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Diversidade étnica e educação indígena: políticas públicas no Brasil

Ethnic diversity and indigenous education: public policies in Brazil


Diversidad étnica y educación indígena: políticas públicas en Brasil
Ieda Marques de Carvalho
Universidade Católica Dom Bosco
contato: iedame@ucdb.br
Resumo: Neste estudo discute-se a questão da diversidade étnica e a educação indígena, sob a ótica de suas políticas
e partindo do pressuposto que com a categoria “educação indígena” estaremos tratando da “educação escolar
indígena”. Aborda-se, do ponto de vista histórico, a política indigenista e a política de educação escolar indígena,
salientando que os projetos e programas delas decorrentes passam pela discussão com as comunidades indígenas,
tanto sobre a diversidade étnica como sobre a educação escolar indígena, para que alcancem os resultados por todos
almejados.
Palavras-chave: Diversidade étnica; Educação escolar indígena; Políticas públicas.
Abstract: In this study the question of ethnic diversity and indigenous education is discussed from the point of view
of their policies and beginning from the presupposition that with the category “indigenous education”, we shall be
handling “formal indigenous education”. The subject is approached from the historical point of view, examining
politics for indigenous peoples and politics for formal indigenous education, bringing out that the projects and
programmes stemming from these policies, are subjected to discussion with indigenous communities, both as to
ethnic diversity as well as formal indigenous education, in order that the results conquered are those sought for by all.
Key words: Ethnic diversity; Formal indigenous education; Public policies.
Resumen: En este estudio se discute la cuestión de la diversidad étnica y la educación indígena, bajo la óptica de sus
políticas y partiendo del presupuesto que con la categoría “educación índigena” estaremos tratando de” la educación
escolar indígena”. Se aborda, desde el punto de vista histórico, la política indigenista y la política de educación escolar
indígena, salientando que los proyectos y programas de ellas transcurridas, pasan por la discusión con las comunidades
indígenas, sobre la diversidad étnica como sobre la educación escolar indígena, para que alcancen los resultados por
todos anhelados.
Palabras claves: Diversidad étnica; Educación escolar indígena; Políticas públicas.

Introdução políticos de desenvolvimento social. Os en-


volvidos nesses projetos acabam acreditando
Inúmeros povos indígenas, ao conser- em sua incompetência para gerenciá-los,
varem suas culturas, conseguiram sobreviver pois falta-lhes a percepção da necessidade
aos massacres ocorridos durante o período de verbas públicas para a educação e para o
colonial, assim como às políticas de assimi- enfrentamento das questões indígenas que
lação e de integração instauradas desde os devem acompanhar os compassos de tais
primórdios do século XX. Essa diversidade políticas.
étnica e cultural ainda existente manteve-se A história dessas políticas públicas é
porque esses povos deram continuidade a recente. A política de educação escolar
uma educação indígena que tanto lhes per- indígena tem pouco mais de dez anos, só foi
mite reproduzir o seu modo de ser e a sua possível face às mudanças estruturais do
cultura como também lhes permite adapta- nosso País em cumprimento à Constituição
rem-se, com certo sucesso, às situações novas. Brasileira de 1988. Esse documento, em nome
Por se tratar de culturas diferenciadas, da globalização e de uma reestruturação
além da dificuldade de analisar a questão positiva, tem passado por revisões que revo-
com a devida isenção, não se sabe, como gam, sobretudo, direitos sociais, possibilitan-
sublinha Verhelst (1992), até que ponto se do ao Governo Federal governar por medi-
lhes impõe uma visão de mundo que, na das provisórias.
ânsia de recuperar o “atraso” em que as No contexto de suas políticas públicas,
comunidades indígenas se encontram, peca as Constituições Federais de vários países
por excesso de etnocentrismo. latino-americanos contemplam, como garan-
No Brasil e em outros países, tanto a tia de direitos sociais, a política de educação
política de educação indígena como a política escolar indígena que, também, é tema de de-
indigenista estão longe de responder aos clarações de organismos internacionais como
anseios dos povos indígenas. Elas dependem a Organização dos Estados Americanos -
de interação com a política econômica, para OEA e a Organização das Nações Unidas -
encontrar pontos de equilíbrio e coordenação ONU.
que permitam colocar em prática os projetos Esses países reconhecem “uma moda-

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lidade especial de educação, postulando o proteção aos índios, por serem eles os senhor-
papel que devem cumprir a diversidade e a es naturais das terras (GAGLIARDI, 1989,
pluralidade na construção de uma nova p. 28).
representação da “identidade nacional”- una Com a Independência, começaram a
e múltipla a partir dos ideais da democracia” surgir propostas para melhorar a situação
(MONTE, 1998, p. 71). De acordo com essa dos indígenas. Entre essas, Cunha (1992, p.
pesquisadora, a educação escolar indígena foi 47-360) ressalta que José Bonifácio de
contemplada nas Constituições e nos docu- Andrada e Silva apresentou à Assembléia
mentos, anteriormente mencionados, graças Constituinte, em 1823, os seus “Apontamen-
às forças políticas e de comunicação dos tos para Civilização dos Índios Bravos do
movimentos sociais e ambientais que acon- Império do Brasil”. Os Apontamentos de José
teceram em escala nacional e internacional. Bonifácio tiveram dois princípios fundamen-
Os atores interessados nessa política de tais: o da “justiça”, que estabelecia a inter-
educação escolar indígena vivem uma história dição de esbulhar os índios de suas terras,
de lutas, de avanços e retrocessos, em busca por meio da violência, permitindo a compra
de uma participação autônoma. Suas vozes segundo o modelo praticado pelo governo
não foram ouvidas nestes quase duzentos dos Estados Unidos da América; e, o da
anos de emancipação política do Brasil. “brandura, constância e sofrimento de nossa
As dificuldades e os interesses surgidos parte” por serem cristãos os ocupantes e, ao
alteraram as diretrizes que passaram a mesmo tempo, os usurpadores dos seus bens.
pugnar pela integração desses povos à co- Essa mesma pesquisadora, entretanto,
munidade nacional. Por conseguinte, foram informa que, como legislador do Império,
registradas algumas iniciativas que, mesmo durante o ano de 1823, o trabalho de José
tendo um caráter humanista, via de regra, Bonifácio deixa a desejar quanto às questões
estiveram a serviço do sistema econômico e indígenas. Embora reconhecendo a condição
de seus dirigentes, preocupados com a humana dos índios, Bonifácio ignora as socie-
formação do “povo brasileiro”. dades indígenas, sem as quais os índios não
teriam condições para se autodomesticarem.
1. A legislação indigenista nos séculos Daí, o seu entendimento de que:
XVIII e XIX Cabe ao Estado fornecer-lhes a possibilidade
de saírem de sua natureza bruta e formarem
uma sociedade civil: a educação que também
Moonen (1983, p. 69) sublinha que assim lhe cabe supõe premissas. São condições
“uma legislação indigenista global só surgiu para tanto que se sedentarizem em aldeias, se
na segunda metade do século XVIII”, o que sujeitem às leis, à religião e ao trabalho
aconteceu por pressão do Marquês de (BONIFÁCIO, apud CUNHA, 1987, p. 172).
Pombal que pretendia acabar com o poder Cunha sustenta que o único artigo da
dos jesuítas, para instaurar uma nova política Constituição de 1823 que se refere aos índios
econômico-desenvolvimentista, mudando o (art. 254) apenas determina a criação de
sistema educacional cristalizado pelas idéias estabelecimentos para sua catequese e
jesuíticas, como foi apontado por Guiraldelli civilização. Pode-se portanto dizer que, no
Jr (1994). Período Imperial, não houve uma política
Ao aportar no Brasil em 1808, D. João indigenista. Santos (1995, p. 94) sustenta que
VI estabeleceu uma política indigenista que “o primeiro projeto de Constituição do
concedia todos os direitos legais de proprie- Brasil, elaborado em 1823, fazia uma refe-
dade aos colonos interessados em estabelecer- rência à criação de estabelecimentos para a
se nas áreas indígenas, especialmente, em catequese e a civilização dos índios (título
Minas Gerais e no Paraná; bem como o direito XIII, art. 254)”. Todavia, a Constituição de
de exploração do trabalho dos índios. 1824 foi aprovada sem qualquer referência
A política de D. João VI divergiu total- aos índios. Somente, no Ato Institucional de
mente das medidas adotadas de 1755 a 1798, 1834 (em seu art. 11, parágrafo 5) foi con-
quando as violências cometidas contra os ferida às Assembléias Legislativas Provin-
índios aconteciam de forma velada. Naquela ciais, a competência para promover “a
época, o Diretório Pombalino determinara a catequese e a civilização do indígena e o

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estabelecimento de colônias”. era a de transformar os índios em caboclos,


As províncias imperiais, com base nas para diminuir progressivamente a heteroge-
políticas do governo central, seguiam dire- neidade cultural e conseguir que o Brasil
trizes diversas: para algumas era concedida desenvolvesse o caráter de nação: a nação
a autonomia plena no sentido de que as do povo brasileiro. Lima destaca “a indiani-
expedições bandeirantes agissem de acordo dade [como] um fato de natureza política (e
com os seus interesses contra os índios; e, em administrativa), produto e componente de
outras vigorava a proibição de meios uma relação na qual os designados como
violentos no trato com os mesmos. índios têm historicamente a menor parte”
Usando da relativa autonomia que lhes (1995, p. 77).
foi concedida, algumas províncias “tomaram O SPILTN sempre foi administrado por
iniciativas no sentido de organizar suas mis- militares cedidos ao Ministério da Agri-
sões de catequese, requisitar missionários para cultura, Indústria e Comércio (MAIC), tendo
prestar serviços nas aldeias e incluir em seus em vista interesses comuns, de caráter mili-
orçamentos as despesas necessárias para a ca- tar, diplomático e fundiário. Por isto, o órgão
tequese e civilização dos indígenas... [enquan- foi responsável pela parcela da população
to outras] cometeram uma série de atroci- que vivia distante das cidades, em áreas que
dades contra os índios” (VASCONCELOS, precisavam “nacionalizar-se” para justificar
1999, p. 57). e garantir a delimitação das fronteiras do
Um outro aspecto a ser destacado é que nosso País com os países vizinhos. No dizer
o embrião de política indigenista do século de Lima (1995, p. 83) “mesmo que os índios
XIX não foi norteado somente pelo governo não o soubessem, assisti-los era impedir que
imperial e pelas províncias. Como qualquer se desviassem para países fronteiriços,
política pública ela foi mediatizada e sofreu a engendrando uma população brasileira onde
“interferência de diretores de índios, capitães só havia povos nativos e agentes de outras
de aldeias, missionários, fazendeiros, nações”.
administradores locais e militares nos rumos Foi necessária essa metodologia para
a serem tomados” (VASCONCELOS, 1999, que o país conseguisse ampliar suas fron-
p. 57). Em conseqüência, alternaram-se teiras, avançando no processo de formação
momentos de total incompatibilidade entre os do povo brasileiro. “Não havia mais dúvidas
governos das províncias e o governo central, quanto à capacidade de perfectibilidade dos
espelhando a contradição naquele processo. povos indígenas” (LIMA, 1995, p. 83), bas-
tava sua inserção como mão-de-obra na eco-
2. No início da República nomia de mercado para que fossem incor-
porando a língua, usos e costumes dos não-
No início do governo republicano a índios.
questão indígena foi tratada da forma esta- Aliás, a idéia de que populações con-
belecida no período monárquico. Porém, pelo quistadas devem assumir os valores do con-
Decreto n. 8072, de 20/07/1910, o Presiden- quistador implementou-se desde épocas
te Nilo Peçanha criou o Serviço de Proteção muito remotas ao longo da história, e nem
aos Índios e Localização de Trabalhadores sempre alcançaram sucesso; o que leva
Nacionais (SPILTN), o que, de certa forma, Verhelst (1992, p. 35) a afiançar que “esse
vinculou a trajetória da questão indigenista tipo de resistência poderia originar-se na
à dos trabalhadores rurais, conservando-se especificidade cultural das populações em
os poderes políticos e econômicos em mãos questão e na necessidade que elas têm de
da aristocracia rural. salvaguardar sua identidade”.
Ao SPILTN foi atribuída a função de O SPITLN exerceu as funções de
concentrar o poder nas mãos do Estado, e controlar o espaço e a população indígenas
foi também conferido o poder de tutela sobre em sua área de abrangência, garantindo a
os índios, que “eram um estrato social conce- liderança política da sonhada comunidade
bido como transitório, futuramente incor- nacional; produzir informações sobre a
poráveis à categoria dos trabalhadores região geográfica que administrava (seu
nacionais” (LIMA, 1995, p. 120). A intenção quadro de pessoal contava com engenheiros

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e agrimensores); e, a propalada função de no setor social. O incremento da heteroge-


proteção aos índios. neidade sócio-cultural ensejou a presença de
Após quatro anos de vigência, o novas orientações ideológicas (expressadas
decreto 8072 sofreu alterações básicas. A lo- pelo nacionalismo, tenentismo e similares),
calização de trabalhadores nacionais passou que concorreram para mudanças nos setores
à responsabilidade de outro órgão, confor- econômico e social, sem maiores interferências
me nos relata Ribeiro (1996, p. 158). O políticas, em cujo campo alternam-se situações
SPITLN passou a ocupar-se exclusivamente e momentos de conciliação conservadora e
do problema indígena, restringindo sua outros de autoritarismo.
denominação para Serviço de Proteção aos Economicamente, o Brasil começou a
Índios (SPI), cujo período de maior atividade evoluir de um sistema agrário-comercial para
aconteceu enquanto administrado pelo ma- outro urbano-exportador, e de uma socie-
rechal Cândido Mariano da Silva Rondon, dade rural e fechada para uma sociedade
graças ao seu prestígio político e alinhamento urbana e aberta. A mudança possibilitou a
com as idéias positivistas. concretização de uma nova fase do capita-
Darcy Ribeiro salienta que o SPI sofreu lismo no Brasil, ainda que restrita a determi-
um corte de 60% em sua dotação orçamen- nadas regiões.
tária, logo após a saída de Rondon. Depois Um novo tipo de educação, marcado
passou de serviço autônomo à “mera seção por novos padrões de ensino e cultura deve-
subordinada ao Ministério do Trabalho, que ria contribuir para reformar o homem e a
passou a designar seus melhores servidores sociedade brasileiros; porém, contraditoria-
para outras tarefas tidas como mais impor- mente a questão da política indigenista não
tantes” (RIBEIRO, 1996, p. 164). Com a foi pauta de propostas e muito menos de
perda de apoio do governo federal, o SPI ações que a alterassem, na velha República.
ficou destituído de força política para fazer Se era importante educar o novo homem
frente aos poderes locais. A estratégia política brasileiro, até mesmo para que ele fizesse
do governo brasileiro significou conivência parte da coletividade política (de acordo com
com os usurpadores da própria vida dos a Constituição de 1890, o analfabeto não
índios. podia votar); era importante, também,
O SPI esteve vinculado ao Ministério acabar com a pluralidade étnica e cultural,
do Trabalho, Indústria e Comércio até a para que se firmasse a brasilidade, segundo
década de 1940, quando Vargas deliberou a ideologia dirigente naquele período.
que o órgão retornasse ao quadro do Minis- Mesmo sem consignação explícita e
tério da Agricultura e que fossem reinsta- documentada, decretava-se a extinção pura
lados alguns postos, recomeçando as ativi- e simples dos povos indígenas ou sua integra-
dades de pacificação. Conforme explica ção à comunidade nacional, sob os auspícios
Ribeiro (1996), Getúlio Vargas decidiu ampa- do órgão criado para “protegê-los” e “integrá-
rar o SPI porque visitou a ilha do Bananal e los”: o Serviço de Proteção aos Índios (SPI).
sensibilizou-se com a situação das crianças Encerrada a Velha República, o SPI
karajá. Contudo, como órgão inserido na lutou para sobreviver, com um quadro de
administração federal, o SPI teve os seus funcionários admitidos sem qualquer crité-
cargos preenchidos por burocratas, cuja ação rio, principalmente no que se refere à singu-
contribuiu para dar consistência ao capita- laridade da questão indígena. Apenas no
lismo que se instalava no país. período entre 1950 e 1954 é que foram con-
Em conseqüência, firmou-se, gradativa- tratados etnólogos que, na visão de Darcy
mente, a política de “proteção” ao índio que, Ribeiro (1996), procuraram dar ao SPI “uma
ao longo dos anos, destruiu territórios histó- orientação científica moderna”. Mesmo
rica e culturalmente diferenciados para trans- assim, ao ser instaurado o regime militar no
formá-los em áreas mercantis exploradas pela Brasil, o SPI foi considerado como incapaz
iniciativa privada; igualmente, também de servir aos objetivos desse regime.
surgiram outras políticas sociais. A política Em 1967, criou-se a Fundação Nacional
de imigração que se iniciou no segundo impé- do Índio (FUNAI), no âmbito do Ministério
rio foi uma causa importante das alterações da Justiça. Seu quadro dirigente, por ser

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composto de elementos oriundos dos órgãos previdenciários vieram somar-se outros


de segurança e informação, determinou o direitos sociais expressos no art. 6º deste do-
retorno à militarização da questão indígena. cumento: “a educação, a saúde, o trabalho,
As comunidades indígenas e suas lideranças o lazer, a proteção à maternidade e à infância
passaram a viver sob forte controle. Experi- e a assistência aos desamparados”. Além
mentalmente e com a possibilidade de expan- destas funções sociais, o Estado é também o
dir-se a todo território nacional, foi criada, nas “agente regulador da atividade econômica”
áreas indígenas Karajá, Krahô, Maxakali e (art. 174), com vistas à expansão do capital.
outras, a Guarda Rural Indígena (GRIN), com Ou seja, mesmo exercendo este último papel,
funções repressivas e policiais. ao Estado compete garantir um número
No início da década de 1970, com a maior de direitos sociais, satisfazendo as
expansão dos projetos de ocupação e desen- necessidades básicas do povo brasileiro.
volvimento do território nacional, acentuou- O título VIII da atual Constituição trata
se a perda dos espaços dos povos indígenas. das políticas sociais, embasando a ordem
Muitas terras indígenas tornaram-se, por social no primado do trabalho para buscar
exemplo, em fundos dos lagos das usinas o bem-estar e a justiça sociais. Nele também
hidrelétricas. Nas regiões sudeste e nordeste aparecem como políticas sociais públicas,
do país, grande parte das terras indígenas entre outras, a educação (capítulo III) e,
foi expropriada; no sul e no centro-oeste, as ainda, é assegurado, aos povos indígenas,
fazendas transformaram o habitat indígena que sejam contemplados por uma política
em imensas pastagens. pública apropriada à sua realidade.
Ao contemplar o índio no texto da
3. Anos 80 e 90: a mobilização dos povos Constituição de 1988, o Estado garantiu-lhe
indígenas o direito de exercer sua “cidadania” e, por
conseqüência, autonomia para se organizar
A partir dos anos 80, iniciaram-se as oficialmente e reivindicar de forma concreta
lutas pela redemocratização do Brasil. Inten- e objetiva, participando do espaço público
sificaram-se as greves no ABC paulista e em com endereço certo.
outros grandes centros, surgiram lutas no O reconhecimento dos direitos funda-
campo, movimentos populares nas cidades mentais como unidades diferenciadas é
e campanhas pela liberdade de intelectuais importante para a afirmação e o crescimento
e artistas. Em 1985, a Nova República e o dos povos indígenas, pois cria um conjunto
governo Sarney aumentaram a expectativa de condições objetivas para a expansão
de mudanças no Estado e na sociedade bra- demográfica e a consolidação da cidadania,
sileira. Começou-se a exigir uma Assembléia expressos na posse da terra, num sistema
Nacional Constituinte, para que uma nova próprio de saúde e em uma forma eficiente
Constituição substituísse a que vigorou de educação, como preceitua o artigo 231
durante o regime militar. do Capítulo VIII da Constituição de 1988:
Significativa parcela dos povos indí- São reconhecidos aos índios sua organização
social, costumes, línguas, crenças e tradições e
genas também se mobilizou para garantir
os direitos originários sobre as terras que
que os seus direitos fossem contemplados na tradicionalmente ocupam, competindo à União
nova Constituição. Como afirmou Darlene demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos
Taukane (1998, p. 31), índia Kurã-Bakairi, os seus bens.
durante a Conferência Ameríndia de Esse artigo e o subseqüente (art. 232)
Educação: “Os povos indígenas começaram da Constituição Federal expressam uma
a tomar atitude diante da dominação, da histórica mudança nas relações do Estado
manobra na década de 70 e aparecem no brasileiro com os povos indígenas, os mais
cenário nacional com mais evidência na novos sujeitos políticos da sociedade nacional.
década de 80” tendo, por luta política, a Estabeleceram-se, assim, as condições
defesa dos seus territórios e a autonomia e para o surgimento legal de uma educação
participação no cenário político nacional. escolar indígena prevista em artigos da Lei
Com o texto constitucional de 05 de 9394/96, a atual Lei de Diretrizes e Bases
outubro de 1988, aos direitos trabalhistas e da Educação Nacional (LDBEN). Essa

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educação escolar indígena passou a depen- o deles?


der de um novo gestor, o Ministério da Edu- Enquanto o Brasil, por meio de instru-
cação, que, até então, nenhum conhecimen- mentos legais, começou a reconhecer as
to detinha da realidade indígena. práticas educativas diferenciadas, nas regiões
Na década de 1990, a educação escolar Norte e Centro-Oeste, onde sobrevive a
oferecida nas aldeias passou a ser objeto de maioria da população indígena brasileira, as
investigação sistemática por parte de comu- Organizações Não Governamentais, alian-
nidade acadêmica. O interesse da comuni- do-se a diferentes organizações indígenas,
dade acadêmica foi despertado por grandes desenvolveram trabalhos, tendo como linhas
movimentações indígenas, embasadas na básicas a formação de professores indígenas
necessidade de resolver problemas concretos e a implementação de escolas de educação
de subsistência, saúde, educação, na pers- básica.
pectiva de um mundo globalizado. Tais ações ensejaram a continuidade
Os textos legais começaram a expressar dos encontros e reuniões, que contribuíram
a objetividade dos direitos indígenas, em para a compreensão de que os problemas
função das articulações materializadas em apontados pelas diversas etnias eram seme-
assembléias, encontros e mobilizações. Num lhantes e elas precisavam se reunir para se
processo de amadurecimento das reflexões conhecerem e se articularem, organizando-
e lutas coletivas, os povos indígenas criaram se para que fossem ouvidas.
comissões responsáveis pelos encaminha- Especificamente, no que concerne à
mentos necessários e intensificaram seus educação, queriam “aprender mais para
encontros e cursos. Também se implementa- poder ensinar melhor” (CIMI, 1987, p. 14) e
ram manifestações a fim de atrair a atenção garantir o direito a uma educação escolar
do conjunto da sociedade para a questão bilíngüe e bicultural, formando seus próprios
indígena. professores índios, a partir da visão de cada
Verhelst (1992, p. 198) alerta para o povo, e procurando, dessa forma, garantir
fato de que as comunidades autóctones têm mecanismos para a continuidade de trans-
outra visão da política e da lei: “em vez de missão dos seus valores e costumes.
se sentirem beneficiadas pelos Estados pós- Ao ser promulgada, a Lei 9394/96
coloniais, elas se sentem ameaçadas por eles, determinou que os sistemas de ensino desen-
bloqueadas em suas fronteiras, esmagadas volvam, com anuência das comunidades
por um sistema de leis alógeno, centralizador indígenas, “programas integrados de ensino
e unificador”. Esse fato conduz a questões e de pesquisa, para oferta de educação
ainda sem respostas: será que são, exatamen- escolar bilíngüe e intercultural” (art. 78). Isto
te, estes os direitos a que os povos indígenas exige o acompanhamento sistemático da
almejam? Ou é a sociedade não-índia que evolução destes programas na estrutura e no
lhes impõe ações políticas e legais que não funcionamento das escolas indígenas do
respeitam suas diferenças culturais e o seu Sistema Estadual de Educação, para verificar
direito de participar das decisões a serem se tais programas possibilitam o pleno
tomadas? estabelecimento dos direitos indígenas.
As mudanças que ocorreram não são Em 10 de agosto de 1999, a Câmara
garantia de que as questões ora apontadas de Educação Básica do Conselho Nacional
foram respondidas. Nossas relações com os de Educação realizou uma audiência pública
povos indígenas têm ocasionado o surgi- em Brasília, convidando todos os interessa-
mento de uma “cultura de contato... em cujo dos a colaborarem na definição da futura
interior... poderemos nos propor a buscar resolução normativa da educação escolar
soluções para problemas de caráter geral... indígena, em âmbito nacional. Na ocasião,
tanto quanto questões mais específicas como o Conselheiro Relator Pe. Kuno Paulo
o padrão de coerência entre os sistemas de Rhoden e outras autoridades afirmaram que
valores” (OLIVEIRA, 1976, p. 21). Será que aquela audiência expressava a abertura ao
nossas propostas refletem anseios comuns pluralismo jurídico no Estado Brasileiro,
aos índios e não índios? Está havendo desde a Constituição de 1988.
coerência entre o nosso sistema de valores e A audiência pública possibilitou obser-

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var as posições das organizações indígenas prática a Resolução CNE 03/99, documento
e das instituições que, de uma forma ou norteador da política brasileira de educação
outra, atuam com essas comunidades e dos escolar indígena. Se as ações do Estado de-
representantes de órgãos públicos gover- correm das suas políticas, a oferta e execução
namentais (municipais, estaduais e federais), da educação escolar indígena, a partir desse
expressando as contradições que perpassam instrumento legal, estava dotada das condi-
o tratamento da educação escolar indígena. ções objetivas que lhes faltavam até então.
Enquanto alguns prefeitos, representantes de
comunidades indígenas e de órgãos que nelas 5. O Censo Escolar Indígena
atuam solicitaram a municipalização da
escola indígena “porque o índio vive e se Mas, uma política de educação escolar
relaciona no município e é o município que indígena tem razão de ser em função dos
deve assumir sua responsabilidade perante sujeitos que dela dependem. E... quem são
as tribos que nele existem”; outros mani- eles? Sobre a realidade dessa educação
festaram posição contrária, em função da escolar indígena em nosso país, muito pouco
proximidade do poder de decisão governa- se conhecia, pois os números não eram
mental que, via de regra, têm sido em favor oficiais e variavam conforme a fonte consul-
dos que detêm o poder econômico local, em tada. Somente em agosto de 2.001, o MEC
detrimento dos interesses indígenas. publicou os primeiros dados de um Censo
Após a audiência, a proposta de reso- Escolar Indígena, que teve como objetivo
lução que estabelece “a estrutura e o funcio- “coletar informações gerais sobre as escolas,
namento das escolas indígenas e fixa as os professores e alunos indígenas de todo o
normas de sua execução nacional e de país”, em palavras pronunciadas pelo
ensino, juntamente as diretrizes curriculares Ministro da Educação na apresentação do
e dá outras providências” foi relatada documento que espelha os dados preliminares
propondo estadualizar a educação escolar do Censo Escolar Indígena (ano de 2001).
indígena. O Conselho Nacional de Educação Com base em dados de 1999, o censo
(CNE), aprovou-a como Resolução CNE n. concluiu-se no ano 2000 e apontou a existên-
03 no dia 10/11/99. cia de 219 povos distintos, em quase todos
Ao estadualizar o ensino fundamen- os estados brasileiros, menos no Piauí e no
tal, a Resolução CNE 03/99 feriu, profunda- Rio Grande do Norte. Nas terras indígenas,
mente, o preceito constitucional e a própria perfaz-se um total de 350.000 a 500.000 mil
LDBEN, no que diz respeito aos princípios índios falando mais de 180 línguas dife-
filosóficos e doutrinários, norteadores da rentes. Tais números não contemplam os
educação brasileira. A Constituição deter- índios urbanizados, entre os quais, muitos
mina que “os municípios atuarão prioritaria- preservam suas línguas e tradições culturais.
mente no ensino fundamental e na educação Mesmo que houvesse quantitativos
infantil” (art. 211, § 2º); e a LDBEN esta- condizentes com essa realidade, eles conti-
belece que cabe aos municípios incumbirem- nuariam sendo apenas números que não
se de “oferecer a educação infantil e, com refletem a diversificação existente entre os
prioridade (grifo nosso), o ensino funda- povos indígenas, tanto por suas tradições
mental” (art. 11, V). culturais específicas como pelo nível de con-
Mesmo assim, o MEC procurou cum- tato estabelecido com a sociedade nacional.
prir, o mais rápido possível, os ditames da Enquanto muitos deles utilizam o português
resolução mencionada, realizando reuniões como se fora seu idioma nativo, outros só
setoriais e técnicas de educação escolar falam a língua materna e outros, ainda,
indígena nas diversas regiões do País, coor- dentro da própria etnia, apresentam a duali-
denadas pelo Comitê Geral de Atendimento dade, utilizando os dois idiomas em algumas
à Educação Indígena em parceria com as aldeias.
Secretarias Estaduais de Educação dos Sobre esse Censo Escolar Indígena, o
Estados que as sediaram. professor Paulo Renato de Souza, Ministro
A pauta dessas reuniões enfatizou a da Educação, afirma: “os resultados desse
necessidade de estudos para colocar em censo permitirão ao Ministério da Educação

INTERAÇÕES
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ter novos referenciais na implementação da desenvolvimento acontece nas pequenas


política nacional de educação escolar indí- comunidades, onde “os relacionamentos
gena, adequando melhor seus programas e primários e secundários tendem a se equili-
metas”. (MEC/INEP/SEEC, 2001, p. 03). De brar muito bem”, despertando-as “sobretudo
acordo com o MEC, sua política “tem como em termos de auto-estima e auto-confiança”,
meta assegurar aos povos indígenas uma condições que se aplicam perfeitamente às
escola de qualidade, que respeite suas espe- comunidades indígenas. A cooperação e soli-
cificidades culturais e que garanta sua parti- dariedade devem contribuir para a manu-
cipação plena nos projetos de futuro do País” tenção da pluralidade étnica e cultural. Os
(MEC/INEP/SEEC, 2001, p. 08). A meta processos de alfabetização não podem elimi-
exige políticas “diferenciadas, maleáveis, e... nar as tradições orais dos povos indígenas,
pautadas por princípios e estratégias que assim como a introdução de novas práticas
possam ser adaptadas a cada contexto étnico agrícolas, administrativas e de desenvol-
diferenciado”. vimento não podem destruir as culturas
Para os povos indígenas é importante econômicas tradicionais, não-monetárias e
que o MEC assim se manifeste porque os leva cooperativas.
a entender que a superestrutura está disposta
a subsidiar propostas e não medir esforços Referências bibliográficas
para concretizar ações decorrentes destas ÀVILA, Vicente Fideles de. Pressupostos para a
políticas. formação educacional em desenvolvimento local. In:
Interações, Campo Grande: UCDB, 1(1), p. 63-76, 2000.
Considerações finais CARVALHO, Ieda Marques de Carvalho de. Professor
indígena: um educador do índio ou um índio educador.
Campo Grande: UCDB, 1998.
Ainda que timidamente, buscam-se
soluções que garantam respeito à diversi- _____. A política de integração nacional na visão dos
índios. In: Serviço Social e Realidade. Faculdade de
dade étnica. Elas passam por políticas defi- História, Direito e Serviço Social, UNESP: Franca, São
nidas com a participação efetiva dos sujeitos Paulo, 7(1), p. 123-136, 1998.
interessados na educação escolar indígena. CIMI/CNBB. Somos povos somos nações. Subsídios
Como políticas públicas, as que abordam as didáticos sobre a questão indígena. Brasília: CIMI/
questões sociais referentes à diversidade CNBB, 1987.
étnica são passíveis de expressarem avanços CUNHA, Manoela Carneiro da (org.). Legislação
resultantes das lutas travadas nas diversas indigenista no século XIX: uma compilação: 1808-1889.
camadas sociais, à medida que apresentem São Paulo: Edusp/Comissão Pró-Índio de São Paulo,
1992.
maior consonância com as políticas indige-
nistas e as de educação nacional. GAGLIARDI, José Mauro. O indígena e a República. São
Paulo: HUCITEC/EDUSP/Secretaria de Cultura de São
Não se trata porém de afirmar que,
Paulo,1989.
caso as políticas públicas ensejem ações que
GUIRALDELLI Jr., Paulo. História da educação. São Paulo:
assegurem uma educação de qualidade, essa
Cortez, 1994. p. 105-135/163-187.
educação concretizará projetos nos quais a
LIMA, Antonio Carlos de S. Um grande cerco de paz.
diversidade étnica seja, por fim, admitida, Poder tutelar, indianidade e formação do Estado no
respeitada e valorizada. Torna-se necessário Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.
rever a educação brasileira no que concerne MONTE, Nietta Lindenberg. Política pública e educação
aos direitos sociais, lembrando-se que escolar indígena no Brasil. In: CONFERÊNCIA
Verhelst (1992) sublinha a necessidade de AMERÍNDIA DE EDUCAÇÃO E ANAIS DO
atenção aos valores autóctones, porque os CONGRESSO DE PROFESSORES INDÍGENAS DO
povos de culturas diferenciadas lutam contra BRASIL. Anais... Cuiabá: Secretaria de Estado de
Educação/Conselho de Educação Escolar Indígena de
o etnocentrismo e salvaguardam sua própria Mato Grosso, 1998.
identidade, infligindo fracassos às propostas
MOONEN, Francisco. Pindorama conquistada. Repensan-
e práticas que objetivam um desenvol- do a questão indígena no Brasil. Jõao Pessoa: Alternativa,
vimento alógeno. 1983.
Ao tratar dos pressupostos para a RIBEIRO, Darcy. Os índios e a civilização. A integração
formação educacional em desenvolvimento das populações indígenas no Brasil moderno. São Paulo:
local, Ávila (2000, p. 73) afirma que este Companhia das Letras, 1996.

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SANTOS, Silvio Coelho. Os direitos dos indígenas no


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para professores de 1º e 2º Graus. Brasília, MEC/MARI/
UNESCO, 1995.
VASCONCELOS, Cláudio Alves de. A questão indígena
na província de Mato Grosso. Conflito, trama e conti-
nuidade. Campo Grande: UFMS, 1999.
VERHELST, T. G. O direito à diferença: identidades
culturais e desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1992.

Documentos
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BRASIL. Lei n. 9394. Estabelece diretrizes e bases da
educação nacional. Brasília, 1996.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto.
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Brasília, 1993.
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de 10/11/99.

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