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HISTÓRIA DA QUÍMICA

Paulo Alves Porto


No presente artigo pretende-se mostrar como o conhecimento de ciências em geral (química e biologia em
particular), e de sua história, pode contribuir para a fruição estética de um poema.


Augusto dos Anjos, ciência no final do século XIX, interdisciplinaridade

A
interdisciplinaridade no ensino (Unicamp 1997, 1ª fase, questão 3) - pela proposição de uma nova nomen-
tem sido recomendada nas embora a questão envolvesse apenas clatura química, por ter-se utilizado de
mais recentes reformas edu- o significado atual dos termos técnicos uma definição operacional para “ele-
cacionais - e parece ser um dos ideais citados por Augusto dos Anjos, e não mento químico” - fez também impor-
mais difíceis de serem colocados em o contexto que levou o autor a utilizá- tantes contribuições para a chamada
prática. Este artigo pretende ser uma los. “química orgânica” (então considerada
30 pequena contribuição para a integra- a “química dos seres vivos”). Sistema-
ção entre diferentes disciplinas. O pon- Vida e morte na ciência do final do tizando e organizando fatos conheci-
to de partida é a obra de um importante século 19 dos havia muito tempo, Lavoisier
poeta brasileiro - Augusto dos Anjos. Antoine Laurent Lavoisier (1743- observou que as substâncias proveni-
Um soneto desse autor, aliás, já serviu 1794), considerado um dos fundado- entes dos reinos animal e vegetal sem-
como pretexto para uma questão de res da química moderna - por seus tra- pre continham os elementos carbono
química em recente exame vestibular balhos com grande rigor quantitativo, e hidrogênio, e freqüentemente tam-
bém oxigênio, nitrogênio e fósforo.
Psicologia de um Vencido Lavoisier considerava a química orgâ-
Eu, filho do carbono e do amoníaco, nica como parte integrante da química;
Monstro de escuridão e rutilância, por exemplo, classificava juntos todos
Sofro, desde a epigênese da infância, os ácidos, fossem eles de origem mi-
A influência má dos signos do zodíaco. neral, vegetal ou animal. Outros quími-
cos seus contemporâneos, porém,
Profundissimamente hipocondríaco, preferiam tratar separadamente os
Este ambiente me causa repugnância... compostos inorgânicos e orgânicos.
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia Acreditavam que estes últimos teriam
Que se escapa da boca de um cardíaco. alguma peculiaridade que faria com
que somente organismos vivos pudes-
Já o verme - este operário das ruínas - sem sintetizá-los. Esta crença se pro-
Que o sangue podre das carnificinas longou através do século 19, sendo
Come, e à vida em geral declara guerra, desposada por importantes químicos
do período. Jöns Jacob Berzelius
Anda a espreitar meus olhos para roê-los, (1779-1848), por exemplo, chegou a
E há de deixar-me apenas os cabelos, crer que os compostos orgânicos, ao
Na frialdade inorgânica da terra! contrário dos inorgânicos, não obede-
ceriam à lei das proporções definidas
Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos (1884-1914) (estabelecida por Joseph Louis Proust
Paraíba, 1909 (1754-1826) no começo do século).
Leopold Gmelin (1788-1853) afirmava
Esta seção contempla a história da química como parte da história da ciência, buscando ressaltar como o conhecimento que os compostos orgânicos requere-
científico é construído. Neste número a seção apresenta dois artigos. riam um animal ou planta para sinteti-

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zá-los a partir da matéria bruta, en- vida, a partir das quais organismos su- século passado. Acreditava Spencer
quanto os compostos inorgânicos po- cessivamente mais complexos teriam que a filosofia deveria combinar, sob
deriam ser sintetizados pelo homem evoluído. Haeckel aderiu ao darwinis- um ponto de vista comum, os resul-
diretamente a partir dos elementos que mo, embora o tenha interpretado de tados obtidos por todas as ciências:
os constituem. Essas visões resumem maneira particular, misturando-o com física, química, biologia, e também psi-
a crença vitalista permeando a química radicalismo político (crença cega no cologia e sociologia. A evolução seria
das primeiras déca- progresso, anticlerica- o ponto de contato entre todas as ciên-
das do século 19. Herbert Spencer, um dos lismo) e com a filosofia cias. Spencer desenvolve um conceito
Por outro lado, mais importantes natural romântica de de evolução que abrange todas as
apesar das dificul- representantes do Goethe. Em sua obra formas de existência, não apenas os
dades em torno da pensamento evolucionista Generelle Morphologie, organismos biológicos:
síntese de compos- do final do século passado, de 1866, Haeckel bus-
acreditava que a filosofia Evolução é uma integração de
tos orgânicos, sua ca explicações causais
deveria combinar, sob um matéria e concomitante dissipa-
análise foi uma das mecânicas para as for-
ponto de vista comum, os ção de movimento, durante a
áreas que experi- mas e os fenômenos
resultados obtidos por qual a matéria passa de uma ho-
mentou maior desen- da vida. Segundo ele,
todas as ciências: física, mogeneidade indefinida e inco-
volvimento ao longo isto possibilitaria uma
química, biologia, e erente para uma heterogenei-
do século 19. O co- explicação “monista”
também psicologia e dade definida e coerente; e
nhecimento dos quí- da Natureza sobre ba-
sociologia durante a qual o movimento re-
micos acerca dos ses filosóficas. Assim,
tido sofre uma transformação
produtos da decom- ele afirma que não ha-
paralela3.
posição dos tecidos vivos, em meados veria qualquer diferença essencial en-
do século 19, pode ser resumido pelas tre o que é animado e o que é inanima- Spencer partiu de teorias de biólo-
palavras de Friedrich Wöhler (1800- do. Após comparar detalhadamente os gos acerca da evolução, como a “teo-
1882) a outro químico, Justus von cristais e as células vivas, Haeckel con- ria da epigênese” de Caspar Frederick
Liebig (1803-1873), em carta de 1843: clui que ambos são semelhantes em Wolff (1733-1794), por exemplo. Wolff, 31
todos os aspectos relativos à compo- estudando células ao microscópio,
Imagine-se no ano de 1900,
sição química, crescimento e individua- observou a formação progressiva e a
quando nós dois estaremos dis-
lidade. Em Welträtsel, de 1899, Haeckel diferenciação de diferentes órgãos a
solvidos em ácido carbônico1,
defende que a única causa do movi- partir do que ele chamava de “gér-
água e amônia, e nossas cinzas
mento vital são as propriedades quími- men”, aparentemente homogêneo. A
- talvez - serão parte dos ossos
cas do carbono. As formas mais hipótese alternativa seria a “teoria de
de algum cão que terá espolia-
simples do protoplasma vivo teriam sur- pré-formação”, segundo a qual todos
do nossos túmulos2.
gido de compostos nitrogenados de os organismos já estariam pré-forma-
Esta continuidade - ou antes, unici- carbono, não vivos, por um processo dos no ovo, e a partir de então apenas
dade - da química dos “mundos” orgâ- de geração espontânea. A própria ativi- cresceriam. Esta última teoria é clara-
nico e inorgânico, aliada à crença na dade psíquica não seria mais do que mente incompatível com a doutrina da
possibilidade da geração espontânea, um conjunto de fenô- evolução. Spencer,
e aliada ainda a teorias emergentes no menos dependentes A característica mais todavia, não conce-
século 19 - relativas à evolução das es- de mudanças mate- notável das poesias de beu a evolução como
pécies e seleção natural - permitiram riais no protoplasma. Augusto dos Anjos é seu restrita apenas à bio-
o surgimento de doutrinas monistas Surpreendentemente, conteúdo científico e logia: procurou gene-
materialistas relacionadas à ciência. porém, ainda em Ge- filosófico. Isto não significa ralizá-la para todos
Um exemplo de cientista que desen- nerelle Morphologie, que Augusto dos Anjos os fenômenos. Enxer-
volveu esta postura filosófica foi Ernst Haeckel tende para um estivesse preocupado em gou evolução nos
H. Haeckel (1834-1919). monismo panteísta, ao fazer, investigar ou mesmo corpos celestes; na
Haeckel estudou diversos tipos de afirmar que “matéria divulgar ciência e filosofia formação geológica
organismos. A forma de vida que mais nenhuma pode ser da Terra (de uma bola
lhe despertou interesse foram os orga- concebida sem espírito, e nenhum es- incandescente e homogênea até o as-
nismos unicelulares que não possuem pírito sem matéria”, e ao decretar a pecto atual); na formação de espécies
núcleo - classificados na ordem mo- unidade entre Deus e a Natureza. animais cada vez mais complexas a
nera. O núcleo celular é uma organela O darwinismo então em voga teve partir de formas primitivas; nas próprias
essencial às células de quaisquer muitos outros ferrenhos defensores; estruturas sociais.
outros seres vivos, pois sem ele as cé- entre eles, Herbert Spencer (1820-
lulas ficam incapazes de se reproduzir. 1903). Embora não fosse um especia-
Psicologia de um Vencido: cruzamento
Devido às características da estrutura lista em biologia, Spencer foi um dos dos planos científico e poético
das moneras, Haeckel defendia que mais importantes representantes do A característica mais notável das
elas seriam as mais simples formas de pensamento evolucionista do final do poesias de Augusto dos Anjos é seu

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conteúdo científico e filosófico. Isto não após a decomposição de sua carne
significa que Augusto dos Anjos esti- são apenas cabelos na terra fria. Ape-
vesse preocupado em fazer, investigar sar de estarem de acordo quanto a es-
ou mesmo divulgar ciência e filosofia. se ponto, os enfoques de um e de
Sua peculiar visão de mundo, sua bus- outro poeta são bem diferentes. Lucré-
ca interior, é que foram encontrar no cio expõe sua visão da morte para
materialismo, no monismo, no evolu- mostrar que não devemos temê-la, que
cionismo, os conceitos e o vocabulário não há motivo para o homem sofrer
adequados para se expressar. Obser- com a incerteza acerca do futuro de
va-se em sua poesia a incorporação seu espírito. Diz ele: “...o espírito nasce
das idéias, principal- juntamente com o cor-
mente, de dois dos O que Augusto dos Anjos po e cresce com ele e
principais divulga- faz não é uma ‘tradução’ envelhece ao mesmo
dores do evolucionis- das idéias de Haeckel e tempo” 5 . O espírito
mo no final do século Spencer para a forma de não poderá lamentar a
19: Haeckel e Spen- versos. O poeta buscava ausência de situações
cer (que chegam a ser expressar sua angústia felizes passadas, ou a
citados nominalmente diante da vida ausência de pessoas
em alguns poemas4). queridas, ou a não
Recuando no tempo, fruição plena da vida -
essa característica de cantar em versos simplesmente porque o espírito se
uma filosofia materialista nos permite extingue junto com o corpo, e nada
estabelecer, sob alguns aspectos, um resta que possa sofrer ou lamentar-se.
paralelo entre Lucrécio e Augusto dos O que transparece no poema de Augusto de Carvalho Rodrigues
Anjos. Augusto dos Anjos, entretanto, é uma dos Anjos (1884-1914)

32 Tito Lucrécio Caro (96-55 a.C.), em postura muito mais pessimista e an-
seu De rerum natura, cantou em forma gustiada. O poeta paraibano destaca gens grotescas, horríveis, repugnantes
de poesia alguns aspectos da filosofia o sofrimento do homem ainda em vida, - que chocam o leitor. Na filosofia evo-
de Epicuro (341-270 a.C.). Não se trata como agrupamento de matéria à lucionista Augusto dos Anjos encon-
de uma exposição rigorosa do sistema mercê de forças sobre as quais ele não trou uma visão de mundo que entrou
epicurista, visto que sequer atinge seu tem controle. A morte, sendo o fim de em ressonância com seu próprio pes-
âmago, que é a teoria do prazer. tudo, desfaz qualquer esperança de simismo: uma doutrina que concebia
Lucrécio busca enaltecer a figura de consolação e alívio em outro plano de a vida como originária de uma com-
Epicuro, e destaca algumas de suas existência. Lucrécio convida a desfrutar binação de moléculas por geração es-
idéias. Aqui, interessa-nos observar da vida, sem preocupação com a pontânea; que via o homem como um
que, buscando respostas sobre a natu- imortalidade que não existe; para estágio na evolução da vida, a partir
reza da alma e da morte, Lucrécio Augusto dos Anjos só há desgosto em de microrganismos simples e pas-
também descreve uma “cosmologia” vida, que se há de encerrar em sando por plantas e animais sucessi-
materialista em que a morte é o fim de podridão. vamente mais complexos. Assim, a filo-
tudo. Conforme dissemos, o que Augus- sofia e a ciência evolucionista deram
Para Lucrécio, como para Epicuro, to dos Anjos faz não é uma ‘tradução’ a forma intelectual e os signos lingüís-
a criação do universo não teria sido das idéias de Haeckel e Spencer para ticos que Augusto dos Anjos precisava
obra dos deuses. Tudo o que existe - a forma de versos. O para expressar seus
fosse o céu, a Terra, as plantas, os ani- poeta buscava ex- Os poemas de Augusto dos sentimentos. O poeta
mais, o homem - teria origem no movi- pressar sua angústia Anjos são recheados de acumulou conheci-
mento de átomos que não teriam início diante da vida. Seu palavras incompreensíveis mentos num nível cog-
nem fim. Seria esse mesmo movimento tema não era o amor: para a maioria dos leitores, nitivo consciente - o da
de partículas minúsculas que produ- em seu livro Eu, amor e assim adquirem uma aura ciência - e foi capaz de
ziria todos os fenômenos da Natureza, e erotismo são temas de mistério, de transmutá-los para um
psicológicos e sociais. Segue-se - des- praticamente ausen- musicalidade quase pura plano diferente, o da
se absoluto materialismo que rejeita a tes; ou então apare- expressão lírica, do
existência de qualquer poder sobre- cem para serem repelidos pelo poeta. efeito estético, da emoção.
natural a influir sobre a vida humana - Tampouco era a busca de Augusto dos Assim, o uso que Augusto dos An-
que a morte significaria apenas a dis- Anjos pela divindade, ou pela transcen- jos faz de termos técnicos familiares
persão dos átomos constituintes de um dência da alma. Os sentimentos que ao cientista, mas estranhos a outros
ser. Essa visão da morte encontra eco ele expressa são o pessimismo, uma poetas - ou mesmo ao leitor comum -,
séculos depois em Psicologia de um visão materialista e perplexa da vida. pode ser enfocado sob várias facetas.
Vencido, onde o que resta do homem Seus poemas são construídos de ima- Um aspecto que chama a atenção é a

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sonoridade destas palavras. Elas con- nitrogênio - constituinte essencial das também por ser um dos gases que
ferem aos poemas musicalidade e proteínas e dos ácidos nucléicos. Na emanam dos corpos em putrefação.
ritmo inusitados, por sua própria foné- década de 1920, o cientista russo A.I. E, no entanto, em seus átomos reside
tica e estranheza. Estas características Oparin viria a propor que o amoníaco parte do segredo da vida.
são realçadas quando participam da e outros gases (metano, vapor de O soneto principia descrevendo as
rima; em Psicologia de um Vencido, água, hidrogênio), expostos à energia origens da vida - filho do carbono e do
Augusto dos Anjos produz surpreen- de relâmpagos ou de raios ultravioletas amoníaco - e termina descrevendo
dente rima com as palavras amoníaco provenientes do sol, teriam reagido na qual a destinação final do ser humano
/ zodíaco / hipocondríaco / cardíaco primitiva atmosfera terrestre para - restos lançados na frialdade inorgâ-
Além disso, empresta da ciência as formar aminoácidos e outros compos- nica da terra. O poema se estrutura,
palavras carbono, epigênese e inorgâ- tos precursores da pois, numa forma cícli-
nica. Há críticos que apontam o voca- matéria viva. Quimi- Psicologia de um Vencido ca: o homem provém
bulário ‘difícil’ de Augusto dos Anjos camente falando, é um excelente exemplo do mundo inorgânico e
como um dos motivos para sua popu- portanto, era justo da rara habilidade com a ele retorna. É o pró-
laridade. São poemas recheados de atribuir ao carbono e que Augusto dos Anjos foi prio ciclo da vida e da
palavras incompreensíveis para a ao amoníaco a “pa- capaz de transmutar morte retratado no so-
maioria dos leitores, e assim adquirem ternidade”, não só ciência em expressão neto. O que acontece
uma aura de mistério, de musicalidade do homem, mas de poética de permeio? Dor, sofri-
quase pura (porque destituídas de todos os seres vivos. mento, e a presença
significado) e - por conseqüência - de Dos quatro elementos mais abundan- constante e ameaçadora da morte
encantamento. tes na matéria viva, Augusto dos Anjos inevitável. Augusto dos Anjos se clas-
Podemos, então, imaginar diferen- só não faz referência, neste poema, ao sifica como um ‘monstro’ no segundo
tes níveis de leituras para os poemas oxigênio - mas o que se espera aqui verso; mas um monstro de escuridão
de Augusto dos Anjos, e para a Psico- não é, evidentemente, o rigor de um e rutilância. Neste paradoxo de claro-
logia de um Vencido em particular. Um bioquímico. O que se deve ressaltar é escuro caracteriza-se o ser humano,
leitor pouco versado em ciências po- o extraordinário talento do poeta em que guarda dentro de si o bem e o mal,
resumir a origem química da vida em o anjo e o demônio simultaneamente. 33
derá não entender muito bem porque
o poeta se declara filho do carbono e apenas um verso. Essa bipolaridade que atormentava
do amoníaco; nem por isso deixará de Além disso, o verso retrata a origem Augusto dos Anjos foi manifestada
se impressionar com a sonoridade da da vida em seu absoluto materialismo. também em outros poemas, como em
palavra amoníaco, e com suas rimas Augusto dos Anjos poderia falar do ho- Vítima do Dualismo:
com zodíaco, etc. Este leitor também mem como amontoado de carne, os- Psique biforme, o Céu e o Inferno
não deverá ter dificuldade em apreen- sos, sangue - entidades que por si sós absorvo ....
der o tom pessimista do soneto, e a não são vivas. Mas esses conceitos Criação a um tempo escura e cor-
visão materialista em que a morte se são ainda portadores de uma carga de-rosa.
resume a ter o corpo roído pelos ver- vital muito forte, e talvez ainda lhes pos- Em outro soneto, Contrastes, o
mes - conforme os dois tercetos dei- samos atribuir algum valor espiritual ou mesmo tema:
xam bastante claro. Por outro lado, um anímico. Poderia falar de proteínas ou O Amor e a Paz, o Ódio e a
leitor que conheça um pouco de quí- carboidratos, mas ainda assim esses Carnificina,
mica e de biologia fará ainda outras termos estariam muito associados a O que o homem ama e o que o
leituras. Este leitor verá resumido já no um organismo vivo “em funcionamen- homem abomina,
primeiro verso, de maneira magistral, to”. Ao falar, entretanto, em carbono e
Tudo convém para o homem ser
o materialismo de Augusto dos Anjos. amoníaco, Augusto dos Anjos desce
completo6.
O carbono é, efeti- ao limite inferior da mate-
‘Eu, filho do carbono rialidade biológica. Pen- Esse homem dividido é um prisio-
vamente, o princi-
pal elemento cons- e do amoníaco’ sando em termos dos neiro das contingências do mundo; nos
tituinte das molé- átomos (carbono) e mo- versos seguintes, Augusto dos Anjos
Com apenas uma frase o léculas (amoníaco) que descreve seu implacável destino. A
culas dos organis-
talentoso poeta pôde são estudados pela quí- menção à influência má dos signos do
mos vivos. Graças
resumir a origem química mica, estaremos numa zodíaco poderia ser interpretada como
à capacidade dos
átomos de carbo- da vida... dimensão onde não exis- alusão supersticiosa do poeta, que
no formarem ca- te qualquer resquício de estaria manifestando sua crença num
deias é que são possíveis as grandes alma ou de espírito. Não há nada que poder sobrenatural das estrelas. Acre-
moléculas de carboidratos, proteínas, lembre um espírito num monte de car- ditamos, porém, que o poeta está meta-
lipídios, ácidos nucléicos,... que cons- vão ou grafita (formas mais comuns de forizando seu determinismo. Ou seja,
tituem as células. O amoníaco é um carbono elementar). Como enxergar desde sua formação, o homem teria já
composto dos elementos hidrogênio - vida no malcheiroso e sufocante gás seu destino implacavelmente traçado,
companheiro fiel do carbono na estru- amoníaco? Antes o associaríamos ao como se isso estivesse escrito nas
tura de qualquer cadeia carbônica - e fim de toda vida, por ser tóxico - e estrelas. A terrível sina do poeta é des-

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crita como sofrimento físico, um mal- no ciclo natural dos átomos. O último excelente exemplo da rara habilidade
estar semelhante ao de um doente; mas terceto retrata a inexorabilidade da com que Augusto dos Anjos foi capaz
trata-se de uma repugnância ao próprio morte: o verme há de deixar-me apenas de transmutar ciência em expressão
mundo, decorrente da consciência acer- os cabelos / Na frialdade inorgânica da poética.
ca da miserável condição humana. terra! Não se fala em alma ou espírito
Paulo Alves Porto (palporto@iqsc.sc.usp.br), bacharel
Os vermes representam a iminência imortal, não há transcendência. Nada e licenciado em química pela USP, mestre e doutor
resta após a morte senão cabelos, em comunicação e semiótica pela PUC-SP na área
e a onipresença da morte. A eles cabe
alimento de vermes - átomos, enfim. de história da ciência, é docente do Instituto de
fechar o ciclo da Natureza, fazendo Química de São Carlos da USP.
Psicologia de um Vencido é um
com que a matéria humana retorne às
formas mais simples da matéria inor-
gânica. Em De rerum natura, Lucrécio Notas e referências bibliográficas 190 e 126.
afirmou que a alma residente no cor- 7. LUCRÉCIO CARO, op. cit. (nota v),
1. Isto é, o dióxido de carbono - CO2 - livro III, versos 720-724.
po do homem, após a morte, não so- dos químicos de hoje.
brevive: subdivide-se em outras 2. Apud IHDE, A. J. The Development Para saber mais
pequenas almas que animarão os ver- of modern chemistry. Nova Iorque: Dover, ANJOS, A. dos. Eu e outras poesias, 40ª
mes. Se a alma abandona o corpo no 1984. p. 181. edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
momento da morte, indaga Lucrécio, 3. Apud MAYR, E. The growth of biologi- leira, 1995.
“...donde vem que uma tão grande cal thought, p. 386. BROCK, W.H. The Norton history of
4. Vide os poemas “Agonia de um filó- chemistry. Nova Iorque: Norton, 1993.
abundância de animais sem ossos e
sofo”, “Mater originalis” e “Os doentes - LUCRÉCIO CARO, T. Da natureza. Trad.
sem sangue se agite por entre os
I”, in: Eu e outras poesias, 40ª ed. p. 81, de A. da Silva. In: Os pensadores. São
membros tumefactos?”7 Augusto dos 101, 106. Paulo: Editora Abril, 1973. v. 5.
Anjos reinterpreta o tema, colocando 5. LUCRÉCIO CARO, T. Da natureza, MAYR, E. The growth of biological
o verme como operário das ruínas, à livro III, versos 445 - 446. thought. Cambridge: The Belknap Press,
espera do momento em que intervirá 6. ANJOS, A. dos, op. cit. (nota iv), p. 1982.
34

Resenha

(Re)visitando a escola e seu ensino de tória da ciência é produtora de alfabe- No primeiro capítulo, cinco ícones
ciências tização científica. Os três grandes capí- da filosofia moderna (Descartes, Ba-
tulos do livro são independentes nas con, Hume, Kant e Comte) se fazem
É muito grato para Química Nova
suas propostas e nas possibilidades presentes em uma muito bem apanha-
na Escola convidar para uma visitação
de leitura. Mas são muito interconec- da análise-síntese. No segundo capí-
à escola e ao seu ensino de ciências
tados, especialmente no quanto os tulo, aflora a sólida afiliação do Renato
conduzidos por um texto denso mas
dois primeiros preparam o terceiro, que a Bachelard, onde há quase um aplai-
entusiástico. Nosso condutor nesta
visita é Renato José de Oliveira, já co- aflora quase como um gran finale - até namento dos obstáculos bachelardea-
nhecido das leitoras e dos leitores des- não tão feliz - para olhar a Escola no nos. No capítulo 3, chegamos à Escola
ta revista, professor do Departamento mundo de hoje. conduzidos pelas análises críticas de
de Fundamentos da Educação da Fa- Renato, quer o tenhamos como o filó-
culdade de Educação da UFRJ. Quem sofo professor ou o professor filósofo.
o vê escrevendo, lecionando, pesqui- Mesmo sem se pretender um historia-
sando e envolvido com temas como dor da educação, o autor olha a edu-
Ética e humanização do homem não cação que se fazia 22 séculos antes
imagina que este filósofo seja licen- do presente para chegar àquilo que é
ciado em química e teve uma profícua o ensino de ciências hoje no Brasil.
trajetória como professor de química Acreditamos que A escola e o ensino
no ensino médio. de ciências contribua para mais fecun-
Aventuro-me em afirmar que em A das transformações na vida das mu-
escola e o ensino de ciências Renato lheres e dos homens agora e nos tem-
volta a ser um professor de ciências, pos que se anunciam com tantas mo-
pois sem deixar de irrigar o texto com dificações para a Escola.
aquilo que é próprio do filosofar - a per- (Attico Chassot - UNISINOS)
manente crítica -, temos um texto enri- A escola e o ensino de ciências.
quecido com a experiência do fazer. Renato José de Oliveira. São Leopol-
Aflora ainda no livro uma continuada do: Editora da UNISINOS, 2000. 139
preocupação de mostrar quanto a his- p. ISBN 85-7431-041-7.

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Augusto dos Anjos: ciência e poesia N° 11, MAIO 2000

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