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Artigo - Do Conceito de Imovel Rural - Por Juliana Chacpe
Artigo - Do Conceito de Imovel Rural - Por Juliana Chacpe
Resumo: O presente trabalho trata do estudo do conceito de imóvel rural, à luz do direito agrário, e
busca evidenciar a autonomia desse direito em relação ao civilista, além de enaltecer o aspecto da
continuidade econômica na forma de exploração e a importância da aplicação do conceito para fins
de elaboração de laudo agronômico de fiscalização e classificação fundiária do imóvel com vistas à
desapropriação para reforma agrária.
1. Introdução
O presente trabalho trata do estudo do conceito de imóvel rural, à luz do Estatuto da
Terra e do direito agrário, e busca evidenciar a autonomia desse direito em relação ao civilista.
Traça as diferenças entre imóvel rústico e agrário, bem como entre rural e urbano de acordo com os
critérios eleitos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, além de enaltecer o aspecto da
continuidade econômica na forma de exploração para identificação do imóvel, entendimento
firmado pelo Supremo Tribunal Federal. Realça a importância da aplicação do conceito para
elaboração de laudo agronômico de fiscalização (mais conhecido como laudo de vistoria) e
classificação fundiária do imóvel rural para fins de desapropriação para reforma agrária, elegendo
caso concreto em que a interpretação do conceito foi fundamental para a orientação da
Administração Pública no sentido de agir dentro da legalidade e da autonomia científica do direito
agrário.
2
Enquanto o direito civil do Código de 1916 buscava manter o equilíbrio entre as
partes e zelava para que predominasse a autonomia da vontade dos contratantes, o direito agrário já
impunha limitações a esta liberdade. Enquanto aquele direito civil zelava pela lógica igualitária
(baseada na igualdade formal), o direito agrário já zelava pela proteção do interesse dos mais fracos
– social e economicamente.
O Código Civil revogado tratava das normas destinadas ao Direito Agrário de forma
deficiente, em especial no que tange aos contratos de parceria pecuária e arrendamento. Deixava o
trabalhador do campo à mercê da própria sorte e, em razão disso, era comum o seu prejuízo nas
relações negociais.3
A dimensão social do direito agrário é o que o diferenciava do direito civil anterior,
antes deste se tornar um verdadeiro direito civil constitucional com o advento do Código Civil de
20024.
3
Por outro lado, há o imóvel rústico não agrário, a exemplo dos campos de treinamento militares. O
ideal é interpretar a expressão prédio rústico como prédio via de regra rústico, para uma correta
assimilação das novas realidades agrárias.
4
No entanto, o art. 4º, I, do Estatuto da Terra (Lei nº 4.504/64), deixa em segundo o
plano o critério localização para definir imóvel rural, colocando em evidência a forma de
exploração extrativa agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de
valorização, quer através da iniciativa privada. Eis o teor do dispositivo:
I - "Imóvel Rural", o prédio rústico, de área contínua qualquer que seja a sua localização
que se destina à exploração extrativa agrícola, pecuária ou agro-industrial, quer através de
planos públicos de valorização, quer através de iniciativa privada; (grifamos)
Nesse sentido, o acórdão seguinte da lavra da Ministra Denise Arruda deixa clara a
posição da Primeira Seção do STJ de que a classificação do imóvel como urbano ou rural independe
de sua localização na respectiva zona, mas sim da forma de vocação econômica, o que significa
dizer que um imóvel, ainda que situado em zona urbana, pode ter natureza rural em face de sua
destinação. Confira-se:
5
1. Não se conhece do recurso especial quanto a questão federal não prequestionada no
acórdão recorrido (Súmulas n. 282 e 356/STF).
2. Ao disciplinar o fato gerador do imposto sobre a propriedade imóvel e definir
competências, optou o legislador federal, num primeiro momento, pelo estabelecimento de
critério topográfico, de sorte que, localizado o imóvel na área urbana do município, incidiria
o IPTU, imposto de competência municipal; estando fora dela, seria o caso do ITR, de
competência da União.
3. O Decreto-Lei n. 57/66, recebido pela Constituição de 1967 como lei complementar,
por versar normas gerais de direito tributário, particularmente sobre o ITR, abrandou
o princípio da localização do imóvel, consolidando a prevalência do critério da
destinação econômica. O referido diploma legal permanece em vigor, sobretudo
porque, alçado à condição de lei complementar, não poderia ser atingido pela
revogação prescrita na forma do art. 12 da Lei n. 5.868/72. (grifamos)
4. O ITR não incide somente sobre os imóveis localizados na zona rural do município, mas
também sobre aqueles que, situados na área urbana, são comprovadamente utilizados em
exploração extrativa, vegetal, pecuária ou agroindustrial.
5. Recurso especial a que se nega provimento. (Segunda Turma, DJ de 27/9/2004)
Portanto, “não incide IPTU, mas ITR, sobre imóvel localizado na área urbana do
Município, desde que comprovadamente utilizado em exploração extrativa, vegetal, agrícola,
pecuária ou agroindustrial (art. 15 do DL 57/1966)” (REsp 1112646/SP, Rel. Min. Herman
Benjamin, Primeira Seção, DJ de 28.8.2009).
No mesmo sentido foi o julgado da lavra da Min. Denise Arruda, ao afirmar que a
incidência de IPTU ou ITR sobre o imóvel vai depender da destinação econômica que lhe é
empregada:
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em zona urbana ou rural, seja para fins de desapropriação e pagamento da indenização em metro
quadrado ou hectare, seja para fins tributários de incidência de IPTU ou ITR.
“O art. 4º, I, da Lei nº 8.629/93 sub examen também reprisou o conceito de continuidade do imóvel
rural previsto no Estatuto da Terra.
Por ‘área contínua’, entende-se a continuidade da exploração econômica exercida pelo titular, a
continuidade do empreendimento, da utilidade econômica extraída do bem, e não apenas
7
continuidade do imóvel sob aspecto puramente físico, material, de indivisibilidade do bem.
(grifamos)
A palavra ‘contínuo’, aqui, tem um sentido que transcende todos os sentidos apontados. É a
utilitas da área, isto é, deve haver continuidade na utilidade do imóvel, embora haja
interrupção por acidente, por força maior, por lei da natureza ou por fato do homem. Há
unidade econômica na exploração do prédio rústico. A vantagem é econômica e não física,
como aparenta a expressão legal. Se a propriedade é dividida em duas partes por uma estrada
ou por um rio, embora não haja continuidade no espaço, há continuidade econômica, desde
que seja explorada convenientemente por seu proprietário. É o proveito, a produtividade, a
utilidade que se exige da continuidade da área que constitui o imóvel rural.10
8
4. Aplicação do conceito de imóvel rural e conseqüências para caso concreto
9
Coordenador-Geral Agrário, Dr. Bruno Rodrigues Arruda e Silva, manifestado no
Despacho/PGF/PFE/INCRA/SR-03/Nº196/2008 (Processo nº 54140.001331/2006-95):
Na verdade, o conceito de imóvel rural, para o Direito Agrário, já foi sedimentado em várias
decisões do Supremo Tribunal Federal e sua interpretação não comporta os estreitos limites
propostos na análise supramencionada.
Isto porque o Excelso Pretório, ao contrário do que pretende o parecer técnico referenciado,
distinguiu os conceitos de imóvel e de propriedade rural. O imóvel rural está associado à
noção de unidade de exploração econômica voltada ao desenvolvimento de atividades
agrárias, podendo ser formado por uma ou mais propriedades rurais. A propriedade
rural, esta sim está relacionada à matrícula única definida. O imóvel pode ser formado por
mais de uma matrícula, inclusive de proprietários diferentes, desde que digam respeito a
áreas contínuas e contíguas que estejam exploradas de forma única. (grifamos)
Com efeito, a área técnica afirmara tratar-se de áreas não contíguas, mas que
possuem a mesma forma de exploração econômica e pertencem ao mesmo proprietário, informando
que as áreas de cinco Fazendas, tendo a rodovia Estadual TO nº 477 como referência, estão
distantes aproximadamente da BR 040, que liga Natividade – Almas – Dianópolis, em 0,0 km,
20km, 15km, 50km e 70km, respectivamente.
5. Conclusões
10
O direito agrário é dotado de autonomia científica em relação a outros ramos do
direito e inclusive do direito civil. Antes de 2002, essa diferença era maior, haja vista que a
propriedade regida pelo Código Civil de 1916 não era condicionada ao cumprimento do bem-estar
social, sendo dotada de proteção ao direito individual do proprietário e predominava o princípio da
autonomia da vontade das partes. Com o advento do Código Civil de 2002, eis que surge o direito
civil constitucional, pelo qual a propriedade privada deve ser compreendida a partir da legalidade
constitucional, o que significa afirmar a existência de novo conteúdo, tendo a função social como
condicionante, fato que aproxima o direito civil do direito agrário, considerado este último como
direito eminentemente social.
Porém, o direito agrário não perdeu a sua autonomia e esta pode ser verificada em
especial quando da aplicação do conceito de imóvel rural aqui brevemente estudado. Conclui-se que
este conceito não se confunde com o de propriedade rural, de forma que várias propriedades rurais,
com matrículas e proprietários diferentes, mas em situação de continuidade econômica nos termos
explicados no presente trabalho, podem configurar um único imóvel rural para fins de classificação
fundiária em pequena, média ou grande propriedade improdutiva e suscetibilidade à desapropriação
para reforma agrária, entendimento ratificado pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
6. Referências Bibliográficas
BORGES, Antonino Moura. Curso Completo de Direito Agrário. EDIJUR, 3ª Edição, São Paulo,
2009.
Brasil. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Procuradoria Federal Especializada
junto ao INCRA. Lei 8.629/93 comentada por Procuradores Federais: uma contribuição da
PFE/Incra para o fortalecimento da reforma agrária e do direito agrário autônomo/Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Procuradoria Federal Especializada junto ao Incra.
Brasília: INCRA, 2011
11
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil – Teoria Geral, 6ª edição, Ed.
Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007.
ROCHA, Ibraim, et. al. Manual de Direito Agrário Constitucional: lições de direito agroambiental.
Belo Horizonte: Fórum, 2010.
ROCHA, Olavo Acyr de Lima. A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992.
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário. Curitiba, Juruá, 2008.
OPTIZ, Oswaldo e Silvia. Tratado de direito agrário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1983, v. 1.
12
1
NOTAS
ROCHA, Ibraim, et. al. Manual de Direito Agrário Constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte:
Fórum, 2010, p. 29.
2
A Emenda Constitucional nº 10/64 serviu de lastro para a Lei nº 4.504/64, a qual instituiu o Estatuto da Terra, que
constitui o diploma basilar do direito agrário brasileiro.
3
BORGES, Antonino Moura. Curso Completo de Direito Agrário. EDIJUR, 3ª Edição, São Paulo, 2009, p. 86.
4
Com o advento do Código Civil de 2002, que constitui o marco do direito civil constitucional, a propriedade privada deve
ser compreendida a partir da legalidade constitucional, especialmente da regra dos arts. 5º e 170, significando afirmar a
existência de novo conteúdo, afirmado pela função social como motor de impulsão. Ou seja, só há propriedade privada se
atendida a função social. Difere, pois, de afirmar que a Lex Mater apenas teria imposto limites externos (a função social) à
propriedade privada, que se manteria com o mesmo conteúdo. Exatamente com esse espírito, Aldemiro Rezende Dantas
Junior, eminente civilista amazonense, esclarece com precisão: “a função social não é apenas um limite do direito de
propriedade, mas integra o próprio conteúdo desse direito”.(FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Direito
Civil – Teoria Geral, 6ª edição, Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2007, pp. 25/26).
5
A desapropriação no direito agrário. São Paulo: Atlas, 1992, p. 80.
6
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário. Curitiba, Juruá, 2008, p. 48.
7
Apud REZEK, Gustavo Elias Kallás. Op. Cit., p. 48.
8
REZEK, Gustavo Elias Kallás. Op. Cit., p. 53. No entanto, é oportuno destacar a opinião do autor, para quem a
continuidade econômica deve ser seguida pela proximidade física das áreas. A lei agrária ameniza o conceito da
continuidade física do direito civil, mas não o despreza por completo. Deve-se analisar caso a caso, razão pela qual adota a
expressão continuidade físico-econômica, que reflete a necessidade de continuidade econômica agregada à proximidade
física entre as áreas passíveis de exploração.
9
Tratado de direito agrário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1983, v. 1, p. 43.
10
Lei 8.629/93 comentada por Procuradores Federais: uma contribuição da PFE/Incra para o fortalecimento da reforma
agrária e do direito agrário autônomo/Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, Procuradoria Federal
Especializada junto ao Incra. Brasília: INCRA, 2011, pp. 65/66.
11
O conceito de imóvel rural do art. 4º, I, do Estatuto da Terra contempla a unidade da exploração econômica do prédio
rústico, distanciando-se da noção de propriedade rural. Precedente (MS 24.488, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 3-6-2005.) O
registro público prevalece nos estritos termos de seu conteúdo, revestido de presunção iuris tantum. Não se pode tomar cada
parte ideal do condomínio, averbada no registro imobiliário de forma abstrata, como propriedade distinta, para fins de
reforma agrária. Precedentes (MS 22.591, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 14-11-2003 e MS 21.919, Rel. Min. Celso de
Mello, DJ de 6-6-1997.)” (MS 24.573, Rel. p/ o ac. Min. Eros Grau, julgamento em 12-6-2006, Plenário, DJ de 15-12-
2006.) No mesmo sentido: MS 24.294, Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 24-2-2011,
Plenário, Informativo 617; MS 26.129, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 14-6-2007, Plenário, DJ de 24-8-2007.
12
Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:
I - a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;
13
Processo Administrativo nº 54.400.000821/2010-42. Ementa do PARECER Nº 94/2011/CGA/PFE/INCRA (JFC):
GLEBAS “FAZENDA BOM DESCANSO E OUTRAS”; “FAZENDA ORATÓRIA E OUTRAS”; “FAZENDA
GARRAFAS”; “FAZENDA LOTE 6 DO LOTEAMENTO PEIXINHO” E “FAZENDA LOTEAMENTO MARIA DA
SERRA”. Município de Almas/TO. Proposta de expedição de decreto que declara imóvel rural de interesse social, para fins
de reforma agrária. I. Informação técnica de que todas as cinco glebas, com várias matrículas e um único proprietário,
contemplam a mesma forma de exploração econômica, a pecuária, com um centro administrativo único que atua em todas
elas. II. Por ‘área contínua’, entende-se a continuidade da exploração econômica exercida pelo titular, a continuidade do
empreendimento, da utilidade econômica extraída do bem, e não apenas continuidade do imóvel sob aspecto puramente
físico, material, de indivisibilidade do bem. III. Possibilidade jurídica de desapropriação de imóvel para fins de reforma
agrária inserido em Unidade de Conservação de Proteção Integral, considerando a caducidade do decreto que declara a área
como de utilidade pública. Informação a ser ratificada pelo órgão gestor da UC, a saber, o ICMBio. IV. Questões de
licenciamento ambiental que deverão ser submetidas à apreciação do ICMBio e do OEMA, em face da Resolução
CONAMA nº 428/2010. V. Portaria Conjunta INCRA/ICMBio/nº 04, de 25 de março de 2010. Possibilidade de concessão
de direito real de uso de área de domínio do Incra inserida em Unidade de Conservação Federal ao ICMBio. VI. Parecer
pela restituição dos autos à SR-26/TO, com a sugestão de que seja elaborado um único Laudo Agronômico de Fiscalização.