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Michel Foucault e “os corpos

dóceis”

Prof Geovani Santiago


Sobre o autor
Filósofo francês, Michel Foucault é conhecido por suas teorias acerca da relação entre
poder e conhecimento, e como estes são usados para o controle social através das
instituições. Iniciou seu trabalho com uma aproximação do movimento teórico em
antropologia social conhecido como estruturalismo, do qual veio a se distanciar mais
tarde, que lhe rendeu o desenvolvimento de uma técnica historiográfica própria, a
qual chamou "arqueologia".
Foucault procurou colocar sua posição filosófica em prática, tornando-se membro
ativo de diversos grupos envolvendo campanhas anti-racismo, anti-abusos de direitos
humanos e lutas por reformas do sistema penal. Entre seus trabalho mais relevantes
estão A Arqueologia do Conhecimento, Vigiar e Punir, e História da Sexualidade, nos
quais desenvolveu seus métodos arqueológicos e genealógicos de leitura histórica,
através dos quais enfatizava o papel do poder na evolução do discurso em sociedade.
Sobre a obra: “Vigiar e Punir”
Antes, contudo, interessa sublinhar que a análise genealógica
desenvolvida em “Vigiar e punir” não se constitui no estudo da
“prisão” propriamente dita, mas de toda uma tecnologia de poder
egressa da segunda metade do século XVIII, momento em que as
práticas punitivas ocidentais sofrem uma modificação
fundamental: [...] o corpo supliciado será substituído pelo corpo
disciplinado pelos dispositivos de exame e vigilância. (YAZBEK,
2015, pp. 107-108).
De acordo com a concepção de Foucault, a “docilização dos corpos” se constitui em
uma tecnologia política do corpo.

Em “Vigiar e punir”, Foucault apresenta três momentos históricos e seus respectivos


modos de administrar os corpos dos “desviantes”:

1. O espetáculo do corpo supliciado do século XII.

2. O surgimento de uma nova economia política

do poder de punir no século XVII.

3. A sociedade disciplinar da modernidade.


Os corpos dóceis
Segunda metade do século XVIII: o soldado tornou-se algo que se
fabrica; de uma massa informe, de um corpo inapto, fez-se a
máquina de que se precisa; corrigiram-se aos poucos as posturas;
lentamente uma coação calculada percorre cada parte do corpo, se
assenhoreia dele, dobra o conjunto, torna-o perpetuamente
disponível, e se prolonga, em silêncio, no automatismo dos hábitos;
em resumo, foi “expulso o camponês” e lhe foi dada a “fisionomia de
soldado” (FOUCAULT, 2008, p. 117).
• A máquina: na prisão, no exército, na fábrica, na escola... É preciso

fazer dos corpos individuais um conjunto único que multiplique as


forças de produção. A movimentação dos corpos encontra a
sincronia dos movimentos de uma máquina.

• A coação calculada: de comando a comando, os corpos vão

ocupando seus lugares na configuração da máquina,

• O automatismo dos hábitos: a espontaneidade não tem lugar

dentro do mecanismo. Os corpos precisam se adaptar ao


automatismo sincronizado.
Na sociedade do século XVIII, a escola assume o encargo de
produzir o homem-máquina: [...] o corpo que se manipula, se
molda se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas
forças se multiplicam (FOUCAULT, 2008, p. 117).
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado,
que pode ser transformado e aperfeiçoado (FOUCAULT, 2008, p.
117).
A disciplina na escola: Esses métodos que permitem o controle
minuciosa das operações do corpo, que realizam a sujeição constante
de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o
que podemos chamar as “disciplinas”, [...] fórmulas gerais de
dominação (FOUCAULT, 2008, p. 118).
O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma
arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação
de uma relação que no mesmo mecanismo torna tanto mais obediente
quanto mais útil, e inversamente (FOUCAULT, 2008, p. 119).
Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo,
uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos de seus
comportamentos (FOUCAULT, 2008, p. 119).

O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha,


o desarticula e o recompõe (FOUCAULT, 2008, p. 119).
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos dóceis.

A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade)


e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)
(FOUCAULT, 2008, p. 119).

A disciplina multiplica as aptidões dos corpos na mesma medida em que


subtrai o poder de manifestação individual.
A arte das distribuições:

A disciplina procede em primeiro lugar à distribuição dos indivíduos no espaço. Para


isso utiliza diversas técnicas (FOUCAULT, 2008, p. 121).

1. A cerca: as paredes, as portas, os muros, os portões.

2. O princípio do quadriculamento: cada indivíduo em seu lugar e em cada lugar


um indivíduo. Importa estabelecer as presenças e as ausências, instaurar as
comunicações úteis, interromper as outras, medir as qualidades e os méritos.

3. A regra das localizações funcionais: criar um espaço útil, romper as


comunicações perigosas.

4. A fila: cada um se define pelo ligar que ocupa na série, e pela distância que o
separa do outro.
O controle da atividade:

1. O horário: O tempo medido e pago deve ser também um tempo sem


impureza e sem defeito, um tempo de boa qualidade, e durante todo o
seu transcurso o corpo deve ficar aplicado a seu exercício (FOUCAULT,
2008, p. 129).

2. A elaboração temporal do ato: O tempo penetra o corpo, e com ele


todos os controles minuciosos de poder (FOUCAULT, 2008, p. 129).

3. O corpo e o gesto postos em correlação: a otimização da relação entre


cada gesto e atitude global do corpo, que é sua condição de eficácia e
rapidez. Um corpo disciplinado é a base de um gesto efeciente.
4. A articulação corpo-objeto: o treinamento da engrenagem
entre o corpo e o porte do objeto.
5. A utilização exaustiva: princípio da não ociosidade. É preferível
repetir o mesmo exercício mil vezes do que usufruir o tempo
livre.

A organização das gêneses:


A disciplina pressupõe uma organização harmoniosa entre: as
relações e trocas interpessoais; a seriação do tempo e das
tarefas; os sistemas classificatórios; as retribuições.
A composição das forças:

A disciplina não é mais simplesmente uma arte de repartir os corpos, de


extrair e acumular o tempo deles, mas de compor forças para obter um
aparelho eficiente (FOUCAULT, 2008, p. 138).

1. O corpo é uma força móvel que se posiciona de acordo com as

exigências da “máquina”.

2. O tempo segmentado e combinado é mais uma peça da

engrenagem.

3. O comando deve ser breve e claro a fim de produzir um

comportamento específico e imediato.


Conclusão
O sonho de uma sociedade perfeita

[...] sua referência fundamental era:

• Não ao estado de natureza, mas às engrenagens cuidadosamente

subordinadas de uma máquina.

• Não ao contrato primitivo, mas às coerções permanentes.

• Não aos direitos fundamentais, mas aos treinamentos

indefinidamente progressivos.

• Não à vontade geral, mas à docilidade automática.


Amala e Kamala

São os dois exemplos mais bem documentados da história


dessas crianças. Foram encontradas vivendo em uma
família de lobos, Amala com aproximadamente 1 ano e
meio e Kamala com 8 anos de idade. Andavam sobre
mãos e pés, joelhos e cotovelos, como animais, não
falavam, se comunicavam por gestos, e uivavam para a
lua. Eram seres livres dentro do contexto em que elas
conheciam. Se alimentavam de carne crua e podre, e não
demonstravam nenhum tipo de emoção.
• Mas a pergunta é, será que elas eram meninas livres, por
viverem por conta própria e da maneira que podiam, ou
seriam meninas presas ao contexto ao qual foram
submetidas, limitadas a viverem como animais devido aos
meios que foram lhes dado, ao contexto de sociedade que
pertenciam, e a ignorância de não poderem ter tido a
oportunidade de escolher entre a vida animal e humana? E
se elas pudessem escolher? Bem, não puderam.
• As meninas foram encontradas por um reverendo chamado
Singh e levadas para um orfanato, onde começaram a
aprender a viver como uma criança normal. Viviam
encolhidas num canto, e possuíam hábitos noturnos.
Desenvolveram uma depressão profunda. Amala, a mais
nova, sobreviveu durante um ano. As mudanças e a falta
de sua antiga família foram demais para ela.
• Kamala então, chorou pela primeira vez em sua vida.
• A menina mais velha viveu durante nove anos no
orfanato, aprendendo a se humanizar aos poucos.
Levou 6 anos para aprender a andar, e seu vocabulário
era muito rudimentar, possuindo apenas 50 palavras.
• Liberdade acaba sendo uma coisa muito relativa. Há
quem diga que quanto menos se sabe, quanto mais
ingênuos, mais livres nós somos. Ao mesmo tempo que
o conhecimento é uma arma maravilhosa, é preciso ser
ainda mais inteligente para ver o mundo de uma
maneira pura, sem conceitos pré-moldados por outras
pessoas. Não é à toa que dizem que quanto mais
sabemos, percebemos que sabemos menos ainda.
• Amala e Kamala foram retiradas de seu habitat
natural, onde eram felizes da maneira que
podiam, para viver uma vida curta, penosa e
triste. Viveram como pássaros presos na
gaiola. Não eram meninas comuns, mas eram
humanas, ainda que vivendo em um ambiente
de animais, com hábitos de animais.
• No final das contas, o que vale mais, a nossa
vida nua e crua, ou vivida de acordo com o
que todo mundo impôs e definiu como padrão
para nos definir como seres humanos
parcialmente livres?
• A nossa própria liberdade nos aprisiona, a
sociedade nos aprisiona.

Amala e Kamala podiam não ter conciência


disso, mas o fato é que elas só foram felizes…

…enquanto livres.
REFERÊNCIAS

FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes,


2008.
YAZBEK, A. C. 10 Lições sobre Foucault.
Petrópolis: Vozes, 2015.

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