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RISCOS, CIÊNCIA E ALIMENTAÇÃO SAUDÁVEL | 717

ENSAIO | ESSAY

Reflexões sobre riscos e o papel da


ciência na construção do conceito de
alimentação saudável1

Reflections on risks and the role of science in


building a healthy eating concept

Elaine de AZEVEDO 2

RESUMO

Este ensaio objetiva delinear duas temáticas sociológicas atuais, o risco e a reflexividade, partindo de uma
discussão que envolve a ciência e o conceito de alimentação saudável, ressaltando os diferentes aspectos
envolvidos na definição deste termo. A partir da mobilização de teóricos das áreas de Nutrição, Sociologia
Ambiental e Sociologia do Conhecimento Científico, tal ensaio sinaliza a necessidade de considerar o contexto
político da pesquisa em Nutrição e a inserção de diferentes atores, além dos especialistas, de forma a revitalizar
o processo de construção dos conceitos de alimentação saudável e riscos alimentares.
Termos de indexação: Assunção de riscos. Alimentação saudável. Ciência. Hábitos alimentares. Sociologia.

ABSTRACT

This article aims to delineate two current sociological themes, risk and reflexivity, starting from a discussion
that involves science and the concept of healthy eating, pointing out the different aspects involved in the
definition of this term. Experts from the areas of Nutrition, Environmental Sociology and Sociology of Scientific
Knowledge have collaborated to this essay which points out the need to consider the political context of
nutrition research and the participation of different actors, besides specialists, to revitalize the process of
building healthy eating and risky eating concepts.
Indexing terms: Risk-taking. Healthy food. Science. Food habits. Sociology.

INTRODUÇÃO mas, especificamente, nesta última década, dois


A temática dos riscos vem sendo desen- influentes teóricos, Anthony Giddens e Ulrich Beck,
volvida nas Ciências Sociais desde os anos 80, contribuíram para discutir o risco dentro do

1
Artigo elaborado dentro do Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política do Centro de Filosofia e Ciências Humanas
da Universidade Federal de Santa Catarina como parte do projeto de tese de doutorado da autora.
2
Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia e Ciência
Política. Caixa Postal 476, Campus Universitário, Trindade, 88010-970, Florianópolis, SC, Brasil. E-mail:
<elainepeled@gmail.com>.

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contexto dos conflitos sociais, das relações entre questionando ou contradizendo práticas alimen-
leigos e peritos e do papel da ciência1. tares que se estabeleceram como saudáveis ao
Guivant1 mostra que, para esses sociólogos longo do desenvolvimento da ciência da Nutrição.
Diante de tanta informação, o que se percebe é
as sociedades atuais, à diferença da sociedade
que não somente os leigos estão confusos, mas
industrial e de classes, próprias do início da moder-
também os especialistas da área da Nutrição e
nidade, enfrentam riscos ambientais e tecnoló-
saúde. Este ensaio se propõe a analisar a rede de
gicos que não são meros efeitos colaterais do
relações que colabora para a construção do con-
progresso, mas elementos centrais e constitutivos
ceito de alimentação saudável hoje, com foco no
dessas sociedades. São riscos que ameaçam toda
papel da ciência, bem como as noções de riscos
forma de vida no planeta e, por isto, são estru-
e reflexividade no contexto da nutrição contem-
turalmente diferentes no que diz respeito às suas porânea.
fontes e abrangência. Esses novos riscos, demo-
cráticos e de caráter global, afetam o planeta sem
distinção de classe ou nacionalidade; têm conse- As transformações sociais da dieta
qüências de alta gravidade; seus efeitos são saudável
desconhecidos a longo prazo e não podem ser
avaliados com precisão. Exemplos deles são o No início do século XIX, as primeiras consi-
aquecimento global, a poluição dos recursos derações sobre a qualidade da alimentação e a
hídricos, a contaminação dos alimentos, a AIDS e racionalização no uso de alguns alimentos na
a radioatividade1,2. Europa focaram, primeiramente, a saúde das
superalimentadas elites. Mais tarde, países como
Tais riscos e, conseqüentemente, as incer-
a Inglaterra e os Estados Unidos começaram a
tezas que eles geram, delineiam uma multipli-
intervir nos padrões nutricionais das classes mais
cidade de opiniões que caracterizam a sociedade
desprivilegiadas e carentes. Tais intervenções
contemporânea como autocrítica e reflexiva. Esse
tomaram diferentes formas, desde a educação
processo, contínuo e imperceptível, é a base da
nutricional até os subsídios e a distribuição de
chamada Modernização Reflexiva e se refere à
alimentos e suplementos para grupos nutricional-
vulnerabilidade e à revisão dos aspectos da vida
mente vulneráveis5.
social e das relações com a natureza, à luz de
novas informações3. Mais do que reflexão, a refle- O desenvolvimento da ciência da Nutrição,
xividade sugere a autoconfrontação com os efeitos a partir da descoberta dos nutrientes no início do
da sociedade de riscos. Tal processo encobre a século XIX, influenciou e modificou decisivamente
o perfil do que seria uma alimentação saudável,
certeza do conhecimento e perpassa a vida coti-
especialmente no que diz respeito à diversificação
diana e o projeto da ciência4.
dos modelos alimentares. As pesquisas científicas
A ciência da Nutrição é passível de ser modernas preconizavam uma padronização das
analisada sob essa ótica de cunho sociológico. A necessidades nutricionais humanas com base nos
alimentação, comumente vinculada à promoção conceito de caloria e na análise quantitativa dos
de saúde, também se apresenta como um fator nutrientes. O processo moderno de racionalização
de risco e, tanto os riscos alimentares quanto o enfatizou a mensuração, o cálculo, a predição e
conceito de dieta saudável mudam em diferentes a organização sistemática5. O sistema agroali-
contextos históricos, a partir de diferentes formas mentar moderno se estabeleceu a partir do
de construção social. O conceito de uma dieta conhecimento dos nutrientes e de suas funções,
saudável não cabe em nenhum consenso cientí- com base na alta produtividade, nos avanços
fico. Entretanto, percebe-se que as orientações tecnológicos - desenvolvimento da genética, uso
nutricionais estão cada vez mais disseminadas e de adubos sintéticos e agrotóxicos - e na indus-
contraditórias. A cada dia surgem novos estudos trialização6.

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Nos Estados Unidos foi criado, em 1862, o seguiram a mesma lógica. Entre 1940 e 1960,
Departamento Americano de Agricultura (USDA), para acompanhar a ideologia desenvolvimentista,
cujo objetivo central era assegurar uma quantidade foram necessários planos que objetivassem a
suficiente de suprimento alimentar. No início de melhoria nutricional da população em geral,
1890, o USDA começou a apoiar pesquisas que visando à introdução de novos alimentos e práticas
relacionavam agricultura e nutrição humana. educativas. Nessa época, a educação nutricional
Atwater, seu primeiro diretor de atividades de se fundamentou no “mito da ignorância”8.
pesquisa nessa área, publicou tabelas listando o A partir de 1970, o enfoque anterior ali-
conteúdo de nutrientes nos alimentos localmente mentação-educação passou a ser educação-renda
consumidos, estimou a quantidade de calorias e surgiram os programas de suplementação ali-
necessárias para os diferentes tipos de atividades mentar. O INAN (Instituto Nacional de Alimen-
profissionais e apontou os malefícios da dieta tação e Nutrição), vinculado ao Ministério da
americana, rica em carnes, amido e açúcares7. Saúde, foi criado em 1973, e propôs o Programa
Em 1917, o USDA distribuiu a primeira Nacional de Alimentação e Nutrição (PRONAN),
publicação de recomendações dietéticas e esta- em duas versões: o PRONAN I e II8. O PRONAN II
beleceu cinco grupos de alimentos: frutas e verdu- se estendeu até 1985, concentrando-se em três
ras, carnes e leite, cereais e amidos em geral, vertentes de atuação: suplementação alimentar
doces e gorduras. O documento ignorou os alertas a diversos grupos da população; racionalização
de Atwater e não estabeleceu nenhuma restrição do sistema de produção de alimentos com ênfase
ou combinação dessas categorias, mas somente no estímulo ao pequeno produtor e combate às
enfatizou o que o corpo necessita para funcionar. carências nutricionais apoiado em medidas de
Tal publicação considerava todos os alimentos natureza técnica e tecnológica9. Para Escoda10,
como componentes de uma dieta saudável, sem tal programa se caracterizava por uma condução
restrições de grupos específicos7. explícita de estratégias para atenuar os danos da
A política norte-americana que se seguiu desnutrição, aliviando as tensões da população
em anos posteriores foi a de manter as recomen- com a suplementação alimentar e o tratamento
das formas graves de desnutrição, sem enfrentar
dações não restritivas dos alimentos, estimulando
seus reais determinantes: a má distribuição de
o consumo, segundo o plano de intervenção que
renda e a carência de educação nutricional. A
Nestle7 chama de eat more activities. Nessa polí-
partir de 1980, surgiu a educação nutricional
tica não houve ênfase na ingestão dos alimentos
crítica, embasada nos princípios da pedagogia de
protetores (frutas e verduras), porque o governo
orientação marxista, que visava ao direito à cida-
os considerava de alto custo para o consumidor.
dania e a luta contra a exploração geradora da
Em 1940, a U.S National Academy of fome e da desnutrição8.
Sciences estabeleceu um comitê que veio a se
Após a extinção do INAN, nos anos 90, o
tornar o Food and Nutrition Board. Sua primeira
foco da educação nutricional no Brasil foi a pro-
tarefa foi a de estabelecer padrões para a inges-
moção de práticas alimentares saudáveis, aliada
tão diária de nutrientes para a população
à discussão do acesso ao alimento de qualidade
norte-americana. Em 1941, o comitê sugeriu as
em quantidade suficiente como um direito hu-
Recommended Daily Allowances (RDAs) ou doses
mano, e ao contexto da alimentação com caráter
diárias recomendadas de oito nutrientes e definiu
de prevenção de doenças. Atualmente, esse enfo-
a quantidade de energia a ser ingerida por dia.
que persevera e, a partir da Estratégia Global para
De 1943 até hoje esse comitê continua revisando a Promoção da Alimentação Saudável, Atividade
as RDAs em intervalos de 5 a 10 anos7. Física e Saúde, lançada em 2003 pela Organização
No Brasil as práticas de alimentação Mundial da Saúde, o Programa Nacional de Ali-
saudável foram introduzidas mais tarde, porém mentação Saudável elaborou uma estratégia

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brasileira prevendo o estímulo a uma dieta saudá- Essa breve abordagem histórica dá uma
vel, aliada a práticas saudáveis. Hoje, a Política visão geral do contexto social no qual se operou a
Nacional de Alimentação e Nutrição (PNAN) ainda mudança do conceito de alimentação saudável
amplia os conceitos de alimentação e estilo de desde o início da modernidade. Outros fatores,
vida saudáveis, levando em consideração também como a desconstrução do papel da ciência como
os fatores culturais e sócio-ambientais como legitimadora absoluta das orientações nutricionais
essenciais na definição de práticas saudáveis8. (que será abordado a seguir) e o caráter político,
É clara a mudança, no plano mundial, do influenciam no conceito de dieta saudável. Nestle7
conceito de alimentação saudável. As preocupa- afirma que o tema da alimentação saudável é
ções com as deficiências nutricionais e a fome - eminentemente político e a autora constrói essa
inevitavelmente vinculadas ao contexto político- afirmação a partir da análise da indústria de ali-
social - persistem aqui e em muitos outros países, mentos influenciando o conceito de dieta saudá-
porém convivem com os temores das repercussões vel. Por trás do alto consumo de nutrientes e
do consumo excessivo de certos nutrientes e alimentos que estimulam as doenças crônicas
calorias na dieta, além dos problemas relativos à não-transmissíveis, e também da ingestão de
contaminação química dos alimentos. alimentos light e diet, estão a indústria e o
Um processo chamado por Beardsworth & marketing alimentar, que manipulam a pesquisa
5
Keil de racionalização e medicalização da dieta científica e os hábitos dos consumidores e defi-
afeta todas as classes sociais em várias partes do nem, sob critérios questionáveis, o conceito de
mundo. Os autores afirmam que atualmente mo- dieta saudável7.
delos de alimentação racionais, restritivos e de
caráter dietoterápico exercem uma enorme in-
fluência sobre a percepção do público em geral. Reflexividade e riscos nos estudos da
É possível perceber a tendência de considerar uma alimentação
dieta saudável aquela que inclui alimentos light e
diet; com baixa densidade energética; restrita em A reflexividade, aliada à noção de destra-
gordura e proteína de origem animal, sal e açúcar; dicionalização e às preocupações de ordem eco-
rica em frutas, verduras e alimentos funcionais e lógica, formam o conjunto central das preocu-
complementos à base de fibras e micronutrientes. pações de Beck et al.3 em seus estudos sobre a
O aspecto restritivo desse enfoque segue o con- modernidade tardia. É possível caracterizar melhor
ceito de dieta saudável dentro da abordagem essa tríade a partir da análise da nutrição moderna.
energético-quantitativa, e acompanha as modifi- Sob o impacto das influências da globa-
cações no estilo de vida moderno e urbano asso- lização, diversos aspectos da vida cotidiana
ciado ao alto consumo de fumo e álcool, ao ficaram esvaziados de habilidades desenvolvidas
aumento do sedentarismo e do estresse. localmente, sendo invadidos por sistemas peritos
Segundo Nestle7, a expectativa de vida em de conhecimento. A produção de alimentos dentro
2000 aumentou para 77 anos, mas entre as do sistema agroalimentar moderno ilustra essa
maiores causas de morte no mundo contem- noção de destradicionalização que ocorreu a partir
da substituição da diversificação dos modelos
porâneo estão as doenças crônicas não trans-
alimentares com foco no alimento, definidos pela
missíveis, além da obesidade como epidemia. De
tradição e cultura local, e pelo enfoque científico
acordo com a autora, grande parte dessas disfun-
de valorização do nutriente e padronização das
ções tem uma maior ou menor relação com o
dietas de caráter quantitativo.
consumo desequilibrado de alimentos e nutrien-
tes, e a modificação de alguns componentes da A prática da reflexividade confunde as
dieta poderia reduzir substancialmente as taxas premissas do pensamento iluminista, que apre-
de mortalidade na contemporaneidade. goava que a razão superaria os dogmas da

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tradição. Para além dessa afirmação, Giddens11 considerar as suas imperfeições. A relação da
enfatiza que a ciência depende do princípio meto- ciência com a mídia estimulou uma reação que
dológico da dúvida e deve estar aberta à revisão, as jornalistas americanas Kantrowitz & Kalb14
a partir do desenvolvimento de novas idéias ou chamam de too much information. Estudos e
descobertas. Como já mencionado, essa condição pesquisas sobre os efeitos benéficos e maléficos
de incerteza coloca em uma condição pertur- dos alimentos inundam a mídia e os periódicos
badora não somente os leigos, mas também os científicos. Segundo as jornalistas, os próprios
peritos - os especialistas - e os cientistas. cientistas se tornaram parte da máquina da mídia.
A incerteza teórica é parte central da mo- Antigamente os cientistas faziam restrições ao
dernidade reflexiva, especialmente no âmbito dos contato com a mídia e não havia alarde sobre os
problemas ecológicos. Grande parte desses proble- resultados das pesquisas científicas fora do círculo
mas tem vínculo com a nutrição, uma vez que acadêmico. Os resultados de uma pesquisa eram
muitos dos questionamentos sobre a qualidade e discutidos entre os cientistas, que traduziam os
os riscos alimentares surgiram a partir da interven- dados em práticas clínicas para os especialistas.
ção da agricultura moderna científica sobre a Os pacientes seguiam as prescrições sem grandes
natureza, a partir de métodos antinaturais de questionamentos. Hoje a pressão dos cientistas
grande impacto sobre o meio ambiente e a saúde para falar com os repórteres é enorme. Hospitais
humana. e universidades enviam releases para a imprensa
e publicam revistas sobre os avanços científicos,
Se a ciência já representou as instituições
com o objetivo de gerar curiosidade e também
sociais, atualmente na sociedade de riscos o seu
fundos para novas pesquisas. Grandes periódicos
papel é questionado; ela surgiu como libertação
científicos montam departamentos de comuni-
dos fatores condicionantes da natureza, mas hoje
cação voltados para apoiar conferências públicas,
é percebida como uma força adversária, criadora
preparar press releases e gravar entrevistas em
de riscos, com limitações cada vez mais visíveis12.
vídeos para a imprensa e revistas semanais. Indús-
“Outrora fonte de segurança, a ciência e a tecno-
trias farmacêuticas contratam médicos como con-
logia tornaram-se fontes de risco”13 (p.10).
sultores e os apresentam como especialistas,
Frente à controvérsia que circunda a ques- marcando entrevistas com repórteres sobre o
tão dos riscos alimentares - suprimida ou apoiada desenvolvimento de doenças específicas, com o
por pesquisas científicas - parece evidente que o objetivo de promover determinadas drogas. A
consumo de alguns alimentos (como a margarina imagem dos cientistas ainda é relacionada a
e a gordura hidrogenada) não deveria ter sido pessoas discretas e silenciosas, mas a pesquisa
estimulado sem estudos que pudessem garantir, científica é altamente ávida por atenção, reconhe-
a longo prazo, a segurança do consumidor. Entre- cimento e financiamento14.
tanto, diante da intensa propaganda e do estímulo
Não haveria problemas com essa forma
à produção e ao consumo parece que o sistema
de divulgação se o progresso científico apresen-
agroalimentar, com base na agricultura moderna
tasse respostas conclusivas e rápidas. A busca
e na industrialização, junto com seus simpa-
parece ser por soluções imediatas, mas a ciência
tizantes reguladores políticos, decidiram, dentro
pede tempo e não apresenta resultados defini-
de uma perspectiva reducionista e estreita de
tivos. Isso pode ser percebido no aumento das
risco-benefício, que o seu consumo é seguro. E controvérsias nas pesquisas em alimentação e em
muitos profissionais da área da saúde apóiam tais certa relativização dos clássicos (e aparentemente
recomendações, baseados em pesquisas irrefutáveis) estudos científicos que definiram o
científicas. padrão alimentar moderno, confundindo leigos e
Como já mencionado, a ciência na Moder- especialistas, como mostram os exemplos a seguir:
nidade Reflexiva perdeu seu estatuto de conhe- a ingestão de ovos foi desestimulada para prevenir
cimento inquestionável e agora é preciso também riscos de doenças cardiovasculares, porém, hoje,

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especialistas indicam o consumo moderado desse em calorias, açúcar e gordura hidrogenada.


alimento15; o café já foi relacionado à etiologia Mesmo pesquisas de má qualidade podem ser
da hipertensão, mas um estudo recente aponta publicadas em periódicos com padrões menos
que o consumo da bebida é associado a pequenas rigorosos de análise, mas a mídia nem sempre
alterações na pressão sangüínea e não tem um faz essa distinção e divulga alguns estudos que
papel central no aparecimento da hipertensão16; nem sempre têm o mesmo grau de certeza e
estudo americano demonstrou que uma dieta rica eqüanimidade.
em vegetais, frutas e grãos - como preconizada O estudo do chocolate suscita ainda outro
por médicos e nutricionistas para o controle de aspecto importante, que diz respeito à origem do
doenças cardiovasculares - não reduziu significa- financiamento das pesquisas. Muitas pesquisas são
tivamente o risco de tais doenças nas mais de realizadas com financiamento de instituições pú-
48.000 mulheres estudadas (e o estudo ainda blicas, mas indústrias também apóiam finan-
enfatiza que existem as gorduras boas)17; pesquisa ceiramente pesquisas sobre alimentos. Nem
ressalta que o consumo de chocolate, antes sempre tal apoio significa estudos manipulados,
associado à obesidade e à hiperlipidemia, pode mas quando uma corporação suporta a ciência,
diminuir o colesterol nocivo, LDL, por causa da há mais chances de enfatizar efeitos favoráveis
ação dos flavonóides encontrados no cacau18. aos interesses das empresas e, provavelmente,
O reducionismo que permeia a ciência não há interesse em publicar resultados negativos.
permite inibir ou maximizar o perfil de resultado Indústrias de alimentos e empresas produtoras de
de uma pesquisa científica. Um exemplo dessa sementes provêem informação e fundos de pes-
afirmação está no estudo acima mencionado, de quisa para instituições acadêmicas, institutos de
Howard et al.17, sobre a incidência de doenças pesquisa e associações de profissionais da área
cardiovasculares. É consenso científico que, para da Nutrição, além de apoiar congressos e periódi-
manter a saúde cardiovascular, é necessário consi- cos. Essas considerações remetem a Irwin19, que
derar todos os aspectos que envolvem a qualidade aponta a importância de considerar os vínculos
de vida, como os exercícios físicos regulares, o do cientista antes de avaliar os resultados de uma
controle do fumo e álcool e dos níveis de estresse pesquisa ou de um estudo.
e da saúde psicossocial do indivíduo, além da Nesse sentido vale citar Habermas20, para
dieta. Tal estudo não dá conta da problemática quem a técnica, assim como a ciência, pode
pesquisada, pois maximiza a importância da assumir características de dominação ideológica.
alimentação na prevenção e no controle das Que a ciência está fora de controle Beck21 já
doenças cardiovasculares, sem levar em consi-
apontou, assim como já questionou a sua quali-
deração os outros fatores etiológicos das doenças
dade e direção, especialmente no contexto dos
cardiovasculares. Além disso, na apresentação dos
riscos ambientais que, segundo o sociólogo,
resultados o estudo acaba por sugerir que a dieta
parecem revelar cada vez mais a ligação da
não tem influência na etiologia das cardiopatias.
ciência e da tecnologia com a origem de grandes
Tomando outro exemplo: na pesquisa que aponta
erros e problemas e não com a sua solução.
o chocolate como alimento saudável emerge
novamente a questão da qualidade da pesquisa. A ciência perde sua homogeneidade e
Segundo Kantrowitz & Kalb14, o instituto American Irwin 19 pensa não em uma ciência, mas em
Cocoa Research apoiou financeiramente tal estu- ciências que incluam as preocupações mais amplas
do, feito com uma amostra considerada não dos leigos. Latour22, ao proclamar que “uma ciência
significativa, de apenas 23 participantes. Além sempre oculta outra”, ressalta a necessidade de
disso, o cacau contém flavonóides, mas tais pesquisas de caráter inter e transdisciplinares, que
fitoquímicos são perdidos no processo de fabri- possam ajudar a minimizar a visão reducionista
cação do chocolate que transforma o cacau em que impera nos estudos de risco ambiental e
um produto saboroso, mas pouco saudável - rico qualidade alimentar. Beck21 desafia a ciência a

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encontrar outras formas de operar na sociedade 9. Vasconcelos FAG. Combate à fome no Brasil: uma
análise histórica de Vargas a Lula. Rev Nutr. 2005;
de risco, a partir de uma nova relação entre
18(4):439-57.
racionalidade científica e raciona-lidade social.
10. Escoda MSQ. Investimento no capital humano:
uma análise da política de nutrição - RN Projeto
Rio Grande do Norte - CNPq/FUNPEC. Cad FUNPEC,
CONSIDERAÇÕES FINAIS [periódico na Internet] 1983 maio [acesso 2006
abr 24]; II(2-3). Disponível em: <http://www.ufrnet.
br/~scorpius/37-Inv%20Cap%20Hum.htm>.
Essa nova ciência que precisa emergir não
11. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de
é um método irrefutável e muito menos dispen-
Janeiro: Jorge Zahar Editor; 2002.
sável, mas um conjunto de instituições sociais
12. Irwin A. A ciência cidadã. Lisboa: Instituito Piaget;
difusas e flexíveis, em constante negociação e com 1995.
uma característica política que não pode mais ser 13. Douglas M, Wildavsky A. Risk and culture: an essay
ignorada. Percebe-se que para a construção do on the selection of technological and
conceito de alimentação saudável e a definição environmental dangers. London: University of
California Press; 1982.
dos riscos alimentares são necessários, muito mais
14. Kantrowitz B, Kalb C. Food new blues. Newsweek.
do que estudos científicos e desenvolvimento de
2006; 147(13):44-55.
práticas de manipulação seguras. Ações políticas
15. Hu F, Stampfer M, Rimm E. A prospective study of
que envolvam os diferentes atores citados - incluin- egg consumption and risk of cardiovascular
do o consumidor organizado - também devem ser disease in men and women. J Am Med Assoc. 1999;
consideradas na definição de riscos alimentares, 281(15):1387-94.
bem como o incentivo a estudos acadêmicos 16. Klag MJ, Wang NY, Meoni LA, Brancati FL, Cooper
sistêmicos que investiguem o conceito de ali- LA, Liang KY, et al. Coffee intake and risk of
hypertension: the johns hopkins precursors study.
mentação saudável sob uma análise crítica dos Arch Intern Med. 2002; 162(6):657-62.
diversos interesses envolvidos na geração de tal
17. Howard BV, van Horn L, Hsia J, Manson JE, Stefanick
conceito. ML, Wassertheil-Smollers S, et al. Low-fat dietary
pattern and risk of cardiovascular disease: the
women’s health initiative randomized controlled
REFERÊNCIAS dietary modification trial. JAMA. 2006; 6(295):
655-66.
1. Guivant J. Trajetórias das análises de risco: da 18. Wan Y, Vinson JA, Etherton TD, Proch J, Lazarus
periferia ao centro da teoria social. BIB - Rev Bras SA, et al. Effects of cocoa powder and dark
Inf Bibl Ci Soc. 1998; 46(2):3-38. chocolate on LDL oxidative susceptibility and
2. Beck U. Risk Society: towards a new modernity. prostaglandin concentrations in humans. Am J Clin
London: Sages; 1992. Nutr. 2001; 74(5):596-602.
19. Irwin A. Sociology and the Environmental. A critical
3. Beck U, Giddens A, Lash S. Modernização reflexiva.
introduction to society, nature and knowledge.
Política, tradição e estética na ordem social
London: Polity Press; 2001.
moderna. São Paulo: Unesp; 1997.
20. Habermas J. Técnica e ciência como ideologia.
4. Giddens A. As conseqüências da modernidade.
Porto: Rés-Editora; 1994.
São Paulo: Unesp; 1991.
21. Beck U. A reinvenção da política: rumo a uma teoria
5. Beardsworth A, Keil T. Sociology on the menu.
da modernização reflexiva. In: Beck U, Giddens A,
London: Routdedge; 1997.
Lash S, editores. Modernização reflexiva. Política,
6. Ehlers E. Agricultura sustentável: origens e pers- tradição e estética na ordem social moderna. São
pectivas de um novo paradigma. São Paulo: Livros Paulo: Editora Unesp; 1997.
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7. Nestle M. Food politics. Berkley (LA): University of a realidade dos estudos científicos. Bauru: EDUSC;
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8. Santos LAS. Educação nutricional no contexto de Recebido em: 24/10/2006
promoção de práticas alimentares saudáveis. Rev Versão final reapresentada em: 15/5/2008
Nutr. 2005; 18(5):681-92. Aprovado em: 11/9/2008

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