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Dialogos Entre Cinema e Historia. Aspect PDF
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Anais do Evento
Introdução
A História, além de transmitir testemunhos do passado, suas análises e
interpretações também influencia no desenvolvimento e na criação de mitos que
ultrapassam épocas e conceitos. Um dos elementos que auxilia na longevidade desses
mitos, em nossa época, refere-se a linguagem cinematográfica. Esta, por sua vez possui
características próprias e distintas da utilizada na interpretação histórica. Pretendemos
nesse estudo analisar o diálogo existente entre história e cinema, apontando para uma
reflexão sobre generalizações e visões estereotipadas do período medieval. Assim,
elaboramos aqui uma pequena e superficial análise do filme Em nome de Deus (Stealing
Heaven) e sua possível contribuição para o estudo da visão que a sociedade da década
de 80 possui da época medieval, além do uso dessa linguagem como elemento de
construção imagética dessa sociedade.
1
Alunas de mestrado do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná,
ligadas ao Núcleo de Estudos Mediterrânicos – NEMED.
2
MARTIN, Marcel. A linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 1990. p. 21
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SANTOS. Jean Isidio dos. O cinema e a Industria Cultural. In Indústria Cultural e Cultura
Mercantil. Corifeu. Rio de Janeiro: 2007
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MARTIN, Marcel. Op. Cit., p. 24
5
Ibid. p. 28
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ADORNO, T. & HORHEIMER, M. (1985). Dialética do Esclarecimento: Fragmentos Filosóficos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar. p. 116
7
Essa ideia torna-se ainda mais clara quando analisamos a cultura pop da década de 80, onde
encontramos uma crescente crítica à Igreja católica por parte de artistas como Madonna e Sinead
O'connor ou mesmo dentro da sétima arte, como o filme The Prophecy.
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8
BERNARDET, Jean-Claude. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense, 2000. p. 45.
9
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica,
Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987, v.1p. 194.
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LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. Trad. Antonio de Padua Danesi. SP: Martins
Fontes, l993. p.193
11
DUBY, Georges. Idade média, idade dos homens. São Paulo : Companhia das Letras, 1998. p.125.
12
Nem todas as cidades eram protegidas por essas guarnições. Na verdade, grande parte delas só a dotou
essa forma de proteção após a Guerra dos Cem anos. Porém, essa realidade de fortificação constitui
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um dos elementos mais relacionados com o imaginário do período medieval. Mesmo tendo sido
construídas, provavelmente por motivos de proteção, etas também eram inspiradas pela ideia e
simbologia de muros lendários que protegiam o espaço sagrado do interior da cidade. Outro fator para
a construção destas, relaciona-se com a construção de uma consciência identitária urbana nesses
centros: Ainda aqui o funcional e o simbólico, o militar e o político estão estreitamente ligados. LE
GOFF 1993, p. 17
13
Sobre os aspectos físicos do aumento proporcional das edificações físicas das cidades medievais,
podemos citar o estudo elaborado por Le Goff em O apogeu da cidade medieval, onde este elabora
uma análise minuciosa sobre a cristalização desse ambiente urbano.
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episcopais que passam a ser consideradas como núcleos formadores de saber. Tendo
como local de desenvolvimento o espaço urbano, desvinculando a escolarização da
obediência monástica14, e tendo como núcleo a catedral, essas escolas possuem um
método de ensino baseado em exercícios – lectio, quaestio, reparatio e disputatio – e
em sessões públicas15. Esse método objetiva antes da simples reprodução do
conhecimento obtido durante as lições, um exercício prático constante, formando assim
um processo educativo ligado ao espírito. Nessas escolas ensinavam-se o trivium, o
quadrivium, aspectos da Sagrada escritura, além das vozes de autoridades.
No filme Stealing Heaven observamos algumas cenas em que retrata-se
Abelardo em um diálogo espontâneo com seus alunos. Esse diálogo, mesmo que tenha
sido representado de forma que aparente desordenação, é encontrado nessas escolas: as
quaestiones. Durante a lectio, onde o mestre realizava a leitura e comentário do texto,
podendo ser algum escrito clássico ou textos bíblicos, o que gerava algumas indagações
por parte dos alunos. Estas eram esclarecidas durante as quaestiones:
Outra característica que o filme nos revela, refere-se ao grupo de estudantes que
segue Abelardo. De fato, existia nesse ambiente das escolas episcopais um grupo que
ficou conhecido na história como Goliardos. Sua origem é de fato variada, podendo
14
LIBERA, Alain de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998.p. 22
15
Para saber mais sobre cada uma especificações das quais os estudantes das escolas medievais estavam
sujeitos durante os anos de estudo, ver ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A Universidade Medieval. 2
ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2000
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ULLMANN, Reinholdo Aloysio. A Universidade Medieval. 2 ed. Porto Alegre: EDIPUCRS. 2000 p.
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pertencer a nobreza ou ao campesinato. De fato, esse grupo possui uma caráter urbano,
sendo uma das consequências do aumento demográfico do renascimento do século XII,
e da mobilidade social característica desse período. Subtraídos de sua função na
estrutura social, geralmente seguem o mestre de sua escola: “Formam o corpo da
vagabundagem estudantil tão característica, ela também, do século XII” 17
Dentro desse contexto de escolas urbanas, Abelardo pode ser considerado
como o primeiro representante exemplar. Pode ser considerado como um marco pré-
universitário, pois já estabelece uma hierarquia entre scolares e magistri18.
Le Goff afirma que Abelardo representa a primeira figura de destaque do meio
parisiense, e de fato, grande parte do futuro reconhecimento do aspecto educacional de
Paris se deve a ele. Que era considerado uma grande figura intelectual, e reconhecido
em vários âmbitos dessa cristandade latina, atraindo grande números de estudantes
esperançosos em alcançar conhecimento. Abelardo é o primeiro professor19.
A filosofia de Abelardo é caracterizada pela principalmente pela Lógica. Tem
especial atenção e cuidado com o uso da dialética, considera como objetivo da lógica a
adequação entre a linguagem e a realidade que manifesta. Outra característica é uma
intensa tentativa de conciliação entre a razão e a fé, satisfazendo as necessidades do
meio escolar. Verger afirma que Abelardo pode ser identificado como renovador da
dialética e um dos fundadores da escolástica medieval20.
Alain de Libera nos informa, que todas as operações desenvolvidas nesse
período eram consideradas como uma ferramenta para o alcance do conhecimento. A
lógica ou a metafísica não passavam de instrumentos que auxiliavam nessa função
propedêutica. Não existia a filosofia como a conhecida na antiguidade, nos Liceus, mas
sim como teologia. Mesmo não existindo espaço para a figura social do filosofo em si,
como na antiguidade, a filosofia medieval permitiu a possibilidade de um pensamento
transcendental.
Convém observar que essas escolas não possuíam arquivos constantes que nos
relegam afirmações sobre seu funcionamento. Assim, abstraindo as questões afetivas,
17
Le Goff, Jacques – Os Intelectuais na Idade Média, Lisboa: Gradiva , 1983 p. 30
18
Ibid., p. 33
19
Ibid., p. 34
20
VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII; traduação
Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2001, p. 55.
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21
Ibid., p. 51
22
MENDES, Ana Luiza. Entre a razão e o pecado: a linguagem do amor nas correspondências de
Abelardo e Heloísa. Monografia de conclusão do curso de graduação em História. UFPR, Curitiba,
2009, p. 49.
23
Ibid., p. 13.
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em que essa palavra implica intenção e estruturação” , feita possivelmente 150 anos
depois dos acontecimentos que explicitam.
Com base, portanto, nesses documentos a História se debruça para tentar alçar as
memórias dos acontecimentos na vivência dos dois. Sobre Heloísa pouco se sabe. Sua
ascendência é da alta aristocracia da Île-de-France. “Descente por parte de pai dos
Montmorency e dos condes de Beumont, por parte de mãe dos vidamas de Chartres,
estava ligada, como Abelardo aliás, a um dos clãs que disputavam o poder no séquito do
25
rei Luís VI”. Portanto, Heloísa não era qualquer mulher, de forma que sua fama não
se faz somente em prol da sua relação com Abelardo. Como este mesmo atesta,
Pode-se, portanto, compreender Heloísa como uma mulher avançada para o seu
tempo. Mas não tão avançada como o filme Em nome de Deus sugere. Nele podemos
observar uma cena em que o tio de Heloísa aponta para um pretende a marido, o qual é
representado praticamente como um glutão, talvez para desenvolver o asco no
espectador que corrobora com a atitude “feminista” da protagonista em rejeitá-lo. É fato
que Heloísa, nessa fase da trama cinematográfica, já está envolvida com Abelardo, mas
o fato é que, na Idade Média, casamento era um assunto masculino, isto é, tratados pelos
homens das duas famílias ao passo que as mulheres, muito sutilmente conquistaram a
possibilidade de poder consentir ou não no casamento. Essa era a teoria desenvolvida a
partir do século XII que, contudo, sabemos ser bem diferente da prática.
No que ainda tange sobre o casamento, Heloísa também o recusou mesmo com
Abelardo, o seu amor. Para ela, com base nos preceitos filosóficos, o casamento não
combina com o amor que é livre, enquanto aquela instituição aprisiona o corpo e alma
24
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p.3.
25
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, p55.
26
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 39.
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Mas não nos enganemos. Não é o crucifixo que ela almeja, mas sim a pena que
esconde dentro dele. A pena que Abelardo a deu num passeio. O cinema tem paixão por
transmitir esse amor exagerado que não morre durante os anos. Que permanece e que dá
o motivo de viver dos amantes. Não que Abelardo e Heloísa não fossem exagerados.
Eram. Isso podemos verificar na confissão de Abelardo, na qual ele fala:
Contudo, o filme não retrata a conexão racional entre os dois amantes. Heloísa
era culta, sabia latim, conhecia os filósofos antigos e se depara com o melhor professor
de Paris. Evidente que entre as sessões amorosas a intelectualidade dos dois era
exercida. A própria Heloísa, se dermos credito a ela para a co-autoria das
correspondências, recorre ao argumento do próprio Abelardo para se defender das
acusações deste sobre o pecado praticado pelos dois. Abelardo contribui para uma nova
forma de espiritualidade a qual vincula o pecado com a intenção e não com o ato. É a
moral da intenção. Heloísa, pois, argumenta racionalmente, utilizando os preceitos de
seu próprio mestre para mostrar-lhe sua contradição e dissuadi-la da culpa.
Da mesma forma, o filme não contempla a disputa entre Abelardo e São
Bernardo. “Denunciado como herético, [Abelardo] foi levado a um tribunal presidido
por São Bernardo (1090-1153), conselheiro de reis e papas e pregador da Segunda
Cruzada. O resultado foi sua condenação. Abelardo recorreu a Roma e morreu durante o
julgamento de sua apelação”. 29
Mas isso não importa ao filme, cujo personagem principal é o amor quase
transcendental, que vigora após tantos anos e tem o seu ápice no encontro familiar, na
27
Correspondência de Abelardo e Heloísa. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2000, p. 119.
28
Idem, p. 41-42.
29
Em nome de Deus: um retrato da época. Entrevista com Nilton Mullet Pereira e Alfredo Culetton
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cena final em que Abelardo vai ao encontro de Heloísa junto com o filho, Astrolábio.
Esta cena defende nitidamente os valores familiares da atualidade e não os valores da
época do casal. A família como concebemos atualmente não era pesada da mesma
forma. Sobre Astrolábio só há uma referência na História Calamitatum: que quando
nasceu este foi o nome escolhido a ele. Nenhuma referência a mais.
Possivelmente tenha seguido o caminho das crianças no período medieval. Estas,
aproximadamente aos oito anos eram separadas da companhia do pai, mãe, irmãos, para
serem educados em outras casas. Astrolábio pelo que tudo indica, sequer chegou a
conviver com a mãe, que logo entrou para a vida religiosa.
A história de Abelardo e Heloísa transformou-se um mito não só através da
historiografia, mas também na mentalidade daqueles que imaginam o amor como uma
virtude que pode permanecer no tempo. Tal constatação pode-se fazer ao recorrermos à
informação dada por Fernando Baez, em História universal da destruição dos livros, de
que em 1930 “um tribunal dos Estados Unidos proibiu a circulação das Cartas de amor a
Heloísa, de Abelardo, porque defendia os sentimentos, sempre temidos, e promovia uma
30
respeitável introdução ao sexo entre intelectuais”. Ou seja, o amor perpetuado por
Heloísa e Abelardo era concebido como perigoso.
Em outra vertente, este amor é celebrado como o demonstra o poema do século
XVI de Alexander Pope, o qual se articula a partir do eu-lírico de Heloísa que escreve,
no convento, sobre suas mágoas e confessa que Abelardo ainda é dono dos seus
pensamentos e não Deus. O poeta, portanto, celebra a perseverança amorosa de
Heloísa, da mesma forma que faz o filme, cujo personagem principal, reitero, é o amor
de Heloisa que subsiste ao tempo e à distância.
30
BAEZ, Fernando. História Universal da Destruição de Livros: das tábuas sumérias à Guerra do
Iraque. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. p. 131. APUD: CAMPOS, Ana
Célia Passos Pereira; MARQUES, Daniela de Freitas. Heloísa e Abelardo: diálogos sobre o amor, a
política e o direito. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 123-146, jan./jun. 2011, p.
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Bibliografia
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e
Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1987, v.1
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
_____, Georges. Idade média, idade dos homens. São Paulo : Companhia das Letras,
1998.
LE GOFF, Jacques. O apogeu da cidade medieval. Trad. Antonio de Padua Danesi. SP:
Martins Fontes, l993.
________, Jacques. Os Intelectuais na Idade Média. Lisboa: Gradiva , 1983.
LIBERA, Alain de. A Filosofia Medieval. São Paulo: Edições Loyola, 1998.
VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no Ocidente nos séculos XII e XIII.
traduação Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2001
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