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20/03/2018 Diferentes formas de ler.

Márcia Abreu

Diferentes formas de ler1

Márcia Abreu2

Até há alguns anos atrás não se imaginava que as formas de ler pudessem ter se alterado desde que o homem
inventou maneiras de registrar conteúdos por escrito e formas de decifrá-los. Imaginava-se que a leitura
sempre se fizera como supomos que ela hoje se faz, em silêncio e solitariamente, de modo a favorecer a
concentração e o recolhimento. Supunha-se que, em todas as épocas, ler implicava pensar sobre textos e
interpretá-los, exigindo habilidades superiores à capacidade para decifrar os sinais gráficos da escrita.
Acreditava-se que o contato com os livros foi sempre valorizado por favorecer o espírito crítico, tornando o
leitor uma pessoa melhor por meio do contato com experiências e idéias registradas por escrito.

Por avaliarmos positivamente essa experiência, pensamos que se devem ler muitos e variados livros. Dentre
todas as obras disponíveis, temos especial predileção pela literatura, no interior da qual ocupa espaço
importante a ficção em prosa. Sobretudo quando se trata de estudantes, julgamos essencial em sua formação
a leitura dos clássicos universais e dos melhores autores nacionais.

Essas idéias, resumidamente apresentadas, correspondem, em linhas gerais, ao que muitos pensam sobre
leitura e que alguns tomam como fundamento de sua prática como professores ou como fomentadores de
leitura.

Entretanto, nem sempre foi assim. Ao contrário, essas idéias pareceriam disparates completos em outras
épocas. A começar pela leitura em silêncio - que hoje nos parece a coisa mais comum. Certa vez, Santo
Agostinho visitou Santo Ambrósio - quando os dois viviam em Milão mas nenhum deles era ainda santo - e
surpreendeu-se ao encontrá-lo realizando estranha atividade:

"Quando ele lia, seus olhos perscrutavam a página e seu coração buscava o sentido, mas sua voz ficava em
silêncio e sua língua era quieta."3

Para Santo Agostinho parecia prodigioso que se lesse com a língua quieta, pois ler em voz alta era a norma
no século IV d.C., situação que se prolongou até o século XIV, quando muitos nobres ainda dependiam da
oralização das palavras para compreensão de um texto.

Mesmo depois dessa época, quando se generalizou a leitura silenciosa, ler em voz alta era uma forma de
sociabilidade comum. Lia-se em voz alta nos salões, nas sociedades literárias, em casa, nos serões, nos cafés.
Esse tipo de leitura, além de permitir o contato com idéias codificadas em um texto, era forma de
entretenimento e de encontro social. Tão importante era a prática da leitura oral que um manual de leitura do
século XVIII intitulado Petit Cours de Littérature, à l'usage de la jeunesse de l'un et l'autre sexe, escrito pelo
francês Le Texier, definia leitura como :

"A arte de bem ler não é nada além da arte de bem dizer aquilo que está escrito, ou seja, dar às frases que se
tem a pronunciar e às palavras que as compõem a verdadeira expressão de que são suscetíveis. Deste ponto
de vista, pode-se ver a analogia perfeita que existe entre a Arte de bem ler e aquela de bem falar".4

Embora a definição de Le Texier pressuponha a decifração da escritura, enfatiza a destinação oral desta
atividade. No século XVIII e início do XIX, o conceito de leitura parece confundir-se com a fala e a audição,
podendo prescindir da habilidade de decifração dos sinais gráficos de que se compõe a escrita. Se entre
intelectuais o processo de ouvir ler fazia parte das formas de sociabilidade, parecendo coisa comum, qual não
seria o poder de divulgação dos escritos entre os não letrados? Por meio da leitura oral, iletrados também
poderiam entrar em contato com conteúdos registrados por escrito.

Durante a primeira metade do século XIX a leitura oral era uma das formas de mobilização cultural e política
dos meios urbanos e dos operários. Depois disso, numerosas formas de lazer, de sociabilidade e de encontro,
antes mantidas pela leitura em voz alta, tornaram-se cada vez mais restritas. A partir daí as elites passaram a
restringir os usos da oralização dos textos. Lia-se em voz alta nas Igrejas e nos tribunais. Lia-se em voz alta
nas escolas para controlar a qualidade de sua leitura silenciosa - objetivo final da aprendizagem. No passado,
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a leitura tomava parte em um conjunto de práticas culturais que passavam pelo livro: a escuta dos textos, sua
memorização, o reconhecimento, nas letras impressas no papel, do texto repetidas vezes ouvido, sua
recitação para si ou para um grupo.5

É relativamente recente também a idéia de que o bom leitor é o que lê muitos e variados textos. Durante
séculos a quantidade de impressos disponível era pequena, seu preço, elevado, e o livro, muitas vezes,
sacralizado - mesmo que não tratasse de tema religioso. O bom leitor era aquele que lia pouco, relia com
freqüência e meditava muito sobre os escritos. Ler muito poderia ser visto como um problema - até mesmo
para a saúde.

Na segunda metade do século XVIII, o médico suíço Tissot escreveu um livro intitulado A Saúde dos
Homens de Letras em que apresentava os perigos que a leitura oferecia para a saúde. Ele explicava que o
esforço continuado de intelecção de um texto prejudicaria os olhos, o cérebro, os nervos e o estômago:

"Os inconvenientes dos livros frívolos são de fazer perder tempo e fatigar a vista; mas aqueles que, pela força
e ligação das idéias, elevam a alma para fora dela mesma, e a forçam a meditar, usam o espírito e esgotam o
corpo; e quanto mais este prazer for vivo e prolongado, mais as conseqüências serão funestas. [...] O cérebro
que é, se me permitem a comparação, o teatro da guerra, os nervos que dele retiram sua origem, e o
estômago em há muitos nervos bastante sensíveis, são as partes que mais sofrem ordinariamente com o
trabalho excessivo do espírito; mas não há quase nenhuma que não se ressinta se a causa continua a agir
durante muito tempo."6

Todo o organismo parecia sofrer os efeitos da leitura pois ela agiria duplamente sobre ele, forçando
continuamente o espírito ao mesmo tempo que mantinha o corpo em repouso durante longos períodos. Diz o
autor que, em sua prática clínica, encontrou os mais graves distúrbios de saúde, originados da leitura e
escrita. A "intemperança literária" causa perda de apetite, dificuldades digestivas, enfraquecimento geral,
espasmos, convulsões, irritabilidade, atordoamento, taquicardia, podendo conduzir à "privação de todos os
sentidos". A solução para tantos problemas é ler pouco e fazer exercícios. Nada poderia ser mais estranho,
dois séculos atrás, do que nosso desejo atual de tornar a todos leitores e fazê-los ler muitos livros.

Mais bizarro ainda pareceria nosso desejo de fazer com que se leia muita literatura e, máxima temeridade,
que estimulemos a leitura de romances. Eles foram vistos, até o século XIX, como um forte perigo para a
moral, especialmente a das mulheres e moças.

Supunha-se que a leitura de romances levava ao contato com cenas reprováveis, estimulando a identificação
com personagens envolvidos em situações pecaminosas como as mentiras, as paixões ilícitas e os crimes.
Acreditava-se, talvez mais do que nós o façamos, no poder da leitura na determinação de comportamentos:
um leitor de romances certamente desejaria transportar para sua vida real as situações com que travara
contato por meio do texto. Também perigoso era o impulso de imaginar-se no lugar dos personagens
envolvidos em situações criminosas: supor-se no lugar de uma adúltera era quase tão grave quando praticar o
adultério. Mesmo os que resistissem à tentação de aproximar a matéria lida do mundo vivido seriam
prejudicados pois ocupariam tempo precioso com a leitura de material tão pouco elevado, esquecendo-se de
suas obrigações cotidianas.

Considerando os efeitos maléficos advindos do contato com romances, chegou-se a propor, na França, a
aprovação de leis proibindo a criação e edição de romances nacionais e a circulação de importados. Os
europeus não foram os únicos a se preocupar. Um autor mexicano, Manuel Payno7, considerava que o
contato de mulheres e romances deveria ser controlado. Acreditava que um homem culto poderia ler todo
tipo de obra, já as mulheres...

"Há mulheres que sentem tédio só de olhar para um livro - isto é mau - . Há outras que devoram quanta
novela cai em suas mãos - isso é pior - . [...] Uma mulher, que lê indistintamente toda classe de escritos, cai
forçosamente no crime ou no ridículo. De ambos abismos somente a mão de Deus a pode tirar. [...] Mulher
que lê as Ruinas de Volney é temível. A que constantemente tem em sua cesta de costura a Julia de Rousseau
e a Heloisa e Abelardo é desgraçada. Entre a leitura das Ruinas de Volney e a de Julia é preferível a de
novenas."8

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Manuel Payno escreve em meados do século XIX e faz eco à tradição colonial de temor em relação aos
livros. Nem é necessário lembrar que, durante o período colonial, as metrópoles européias sempre tiveram
maior preocupação em proibir leituras e dificultar o acesso aos livros nas Américas do que em estimular a
alfabetização e a circulação dos impressos.
Percebe-se, assim, que as formas de leitura e as concepções sobre o ato de ler variaram bastante ao longo dos
tempos.

Nossa idéia corrente do que seja ler é, em grande medida, tributária de idéias e imagens construídas no final
do século XVIII e ao longo do XIX que foram fortes a ponto de fazer parecer que ler sempre foi aquilo que
mostravam. Se as práticas anteriores podem nos parecer estranhas, situações criadas no XIX nos são bastante
familiares, especialmente aquelas fixadas em pinturas do época9. Nesse período os livros são parte
importante na composição de retratos, indicando principalmente o poder social e a posição intelectual dos
retratados, que, em geral, são homens. Inúmeras são as obras em que senhores bem vestidos posam diante de
uma biblioteca ou estante. Também indicando seu interesse intelectual alguns são vistos lendo jornais, em
suas casas ou em espaços públicos.

Já as mulheres são apresentadas no interior de suas casas, sozinhas ou acompanhadas de familiares e amigos.
Mais raramente, a leitura ocorre em contato com a natureza em um jardim ou praia. Em geral, estão
completamente absortas pelo que lêem, mal dando atenção ao pintor. Se sua leitura foi interrompida elas
parecem ainda meditativas, tomadas pelo livro. Um pouco menos freqüentes são as cenas em que grupos de
mulheres trabalham enquanto uma lê - para si ou para todas.

Esta leitura coletiva é mais comum quando crianças entram em jogo: as mulheres podem ler para elas ou
acompanhar e verificar sua leitura. Crianças lendo sem a supervisão de adultos não aparecem com muita
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constância nas imagens analisadas, mas, quando surgem, o artista compõem um mundo tranqüilo onde
pequenos bem comportados estudam ou se divertem.

Os espaços de leitura são também bastante homogêneos: casas confortáveis, bibliotecas luxuosas; sofás e
poltronas aconchegantes, mesas repletas de livros e papéis; jardins floridos, algum café. Homens, mulheres e
crianças lêem fundamentalmente livros - exceção feita a um ou outro retrato de homem lendo jornal. Mesmo
que na maior parte das vezes não se possa reconhecer as obras lidas não há como confundi-las com panfletos
ou folhas de anúncios.

Há dois modos fundamentais de contato com o escrito: a leitura de instrução, associada aos livros técnicos e
ao universo masculino, e a leitura de entretenimento, vinculada à literatura e ao mundo das mulheres e
crianças.

Esta associação entre leitura e enobrecimento do sujeito foi construída historicamente, tendo recebido forte
impulso com a ascensão da burguesia. Homens e mulheres bem instalados socialmente parecem ter ficado
satisfeitos em associar-se a certos sinais exteriores de sucesso: boas casas, belos vestidos, ambientes
confortáveis, e livros.

Passaram-se os séculos, alterou-se o meio, mudou a tecnologia, mas o imaginário em torno ao ato de ler
permanece.

Isto se percebe claramente em fotos divulgadas na Internet, sobretudo em sites pessoais. Em pesquisa
realizada em duzentas páginas que contêm imagens de leitura, foi possível perceber uma extrema
uniformidade nos modos de representação. A julgar por estas fotos, a leitura contemporânea realiza-se em
casas, bibliotecas públicas ou escolas. Nestes dois últimos espaços, predominam as mulheres que tomam a
leitura como parte de sua atividade profissional: são bibliotecárias sorridentes diante de estantes de livros ou
professoras, também sorridentes, em sala de aula. Nas residências, o local preferido parece ser o sofá; nele
homens e mulheres instalam-se para ler solitariamente ou abraçam-se enquanto olham para um mesmo livro;
nele a família reúne-se para que os adultos leiam para crianças. Quando elas são fotografadas sem a presença
de adultos, espalham-se pelo chão, rodeadas de grandes livros cheios de figuras. Embora alguns leiam
jornais, a maioria tem um livro entre as mãos. Ler parece ser um ato prazeroso, que se realiza em ambientes
confortáveis, tranqüilos e harmônicos.

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Pode-se pensar: mas a leitura é assim mesmo! Talvez não seja. É possível que estes modos e objetos de
leitura não sejam os únicos ou mesmo os mais freqüentes. Provavelmente aparecem com tanta intensidade
apenas porque estas são as práticas socialmente valorizadas. Pessoas que elaboram páginas pessoais na
Internet convidam-nos a exercitar nosso voyerismo: querem que penetremos em sua intimidade, querem
compartilhar seu cotidiano com milhares de desconhecidos. Acreditam que sua vida privada é tão
interessante ou exemplar que vale a pena mostrá-la. E ao construir uma imagem positiva de si recorrem, com
freqüência, aos livros e à leitura.

Pensa-se em situações semelhantes a essas quando se discutem as práticas de leitura a serem promovidas no
mundo contemporâneo. Como elas não são encontradas com freqüência (ou não são encontradas com a
freqüência esperada) difunde-se a idéia de que vivemos uma crise da leitura, de que as pessoas não gostam
dos livros, de que é preciso fazer campanhas para incentivar o "hábito" de ler.

Enquanto buscamos uma leitura ideal, não vemos o que temos diante dos olhos.

Pesquisa recente, intitulada Retrato da Leitura no Brasil, mostrou alguns dados surpreendentes10. A
enquete, realizada entre 10 de dezembro 2000 e 25 de janeiro de 2001, baseou-se em 5.503 entrevistas
realizadas com pessoas acima de 14 anos e com 3 anos de escolaridade, residentes em 46 cidades - o que
corresponde a um universo estimado de 86 milhões de pessoas.

Ao contrário do que normalmente se dizia, os brasileiros têm uma boa relação com os livros: 89% vêem
neles um meio eficaz de transmissão de idéias; 82% acham que é uma importante forma de se atualizar11;
81% acreditam que é importante ler para os filhos; 78% gostam de ler livros; 62% leram ou consultaram
livros em 2000; 30% leram livros nos três meses que antecederam a pesquisa; 20% compraram ao menos 1
livro em 2000; 14% estavam lendo um livro no dia da entrevista12. Embora sejam animadores os dados
sobre a relação dos brasileiros com os livros, eles não são o objeto de leitura mais freqüente. Vejamos como
os entrevistados responderam à pergunta "você costuma ler ... :

Cartazes ou folhetos de
85%
propaganda
Placas de rua 84%
Letreiros de ônibus 78%
Revistas 75%
Jornais 68%
Livros 62%

Se os três primeiros tipos de leitura são muito pragmáticos, é preciso prestar atenção no fato de se preferir
(ou de se ter mais acesso) a revistas e jornais do que a livros.

O perfil do leitor13 mais comum é também inesperado: tem entre 14 e 19 anos de idade (45% do total), tem
nível médio de escolaridade (38% passaram pelo colegial enquanto 29 % ficaram entre a 5a e a 8a séries),
mora na região Sudeste (49%, seguido de 17% de habitantes da região Sul) e não tem muito dinheiro (34 %

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pertence à classe C e 31% à classe B14 ). São os homens os maiores leitores: são 51% de homens contra
49% de mulheres.

E o que eles lêem? Quando perguntados especificamente sobre os gêneros de "leitura habitual", os homens
responderam que lêem "livros religiosos" (35% incluindo a Bíblia), histórias em quadrinhos (34%), livros de
informática (20%), aventura e poesia (cada qual com 19%). Dentre os gêneros de "leitura habitual", as
mulheres também mencionaram os livros religiosos (50% incluindo a Bíblia), mas na seqüência divergiram
dos homens pois lêem livros de culinária (33%), quadrinhos (31%), livros infantis (27%), poesia (26%),
romance (24%), história de amor (21%) e literatura juvenil (19%).

É interessante observar o que essas pessoas pensam encontrar nos livros. Os homens buscam informação:
declararam comprar livros pois desejam "obter conhecimento", "evoluir profissionalmente" e "estar
atualizado" (59%). Já as mulheres esperam encontrar ali "momentos de distração e lazer" (23%) e meios
"evoluir espiritualmente" (20%) - também pensam que um livro pode ser um bom presente (15%). Como se
vê, a imagem construída há séculos de um homem cercado de livros em uma biblioteca e de uma mulher
recostada em um sofá com livro na mão ainda fala fortemente ao nosso tempo, especialmente no caso dos
homens com seu desejo de ter sucesso profissional por meio da leitura.

Resta saber onde as pessoas conseguem os livros que lêem. A pesquisa, encomendada por empresários do
setor livreiro, tinha em mira os compradores de livros, os quais, como mostrou a enquete, são menos
numerosos do que os leitores. Apenas metade do acesso aos livros lidos se faz por meio da compra; outras
possibilidades são o empréstimo em bibliotecas (8%) e o recebimento de livros dados pela escola (4%).

Quem deseja comprar uma obra, ao contrário do que se supõe, não busca necessariamente uma livraria.
Embora 57% dos livros tenham sido comprados em lojas especializadas, foram adquiridos também em
bancas de jornal (8%), igrejas (8%), vendedor porta em porta (7%). É interessante perceber que essa
distribuição altera-se conforme o nível de renda do comprador. Os mais ricos freqüentam livrarias (73%)
enquanto para os estratos mais baixos15 a venda porta a porta é fator importante para o acesso aos livros. Os
mais pobres vão às livrarias em 34% dos casos e, em segundo lugar, recorrem a um vendedor porta em porta
(19%) - depois vão a bancas de jornal (11%) e a igrejas (15%). Os dados mostram também que o papel dos
vendedores porta a porta é inversamente proporcional ao tamanho da cidade: 16% das pessoas de cidades
pequeninas compram livros assim, enquanto apenas 3% das que vivem em metrópoles o fazem. Assim, é
preciso avaliar com cuidado a representatividade de listas de best sellers divulgadas em jornais e revistas
pois ali se consideram apenas os livros (e não revistas, brochuras etc.) vendidos em livrarias (e não nos
outros pontos de venda que se mostraram relevantes para certos segmentos).

Importa enfatizar que a pesquisa mostrou que os brasileiros apreciam os livros e acreditam que eles podem
contribuir para fazer sua vida melhor. Demonstrou também que os brasileiros fazem do mercado editorial um
bom negócio - proporcionando um faturamento global da faixa de R$ 2 bilhões de reais. Revelou, ainda, que
os leitores estão distribuídos pelas diversas classes sociais, inclusive pelas mais baixas.

Embora haja leitores em todas as classes, a distribuição de livros acompanha a distribuição de renda no país:
não há maior quantidade de compradores (e talvez de leitores) pois os livros custam caro e as pessoas
ganham pouco. A leitura associa-se também à escolarização dos sujeitos. Ou seja, quando mais rica e mais
escolarizada for a pessoa mais ela lerá.

Dessa forma, a pesquisa deixou claro que, nos últimos anos, têm sido enfrentados falsos problemas e têm se
deixado de lado questões fundamentais. Não parece necessário fazer campanhas para divulgar a idéia de que
ler é um prazer, de que ler faz bem para as pessoas - pois elas demonstraram que já acreditam nisso. Mas é
preciso criar condições sociais para que o desejo de ler torne-se realidade, enfrentando as violentas
desigualdades sociais brasileiras. Só 7% dos pesquisados encontram-se nos estratos mais abastados da
população e desta parcela vêm 48% dos compradores de livros. 14% dos leitores afirmou não possuir
nenhum livro enquanto 1% possui uma biblioteca com mais de 500 exemplares.

Para fazer deste um país de leitores será necessário possibilitar a toda a população o acesso a escolas de
qualidade. Será necessário também distribuir melhor a renda, não só para que mais gente possa comprar
livros, mas para que mais gente possa ficar na escola por mais tempo.

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O estudo revelou também quais são os obstáculos que as pessoas encontram em sua relação com os livros: 57
% disseram que não compram livros devido ao custo dos impressos e à falta de dinheiro. Como ficou claro
acima, não se trata de um problema com a leitura mas de um problema econômico - não compram livros
assim como não compram carne ou iogurte. Essa é uma situação injusta e que se torna mais aguda pela
precariedade da rede de bibliotecas. Leitores não precisam ser compradores de livros. Deve ser papel do
governo, na área específica da leitura, aumentar o número de bibliotecas públicas no país e ampliar seus
acervos, muito mais do que envolver-se em campanhas publicitárias de estímulo à leitura.

Mas é preciso pensar nos livros que devem compor o acervo dessas bibliotecas. Os dados da pesquisa forçam
uma reflexão sobre a concepção corrente de leitura e de livro. Ficou claro que a literatura não ocupa os
primeiros lugares na preferência dos leitores. Homens e mulheres voltam-se para os livros religiosos e para
os livros técnicos e profissionais. Se pensamos em uma leitura de lazer, os mais procurados são quadrinhos.
Quando as mulheres dizem que gostam de ler poesias, romances e histórias de amor e homens dizem que
gostam de poesia e de aventura é bem provável que não estejam pensando nos clássicos da literatura erudita.
Basta ver as listas dos best sellers para saber de que romances, histórias de amor e de aventura eles estão
falando.

Não parece razoável, portanto, que se continue a pensar apenas nas obras consagradas, nos grandes escritores
e pensadores. É preciso conhecer as leituras correntes, aquelas que pessoas comuns realizam em seu
cotidiano. E sobre isso pouco sabemos.

A Associação de Leitura do Brasil, da qual faço parte, tem buscado questionar concepções correntes de
leitura e chamar a atenção para a diversidade dos objetos e dos modos de ler. Neste sentido, pedimos ao
fotógrafo e professor da UFPr, Ângelo José da Silva, que buscasse os leitores anônimos, pessoas comuns
com que ele se deparasse pelas ruas. O espaço público mostrou abrigar grandes quantidades de leitores, que
se recostavam em árvores de praças, deitavam em gramados de parques, acomodavam-se em bancos de
jardins, realizavam malabarismos equilibrando-se em ônibus, apoiavam-se em colunas de metrô.

Aqui estão algumas delas16.

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Um velho sentado em precário banquinho lê um tablóide; a distância do texto em relação aos seus olhos,
talvez indique problemas de visão e, mesmo assim, ele mantém-se interessado. Homens lêem em um parque.
O mais velho lê um pequeníssimo livro - ou seria uma caderneta de anotações? - quando para o fotógrafo
voltou o olhar, sério ou aborrecido com a interrupção. Talvez preocupado com ladrões que poderiam se
aproveitar do momento de distração com a leitura, coloca seus pertences - sapatos e casaco - sob seu corpo.
O mais jovem parece ser o mais entusiasmado: no rosto um discreto sorriso, os olhos presos no livro de papel
barato. Um homem negro, pobre, lê um livreto. Com seus sacos e alguns embrulhos talvez transporte consigo
todas as suas propriedades - dentre elas um livro, que lê atentamente.

Essas fotos retratam algumas práticas de leitura comuns - mas que desconhecemos. Uma concepção elitista
de cultura as torna invisíveis e faz com que saibamos pouco sobre esses leitores e sobre os objetos de leitura
pelos quais se interessam. A delimitação implícita de um certo conjunto de textos e de determinados modos
de ler como válidos e o desprezo aos demais nos cega para grande parte das leituras realizadas no cotidiano.

Estes leitores anônimos e involuntariamente retratados são diferente em tudo daqueles fixados em telas do
passado anteriormente comentadas. A leitura não parece enobrecê-los; a idéia de conforto não está associada
a sua prática; os objetos que tomam para ler não são os da alta cultura. Lêem sozinhos em um ambiente que é
de todos. Lêem para passar o tempo ou para descansar. Não parecem orgulhosos de sua posição.

Essas imagens mostram que é necessário ampliar os estudos do livro e da leitura para além do círculo restrito
das obras consagradas ou da imagem que nelas se faz de livros e leituras. Nem todos os leitores são gente
branca e bem vestida em casas elegantes e confortáveis.17

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