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OS GNÓSTICOS.

SERGE HUTIN.

TRADUÇÃO DE DANIEL SOTELO.

(Original Francês – P U F, paris, 1958).

NITEROI, Agosto de 2002.

1
ÍNDICE.

INTRODUÇÃO.

PRIMEIRA PARTE. AS ATITUDES GNÓSTICAS.

CAPÍTULO I - O CONHECIMENTO SALVADOR.

CAPÍTULO II - MISÉRIA DO HOMEM.

2.1. O homem, prisioneiro de seu corpo.


2.2. O homem, prisioneiro de sua alma inferior.
2.3. O homem, prisioneiro do mundo.
2.4. O homem, prisioneiro do tempo.
2.5. Não somos deste mundo.

CAPÍTULO III – COSMOGONIA E SOTERIOLOGIA

3.1. Por que existe dois Mundos?


3.1.1.O Demiurgo: o Deus criador e o Deus desconhecido.
3.1.2. Luz e Trevas: o dualismo cósmico.
3.1.3. As gnoses monistas.
4.1.4. A Mãe.
3.2. A Queda e a Redenção.
3.2.1. O Espírito aprisionado nas trevas.
3.2.2. Mitos gnósticos sobre a queda espiritual.
3.2.3. A criação do homem.
3.2.4. O Salvador.
3.2.5. O Caminho da salvação

CAPÍTULO IV – CULTO, RITOS, MISTÉRIOS.

4.1. Os gnósticos e a religião.


4.2. A iniciação Gnóstica: liturgia secreta e mistérios.
4.3. O livro dos mortos.

CAPÍTULO V – ÉTICA.

5.1. O gnóstico e o amor.


5.2. Mais alem do bem e do mal.
5.3. Ofiolatria e Luciferismo.
5.4. Os gnósticos silenciosos.

CAPÍTULO VI – ESCATOLOGIA.

6.1. Os espirituais e os outros.

2
6.2. O Apocalipse gnóstico.

SEGUNDA PARTE. HISTÓRIA DAS GNÓSIS.

CAPÍTULO I - Os gnosticismos pré-cristãos e extracristãos.

1.1. Origens orientais e gregas da gnose.


1.2. O Neoplatonismo.
1.3. O Hermetismo.
1.4. Os gnósticos judaicos.
1.5.O Mandeismo.
1.6. O Sabeismo.

CAPÍTULO II - O gnosticismo cristão.

2.1. Fontes para o estudo do gnosticismo cristão.


2.2. Os gnósticos cristãos dos primeiros séculos.
2.3. A Igreja e o gnosticismo.
2.4. O gnosticismo católico.

CAPÍTULO III - O maniqueísmo e os neomaniqueísmos.

3.1. Manes e maniqueísmo.


3.2. As seitas neomaniqueístas.
3.3. O enigma dos templários.

CAPÍTULO IV - A alquimia e a gnose.

CAPÍTULO V - O gnosticismo no Islã.

CAPÍTULO VI - Sobrevivências gnósticas.

6.1. O panteísmo popular.


6.2. Os teólogos cristãos dos séculos XVI e XVII.
6.3. As tendências gnósticas na franco-maçonaria.
6.4. Iluminismo e ocultismo.

CAPÍTULO VII - Os ressurgimentos gnósticos contemporâneos.

7.1. O Romanticismo.
7.2. O Simbolismo.
7.3. O Surrealismo.

CONCLUSÂO.

BIBLIOGRAFIA.

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INTRODUÇÃO.

No principio de seu volumoso livro contra as heresias São Epifanio (morto em 403 d.C.)
transcreve uma lista importante – e sem embargo, incompleta, segundo o aclara ele mesmo
– de seitas temíveis que ameaçam a unidade da Igreja: os simonianos, os menandrianos, os
basilidianos, os nicolaitas, os estratióticos, os fibionitas, os zaqueus, os borboritas, os
barbelitas, os carpocracianos, os cerintianos, os nazarenos, os valentinianos, os
ptolomeanos, os marcosianos, os ofitas, os cainitas, os setianos, os arconticos, os
cerdonianos, os marcionitas, os apelianos, os encraticas, os adamitas, os
melquisedecianos,...(e não reproduzimos em forma completa esta enumeração
interminável).

Em todos os Pais da Igreja que combateram aos gnósticos (gnostikoi), falsos cristãos que
pretendiam possuir um conhecimento (Gnosis) maravilhoso, achamos o mesmo quadro: o
do movimento herético que se diversificam, ramificando-se ao infinito como fungos
venenosos, em inumeráveis seitas e sub seitas. São Irineu (bispo de Lion a partir de 177
d.C.) observa, referindo-se aos valentinianos, que até é “impossível encontrar a dois ou três
que digam o mesmo acerca do mesmo tema; se contradizem de maneira absoluta, tanto em
que se referem as palavras como no restante das coisas” (1).

Muitos historiadores consideram também ao gnosticismo como um monumento de


fantasias extravagantes, de incoerências, de mitos estranhos, de fantamasgorias desprovidas
de todo interesse filosófico, e que em definitiva não constituem mais que um ramo
particularmente degenerado do inquietante sincretismo religioso dos séculos primeiro e
segundo d.C. (2).

Ainda que o ponto de vista dos Pais da Igreja se acha ainda muito estendido, o gnosticismo
adquire um caráter por completo distinto nos ocultistas e teósofos contemporâneos: em
lugar de hereges perversos e delirantes, encontramos homens possuídos de iniciações
prestigiosas, iniciados nos mistérios orientais, donos de conhecimentos ocultos ignorados
pelo comum dos mortais e transmitidos secretamente a um numero limitado de mestres; a
gnose é o conhecimento total, incomensuravelmente superior a fé e a razão. O gnosticismo
estará unido então à sabedoria primordial original, fonte das diversas religiões particulares.

Os historiadores das religiões se mantêm cuidadosamente alijado dos pressupostos


dogmáticos ou racionais: sua ambição não é refutar – ou provar- o gnosticismo, senão
estudar a origem e o desenvolvimento das diversas formas históricas da gnose.

A extrema diversidade das especulações gnósticas é inegável: “Seria mais exato falar de
gnosticismos que de gnosticismo” (3). A mesma diversidade existe no domínio do culto e
dos ritos, donde as tendências mais ascéticas se opõem às praticas mais inomináveis: nos
mistérios e as iniciações dos gnósticos se voltam a encontrar os dois pólos extremos do
misticismo (4).

4
É fácil descobrir, sem embargo, um inegável ar de família entre os gnosticismos, apesar das
múltiplas divergências e oposições que eles manifestam.

Seja qual for o grau de atomização de seitas e escolas (menos desmedidos, por outra parte,
do que afirmam os especialistas em heresias, quem parece ter separado artificialmente os
ramos de um mesmo grupo, e até graus de iniciação sucessivos), e ainda considerando que
na maioria dos casos (5) o epíteto gnostikoi não é usado pelos hereges mesmos, não é de
nenhum modo arbitrário qualificar de gnósticos as idéias ou sistemas que apresentam as
mesmas tendências características. Os historiadores modernos – indo nisto mais longe que
os especialistas em heresias - não tem duvidado em generalizar o conceito de gnose fora do
âmbito do cristianismo.

O estudo cientifico do gnosticismo cristão teve seus pioneiros: Chifflet, no século XVII, de
Beausobre e Mosheim no século XVIII. Pois foram a princípios do século passado quando
se desenvolveu (trabalhos de Horn, Neander, Lewald, Baur, etc). A importância de Historia
Critica do Gnosticismo( histoire critique du gnosticisme ) de Jacques Matter ( Paris 1828;
reeditada em Estrasburgo em 1843) constituiu durante muito tempo uma obra clássica. O
autor define a gnose como a “introdução no seio do cristianismo de todas as especulações
cosmológicas e teosoficas que tinham formado parte mais considerável das antigas religiões
do oriente e que os novos platônicos haviam adotado também no Ocidente”.

Inumeráveis historiadores das religiões se esforçaram depois por vincular as origens do


gnosticismo cristão – este conjunto de doutrinas e de ritos que se nutrem de um fundo
comum de especulações, imagens e mitos - com uma fonte anterior ao cristianismo. É assim
como a gnose tem sido vinculada com Egito, com Babilônia, com Irã, com as religiões de
mistérios do mundo contemporâneo, com a filosofia grega (6), com o esoterismo judaico e
até com a Índia. Longe de ser o resultado de uma reflexão espúria de certos espíritos sobre
aspectos do cristianismo, o gnosticismo aparecerá finalmente, aos olhos do orientalista,
como um fenômeno de sincretismo, mais ou menos casual, entre o cristianismo e outras
crenças profundamente alheias a este ultimo (7).

Os trabalhos dos especialistas alemães (Kessler, W Brandt, Anz, Reitzenstein, W Bousset)


se tem livrado assim da perspectivas das heresias no estudo das gnosis cristãs: “ Falando
com rigor, não são heresias imanentes ao cristianismo, senão que os resultados de um
encontro e de uma união entre a nova religião e uma corrente de idéias e o seguirá sendo
em sua essência” (8).

Desde faz tempo umas três décadas se tende a dar o nome de gnósticos as outras correntes
distintas posteriores (maniqueísmo, catarismo): gnosticismos exteriores ao cristianismo
(como o mandeismo e o hermetismo nos sentido estrito); a alquimia, a cabala judaica, o
ismaelismo e as heresias muçulmanos derivadas; algumas doutrinas esotéricas modernas.

Reagindo contra o comparativismo, sem deixar de aproveitar seus descobrimentos, diversos


especialistas na ciência das religiões (Hans Jonas, Karl Kerenyi, Simone Petrement, Henri
Charles Puech, Gilles Quispel). Tem abordado o estudo do gnosticismo valendo-se do
método fenomenológico (8): em lugar de insistir no detalhe das doutrinas, os mitos e os
ritos, se trata de por de relevo a atitude especifica, as orientações espirituais características

5
que os condicionam, e se destacam os grandes temas (expressados ou implícitos) que em
ultima analise se acham detrás das idéias, as imagens e os símbolos gnósticos. Se bem os
gnosticismos são muito diferentes, o gnosticismo é uma atitude existencial completamente
característica, um tipo especial de religiosidade.

Não é arbitrário formular um conceito geral da gnosis – conhecimento salvador que se


traduz em reações humanas determinadas e sempre as mesmas. Se o gnosticismo não fora
mais que uma serie aberrações doutrinais próprias de certos hereges cristãos dos três
primeiros séculos, seu interesse seria puramente arqueológico. Pois é muito mais que isso: a
atitude gnósticos reaparecerá espontaneamente, mais alem de qualquer transmissão direta.
Este tipo especial de religiosidade apresenta, inclusive, turbadoras afinidades com algumas
aspirações completamente modernas. O gnosticismo dos hereges constitui o exemplo
característico de uma ideologia religiosa que tende a reaparecer incessantemente em Europa
e no mundo mediterrâneo em épocas de grandes crises políticas e sociais (10).

A unidade da gnosis postulada pelos fenomenólogos contemporâneos não é o modo algum


a unidade que postulam os adeptos da teosofia e do esoterismo: nesta perspectiva especial,
a gnosis seria a fonte de todas as religiões e seu fundamento último. Para o grande
tradicionalista francês André René Guenon (1886 – 1951) (11) e seus discípulos (12), em
todas as religiões se acha a idéia de uma libertação metafísica do homem por meio da
gnosis, ou seja por meio do conhecimento integral; existe uma assombrosa universalidade
de certos símbolos e de certos mitos: daí a postulação lógica de uma origem comum dos
diferentes esoterismos religiosos, que se expressam necessariamente através das grandes
religiões esotéricas, cujo núcleo constituem.

Desde o ponto de vista do historiador das religiões, a teoria de Guenon não pode,
evidentemente, ser provada (nem, por outra parte, invalidada). É certo que as doutrinas
esotéricas se parecem (13); pois para explicar estas convergências não tem necessidade
alguma de postular uma tradição primordial intemporal conservada por um a vários centros
de iniciação. Basta recordar esta lei redescoberta pelos fenomenólogos: como o espírito
humano reage da mesma maneira em condições semelhantes, não é estranho encontrar em
diversas partes as mesmas aspirações. Tampouco tem que passar por alto as filiações
históricas, às vezes inesperadas.

“Se possui a gnosis, conhecimento beatificante – nos diz Paul Masson-Oursel – quando se
distingue o absoluto, em suas profundidades, daquele que o relativiza” (14). Esta definição,
que coincide com a dos tradicionalistas, é demasiado geral: a salvação pelo conhecimento é
uma aspiração que caracteriza a numerosos movimentos religiosos – por exemplo, o
budismo – que não se incluem usualmente no gnosticismo. Este último é um tipo muito
especial de religiosidade, que efetua algo assim como a síntese de aspirações orientais e
ocidentais.

É comum que se estabeleça uma oposição, a que dista muito de corresponder sempre a
verdade, entre o Oriente metafísico que aspira a libertação e o Ocidente religioso que aspira
a salvação; o gnosticismo estabelece precisamente uma espécie de vinculação, de ponte
entre as religiões de forma sentimental e pessoal, e as religiões impessoais chamadas
metafísicas. O gnósticos Henri Charles Puech, membro do Instituto, professor do Colégio

6
da França – de uma experiência totalmente subjetiva, para através dela ao encontro de uma
iluminação salvadora.

A primeira parte, deste livro determinará, precisamente,, as características gerais de tal


atitude ( ou mais bem de toda uma serie de atitudes): por meio de muitas citações ( tomadas
sobretudo do gnosticismo cristão, pois completadas mediante outros testemunhos), poremos
de relevo tendências, aspirações e doutrinas completamente características. Na segunda
parte estudaremos a história das aspirações gnósticas, desde suas remotas origens pré-
cristãs até suas assombrosas reaparições contemporâneas.

A modesta extensão desta obra nos impede tratar certos problemas particulares (15); pois
cremos ter mostrado todo o interesse histórico e filosófico das investigações relativas a um
domínio que alguns autores ainda consideram como pitorescas extravagâncias. Ainda que
muitos gnósticos falam de uma linguagem desconcertante para o homem contemporâneo, e
parecem constituir, ao menos a primeira vista (16), um conjunto heterogêneo de grupos
inumeráveis, sua atitude é no fundo muito moderna: se nos apresenta como homens
angustiados por sua condição de seres lançados ao mundo, e que na fuga do mundo crêem
ter achado o modo de vencer esta angustia insuportável.

Devemos precisar que, em toda a primeira parte deste estudo temos seguido os lineamentos
mais essenciais do pensamento gnósticos, postos em evidencia por H C Puech.

NOTAS.

(1)- Irineu. Adversus Haereses I, 11,11.


(2)- A Rivaud. Histoire de la Philosophie, t I, Paris PUF, 1948, 502-507.
(3)- Eugene de Faye. Gnostique et gnosticisme, 2 ed, Paris Geuthner, 1925,p 439.
(4)- L Fendt. Gnostische Mysterien , 1922.
(5)- Um so grupo de sectarios, os chamados simsplesmente por gnosticos, reclama para si
esta denominação prestigiosa.
(6)- A Harnack definiu a gnosis como a helenização extrema do cristianismo.
(7)- O livro clássico de W Bousset. Hauptproblem der Gnosis, Gotinga, 1907.
(8)- H C Puech.
(9)- Esclarecemos que não se trata de uma explicação especial da filosofia de Husserl.
(10)- H Jonas .Gnosis und spaetantiker Geist, Gotinga 1934.
(11)- P Serant. Guenon, Paris , La Colombe, 1953.
(12)- F Schuon. Sentiers des Gnose, Paris, 1957.
(13)- J A Rony. La magie, Paris, 1962.
(14)- La pense em Orient, A Colin, p 149.
(15)- Tinha que estudar, por exemplo, a possível influencia das gnosis cristãs sobre as seitas
russas, G Welter. Histoire dês sectes chretiennes, Paris Payot, 1950.
(16)- J Doresse. Les livres secrets des gnostiques d Egypte. T. I. Plon 1958 p 42: “Estes
nomes [os numerosos grupos vinculados a seita os denominados simplesmente gnósticos]

7
se multiplicavam segundo os paises em função de iniciações mais ou menos particulares,
criando assim uma confusão na que o historiador moderno se sente um pouco perdido”.

PRIMEIRA PARTE.

AS ATITUDES GNÓSTICAS.

8
CAPÍTULO I - O CONHECIMENTO SALVADOR.

A palavra grega gnosis significa simplesmente conhecimento. Pois na literatura gnósticas


não se trata de modo algum de um saber qualquer. A gnosis é um conhecimento dotado de
maravilhosos prestígios.

“Poucos podem possuir este conhecimento; um entre mil, dois entre dez mil”.

Simão o Mago, começa assim sua grade Revelação (apophasis):

“Este é o que se expressa na Revelação da Voz e do Nome, que provem do Pensamento e


do grande Poder Infinito; por isso será selado, escondido e conservado na morada donde
tem seus fundamentos a raiz do Todo”.

A gnosis, possessão dos iniciados, se opõe a vulgar pistis (crença) dos simples fieis. É
menos um conhecimento propriamente dito que uma revelação secreta e misteriosa. As
seitas gnósticas pretendem possuir livros de origem alógena, ou seja, de origem exterior e
superior ao mundo no que nós debatemos. Tais livros são atribuídos a personagens
prestigiosos, verdadeiros enviados celestes. Eis aqui, como exemplo, o que se afirma
explicitamente no Livro sagrado do grande Espírito Invisível, uma das obras usadas na seita
dos setianos:

“É este o livro que tem escrito o grande Sete [um dos filhos de Adão]. O tem depositado
nas montanhas elevadas sobre as quais o sol sai nem poderia sair jamais. Desde os dias
dos profetas, dos apóstolos e dos pregadores, nem sequer (seu) nome esteve nem pode
estar nunca nos corações. Ninguém os olhou jamais. Este livro foi escrito pelo grande Sete
aos cento trinta anos; o depositou na montanha denominada Charax, para que fosse
manifestado nos últimos tempos e nos últimos instantes” (2).

Todos os gnósticos cristãos pretendem ter herdado por vias misteriosas os ensinamentos
secretos dados por Jesus a seus discípulos. Basílides, por exemplo, pretendia ter recebido de
Matias as doutrinas esotéricas reveladas a este apostolo pelo Salvador. Os sectários
gnósticos fizeram circular muitos Evangelhos Apócrifos: O Evangelho sendo os Egípcios, o
Evangelho de Maria, o Apócrifo [no sentido literal da palavra grega: livro secreto,
escondido] de João. Etc. Gnosis implica transmissão de ensinamentos secretos, de mistérios
reservados a um pequeno numero de iniciados, a geração de fé incomum.

Em que se distingue das outras doutrinas teosófica ou ocultas? Chama-se ou se pode


chamar gnosticismo – e também de gnosis – toda doutrina ou atitude religiosa fundada na

9
teoria ou na experiência da obtenção da salvação pelo conhecimento (3). A gnosis traduz
sempre uma necessidade individual de salvação, de libertação:

“A gnosis – escreve Puech – é uma experiência ou se refere a uma eventual experiência


interior, destinada a converter-se em estado inadmissível, através da qual, no curso de
uma iluminação a que é regeneração e divinização, o homem se cobra em sua verdade,
volta a recordar e adquire outra vez consciência de si mesmo, ou seja, que conhece
simultaneamente sua natureza e sua origem autênticas; através desta experiência se
conhece ou se reconhece em Deus, conhece a deus, e aparece ante si mesmo como
emanado de Deus e alheio ao mundo, adquirindo assim, com a possessão de seu eu e de
sua verdadeira condição, a explicação de seu destino e a certeza definitiva de sua
salvação, ao descobrir-se merecidamente salvo para toda a eternidade” (4).

Teódoto, um discípulo de Valentino, nos diz que possuir a gnosis é saber “o que fomos e o
temos chegado a ser; donde estávamos; donde temos sido lançados; para donde vamos e de
onde nos chega a redenção;qual é o nascimento e qual a ressurreição”. (5)

“A gnosis responde sempre a uma angustia subjetiva do individuo, com a obsessão pelos
grandes enigmas metafísicos A Pistis Sofia (fé e sabedoria), a mais celebre das obras
gnósticas em língua copta, contem uma longa enumeração dos conhecimentos dos que se
beneficiam as almas eleitas: por que foram criadas a luz e as trevas, o caos, os tesouros da
luz, os ímpios, os bons, as emanações da luz, o pecado, o batismo, a cólera, a blasfêmia, a
injuria, o adultério, a pureza, a soberba, o riso, a maledicência, a obediência e a
humildade, a riqueza, a escravidão; pro que existem os répteis, os animais selvagens, o
gado, as pedras preciosas, o ouro, e prata, as plantas, as águas, o ocidente e o oriente, as
estrelas ,ect (6). Ou seja, a revelar-lhe o mistério que cobre sua origem e seu destino, a
gnosis permite ao homem compreender a significação de todas as coisas”.

Um conhecimento tal, uma iluminação semelhante converte a seu beneficio em um ser


prestigioso:

“Pois o homem é um ser vivente divino, que não deve ser comparado com os demais seres
viventes terrestres, senão que habitam acima, no céu, e que se chamam deuses. Ou mais
bem, se é necessário atrever-se a dizer a verdade, é ainda por cima destes deuses que se
acha o homem realmente homem, existe ao menos uma completa igualdade de poder entre
uns e outros”.

“Em efeito, nenhum dos deuses celestes abandonam a fronteira do céu nem descerá sobre
a terra; pois o homem se eleva até o céu mesmo, os mede, e conhece de um extremo ao
outro; capta todo as demais necessidades de abandonar a terra para estar no céu tão longe
se estende seu poder”. (7).

É conhecida a famosa passagem de São Paulo freqüentemente invocada pelo esoterismo


cristão:

10
“Conheço a um homem que faz 14 anos fui levado até o terceiro céu (se subiu com o corpo
ou sem ele, eu ignoro; só Deus o saber) e sei que este homem foi elevado até o Paraíso e
que ouviu as palavras inefáveis que a um homem lhe está proibido revelar” (8).

Graças à iluminação da que tem sido beneficio, o gnóstico se serve da angustia mesma para
alcançar o conhecimento definitivo.

É amarga em efeito – nos diz Simão- a água que encontramos depois do Mar Vermelho
[Simão interpreta o verso de Êxodo]; por que ela é o caminho que conduz ao conhecimento
da vida, caminho transformado por Moisés, ou seja, pelo Verbo, esta água amarga se
converte em doce (9).

A gnosis – simbolizada pelo fogo iluminador e gerador - arranca a alma do eleito do


espesso sonho em que se achavam sumidas: daí o emprego de métodos de adestramento
espiritual destinado a gerar estados especiais de consciência. Sem embargo, a gnosis
constitui, uma vez que tem sido alcançado, um conhecimento total, imediato, que o
individuo possui inteiramente ou do que carece em absoluto, que abrange ao Homem, ao
Cosmos e á divindade.

E é só através deste conhecimento - e não por meio da fé ou das obras – que o individuo
pode ser salvado: sejam quais forem os traços característicos dio gnosticismo como
filosofia religiosa (10), a gnosis se acha definida por esta posição geral, e também pela
atitude existencial da que procede; é por sua condição de experiência vivida que a gnosis
manifesta sua verdadeira originalidade (11).

Paradoxalmente, em alguns gnósticos cristãos se adverte o desejo de conhecer a origem do


mal: numa das versões do mito de Sofia, o erro desta sabedoria consistiu em querer
contemplar a Divindade insondável; outra entidade mítico-metafisica, Horus, o limite,
dará a Sofia consciência dos limites de sua natureza. Basilides anuncia o advento final da
grande ignorância, que se apoderará de todos os seres existentes, quem já não tratarão de
conhecer o que os sobrepassa: são os imortais todos os seres que permanecem no sitio que
lhes correspondem (12). Pois tal atitude é completamente excepcional no gnosticismo.

O gnóstico se salva mediante o conhecimento; pois de que se salva? Esta pergunta nos
exige estudar a atitude do gnóstico a respeito de seu corpo, do mundo visível e da
existência sensível em geral.

NOTAS.

(1)- Basilides (Irineu, Adversus Haerese, I, 24, 6).


(2)- Doresse. Lês livres secretes dês gnostiques d Egypte, p 197.
(3)- H C Puech. Em Annuaire du college de France, ano 53, p 163.
(4)- Ibid, p 168-169.

11
(5)- Excerpta ex Theodoto, 78, 2.
(6)- Pistis Sophia, 206-216(damos os números dos capítulos da edição de C Schmidt).
(7)- Corpus hermeticus, X, 24-25, tradução de A J Festugiere.
(8)- II Cor 8,2-4.
(9)- Citado por Hipólito, Philosophoumena, VI, 1, 15- tradução de A Siouville.
(10)- H Leisegang. La Gnose, Trad Fran Paris Payot, 1951, cap I: La pensee gnostique.
(11)- Os símbolos, os ritos e os mitos gnósticos são tomados geralmente – pois para ser
empregados num contexto muito especial - de tradições religiosas anteriores e até do que
Jung denomina o inconsciente coletivo (fundo ancestral da personalidade inconsciente).
(12)- Citado por Hipólito, Philosophoumena.

12
CAPÍTULO II – MISÉRIA DO HOMEM.

2.1. O HOMEM, PRISIONEIRO DE SEU CORPO.

Não tenhais piedade da carne nascida da corrupção – proclama uma oração cátara – pois
vos apiedai do espírito aprisionado nela. Os gnósticos consideram seu corpo como a prisão
donde se acha cativo seu autentico eu:

Oh! Deus de luz, alma querida! Quem tem obscurecido teu olho luminoso: Cais sem cessar
de uma miséria em outra , e nem sequer o advertes. E quem te tem conduzido ao exílio,
desde tua magnífica terra divina, e te tem fechado nesta sombria prisão?(1).

Eu sou um deus. Filho de deuses, brilhante, cintilante, resplandecente, radiante, perfumado


e formoso, pois agora tenho caído na miséria. Inumeráveis e repugnantes diabos se
apoderam de mim e me reduzem à impotência (2).

Eu sofro em meu vestido corporal às que eles me trouxeram e me lançaram [é a alma quem
fala] (3).

O gnóstico intransigente expressa uma repugnância invencível a respeito das diversas


manifestações da sexualidade ordinária (desejo sexual, união, concepção, nascimento), e,
em geral, dos principais acontecimentos da vida corporal (nascimento, enfermidades,
velhice, morte). Tal repugnância respeito do corpo conclui pouco a pouco na idéia de que o
corpo é algo alheio a nós mesmos e que devemos suportar: o corpo é comparado com um
cadáver, com uma tumba, com uma prisão, com um companheiro indesejável ou um
intruso, com um bandido, com um mar cujas tempestades ameaçam tragar-nos. O corpo,
instrumento de humilhação e de sofrimento, atrai ao espírito para baixo, o funde na letargia
abjeta, no degradante esquecimento de sua origem. O gnóstico puro execra o parto,
responsável do primeiro encarceramento das almas desgostosas.

Encontramos às vezes na pregação católicos sentimentos de desprezo respeito do corpo,


pois se situa numa perspectiva por completo diferente: quando um pregador (Bossuet, por
exemplo) alude aos cadáveres em potencia que são – em resumo- todos os seres humanos,
não se propõe condenar o corpo, senão mostrar a vaidade, o caráter fugaz, transitório, de
todo o que não é mais que terrestre; e enquanto a procriação se está muito longe de
considera-la um mal, pois constitui um dever imposto a todo matrimonio católico.

13
A atitude de Buda se acha mais perto ao pessimismo gnóstico:

O nascimento é sofrimento; a velhice é sofrimento; a enfermidade é sofrimento; a morte é


sofrimento; estar unido ao que não se ama é sofrimento; estar separado do que se ama é
sofrimento; não ter o que se deseja é sofrimento. É a permanente exigência do desejo a que
produz a reencarnação, acompanhado por uma entrega apaixonada, uma atração pela
vida nesta forma ou outra, ou seja, pelo prazer sensual, a existência ou a aniquilação (5).

Pois o budismo assinala ao desejo um determinismo impessoal, porem que na concepção


gnóstica a carne é algo perverso, malicioso e horrível.

2.2. O HOMEM, PRISIONEIRO DE SUA ALMA INFERIOR.

A situação do homem é, todavia mais grave: não só nos domina a carne, senão que também
um conjunto de determinismos psicológicos que nem sempre são de origem corporal.

E lhe ocorre ao coração - nos diz Valentin - algo semelhante ao que o sucede a um
albergue no que pernoitam pessoas grosseiras. Estas não cuidam o lugar, por que não é
deles. Ocorre o mesmo quando se descuida o coração. Permanece impuro, e é morada de
uma multidão de demônios. Pois quando contempla o pai, o único bondoso, fica
santificado e resplandece (6).

Outros dois grandes gnósticos cristãos: Basilides e seu filho Isidoro dão às paixões o nome
de apêndices (prosartemata): não são cosas inerentes a alma, senão que entidades malévolas
e adventícias, particularidades – instintos de lobo, de macaco, de leão, da cabra macho-
que penetram na alma, se aderem a ela e produzem desejos inferiores e grosseiros.

Ainda que Basilides considera que os homens são, não obstante, responsáveis de suas más
inclinações, inclusive das inclinações inconscientes e das que existem como resultados de
faltas cometidas nas vidas anteriores (7), muitos gnósticos adotam de bom grado a teoria
platônica segundo a qual o mal se explica pela ignorância. Negam o livre arbítrio:

São os arcontes do destino os que obrigam ao homem pecar (8).

Seja como for, em cada homem tem uma espécie de alma demoníaca, que afoga o principio
bom. O homem possui duas almas: uma alma celeste, que é seu verdadeiro eu, e uma alma
inferior, posta nele pelos demônios para obrigar-lhes a pecar. Deste fato escandaloso se tem
dado diversas explicações, que variam com os doutores e as seitas.

Na Pistis Sofia, por exemplo, achamos a idéia de que a alma humana se compõe de três
partes: uma parte superior, o espírito; uma parte inferior, material e um espírito contra
factor, posto no homem durante o nascimento e que é a causa do pecado (9).

14
Em geral, os gnósticos não admitem uma oposição simples entre principio da matéria e o
principio imaterial; ao corpo e a alma propriamente dito se superpõe um princípio
superior, o espírito ou pneuma (10).

2.3. O HOMEM, PRISIONEIRO DO MUNDO.

O pessimismo gnóstico se estende a toda a criação sensível: esta é uma obra falida, e até
funesta e criminal. Os gnósticos estão com obsessão pelo problema do mal: Qual é a sua
origem? Por que existem? Desta maneira, a pergunta lacerante se desprende de uma
perspectiva dualista:

O gnóstico se verá conduzido, particularmente, já seja opor a Deus a matéria ou um


principio mau, já seja o distinguir do deus transcendente, desconhecido ou alheio ao
mundo e absolutamente bom, um deus inferior ou inimigo, criador do mundo e dos corpos
(11).

O gnóstico experimenta dolorosamente o fato de ter sido lançado a um mundo mau, alheio,
absurdo, com o qual não sente afinidade alguma.

O mundo é o local da morte, do sofrimento, da feiúra e do mal; é uma cloaca, um deserto,


uma noite de grandes águas tenebrosas. Pois é também uma fortaleza hermeticamente
fechada e rodeada de muros ou de poços em aparência fracas: o homem é lançado ali,
donde fica num fecho sem esperança.

Liberta-nos da obscuridade deste mundo ao que temos sito lançados, clama o mandeista
(12).

O mundo (13) se acha fechado hermeticamente e rodeado pelas trevas exteriores, por um
grande mar ou por um muro de ferro que não é outro que o firmamento. O mundo se tem
fortificado contra Deus; pois a Divindade, por sua parte, foi obrigada a fortificar-se para
ficar fora do alcance do mundo. Barreiras inexoráveis se opõe a evasão fora do mundo:

As trevas exteriores são um grande dragão que possui a cola na boca (14); encontram-se
mais alem do mundo, ao que rodeiam completamente (15).

Os gnósticos fez sua a velha doutrina astronômica das esferas de cristal que giram ao redor
da Terra. Apoiando-se nesta concepção dos astrônomos e astrólogos da antiguidade,
consideraram que as esferas constituem um obstáculo faço para as almas que tentam evadir-
se do mundo, pois a frente das portas escavadas em cada uma das sete esferas se acham nos
postos os guardas inexoráveis: são os Arcontes, príncipes do cosmo (16). Os deuses
planetários caldeus se têm convertido em forças maléficas que impõem ao mundo uma
rigorosa fatalidade: os sete planetas são divindades malignas que se esforçam por prejudicar

15
aos homens (17). Os poderes que determinam as revoluções astrais impõem ao cosmo uma
necessidade fatal e inflexível; pois longe de aceitar o destino, os gnósticos se rebelam
contra ele e aspiram a libertar-se.

O mundo – clama Heracleon - é uma inóspita guarida de animais selvagens. A angustia e a


miséria – nos diz Basílides- acompanham a existência como a ferrugem ao ferro. O mal
consiste no fato mesmo de existir no mundo sensível. O universo é totalmente mau: a idéia
de um universo belo e bom, o gnosticismo a substitui por um mundo para o qual a
Divindade superior é alheia, um mundo sobre o que reina uma fatalidade maligna, um
Deus inferior ou ignorante e até um monstruoso Príncipe das Trevas. O mundo é mau, e a
alma humana se tem nele inexoravelmente cativa:

Jesus tem dito: olha, Pai,


perseguida pelos maus , sobre a Terra,
longe de teu alento, erro em vão:
trata de fugir do caos amargo,
pois, não sabe como atravessa-lo (18).

Nas formas mais radicais do gnosticismo, o divino é situado inteiramente fora do mundo:
só subsiste na parte luminosa da alma humana (19). De tal modo, o deus supremo é
concebido como absolutamente transcendente ao mundo (20). Em ultima instancia, o
mundo em que vivemos será identificado com o inferno (21).

O cosmo visível é o domínio da sucessão – eternamente absurda- dos nascimentos e das


mortes, a região em que se acham aprisionadas as almas superiores desde sua queda na
matéria. Todo o que está debaixo do sol e da lua não é mais que corrupção e confusão
(22). A terra é o sitio donde nascem e perecem sem cessar todas as coisas: é o domínio da
dissolução.

Deve fazer-se notar que o ponto de partida dos gnósticos é o mesmo que o da filosofia
existencialista contemporânea: o homem lançado no mundo. Pois o existencialismo se
propõe abrir o eu ao mundo, porem que a experiência gnósticas separa ao eu do mundo, o
alija do mundo: Dito de outro modo, o que aqui se revela não é o ser para o mundo, senão
um ser que, sem deixar de estar bem no mundo, não pertence a ele, ou ao menos, para
tomar as coisas desde o principio, um ser que não deseja pertencer ao mundo (23).

As fontes subjetivas de uma experiência tal se descobrem facilmente: esta se origina numa
angustia insuportável frente ao mal e o sofrimento, onipresente no mundo sensível (24).
Não tem que restar importância às causas políticas e sociais do desejo gnósticos de fugir
do mundo. Quando os gnósticos falam de horror dos poderes do mundo, das autoridades
dos principados, das dominações, dos tiranos, dos arcontes, a opressão social tem sua
parte no que detestam (25). Toma-se demasiado pouco em conta a infraestrutura
econômico social da época em que se desenvolviam os gnosticismo cristãos e pagãos, e que
é a da decomposição crescente do mundo antigo, a época da era antiga: é o momento em
que o individuo se acha mais intensamente enfrentado com os problemas de seu destino
pessoal e do destino dos impérios e das civilizações que acreditou ter estabelecido
definitivamente.

16
E o que nos mostra os documentos gnósticos é a atitude espiritual dos que foram mais
tragicamente sensíveis aos problemas do destino humano (26). A similitude dos temas
gnósticos com certas manifestações da angustia contemporâneas é altamente reveladora:
Nas grandes sociedades a sorte se coloca com a desgraça, as fortunas se mesclam, e reina
a desordem. Também a solidão, esta solidão do individuo nos grandes Estados, faz mais
triste a morte e impulsiona a considerar a própria condição (27).

2.4. O HOMEM, PRISIONEIRO DO TEMPO.

A maior parte dos gnosticismos sustenta crenças resolutamente de reencarnações: Tua


alma dizia um cataro ao testemunho de um processo inquisitorial – tem estado já em cem
corpos e ainda em mais. A alma anda errante pelas sinuosidades do labirinto – é uma
expressão do salmo dos naasenos – que é o mundo, assento do mal (28). O homem passa
pelos nascimentos sucessivos, sofre o ciclo terrífico das reencarnações (que o
maniqueísmo denomina transvasamentos).

Até os gnósticos que não admitem a reencarnação (Marcião) se acham com a obsessão
pelo tempo. Ao igual que o mundo físico, o tempo – que subjaz, por outra parte, em todas
as manifestações do cosmo visível - é mescla e mancha: o ciclo do tempo não é outra coisa
que a Fatalidade; o tempo pertence ao mundo material, porem que o mundo superior é
atemporal (e se acha separado do primeiro por um limite que em principio é absoluto). O
tempo é mau e constitui uma fonte de angustia; cíclico, circular, como a doutrina estóica
do tempo linear que se estende irreversivelmente desde a criação (29).

O tempo, que em si mesmo é insuficiência, nasceu de um desastre, de uma deficiência, do


fundimento e da disposição no vazio, no kenoma, de uma realidade que existia desde antes,
uma e integral, no seio do Pleroma, da plenitude, ou do aion, da eternidade. O gnósticos
não aspira mais que a ser libertado do tempo, e estabelecido ou restabelecido fora de todo
devir, revolto ao estado que se supõe que se achava ao principio: na estabilidade e a
verdade do Pleroma, do aion, do ser eterno, de seu ser completo (30).

Reduzido o devir, o tempo é engano, mistificação, alienação, mentira:

Já seja que o limitemos a existência presente, ou que o imaginemos estendendo-se através


de uma sucessão imensa e em principio interminável de reencarnações, o devir humano
será brusca e inexoravelmente interrompido pela morte, no primeiro caso, e no segundo, se
prolongará indefinidamente com seu cortejo de desilusões e de sofrimentos: em ambos os
casos revestem um aspecto lúgubre e trágico, e tem o caráter de um drama (31).

17
2.5. NÃO SOMOS DESTE MUNDO.

Aprisionado e lançado a um mundo inferior e malévolo, o gnósticos se sente abandonado


no deserto e a desolação, vitima de uma imensa e terrível solidão: aspira desesperadamente
a um mais alem do mundo, a um domínio que concebe como o da verdadeira vida, o da
liberdade e a plenitude. Somos – e esta é uma das palavras chaves da gnosis – alheios ao
mundo, e o mundo nos é alheio (estrangeiro) (32). O gnostico descobre que sua que por
sua essência originaria pertence a um mais alem e que, salvo p corpo e as paixões
inferiores, ele não é originário deste mundo, senão que pertence a raça ( genos) dos Eleitos,
dos inquebrantáveis, dos seres superiores, hiperósmico. Se sente fora de sua pátria, exilado
no mundo terreno, é por que experimenta a nostalgia lacerante da pátria original da que tem
caído:

Tu não és daqui, tua estirpe não é deste mundo: teu lugar é o lugar da Vida (33).

A parte superior do ser humano é um principio divino exilado aqui abaixo (34): mediante o
conhecimento, ela reconhece sua origem primeiro e se salva. Deste modo o gnostico
alcança conhecimento supremo:

O conhecimento do homem é o começo da perfeição: o conhecimento de Deus é sua


consumação (35).

O gnóstico volta a encontrar seu verdadeiro eu – intemporal e ontológico – e, neste


reencontro toma consciência da condição gloriosa, divina, que possuiu num passado
imemorial:

O gnóstico chegará assim a comprovação fundamental: estou no mundo, pois não sou do
mundo. Nesta perspectiva, o mundo e a existência no mundo constituirão algo mau, porque
são umas mesclas violentas e anormais de duas naturezas ou de dois modos de ser
contrários e inconciliáveis, que tem exigências opostas (36).

Pois como é possível semelhante dualidade? E como é possível que o gnóstico seja
salvado? Nos enfrentamos aqui com difíceis problemas da cosmogonia (proveniente ela
mesma de uma teogônia) e da soteriologia: os relativos ao nascimento do mundo e a
economia da salvação. Mediante esta, o gnóstico resolverá o lacerante enigma da origem do
mal, para o qual o católico tem uma resposta por completo distinta, ainda quando a
linguagem de São Paulo, por exemplo, é mais semelhante ao da gnose (37).

NOTAS.

18
(1)- Texto dos Maniqueus, citado por S Petrement. Lê dualisme chez Platon, lês gnostiques
et lês manichees, p 185.
(2)- Texto de Kant citado por S Petrement, op cit, p 186.
(3)- Ginza (livro sagrado dos mandeistas), 461, p 10-11.
(4)- Esta atitude religiosa não deve confundir-se com a negativa a procriar motivada por
razões individuais (medo das dores de parto, ou desejo de não prejudicar seu bem estar
material).
(5)- Sermão de Benares.
(6)- Citado por Clemente de Alexandria, Stromata, II, 114, 3-6.
(7)- Basilides escandalizava aos católicos ao afirmar que o martírio mesmo deve ser
considerado uma expiação.
(8)- Pistis Sophia 131, 336, a celebre frase de cristo (Lc 23,24): Eles seus verdugos não
sabem o que fazem.
(9)- Uma vez estabelecido na criança, se desenvolve graças a absorção de alimentos
carnais.
(10)- Merece observar-se que esta divisão tripartite do homem é professada por Paulo.
(11)- C H Puech, Annuaire, ano 54, p 195.
(12)- Ginza 254, 36-37.
(13)- Segundo alguns gnósticos não tem só um mundo, senão uma multidão inumerável de
mundos inacabados. O livro de João Egípcios, não confundir com o João apócrifo, 196, 7.8:
Quando terminarei de cair em todos os mundos?
(14)- A serpente ouroboros dos manuscritos gregos de alquimia.
(15)- Pistis Sophia, 126-319.
(16)- Alguns gnósticos agregam a estes sete arcontes planetários doze guardiãs da esfera
das fixas, ou seja das estrelas.
(17)- Os maniqueus substituem o Sol e a Lua, aos que consideram bons, pela cabeça e a
cola da constelação do Dragão: respeitam assim o numero sete.
(18)- Hino dos naasenos (Hipólito, Philosophoumena V, 10, 2).
(19)- Posições menos radicais são evidentes possíveis. S Petrement Lê dualisme chez
Platon, p 271: Com o maniqueísmo, o divino volta ao mundo; já não só está presente na
alma humana, senão também nos vegetais, na luz, e na natureza em geral.
(20)- Corpus Hermeticum VI, 4. Pois alguns textos herméticos mencionam um Deus
cósmico bom ( C H XII ,15), porem que outros intentam um compromisso: o mundo é não
mau entanto que imortal ( C H X 12).
(21)-Esta identificação tende a reaparecer incessantemente (este fragmento de um poema
anônimo – firmado Aureolus Magnus – que se publicou em Paris em 1864: O inferno é
deste mundo. É um inferno que arde! Que não se o busque em outra parte. (Satan spirite p
5). Em certo sentido, pode achar-se a mesma identificação em Lautreamont e em Kafka).
(22)- Declaração do cataro Limosus Negro (de Saint Paul de Fenoulliet) ao bispo de Alet.
(23)- H C Puech. Annuaire, ano 56 p 192.
(24)- Robert Ambelain . Adam dieu rouge, Paris, Niclaus, 1941, p 18, analisa muito
acertadamente o estado de espírito dos gnósticos contemporâneos: Seja qual for o lado para
o que olhemos, a Natureza material, esta obra apresenta divina, tão admirada e louvada, não
nos oferece outro espetáculo dos mais selvagens e feroz desencadeamento dos maus
instintos. Tanto no reino humano como no vegetal, o forte aniquila o fraco, apelando para
isso a mentira (procedimento de captura) e a crueldade inútil (procedimento de
consumação).

19
(25)- Petrement, op cit, p 158.
(26)- Doresse, Les livres, t I, p VII.
(27)- Petrement, op cit, 179.
(28)- Alguns gnósticos explicavam a Odisséia como uma alegoria das navegações da alma,
errante pelo mundo terreno.
(29)- Ver o profundo estudo de Puech. A gnose e o tempo.
(30)- Puech Annuaire, ano 55 , p 173-174.
(31)- Ibid p 173. Se bem alguns gnósticos fazem da lei das reencarnações um meio de por
ao homem a prova, muitos a consideram uma escravidão tirânica infringida ao homem pela
vontade arbitraria do Demiurgo maligno ou dos anjos inferiores.
(32)- a palavra alheia (estrangeiro, em grego allos, heteros, xenos, allotrios, allogenes; em
latim alius, alienus, extraneus; em mandeu nukraya etc) se repete permanentemente na
literatura gnostica.
(33)- Ginza III, 4.
(34)- O Canto da Perola (ou da alma) dos Atos apócrifos de Tome, cap 109-111.
(35)- Fragmento gnóstico citado por Hipólito Philosophemena, V 6,6. H Leisegang. Gnose,
p 9: A gnose na realidade é o conhecimento da Realidade supra sensível e é considerada
como a energia motriz de toda a forma de existência no núcleo do mundo sensível e mais
alem dele.
(36)- Puech, op cit , ano 55, p 176.
(37)- Jean Danielou. Le yogi et les saints. Dez, 1948, p 299: De onde vem o mal e o
sofrimento? Não vem das realidades mesmas, senão do fato de que estas realidades, o
cosmo e a alma se acham cativas de poderes maus, aos que Paulo denomina de Morte,
Pecado, e Diabo. Não se trata, pois (para o católico), de dissolver o mundo e a alma, senão
libertá-las.

20
CAPÍTULO III - COSMOLOGIA E SOTERIOLOGIA.

3.1. POR QUE EXISTEM DOIS MUNDOS?

3.1.1. O DEMIURGO: O DEUS CRIADOR E O DEUS DESCONHECIDO.

Para o gnóstico, o mundo é mau: é o lugar tenebroso em que as almas sofrem. Porque se
tem formado este mundo no que reinam o sofrimento, a crueldade e a morte?

A resposta mais simples é, evidentemente, postular um responsável: O senhor deste mundo


ama o sangue, se lamenta um gnóstico da seita dos perates (1).

Um Demiurgo perverso criou o mundo, e é o que o governa. Eis aqui o que escreve o autor
de um segundo livro de Jeú dirigindo-lhe aos judeus e aos católicos:

Vosso Deus é maligno. Escutai agora, que vos direi qual é sua natureza. É o terceiro poder
do grande Arconte; seu nome é Tariqueu, filho de Sebaote e de Adamas, é o inimigo dos
céus; seu rosto é o de um javali, os dentes lhe saem da boca, e em lugar de costas tem um
segundo rosto, que é o de um leão (2).

Este fragmento copta mostra claramente que o autor do mal não é a Divindade suprema,
senão um deus inferior e maldito. Em lugar de um Demiurgo único aparecerão com
freqüência um numero incontável de entidades, de poderes temíveis que se interpõem entre
a Divindade e os desditados seres humanos:

Todos os anjos dos eons, seus arcanjos, seus arcontes, seus deuses, seus senhores, seus
dominadores, seus tiranos, suas forças, suas centelhas, seus astros, seus invisíveis, seus
pais anteriores, seus três vezes poderosos (3).

Estes arcontes, anjos, e arcanjos etc, são os responsáveis da rigorosa fatalidade que reina
neste mundo (4).

Pois o Demiurgo – o Deus criador – aparece com freqüência nas gnosis: é o grande
arcontes, o proto arcontes, situado muito por cima dos anjos inferiores, ainda que não é o
verdadeiro Deus: Ele também – dizem os valentinianos – é um anjo, pois semelhante a um
Deus (5).

21
Não é necessariamente cruel: muitos gnósticos o consideram mais bem como um princípio
que atua de um modo cego e ignorante. Justino (6), por exemplo, diz nem de ciência nem
de visão (7).

Para Cerinto, um dos primeiros gnósticos cristãos, o mundo não é obra do Deus supremo,
senão que um poder que até ignorava a existência da Divindade superior a todas as coisas:
a causa primeira.

O Demiurgo é apresentado com freqüência como um operário não especialista, que se


esforça por copiar a obra do verdadeiro Deus:

Os marcosianos (discípulos de Marcos, um valente cristão) diz ( ) que o Demiurgo


quis imitar a natureza infinita, alheia a todo limite e a todo tempo, do Ogdoade superior,
pois que não pode reproduzir sua estabilidade e sua perpetuidade por que ele mesmo era
fruto de uma imperfeição. Para aproximar-se da eternidade do Ogdoade criou tempos,
momentos, series inumeráveis de anos, imaginando-se que mediante esta acumulação de
tempos imitava a infinitude daquele (8).

Em Marcião, a doutrina do demiurgo se converte num dualismo rigoroso: ao criador do


mundo visível se opõe ao deus desconhecido, alheio, invisível, oculto, transcendente; o
primeiro é o Deus bom anunciado pelo Evangelho. Cristão apaixonado, Marcião se apóia
num postulado não comovível: a verdade absoluta do Evangelho (9). Agora bem: não é
evidente que Cristo se apresenta como o Filho de um deus desconhecido e absolutamente
bom e que Javé do Antigo Testamento é tudo o contrario de um Deus de pura bondade?
Marcião interpreta as escrituras do modo mais literal: a diferença de outros gnósticos está
muito longe de ser um alegorista. Para ele, o Antigo testamento não é em absoluto uma
sucessão de mitos, e ainda menos uma sucessão de mentiras; é o relato de uma historia
verdadeira pois horrível: a da dominação tirânica do criador sobre o mundo e os homens.

Responsável da criação material e da lei mosaica, este Deus criador se opõe de maneira
absoluta ao deus supremo que permaneceu desconhecido para ao mundo até a revelação
cristãs; é o Deus dos sacrifícios sangrentos, das batalhas e de massacres910). Não é, sem
embargo, o diabo, ou um Deus profundamente mau (ao menos para Marcião, por que
outros gnósticos não duvidam em afirma-lo): é o Deus da justiça estrita e implacável (
muito inferior a bondade infinita do deus supremo); é o que criou o mundo a partir de uma
matéria preexistente (11). O deus do Antigo Testamento ignorava que havia outro Deus – o
Deus verdadeiro - por cima dele (12).

A maior parte dos gnósticos cristãos identifica ao demiurgo – responsável da criação do


mundo visível e do fechar das almas na carne – com o Deus dos Judeus: a Divindade
suprema incognoscível não deve ser confundido com o Deus inferior do Antigo testamento.
Nem todos adotam uma posição tão hostil como a de Marcião, pois a exceção dos gnósticos
judaizantes, o Deus da Bíblia não é identificado nunca com a Causa primeira. Eis aqui, a
titulo de exemplo, o que nos diz o gnóstico valentiniano Ptolomeu, quem adota uma das
posições que mais matizes apresenta:

22
Pois se esta Lei (de Moises) não tem sido estabelecida nem por Deus perfeito mesmo (
), nem tampouco pelo diabo ( ), este legislador deve ser um terceiro, distinto dos
outros. É o Demiurgo e o criador deste mundo e de todo o que contem. Difere das outras
essências: é um intermediário entre elas. Se lhe dará com justiça o nome de Intermediário
(13)

Volta-se a encontrar sempre a idéia de que o mundo não foi criado pelo verdadeiro Deus,
senão por um poder inferior: a gnose supõe sempre uma atitude dualista, ao menos
primitivamente (14).

O gnóstico no sentido estrito não se acha caracterizado pela oposição entre a matéria e o
divino (que existe em muitos sistemas filosóficos e religiosos): o que o define é a oposição
entre o mundo e Deus, entre a luz e a trevas, o superior e o inferior, o de cima e o de baixo.
O homem participa simultaneamente do mundo inferior e da natureza superior: é um
luminoso aprisionado na carne. Pois esta dualidade é própria somente do homem?
Chegamos aqui ao problema do dualismo cósmico, da oposição entre dois princípios
dentro do mundo mesmo.

3.1.2. LUZ E TREVAS: O DUALISMO COSMICO.

Nas religiões e filosofias nas que se o encontram – escreve Simone Petrement- o dualismo
parece vinculado com a crença no transcendente; é uma crença em algo desconhecido que
não é só algo não conhecido todavia, em algo invisível que não é só que ainda não tem sido
visto, senão que exatamente parece ser o resultado desta crença (15).

A gnosis estabelece uma separação brutal entre dois tipos de realidades: a realidade
sensível, que é o domínio da decadência, o gnostico opõe um mundo distinto, novo, alheio,
desconhecido, invisível; a esfera do corporal, da divisão, do tempo, da carência, da morte,
da ignorância, do mal e das trevas, opõe a esfera do imaterial, da unidade, do
conhecimento, do bem e da luz.

Esta oposição é absoluta:

Donde está o dia, não existe à noite, donde está a noite, não existe o dia (16).
Salva-me da matéria destas trevas (17).
Renuncia por completo ao mundo e a matéria que contem (18).

Os gnósticos se consideram a miúdo alheio, querendo indicar com isso que constituem uma
raça particular, a que está separado dos demais homem porque participa do mundo superior,
que é um mundo luminoso.

Pois o mal não contem sós na separação, senão também na mescla, na confusão de duas
naturezas opostas.

23
A conseqüência de uma catástrofe cósmica resulta que a luz se acha aprisionada nas trevas:
Nós [se supõe que falam os poderes demoníacos] tomamos uma porção do céu, mesclamos
e fundimos com uma porção de Terra e fabricamos o Homem (19).

O Demiurgo – a quem se chama freqüentemente com os nomes Hebraicos Ialdabaoth (filho


do caos) e Tsebaoth (deus dos exércitos), para mostrar que não é outro que o deus do
gênesis - pode ser representado como um ser demoníaco, quem com o objeto de animar a
Jerusalém terrestre, ou seja, a matéria (20), arrebatou um raio ao Pai das Origens. E
segundo a doutrina de diversas seitas (os docetistas e os caprocracianos, por exemplo), é ele
quem atormenta as pobres almas fazendo-as passar por inacabáveis transmigrações.

Algumas cosmogonias são muito complexas. O gnostico Justino afirma em seu livro
Baruch que a origem das coisas se acham três princípios masculino, privado de toda
presciência do futuro: Elohim; e um principio feminino, igualmente privado da presença:
Éden. Os amores de Elohim e de Éden deram origem aos anjos dos céus inferiores, quem
extraíram os seres animados do corpo de Éden. Pois esta ultima, despeitada pelo
abandono de Elohim, se vinga sobre o que este princípio deixou sobre a terra: o espírito
que reside no homem.

O apócrifo (literalmente: livro secreto, escondido) de João relata com muitos detalhes o
modo em que Ialdabaoth – Saclas criou os céus e a terra por meio de muitas entidades
dotadas de formas animais ou monstruosas; a estes poderes maléficos se opõem outras, as
trevas; entre ambas, os setianos introduzem um principio intermédio: o espírito.

Por diversos que sejam os sistemas, a gnosis se apóia numa oposição fundamental: a que
existe entre a Realidade suprema, transcendente e inacessível e o mundo inferior,
corrompido e corruptor (21): é a oposição entre a luz e as trevas. Nos sistemas gnósticos
se entre cruzam, por outra parte, numerosas oposições: masculino feminino, matéria -
espírito, bem-mal, bondade-justiça, liberdade-destino, etc. A intuição gnostica original é a
da oposição radical entre os dois mundos – o de cima e o de baixo – totalmente separados
entre si; pois esta dualidade se traduz na realidade pela mistura anormal de duas
naturezas antagônicas ( a luz e as trevas, o espírito e a carne), de dois modos de ser
perfeitamente incompatíveis.

É assim como algumas gnosis concluem num dualismo inerente ao mundo: este resultará
então do conflito entre dois princípios opostos de igual força. O maniqueísmo constitui um
típico exemplo desta concepção.

O iraniano Manes, contemporâneo de Plotino (22), é um dualista resolvido, que não duvida
em conferir ao Príncipe das Trevas um poder igual ao do deus bom. Os textos se
distinguem por seu dualismo radical:

Quem deseje entrar na religião, escreve Manes, deve saber que os dois princípios, o da luz
e da escuridão, são naturezas completamente distintas (23).

24
O Paracleto vivente veio até mim e me falou. Revelou-me o mistério secreto que esteve
oculto ao mundo e as gerações, o mistério da luz e as trevas, o mistério da luta e o mistério
da guerra que as trevas provocaram; me revelou como a luz, se mesclou com as trevas, e
como foi construído este mundo (24).

Bem aventurado quem (conhece) as duas arvores e os separa mutuamente, e quem sabe
que eles não tem nascido um para o outro, nem saído um do outro, e que não tem saído de
um só (tronco) (25).

Existiam Deus e a matéria, a luz e a obscuridade, o bem e o mal; todos os quais eram
completamente contrários entre si, até o ponto de que não havia entre eles comunicação
alguma (26).

Na origem havia duas substancias dividida pela natureza (27).

A doutrina dos maniqueus constitui uma historia grandiosa e detalhada da guerra primitiva
entre a Luz e as Trevas, da mescla resultante e do estado final de retorno a diferenciação
primeira. É a teoria dos Três Momentos: o momento anterior, em que os dois princípios
existem separadamente; o momento intermédio, em que se produz a desastrosa mescla da
Luz e as Trevas, e o momento final, que é o retorno a separação. Na origem havia dois
mundos distintos apesar da existência de uma fronteira comum: o reino luminoso do Pai da
Grandeza e de seus Eons, que se estende sem limites para o norte, o oeste, o este, para cima
e o reino do Príncipe das Trevas, que se estende sem limites para o sul e para baixo e que
se funde como uma cunha ( pois sem que tenha penetração real) no domínio da luz. Abas
regiões são descritas com grande luxo de detalhes (28).

O Príncipe das Trevas quis conquistar o reino maravilhoso da luz, o que originou entre os
dois príncipes um luta titânica de múltiplas peripécias; nós não nos ocuparemos destas
ultimas, que foram admiravelmente estudadas por Puech (29). O que devemos fazer notar é
que no maniqueísmo o Demiurgo se converte no verdadeiro Deus: a arquitetura do mundo é
sua obra, se bem o Príncipe das Trevas proporcionou a matéria. E o mundo material foi
organizado de modo que pudesse libertar progressivamente, metodicamente, a substancia
luminosa aprisionada nos corpos: o sol e a lua se convertem outra vez em seres veneráveis,
que desempenham um papel particular na libertação das almas humanas. No mundo, a luz
divina é onipresente, ainda que se ache profundamente mesclada com as trevas.

O universo nos diz, Manes, é o local onde se curam os corpos luminosos, pois é ao mesmo
tempo a prisão donde os obscuros demônios os prendem (30).

O maniqueísmo é a forma mais radical do dualismo cosmogonico (31), e muitas gnosis


chegam a conclusões semelhantes. Existem algumas, sem embargo, que se resistem a
passar do reconhecimento de um dualismo de fato a um dualismo de direito, circunstancia
que devemos ter em conta.

3.1.3. AS GNOSIS MONISTAS.

25
Alguns gnósticos se negam a postular dois deuses, ou seja, dois princípios divinos.
Heracleon, um dos mais notáveis discípulos de Valentin, colocou de relevo que o demiurgo
pode ser comparado com um desses reis indígenas deixados em seus postos pelas
autoridades romanas e que governavam debaixo da autoridade do imperador: o Deus
supremo se acha absolutamente por cima de todas as coisas, nada pode disputar-lhe a
hegemonia.

A doutrina das emanações divinas permitirá explicar a aparição de um mundo mau: ao


final do processo encontramos uma entidade metafísica donde o elemento divino se acha
tão debilitado que se faz possível uma queda. A esta tendência podem vincular-se os
sistemas dos chamados grandes gnósticos: Basilides e Valentin.

Basilides é o maior metafísico da gnose cristã. O problema que se coloca é o seguinte:


Como a natureza sem raiz nem assento tem chegado até as coisas (32). Valentin é também
um grande pensador, ainda que se ache mais inclinado que seu predecessor na utilização
do mito.

Basilides coloca nas origens uma Divindade tão inconcebível, que nem sequer pode dizer-
se que Ela é: é o Deus que não é nada. Dizer que Deus é inexprimível seria também dizer
algo de Deus: Deus é tão superior a tudo o que não pode aplicar-se sequer a noção de
existência, tal como o homem a concebe. O esforço do gnósticos alexandrino prefigura a do
grande místico alemão Mestre Eckhart (33), e de seu compatriota Jacó Boehme (34).

O (Deus) – não é nada: nem matéria, nem essência, nem simples, nem composto, nem
inteligível, nem não inteligível, nem não sensível, nem homem, nem anjo, nem Deus, nem
em geral nada do que tem um nome (35).

Passagens análogas se encontram em diversos gnósticos cristãos:

Existia um primeiro principio, incompreensível, inexprimível, não nominável (36).

Só tu és incompreensível, só tu és invisível e só tu careces de essência (37).

Ele não é perfeição, nem beatitude, nem divindade, porque é mais que isso; não é
tampouco infinito, porque é mais que isso (...). Não participa nem da eternidade nem do
tempo (38).

Não trates de conhecer a Deus; ele permanece desconhecido e não o descobrirás (39).

A mesma aspiração para a teologia negativa se acha em certos textos herméticos:

Deus é nomeado só pelo silencio, é adorado só pelo silencio; Deus não é pronunciado nem
ouvido (40).

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Sem embargo, todas as coisas procedem do Primeiro Mistério, desta Deidade absoluta. O
Nada existente de Basilides é também o deus – devir, que encerra em si todos os germes, a
semente universal:

O Ovo de um pássaro adornado por manchas e cores distintas, como o do pavão real ou
qualquer outro pássaro que possua uma variedade ainda maior decores e formas, é um, e
sem embargo, contem em si mesmo muitas espécies de seres muito distintas entre si por
suas formas, suas cores e sua constituição. O mesmo ocorre, diz Basilides, com a semente
do mundo, depositada por Deus que não é, semente que em si mesma não existe e que, sem
embargo, contem às vezes as formas e as substancias mais variantes (41).

Pois, pelo geral, a gnose faz intervir numa complexa hierarquia de entidades, forças ou
poderes: O eons (literalmente eternidade), a grupados segundo certos paralelismos
numéricos; com freqüência os achamos associados por duplas de eons macho e fêmea (42).
Em Valentin, o mais celebre dos gnósticos cristãos, ao eon se ordena em função de uma
espécie de dialética: Abismo, Silencio, que são os dois atributos do deus desconhecido;
Inteligência, Verdade, Palavra, Vida, Homem, igreja, etc. Valentin é um pensador
platônico: os eons são para os seres eternos, os modelos dos quais a criação sensível não é
mais que uma imagem imperfeita. O conjunto dos eons constitui o pleroma, a plenitude
análoga ao mundo inteligível dos platônicos (43). Valentin apela de bom grado aos mitos e
alegorias metafísicas. Eis aqui uma de suas visões, conservada pelo estudante de heresias
Hipólito de Roma:

No éter que tudo está misturado com o pneuma, No espírito vejo que tudo está levado pelo
pneuma:
A carne suspensa na alma, a alma arrastada pelo ar, o ar suspenso no éter, frutos saindo
do abismo, uma criança nascendo da matriz (44).

E esta é a explicação do fragmento:

A carne é a matéria suspensa na alma do Demiurgo. A alma é impulsionada para cima


pelo ar, ou seja: o Demiurgo é elevado para cima pelo pneuma que está fora do Pleroma.
O ar se acha suspenso no éter, ou seja: a Sofia exterior se acha suspensa no Horus interior
e em todo o Pleroma. Os frutos que surgem do abismo são toda a emanação dos eons a
partir do Pai (45).

Extremamente complexa, a gnose valentiniana motivou numerosas divergências entre os


sectários mesmos: alguns valentinianos davam ao Pai desconhecido uma companheira:
Sige, outros afirmam, pelo contrario, que o Deus supremo reina só em sua eternidade, e que
a criação foi para ele um modo de estender seu amor (46). Pois o principio em que se baseia
é simples: ao postular intermediários entre Deus e o cosmo, Valentin deseja resolver uma
cosmogonia de emanações. Os eons são como as manifestações diferenciadas do que se
acha confundido no abismo, como os nomes do ser infinito; pois o ultimo da serie dos eons,
Sofia, a Sabedoria, tem caído do Pleroma, e suas paixões deram nascimento a matéria, ao
Kenoma (vazio e carência). Por esse motivo Deus se viu obrigado a separar o imperfeito
mundo visível do mundo perfeito, ou seja, do Pleroma: esta separação foi realizada pelo
eon Horus (o limite) (47).

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Valentin é um dos gnósticos (48) mais próximos da doutrina neo-platonica da emanação,
com a diferença de que atribui a degradação da matéria da substancia divina a uma queda
fortuita.

Outra gnose excepcionalmente profunda desde o ponto de vista metafísico é a exposta no


Apofasis, livro atribuído a Simão o Mago e do qual Hipólito nos conservou alguns
fragmentos: Simão coloca por cima de todas as coisas ao deus não gerado, infinito e
inefável; é o Fogo primordial de Heráclito e dos estóicos, o fogo devorador de que fala
Moises (49). Deus é aquele que se mantém, se manteve e se manterá de pé (nosso gnostico
deseja insistir sobre a estabilidade permanente e a imutabilidade de deus); é um fogo
duplo, com um lado visível e outro invisível. Do primeiro principio surgem três raízes ou
Poderes, que formam três parelhas: o espírito, o pensamento, a voz, o nome, a razão, a
reflexão. A estes três eons do mundo espiritual correspondem outras três parelhas no
mundo sensível: o céu, a terra, o sol, a lua, o ar, e a água.

Ademais destes seis eons tem um Demiurgo, o sétimo poder. É o espírito que contem em si
mesmo todas as coisas, uma imagem que provem de uma forma incorruptível e única
ordenadora de todas as coisas. Este Demiurgo não é mau. Simão reserva sua maldição
para os anjos inferiores, responsáveis do encerrar das almas na carne.

Na gnose menos filosófica, a eonologia adquire uma complexidade extrema: multiplicam-


se as entidades do mundo superior, as que se designa mediante nomes tomados não só do
grego, senão das línguas hebraica e egípcia, etc. Podemos citar alguns nomes: Barrbelo,
Prunikos, Harmozel, Oroiael, Daveithe, Eleleth, Monogenes, Autogenes, Thelema,
Ialdabaoth, Iaô, Sebaoth, Adonis, Eloeus, Oreus, Astaphaeus. Miguel, Samel, Daden, Sacla,
Aberamentho, Agramakharei, Harmas, Athoth, Sabbataios, Galila, Antropos, Adamas.
Estas entidades – semi-abstratas, semiconcretas – se movem num domínio intermédio entre
a realidade e o mito. São fragmentos temporais, períodos do drama cosmogonico aos que se
tem conferido caráter espacial e hipostasiado (ecnos significa também séculos), e encarnam
em pessoas concretas dotadas de inteligência, vontade e desejo. São entidades que atuam e
se enfrentam.

Eis aqui uma analise da incrível complicada mitologia da Pistis Sofia (50): na alta corte
do rei um Deus inexpressável e infinito; logo Deus se despreza em inumeráveis entidades,
cujo conjunto forma uma espécie de Homem primordial. Do primeiro Mistério – assistido
por uma multidão de poderes: pro-triplice-espirito, super-triplice-espirito, sem pai - se
originam outros vinte e quatro mistérios, por cima dos quais se acham o tesouro da luz,
com doze Salvadores, nove guardiões e três portas. No lugar dos Justos, estabelecido a
certa distancia do Tesouro, residem Jeú, os dois grandes Governadores, o Guardião da
Grande Luz, Melquisedeque, e o Sebaote Santo bom: sua função consiste em recolher todas
as porções extraviadas de luz. No lugar Intermediário reina Iaô o Grande, assistido pelo
pequeno Iaô o Bom e um Pequeno Sebaote o Bom, também reside ali a grande virgem da
luz, que julga as almas. Por cima do Lugar Intermediário se acha o Lugar da Esquerda,
governado pelo Grande Invisível, quem está assistido por Barbelo e Poderes tríplice. A
esfera da Eimarmane (ou seja, da Fatalidade) separa os doze poderes zodiacais dos céus
visíveis e do mundo terrestre.

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Igual complicação se encontra em outro texto gnósticos na língua copta, a segunda parte
do Código de Bruce (chamado assim por ser o escocês que descobriu); do Deus inefável e
invisível se origina o antropos, o Homem primordial sobre o qual se tem pintado todos os
mundos, no alto do Universo a Monada e o Monogenes, vem depois uma impressionante
sucessão de Silêncios, Abismos, Fontes, e Seios geradores.

Pois voltemos a gnose de tendência mais metafísica. Algumas se esforçam por superar
completamente o dualismo. Uma primeira solução, muito pouco aceita, consiste em
converter o mal e a matéria em simples aparências, em coisas ilusórias:

Pois tudo está nos céus, nada está na terra ainda que parece estar nela aos que não
possuem o conhecimento (51).

Outra solução consistirá em situar a Divindade suprema por cima da oposição entre o bem e
o mal; o dualismo se converte então numa teoria dos contrários. É a solução adotada pelas
Pseudo Clementina, que de fato compreendem duas obras distintas: as Homilias
Clementina propriamente dita e os Reconhecimentos, atribuídos a Clemente de Roma
(personagem da primeira metade do século II d.C.) , pois que são obras de sectários judeus
cristãos do século IV d.C.(52).

Deus mata com sua mão esquerda, ou seja, pelo ministério do Mau, quem por
temperamento sente prazer em atormentar aos ímpios. Pois salva e faz o bem com sua mão
direita, ou seja, pelo ministério do Bom, quem foi criado para que se regozijara enchendo
aos justos de benefícios e salvando-os (53).

A mesma doutrina se encontra em alguns iranianos do século V d.C.: a divindade suprema


é dividida em duas partes, de onde se originam respectivamente o bem e o mal (54).
Podemos citar também o famoso texto sobre o Matrimonio dos Céus com a Terra, de
William Blake:

Sem os contrários não tem o progresso. A atração e a repulsão, a razão e a energia, o


Amor e o Ódio, são necessários para existência do homem. Destes contrários surge o que a
religião chama de Bem e de Mal. O Bem é o passivo submetido a Razão. O Mal é o ativo
que surge da Energia. O Bem é o céu. O Mal é o Inferno.

Ainda que alguns gnósticos crêem que o cosmo e o homem não foram criados pelo
principio supremo, senão por um poder intermédio, se negam a converter a este num ser
mau: é o que ocorre com o autor do mais celebre dos tratados herméticos, Poimandres,
onde o Demiurgo aparece como o ordenador, o obreiro, o grande arquiteto do mundo,
intermediário entre a causa primeira e o mundo visível (55). Poimandres é em efeito, o que
faz intervir um Verbo que organiza as trevas (56). Encontra-se também nele o tema que
existe em Basilides e em algumas formas do gnosticismo judaico: o da retirada de Deus,
quem primeiro onipresente, se retirou de uma parte do universo com o fim de deixar lugar
livre para o desenvolvimento cósmico (57).

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Todos os gnósticos desejam conhecer o mundo superior e saber que repercussões tiveram
os acontecimentos celestes sobre a historia do mundo e da humanidade.

3.1.4. A MÃE.

Volta a encontrar-se na gnose o culto da Mulher divina, da Mão, do eterno feminino: é o


caminho entre Deus e o mundo; ela pode cair sobre o mundo, pois também pode salva-lo.
Alguns gnósticos não duvidam em fazer da Mãe, assimilada ao espírito Santo, a terceira
hipóstase do Absoluto manifestado: é o Deus – Mãe, Sofia, Nossa Senhora o Espírito
Santo; é também o Parácleto, aquela que virá. Torna-se a velha Trindade egípcia do Pai, da
Mãe (Isis) e o Filho.

Em muitas seitas, a doutrina e o culto giram em torno de uma entidade metafísica, Barbelo
(nome que provem do hebraico Barbe Eloha Deus é em quatro, alusão ao Tetra divino:
Pai. Filho, Pneuma feminino e Cristo). Barbelo é a primeira exteriorização, a força, a
imagem, a luz do Pai: desempenha no mundo o papel atributivo ordinário ao logos. Pois é
uma figura ambivalente, semelhante a turbadoras deusas dos antigos cultos mediterrâneos
da fecundação (Astarte, Astargatis): simboliza a virgindade sem macula e também o poder
gerador, a luxuria sagrada.

Os sistemas em que intervem Barbelo são muito complexos. Eis aqui, por exemplo, o dos
nicolaitas, seita contra a qual o Apocalipse (58) coloca em guarda as igrejas de Efeso e de
Pergamo: as Trevas (o abismo e as águas), recusadas pelos espíritos não gerados,
ascendem com a fúria para ataca-lo; esta luta produz uma espécie de matriz que de parte
do espírito gera quatro eons, que a sua vez gera outros quatorze, depois do qual se formam
a direita e a esquerda, a luz e as trevas. Um dos poderes superiores emanados do espírito,
Barbelo, a Mãe celeste, gerou a entidade má (Ialdabaoth ou Sebaote), criadora deste
mundo; pois arrependida de seu ato, se serve de sua beleza para começar a salvação do
cosmo inferior (59).

Podem encontrar-se especulações análogas em numerosas seitas mais ou menos


vinculadas: os chamados simplesmente gnósticos, os fibionitas, os estratioticos, os
leviticos, os Adeptos da Mãe. Os barbeliotas, os setianos, etc. Aparece sempre o mito do
Pensamento divino, da Mãe, que cai na matéria (o caos, o abismo, as trevas, a água), da
que deve ser salva depois.

Numerosas gnoses apelam com freqüência aos mitos e imagens de caráter sexual. Às vezes
todo processo cosmogonico é reduzido a um matrimonio divino. Eis aqui, por exemplo, a
cosmogonia da seita dos kukeus:

Dizem que Deus nasceu do mar situado na Terra da Luz, ao que denominam Mar
Desperto, e que o Mar da Luz e a Terra são mais antigos que Deus. ( Dizem também) que

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quando Deus nasceu do Mar Desperto se sentou sobre as águas, as contemplou e viu nelas
própria imagem. Então estendeu a mão, tomou (a imagem) e a fez sua companheira. Teve
com ela relações e gerou uma multidão de deuses e de deusas (60).

Com freqüência a imaginação sexual é menos visível, pois se a pode descobrir facilmente:
recordaremos especialmente, de acordo com Gatão Bachelard (61) que nas formas
primitivas de pensamento, o psicólogo pode estabelecer uma relação analógica entre a
geração do fogo e as modalidades do acoplamento. Incluído quando a maldizem e querem
libertar-se dela, muitos gnósticos se acham literalmente com obsessões pela sexualidade e
suas variadas manifestações.

3.2. A QUEDA E A REDENÇÃO.

3.2.1. O ESPIRITO APRISIONADO NAS TREVAS.

Para a gnose, a alma, a parte superior do homem, é sempre um fragmento luminoso


subtraído da divindade e o aprisionamento na terra: houve nas origens um descenso, uma
queda da Luz. Esta queda é imaginada às vezes de uma maneira sexual: a semente divina se
perde, se infiltra na matriz, que é o caos, a matéria; pois o Salvador a recupera atraindo para
ela a alma eleita. Eis aqui, tal como parece no Poimandres hermético, o mito da queda do
Homem Primordial (que não é o primeiro dos homens terrestres, senão uma hipóstase
metafísica que desempenha o papel de um Logos ou Verbo):

Então o Homem, que dominava o mundo dos mortais e dos seres irracionais, se somou
através das esferas (planetárias), depois de romper sua envoltura, e mostrou à Natureza de
baixo a bela forma de Deus. Quando viu que tinha em si mesmo a beleza inesgotável e toda
a energia dos Governadores (dos sete planetas) junto à forma de deus, a Natureza sorriu
de amor, por que havia visto os traços da forma maravilhosamente bela do Homem
refletir-se na água, e sua sombra projetar-se sobre a terra. Tendo percebido esta forma
semelhante a ele, presente na Natureza, refletida na água, ele a amou e quis habitar ali.
Desde o instante em que quis cumpriu seu desejo, e foi a habitar a forma irracional. Então
a Natureza, que havia recebido nela a seu amado, e abraçou toda, e se uniram, pois
ardiam de amor (62).

Esta idéia tem sido redescoberta independentemente por escritores modernos, em particular
por Lautreamont, quem descreve a descida de Deus sobre o mundo e suas núpcias
monstruosas com a matéria. É depois deste acontecimento quando a chama divina que tem
em nós (63) é aprisionada no mundo, no campo de ação do exercito das dores físicas e
morais (64). O poeta inventa um verdadeiro mito gnóstico: a aventura do cabelo – é o
homem – que Deus tem perdido num lupanar; e Lautreamont se rebela contra o responsável
da decadência humana (65).

31
No maniqueísmo, em troca, achamos uma queda involuntária: o homem primordial desceu
as trevas para combate-las, pois estas o aprisionaram, e so pode libertar-se abandonando
sua couraça de luz. São fragmentos de luz que, mesclados com a matéria tenebrosa,
formaram o mundo. Tratará-se de desprender de sua carga a substancia luminosa: na
criação, as partes superiores esperam o momento em que serão liberadas. Volta-se a
encontrar aqui a idéia fundamental de toda a gnose: um elemento divino se tem extraviado
nas regiões inferiores; tratar-se-á de recuperar este elemento divino fundindo na matéria.

O problema do gnóstico é saber de que modo sua alma - que é uma chama divina
extraviada na terra – poderá retornar as regiões superiores desde onde tem caído.

Desde que fui unido a carne, diz um salmo maniqueu que canta as desditas da alma,
esqueci minha divindade. Tenho bebido o cálice da loucura, e me tenho rebelado contra
mim mesmo (66).

E o que aumenta, todavia mais a angustia do gnóstico é que a alma, que passa
perpetuamente de prisão, está submetida a incessantes reencarnações (67).

3.2.2. MITOS GNÓSTICOS SOBRE A QUEDA ESPIRITUAL.

A angustia do gnóstico ante o aprisionamento de sua alma na matéria da origem a mitos


especiais: as aventuras de entidades metafísicas refletem o destino, as situações sucessivas
do eu humano. A alma ou a anima – para empregar a linguagem de Jung - se projeta em
arquétipos mitológicos que podem tomar formas femininas ou masculinas.

Os mitos gnósticos em que aparece uma entidade feminina podem considerar-se formas
diversas de um mesmo arquétipo: o da Grande Mãe (68). Entre estes, os mais conhecidos
são o da Helena, na gnose Simoniana, e o da Sofia dos gnósticos Valentinianos e dos
herdeiros dos textos coptos.

Segundo Simão o Mágico, os anjos maus tomaram prisioneiro a Ennoia ou Epioia, o


pensamento divino, para impedir que retornara para o Pai desconhecido; depois de fazer-lhe
sofrer todos os ultrajes, lograram fecha-lo num corpo de mulher. Desde então o desgraçado
não cessou de passar de mulher em mulher: foi por sua causa que estalou a guerra de Tróia,
pois Epinoia era então Helena raptada por Paris. Da encarnação em encarnação, a Ennoia
caída se fundiu cada vez ais no pecado, até que encarnou no corpo de uma prostituta de
Tiro, chamada precisamente Helena (69). Pois esta foi sua salvação, por que Simão, que
buscava a ovelha perdida, a descobriu num lupanar e a fez sua companheira.

Simão cria que uma encarnação do Nous divino em busca de sua parelha: graças a seu
descobrimento de Helena, estava já em condições de realizar concretamente a união divina
do Grande Poder e do Grande Pensamento, que agora poderia voltar a reunir a semente
divina espalhada pela terra. A historia de Helena é um extraordinário documento

32
psicológico: a patética busca de sua dupla feminina, realizada por Simão, tem dado a
origem a um mito grandioso, cheio de sentido, cuja influencia se faz sentir até na época
contemporânea (70).

A historia de Sofia, verdadeira novela mitológica, tem nos Valentinianos numerosas


variantes. Resumamos brevemente uma das mais difundidas: o trigésimo e e ultimo dos
eons, Sofia ( a sabedoria), quis gerar por si mesma, sem acoplar-se com uma parelha, só
logrou trazer ao mundo um ser monstruoso pelo qual sentiu vergonha e desgosto. Os outros
eons rogaram a Divindade suprema em favor de Sofia, e a Divindade suprema ordenou a
Nous e a Aletheia que produziram uma nova syzygia, a Cristo e Pneuma (o espírito Santo-
Eon – feminino); ao mesmo tempo o proto Pai emitiu um novo Eon, Horus (limite) ou o
Stauros (a cruz), para separar o Pleroma da criação inferior, cujo primeiro elemento
produziu a Sofia.

Pois o monstro feminino gerado pela Sofia – se trata de Achamot (nome Hebreu da
Sabedoria), a Sofia inferior - foi excluído do mundo superior: debate-se na sombra e o
vazio. O Cristo inteligível tem piedade dela , lhe da forma substancial e logo se retira para
o Pleroma. Achamot se lança em busca da luz, pois Horus se lhe impede. Destas paixões
(medo, tristeza, angustia) nascerá a matéria de que se formará o mundo sensível. Os eons
lhe enviam então um companheiro, o Salvador, com o qual a Sabedoria inferior da a luz aos
anjos. O Salvador tira a desfeita de suas paixões e as convertem em essências permanentes,
origens do cosmo visível.

Na Pistis Sofia, escrito gnostico em língua copta, o mito valentiniano de Sofia sofre
importantes modificações. Pistis Sofia (a fé - sabedoria) quer elevar-se até aa luz suprema
do Pai; pois um poder maligno, Autades (o resolvido, o ambicioso), se converte numa força
com cabeças de leão, Ialdabaoth, quem faz brilhar ante a Sofia uma luz falsa, que ela
confunde com a luz verdadeira. Sofia é enganada pelo ardil e cai no caos, onde todos tipos
das forças malignos a atormentarão para tirar-lhe a porção de luz que possui. E a desfeita
só pode libertar-se depois de múltiplas peripécias.

As numerosas variações do mito que existem na literatura gnóstica fazem esquecer que a
historia de Sofia reflete, no plano teogonico e cosmológico, a paixão e a salvação das
almas humanas, ou seja, o problema essencial de todo gnosticismo e a fonte de seus mitos
principais (71). Encontramos sempre a mesma catástrofe cósmica: um elemento divino
(luz, alento, cheiro) a queda nas trevas, na matéria, na matriz impura, e se trata de salvar
esta chama chegada do alto.

Tem que precisar em que na gnose a alma ou o espírito é concebido de um modo


extremamente concreto e tangível: a alma superior é a luz no sentido estrito do termo. Para
o gnostico, a noção de espírito em extenso, tal como a concebe a filosofia cartesiana ou
aristotélica, carece de sentido: o espírito é a luz, um fogo, um alento aprisionado (no
sentido literal do termo) no corpo. Algumas gnosis não duvidam em assimilar a semente
humana ao pneuma divino gerador: o homem possui o pneuma em sua própria semente.
Espiritualizando uma crença muito primitiva, os gnósticos licenciosos (72) criam inclusive
que a salvação consiste em subtrair a semente a seu destino terreno e em reintegra-la a sua
fonte celeste, a substancia geradora do Todo. O preâmbulo do Evangelho de Eva declara:

33
Eu estava sobre uma alta montanha quando vi a um personagem de elevado porte e a outro
modo. Ouvi então uma voz semelhante ao trono. Aproximei-me, e a visão me dirigiu estas
palavras: Eu sou idêntico a ti, e tu és idêntico a mim; donde tu estás, estou eu, e eu estou
em todas as coisas; quando tu o desejas, tu me recebes, pois ao receber-me a mim, te
recebes a ti mesmo (73).

Inclusive baixo este aspecto particularmente preciso, voltemos a achar um postulado


fundamental da gnose: Eu sou tu e tu és eu. O homem deve recuperar seu ser luminoso
origem divina e ao faze-lo, contribui a salvação da luz divina (74).

Correspondentes ao mito de Sofia, encontram o do Homem Primordial, o Arkhantropos ou


simplesmente antropos, anterior ao mundo e caído na matéria (as idéias de queda, de
encarnação, de sofrimento e de sacrifício se acham estreitamente vinculadas). Não se trata
do primeiro homem, de adão, senão de uma entidade à vez metafísica e mitológica: o
Grande Homem, que alguns gnósticos denominam Adamas. No maniqueísmo, o Homem
Primordial é como o eu de Deus, uma emanação ou uma projeção da substância divina:
cada uma das lamas humanas é uma partícula da Alma universal, do homem Primordial, e é
por isso que se pode considerar como um raio da luz divina.

Em seu tratado Sobre a letra Omega, escreve o alquimista Zosimo: Porem que Phos (a luz.
Observa-se que a palavra grega phos significa, segundo como o acentue, homem, luz)
estava no Paraíso tomando fresco, os arcontes o persuadirão, a instigação da Fatalidade
(pretendendo que se tratava de algo carente de malicia e sem conseqüência), de que
cobrira o corpo de Adão, o qual surgia de suas mãos provenientes da Fatalidade e
formado pelos quatro elementos. Tratando-se de algo sem malicia, ele não se negou, e
aqueles se alegraram ao pensar que desde então eles o teriam como escravo (75).

Em alguns sistemas o Antropos é assimilado ao universo, ao macrocosmo: segundo os


naasenos, é através do conhecimento do Homem – e, portanto, neste sentido da palavra, do
universo – como se chega ao conhecimento de deus. O mundo espiritual é um Homem pré-
existente imanente a deus; pois o cosmo, que é a sua imagem, é também um grande
Homem. O macrocosmo: o homem terreno será às vezes um microcosmo que resume o
universo e, devido à semente espiritual que tem nele, uma imagem do Adamas celeste. Nas
Homilias Clementinas achamos uma teologia do caráter antropomórfico, que é como a
conseqüência extrema da doutrina do macrocosmo - microcosmo:

O verdadeiro Deus é aquele que tem a forma do corpo humano.É por consideração a
forma da divindade que o céu e todos os astros, ainda que superiores ao homem por sua
essência consentiram em servir a este ser que por essência é inferior a isso (76).

3.2.3. A CRIAÇÃO DO HOMEM.

34
Na maioria da gnose, a criação do homem não se considera uma obra divina: o deus
superior só intervem para corrigir o trabalho, defeituoso ou perverso, dos poderes malignos.

Eis aqui de que modo concebe a criação de adão o gnósticos Saturnilo: depois de perceber
uma imagem cintilante proveniente do Poder supremo, e não a fazendo podido reter, os
sete arcontes decidiram formar um homem. Pois , a causa de sua inquietude, só puderam
construir um ser que reatava, incapaz de manter-se de pé. A Virtude de cima teve piedade
de adão terrestre, por que havia sido feito a sua semelhança, e lhe enviou uma chama de
vida, que a permitiu viver e endereçar-se.

No maniqueísmo achamos uma antropologia de forte acento pessimista: o homem foi


criado pelos demônios, quem desejavam aprisionar em Adão a maior quantidade possível
de luz. Por sorte, deus teve piedade do pobre ser cego e surdo, inconsciente e extraviado,
até o ponto de que não conhecia nem sua origem primaria nem sua raça: iluminado por
Jesus da luz, (um eon transcendente que não se deve confundir com o cristo terreno), Adão
recordou a origem divina e luminosa doe espírito aprisionado em seu corpo. Deus enviará a
seus descendentes toda uma cadeia de iluminados: Sete, Enoque, Enos, Nicoteu, Noé, Sem,
Abraão, Zoroastro, Buda, Jesus e Manes mesmo.

No gnosticismo cristão aparece com freqüência a idéia de uma raça eleita, da semente de
Sete: como este patriarca nasceu de Adão e Eva, pois, segundo se cria, de um modo não
carnal, seus descendentes devem constituir a raça dos perfeitos, dos espirituais (77).

3.2.4. O SALVADOR.

Ainda que em algumas seitas não existe a crença num Salvador propriamente dito (posto
que a gnose basta para a salvação, só é preciso um revelador, um simples profeta), muitas
sentem a necessidade de um enviado divino, capaz de franquear o abismo entre a Divindade
suprema e a matéria.

O Salvador tem logrado enganam as forças malignas que aprisionam o cosmo:

Eu (quem fala é um nous divino) adoto em cada céu uma forma distinta, com o fim de
permanecer oculta aos poderes angélicos: desci até Ennoia, denominada também Prunikos
ou Espírito Santo, mediante a qual tenho criado os anjos, os quais criaram o cosmo e os
homens (78).

Como é possível, dizem (os arcontes), que o senhor do Pleroma tenha passado sem que nós
o soubéssemos? (79).

Eu habitei em suas regiões, pois nenhum dos sete o advertiu (80).

Não o reconhecemos; nos enganou por sua lamentável, sua pobreza e sua miséria (81).

35
Segundo os setianos, o Salvador enganou ao Criador apresentando-lhe com uma aparência
monstruosa, baixo uma forma de uma serpente (82). Deste modo o Verbo pode penetrar na
matriz impura e desatar ali os laços das chamas divinos prisioneira na matéria.

Em outras seitas se alude a uma luta do Enviado celeste contra os arcontes, aos que derrota:

Aniquilou a seus guardiões e fez uma brecha em sua fortaleza (83).

Em uma passagem da Pistis Sofia se diz que Jesus, vestido com roupas resplandecentes,
transtornou a ordem das esferas do universo sensível: até o descida do Enviado, os homens
estavam submetidos pelos arcontes planetários a uma fatalidade inflexível; pois Cristo
mudou o movimento alternante, e o homem é livre desde então.

Os gnósticos cristãos pretendem ser os únicos depositários de uma tradição secreta que
contem a verdadeira chave do ensinamento evangélico. De fato, Jesus adquire entre eles
características estranhas. Salvo raras exceções (84), os gnósticos se negam a crer na
encarnação e a Paixão de Cristo; estes hereges se aderem ao que se denomina o docetismo:

Jesus não estava feito de nossa carne – dizia o cataro Raymonde Bezerza no ano 1270-
Deus jamais tomou a forma der nossa carne mortal no seio da Virgem bem aventurada;
Maria não foi a mãe de Deus.

Cristo se assemelhou somente ao homem na aparência, e se teve um corpo, este não se tem
ou achava submetido às necessidades terrenas:

Jesus comia e bebia, pois no evacuava. O poder de sua continência era tal que os
alimentos não se corrompiam nele, porque não tinha nele corrupção alguma (85).

Contrariamente a seu mestre Marcião (partidário do docetismo integral), Apeles crê que
Jesus teve um corpo real, pois que não como os dos demais homens: o senhor formou seu
corpo com a substancia etérea dos mundos superiores.

A paixão escandaliza a maioria dos gnósticos cristãos: Basilides não quer admitir que
Cristo tenha sido submetido a suplicio; segundo ele, quem realmente morreu sobre a cruz,
no lugar de Cristo, foi Simão de Cirene. Só num pequeno numero de gnose existe a crença
na necessidade da crucificação: Jesus sofreu em seu corpo terreno para que o corpóreo
possa retornar ao informe. Conforme Apeles, Cristo sofreu realmente; depois da
ressurreição, o Senhor se despojou de sua carne e reintegraram sucessivamente as distintas
partes aos elementos celestes (86).

As vezes o docetismo realiza um grande esforço para aproximar-se da ortodoxia: como as


duas naturezas estão separadas pois coexistem, se admite que cristo nasceu e sofreu em
sua natureza humana; pois não é em sua condição de Deus que nasceu e sofreu a Paixão.
O cristo transcendente se uniu ao homem Jesus no momento de seu batismo, e o
abandonou sobre a Cruz (87).

36
3.2.5. O CAMINHO DA SALVAÇÃO.

Deve-se ou não a salvação a um Salvador divino, a gnose salvadora permite a alma entrever
o fim de sua sujeição às trevas: poderá elevar-se, do céu em céu, ate a luz da que formava
parte em suas origens. A gnose é reminiscência: recorda ao eleito seu primeiro estado, e lhe
fará recuperar sua condição supramaterial e supratemporal.

Se estiveres feito de vida e de luz, e advertes que esta é a tua natureza, voltarás a vida e a
luz (88).

Sois imortais desde o começo, sois criaturas da vida eterna, e desejais compartilhar a
morte morra em vós e por vós. Por que quando dissolvais o cosmo, sem dissolveres vós
mesmos, dominareis a criação e a corrupção inteira (89).

O Homem que recebe a luz separa dele as paixões tenebrosas com as que estava mesclado
(90).

A gnose é o conhecimento do caminho para o alto e dos meios a empregar para segui-lo.
Pois o homem são pode chegar a ela se adverte que ele mesmo é, em pequeno, o mundo
inteiro; o homem é um microcosmo donde aparecem todos os poderes e substancias do
macrocosmo; compõe-se de matéria, pois contém também o Logos, o espírito divino
vivente que reina sobre as regiões superiores do Cosmo (91).

Um dos mitos mais característicos da gnose é o da ascensão da alma através das esferas
planetárias: o gnosticismo desenvolve baixo diversas formas o tema da ascensão do homem
iluminado (já seja no espírito, durante esta vida, ou depois da morte) para sua pátria
original. O gnóstico é sempre um homem que deseja escapar a fatalidade do mundo terreno
e recuperar a condição luminosa que possuiu antes da queda.

NOTAS.

(1)- O seguinte verso da Jubilete do famoso marques de Sade: Deus se sente feliz do que
faz, o Mal é absolutamente útil à organização viciosa deste triste universo. Que o homem se
cuide muito, pois, da virtude, se não quer ver-se exposto a males espantoso, porque sendo a
virtude do suposto ao sistema deste mundo, todos os que a tem admitido passarão depois
desta vida por incríveis suplícios. Todo deve ser ruim, bárbaro, inumano.
(2)- Cap XLIII.
(3)- Pistis 14,23.

37
(4)- Os gnósticos incluíam entre estas entidades aos 36 decanos, cada um dos quais reina
sobre dez graus do zodíaco.
(5)- Irineu, Ad Haer, I, 5, 2.
(6)- Não se deve confundir com Justino o Mártir.
(7)- Hipólito, Filosófico, V, IV.
(8)- Hipólito, Filosófico, VI, 5, 55.
(9)- O começo da Antítese: Oh maravilha das maravilhas, motivo de êxtase e de estupor,
não se pode dizer nem pensar absolutamente nada que sobre passa o Evangelho; não existe
nada comparável a ele.
(10)- Marcião utiliza muitos episódios atrozes do Antigo Testamento (por exemplo, o
episodio em que Josué por ordem de Deus manda assassinar a todos os habitantes de todas
as cidades conquistadas pelos Hebreus).
(11)- O marcionismo tardio distinguira três céus: o primeiro e inacessível, residência de
Deus exterior; o céu intermediário, domínio de Deus bom e justo do Gênesis e da lei; o
mundo terrestre, que se acha debaixo ao domínio dos poderes materiais e do demônio.
(12)- Apeles, um discípulo de Marcião, não conservou o dualismo radical de seu mestre: só
o Deus bom, merece ser chamado Deus; os demais deuses são anjos e, portanto, criaturas.
(13)- Epistola de Flora. Precisemos que o antibiblicismo gnóstico não se acha associado
com nenhum sentimento anti-semita particular (o anti-semitismo, atitude racista, ataca aos
judeus entanto que os homens, não por suas crenças religiosas).
(14)- H C Puech. Op cit, p 11.
(15)- Le dualisme chez Platon, p 3.
(16)- Corpus, op cit, VI, 2 e Vi 4: este mundo é o pleroma do mal, e Deus, do bem.
(17)- Pistis, op cit, 32, 49.
(18) ibid, 100, 249.
(19)- Texto gnostico anônimo, citado por J Doresse Les livres, op cit, p 129, nota 71.
(20)- O Demiurgo é representado por um ser monstruoso: um polvo que aprisiona ao
mundo ou um réptil com a cabeça de leão, o cervo ou de um asno (é este sem duvida, a
origem da acusação romana contra os cristãos que adoram um Deus com cabeça de asno).
(21)- Os setianos assimilam o céu e a terra a uma matriz.
(22)- Para a biografia de Manes, ver patê III, Capitulo III.
(23)- Tratado op cit, I , p 138.
(24) Kephalaia, I, P 14-15.
(25)- Ibid, II, p 22-23.
(26)- Manes, Livro dos mistérios, principio conservado por Epifanio, Panarion, 66, p (14).
(27)- Epistola do Fundamento (passagem citada por Santo Agostinho, Contra Epistola do
Fundamento, p 12-13).
(28)- O reino das Trevas na só é da matéria( descrito por Manes como um movimento
desordenado): é um mundo singularmente concreto que inclui cinco redemoinhos, cinco
arvores tenebrosas, cinco elementos malévolos, cinco reis ( com formas de demônios
bípedes, leão, águia, peixe e dragão ), cinco metais ( ouro, cobre, ferro, prata, estanho),
cinco gostos( salgado, azedo, acido, insípido e amargo), cinco categorias de seres inferiores
( demônios, quadrúpedes, pássaros, peixes, répteis), etc.
(29)- H C Puech, op cit, .
(30)- O poema citado de um precursor de Manes, o gnostico sírio Bardesanes (fins do
século II e começo do século II d.C.): Da confusão e da mescla que eram elementos, o Deus
realizou toda a criação dos superiores e dos inferiores. É por isso que se apressam as

38
naturezas todas e as criaturas por purificar-se e apagar o que está mesclado com a natureza
do mal. Citado por S Petrement, O dualismo de Platão, p 195.
(31)- Também os cataros da Idade Media, que criam (como seus antepassados maniqueus)
que a Luz e as Trevas formavam na origem dos princípios separados, e que se deve a uma
catástrofe cósmica que uma parte da substancia luminosa tenha sido aprisionada na corte
tenebrosa.
(32)- Titulo de um capitulo do livro 13 do Comentário de Basilides sobre os Evangelhos.
(33)- O sermão Renovação do espírito e mente: Deus não tem nome, por que ninguém pode
dizer ou compreender nada sobre ele. Diz-se: Deus é um ser, isto não é certo; esse é um ser
por cima do ser e uma negação supra essencial. Um mestre disse: Se eu tivesse um Deus ao
que pudesse conhecer, não o consideraria deus.
(34). Boehme exalta o Fundamento, a Raiz inefável de toda existência, donde provem todas
as coisas.
(35)- Fragmento conservado por Hipólito, Filosofia, VII, 21, l.
(36)- Fragmento conservado por Epifanio (o filho de Carpocrates; não confundi-lo com São
Epifanio). Hipólito, Filosofia, VI, 3, 38.
(37)- Texto setiano citado por S Petrement, op cit, p 260.
(38)- Apócrifo de João.
(39)- Fragmento de Valentin (Irineu, op cit, I, 19, 4).
(40)- Corpo Hermético, I, 31. O Deus supremo, incognoscível, delega seu poder criador no
Demiurgo.
(41)- Hipólito, Filosófica, VII, I, 21. Este texto tomado da seita dos docetas: Deus é o
primeiro, é como a semente da figueira: de mínima dimensão, pois de virtualidade infinita.
(42)- Com o objeto de conservar as syzygias gnósticas sua ressonância afetiva, o historiador
se vê obrigado com freqüência a utilizar a palavra grega: por exemplo, sige (o silêncio) é
um nome feminino.
(43)- Irineu, op cit, II, 7,1. A seguinte homilia de Valentin (conservada por Clemente de
Alexandria, Estromata IV, 13, 89): Assim como o retrato é inferior ao rosto vivente, o
Cosmo pe inferior ao eon vivente.
(44)- Hipólito. Filosófica, VI, 36, 7.
(45)- ibid, VI, 36, 8.
(46)- F Sagnard. La gnose valentiniene et lê temoignage de Saint Irenee, Paris, Vrin, 1947.
Um dos textos gnósticos descoberto no Egito, o Evangelho da verdade, é talvez uma obra
de Valentin (a quem atribuiu longo tempo, equivocadamente, a Pistis Sofia).
(47)- Chamado também Stauros (cruz).
(48)- Plotino postula, em troca, uma queda necessária, que se deve ao fato de que a
substancia divina se alija cada vez mais de sua fonte.
(49)- Dt 4,24.
(50)- Este escrito copto data muito provavelmente do século V d.C.
(51)- Odes de Salomão 34.
(52)- Oscar Cullmann. Lê probleme litteraire et historique du roman pseudo-clementine.
Paris 1930.
(53) Les Homelies clementines. Paris Rieder, 1933, XX, 3.
(54)- Abordamos aqui o zervanismo, ou seja, a doutrina de alguns zoroastrianos, que
consideram a Zervan (o tempo) como o pai dos gêmeos: Ormaz e Ahiram.
(55)- Esta era a doutrina do Timeu de Platão.

39
(56)- A cosmogonia do Poimandres é mais complexa: depois da separação primitiva da Luz
e das Trevas, começa a luta entre os dois princípios: o Verbo e o Antropos – o Homem
primordial – são formados pelo Pai andrógeno. E se volta a achar, sobretudo, o mito
tipicamente gnostico: o da sedução de uma entidade divina pela imagem que ela projeta na
matéria, e a que deseja unir-se.
(57)- Outra concepção original é a do autor setiano citado por Hipólito: da divindade
emanam forças infinitas, pois não materiais (sua ação é semelhante a do pensamento);
abandonados em tudo, estas inumeráveis forças inteligentes entram em contato, e de seu
encontro resulta uma marca, um selo. Marcas deste tipo se produzem em numero infinito:
constituem as idéias dos diversos seres. Uma destas idéias, particularmente grande, se tem
convertido no céu e a terra, o cosmo visível.
(58)- Apoc 2, 6 .15-16.
(59)- Ela se mostra aos arcontes (poderes dos céus planetários), os seduz, e mediante a
voluptuosidade os despoja das partículas de luz aprisionadas neles. Daí seu nome grego de
Prunikos (lascívia). Um mito análogo existe no maniqueísmo.
(60)- Passagem do livro dos escolios, do estudioso de heresias sírio Teodoro Bar Konai, T
I, p 58.
(61)- Em Psicanálise do fogo, Difel, RJ, 1987.
(62)- II, 14.
(63)- Os cânticos de Maldoror, I.
(64)- Ibid, II.
(65)- Ibid II: O Todo poderoso se me aparece com seus instrumentos de tortura.
(66)- Citado por Petrement, Lê dualisme. p. 258.
(67)- Esta é ao menos a crença da maior parte das gnoses.
(68)- E Neumann The Great Mother. New York, 1955 Vol 47.
(69)- A mulher que vende seu corpo é uma imagem perfeita da humanidade caída, desfeita
e cativa.
(70)- O Segundo Fausto de Goethe, onde Helena desempenha um grande papel simbólico.
(71)- A historia da pérola – símbolo da lama - nos Atos de Tome (Leisegang, A Gnose, p
246-250).
(72)- Ver atrás, no capitulo V desta primeira parte.
(73)- No maniqueísmo aparece o mito da sedução dos arcontes pelo personagem andrógino,
a Virgem da Luz, quem excita as paixões impuras dos demônios com o fim de apoderar-se
de sua semente: a luz que tem cativa.
(74)- R Reitzenstein. Das Iranische Erloesungsmysterium, Bonn, 1931, destacou a doutrina
gnóstica do salvador-salvo.
(75)- Citado por Doresse. Les livres secrets, Tomo I, p 107.
(76)- Homilias Clementinas, III, 7.
(77)- Os gnósticos herdaram tradições judaicas: em alguns apócrifos do Antigo testamento,
Sete, presente inventor da astronomia, goza de um imenso prestigio; seus filhos haveriam
sido os Filhos de deus. E haveriam vivido sobre o monte Hermon numa solidão piedosa,
com nostalgias do Paraíso.
(78)- Texto de Simão (conservado por Epifanio, 21, 2,4).
(79)- Pistis Sofia, 11, 21.
(80)- Ginza mandeista, 274, 1819.
(81)- Atos de Tomé, 45.
(82)- Em troca, outros gnósticos glorificam a serpente, animal sagrado ( ver capitulo V).

40
(83)- Livro (mandeista) de João, 69,5-6.
(84)- Carpocrates, por exemplo, para quem Jesus era um homem como os outros, pois cuja
alma possuía o privilégio divino de recordar (se reconhece aqui à teoria platônica da
reminiscência) o que havia contemplado no mundo superior antes de encarnar-se.
(85)- Fragmento de Valentin citado por Clemente em Estromata III, 6, 59.
(86)- Outro herético, Hermógenes, crê que o ascender aos céus, Cristo deixou o seu corpo
no sol.
(87)- Os partidários do docetismo invocam espontaneamente a celebre frase do crucificado:
Senhor, Senhor. Por que me abandonastes?
(88)- Poimandres, 21.
(89)- Homilia de Valentin, em Estromata IV, 13, 89.
(90)- Excerpta Teodoto, 41.
(91)- Leisegang. A Gnose, p 27.

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CAPÍTULO IV - CULTO, RITOS, MISTÉRIOS.

4.1. OS GNÓSTICOS E A RELIGIÃO.

A exceção do mandeismo e do maniqueísmo, que constituem grupos religiosos


independentes, as gnoses não se apresentam como religiões novas: pretendem possuir o
esoterismo de uma tradição religiosa preexistente (judaísmo, cristianismo e Islã). Os
gnósticos fundam quase sempre escolas de iniciação, mistérios, conventos zelosamente
reservados a uns poucos eleitos. Seu proselitismo é geralmente hábil e insinuante:

Estes mistérios – escreve o especialista em heresias Hipólito de Roma – não se dão a


conhecer ao iniciado antes que cheguem a ser plausíveis a seus olhos; só se lhe confiam
quando tem logrado submete-lo, mantendo seu espírito em suspenso durante algum tempo,
e quando já tem ensinado a blasfemar do verdadeiro Deus e vem que ardem de
curiosidades por aquilo que lhe foi prometido (1).

Ainda nos casos em que o gnóstico, como ocorre com Simão e Marcos, gosta que se fale
dele, seu proselitismo aberto deixa na sombra um conjunto de ensinamentos secretos
(escritas ou orais), que são comunicadas aos aspirantes à medida que maduram, por meio de
uma revelação progressiva. O esoterismo gnóstico se aplica muito menos às doutrinas
(bastante fáceis de conhecer) que as praticas das quais elas constituem o fundamento: ritos
sacramentais e iniciáticos fórmulas mágicas, palavras de paz destinada a abrir as almas
iluminadas num caminho livre durante sua ascensão para o mundo transcendente.

Na gnose cristã, Jesus é considerado como o possuidor dos segredos salvadores, das
formulas que dão acesso ao Pleroma: depois de sua ascensão, Cristo partiu para um
ensinamento secreto – cuja duração varia segundo as escolas gnósticas – (2) indispensáveis
para compreender o sentido oculto dos evangelhos. E de igual modo que Jesus reserva este
ensinamento a um circulo muito reduzido de discípulos de ambos os sexos, a instrução nos
mistérios gnósticos só se dispensará aos poucos seres que são dignos dela e que para obter a
salvação não necessitam mais que a gnose e as palavras dos mistérios.

Ainda que a maioria dos gnósticos cristãos funda sociedades secretas, Marcião, constitui a
este respeito uma personalidade bastante excepcional: funda verdadeiras igrejas e toda
uma hierarquia eclesiástica, que compete diretamente com o catolicismo no terreno da
pregação das massas. O mesmo zelo proselitista se encontra no maniqueísmo, que não é
uma heresia cristã senão uma verdadeira religião nova (3). As seitas dualistas da Idade
Media se preocupam também pela propaganda entre os homens comuns.

Pois inclusive nestas gnoses existe sempre uma distinção taxante entre uma elite de Santos,
Puros e Perfeitos, e a massa de leigos – os auditores ou catecúmenos – todavia vitimas da

42
ignorância e do pecado. Estes últimos so são simples candidatos a iniciação; não
participam mais que em algumas cerimônias abertas a todos, e lhes está vedada à
participação nas liturgias secretas.

4.2. A INICIAÇÃO GNÓSTICA: LITURGIA SECRETA E MISTÉRIOS.

Entre os gnósticos cristãos houve adversários de todo sacramento ou rito:

A gnose – dizem eles – é a redenção do homem interior. Não tem nada de corporal, como
nosso corpo que perece; tampouco tem nada de psíquico, como a alma nascida do pecado
e que não é mais que a morada do espírito; é algo absolutamente pneumático (espiritual).
A gnose resgata ao homem interior ou pneumático; basta-se com o conhecimento do Todo,
e este é a verdadeira redenção (4).

Pois a maioria dos gnósticos considera os ritos de iniciação e os mistérios como meios
particularmente aptos para despertar a gnose salvadora adormecida no neófito; encontra-se
nestes grupos todos os estímulos sensíveis e simbólicos usados nas sociedades secretas
iniciáticas. Ademais da gnose ensinada pelo mestre existem ritos, as cerimônias nas quais o
mestre mesmo – convertido em hierofante – inicia ao discípulo.

O batismo e a eucaristia transformam-se entre os gnósticos em cerimônias imponentes e


ocultas, reservadas a uma elite reduzida.

Marcos – um valetiniano influído pelos neo pitagoricos – se distinguiu particularmente


pela grande pomposidade de seus ritos: criava em seus discípulos a ilusão de que graças a
ele entravam em comunhão mística com a Divindade.

Marcos vincula sua gnose com uma revelação direta da Tétrada divina baixo uma forma de
uma mulher:

A Tétrada, de enorme estatura, desceu para ele desde as regiões invisíveis e inefáveis,
baixo a forma de mulher, porque em sua opinião o mundo não havia podido suportar sua
forma masculina. E ela lhe revelou sua própria essência e a origem do Todo, e descobriu
ante ele os mistérios que até então não havia comunicado deus a nenhum homem (5).

A eucaristia marcosina era uma comunhão no sangue da Mãe do Todo: devia ser conferida
por mulheres a quem Marcos havia transmitido seus poderes mediante um rito de união
mística, espécie de núpcias espirituais que simbolizam a união dos casais de Eons no
Pleroma (6). O papel privilegiado que Marcos reserva para as mulheres no relativo a
liturgia não constitui um fato excepcional no gnosticismo cristão: em todas as gnoses as
mulheres podem chegarão sacerdócio (e ainda ao episcopado), funções das que são
excluídas sem piedade pela igreja Católica.

43
As liturgias gnósticas são ainda mal conhecidas, ainda que o historiador dispõe
atualmente de dados bastante precisos. O culto maniqueu, em especial, parece ter sido
consideravelmente complexo: as pinturas sagradas (algumas das quais são obras do
mesmo Manes), as bandeiras ornadas de imagens simbólicas, os vestidos litúrgicos de
cores diversos (negro, branco, roxo), a musica e o incenso desempenham seu papel. Entre
os marcosianos e outros valentinianos, os ritos eram muito imponentes, tanto as
cerimônias que competiam com as grandes igrejas (batismo, eucaristia, extrema unção)
como os sacramentos próprios do gnosticismo. Os carpocracianos tinham ícones pintados
de cores realçados com ouro e prata, que representavam aos grandes homens nos que
pretendiam inspirar-se a seita: Pitágoras, Platão, Aristóteles e Jesus. Os simonianos
possuíam uma imagem de Simão, representado com os traços de Zeus e uma Helena com
os traços de Atena.

Muitos museus e coleções possuem gemas conhecidas com o nome coletivo de abraxas (7)
– que foram usadas nas seitas gnósticas cristãs do Império Romano. Estas serviam em
principio com sinais de reconhecimento, correspondendo cada uma delas a um grande
iniciado (8); pois muitas parecem ter-se usado também como amuletos (9).

Existe uma continuidade inegável entre os mistérios pagãos (gregos e orientais) e os


mistérios gnósticos cristãos: reaparecem nestes últimos, símbolos tão característicos como
o falo, o labirinto, o cálice da que bebe quem quer despojar-se da forma terrena para cobrir-
se com uma roupagem celeste, o livro (volume) que contem e transmite a revelação, a vara
taumaturgica (virga) aplicada pelo iniciador sobre as mãos do futuro iniciado para abrir os
olhos do homem interior (10).

O rito eucarístico dos ofitas é muito revelador: trazem um cofre que contem uma serpente
domesticada; o abrem e o animal sagrado sai e se enrosca ao redor dos elementos da
eucaristia. Este rito é uma versão cristianizada do antigo culto da serpente (11). Talvez seja
de origem gnóstico um cálice órfico de alabastro – reproduzida na coberta da edição
francesa do livro de Leisegang A Gnose – que representa seis personagens nus, encontrados
sobre as costas, com os pés para o centro do cálice, na qual se vê uma serpente enrolada
sobre si mesma.

Tem-se descoberto em Roma, em Janículo, uma figurinha que representa a um homem


envolto num sudário que só lhe deixa livre o rosto; uma serpente da sete voltas ao redor de
suas pernas e de seu dorso e levanta a cabeça exatamente atrás da cabeça do homem. As
sete voltas da serpente parecem aludir as sete esferas planetárias que a alma do gnóstico
deve atravessar antes de alcançar a imortalidade (12).

A sinceridade do cristianismo gnóstico é evidente:

Até o batismo, o destino é verdadeiro (o homem se acha inexoravelmente submetido ao


destino); depois do batismo, os astrólogos já não dizem que é verdadeiro (suas predições
são falsas) no que se refere aos que tem recebido o batismo (13).

44
Este homem sou eu (o Cristo) e eu sou este homem. Todos os que receberam os mistérios
no Inefável serão reis comigo. Sentar-se-ão em meu reino a minha esquerda e a minha
direita, e estes homens são eu e eu sou estes homens (14).

NOTAS.

(1)- Filosoufema, prólogo.


(2)- Dezoito meses segundo os valentinianos, doze anos segundo a Pistis Sofia, 545 dias
segundo a Ascensão de Isaias.
(3)- parte II, cap III.
(4)- Citado por Santo Irineu, op cit, 1, 21, 4,
(5)- Irineu, citado por Leisegang, p 220.
(6)- Irineu op cit, 121, 5 nos tem conservado a invocação pronunciada pelo taumaturgo
durante o rito: Quero que participes de minha graça; por que o Pai do Todo vê a teu anjo
sem cessar ante meu rosto. O lugar de grandeza está em mim. Devemos converter-nos em
um. Recebe primeiro, de mim e por mim, a Karis. Prepara-te como a esposa que espera o
esposo com o fim de que tu chegues a ser o que eu sou, e eu, o que és tu. Recebe em tua
câmara nupcial a semente da luz. Recebe de mim a teu esposo, faça-lhe lugar e toma lugar
nele. Eis aqui que Karis desce em ti: abre a boca e profetiza.
(7)- Resumindo os valores numéricos respectivos das letras gregas desta palavra (no grego
antigo as cifras se representam por letras) se obtém o numero 365, que desempenha um
grande papel nas diversas gnoses (corresponde ao numero de círculos que o sol descreve
durante um ano; para os basilidianos existem 365 céus ou universos, o mais baixo dos quais
é o que habitamos). Ao que igual abraxas, meioras (mitra em Grego) tem como valor
numérico 365.
(8)- Os gnósticos tinham também sinais de reconhecimento muito simples (um modo
especial de fechar a mão, que se encontra na maçonaria moderna). Alguns carpocracianos
marcavam a seus discípulos com ferro ao roxo na parte posterior do lóbulo da orelha
direita.
(9)- O prestigio oculto dos abraxas se manteve muito depois da desaparição das seitas que
faziam uso deles: o talismã de Catarina de Medicis era uma medalha de bronze que imitava
uma pedra gnostica.
(10)- Sobre a continuidade entre os mistérios pagãos e os cristãos.
(11)- A serpente simboliza a força misteriosa que serpenteia ao longo da coluna vertebral, e
lograr despertá-la é o objeto de muitas técnicas de iluminação. O simbolismo da serpente
pode ser vinculado ao simbolismo mais geral do Fogo Divino, iluminador e renovador.
(12)- Na religião de Mitra, Aion, o amo dos céus, é representado como um homem com a
cabeça de leão, rodeado pelos movimentos de uma serpente cuja cabeça aparece por cima
da forma do monstro. A estatua,, que lançava chamas pela boca, era fechada numa câmara
obscura, e o recipiente só a percebia através de uma estreita fenda do muro.
(13)- Por esta razão se elevou uma estrela nova, que destruiu a antiga ordem dos astros.
Brilhava com uma luz nova, não cósmica. Para marcar seu novo nascimento o gnóstico
toma um nome espiritual; Gogessos, por exemplo, autor de um dos tratados coptos
descobertos no Alto Egito, tomará o nome de Eugnostos, o bem conhecido.
(14)-Pistis Sofia, 230.

45
(15)- Doresse, op cit, p 105.
(16)- Doresse op cit, p 65-75.
(17)- Os alcaldes até o éter.
(18)- Eis aqui nomes de alguns destes arcontes infernais: Eukhthamim, Kharranknar,
Arkhrokkhar, Arkhrokh, Maakhrur, etc.
(19)- Também encontramos nos Livros dos Mortos em outros paises, como no Egito. Os
Tibetanos possuem o seu Bardo Thodol.

46
CAPÍTULO V – ÉTICA.

5.1. O GNÓSTICO E O AMOR.

Sua atitude respeito da sexualidade domina toda a ética do gnosticismo (1). É lógico que a
aversão pelo mundo sensível implique aversão pela união carnal:

A Salomé, que perguntava quanto duraria o tempo da morte, o Senhor respondeu: o tempo
que vós as mulheres deis a luz filhos. E Salomé lhe disse: logo, tem feito bem em não dar a
luz. O Senhor lhe respondeu: come de todos os frutos, pois não do que é amargo. Como
Salomé lhe perguntava que devia entender por isso, o Senhor lhe respondeu: quando
tenhais pisoteado a roupa da vergonha, o corpo, e quando ambos – o macho e a fêmea –
sejam só um, já não haverá homem nem mulher (2).

Sem duvida, o criador mau é de origem e a causa de toda fornicação (3).

Ele (irmão iniciador) me recomendou não entrar numa igreja quando nela se celebre um
matrimonio; me recomendou não entrar numa casa na qual tenha uma mulher a ponto de
dar a luz (4).

Seguindo o exemplo de Marcião, muitos gnósticos condenam toda relação sexual, ainda
dentro do matrimonio: o comercio carnal é uma mancha; sobretudo, permite aprisionar
novas almas no reino tenebroso. O objetivo da continência é essencialmente, para o
gnóstico, evitar a procriação: introduzir novas almas no mundo é fechar estes feixes de luz
na matéria. O matrimonio não pode ser um sacramento; a Igreja Católica não faz senão dar
uma enganosa espiritualidade ao ato carnal.

É sabido que o catolicismo não condena o matrimonio (cujo fim normal é, em principio, a
procriação), senão tudo o contrario. O corpo, indubitavelmente, tem caído, como o mundo
do que forma parte; pois não é mau. Os sacerdotes não estão obrigados ao celibato porque
a carne seja abominável, senão que a ausência de preocupações familiares lhes permite
dedicar-se por inteiro a seu ministério. Para os leigos, o matrimonio é um direito
absolutamente legitimo, e ainda, para muitos, um dever (5).

No gnosticismo, em troca, a procriação é má em si mesma. Só tolera o matrimonio como


uma concessão necessária a debilidade humana.

Basilides e seu filho Isidoro, por exemplo, elogiam aos eunucos voluntários, ao homens
que se tem elevado por cima do impulso sexual: os prazeres do amor só são naturais; não
estamos constrangidos a eles (6). Os que não podem levar essa existência ideal podem

47
satisfazer seu instinto sexual sem deixar-se dominar por ele, e até podem casar-se, se é que
não querem pertencer aos perfeitos.

O maniqueísmo admite o matrimonio para os simples leigos, os auditores, pois os eleitos,


em troca, estão obrigados a um rigoroso ascetismo (7).

Entre os trovadores do século XII, imbuídos de espiritualidade cátara, encontramos uma


original solução para o horror gnóstico ante a carne: é o amor cortes, o serviço de amor, um
amor totalmente espiritual, uma técnica da castidade (8). Não se trata de conquistar a dama
anelada, e toda segunda intenção deve ser implacavelmente suprimida: quem abriga falso
amor se liga ao diabo, proclama Marcabru.

Nem sequer interessa que o amor do trovador esteja dirigido para uma mulher real:

Tenho uma amiga, pois não sei quem é, pois nunca lhe tenho visto a fé minha, e eu a amo
intensamente. Nenhuma alegria é para mim tão grande como este amor longínquo (9).

Esta atitude de idealização e de divinização da mulher é uma verdadeira busca espiritual:

Tomai minha vida em homenagem, bela de dura graça, sempre que me acordeis o dom de
ter ao céu por intermédio de vós!(10).

O trovador rende culto ao arquétipo divino da mulher, a dama, a nossa dama do Espírito
Santo oculta detrás do véu das aparências. A mulher será Deus em seu aspecto feminino.

No antigo gnosticismo se encontram análogos sentimentos de veneração com respeito das


mulheres (certas seitas pretendiam que o Parácleto, o Espírito Santo, se encarnaria numa
mulher).

A Pistis Sofia faz dizer a Jesus, ao dirigir-se a Maria Madalena:

Em verdade, Maria, tu és bem aventurada entre todas as mulheres da terra, pois serás o
pleroma dos Pleromas e a perfeição de todas as perfeições. Em verdade, tu és pneumática
(espiritual) e pura, Maria.

Se bem condena o matrimonio terrestre, o gnóstico exalta com entusiasmo o hieros gamos,
o matrimonio sagrado, as bodas divinas do principio masculino com o principio feminino.
A freqüência das imagens sexuais nas teogônias e as cosmogonias gnósticas são algo que
tem assombrado a todos os autores (11). Em muitas gnosis se encontram reminiscências do
culto fálico original (12), assim como mitos sobre a androgenia divina (13); utiliza-se a
miúdo o simbolismo da fecundação e da geração para narrar as aventuras metafísicas dos
eons e do pleroma.

Em certos gnósticos, infiéis a acostumada lógica de sua atitude dualista, se observa a


exaltação do matrimonio divino em sua forma concreta: Simão acha sua dupla perfeita na
pessoa de Helena. Como no tantrismo de esquerda, uma parelha humana se converte na
parelha divina (14).

48
Entre os valentinianos, a crença no duplo na dupla adquire uma forma bastante curiosa:
nossa alma – que é feminina ainda no homem – é uma forma quebrada, um anjo masculino
que rodeiam ao salvador, por sua parte, chamam a nossas almas (16).

Pois o gnóstico tem ante si outra via: a da licença sexual, a de pratica sistemática do
desenfreio. É necessário rebaixar o que é baixo e levar o que é elevado, prostituir a matéria
e não ao espírito. Entre os gnósticos licenciosos tem uma verdadeira raiva frenética por
rebaixar e humilhar ao corpo: a experiência do pecado nos procura o sentimento de nossa
decadência, pois ao faze-la, rebaixamos o que é necessário rebaixar; o homem paga sua
dívida mediante o pecado. Em tal caso, o gnóstico exaltará a promiscuidade sexual e todas
as formas de excesso carnal. Veremos mais adiante a que incríveis aberrações se entregam
certos gnósticos que se acreditavam ser cristãos. Pois antes devemos ver em que
fundamento teórico poderia basear-se.

5.2. MAIS ALÉM DO BEM E DO MAL.

Recebe o homem de antinomismo a doutrina teológica segundo a qual o cristão já não está
submetido a lei – é dizer, ao Decálogo de Moisés – posto que tem sido regenerado de
maneira total pela graça divina; o importante é a renovação interior do ser humano, e não
sua conduta externa.O gnosticismo, que pregava a salvação pelo conhecimento, pela
iluminação, só podia receber com simpatia essa idéia. Pois a maior parte dos gnósticos a se
cuidarem de extrair dela conseqüências imorais, como os grandes místicos mulçumanos,
quem afirmavam que todo lhes é lícito, pois praticavam um rigoroso ascetismo.

Os gnósticos se limitavam a destacar a revolução interior, a regeneração cristã. Pois são


evidentes os perigos de tal doutrina: da indiferença pelas ações, é fácil passar a idéia
segundo a qual o espiritual, o perfeito, é semelhante Ao ouro, que ainda no barro não pode
perder a sua beleza; para o iluminado , as ações deveriam ser consideradas então como
coisas totalmente indiferentes, já que a tem conquistado definitivamente a salvação (16).

É certo que tal idéia, entendida de maneira adequada, não tem por que ser chocante; até se a
pode descobrir facilmente no Evangelho: Jesus não se preocupa por estabelecer uma
hierarquia entre seus discípulos segundo a gravidade dos pecados que tenham cometido; a
conversão limpa tudo, por assim dizer. Pois o gnóstico vai mais longe: o homem o
suficientemente espiritual como para que o pecado não o alcance em sua essência, pode
entregar-se sem perigos a todos os prazeres, e aos da carne em particular. Faça o que faça,
está salvo. Posto que tem recebido o pneuma desde seu nascimento, o perfeito é
invulnerável; o pecado não pode alcançar ao verdadeiro gnóstico, quem pode permitir-lhes
tudo e entregar-se aos piores excessos. E a hostilidade ao demiurgo apontará esta ética
imoralista: posto que o criador é o inimigo, se trata de fazer sistematicamente o contrario do
que ordena.

49
Nos caprocacianos achamos o imoralismo erigido em sistema coerente e determinado: o
único meio de libertar-se da tirania dos anjos, donos do cosmo, é pagar a cada um o que se
deve, perpetrando todas as ignomínias possíveis. A alma está obrigada a passar sem tréguas
do corpo em corpo; os arcontes criadores não a tem senão quando tem cometido todo o mal
possível. Carpocrates não vacila em interpretar assim a parábola de Jesus (17):

Quando vais, pois, com teu adversário ante o magistrado, faça o possível no caminho por
livrar-te dele; não seja que te arraste ante o juiz, e o juiz te entregue ao meirinho, e o
meirinho te lance no cárcere. Eu te digo que não sairás dali até que tenhas pagado até o
ultimo centavo.

A alma deve cometer todos os tipos possíveis de ação, tanto os bons como os maus (esta
diferença, por outra parte, só existe na opinião dos homens): se o comum dos mortais está
obrigado a ter em todo gênero de existências antes de pagar sua dívida, o homem superior
se salva realizando de golpe todas as ações. Para Carpocrates, que nisto se distingue de
todos os outros gnósticos cristãos, Jesus não era mais que um homem como os outros, pois
desprezou a lei promulgada pelos anjos criadores do mundo visível: Jesus conheceu todas
as formas do mal, pois soube triunfar sobre elas, com o que demonstrou a excepcional força
de sua alma. O carpocraciano vai ainda mais longe que Jesus no caminho da libertação:
libertar-se-á de toda lei humana e desfará a distinção entre o bem e o mal.

Era dentro deste contexto que Carpocrates e seu filho Epifanes adotavam a doutrina da
comunidade das mulheres e dos bens, que acharam na Republica de Platão (19):

Por ódio ao criador, alguns gnósticos cristãos exaltam a todos sos réprobos do Antigo
Testamento, porem que os heróis do judaísmo se convertem nos instrumentos do Mal. A
seita dos cainitas reabilitada a Caim (20), aos sodomitas, a Esaú, a Core, a Datan, e a
Abiran. Estes consideram também a Judas – a quem atribuem um evangelho – era um
instrumento de Deus: sabendo que as potencias hostis queriam impedir a Paixão que ia a
permitir a salvação dos homens, Judas só traiu a Cristo para servi-lo ( é sabido que esta
idéiam ia exercer forte influencia na literatura e no teatro moderno, sem que neste caso
tenha nada a ver com a gnose cainita: tem certos temas que o espírito humano volta a
descobrir espontaneamente).

Em muitas gnosis se manifesta a apaixonada preocupação por voltar a descobrir a inocência


original, que a seita dos adamitas, da que fala Santo Agostinho, simbolizava mediante a
nudez ritual:

Os homens e as mulheres se reúnem nus; nus celebram os sacramentos, com o qual pensam
que sua igreja é o paraíso (21).

5.3. OFIOLATRIA E LUCIFERISMO.

50
Os ofitas eram como indica seu nome, adoradores da serpente:

Veneramos a Serpente, diziam, por que Deus a tem convertido em causa da Gnose para a
humanidade. Ialdalbaot (o demiurgo) não queria que os homens recordassem a Mãe nem
ao Pai do alto. Foi a serpente quem os persuadiu e quem aportou a Gnose; ela ensinou ao
homem e a mulher o completo conhecimento dos mistérios do alto.

As mesmas tendências ao culto da serpente (ofiolatria) aparecem numa seita relacionada


com a anterior, a dos peratas:

Se alguém tem olhos privilegiados, verá, ao elevar seu olhar para o céu, a bela imagem da
serpente enrolada no grande começo do céu e que é, para todos os seres que nascem, o
principio de todo o movimento. Compreenderá então que nenhum ser, nem no céu nem na
terra, nem nos infernos, se tem formado sem a serpente (22).

O autor perata distingue, por outra parte, a boa serpente, identificada com o Salvador ( o ser
que tenta Eva é o mesmo Logos que se manifestará logo em forma humana durante o tempo
de Herodes), da má serpente, surgida do elemento úmido, da água cósmica; no simbolismo
religioso se volta a encontrar a eterna ambivalência da serpente.

A serpente (Naas em hebraico; ophis em grego) foi tomada pelos gnósticos dos mistérios
do paganismo, pois foi identificada com Lúcifer de Gênesis: a serpente era considerada um
mensageiro do deus da Luz e até como este Deus mesmo, como o logos. Porem que YHWH
tinha aprisionado a Ad/ao e Eva num mundo de miséria, Lúcifer lhes deu a ciência do bem
e do mal, a gnose salvadora e divinizadora.

O luciferismo (23) tem tentado sempre a alguns e se lhe encontra também em muitas seitas
ocultistas contemporâneas (24).

5.4. OS GNÓSTICOS LICENCIOSOS.

Se bem que algumas das acusações eclesiásticas são equivocadas, em particular as


levantadas contra os maniqueus e os cataros, é sem duvida que tem existido os gnósticos
licenciosos. São Epifanio nos tem deixado um relato muito vivo dos ritos especiais
celebrados por uma seita Alexandrina que tentou sem êxito atrapalha-lo em suas formas:

Os homens aproveitam a emissão seminal e as mulheres seu fluxo menstrual para reunir-se
e celebrar mistérios imundos. É o que eles chamam os mistérios da gnose perfeita (25).

Tem-se encontrado no Egito o livro secreto - atribuído a Noria, a mulher de Noé - no que
estes sectários baseavam a pratica de seu culto luxuoso:

51
O que tem sido roubado a Mãe das alturas pelo arcontes que tem criado o cosmo e os
outros deuses, anjos e demônios junto com ele, devemos reuni-lo a potencia que se
encontra no corpo, por meio da emissão seminal do homem e da mulher.

A promiscuidade sexual completa, ao exigir que todos sejam amados por todos sem
distinção, permitirá salvar a luz divina cativa: só importa a salvação do esperma. É
necessário extrair do mundo a semente cativa das entidades demoníacas:

Reunimos a força de Prunikos e a tiramos dos corpos (26).

Nestas seitas (os gnósticos de Epifanio, os fibionitas, os barbeliotas, etc), o desenfreio se


eleva no método para a elevação espiritual: nelas volta a encontrar-se a prostituição sagrada
de certos cultos orientais, nos que reina a figura ambivalente da Mãe (27). Pois esta mística
foi levada até seus limites extremos e deu origem a praticas monstruosas; os gnósticos
denunciados por Epifanio se entregavam a ritos abomináveis (espermatologia, aborto,
consumo de fetos em banquetes rituais).

Tem-se acusado aos maniqueus, aos cataros e aos templários de entregar-se a sodomia
(28); tais acusações são falsas, pois este costume tem sido praticado por seitas mais
obscuras.

O estudo do gnosticismo licencioso põe ao especialista na presença de um verdadeiro


museu de patologia sexual. As aberrações deste gênero tendem a aparecer sem cessar; na
literatura especializada se acharão exemplos atuais deles (29). O divino marques de Sade
voltou a descobrir por si8 mesmo a atitude dos gnósticos licenciosos (30).

Posto frente a realidades carnais, o gnóstico ou bem as recusava, em cujo caso temos o
implacável ascetismo dos marcionitas, os maniqueus e os cátaros, ou bem se assumia nelas
como em um vertiginoso abismo. Pois felizmente muitos gnósticos adotaram de fato uma
atitude razoável, dentro do sentido comum: alguns fizeram o elogio do matrimonio, como
os cabalistas. Tem uma espécie de mecanismo providencial que, tarde ou cedo, obriga
sempre a doutrinas mais fantásticas a integrar-se na realidade.

NOTAS.

(1)- O excelente artigo de R Amadou. Les theories dualiste, in: La Table Ronde, no 97,
janeiro de 19959, p 48-59.
(2)- Fragmento (conservado por Clemente de Alexandria) do evangelho dos Egípcios,
escrito gnóstico do século II d.C.
(3)- Livro dos Princípios (obra dos cataros).
(4)- Declaração de um templário durante o processo.
(5)-O rigorismo católico só afeta a indissolubilidade do laço matrimonial: a igreja nunca
tem adotado oficialmente as atitudes extremistas de alguns de seus membros ( por exemplo,
dos teólogos para quem os esposos não devem experimentar nenhum prazer carnal).

52
(6)- Isidoro, Ética, destaquemos que a idéia é epicurista.
(7)- Esse ascetismo não consiste somente na castidade total. Os eleitos devem observar
também um vegetarianismo estrito, e nem sequer podem procurar-se o alimento ou o
preparado (cultivar, semear, segar, colher, cozinhar, etc; são atos que ferem as parcelas
luminosas aprisionadas em todas as coisas. O eleito deve recorrer a um ajudante que tome
sobre si o pecado e lhe prepare e lhe leve os alimentos, a maneira de esmolas).
(8)- Ver o livro de D Rougemont. L amour et lê ocidente, Paris, Plon, 1956.
(9)- Jaufre Rudel.
(10)- Sobre os trovadores o livro de J L Houssat. Troubadours et cours d amour, Paris,
PUF, 1963.
(11)- E Faye. Gnostiques et gnosticisme, p 215: diria-se que a imagem das relações e ainda
dos órgãos sexuais lhes obcessiona aos gnósticos.
(12)- E E Goldsmith. Life Symbols as sex symbols. NY, 1924.
(13)- M Delcourt. Hermaphrodite, PUF, Paris, 1958.
(14)- M Eliade. O Yoga, M F, São Paulo, 1999. É conhecido o postulado das praticas
tantricas de esquerda: o yogi obtém sua salvação eterna mediante os mesmos atos que
fazem certos homens se queimem no inferno durante milhares de anos. Destaquemos que a
erótica tantrica tende a desviar o ato sexual, por uma adequada aprendizagem, de seu
destino natural: a procriação faz recair ao yogi na fatal realidade do karma.
(15)- Teodoro, 35-36.
(16)- O celebre aforismo Hindu (Bhagavad Gita, XVIII, 17): aquele aquém não extravia o
egoísmo e cuja inteligência não está obnubilada, ainda que de morte a todos os seres, em
realidade não mata nem se carrega com cadeia alguma.
(17)- Lc 12,58. 59 e Mt 5, 25. 26.
(18)- Pequena moeda utilizada na Palestina na época de Cristo.
(19)- Ainda que o comunismo carpocraciano permaneceu no domínio dos sonhos, devemos
recordar que o persa Mazdek ou Mazdak criou achar no maniqueísmo o fundamento de
idéias análogas e se esforçou por coloca-las em pratica. A Renard. L orient et as tradition,
Paris, Dervy, 1952, p 80-81.
(20)- Uma reabilitação análoga realizaram os perata: É Caim, cuja oferenda não satisfez ao
deus deste mundo, quem recebeu em troca o sangrento sacrifício de Abel, pois o amo deste
mundo sente prazer pelo sangue (citado por Hipólito, Filosofia, V, 16).
(21)- Em certas seitas aparecem periodicamente praticas análogas. Deve observar-se que se
trata de uma nudez ritual, na que não entra em nenhuma intenção estética ou naturista.
(22)-Citado por Hipólito. Filosofia, V, II, 16.
(23)- É necessário não confundir o luciferismo com o satanismo (que adora a Satan como
principio do mal).
(24)- Uma das mais curiosas é a do terceiro termo da trindade, fundada por Maria de
Naglowska, grande sacerdotisa do Templo da terceira Era. Nesta gnose moderna, o terceiro
termo da Trindade não é pó Espírito Santo, senão Lúcifer, identificado com o sexo (P
Geyraud. Les Petits Eglises de Paris, Paul, Paris, 1937, p 144-155).
(25)- Epifanio. Panarion, 4, 1-2.
(26)- Epifanio. Op cit, XXV, 3.
(27)- H Leisegang. La gnose, p 184: Astarte tem um duplo aspecto: por um lado é o
protótipo da madona casta; por outro é, a deusa do amor sensual e da voluptuosidade.
(28)- Os bucharrones eram num principio os bogomilos (seita neomaniqueia dos Bálcãs): a
acusação de que se fez objeto a estes gerou o conhecido significado daquela palavra.

53
(29)- P Geyraud. Les religions nouvelles de Paris, Paul, Paris, 1937, p 161-171: relato de
uma iniciação paladista; Lê Ocultisme a Paris, 1953, p 109-120: Magia Sexual.
(30)- Pierre Klossowski. Sade, Ed du Seuil.

54
CAPÍTULO VI. ESCATOLOGIA.

6.1. OS ESPIRITUAIS E OS OUTROS.

Mediante o conhecimento, o gnóstico se abre um caminho através dos mundos inferiores


para chegar ao reino da luz, até a Divindade suprema.

Ainda que o gnosticismo cristão introduza a idéia de uma redenção histórica, esta
salvação está de fato na raiz da existência e da historia: as parcelas de luz prisioneiras no
cosmo serão liberadas de sua prisão (1); o destino do homem está ligado de maneira
essencial ao do mundo em seu conjunto. Os espirituais ou pneumáticos (do grego pneuma,
espírito) possuem em si mesmos uma chama luminosa vinda do alto; estão salvos
necessariamente, pois o elemento espiritual que está neles deve remontar-se por força a
sua origem celeste.

Eis aqui uma passagem do Livro de Tomé:

Bem aventurados vós, a quem se acusa e não se estima pelo amor que o Senhor tem posto
em vós. Bem aventurados vós que chorais e que estais aflitos, pois sereis libertos de todas
a s cadeias e não estareis mais na carne, senão que saireis dos laços do esquecimento
desta vida; sereis eleitos e achareis o repouso, e a confusão e os lamentos ficarão detrás de
vós.

Minha raça provém do Preexistente – declara um aforismo valentiniano - e retornará ao


domínio de onde tem vindo (2).

Os eleitos formam a raça divina:

E aqueles que são dignos dos mistérios, que habitam no Inexpressável, são os membros do
Inexpressável (3).

Os que me vêem não podem assustar-se,


Pois sou de outra raça.
Pois o Pai da verdade se tem lembrado de mim,
E me tem redimido desde o principio (4).

Cada um dos perfeitos está destinado a incorporar-se finalmente à pessoa mesma de Jesus:

Este está em mim, e eu sou ele (5).

A salvação do ser perfeito se cumpre de uma maneira quase automática:

Não é a obra o que faz entrar no Pleroma, senão que é a semente enviada desde alem como
uma criança e que se faz perfeita aqui (6).

55
Existem duas grandes raças de homens: os que sabem e os que estão sumidos na ignorância.
Só os espirituais, dotados de um natural parentesco com o mundo superior, podem
franquear a sua morte todos os compartimentos do mundo invisível e passar livremente
através de todos os véus e de todas as portas. Pois os materiais, os hilicos, têm uma
afinidade tão profunda com o mundo tenebroso que não podem sair dele.

Entre os espirituais – destinados a converter-se em anjos, e arcanjos, deuses e reis no


mundo transcendental – e os hilicos – que não podem ser salvos, em principio, pois estão
profundamente enraizados na matéria – certas gnosis (o valentianismo, por exemplo)
introduzem uma terceira classe de homens, os psíquicos, em quem domina o principio
intermédio: estão dotados de livre arbítrio e podem chagar a salvação mediante a pratica da
justiça.

Pois cabe destacar que a maioria dos gnósticos é bastante otimista no concernente a
salvação das almas: a sorte dos homens inferiores, dos hilicos, só é desesperada para esta
encarnação; e nada impede que um hilico se transforme em um psíquico, e até num
espiritual, numa existência terrestre ulterior. Em geral, os gnósticos crêem na reencarnação.

Basilides até crê na metempsicose na forma animal:

O apostolo tem dito: antigamente vivi sem lei (7), é dizer que, antes de chegar a este corpo,
vivi num corpo que não está submetido à lei, ou seja, no corpo de um animal ou de um
pássaro (8).

Para o maniqueísmo, as reencarnações desempenham uma função no processo de reunião


progressiva das partículas luminosas dispersas neste mundo daqui abaixo.

Na Pistis Sofia nós assistimos ao juízo das almas ante a Virgem de Luz: as almas inferiores
são enviadas de volta ao mundo para que se reencarnem. O dragão (ou serpente) das
trevas exteriores impede a almas desprovidas da gnose que se remontem para os espaços
superiores: absorve as almas imperfeitas que, ao atravessar seu corpo, são precipitadas
por sua cola ao universo terrestre. Para as almas particularmente perversas, as trevas
exteriores constituem um lugar de suplícios dividido em doze infernos, cada um dos quais
está guardado por um arconte monstruoso. Pois, ainda nesta eventualidade, a sorte de uma
alma não é desesperada, pois tem toda uma serie de orações e de ritos que permitem salvar
a um culpável no mundo invisível. Para a Pistis Sofia, uma alma só está definitivamente
perdida se termina o céu completo de migrações terrestres sem ter-se arrependido: quando
o numero total de almas esteja completo, então realmente será demasiado tarde.

O catarismo admite por geral a salvação final de todas as almas, pois depois de muitas
peripécias: os homens e as mulheres são espíritos caídos, aprisionados por sua queda numa
grosseira envoltura. Porem a alma não se beneficie com a iluminação salvadora, passa
sucessivamente por inumeráveis corpos de homens ou de animais. A mesma doutrina
encontramos nos tratados herméticos:

56
Tu vês, criança, por quantos corpos, por quantos coros de demônios, por quantas cadeias e
revoluções de estrela devemos passar para chegar ao Deus único (9).

6.2. O APOCALIPSE GNÓSTICO.

Posto que o mundo é mau, ou ao menos inferior, o gnóstico se compraz em evocar sua
destruição final: o mundo mal terá um fim, o século será substituído pelo reino de Deus,
que está mais alem do mundo. Exceto nos discípulos de Menandro (10) e nos de Cerinto
(11), o gnosticismo cristão exalta a destruição do cosmo tenebroso.

Para a gnose valentiniana, a consumação final deste mundo debaixo se realizará quando
toda a semente espiritual dispersa nos seres tem alcançado sua perfeição. Os pneumáticos,
despojados de elementos terrestres e psíquicos, ascenderão até o pleroma, onde se
converterão nas esposas dos anjos que rodeiam ao Salvador. O demiurgo passará ao lugar
intermédio que ocupava sua mãe, a Sofia (que será admitida no Pleroma); ali acharão o
repouso os psíquicos. Então, o fogo latente oculta no cosmo se avivará e consumirá toda a
matéria com ele.

Também a escatologia maniqueia é muito grandiosa: o mundo se abrasará; as ultimas


parcelas de luz se reunirão numa gigantesca estatua que ascenderá ao céu, porem que a
matéria formará uma grande bola (o bolos) na que ficarão aprisionados os demônios e os
condenados. Assim, ao final dos tempos os dois princípios antagônicos estarão como na
origem, totalmente separados um do outro. Manes proclama:

O verdadeiro e o falso voltam cada um a sua raiz. A luz, por sua parte, volta a grande Luz;
a Obscuridade volta a Obscuridade reunida. Os dois princípios se reconstituem. Ambos se
restituem (o que tinham o um do outro) (12).

A escatologia de Basilides é muito diferente da dos outros gnósticos: para ele, o grande mal
é a desordem cósmica. A grande restauração, pois, consistirá em voltar a colocar em seu
lugar os elementos confundidos; e a grande ignorância fará desaparecer em todos os seres a
aspiração instintiva ao conhecimento do que está por cima deles na hierarquia metafísica do
ser (13).

NOTAS.

(1)- Dentro da concepção gnostica, o dogma católico de uma ressurreição da carne é


totalmente inaceitável.
(2)- Irineu, Contra Heresias, I, 21, 5.
(3)- Pistis Sofia, 101.
(4)- Odes de Salomão, Oda, 41.
(5)- Pistis Sofia.
(6)- Texto Valentiniano citado por Santo Irineu, Contra Heresias, I, 6, 4.

57
(7)- São Paulo, Epistola aos Romanos, VII, 9.
(8)- Citado por Orígenes, Epistola aos Romanos V.
(9)- Corpo Hermético, IV, 8.
(10)- Estes criam que graças ao batismo ressuscitariam e seriam imortais (pois, oxalá os
especialista de heresias tenham cometido o erro de interpretar literalmente uma
imortalidade de ordem espiritual.
(11)- Cerinto ensinava que Jesus ainda não havia ressuscitado, pois que voltaria a terra; na
qual Cristo reinaria durante mil anos, caracterizada por regozijos nupciais.
(12)- Tratado Chavanes Pelliot, II, p 139-140. Ver o artigo de Jean Doresse. L apocalypse
maniecheene, in: Table Ronde, 110, fevereiro de 1957, p 40-47.
(13)- Se tem pensado numa possível influencia do ideal budista do nirvana.

58
SEGUNDA PARTE.

HISTÓRIA DAS GNOSIS.

59
CAPÍTULO I. OS GNÓSTICISMOS PRECRISTÃOS E
EXTRACRISTÃOS.

1.1. ORÍGENES ORIENTAIS E GREGOS DA GNOSIS.

A idéia de alcançar a salvação mediante um conhecimento se encontra na Índia: os


Upanishads exaltam a jinana iluminadora, que revela ao homem sua origem e seu destino.
O budismo prega a libertação do sofrimento – mediante a iluminação – inerente ao fato
mesmo de existir no mundo (1). Ainda que é necessário não desprezar esta influencia
distante (o mundo helênico esteve em permanente contato com a Índia desde as conquistas
de Alexandre Magno), é impossível pronunciar-se com certeza no problema das fontes
índias do gnosticismo, o qual pode explicar - se com facilidade apelando a fontes mais
próximas.

Egito deu aos gnósticos cristãos uma certa quantidade de doutrinas e de mitos: a geração
múltipla dos deuses e das deusas – agrupados em díades, tétrades, ogdóadas ou eneadas –
no seio da Unidade insondável (2), e descrições vivas do juízo das lamas e das regiões do
mundo invisível (3). Pois é necessário destacar que, no Egito ptolomaico (e logo romano), a
velha religião dos faraós se achava inextricavelmente mesclada com os aportes de origem
grega ou babilônica. Os gnósticos tomaram da Babilônia os grandes mitos astrológico de
descer e de subir das almas: as almas descem do alto do céu, atravessam as esferas dos sete
planetas (a alma recebe disposições particulares de cada uma delas); depois da morte se
inverte o processo e as almas abandonam em cada etapa de seu descer o que tinham tomado
num principio. Também de origem babilônico parece a oposição entre as águas tenebrosas e
o fogo divino.

O tema gnóstico do Salvador que salva (4), que foi posto de revele por H Reitzenstein, é de
origem iraniano, assim como certos mitos sobre o homem microcosmos (5), sobre a luta
entre a Luz e as Trevas.

Tem tido sem duvida interferências ocasionais entre o gnosticismo cristão e os mistérios de
Mitra: este deus é representado com um punhal numa das mãos e uma tocha na outra,
símbolo de uma luz que nos faz morrer para ressuscitarmos distintos do que éramos (6).

È mister não esquecer nunca que o gnosticismo se desenvolveu num universo religioso
muito especial: o do sincretismo grego e romano; o dos inumeráveis mistérios helenísticos
e orientais. É difícil determinar as fronteiras religiosas em muitos textos teosóficos,
mágicos, da alquimia, e astrológicos nos fins da Antiguidade (o que os alemães chamam de
Spatantike). É certa que no fundo, todos os mistérios do mundo Mediterrâneo são a

60
manifestação diversa de estados da alma muito semelhantes: sempre se encontra o mito
solar de um herói divino que desce aos infernos para ressuscitar logo; sempre se encontra,
nos participantes desses cultos, o mesmo desejo de salvação e de libertação individual.
Salvo nos mistérios de Mitra, se encontra também a adoração da Grande Mãe, do
principio feminino unido ao Pai divino; os nomes da deusa variam (Isis no Egito; Cibeles
na Frigia; Melita na Assíria; Astarte na Fenícia, etc), como varia o do deus que se une a
ela (Osíris, Átis, Bel, Baal, etc), pois sempre se encontram os mesmos mitos, as mesmas
doutrinas e os mesmos ritos.

Sem troca, é fácil achar uma característica distinta do gnosticismo: seu orientalismo é de
um tipo bastante particular. Os gnósticos tomaram elementos dos mitos egípcios,
babilônicos, iranianos, frigios e – como veremos - gregos, pois os utilizaram para seus
próprios fins, se serviram deles com o fim de expressar concretamente suas próprias
convicções e dar-lhes uma forma imaginativa. Um fato sintomático é que a religião
astrológica babilônica, com seu culto dos sete planetas, sofre na gnose mais importante um
processo de inversão: os astros que determinam a existência terrestre do homem se
convertem em potencias malvadas e demoníacas.

Em certos aspectos da religião grega - ou menos afins ao helenismo caro aos homens de
letras ocidentais - se encontram inegáveis a tais crenças gnósticas. A religião grega, em
efeito, contém aspectos estranhos, que podem perceber-se nos mitos cosmogonicos
transmitidos por Hesíodo e outros escritores (7). Nos mistérios helênicos (de Dionísio, de
Eleusis, etc) achamos uma religião dirigida, não para esta vida, senão para uma beatitude
divina que o iniciado obtem depois da morte. É conhecido o grande mito órfico que
simboliza a dupla natureza do homem (a alma imortal, divina, e o corpo titanesco, que
perece): a humanidade se originou no assassinato (por Zeus) dos Titãs rebeldes, que tinham
devorado a Dionísio:

Entre os pré-socráticos, Empédocles e Pitágoras aparecem como os verdadeiros


antecessores dos profetas do gnosticismo cristão. Para os pitagóricos, em particular, a
alma divina está encerrada no corpo como numa prisão, e a dura necessidade obriga a
inumeráveis reencarnações.

Platão também não é um dos antepassados da gnose (8). Se bem faz do demiurgo uma
divindade inferior, ainda que não malvada, defendem o dualismo metafísico e religioso:

Pois não é possível que o mal se perca, Teodoro. É necessário que tenha sempre algo
contrario ao bem. Tampouco é possível que se lhe encontre entre os deuses, senão que é na
natureza e nesta terra donde deve estar necessariamente. Por isso é mister tratar de fugir
daqui para ir ali o mais rápido que se possa (9).

Platão vincula a necessidade com a matéria corporal, que sta ademais em relação com a
desordem e o mal. Declara que a alma, durante sua vida terrestre, jaz baixo uma miríade de
males (10).

O Fedon, o Fedro e o Timeo nos pintam a lamentável condição do homem como resultado
de uma queda acidental de sua alma; esta tem sido precipitada do mundo transcendente ao

61
corpo. A alma caída conserva aqui abaixo uma lembrança nostálgica pelas maravilhas que
tinha podido contemplar em suas origens. O mito de Er o Panfilio que se encontra na
Republica é também muito curioso, com sua doutrina da reencarnação das lamas humanas
nos corpos de homens ou de animais e sua descrição das regiões subterrâneas (11).

Pois é mister não esquecer certas diferenças notáveis, que põem de relevo a oposição do
maior dos sucessores de Platão, Plotino, ao pessimismo cosmológico dos gnósticos com os
que estiveram em relações diretas.

1.2. O NEOPLATONISMO E A GNOSE.

Plotino (205- 70 ªC.), o maior dos filósofos neoplatonicos, protesta violentamente contra a
doutrina gnóstica segundo a qual o mundo terrestre, incluindo o céu visível, é mau:

Se Deus está ausente do mundo, então já não está em vós. O mundo contém, em todo caso,
algo que vem de Deus; não está abandonado por este, nem o que estará nunca (12).

Plotino acha também muito estranha a doutrina segundo a qual a alma estará composta
por elementos diversos e a crença numa Terra Nova a que vão os eleitos depois de sua
morte. Indigna-se contra o emprego de encantamento para atuar sobre as potencias
celestes (13).

No sistema de Plotino não tem um Salvador vindo desde o alto, como tampouco um
princípio independente que se erige contra Deus. Sem embargo, é fácil descobrir em
Plotino (14) – como num de seus inspiradores, Numenio de Apamea (15) – pontos de
convergência das espiritualidades neoplatônica e gnóstica.

Entre os sucessores de Plotino (Jamblico, Plutarco, Proclo), o novo platonismo adquiriu


uns aspectos bastante estranhos: a metafísica se mesclava neles com as técnicas de
iluminação, a astrologia, a teurgia e uma ciência da reencarnação.

1.3. O HERMETISMO.

A literatura hermética, no estrito sentido da palavra (16), está formada por uma serie de
tratados gregos nos que aparece uma gnose filosófica-religiosa colocada debaixo o
padroeiro Hermes de Trismegisto, Hermes, o triplamente muito grande, o três vezes grande
(17). Seus atores (que tem ficado no anonimato) atribuem estes livros ao deus egípcio Toth
– identificado com Hermes pelos gregos – e que, segundo a tradição, era o escriba dos
deuses e a divindade da sabedoria. Esses escritos datam possivelmente do século III d.C.;
em todo caso, não são anteriores ao século II d.C.

62
O hermetismo, muito difundido entre os alexandrinos de origem grega, é uma gnose pagã
que se considerava egípcia, ainda que suas fontes filosóficas sejam, em sua quase
totalidade grega.

Ademais destes tratados sábios tem grande quantidade de obras de alquimia, de magia e
de astrologia contemporâneas do hermetismo filosófico – religioso, atribuídas também ao
prestigioso Hermes.

Seguramente existiram laços mais ou menos diretos entre os conventículos herméticas


pagãos e certas comunidades gnósticas cristãs. Na biblioteca dos sectários de
Chenoboskion se tem achado ademais, uma versão copta do Asclépio hermético (18).

Podemos considerar também afim ao hermetismo a toda uma literatura sagrada de


pretendido origem babilônico: o principal destes livros é o “O Oráculo Caldeu”,
falsamente atribuído a Zoroastro, e que exerceu grande influencia sobre todos os filósofos
neoplatonicos a partir de Jamblico.

1.4. OS GNÓSTICOS JUDAICOS.

As invectivas dos gnósticos cristãos contra o Deus dos Judeus, identificado com o
Demiurgo malvado, impediram durante longo tempo aos historiadores tomar em
consideração as fontes judaicas da gnose (19) e a existência de tendência nitidamente
gnósticas entre os judeus.

Muito antes do nascimento de Jesus existiam na Palestina, grupos que estavam mais ou
menos à margem do judaísmo ortodoxo e que proclamavam um Salvador. Trata-se
evidentemente dos essênios, famosos desde o descobrimento (em 1947) dos manuscritos do
Mar Morto (20).

Os essênios – cujo nome provem sem duvida da raiz semítica chase e que significa fieis –
constituíram verdadeiros conjuntos monásticos judeus que praticavam a comunidade de
bens, o ascetismo e as disciplinas contemplativas. Segundo a expressão de Plínio o Antigo,
formavam “ um povo sem mulheres, sem amor e sem dinheiro, um povo eterno donde não
se nascia”. Ao recusar o matrimonio e os sacrifícios sangrentos, formavam um grupo
herético, excluído do templo de Jerusalém pelos ortodoxos. Sua doutrina exaltava a
despreocupação pelo corpo:

Os essênios sustentavam a opinião de que os corpos são perecedores, que sua matéria
pode ser aniquilada, pois que as almas não são perecedoras. Estas saem das regiões mais
puras do éter, estão encerradas nos laços do corpo como numa prisão e se vêem levados a
formar estes nus por um encanto natural. Quando se desembaraçam dos laços da carne,

63
elas se escapam felizes pelos espaços, como se houvera libertado de uma longa escravidão
(21).

Em seu ascetismo, os essênios parecem ter unido a suas crenças judaicas certas doutrinas
pitagoricas.

O essenismo se desenvolveu a partir de 150 ªC. nas margens do Mar Morto e no limite do
deserto da Judéia. Sua principal comunidade se encontrava nas Grutas de Qumran (Khirbeit
Qumran - lugar dos descobrimentos dos famosos testos); subsistiu (22) até junho de 68
d.C., data da chegada da décima legião romana, enviada para sufocar a revolta dos judeus.

Os sectários de Qumran rendiam culto a um misterioso personagem, o Mestre da Justiça,


quem lhes havia revelado o sentido oculto das escrituras e tinha sido ajuizado (um século
antes de Jesus) pelos defensores da ortodoxia. Estes essênios criam ser os únicos eleitos de
Deus, os filhos da luz em luta contra os filhos das trevas. No Manual da disciplina se
desenvolve uma doutrina de uma separação absoluta dos eleitos e dos reprovados:

A origem da verdade está na Fonte de Luz, e o da Perversidade, no Abismo das Trevas.


Todos os que praticam a retidão estão debaixo da dominação do Príncipe da Luz e
marcham pelos caminhos da Luz, porem que aqueles que praticam a perversidade estão
debaixo da dominação do Anjo das Trevas e marcham pela via das Trevas.

Só os eleitos, definitivamente purificados, gozarão da eternidade divina.

O essenismo exerceu grande influencia em Palestina na época imediatamente anterior a


predica de Jesus; até é possível que João Batista (23) tenha estado em estreitas relações
com os sectários de Qumran. Depois de 70 d.C., os essênios desapareceram como
comunidade independente, alguns se uniram novamente ao judaísmo, pois muitos se
converteram ao cristianismo ou a seitas a margem da pregação católica.

A este respeito, podemos dizer algumas palavras referentes a seitas judaico-cristãs, as


principais das quais foram os ebionitas (do Hebraico Ebionim - os pobres), os elcasaitas
(24) e a misteriosa comunidade a que se deve o relato Pseudoclementina. Todos estes
grupos cristãos judaizantes exigiam a manutenção das prescrições da lei mosaica, que
Cristo havia vindo a fazer cumprir, e não a suprimir. Nos achamos nas antípodas da gnose
cristã (as Homilias Clementinas atacam, ademais a Simão o Mago), pois todos esses grupos
parecem imbuídos de um gnosticismo judeu de origem pré-cristão:

As almas humanas proclamam as Homilias Clementinas, são gotas de luz pura (25).

A antiga literatura rabínica inclui uma certa quantidade de apócrifos judeus, o mais celebre
dos quais, o Livro de Henoc, desenvolve a idéia de uma queda dos anjos, cuja luxuria com
as mulheres seria a origem dos demônios. A angelologia de certos gnósticos cristãos como
Justino parece tirada diretamente destes apocalipses judeus.

Devemos destacar também o laço estreito entre a primeira gnose cristã e o profetismo dos
samaritanos. Estes habitavam o antigo reino hebreu setentrional (cuja capital era

64
Samaria), conquistado pelos Assírios no ano 722 ªC., as uniões com os colonos
estrangeiros modificaram muito suas crenças religiosas. Desprezados pelos judeus de raça
pura, os samaritanos acabaram por construir seu próprio templo no monte Garizim (26).
Eram apaixonados da magia, os ritos misteriosos e o profetismo; como seu mestre Dositeu,
Simão era um messias samaritano.

Não deve subestimar a influencia do judaísmo alexandrino. Filon (por volta de 20 ªC. – por
volta de 40 d.C.), um judeu de Alexandria empapado de cultura helênica e da filosofia
platônica, se fez o porta-voz das idéias de tendência gnósticas. Encontramos nele a idéia de
um Deus transcendente e a de que não só é tenebrosa a terra, senão que também o é o céu
por cima dela. “Segundo Moises – escrevia Filon – o mundo tem arcontes e súditos, a
semelhança de uma enorme cidade; os arcontes são os astros do céu”. O corpo está
condenado: “O corpo é mau em si mesmo”. “Posto que a terra é um lugar de miséria, este
homem celeste, quando tem mescla da alma com o corpo, não é mais que o portador de um
cadáver, desde que seu nascimento até a morte”.

Sem embargo, Filon não conhece ainda a angustia dos gnósticos cristãos, ainda que
distinga duas classes de homens, de essências e de origens opostas. Não condena o mundo,
já que faz dele uma espécie de intermediário entre Deus e a alma (27).

Ao longo de toda a historia posterior do judaísmo da era cristã, observamos a verdadeira


gnose rabínica, que durante os primeiros século deve ter contato com o gnosticismo cristão.

Tem toda uma literatura esotérica que descreve a glória oculta, os palácios (Hekhalot) nos
que reside a Majestade Divina; alguns sábios se têm beneficiado com a visão do Trono
divino para o qual se eleva a alma do vivente depois de ter atravessado as esferas celestes.
Os rabinos iluminados desenvolveram a mística da Merkaba – do carro divino- com glosas
sobre a grande visão de Ezequiel. Durante a Idade Media, esta gnose florescerá nos livros
da Cabala, o sefer Yetsirá e logo no Zohar (livro do esplendor).

A influencia das doutrinas cabalísticas, por demais, supera em muito o marco do judaísmo,
já que foi enorme sobre muitos teósofos cristãos.

1.5. O MANDEÍSMO.

Os mandeus, também chamados de nasoreus ou – erroneamente, já que são hostis ao


cristianismo – cristãos de São João, formam uma comunidade religiosa batista (29) que
ainda subsiste na Baixa Mesopotâmia (delta dos rios Tigres com o Eufrates). Seu
sacerdócio tem três graus, acessíveis a ambos os sexos. A literatura sagrada dos mandeus
é muito abundante, e seus livros – vantagem apreciada para o especialista no gnosticismo
– nos têm chagado em sua integridade: o Ginza (Tesouro) – subdividido em Ginza de
Direita e Ginza de Esquerda = o Qolasta (Quinta Essência), o livro de João Batista, etc.

65
O mandeismo é uma gnose (30) extraordinariamente complexa, na que se observam
elementos babilônicos, iranianos, judeus e maniqueus. Tal como o conhecemos, é o
resultado de uma longa evolução (alcançada para o século V d.C.): os mandeus vem seu
mestre em João Batista. A seita parece ter nascido um pouco antes que o cristianismo (31),
pois sua importância foi exagerada desmesuradamente por alguns historiadores do
período compreendido entre as duas guerras, quem não vacilaram em ver nela a fonte
direta da religião cristã. Se bem os mandeus admitem a Hibil (Abel), Shitil (Sete), Anosh
(Enoque) e João Batista, em troca consideram am Jesus um falso profeta.

A doutrina mandeia, que segundo toda a probabilidade foi codificada depois da aparição
do maniqueísmo (32), é de uma incrível complicação, pelo qual remetemos ao leitor aos
trabalhos especializados (33).

1.6. O SABEISMO.

A miúdo se confunde aos mandeus com os sabeus, seita entregue ao culto dos planetas.
Este grupo surgiu no começo da Idade Media na cidade de Haran (ao sul de Edesa, na
Síria Ocidental).

O sabeismo sofreu muito a influencia das doutrinas gnósticas cristãs, como se revela o
seguinte fragmento (do autor muçulmano El Khatibi):

A alma se voltou uma vez para a Matéria; prendeu-se a ela, e ardendo em desejos de
experimentar os prazeres corporais, já não quis separar-se dela. Assim nasceu o mundo.
Desde esse momento, a alma se esqueceu de si mesma; esqueceu sua morada primitiva, seu
centro verdadeiro, sua existência eterna. Pois Deus, quem não queria abandonar a alma
em sua degradação com a Matéria, a dotou de uma inteligência e da faculdade de
perceber, dons preciosos que deviam recordar-lhe sua divina origem: o mundo espiritual
(34).

NOTAS.

(1)- Não podemos entrar nos detalhes. O leitor pode consultar varias obras desta coleção,
como: o budismo (468), o Yoga (643), o Hinduismo (475).
(2)- Eis aqui uma formula do sacerdote Padiamon (XXII dinastia ): Eu sou um que se
converte em dois; eu sou dois que se converte em quatro; eu sou 4 que se converte em 8; e
depois se converte em 1.
(3)- Nos textos gnósticos coptos, o inferno conserva seu nome egípcio: Amente (o
Ocidente).

66
(4)- O salvador se esforça por libertar-se às parcelas de sua própria luz, dispersas na criação
inferior, e ao fazer isso se salva a si mesmo.
(5)- O cosmo aparece como a imagem aumentada do homem.
(6)- F Cumont. Les mysteres de Mithra, Bruxelas, 1913.
(7)- P Grimal. A mitologia Grega, Difel, São Paulo, 1993.
(8)- Em particular, a influencia platônica é muito sensível em Valentin.
(9)- Teeteto, 176a.
(10)- Republica, X, 611d.
(11)- Remetemos a primeira parte (o dualismo platônico) do livro de Petrement, Lê
dualisme chez Platon.
(12)-Eneades, II, 9, 16.
(13)- Os gnósticos que seguiam os cursos de Plotino usavam livros encontrados
recentemente no Alto Egito (Apocalipse de Zostriano, de Nicoteu, etc). Sobre estes
sectários, ver o livro de Carl Schmidt, Plotins stellung zum Gnosticismus, Leipzig, 1901.
(14)- Sobre o pensamento de Plotino ver a excelente obra de M de Candillac, La sagesse de
Plotin, Paris, Hachette, 1952.
(15)- H. Ch. Puech. Numesius , 1934,p 755-764.
(16)- Não incluímos a literatura da alquimia, que também se colocava debaixo do
patrocínio de Hermes (ver cap IV).
(17)- Ver o Corpus Hermeticum (texto fixado por A D Nock e traduzido por A J Festugiere,
Paris, Les Belles Lettres). A J Festugiere La revelation de Hermes Trismegiste, Paris,
Gabalda, 1940-1954, 4 vols.
(18)- Antes deste descobrimento só se conservava uma tradução latina.
(19)- L Cerfaux, Gnose prechretiene, Dictionaire de la Bible, Tome III, Col 659 ss.
(20- Tem muitas obras sobre este descobrimento, pois não podemos cita-las todas aqui
(recordemos somente os estudos de Dupont-Sommer). Ver E.M. Laperrousaz. Les
manuscrites de la Mer Morte, Sais-je, 953).
(21)-Flavio Josefo. Guerra dos Judeus, II.
(22)- Houve uma longa interrupção (de trinta anos) depois do terremoto de 31 d.C.
(23)- E talvez o mesmo Jesus.
(24)- Fundava debaixo do reinado de Trajano por um certo Elcasai, a quem um anjo de
fabulosa tala haveria entregado um livro misterioso. Estes sectários criam que Cristo tinha
se encarnado varias vezes no curso da História. São Epifanio ataca seu sincretismo mágico
e religioso: Não são cristãos, nem judeus, nem pagãos, senão algum intermediário; no
fundo não são nada (Panarion, Heresia, LIII).
(25)- XX, 9. Os anjos são ígneos; também os demônios são de fogo, pois misturados com
uma matéria mais grosseira.
(26)- No ano 529 d.C. quase todos os samaritanos pereceram no curso de uma revolta
contra o imperador bizantino. Só ficaram uns poucos sobreviventes cujos descendentes
atuais (ao redor de 1500) formam uma pequena comunidade separada dentro do estado de
Israel.
(27)- Filon, Comentários alegóricos das leis santas. E Brehier. Les idees philosophiques de
Philon de Alexandrie, Paris, Vrin, 1925. S Petrement. Le Dualisme ches Platon, p 216-219.
Filon fala da existência de anacoretas judeus no Egito de seu tempo; eram os Terapeutas,
assim chamados porque libertavam a alma das enfermidades graves que lhe provocam as
paixões e os vícios.

67
(28)- G Scholem. As grandes correntes da mística Judaica, Editora Perspectiva, São Paulo,
1984.
(29)- É dizer, que praticavam os ritos do batismo; o emprego deste adjetivo não supõe
nenhum laço com o protestantismo batista.
(30)- O mandaya (mandeu) é o que possui a gnose - manda, na língua sagrada da
comunidade, uma espécie de aramaico.
(31)- Se crê que derivam sobre tudo de uma seita de hemerobatista (que se batizam todas as
manhãs) da Samaria pré-cristã; este grupo é mencionado por São Epifanio.
(32)- Sobre o maniqueísmo, ver cap seguinte.
(33)- H Ch Puech, Lê mandeisme, p 67-83 e 444-446.
(34)- Citado por Doresse, Les livres secrets, p 358-359.

68
CAPÍTULO II – O GNOSTICISMO CRISTÃO.

2.1. FONTES PARA O ESTUDO DO GNOSTICISMO CRISTÃO.

A parte de algumas raras exceções – como o filosofo Plotino e o medico Celso, ambos
pagãos- os grandes adversários da gnose cristã foram os Pais da Igreja: São Irineu,
autor do livro Contra Heresias; o bispo Hipólito de Roma (1); Orígenes: Clemente de
Alexandria; Tertuliano; São Epifanio, autor de Panarion (2); São Efren o Sírio; Teodoro
Bar-Konai, outro sírio hereje, etc. Graças a eles possuímos preciosas informações acerca
dos doutores e as seitas do gnosticismo: doutrinas, ritos, títulos e extratos de livros e as
vezes até testemunhos diretos. São Epifanio, por exemplo, nos conta como se havia sentido
atraído pó belas mulheres de uma seita de gnósticos licenciosos de Alexandria e quão
difíceis lhe resultou escapar delas (3).

Pois, ainda tendo em conta a grande quantidade de extratos - e alguns pequenos textos
completos, como a Carta de Ptolomeu a Flora, que nos tem conservado São Epifanio – que
se encontram na literatura da heresia, o historiador só dispunha de uma documentação
direta muito pobre.

Pois a situação mudou radicalmente com o descobrimento dos escritos gnósticos coptos (4).
A dizer a verdade, os três manuscritos (Código de Askewianos; com a famosa Pistis Sofia;
Código de Bruce; Código de Berlim), descobertos entre finais do século XVIII e fins do
século passado, só continham informes sobre pontos muito específicos e acerca de um tipo
de gnosis na que predominavam a mitologia e o ritualismo (5).

Depois da segunda guerra mundial, um feliz azar permitiu ter acesso a toda a biblioteca de
uma seita gnósticas cristã do Alto Egito, os setianos, para precisar.

Em 1945, os fellahs de um casarão do Alto Egito descobriram um conjunto de manuscritos


coptos, perto de Nag-Hammadi (não longe de onde se achava a antiga Chenoboskion).
Estes manuscritos foram metodicamente inventários por Jean Doresse e Togo Mina e
editados por um comitê Internacional de sábios especialistas.

Estes textos coptos (traduzidos em sua maioria de originais gregos) constituem um


imponente conjunto de obras gnósticas: Livro secreto de João, Livro do sagrado do
Grande Espírito Invisível, Epistola de Eugnosto o Bem-aventurado, Sofia de Jesus,
Dialogo do Salvador, Apocalipse de Paulo, Discurso da verdade de Zostriano, O
pensamento da Grande Potencia, Os ensinamentos de Silvano, etc (6).

2.2. OS GNOSTICOS CRISTÃOS DOS PRIMEIROS SECULOS.

69
Tem três personalidades que dominam a gnosis cristã em seus começos, contemporâneos
da predica apostólica: Simão o Mágico, Nicolau e Cerinto. Ainda que certos historiadores
(De Faye, por exemplo) tendem a coloca-los entre as personalidades legendárias, parece
que foram figuras históricas. É necessário tomar a precaução de situa-los em sua época e
em seu médio: suas doutrinas aparecem então como expressão de correntes, doutrinas e
praticas que estavam no ar na época da morte de Cristo, e não como invenções individuais
e arbitrarias.

Simão, originário do burgo de Gitteh (em Samaria), era um personagem extraordinário:


simples mágico ou mago ambulante, parece ter acabado por crer que ele era realmente o
Salvador encarnado, e que a velha prostituta com a que se passeava, Helena (7) era a
Ennoia divina cativa num corpo feminino. Era homem de vasta cultura (escrevia em grego
e revelava indiscutíveis conhecimentos filosóficos e médicos), e parece ter feito longas
viagens (pela Ásia Menor, Alexandria e mais tarde Roma) para difundir sua doutrina. Se
bem que fez batizar, nunca foi cristão de coração (8). Os últimos tempos de sua vida estão
rodeados de lendas. Segundo a versão mais difundida, Simão havia logrado elevar-se
alguns instantes por cima de Roma (por levitação ou mediante alguma maquina volante?),
ante Nero e todo o povo romano; pois, tendo os diabos perdidos seus poderes (a
conseqüências de uma oração de São Pedro), o mago tinha se precipitado desde os ares (9).

Destaquemos que as pretensões messiânicas de Simão não tinha nada de incrível para seus
contemporâneos. Depois da morte de Jesus, não cessaram de aparecer na Palestina falsos
messias, como o egípcio, quem por 52 a 54 d.C. afirmou diante de 4 mil judeus reunidos no
Monte das Oliveiras que ia a provocar o derrame dos muros de Jerusalém.

Nicolau, fundador da seita dos Nicolaitas, era segundo a tradição um dos sete diáconos da
Igreja de Jerusalém. No apocalipse (10) se faz menção aos nicolaitas; na primeira Epistola a
Timoteo (11) e na primeira Epistola de João (12) se lhe estigmatiza sem menciona-los.
Achamos nesta seita uma evidente superposição de elementos cristãos e pagãos. Pretendem
dar aos cristãos e pagãos. Pretendem dar do cristianismo uma interpretação esotérica e seus
afeitos a intermináveis fabulas e genealogias; proíbem o matrimonio, pois se entregam à
prostituição ritual.

Cerinto parece ter sido contemporâneo do apostolo João, em Éfeso. Nele se encontra já a
característica distintiva do gnosticismo cristão: o esforço por adaptar crenças pré-cristãs ao
cristianismo. Os gnósticos se esforçam por fazer entrar a religião cristã dentro do marco de
seus mitos sobre o exílio da alma luminosa no fundo da matéria tenebrosa.

Segundo a tradição da heresia, Simão teve um discípulo: Menandro, originário de


Capareteia (em Samaria); este a sua vez teve como discípulos a Saturnil (Saturnino) de
Antioquia e ao Egípcio Basilides. Com este ultimo, a gnose cristã e converte numa
metafísica abstrusa.

Basilides ensinou em Alexandria debaixo os reinados dos imperadores Adriano e Antonino


Pio; seu florescimento se coloca em 125. Seu ensinamento esotérico pretende derivar de
profetas desconhecidos, Barkabbas e Barkoph (que eram, sem duvida, filhos do patriarca
Noé), pois sofreu uma forte influencia da filosofia Alexandrina. Fundador de um culto de

70
mistérios impôs a seus ouvintes um silencio de cinco anos, ao igual que Pitágoras. Seu
discípulo mais notável foi seu filho Isidoro.

Na grande cidade cosmopolita de Alexandria apareceram também outros dois grandes


doutores: Carpócrates e logo depois Valentin.

Carpócrates, depois de ter vivido longo tempo em Alexandria, voltou com sua mulher a
sua pátria, a ilha grega de Cefalenia, onde mais tarde foi objeto de um culto póstumo a seu
filho Epifanio que deixou a fama de um grande filosofo (13), ainda que morreu aos 17 anos
(no ano de 138). As doutrinas carpocracianas foram levadas a Roma, baixo o pontificado de
Aniceto (155-166), por certa Marcelina (antes tinham chegado a capital do Império o
gnostico Cerdon e logo, no ano 150, seu discípulo Marcião).

Valentin, depois de receber em Alexandria sua educação religiosa e filosófica, se trasladou


a Roma em 136, onde se estabeleceu depois de fracassar em sua candidatura ao episcopado.
Em 165 parece ter abandonado Roma para ir a fundar uma escola em Chipre.

Valentin, o mais famoso dos grandes gnósticos, e teve muitos discípulos: Ptolomeu,
Teodoto e Heracleon foram os mais destacados. Outro valentiniano, o taumaturgo Marcos,
foi um personagem pitoresco que inspirou a meditação de Cagliostro; este gnostico, cujo
florescimento se coloca ate 170-190 fez da Ásia Menor o teatro principal de sua atividade.
Teve muitos alunos, graças aos quais a seita pronta se difundiu por todo o Império,
particularmente por Gália (São Irineu, bispo de Lião, combateu aos sectários marcosianos
de sua diocese).

Marcião nasceu em Sinope, no Ponto, para o ano 85, e foi um armador de fortuna. Talvez
tenha sido aluno do gnostico Sírio Cerdon, pois foi, sobretudo por si mesmo que chegou a
seu dualismo radical, resultado de uma minuciosa exegese antijudaica. Excomungado por
seu próprio pai, que era o bispo da comunidade cristão de Sinope (14), viajou pela Ásia
Menor e logo se dirigiu a Roma para pregar nesta, com ardente proselitismo, a restauração
(segundo seus princípios) do cristianismo primitivo. O marcionismo, desenvolvido por seus
discípulos como Apeles, não cessou de propagar-se pelo mundo mediterrâneo até fins do
século IV. Para o ano 400 para marcionitas em Roma e em toda a Itália, em Egito, Síria,
Armênia, Chipre e ainda na Pérsia.

Bardesanes de Edesa, nascido em 154, foi primeiro um adepto da escola oriental do


gnosticismo valentiniano, pois logo se voltou contra ela para elaborar suas doutrinas
pessoais, de tendência igualmente gnósticas (pois inclinadas para o dualismo cósmico),
apesar da preocupação pela ortodoxia manifestada por seu promotor. Bardesanes compôs,
em siriaco, 150 hinos e um bom numero de diálogos.

A genealogia da gnose parece relativamente simples até o fim do século II (15), pois depois
deste período o historiador perde pe ante a incrível proliferação de seitas – umas antigas,
outras novas – e os subgrupos, dos que emerge de tanto alguma personalidade mais forte
que a de seus correligionários (por exemplo, na seita dos cainitas se destacou uma mulher,
Quintilha, que fez muitos adeptos ao cainismo na África do Norte; na seita dos setianos
surgiu um pensador que adotou o nome espiritual de Eugnosto e cujas obras tem sido

71
encontradas nos manuscritos de Chonoboskion). Sem embargo, é relativamente fácil achar
um fio condutor: é arbitrário crer que houve um movimento único, dirigido por um chefe
oculto que fora (segundo as tendências de cada um) um grande iniciado ou um papa negro
da Gnose; pois é mais evidente que a forma misturada de seitas é mais aparente que real,
pois muitos desses grupos (os barbelognsoticos, os nicolaitas, os cainitas, os arconticos, os
setianos, etc) podem ser considerados como ramificações de uma mesma gnose: a dos
ofitas, setianos ou simplesmente gnósticos.

2.3.A IGREJA E O GNOSTICISMO.

Observa um especialista em heresia contemporâneo: o gnosticismo rendeu um serviço


providencial a Igreja ao obrigar aos fieis a unir-se ao redor de seus pastores e
principalmente ao redor do bispo, representar-se de Cristo e sucessor dos apóstolos, em
cada igreja particular (16).

Opõe-se a esta tese de Eugene de Faye, segundo a qual a Igreja haveria incorporado a seu
próprio seio as receitas salvadoras e os ritos sacramentais das comunidades gnósticas
(17).

Em realidade, parece que o catolicismo não sofreu nenhuma influencia, como não fora
negativo, por parte da gnose ocorrida se o gnosticismo – ou mais bem os gnosticismos –
houveram triunfado (coisa que tem podido suceder se a Igreja não se houvesse combatido
implacavelmente as doutrinas e as praticas das gnoses). Talvez o cristianismo teria
terminado por semelhança, em seu gênero, ao hinduismo, no que coexistem todas sortes de
tendências espirituais que são dificilmente conciliáveis umas com as outras, pois unidas
todas pela mesma aspiração de libertar-se da existência terrestre. Desde o ponto de vista
católico, a crise gnostica representou um perigo mortal, tanto mais temível quanto que a
dogmática ainda não se tinha constituído e não tinha praticamente nenhum meio para lutar
em forma eficaz contra a hábil propaganda – escrita ou oral – dos sectários, alguns dos
quais podiam, ademais, valer-se de poderes espirituais regulares (18).

Ao converter-se em religião do estado, o catolicismo acabou desgraçadamente por


recorrer a meio duvidosos (delação, apelação ao poder secular, destruição metódica de
livros, etc) contra os gnósticos. Tal conduta se explica (já que não se justifica) pelo temor
retrospectivo ante o gnosticismo, tentador e fácil de propagar-se.

72
2.4.O ESOTERISMO CATÓLICO.

O iluminismo dos gnósticos heterodoxos não tinha nada de cristão por sua origem, pois por
outro lado existia na Igreja primitiva um verdadeiro esoterismo. No Evangelho conforme
São Marcos lermos:

A vós, discípulos eleitos, se os tem concedido o saber ou conhecer o mistério do reino de


Deus; pois a multidão, todo se lhes anuncia em parábolas, de modo que vejam e não
entendam, ouçam e não compreendam.

Até o século IV se manteve na Igreja a disciplina do Arcano, pela qual se fazia ascender
progressivamente aos catecúmenos ao conhecimento dos ritos e das doutrinas. Todavia a
começos do século V, Sinesio, bispo de Ptolomais, escreve:

A verdade deve ser mantida em segredo; as massas necessitam um ensinamento


proporcionado a sua razão imperfeita.

No Novo Testamento, o esoterismo soma mais de uma vez; certas fórmulas misteriosas não
podem explicar-se mediante a exegese literal. O ultimo dos livros do Novo testamento, o
Apocalipse de São João, é inclusive bastante estranho; o simbolismo das imagens e dos
nomes desempenha nele um papel muito importante, e até se encontra uma alusão à
doutrina das reencarnações, das que só o verdadeiro cristão pode escapar (19).

No Evangelho de São João encontramos alusões à luz divina que as trevas não tem
extinguido, assim como uma passagem no que se apela ao conhecimento que possui o
cristão (20).

Em São Paulo é dado a conhecer doutrinas comuns ao cristianismo primitivo e a gnose


(21). O apostolo, inclusive, apela a Sabedoria de Deus, sabedoria recôndita, a qual
predestinou e preparou Deus antes de todos os séculos para glória nossa, sabedoria que
nenhum dos príncipes (como observa Doresse, a tradução literal é arcontes) deste século
(literalmente: deste eon) tem entendido (22).

São Paulo polemiza ante Marcião contra a Lei de Moises, cujos mandamentos são
qualificados de lei de morte, gravada com letras sobre duas pedras, em contraposição a lei
nova, Lei do espírito ditada por Jesus. Paulo adota a divisão tripartita do homem: corpo,
alma e espírito. Satã é o príncipe desde mundo, assistido por muitas potencias. Dentro da
perspectiva paulina, o homem ressuscitará com um corpo glorioso, pois a carne e o sangue
não podem herdar o Reino de Deus (23).

Pois São Paulo se nega redondamente a atribuir ao criador a responsabilidade pelo mal e o
pecado original; não encontramos nele nenhum docetismo.

Tem uma diferença capital (independentemente das oposições doutrinais) entre o


esoterismo da igreja primitiva e dos gnósticos (24): nestes últimos, a salvação só é

73
oferecida a uma pequena quantidade de iniciados, porem que a Igreja oferece a salvação a
todos, ainda aos espíritos menos capazes de compreender os mistérios. No esoterismo
católico só se trata de aprofundar e compreender doutrinas e ritos accessíveis a todos os
fieis.

Entre os representantes pós-apostólicos de um esoterismo cristão ortodoxo, de uma


verdadeira gnose, devemos mencionar, em primeiro lugar, os nomes ilustres de Clemente
de Alexandria e de Origens.

Orígenes em particular, que foi a começos do século III o chefe da escola catequética de
Alexandria, exerceu grande influencia, apesar da condenação de sua doutrina por um
concilio reunido em 553. Afirmava a eternidade da criação e a existência de um número
infinito de mundos sucessivos, sustentava a doutrina da preexistência das almas e de sua
queda nos corpos (para expiar faltas), e negava a ressurreição da carne. Também
afirmava a restauração final universal: o diabo mesmo seria redimido ao final dos tempos
(25). Posteriormente a Orígenes, achamos o esoterismo em seu discípulo Gregório de
Nissa e nos escritos do pseudo Dionísio o Aeropagita (26).

Na alta Idade Media aparece o grandioso sistema do irlandês João Escoto de Erígena. O
Processo ou Criação sucede a Reversão ou Deificação cujo principio é Cristo, e que
terminará pelo retorno final de todas as coisas a Deus (27).

Santa Hildegarda de Bingen (1098-1178), autora do Livro divino da obra simples dos
homens, no que conta e comenta suas visões teosóficas, nos pinta ao mundo fechado pelo
circulo do fogo obscuro, que isola ao mundo terrestre da luz divina (28).

Mestre Eckart (nascido em 1260, morto entre fevereiro de 13267 e começo de 1329) é a
maior figura da mística alemã (29).

O esoterismo católico não tem desaparecido na Europa Moderna. Em pleno século XX


achamos eminentes representantes do mesmo: até é curioso comprovar que um pensador
como Teilhard Chardin, de formação biológica e antropológica, tem acabado por aceitar
grandiosas concepções gnósticas (no sentido amplo do termo).

Poderíamos mencionar também a Simone Weil (30), se bem que se trata de uma
personalidade que se tem detido no umbral do catolicismo. Esta admirável gnostica
contemporânea tem reencontrado o ascetismo cátaro; sobretudo, se tem aderido ao ideal
tradicionalista de Guenon: “as diversas tradições religiosas autenticas são reflexos
diferentes da mesma verdade e talvez todas igualmente preciosas” (31)

NOTAS.

(1)- Autor do Elenchos (mais conhecido pelo titulo de Filosofema), tratado achado em 1851
e que durante tempo se atribuiu a Orígenes.

74
(2)- Literalmente, a caixa de remédios contra as heresias.
(3)- Se tem escapado de suas garras, ele não se deveu a mim só virtude pessoal, senão a
ajuda divina que se me brindou em resposta a meus rogos (Panarion cap XXVI).
(4)- O copta é a língua egípcia escrita nos caracteres de língua grega e seu alfabeto (que
recolocam gradualmente aos hieróglifos durante a época helenística e logo romana).
(5)- Sobre estes três Códigos, ver: E de Faye. Gnostiques, parte III.
(6)-Jean Doresse. Les Livres secrets.
(7)- Ela lhe servia de meio para suas operações mágicas.
(8)- Se sabe, que Simão queria comprar aos apóstolos, a quem tomava por colegas em
magia, o poder de fazer descer o espírito Santo sobre os fieis.
(9)- As Pseudoclementinas dão outra versão: para imitar a Cristo, Simão se fez enterrar
vivo, persuadido de que ia ressuscitar ao terceiro dia; pois suas esperanças não se
cumpriram.
(10)- II, 6 e 15.
(11)- IV, 2.
(12)- II, 19.
(13)- Talvez não seja um mito uma precocidade semelhante. Rimbaud escreveu seus mais
belos poemas quando não era mais que um adolescente.
(14)- Durante os primeiros séculos, os sacerdotes católicos (e até os bispos), por geral, eram
casados.
(15)- Ainda os Pais da Igreja tendiam a sistematizar demasiado a filiação da gnose a partir
de Simão, considerado como o pai da mesma: o gnosticismo primitivo apareceu quase
simultaneamente, ao parecer, em Samaria, Síria, Ásia Menor, e Alexandria.
(16)- Canônico Cristiani, Breve Historia das Heresias, Paris, Fayard, 1956, p 11.
(17)- Gnósticos p 496: se o cristianismo venceu ao gnosticismo, só pode logra-lo a custa de
carregar com os despojos de seu adversário.
(18)- A formula de Ptolomeu: nós também temos recebido em sucessão regular a tradição
apostólica. Nossa regra é julgar todas as palavras segundo modelo de ensinamento de Jesus.
(19)- Ao que vencer, eu lhe farei coluna no templo de meu deus, donde não sairá jamais
para fora. Apoc 3,12.
(20)- Jesus disse a Samaritana: vós adorais o que não conheceis; pois nós adoramos o que
conhecemos (Jo 4,22).
(21)- Petrement. Lê dualisme, p 208-216.
(22)- I Cor 2, 7-8.
(23)- II Cor 3,7.
(24)- Com certas exceções (o marcionismo, por exemplo).
(25)- O livro de Jean Danielou. Origene, 1948 (tradução espanhola Sudamericana 1958). A
negação da eternidade das penas infernais tem sido sustentada novamente por muitos
autores (a famosa obra de Giovani Papini. O Diabo).
(26)- Ver obras completas, Editadas por M Gandillac, Paris, Aubier, 1943.
(27)- M Cappuyns. Jea Scot, as vie , son ouvre, sa pensee, Louvania, 1933.
(28)- Leisegang. La gnose, p 25.
(29)- J A Hustache. Maitre Eckart. Paris, Seuil, 1956.
(30)-Ver Attende a Dieu, obras completas editadas por La Colombe.
(31)- Lettre a un religieuse. Gallimard, editions, p 35.

75
CAPÍTULO III. O MANIQUEISMO E OS NEOMANIQUEISMOS.

3.1. MANES E O MANIQUEISMO.

Manes nasceu em 14 de abril de 216 na Babilônia, pois era iraniano de raça pura. Seu pai,
Patek, era originário de Hamadã (a antiga Ecbatana), de Medi; sua mãe, Maryam,
pertencia à dinastia parta dos arsacidas (a quem haviam derrotado os sasanidas,
restauradores do masdeismo de estado).

Pouco tempo antes que Manes viesse ao mundo, Patek tinha ouvido desde o fundo de um
templo uma voz que dizia: Patek, não comas carne, não bebas vinho, e mantem alijado das
mulheres. Logo desta advertência, Patek se aderiu a seita dos Mughtasila (literalmente, os
que se lavam ou tomam banho), comunidade batista na que alguns historiadores vem uma
forma primitiva do masdeismo.

Desde temporão de idade Manes se dedicou a meditação. As atividades intelectuais e às


artísticas (1).

Com a idade de doze anos ou treze anos o futuro reformador recebeu um anuncio secreto;
aos 24 anos, recebeu a grande revelação. Manes rompeu violentamente com a comunidade
paterna e se considerou como o ultimo dos enviados de Deus, como a verdadeira
manifestação corporal do Parácleto Joanico ( o Espírito Divino nascido em Manes).

Depois de uma viagem a Índia, Manes voltou ao Irã para pregar sua doutrina. A nova
religião recebeu a proteção lustrada do rei Sasanida Shapuhr I e fez grandes progressos.
Pois, depois da morte deste rei, seguido do reinado efêmero de seu filho Hormisd (também
favorável a Manes), o poder passou ao irmão deste, Bahram I. Bahram aderiu totalmente a
ponto de vista do clero masdeu (alarmado ante a ameaça que se aproximava sobre seus
privilégios). Era um homem muito orgulhoso, como o demonstra sua apostrofe a Manes:
Porque se faria a ti esta revelação, e não a Nós, que somos os amos do país?

Reduzido à prisão, o profeta morreu em 26 de fevereiro de 277, depois de 26 dias de


atrozes sofrimentos causados pela imobilidade absoluta a que lhe condenaram os pesados
ferros que lhe colocaram. Pois não foi desolado vivo, como afirma uma lenda ainda muito
difundida (2).

O maniqueísmo (3) não é uma simples heresia cristã. Manes, persuadido de s e r o Selo dos
Profetas (também Maomé retomará este titulo) que fecha a serie dos Enviados Divinos,
fundou uma nova religião a que considerava destinada a conquistar o mundo inteiro, já
que, no espírito de seu fundador, era a única religião verdadeira (4). Seus dogmas estavam
codificados nos livros escritos por ele mesmo Manes e adornados com miniaturas
realizadas pelo profeta: Shahbuhragan (dedicado a Shapuhr), o Evangelho vivente, o
Tesouro da vida, a Pragmática ( ou o tratado), o livro dos Mistérios ( ou dos Segredos), o
livro dos Gigantes, aos que é mister agregar as Cartas e uma serie de alocuções reunidas

76
pelos maniqueus coptos baixo o titulo de Khephalaia ( capítulos). O culto e a hierarquia se
achavam cuidadosamente organizadas (5).

O maniqueísmo tem em seu ter a proeza pouco invedável de haver sido a religião mais
perseguida de toda a historia: em todos os paises, com raros intervalos de tolerância ou de
proteção, os maniqueus foram vitimas de uma feroz repressão e de metódicas matanças
realizadas a ferro e a fogo. Estas horríveis perseguições não impediram, sem embargo, que
a religião das luzes se difundisse nos dois extremos do velho mundo. Europa e Oriente.

Durante muitos séculos, as perseguições foram na Ásia menos eficazes que no Oriente. Na
China, o maniqueísmo se perpetuou até o fim da Idade Media, e talvez mais ainda, no seio
das sociedades secretas.

Na Europa Ocidental, o maniqueísmo se difundiu muito (6) num principio, nos séculos IV e
V, pois pronto as atrozes perseguições os obrigaram a ocultar-se. As doutrinas maniquéias
reapareceram na Idade Media, pois debaixo da forma de heresias cristãs e sem que
aparecesse o nome de Manes.

Até o século XX, a Religião das luzes só era conhecida pelas obras de seus adversários.
Agora dispomos de muitos textos originais, em copta, em dialetos iranianos, em uigur e até
em chinês (7).

3.2. AS SEITAS NEOMANIQUÉIAS.

Recebem o nome as seitas dos neomaniqueus uma série de heresias dualistas cristãs entre as
quais existe uma evidente conexão, pois cujos laços originais com o mesmo maniqueísmo –
ainda que são muitos prováveis – não tem sido demonstrados (8): não esqueçamos que o
dualismo religioso é uma solução que periodicamente volta a descobrir muitos homens
angustiados pelo caráter tangível e virulento do mal (9).

Prisciliano, bispo de Ávila, Espanha, pertencia a uma família da aristocracia. Em 370 se


dedicou a difundir doutrinas de aparência gnostica e maniquéia com as se vangloriava de
conduzir a seus discípulos a perfeição. Em 385, as autoridades católicas o entregaram a
justiça civil (10).

Os priscilianistas assinavam um importante papel em sua gnose a astrologia ( na qual era


muito versado seu mestre). É necessário saber, dizia o papa Gregório Magno, que os
herejes priscilianistas crêem que todo homem nasce baixo uma conjunção de estrela. E
apóiam seu erro no fato de que apareceu uma estrela nova quando Nosso senhor se
mostrou em sua carne.

No século VII aparecem os paulinos, assim chamados por que pretendiam basear suas
doutrinas em São Paulo (11). Estavam organizados militarmente, e deram muito que fazer
as tropas bizantinas, que só puderam impor-se mediante uma deportação na massa a
Bulgária (12).

77
Os herdeiros espirituais do paulininsmo foram os bogomiles, quem apareceram entre os
búlgaros no século IX e se propagaram pelos Bálcãs no século XII (13).

Os bogomiles são os antecessores dos cataros (cujo nome deriva de uma palavra grega
que significa os puros), quem apareceram na Itália como o nome de patarinos e no
Lanquedoc com o de albigenses. São conhecidos suas crenças e seu desfeito destino (14).

3.3. O ENIGMA DOS TEMPLÁRIOS.

Às vezes se relaciona aos templários com o maniqueísmo medieval, ainda que ao parecer
não tenham sustentado, em verdade crenças dualistas.

Certamente, existiu na Ordem dos Templários um grupo de iniciados que praticavam ritos
estranhos, era depositário de um esoterismo sincretista e perseguia segredos objetivos de
domínio universal.

Se bem não aprece que tenha praticado a sodomia ritual nem a idolatria, os templários
iniciados possuíam uma doutrina secreta que seu processo revelou só em parte e cuja
reconstituição é bastante hipotética (15).

É induvidável que não eram cristãos comuns, já que seus ritos de iniciação implicavam a
recusa do cristo visível:

O que o recebeu na Ordem lhe mostrou uma cruz de madeira e lhe perguntou se cria que
esta fosse Deus (quod esset deus). Respondeu que era a imagem do crucificado. O Hudi
Balduino lhe disse: não o creias, é um pedaço de madeira. Nosso Senhor está nos céus
(16).

As imagens e as cabeças bafométicas – chamadas de ídolos erroneamente, pois não eram


mais que símbolos – não indicam em modo algum um culto satânico; talvez foram, em
ultima instancia, de origem maniquéia.

Não cremos que os templários tenham conhecido de maneira direta seu esoterismo
gnósticos. Para explica-lo é necessário apelar a um escalão intermédio: o dos assassinos,
herejes muçulmanos contra os quais a Ordem do Templo guerreou longo tempo na Terra
Santa (17).

Dante Alighieri (1266-1321) talvez conheceu na doutrina secreta dos templários. Em todo
caso, se estuda em profundidade se verá que a Divina Comédia está longe de ser e adequar-
se a ortodoxia católica (18) e utiliza certos temas gnósticos recolhidos pelos árabes.

NOTAS.

78
(1)- Se tem poucos dados precisos sobre a aparência física de Manes (salvo que era
corcunda).
(2)- Talvez esta tradição falsa tem recebido influencia do mito maniqueu do desolamento
dos demônios pelas divindades construtoras do mundo, quem fizeram o céu com suas peles
tensas.
(3)- O nome de maniqueísmo foi o que lhe deram os gregos e os latinos, pois a religião da
Luz preferia o de Igreja da Justiça.
(4)- Cada uma da s revelações anteriores não tem dado a conhecer mais que um fragmento
da verdade, limitado a uma região determinada.
(5)- O maniqueísmo ocidental adotou cada vez mais formas cristãs, porem que o
maniqueísmo chinês se aproximou ao culto budista.
(6)- Se recordará que Santo Agostinho foi maniqueu antes de se converter ao cristianismo.
(7)- Ver H C Puech. Lê Manicheisme.
(8)- Ver a obra de S Runciman. Lê manicheisme.
(9)- É digna de meditação esta observação de S Petrement. Lê dualisme p 77: Perecera que
tem épocas dualistas, que coincidem quase sempre com épocas de mudanças profundas.
(10)- Apesar da oposição de São Martin de Tours, hostil ao uso de sanções temporais contra
os herejes. Prisciliano dizia ser discípulo de um certo Marco o Egípcio.
(11)- Os paulinos davam a suas igrejas o nome das que tinham sido fundados antes pelo
apostolo, e tomavam como nomes espirituais os dos companheiros daquele.
(12)- Donde acabaram por converter-se os catolicismos. Seus descendentes vivem ainda na
região de Philippolli (província da Romelia).
(13)- H C Puech. Lê traite contre les Bogomiles.Paris, 1945.
(14)- Ver o notável livreto de F Niel. Albigeois. Ademais do catarismo, devemos destacar a
presença na França, no século, de grupos gnósticos dispersos: o formado perto de Soissons,
no ano 1125, ao redor de Clemente de Bucy; Eudes da Estrela (que se fazia chamar eon da
estrela) e seus discípulos, a região de Saint-Malo (para o 1140), etc.
(15)- O curioso livro de J Loiseleur. La doctrine secrete dês templaires, 1872.
(16)-Declaração do irmão templário Gerardo de Pasagio.
(17)- Infra, capitulo V. É necessário destacar que tem uma correspondência entre os graus
de iniciação dos assassinos e os da hierarquia templária.
(18)- E Aroux. Dante heretique. Paris, Niclaus, 1939.

79
CAPITULO IV - A ALQUIMIA E A GNOSE.

O estudo da alquimia ultrapassa os marcos deste pequeno livro (1), pois não podemos
deixar de referirmos a ela, já que as inter-relações entre a gnose (pagã ou cristã) e a
alquimia Alexandrina são inegáveis. Zózimo, quem venerava aos mesmos profetas
legendários que seus contemporâneos gnósticos do Egito, nos revela o objetivo iluminador
das operações alquímicas:

O que olha num espelho não olha as sombras, senão o que elas fazem nos ouvir, ao
compreender a realidade através das aparências fictícias.

Um partidário moderno da alquimia tradicional, René Alleau, aclara o objetivo desta arte
oculta:

Os esforços incessantes que exigiam a elaboração da Grande Obra parecem ter estado
dirigidos a produzir, por uma parte, a projeção da consciência em estado de vigília sobre o
plano de um estado transracional de alerta, e por outra, o Ascenso da matéria até a luz
ígnea, que constitui seu limite (2).

A alma humana é por essência uma parte separada da alma divina: esta doutrina fundada da
gnose volta a encontrar-se na alquimia, que trata de obter – para contempla-la – a
encarnação da Luz divina, do Logos, na matéria tenebrosa. Ao mesmo tempo em que chega
a iluminação salvadora, o adepto salva a Luz prisioneira das trevas: os dois processos (o
espiritual e o tangível) são rigorosamente paralelos e complementários.

Pois seria arbitrário explicar a aparição da alquimia pelo gnosticismo. Houve um


encontro, uma convergência das duas correntes (3), pois a alquimia – cujos objetivos
respondem, sim, a aspirações particulares de tipo gnóstico – tem raízes muito mais antigas
que o gnosticismo dos primeiros séculos. A alquimia, ciência sacerdotal e artesanal a vez,
pode ser considerada como a continuação (ou mais bem a transposição) dos antigos
mistérios taumaturgicos dos ferreiros e metalúrgicos sagrados da antiguidade pré –
clássica.

A Grande Obra alquímica é uma gnose de um gênero muito particular (já que trata de obter
ao mesmo tempo a iluminação salvadora e a libertação taumaturgica da Luz Divina). Pois
deve observar-se que está ausente dela o pessimismo gnóstico: a Grande Obra é um
processo análogo ao da criação do mundo; para o adepto, o mundo está condenado, é certo(
o fim da alquimia é precisamente efetuar uma redenção nos três reinos), pois não é a obra
de uma divindade inferior ou perversa.

NOTAS.

(1)- Citemos alguns estudos recentes: René Alleau, Aspects de alchimie, Paris, Minuit,
1953. M Caron. Les Alchimistes, Seuil, 1959.

80
(2)- Aspects de l alchimie, p 134.
(3)- Na literatura alquímica grega e latina se encontram fragmentos de livros gnósticos
perdidos.

81
CAPÍTULO V - O GNOSTICISMO NO ISLÃ.

No Islã, certas tradições gnósticas se têm perpetuado até nossos dias.

Depois da conquista do Egito pelos árabes, surgiu toda uma literatura hermética
muçulmana, na que se mesclam a alquimia, a astrologia, o neoplatonismo e os gnosticismo
(1). A influencia da gnose é muito evidente no sufismo sunita

Pois donde se encontra uma verdadeira sobrevivência de temas gnósticos é nas heresias
muçulmanas derivadas do chiismo (2).

Os ismaelitas têm uma doutrina esotérica baseada na interpretação alegórica do


Alcorão.Entre o homem e a Divindade estabelecem cinco princípios primeiros: a razão
universal, a alma universal, a matéria, primeira, o Espaço e o Tempo. No homem habita
uma natureza luminosa, alheia a ele. A Razão universal se tem encarnado sucessivamente
em sete profetas: Adão, Noé, Abraão, Moisés, Jesus, Maomé, e por ultimo, Mohamed, filho
do sétimo imã (sucessor do profeta) Ismail (de onde procede ao nome desta comunidade
religiosa) (3). Os ismaelitas crêem também na metempsicose.

Por grande que seja o desprezo dos ortodoxos pelos ismaelitas, o mesmo se lhes considera
muçulmanas e podem participar na peregrinação a Meca (4). Os grupos derivados do
ismailismo: assassinos, drusos, e nosaires, já não pertencem ao Islã.

Os assassinos constituem uma sociedade secreta fundada por Hasan ibn-Sabbab, o Velho
da Montanha, que estabeleceu seu quartel general na poderosa fortaleza de Alamut (1000).
Hasan tinha ambiciosos projetos militares e políticos, que em parte foram coroados pelo
êxito (5). Elaboraram também doutrinas esotéricas com elementos tomados do
ismaelismos, o sufismo persa (era amigo do poeta místico Omar Khayam) e restos da
gnose, ainda viva no Irã por aquele então. O Grande Mestre dos assassinos (Hasan, e
elogio seus sucessores) era o dono absoluto dos corpos e das consciências; o estudo do
Alcorão e sua interpretação alegórica deviam estar dirigidos por ele em pessoa.

Os Drusos (6) tem uma doutrina esotérica ( na que desempenha um papel muito importante
a reencarnação)e ritos de iniciação ainda mal conhecidos. Se bem são muitos zelosos de
sua autonomia, são também muito tolerantes desde o ponto de vista religioso, e se abstém
de todo proselitismo e de toda propaganda entre os crentes de outras religiões.

Os nosaires ou ansarienos tem uma estranha doutrina esotérica na que se encontram


concepções gnósticas cristãs (7), muçulmanas e pagãs (para explicar as cores do
crepúsculo, recolocam o sangue de Adonis morto por um javali pelo de Hosain).

Os jesidas, outros herejes muçulmanos que vivem nas montanhas perto de Mosul (ao norte
de Iraque), tem também uma doutrina secreta. O delegado de Deus é o anjo Paon,
interprete e executor de sua vontade. Este anjo Paon não é senão Lúcifer, pois um Lúcifer
que tem conquistado mediante o arrependimento o favor divino (8). Destaquemos que esta
seita esculpiu uma serpente na porta de seus santuários.

82
NOTAS.

(1)- Ver o apêndice de Louis Massignon.


(2)- Sobre o sentido das palavras sufismo, chiismo, etc, ver O Islã, que sais je? Numero
355.
(3)- Para o Islã ortodoxo, Maomé é o ultimo dos profetas: O Mahdi virá somente para
restaurar a sua obra.
(4)- Sobre o islamismo, ver os estudos de B Lewis, The Islamism, Cambridge, 1940 e de G
Vajda.Ismaelisme.
(5)- O poder militar dos assassinos só foi destruído definitivamente em 1256.
(6)- A maioria dos drusos habitam no Jebel Druso, na Síria, pois também os tem no Líbano
e em Israel.
(7)- Celebram um tipo de missa baixo as espécies do vinho, rito tomado sem duvida de uma
seita gnostica cristã.
(8)- Daí o nome de adoradores do diabo que se deu à seita, o artigo Yazidi na Enciclopédia
do islã.

83
CAPÍTULO VI – SOBREVIVENCIAS GNÓSTICAS.

6.1. O PANTEISMO POPULAR.

Recebe o nome de panteísmo popular (por que seus partidários têm sido sempre, salvo
raras exceções, homens do povo) uma doutrina que considera aos espíritos individuais – e
em primeiro termo os dos homens – como particularizações do Espírito divino: todo desejo
individual se converte então numa aspiração divina a que é necessário não desobedecer.
Reconhecemos nesta tendência um derivado longe do gnosticismo antinomista, com sua
justificação do imoralismo pratica. Este panteísmo popular não é produto de indivíduos
isolados, senão de toda uma serie de seitas estranhas: Irmãos do Espírito Livre, Homens
da Inteligência (1), ma Idade Media, Libertinos espirituais e certos anabatistas extremistas
no século XVI; Ranters (literalmente energúmenos) da guerra civil inglesa (2), etc.

Alguns têm sustentado que Jerônimo Bosch (morto em 1516) pertencia a seita dos Irmãos
do Espírito Livre, muito, difundida nos paises flamengos nos fins do século XIV, pois tal
crença é muito pouco segura. Em troca, é induvidável que Bosch esteve em relações diretas
com os alquimistas. O esoterismo de Bosch é, em grande parte, de rodem alquímico, como
o atestam a freqüência com que aparece em suas telas um símbolo como o ovo e seus
análogos (bola de vidro, cabaça, etc) (3).

6.2. OS TEÓSOFOS DOS SECULOS XVI E XVII.

Em figuras como Paracelso (1493-1544), Valentin Weigel (1553-1558), Jacó Boehme


(1575-1674), Johannes Scheffler (1624-1677) (4), etc, encontramos toda uma serie de
doutrinas sobre a origem do mundo e do mal, a Queda e a Redenção, que fazem pensar em
certos temas gnósticos. Pois não cremos que seja necessário supor uma influencia direta;
trata-se de temas que surgem espontaneamente em todas as épocas.

Segundo Paracelso(5), por exemplo, a matéria grosseira (cagaster) não existia antes da
primeira queda, e só se converteu na prisão do homem depois da segunda Queda, a de
Adão e Eva. Esta circunstancia não impede ao teósofo considerar a natureza em seu
conjunto como uma espécie de gigantesco símbolo: ao igual que uma pintura revela a
atividade de um pintor, o mundo revela a Divindade. Pois na Natureza tem um aspecto
invisível e outro visível. O sistema de Paracelso, que é incrivelmente complexo, tem
inumeráveis fontes, as vezes muito difícil de descobrir; a Cabala e a alquimia se unem a
magia, crenças tomadas do folclore germânico, etc.

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Em Jacó Boehme encontramos também profundos desenvolvimentos sobre a origem do
mundo e do mal, cujo valor metafísico é inegável (6).

Uma das formas mais curiosas deste iluminismo cristão moderno é a doutrina dos Irmãos
Rosacruzes, sociedade secreta de iniciados que exerceu uma grande influencia sobre a
francomaçonaria (7). O texto mais curioso da abundante literatura rosa-cruz é um livro
publicado por Andréas em 1616: As Bodas Químicas do Cristão Rosa-Cruz. Este relato
simbólico é uma parábola destinada a mostrar as duras etapas pelas quais se deve atravessar
o iniciado para alcançar a iluminação e o êxtase (8).

6.3. AS TENDENCIAS GNÓSTICAS NA FRANCOMAÇONARIA.

A francomaçonaria coloca muitos problemas ao historiador do pensamento religioso (9).


Aos três graus corporativos (Aprendiz, Companheiro, e Mestre) – que usam em todos os
planos (moral, metafísico e espiritual) o simbolismo do oficio de construtor, de pica pedra –
se agregam os graus altos, nos que revivem, segundo se crê, as iniciações dos templários, os
alquimistas e os rosacruzes.

O grau 17 do Rito Escocês Antigo e Aceito: Cavaleiro do Oriente e do Ocidente, exige um


cerimonial grandioso que recorda os mistérios de certas seitas gnósticas cristãs. No curso
desse ritual se descobre um estranho quadro que representa uma cruz de cavalaria, na que
tem dois selos como símbolos daqueles dos quais se fala no Apocalipse de João. As motivas
desses selos recordam muitas as enigmáticas figuras gravadas sobre as abraxas (gemas
gnósticas). Ilumina-se o quadro com uma estranha lâmpada de azeite: a lâmpada mágica.

Dizia-se que o grau de Cavaleiro do Oriente e do Ocidente estava composto (na época das
Cruzadas) pelos cavaleiros que tinham descoberto na Palestina iniciados que conservavam
zelosamente as verdadeiras tradições cristãs, os joanitas, é dizer, os discípulos diretos do
apostolo João de Patmos. Esta lenda é o protótipo dos relatos inverificáveis que abundam
nos rituais dos graus altos. Pois o grau 17 é interessante por seu esoterismo cristão, ainda
quando o ritual tenha sido elaborado (o qual é muito possível) pelos maçons franceses de
fins do século XVIII, e não por prestigioso cruzados.

Nos ritos de iniciação dos diversos graus maçônicos se faz referencia as vezes ao
gnosticismo e a gnose ( que é, precisamente, um dos sentidos da famosa letra G inscrita no
centro da estrela com chama), pois tais alusões não são muito convincentes.

Os comentários maçons às vezes até caem em absurdos; por exemplo, apresentam aos
gnósticos como cristãos esclarecidos (no sentido moderno deste adjetivo), como homens
que submetem os dogmas a um livre exame.

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Devemos destacar que o organizador da matéria não é, para os filósofos maçônicos, uma
potencia malvada; é o Grande Arquiteto do Universo, que pode ser identificado até certo
ponto com o Demiurgo platônico.

É no iluminismo maçônico francês do século XVIII donde o historiador encontra correntes


que recordam, de maneira direta agora, ao gnosticismo cristãos e a teosofia cabalística. O
mais notável destes maçons místicos foi o famoso Martines de Pasqually (nascido em
Grenoble em 1727 e morto em Santo Domingo em 1774), quem fundou dos Coens (10)
Eleitos, que só era accessível para os maçons regulares que tiveram já o grau de Mestre.

O tratado da reintegração dos seres a suas primeiras propriedades, virtudes e potencias


espirituais e divinas desenvolve a gnose de Martines. O mundo é uma morada infernal,
donde a alma está submetida a inexoráveis ciclos de reencarnações sucessivas; para
escapar delas, o homem deve desligar-se de todo o que traz para a matéria, deve
desentender-se das sensações materiais. Por tal forma, as Entidades condenadas lutam
sem cessar contra a aspiração do homem ao aperfeiçoamento espiritual: elas nos tentam
de mil maneiras, para encadear-nos ao mundo visível e conservar sobre nós seu domínio.
A pratica da teurgia permitirá aos iniciados vencer o poder dos demônios (11).

Martines de Pasqually teve um discípulo ilustre: o marques Louis Claude de Saint Martin
(1743- 1803). Este rompeu com as praticas de seu mestre e elaborou um admirável sistema
teosofico no que o iluminismo cristão se apóia num método de realização mística (12). A
influencia do martinismo tem sido considerável e persiste ainda.

6.4. ILUMINISMO E OCULTISMO.

Durante o século passado apareceram sucessivamente na França grupos nos que é


possível discernir tendências mais ou menos gnósticas, que são novos descobrimentos
espontâneos de velhas doutrinas iluministas.

Naundorff Louis XVII (1785-1845) expõe em suas obras (A doutrina celeste, sobre tudo,
que data de 1839) toda uma serie de intuições. Cristãos a margem do catolicismo, fundou
uma Igreja Católica Evangélica cujos dogmas são a unicidade de Deus, a preexistência
celeste das almas, a pluralidade das existências e a salvação final de toda a criação (13).
Alguns iluminados, os Salvadores de Luis XVII, chegaram até a considerar a Naundorff
como um verdadeiro enviado divino que devia salvar a França e a Igreja; exerceram
grande influencia sobre um extraordinário personagem, o operário cartoneiro Pierre
Eugene Vintras ( 12807-1875).

Em 6 de Agosto de 1839, o arcanjo Miguel apareceu a Vintras para anunciar-lhe que o


profeta Elias ia a descer nele para preparar o advento do reino do espírito Santo; desde
esse momento ia a produzir uma incrível sucessão de aparições, êxtases e milagres. O
especialista em heresias se dedicou então a profetizar, a difundir suas doutrinas através de
numerosos escritos (entre eles um volumoso Evangelho eterno), a instituir uma grandiosa
liturgia secreta cheia de extraordinários fenômenos (aparição de hóstias sangrentas, por

86
exemplo) e a consagrar a sacerdotes e bispos de ambos os sexos. Depois de ter feito
grandes progressos baixo o Segundo Império (apesar das perseguições eclesiásticas e das
travas que lhe pôs a policia), o vintranismo se converteu rapidamente numa seita
minúscula. Ainda existem vintrasistas em Lião, Paris e outras cidades, quem professam os
dogmas de seu profeta: crença na Imaculada Conceição de Maria, negação das penas
eternas, preexistência das almas humanas (que tem sido anjos celestes) e iminência do
reino do espírito santo. Seu culto, absolutamente secreto, inclui ritos eucarísticos muito
complicados (14).

Dentro do protestantismo devemos mencionar um grupo de rígida piedade: a Igreja


Evangélica Hinschista, fundada por uma mulher de alto valor, Armengaud Hinsch (nascida
em 1801). Através de incessantes meditações sobre os Livros Santos, esta voltou a
descobrir a teologia dualista, assim como a doutrina da preexistência das almas e de sua
queda anterior à Criação. Ao igual que o filosofo inglês Stuart Mill, os hischistas tem
preferido sacrificar a onipotência de Deus a sua bondade:

Sua potencia (a de Satã), coeterna com a de Deus, é um mistério insondável – destaca o


pastor Kruger, discípulo da senhora Hinsch – pois, não inadmissível como seria a
aparição repentina do mal, da tentação, em meio de um mundo no que não houvera
nenhum principio mau nem nenhum germe de maldade (15).

Entre os ocultistas e teósofos da segunda metade do século XIX – assim como entre seus
herdeiros contemporâneos – o gnosticismo cristão gozou de imenso prestigio, e se tem
tentado descobrir na Pistis Sofia maravilhosos segredos pneumatológicos e iniciáticos. Até
se tem produzido alguns intentos extraordinários por quebrar os laços com os remotos
antecessores. Em 1890, Jules Doinel restaurou a Igreja Gnóstica, em cujo patriarca se
converteu com o nome de Sua Graça Valentin II; consagrou bispos e uma Sofia (mulher
bispa), pois pronto desertou para voltar ao catolicismo.

Nem sua apostasia nem os cismas que em varias oportunidades desgarraram a nossos
gnósticos modernos tem impedido que estes grupos se mantenham até nossos dias (16).
Geyraud tem exposto (17) o esplendido ritual instituído por Fabre dês Essarts – Sua Graça
o Patriarca T Sinesio, Primado de Albi, Bispo de Montsegur, Grande Mestre da Ordem da
Pomba do Paracleto – para o consolamento de uma perfeita.

Poderia escrever todo um livro sobre as diversas igrejas neognosticas, os grupos


luciferianos (18), as sociedades secretas taumatúrigcas (19), as igrejas neocataras (muito
influídas pela antroposofia de Rudolf Steiner), as comunidades que se aderem ao
esoterismo cristão primitivo (a Igreja Gnóstica Apostólica, por exemplo), etc.

NOTAS.

(1)- Este nome é revelador. A Inteligência é o Intelectus, o Pneuma divino.


(2)- A Jundt. Histoire du pantheisme populaire. Paris, 1875.
(3)- J Combes, Jerome Bosch, Paris, 1957.

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(4)- Mais conhecido pelo nome de Ângelus Silelsius. Sobretudo este movimento de teosofia
cristã. A Koyre. Jacó Boehme, Paris, Vrin, 1929.
(5)- Liber Azoth.
(6)- O livro de Koyre.
(7)- P Arnold. Hisatoire dês Roise –Croix, Paris, Mercure, 1955.
(8)- Deve observar-se que o episodio dos falsos irmãos expulsos com vergonha do castelo
(porem que os adeptos que tem triunfado na prova da pesada ganham o velocípede de ouro)
é uma alusão a crença nas vidas sucessivas: a alma não liberta pelos exercícios espirituais
não pode tentar sorte de novo mas que numa vida ulterior.
(9)- J Boucher, La symbolique maçonique, Paris, Dervy, 1948.
(10)- Cohen, em hebraico é sacerdote. Pois Martines não conhecia o hebraico; no relativo a
cabala dependia sempre de fontes indiretas.
(11)- R Kantres, La realization theomorphique, p 153.
(12)- R Amadou, Louis Claude de Saint Martin. Paris, 1946.
(13)- A Delgaux, Louis XVII, Paris, 1947.
(14)- M Garçon. Vintras, Paris, 1924.
(15)- E Kruger, Temoignage, p 136.
(16)- Geyraud, Les petits Eglises de Paris, p 76-83.
(17)- Ibid, p 145-149.
(18)- Geyraud, Les societes secrets de Paris, 1938.
(19)- P Victor, la tour de saint Jacques, 1958 p 105-123.

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CAPÍTULO VII - OS RESSURGIMENTOS GNÓSTICOS CONTEMPORÂNEOS.

7.1. O ROMANTISMO.

Simone de Petrement destaca a inegável afinidade que existe entre o romantismo e a


gnose: o sentimento que aparece nela (na gnose), quase em todas as partes, é o sentimento
romântico por excelência: o sentimento dos limites do destino e o desejo de romper esses
limites, de quebrar a condição humana, de evadir-se de todo (1).

Na literatura romântica existem mitos da queda análogos ao mito dos gnósticos antigos.
Recordemos os famosos versos de Lamartine:

Limitado em sua natureza, infinito em seus anelos, o homem é um deus caído, que se
acorda dos céus.

O romantismo não consiste somente em exaltar a imaginação, o coração e a espontaneidade


criadora: em todos os lados (na Inglaterra, na Alemanha, na França, etc) se observam
aspirações metafísico-religiosas, impulsos místicos e uma apaixonada inclinação pelas
doutrinas esotéricas (2).

William Blake (1757-1827), poeta e visionário redescobriu as atitudes e as imagens


mesmas do pensamento gnóstico. Nele encontramos as mais fantásticas cosmogonias da
gnose cristã (3).

Num homem como Novalis (1771-1801) nós achamos um sistema completo, o idealismo
mágico, de múltiplas fontes. Os hinos da noite, Os discípulos de Sais e a estranha novela
esotérica de Heinrich von Ofterdingen estão impregnados de espiritualidade gnóstica,
literalmente vivida de novo em seu interior pelo jovem inspirado (4).

São demasiado conhecidos os estreitos laços de Goethe com o esoterismo para que
necessitemos insistir neles. A segunda parte do Fausto desenvolve uma mitologia e uma
metafísica explicitamente gnósticas, e no estranho conto A serpente verde (5) aparece um
simbolismo iniciático muito complexo.

Gerard de Nerval (1808-1855) estudou com paixão os livros de esoterismo, de magia e de


metafísica abstrusa. Pois não devemos ver nele uma simples curiosidade de erudito: Nerval
– que era francomaçom, não o esqueçamos – quis conhecer por si mesmo os mistérios da
iniciação, da teogônia e do destino. O ocultismo de Nerval reúne elementos de origem
muito diversa, pois esta gnose sincretista se orienta ao redor de um símbolo central: o da
Mãe divina (6).

As idéias religiosas de Vitor Hugo são mais grandiosas de todo o romanticismo:


encontramos nelas uma metafísica sumamente complicada, mitos de tendência gnóstica,

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uma doutrina das reencarnações (7), etc. E tudo isso mesclado com generosos impulsos
humanitários e socialistas.

7.2. O SIMBOLISMO.

Entre os parnasianos (8) as aspirações gnósticas aparecem ocasionalmente, pois na poesia


simbolista da metade do século passado achamos uma extraordinária ressurreição do
pessimismo da gnose.

A obra de Baudelaire abunda em passagens singularmente reveladoras:

Minha alma é uma tumba que, como mal cenobita, desde a eternidade recorro e habito (9).

Que é a queda? Se for a unidade que se converte em dualidade, é Deus quem tem caído.
Em outros termos, não seria a criação a queda de Deus?

Baudelaire se rebela contra a Natureza em todas as suas formas: natureza exterior ou


natureza humana. Rebela-se contra a Lei de Moisés e exalta a raça dos réprobos (a de
Caim). A única esperança do poeta é a evasão fora do mundo:

Oh! Morte! Velha capita, já é tempo!


Levemos a ancora!
Este país nos enjoa, Oh! Morte!
Façamos a vela! (11).

O genial adolescente Artur Rimbaud conhecia seguramente o gnosticismo (sabe-se que


devorou todos os livros da Biblioteca de Charlesville dedicados as ciências Malditas), pois
suas fontes livrescas foram transmudadas por sua experiência pessoal da iluminação.

Rimbaud descobre de novo a mística da gnose licenciosa:

O poeta se faz vidente mediante um longo, imenso e razoável desenfreio de todos os


sentidos. Experimenta todas as formas do amor, do sofrimento e da loucura; busca por si
mesmo, esgota em si todos os venenos, para não conservar mais que seus modelos. Inefável
tortura.

É necessário a todo preço sair deste baixo mundo:

A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo (12).

Uma vez chegado ao êxtase, o vidente ingressa no mundo divino:

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Silêncios atravessados por Mundos e por Anjos; Oh! Omega, raio violeta de Seus Olhos!
(13).

Análogos exemplos (ainda que menos significativos) de tendências gnósticas são possíveis
encontrar em Mallarmé e em outros mestres da poesia simbolista (14).

O enigmático Lautreamont, precursor direto do surrealismo, tem descoberto também (e


com que força!) a revolta dos gnósticos contra a criação terrestre: evidentemente,
encrespa ao deus que é responsável dela (15).

7.3. O SURREALISMO.

Tal como tem sido exposto por André Breton e seus discípulos, o surrealismo
contemporâneo é uma doutrina violentamente anti-religiosa e materialista. Pois uma das
paradoxais desta atitude é que ela desempenha um papel de certa importância o esoterismo
e as técnicas de iluminação (16). No segundo Manifesto de Breton lemos:

Tudo leva a crer que existe um certo ponto do espírito em que nele cessam de ser
percebidos como contradições da vida e da morte, o real e o imaginário, o passado e o
futuro, o comunicável e o incomunicável, o alto e o baixo. Agora bem, seria vão atribuir a
atividade surrealista outro móvel que a esperança de determinar esse ponto.

O homem deve tratar de reconquistar seus poderes perdidos:

A percepção e a representação... não devem ser considerado mais que como os produtos
da dissociação de uma faculdade única, original, da qual da conta a imagem eidetica e da
que se encontram rastros no primitivo e na criança. Todos aqueles preocupados por definir
a verdadeira condição humana aspiram mais ou menos confusamente a voltar a esse
estado de graça (17).

Breton vincula estreitamente a iluminação o amor (18), a metamorfose, a transmutação, a


revolução, a liberdade. Exalta a Lúcifer, a estrelada manhã – que brilha com uma glória
superior a todas as outras – que aparece no alto da lamina 17 do taro (19).

NOTAS.

(1)- lê dualisme, p 129.


(2)- Para a historia do romanticismo ver: V L Saulnier. La literature Françoise.
(3)- Os trabalhos de P Berger, Poemes choisis, Paris, 1950.
(4)- Ademais da obra coletiva: Lê romantisme allemand,1949.
(5)- As duas edições francesas de O Wirth, 1935.
(6)- E Aunos. Gerard de Nerval, Paris, 1957.

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(7)- J B Barrere, Hugo, Paris, 1952.
(8)-Sobretudo L de Lisle, les poemes antiques e os poemes barbares denunciam o horror e
a crueldade do mundo no que vive o poeta, e cantam a evasão para a Beleza.
(9)- Lê mauvais moine.
(10)- Mon coeur mis a nu, 1946, p 56, Jour.
(11)- P Arnold, lê cosmos de Baudelaire, p 144-152.
(12)-Une saison em Enfer.
(13)- Voyelles, 1947 p 153-182.
(14)- A M Schmidt, La litterature symboliste, 1962.
(15)- R Amadou, Isidore, p 194-206.
(16)- I Duplessis, Lê surrealisme.
(17)- Point du Jour, Gallimard, p 250.
(18)- A formosa passagem de Arcano 17, p 35: Ao ver-te por primeira vez, te reconheci
sem vacilar.
(19)- Os surrealistas da atualidade sentem uma viva simpatia pelo gnosticismo heterodoxo.
G Legrand, 1954: Faz uns vinte séculos viveram nos desertos da Síria e nas bordas do Nilo
homens cujo pensamento apresenta tão assombrosa afinidades com o nosso, que não tem
faltado entre nós quem se interessam por eles.

92
CONCLUSÃO.

Se bem as tendências gnósticas desenvolveram sobre tudo no seio do gnosticismo cristão,


em si mesmas não se acham modo algum vinculado com o cristianismo, nem por demais,
com nenhuma outra forma religiosa, se não que tendem a reaparecer, de maneira mais ou
menos explicita, nas épocas de perturbação. Para redescobrir a gnose não é necessária de
modo algum à forma histórica do gnosticismo.

A época atual poderia dar uma ampla confirmação a essa tese. Eis aqui uma breve lista de
temas gnósticos que se encontram em muitos escritores contemporâneos: absurdo- e até
malicia, crueldade ou perversidade- do mundo; desejo de evadir-se (pelo amor, pela morte)
da infernal permanecia terrestre; sentimento de um ser estranho entre os semelhantes;
viçosa onipresença do mal; redenção pelo pecado. A obra de Kafka, de Faulkner e de
muitos outros grandes escritores pode oferecer material para muitas instrutivas observações
(1).

Um caso extremo é do escritor americano H. P. Lovecraft (1890-1937), autor de alucinantes


contos fantásticos.

Em Lovecraft, a angustia pela condição humana adquiri uma amplitude vertiginosa;


vivamente impressionadas pelas inquietantes perspectivas abertas pela exploração dos
abismos do tempo, do espaço e do espírito, o relator estende o terror, mas alem do continuo
espaço temporal a uma multidão de universos contínuos e descontínuos. Em todos lados
achamos seres temíveis, classificados em grandiosas e complicados genealogias, que se
enfrentam sem cessar em lutas titânicas. Alguns desses monstros criaram a vida em nosso
sistema solar, por chiste ou por erro. A realidade em que vivemos não é mais que uma
bolha de sabão no meio de abismos horríveis, temporais espaciais, onde o homem corre o
risco de se fundir na menor imprudência (2).

Para completar nossa exposição, deveríamos referir-nos também a transcrições plásticas de


temas gnósticos particulares (3).

Quisera-se ou não, a gnose é uma corrente ideológica de grande importância, tanto por seu
aspecto esotérico como por suas prolongações existenciais: mais alem de suas
manifestações pitorescas ou alarmantes (4), é fácil encontrar de novo a eterna angustia de
certos homens ante o fato aparentemente inexplicável de existir neste mundo e neste corpo

NOTAS:

(1)- Que não constituiriam em absoluto uma condenação, em nossa opinião. Repitamos
uma vez mais que se trata de redescobrimentos espontâneos, e não de influencia
propriamente dita.
(2) Jacques Berguier, “H. P. Lovecraft”, em Critique, nov de 1954. August Derleth, H. P.
Lovecraft: A Memoir, Nova Yorque, Abramson, 1947.

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(3)- Pensamos, por exemplo, na obra de Leonor Fini, em que se encontra todo um
esoterismo “matriarcal”. Ver os estudos de Margel Brio, Leonor Fini, Paris, Jean-Jacques
Pauvert, 1955, e de Armand Lanoux, “Istants d’une psychanlyse critique: Leonor Fini”.
(4)- Que há assombrado muito a alguns escritores (Flaubert).

94
BIBLIOGRAFIA:

Bousset, Willhelm. Hauptprobleme der Gnosis, Gotinga, 1907.

Festugière, A.J. La révelation d’Hermès Trismégiste, Paris, Gabalda, 1950-54, 4° vols.

Jonas,Hans. Gnosis und spãtantiker Geist, Gotinga, 1934-54, 2 vols.

Quispel, Gilles Die Gnosis als Weltrteligion, Zurich, Rascher Verlag, 1951.

Runciman, Steve. Le Manischéisme médiéval, Paris, Payot, 1949.

Scholem, Gershom G. Les grands Courants de la mystique juive, Paris, Payot, 1950.

95

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