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R ev. B ra sile ira d e L in g ü ístic a A p licad a, v .3, n .

l , 5 7 -1 8 4 , 20 0 3 57

O desenvolvimento do senso crítico no


exercido de identificação e escolha de
argumentos
Elisabeth Ramos da Silva
U niversidade de Taubaté

O desenvolvim ento do senso crítico é um dos principais objetivos


presen tes nos Parâm etros C urriculares N acionais, j á que neles se
to rn a c lara a intençã o de p r o m o v e r um e n sin o v o lta d o p a r a a
form a ção de cidadãos. A lém disso, o trabalho com a arg um entação
é c o n s i d e r a d o f a to r r e le v a n t e p a ra o e x e rc íc io de c id a d a n ia .
A c reditam os que a prática relativa à identificação ou seleção de
a rg u m e n to s pode ser um a e x c ele n te o p o rtu n id a d e p ara o
d ese nvo lvim ento do senso crítico, desde que o p ro fesso r possua
alg u n s re fe re n c ia is te ó ric o s so b re o a s s u n to e e m p r e g u e u m a
m e to d o lo g ia adequada. A ssim sendo, o objetivo deste trab alh o é
o fe rec er esc la rec im e n tos teóricos e sugestões p ráticas de com o
d e s e n v o l v e r a c a p a c i d a d e c r í t i c a do a l u n o n a e s c o l h a ou
identificação de argum entos na produção de textos.

T h e Critical thinking d ev elo pm en t is one o f the m ain objectives


p resen t in the N ational C urriculum Param eters, as it is clear their
intention of prom oting teaching which is directed to the construction
o f citizens. M oreover, the w o rk with argum entation is considered
an im p ortant factor in the exercise o f citizenship. We b eliev e that
the practice related to the identification or selection o f argum ents
m ay be an excellent opportunity for the d evelo pm en t o f critical
sense, if the teacher has som e theoretical k n o w le d g e abo ut the
su bject and uses an adequate m ethodology. Thus, T he o bjective o f
th is p a p e r is to o ffe r t h e o r e t ic a l e x p l a n a t io n s a n d p r a c tic a l
sugg estions for the d ev elo pm en t the studen ts’ critical cap acity on
argum ents choice or identification in text production.
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Introdução

A escola atual alm eja oferecer um a educação com prom issada com
os m últiplos aspectos da vida humana, os quais envolvem não só os
problem as sócio-econômicos, mas tam bém os fatores éticos e afetivos,
bem com o os anseios existenciais quanto ao sentido da vida. Esse
com prom isso se torna evidente na “C arta de Transdisciplinaridade”
(F reitas et al., 20 0 0 ), cujo co n teú d o anun cia um novo m odo de
conhecim ento e, conseqüentem ente, de educação. Trata-se, segundo
Nicolescu (2000, p. 150), de “aprender a conhecer”, o que significa ser
capaz de “estabelecer pontes - entre os diferentes saberes, entre estes
saberes e seus significados para nossa vida cotidiana, entre estes saberes
e significados e nossas capacidades interiores.”
Tam bém os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) enfatizam,
entre os objetivos do ensino, levar o aluno a “posicionar-se de m aneira
crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais...” (
Brasil, 1998, p.7). Tais considerações justificam nosso empenho em tornar
o desenvolvimento do senso crítico um dos objetivos principais no ensino
da língua materna. Por isso, realizamos um a pesquisa (Silva, 2000) cujo
intuito era evidenciar que é possível desenvolver o senso crítico dos
alunos nas aulas de língua portuguesa destinadas à produção de gêneros
discursivos que dem andam argumentação, desde que o professor adquira
os devidos referenciais teóricos e estabeleça estratégias específicas para
esse fim. M ediante um a proposta integrada com diversas dimensões do
co n h ecim en to e de u m a m eto d o lo g ia adequada, d escrita adiante,
verificam os que os alunos foram capazes de produzir textos mais críticos
e criativos. E, de fato, segundo Lipman (1995):
Se o pen sa m en to crítico p o d e p roduzir uma
m elhoria na educação, será porque aumenta a
quantidade e a qualidade do significado que os
alunos retiram daquilo que lêem e percebem., e
que expressam através daquilo que escrevem e
dizem (p J 8 3 J.
Considerando a im portância dos novos rumos da educação, este
trabalho apresenta alguns esclarecim entos relativos à natureza do
pensam ento crítico e suas im plicações na produção de textos, bem com o
sugere algum as estratégias didáticas que se revelaram úteis para a
realização de tal objetivo.
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Algumas características do pensamento crítico

Para esclarecerm os no que consiste o desenvolvim ento do senso


crítico, servim o-nos de autores que se consagraram ao “p en sar na
educação” , tais como Lipm an (1995), Tishm an (1999), Carraher (1993),
Raths et al. (1977), entre outros, Esses esclarecim entos são im portantes
porque m uitos professores consideram erroneam ente que “criticar é
encontrar defeitos ou censurar” (Raths et al., 1977, p.26). A ssim sendo,
prom ovem discussões em sala de aula, lim itando-se a ouvir as opiniões
dos alunos, sem lhes dar orientações que efetivam ente corroborem o
desenvolvimento da capacidade crítica. O que se vê, na maioria das vezes,
é uma discussão acalorada, em que cada um tenta im prim ir o seu próprio
ponto de vista, sem atentar nos juízos alheios.
A inda segundo Raths et al. (1977), a crítica é um a atividade do
p e n s a m e n to q u e e n v o lv e ju lg a m e n to s , a n á lis e s , a v a lia ç õ e s ,
estabelecim ento de relações, m ediante alguns padrões. Lipm an (1995)
considera que o pensam ento crítico revela-se sobretudo na capacidade
de efetuar “bons julgam entos”, ou seja, não basta ser capaz de em itir
juízos, é preciso “am pliar as conseqüências, identificar as características
da definição e m ostrar a ligação entre estas” (Lipman, 1995, p .171). Em
outros term os, este autor considera que a diferença entre um simples
julgam ento e o “bom julgam ento” consiste no fato de este últim o estar
fundam entado em critérios, ser autocorretivo e sensível ao contexto. Os
critérios são, portanto, fundam entais para diferenciar o pensar crítico do
pensar acrítico. Saber estabelecê-los ou identificá-los no curso de um
julgam ento é um a condição im prescindível para o desenvolvim ento da
capacidade crítica. Para tanto, é preciso estabelecer relações, pois estas
fornecem aos julgam entos sentido e orientação. D e fato, para julgar,
precisam os observar, estabelecer com parações, discernir sem elhanças e
diferenças, orientando-nos por critérios. Tais atividades constituem um
m ecanism o m etodológico de investigação que pode ser exercitado
m ediante a orientação do professor.
É im portante ainda considerar que, por se tratar de um objetivo
referente à educação, nossa intenção é a de que os alunos sejam capazes
de form ular não só juízos de realidade, mas também juízos de valor.
Não basta exercitai' o aluno a fim de que ele possa form ular julgam entos
concernentes a conteúdos de disciplinas ou a aspectos palpáveis do real,
é preciso ainda levã-lo a considerar as questões éticas concernentes à
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v id a hum ana, e isso exige sen sib ilid ad e ao contexto, red u ção de
preconceitos, bem com o ceticism o no tocante às idéias que nos são
impostas. Os julgam entos são orientados por critérios e por valores, sendo
que m uitas vezes um valor torna-se um critério, e vice-versa. Por isso, é
necessário também levar os alunos à reflexão dos valores que lhes servem
de parâm etros em seus juízos.
O s critérios - os instrumentos que favorecem os “bons julgam entos”
- podem ser definidos como “razões” confiáveis e decisivas que justificam
um a classificação ou um a avaliação. Assim , é preciso que o professor
estim ule o aluno a sem pre evidenciar as razões que o levaram a form ular
determ inado julg am en to . N esse sentido, tam bém Tishm an (1999),
C arraher (1993), L ipm an (1995) consideram im prescindível que as
a firm a tiv a s dos alu n o s sejam a c o m p an h ad as das razõ e s q u e as
deflagraram. Avaliai' os critérios utilizados (as razões), a fim de identificar
se eles se mostram adequados, é um exercício fundamental, pois favorece
a autocorreção. Esta últim a consiste na prática de subm eter os próprios
julgam entos e suposições à análise crítica, a fim de investigar em que
m edida eles estão sendo influenciados por preconceitos ou auto-ilusões.
Trata-se de reavaliar continuam ente a pertinência dos critérios que
em basam nossos próprios julgam entos.
Um critério tom a-se pertinente para orientar um julgam ento quando
se m ostra plausível, racional, considerando ainda os aspectos éticos e
psicológicos envolvidos na questão. P or exemplo: muitas vezes, o aluno
julga determ inado evento tendo como critério uma idéia preconceituosa.
Se lhe for dada a oportunidade de investigar a validade do critério
utilizado (uma vez que o preconceito não pode ser concebido com o um
instrum ento racional de avaliação), ele poderá alterar suas conclusões,
libertando-se de juízos precipitados e passionais.
P ara proceder à verificação da plausibilidade que os critérios
ap resen tam , L ipm an (1995) e C arrah er (1993) sugerem te star os
julgam entos através do pluralism o de pontos de vista. Isso significa
o fe re c e r aos alunos várias aleg açõ es que podem o p o r-se a u m a
determ inada conclusão, bem como apresentar e avaliar outros pontos de
vista diversos daquele que está sendo defendido.
E m síntese, levar o aluno a identificar e a estabelecer critérios
subjacentes às afirm ações do texto, seja na leitura, seja na escrita, é,
pois, um exercício valiosíssimo para o desenvolvim ento do senso crítico.
D o m e sm o m odo, o d esen v o lv im en to do senso crítico in te rfe re
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s ig n ific a tiv a m e n te na in te rp re ta ç ã o e esco lh a dos arg u m e n to s,


colaborando sensivelm ente para a leitura e a escrita. A lém disso, a
reflexão crítica é fundamental na vida cotidiana e nas m últiplas escolhas
que fazem os, inclusive as de caráter ético e político. A ssim sendo,
acreditam os que o professor deva estar atento aos procedim entos que
adotará para desenvolver a capacidade crítica dos alunos. E o prim eiro
passo para isso consiste em adquirir inform ações sobre o assunto, a fim
de unir a teoria à prática.

O papel dos critérios na argumentação

Segundo Koch (1987, p. 19), argum entar configura-se com o o ato


lingüístico fundamental: “Como ser dotado de razão e vontade, o homem,
constantem ente, avalia, julga, critica, isto é, form a juízos de valor” .
M ediante o discurso, “tenta influir sobre o com portam ento do outro ou
fazer com que compartilhe determinadas de suas opiniões” . Para a autora,
a seleção das idéias que deverão ser expostas no texto já im plica um a
opção. P o r isso, “Tam bém nos tex to s den o m in ad o s n a rra tiv o s e
descritivos, a argumentatividade se faz presente em m aior ou m enor
grau” (K o ch ,1987, p .20). Isso significa que, seja qual for o gênero
discursivo, estaremos argumentando sempre que o intuito for influenciar
nossos interlocutores. Assim sendo, pode-se dizer que um a história, uma
carta, um a propaganda com ercial, entre outros gêneros discursivos,
apresentam argumentos, de form a im plícita ou explícita, em favor de
um ponto de vista.
Por sua vez, Lipman (1995, p. 183) afirma que: “É o bom julgam ento
que caracteriza a interpretação profunda de um texto escrito, a redação
equilibrada e coerente, a com preensão lúcida daquilo que ouvim os e o
argum ento persuasivo.” Tais afirm ações sinalizam a im portância do
julgam ento e, conseqüentemente, da utilização de critérios adequados
na produção de textos argumentativos, já que, com o m encionam os, o
critério é um a razão decisiva (um a justificativa) que orienta nossas
determ inações e escolhas e que nos faz aderir a determ inados pontos de
vista.
D e fato, para provocar a “adesão dos espíritos” (Perelm an &
Olbrechts-Tyteca, 1996), utilizamos vários recursos retóricos. Entre eles,
revelando-se como um a das principais características da argumentação,
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está o recurso de justificar as afirmações presentes no discurso; pois,


por meio da exposição das razões que sustentam um a assertiva, é possível
evidenciar “o valor de verdade” que elas apresentam. N esse sentido, se
o critério pode ser entendido como um a razão decisiva na orientação de
um julgam ento, pode-se dizer que expor os critérios (as razões) que
orientaram nossas afirmações já constitui um a forma eficaz de argumentar
sobre um determ inado ponto de vista. P or sua vez, saber identificar e
avaliar a plausibilidade das razões que sustentam um a proposição
significa proceder a uma leitura crítica. Som ente dessa form a é possível
cultivar o necessário ceticism o diante de afirm ações que ainda não foram
exam inadas à luz da razão. E isso que identifica o leitor crítico daquele
que adere instantaneam ente a qualquer idéia alheia. Este último muitas
vezes não é sequer capaz de apontar as razões que o fizeram defender
determ inado ponto de vista. E, com o afirm a Lipm an (1995), sem
discernim ento das justificativas que nos levaram a aceitar determinadas
idéias, não há o devido exercício da capacidade crítica.
Cabe lem brar que, além de estabelecer ou identificar critérios, é
preciso in stitu ir um a hierarquia entre eles, segundo a adequação, a
pertinência e a relevância que apresentam em relação à tese que se
pretende defender. Caso contrário, as justificativas poderão ser apenas
reflexos de indignação, de auto-ilusões, de concepções particularistas,
as quais, p o r não revelarem consistência lógica, certam ente serão
inadequadas à defesa de um determinado ponto de vista.
Se o aluno for capaz de discernir as razões que fundam entam as
afirmativas presentes no texto, poderá investigar o valor de verdade que
elas apresentam e, conseqüentemente, fará julgam entos mais fidedignos.
Além disso, é somente m ediante o exercício da capacidade crítica que
ele poderá opor-se ao “discurso do senso com um ” , o qual, segundo
Àbreu (2000, p .3 1), “tem um poder enorme de dar sentido à vida cotidiana
e m anter o status quo vigente, mas tende a ser, ao m esm o tem po,
retrógrado e m aniqueísta” . Saber posicionar-se objetivam ente diante
das idéias veiculadas pelo senso comum, estabelecendo um ponto de
vista próprio, é um dos principais objetivos da educação.
N esse sentido, os objetivos gerais de língua portuguesa descritos
nos PCN tam bém contem plam o desenvolvim ento da capacidade crítica
quando a firm am que a e sc o la d ev erá o rg a n iz a r a tiv id a d e s que
possibilitem ao aluno, entre outros itens:
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analisar criticamente os diferentes discursos, inclusive o próprio,


d e s e n v o lv e n d o a c a p a c id a d e d e a v a lia ç ã o d o s te x to s :
contrapondo sua interpretação da realidade a diferentes opiniões;
(...) id e n tif ic a n d o e re p e n s a n d o ju íz o s de v a lo r ta n to
socioideológicos (preconceituosos ou não) quanto histórico-
culturais... (Brasil, 1998, p.33).

Em síntese, saber identificar os vários pontos de vista presentes


nos textos pressupõe saber discernir as razões que os fundam entam .
Somente dessa forma, o aluno poderá submetê-los à crítica e optar por
um ponto de vista que lhe pareça mais adequado. A creditam os que este
seja um cam in h o seguro p ara o aluno d esen v o lv er a cap a cid ad e
“construtiva e transform adora” (B rasil,1998, p.41), tão necessária ao
exercício de cidadania.

Sugestões práticas

Vimos que Lipman (1995) aconselha oferecer ao aluno pontos de


vista diversos sobre uma mesma questão, a fim de evidenciar os múltiplos
aspectos que ela apresenta. D a m esm a form a, os PCN, ao abordarem o
trabalho desenvolvido a partir dos temas transversais (questões sociais
contem porâneas), afirm am que tal prática possibilita, entre outros itens:
“ a diversidade dos pontos de v ista e as form as de enunciá-los; a
convivência com outras posições ideológicas, perm itindo o exercício
dem ocrático” (Brasil, 1998, p.40).
P ara incentivar a reflexão acerca dos argumentos e das razões que
os sustentam , é fundam ental a prática do diálogo. No entanto, esta deve
incluir procedim entos m etodológicos de investigação, a fim de que o
aluno p o ssa d esen v o lv e r sua cap acid ad e crítica, estab e lece n d o e
identificando critérios, prom ovendo a autocorreção quanto a idéias
preconceituosas. Caso contrário, como já foi dito, em vez de ponderar
sobre os aspectos polêmicos de um determinado tema, o aluno poderá
em penhar-se apenas em vencer a discussão, o que não resultará em reais
benefícios para um a argumentação mais consistente.
Para que o aluno possa inteirar-se de outros pontos de vista relativos
a uma determ inada questão, é im portante que o professor saiba relacionai'
um texto a outros textos, que representem outras vozes, outras ideologias.
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T ra ta -se , m uitas v ezes, de e v id en cia r, seg u n d o F io rin (1 9 9 4 ), a


intertextualidade - “o processo de incorporação de um texto em outro,
seja para produzir o sentido incorporado, seja para transform á-lo.” (p.30)
- ou ainda a interdiscursividade - “o processo em que se incorporam
percursos temáticos e/ou persuasivos figurativos, temas ou figuras de
um discurso em outro.” (p.32) - que os textos apresentam.
N esse sentido, a utilização de paródias constitui um recurso valioso.
Isso porque a paródia é uma “form a de apropriação que, em lugar de
endossar o modelo retomado, rom pe com ele, sutil ou abertam ente”
(Paulino et a l ., 1997, p .36). A paródia, portanto, favorece a apresentação
de pontos de vista divergentes acerca de um mesmo tema. Se o professor
for hábil na identificação de argumentos (muitas vezes subjacentes às
alegorias do texto) e dos critérios que os fundamentam, poderá dar ensejo
a discussões acerca dos pontos de vista dos autores. A partir da apreensão
dos argumentos que sustentam as idéias divergentes, o aluno poderá compor
um novo texto, que evidencie seus próprios pontos de vista sobre o assunto.
A seguir, apresentaremos dois exem plos de trabalhos desenvolvidos
m ediante a leitura de paródias de fábulas conhecidas.

Antigas fábulas: novas leituras

P ara a realização das atividades, os alunos leram a versão original


da fábula “A form iga e a cigarra” de Esopo. Como em qualquer outra
fábula, a moral da história representa um julgam ento. Os alunos devem
ser estim ulados a identificar os critérios. N a fábula em questão, vemos
que o trabalho (representado pela formiga) recebe uma valoração positiva,
enquanto que o ócio (representado pela cigarra), um a valoração negativa.
A ssim sendo, torna-se justo que a cigarra seja punida e que som ente a
form iga seja recom pensada. O critério que orientou tal julgam ento
ap resen ta um caráter axiológico, um ju íz o de valor, o que é um a
característica comum nas fábulas. N essa história, somente quem trabalha
deve ser recom pensado. Além disso, é preciso ainda evidenciar que o
trabalho realizado pela form iga resulta em bens m ateriais, concretos (o
acúm ulo de alimentos); daí podermos dizer que se trata de uma valoração
em conform idade com o ideário do capitalism o.
Feitas tais reflexões, os alunos leram “ A cigarra e as form igas” de
M onteiro Lobato (1960, p .11). A fábula foi dividida em duas partes: “A
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form iga boa” e “A formiga m á” . Em bora o desenvolvimento da narrativa


seja basicam ente o mesmo, o desfecho de cada um a das partes apresenta
considerações capazes de modificar radicalm ente o sentido original. A
m oral da história revela um julgam ento orientado por outros critérios.
N a prim eira parte da história, intitulada “A form iga boa” , a cigarra
não m orre de frio e fome como sucedia na trama original. A formiga
entende que o trabalho da cigarra era cantar, por isso acredita que esta
tem direito a alimento e guarida. N ão se trata apenas de solidariedade,
m as sim de valorização de um ou tro tipo de trabalho, que não é
m aterialm ente lucrativo. O canto da cigarra beneficiava inclusive a tarefa
braçal das formigas, tornando-a mais leve.
N a segunda parte da história, intitulada “A form iga m á” , o trabalho
da cigarra não é reconhecido, e ela falece ao relento, tal como ocorria na
fábula original. Porém, não se trata de justiça, mas sim de ganância,
um a vez que M onteiro Lobato classifica a formiga má como usurária e
avarenta. O autor conclui a história afirmando que, com a m orte da
cig arra, o m undo to rn ara-se m ais triste, pois o can to da cig arra
em belezava a vida: “Os artistas - poetas, pintores, m úsicos - são as
cigarras da humanidade. ” (M onteiro Lobato, 1960, p. 14)
C om o vemos, os critérios que norteiam os julgam entos da fábula
de M onteiro Lobato diferem radicalm ente quando com parados aos da
fábula original. N a versão lobatiana, o conceito de trabalho não se reduz
aos aspectos materiais, lucrativos, mas dilata-se aos aspectos estéticos e
existenciais. A cigarra é o artista, cujo trabalho é conferir beleza ao
m undo; m erece, po rtan to , ser v alo rizad a. Tal apreço su b v erte as
concepções burguesas referentes ao lucro e ao capital. A crítica à ideologia
capitalista é alegoricam ente exposta, constituindo-se em um a contra-
argum entação à tese defendida na fábula de Esopo.
A partir da leitura dessas histórias e do levantam ento dos critérios
im plícitos nos julgam entos, dos argum entos e contra-argum entos, o
professor poderá sugerir ao aluno a redação de um texto que revele suas
próprias considerações acerca dos conceitos “trabalho” e “arte” , ou ainda
das im plicações ideológicas que tais termos apresentam.
O professor poderá ainda trabalhar com a fábula “A raposa e as
uvas” , cujo texto original é de Esopo. M illôr Fernandes (1963) dá
continuidade à história, subvertendo a moral da fábula. Com o sabemos,
na tram a original, a raposa, por não conseguir apanhar as uvas, desdenha-
as, alegando para si m esm a que elas estão verdes. Há aqui um julgam ento
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(as uvas estão verdes), mas as razões que nortearam esse julgam ento
não são adequadas porque decorrem da frustração, não apresentando,
p o rta n to , a n e c e s s á ria o b je tiv id a d e . S e g u n d o alg u m a s te o ria s
psicológicas, trata-se antes de um a racionalização, um m ecanism o de
ajuste que impede o sofrimento causado pela impossibilidade de realizar
um desejo. E, de fato, a moral da fábula aponta para a falácia da conclusão,
ou seja, as uvas foram consideradas verdes não porque de fato o
estivessem , mas porque eram inacessíveis, o que tornava im possível
realizar o desejo de saboreá-las. D aí a moral: “Quem desdenha quer
com prar”
E m M illôr Fernandes (1963, p .127), o enredo é inicialm ente o
mesm o. Porém, o autor acrescenta novos dados à história, dando a ela
um outro desfecho, o que altera, de form a inusitada, o sentido da narrativa
original. Nesta nova versão, a raposa encontra uma pedra e, com esforço,
consegue finalm ente apanhar as uvas: “ Com avidez colocou na boca
quase o cacho inteiro. E cuspiu. Realm ente as uvas estavam muito verdes.
M O RAL: A fru stra çã o é uma fo rm a cle julgam ento tão boa quanto
qualquer outra”.
Com o vemos, M illôr Fernandes tom a fidedigno o julgamento inicial
(as uvas estavam verdes), alegando, ao contrário do que sugere a fábula
original, que a frustração é uma form a de julgam ento tão boa quanto
outra qualquer. Subentende-se que a frustração induz o indivíduo a
identificar os reais aspectos negativos do objeto desejado. O desejo, ao
contrário, camufla a realidade porque em bota o discernimento. A paródia
de M illôr Fernandes possibilita a reflexão em torno da adequação de
critérios e pode dar ensejo a vários outros temas, os quais poderão ser
sugeridos aos alunos para o exercício da escrita.

Conclusão

O discernimento dos critérios (das razões) subjacentes às afirmações


de um texto, bem com o a reflexão sobre as justificativas que sustentam
a adesão a determinado ponto de vista são exercícios que favorecem
concom itantem ente a produção de textos e o desenvolvimento do senso
crítico. M as isso exige estratégias adequadas, que possibilitem ao aluno
uma metodologia de investigação. Entre elas, está a utilização de paródias,
já que estas rom pem com o sentido do texto original, oferecendo outros
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pontos de vista. A lém disso, é preciso conhecer algumas características


relativas à natureza do senso crítico, a fim de que as leituras, as discussões
e a elaboração de textos possam ser provenientes do exercício da
capacidade crítica. D essa forma, o ensino da língua m aterna poderá
contem plar os objetivos dos PCN, quando sugerem que o aluno seja
capaz de: “questionar a realidade form ulando-se problem as e tratando
de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade,
a intuição, a capacidade de análise crítica...” (Brasil, 1998, p .8).

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