Você está na página 1de 4

Ao estudar a "Sociedade Disciplinar", Foucault constata que a sua singularidade reside na

existência do Desvio diante a Norma. E assim, para "normalizar" o sujeito moderno, foram
desenvolvidos mecanismos e dispositivos de vigilância, capazes de interiorizar a culpa e
causar no indivíduo remorsos pelos seus actos.

Dentre os dispositivos de vigilância do início do século, podemos destacar o Panóptico,


de Jeremy Bentham, um mecanismo arquitectural, utilizado para o domínio da distribuição
de corpos em diversificadas superfícies (prisões, manicómios, escolas, fábricas).

O Panóptico era um edifício em forma de anel, no meio do qual havia um pátio com uma
torre no centro. O anel dividia-se em pequenas celas que davam tanto para o interior quanto
para o exterior. Em cada uma dessas pequenas celas, havia, segundo o objectivo da
instituição, uma criança aprendendo a escrever, um operário a trabalhar, um prisioneiro a
ser corrigido, um louco tentando corrigir a sua loucura, etc. Na torre havia um vigilante.

Como cada cela dava ao mesmo tempo para o interior e para o exterior, o olhar do vigilante
podia atravessar toda a cela; não havia nenhum ponto de sombra e, por conseguinte, tudo o
que o indivíduo fazia estava exposto ao olhar de um vigilante que observava através de
persianas, de postigos semi-cerrados de modo a poder ver tudo sem que ninguém ao
contrário pudesse vê-lo.

O panoptismo corresponde à observação total, é a tomada integral por parte do poder


disciplinador da vida de um indivíduo. Ele é vigiado durante todo o tempo, sem que veja o
seu observador, nem que saiba em que momento está a ser vigiado. Aí está a finalidade do
Panóptico,

...induzir no detido um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o


funcionamento autoritário do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente nos seus
efeitos ... que a perfeição do poder tenta tornar inútil a actualidade do seu exercício...

Foucault,(1997),pag:166

Dissociando-se o par ver/ser visto, automatiza-se e desinvidualiza-se o poder.

O Panóptico organiza espaços que permitem ver, sem ser vistos, portanto, uma garantia de
ordem. Assim, a vigilância torna-se permanente nos seus efeitos, mesmo que não fosse na
sua acção. Mais importante do que vigiar o prisioneiro o tempo inteiro, era que o mesmo se
soubesse vigiado. Logo, não era finalidade do Panóptico fazer com que as pessoas fossem
punidas, mas que nem tivessem a oportunidade para cometer o mal, pois sentiriam-se
mergulhadas, imersas num campo de visibilidade.
Em suma, o Panóptico desfaz a necessidade de combater a violência física com outra
violência física, combatendo-a antes, com mecanismos de ordem psicológica.

A essência do Panóptico reside na centralidade da situação de inspecção, ou na


construção, sem duvida ficcional, de uma espécie de "inspector central", omnipotente,
omnipresente e, principalmente, omnividente.

O Panóptico (...) tem seu principio não tanto numa pessoa como numa certa distribuição
concertada dos corpos, das superfícies, das luzes, dos olhares; numa aparelhagem cujos
mecanismos internos, produzem a relação na qual se encontram presos os indivíduos (...)
Pouco importa, consequentemente, quem exerce o poder. Um indivíduo qualquer, quase
tomado ao acaso, pode fazer funcionar a máquina: na falta do director, sua família, os que o
cercam, seus amigos, suas visitas, até seus criados (...) Quanto mais numerosos esses
observadores anónimos e passageiros, tanto mais aumentam para o prisioneiro o risco de
ser surpreendido e a consciência inquieta de ser observado.

Foucault, (1997), pag:167

Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe disso, retoma por sua conta as
limitações do poder; fá-las funcionar espontaneamente sobre si mesmos; inscreve em si a
relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois papeis: torna-se o
princípio da sua própria sujeição.

Foucault, (1997), pag:168

O Panóptico (...) deve ser compreendido como um modelo generalizável de funcionamento;


uma maneira de definir as relações de poder com a vida quotidiana dos homens. Bentham
sem duvida o apresenta como uma instituição particular, bem fechada em si mesma. muitas
vezes se fez dele uma utopia do encarceramento perfeito.

Foucault, (1997), pág:169

Para Bentham, qualquer punição deve ser encarada antes de tudo como espectáculo;
importa menos o seu efeito sobre quem é castigado, do que as impressões que recebem
todos aqueles que vêem o castigo ou que dele são informados.

Na sua prisão panóptica, ocasionalmente se escutavam gritos horríveis - só que não de


prisioneiros, mas de pessoas contratadas exclusivamente para semelhante propósito. A
punição aparente, fictícia, produziria um bem para todos - a ordem, a disciplina - ao mesmo
tempo que não produzia nenhum mal, exactamente porque o "mal" produzido teria sido
forjado.

Todo o Panóptico, na verdade, é estruturado como uma ficção. É precisamente a aparente


omnipresença do inspector que sustenta a perfeita disciplina no Panóptico, controlando os
movimentos de transgressão entre os internos. Entretanto, como a omnipresença não pode
ser um atributo humano, resta forjá-la, simulá-la, quer por rondas aleatórias, quer pela
arquitectura do lugar, que permite a cada um dentro das celas ser facilmente visto, ao
mesmo tempo em que dificilmente vê quem o vê.

Em última análise, o inspector perfeito, o inspector omnipresente, é aquele que nunca


aparece - mas que pode aparecer a qualquer instante. O inspector perfeito é, enfim, uma
voz, um olho, um ofício carimbado, uma sombra indistinta no fundo do corredor.

Neste tipo de instituições, nós somos vistos, ou pensamos que somos vistos, sem vermos
aquele que vê, nós escutamos uma voz, sem vermos o dono da voz. O Panóptico deve ser
governado por um olhar e por uma voz desconectados do seu portador. O inspector
torna-se, então, uma espécie de fantasma. Em última instância, é uma entidade de ficção -
ele não existe. Justamente por isto, ele pode provocar um medo superior ao de um guarda
real, por mais cruel que esse guarda fosse.

A utopia panóptica - em si mesma uma obra de ficção - gerou outras tantas obras de ficção.
Muitos livros tematizaram o Panóptico, em geral para repudiá-lo, ou exorcizá-lo. Dentre eles,
o romance mais conhecido é 1984, de George Orwell, em que a figura omnipresente e
omnividente (entretanto inexistente) do inspector geral toma a forma do Big Brother, enfim,
de um grande olho que pode ver todos os recantos. Orwell escreveu-o em 1948, invertendo
os dois últimos algarismos para situar a sua utopia negativa.

O esquema Panóptico pode ser utilizado sempre que se deseja impor uma tarefa ou um
comportamento a uma multiplicidade de indivíduos.

O Panóptico (...) permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias, maneiras:


porque pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo que multiplica o
número daqueles sobre os quais é exercido (...) Sua força é nunca intervir, é se exercer
espontaneamente e sem ruído (...) Vigiar todas as dependências onde se quer manter o
domínio e o controle. Mesmo quando não há realmente quem, assista do outro lado, o
controle é exercido. O importante é (...) que as pessoas se encontrem presas numa
situação e poder de que elas mesmas são as portadoras (...) o essencial é que elas se
saibam vigiadas.

Focault, (1997), pág: 170

As instituições panópticas são leves e fáceis de manipular, utilizam princípios simples de


correcção e adestramento. É uma espécie de campo experimental de poder, assegura a
sua economia, a sua eficácia e o seu funcionamento.

A base desta arquitectura institucional é o exame contínuo (a prova, o teste), para controlar
"à nascença" as causas dos desvios. O sujeito torna-se culpado (ou "burro", ou louco, ou
doente) até prova (exame) em contrário. Em todos os dispositivos de disciplina, o exame,
então, tem de ser altamente ritualizado.
O exame combina as técnicas da hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um
controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. estabelece
sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados.
É por isso que, em todos os dispositivos de disciplina, o exame é altamente ritualizado. Nele
vêm-se reunir a cerimónia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o
estabelecimento da verdade (...) A superposição das relações de poder e das de saber
assume no exame todo o seu brilho visível.

Focault, (1997), pág: 154

Você também pode gostar