe
entreguemos as coisas sagradas, se forem indignos.

E, por último, ensina o modo de cumprir a doutrina evangélica. Que é implorar o auxílio divino; esforçar-
se por entrar pela porta estreita da virtude perfeita; tomar cautela para não se deixar transviar pelos
sedutores. E faz ver que a observação dos mandamentos é necessária à virtude; não bastante só a
confissão da fé, ou obrar milagres, ou só ouvir a doutrina.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — O Senhor completou só os preceitos da lei dos quais os
Escribas e os Fariseus não tinham inteligência reta. E isto se dava, principalmente, sobre três preceitos
do decálogo. — Assim, quanto à proibição do adultério e do homicídio, pensavam que só era proibido o
ato exterior e não, o desejo interior. E isso pensavam mais no concernente ao adultério e ao homicídio,
do que ao furto e ao falso testemunho. Porque o movimento da ira, tendente ao homicídio, e o da
concupiscência, tendente ao adultério, são considerados como de certo modo inerentes à natureza; isso
não se dá com o desejo de furtar ou de proferir falso testemunho. — Deste tinham falsa inteligência,
pensando que o perjúrio é, por certo, pecado; mas que o juramento deve em si mesmo ser desejado e
repetido, porque, segundo lhes parecia, implica reverência a Deus. Por isso, o Senhor mostrou, que não
devemos desejar, como bom, o juramento, mas é melhor falar sem jurar, salvo se houver necessidade.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Sobre os preceitos judiciais os Escribas e os Fariseus erravam de dois modos.
— Primeiro, pensando que eram justos em si mesmos certos preceitos estabelecidos por Moisés, como
permissões. Assim, o repúdio da esposa e receber usuras dos estranhos. Por isso, o Senhor proibiu o
repúdio da mulher (Mt 5, 32) e receber usuras (Lc 6, 35): emprestai sem daí esperardes nada.

De outro modo erravam, pensando que certas práticas que a lei ordenava por justiça, deviam ser feitas
por espírito de vingança, cobiça das coisas temporais ou ódio dos inimigos. E isto em relação a três
preceitos. — Assim, julgavam lícito o desejo da vingança, por causa do preceito sobre a pena de talião;
ora, esse preceito foi dado para se observar à justiça e não para se tirar vingança. E por isso o Senhor,
para evitar a má inteligência dele, ensina que a alma do homem deve estar preparada a sofrer ainda
maiores injúrias, se necessário for. — Pensavam ser lícito a moção da cobiça, por causa dos preceitos
judiciais que ordenavam fosse feita a restituição da coisa furtada, mesmo com algum acréscimo, como
já dissemos (q. 105, a. 2 ad 9). E isso a lei ordenou para fazer observar a justiça e não para dar lugar a
cobiça. Por isso o Senhor ensina que não exijamos nada pela cobiça, mas antes, estejamos prontos a dar
ainda mais se for necessário. — Enfim, tinham como lícito a moção do ódio, por causa do preceito legal
que mandava matar os inimigos; o que a lei instituiu para que se cumprisse a justiça, como já dissemos
(q. 105, a. 3 ad 4), e não para se saciarem os ódios. E, por isso o Senhor ensina a amarmos os inimigos e
estarmos prontos se for necessário, a lhes fazer benefícios. — Assim, no dizer de Agostinho, esses
preceitos visam à preparação da alma.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Os preceitos morais deviam absolutamente permanecer na lei nova, pois em
si mesmos se incluem na essência da virtude. Enquanto que os preceitos judiciais não deviam
necessariamente continuar, do modo pelo qual a lei os determinou, mas foram deixados ao arbítrio
humano, que os determinassem de um ou de outro modo. Portanto, o Senhor nos ordenou
convenientemente em relação a esses dois gêneros de preceitos. — Quanto à observação dos preceitos
cerimoniais, ela desapareceu totalmente, com a aplicação da lei nova. Por isso, em relação a esses
preceitos, o Senhor nada ordenou, no seu ensinamento comum. Ensinou porém noutro ponto, que todo
culto material, determinado na lei antiga, devia ser mudado, na vigência da lei nova. Assim, diz (Jo 4, 21-
23): É chegada a hora em que vós não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém; mas os
verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade.

RESPOSTA À QUARTA. — Todas as coisas do mundo se reduzem a três: as honras, as riquezas, e os


prazeres, conforme a Escritura (1 Jo 2, 16): Tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, que
pertence aos prazeres da carne, e concupiscência dos olhos, que respeita às riquezas, e soberba da
vida, que diz respeito à ambição de glória e honra. Ora, os prazeres supérfluos da carne, a lei não os
prometeu, mas ao contrário, proibiu. Prometeu porém, em troca, uma honra excelsa e a abundância das
riquezas: Se tu ouvires a voz do Senhor teu Deus, Ele te exaltará sobre todas as nações que há na
terra. Isso, quanto à honra. E pouco adiante acrescenta: O Senhor te fará abundante de todos os
bens; quanto às riquezas. Mas essas promessas os judeus as entendiam tão estultamente, que
pensavam se devia servir a Deus por causa delas, como se fossem o fim. — Por onde, para o evitar, o
Senhor mostrou, primeiro, que não devemos praticar obras virtuosas por causa da glória humana. E
ensina serem três as obras a que todas as mais se reduzem. Pois, tudo o que fazemos para refrear as
nossas concupiscências se reduz ao jejum; tudo o que fazemos por amor ao próximo se reduz à esmola;
enfim tudo o que fazemos para o culto de Deus se reduz à oração. E essas três obras ele as considera
especiais, como que sendo as importantes, e pelas quais os homens costumam principalmente buscar a
glória. — Em segundo lugar, ensinou que não devemos por nas riquezas o nosso fim, quando
disse:Não queirais entesourar para vós tesouros na terra.

RESPOSTA À QUINTA. — O Senhor não proibiu os cuidados necessários, mas só os desordenados. Ora,
há quatro cuidados desordenados, que devemos evitar, relativamente aos bens temporais. — Primeiro,
não constituirmos neles o nosso fim; nem servirmos a Deus, por causa das necessidades de comer e
vestir. Por isso diz: Não queirais entesourar para vós, etc. — Segundo, não devemos buscar as coisas
temporais, desesperando do auxílio divino. Por isso o Senhor diz: O vosso Pai sabe que tendes
necessidade de todas elas. — Terceiro, os nossos cuidados não hão de ser presunçosos, de modo a
confiarmos em nós mesmos, pensando que com o nosso próprio esforço, sem o auxílio divino,
poderemos obter o necessário à vida. O que o Senhor nega, dizendo que o homem não pode
acrescentar nada à sua estatura. — Quarto, o homem se inquieta com o tempo das suas necessidades,
preocupando-se, no presente, com o que só respeita ao futuro. E por isso, o Senhor diz: Não andeis
inquietos pelo dia de amanhã.

RESPOSTA À SEXTA. — O senhor não proíbe o juízo da justiça, sem o qual as coisas santas não podem
ser negadas aos indignos; mas, o juízo desordenado, como dissemos.

Art. 4 — Se a lei nova propôs convenientemente conselhos certos e


determinados.
O quarto discute-se assim. — Parece que a lei nova ordenou inconvenientemente conselhos certos e
determinados.

1. — Pois, os conselhos se tomam sobre os meios convenientes à consecução do fim, como já dissemos,
quando tratamos do conselho (q. 14, a. 2). Ora, nem todos servem para todos. Logo, não se devem
propor a todos conselhos certos e determinados.

2. Demais. — Conselhos se tomam sobre o melhor bem. Ora, não há graus determinados do melhor
bem. Logo, não se devem dar conselhos certos e determinados.

3. Demais. — Os conselhos dizem respeito à perfeição da vida. Ora, também a essa perfeição respeita a
obediência. Logo, o Evangelho deixou de dar, inconvenientemente, conselho sobre ela.

4. Demais. — Muito do concernente à perfeição da vida esta incluído nos preceitos. Assim isto (Mt 5,
44):Amai a vossos inimigos, e também os preceitos que o senhor deu aos Apóstolos. Logo, a lei nova deu
conselhos inconvenientemente, quer pelos não ter dado todos, quer pelos não ter distinguido dos
preceitos.

Mas, em contrário. — Os conselhos do amigo sábio são de grande utilidade, conforme a Escritura (Pr 27,
9):Com perfume e variedade de cheiros se deleita o coração, e com os bons conselhos do amigo se
banha a alma em doçura. Ora, Cristo é sábio e amigo por excelência. Logo, os seus conselhos são os de
máxima utilidade e conveniência.

SOLUÇÃO. — A diferença entre o preceito e o conselho está em, o primeiro implicar necessidade ao
passo que o segundo depende da vontade daquele a quem é dado. E por isso, convenientemente, a lei
nova, que é a lei da liberdade, acrescentou aos preceitos os conselhos; o que não o fez a lei antiga, lei da
escravidão. Logo e forçosamente, os preceitos da lei nova devem ser entendidos como relativos ao
necessário à consecução do fim, que é a eterna beatitude, na qual ela nos introduz diretamente. Ao
passo que os conselhos hão de versar sobre aquilo pelo que o homem pode, melhor e mais
expeditamente, conseguir o referido fim.

Ora, o homem está colocado entre os bens deste mundo e os espirituais, nos quais consiste a beatitude
eterna. E de modo que, quanto mais se apega a aqueles, tanto mais se afasta destes, e inversamente.
Por onde, quem se apega totalmente as coisas deste mundo, constituindo nelas o seu fim e
considerando-as como a razão e a regra dos seus atos, aparta-se totalmente dos bens espirituais. Ora,
essa desordem é que os preceitos fazemdesaparecer. Desprezar porém totalmente as coisas do mundo,
não é necessário para o homem alcançar o fim referido. Pois ele pode chegar à beatitude eterna usando
das coisas deste mundo, sem por nelas o seu fim. A este porém chegará mais facilmente, desprezando
totalmente as coisas. Por isso o Evangelho dá conselhos sobre esse ponto.

Ora, os bens deste mundo, que servem ao uso da vida humana, são das três categorias seguintes. As
riquezas dos bens externos, buscadas pela concupiscência dos olhos; os prazeres da carne, pela
concupiscência da carne; e as honras, pela soberba da vida, como se vê na Escritura (1 Jo 2, 16). Ora, é
próprio dos conselhos evangélicos fazer desapegar-nos dessas três espécies de bens, totalmente, na
medida do possível. E nesse tríplice desapego se funda toda a religião, que busca o estado de perfeição.
Assim, as riquezas são desprezadas pela pobreza; os prazeres da carne, pela castidade perpétua; a
soberba da vida, pela submissão da obediência. Mas pelos conselhos propostos, em absoluto, é que
observamos, em si mesmas, essas três disposições de vida. Ao passo que por um conselho particular,
aplicado a um caso dado, observamos cada uma das disposições referidas. Assim, quem dá esmola a um
pobre, sem estar obrigado a isso, segue o conselho, em particular. Também segue o conselho, em
particular, quem em tempo determinado se abstém dos prazeres da carne, para se vacar a oração.
Semelhantemente, quem não cede à sua vontade, num caso particular, em que podia fazê-lo
licitamente, segue em tal caso o conselho. Assim quando, sem estar obrigado, beneficia aos seus
inimigos; ou quando perdoa a ofensa de quem podia justamente vingar-se. Assim todos os conselhos
particulares se reduzem aos três conselhos gerais e perfeitos supra-referidos.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. — Os conselhos referidos, em si mesmos, são aplicáveis a


todos. Mas pode se dar não o sejam a alguém, sem disposição para eles, por não ter o afeto para os
mesmos inclinado. Por isso o Senhor, quando propõe os conselhos evangélicos, sempre faz menção da
inclinação do homem a observá-los. Assim ao dar conselho da pobreza perpétua, diz antes (Mt 19,
21): Se queres ser perfeito; acrescentando depois: vai e vende o que tens. Semelhantemente, ao dar o
conselho da castidade perpétua, diz (Mt 19, 12): Há uns castrados, que a si mesmos se castraram por
amor do reino dos céus; mas logo acrescenta: O que é capaz de compreender isto compreenda-o. Do
mesmo modo o Apóstolo, tendo dado o conselho da virgindade, diz (1 Cor 7, 35): Digo-vos isto para
proveito vosso; não para vos ilaquear.

RESPOSTA À SEGUNDA. — Os bens melhores, particulares, são indeterminados, em cada caso dado.
Mas os que o são em geral, simples e absolutamente falando, são determinados. Ora, a esses se
reduzem todos os bens particulares referidos, como já se disse.

RESPOSTA À TERCEIRA. — Entende-se que o Senhor também deu o conselho de obediência quando
disse: E siga-me. E nós o seguimos, não só imitando-lhe as obras, mas também obedecendo-lhe aos
mandamentos, conforme aquilo (Jo 10, 27): As minhas ovelhas ouvem a minha voz; e eu conheço-as e
elas me seguem.

RESPOSTA À QUARTA. — O que o Senhor disse sobre o verdadeiro amor aos inimigos e disposições
semelhantes, se se referirem à preparação da alma, é necessário para a salvação. E então o homem
deve estar preparado a fazer bem aos inimigos e a agir sempre nesse sentido, quando a necessidade o
exigir. Por isso estabeleceram-se preceitos para o regular. Mas é apenas por um conselho particular,
como já dissemos, que estaremos preparados a fazê-lo, pronta e atualmente, aos inimigos, quando não
ocorrer especial necessidade. E quanto aos preceitos que se lêem noutro lugar do Evangelho, eles
constituíam disciplinas próprias do tempo, ou são certas concessões, como dissemos (q. 2, ad 3). Por
isso não são dados como conselhos.

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