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PARTE II

0 SABER DOS PROFESSORES


EM SUA FORMAÇAO
A partir de certas ideias de Giddens (1987), propomos
que o ensino seja concebido como uma atividade baseada
num modelo de conhecimentos limitados e dotada de uma
consciência profissional parcial mas dinâmica. Ensinar é
perseguir, conscientemente, objetivos intencionais, tomar deci-
sões consequentes e organizar meios e situações para atin-
gi-los (SHAVELSON & STERN, 1981). Nesse sentido, como
qualquer outro profissional, um professor age em função de
ideias, de motivos, de projetos, de objetivos, em suma, de in-
tenções ou de razões das quais ele está “consciente” e que ele
pode geralmente justificar, por exemplo, quando o interro-
gamos sobre sua prática, seus projetos ou suas decisões. Em
suma, pode—se dizer que, de um modo geral, um professor sabe o
quefaz e por que o faz. Esse conhecimento se refere concreta—
mente a comportamentos intencionais dotados de significa-
do para o professor; esse significado pode ser ”verificado”,
de um certo modo, no “discurso" (verbal ou mental) que ele
elabora ou pode elaborar, quando necessário, a respeito de
suas atividades. De acordo com a metodologia empregada
para capta-lo, esse discurso pode assumir diversas formas:
raciocínio prático, encadeamento de informações, relato ex-
plicativo, justificação e racionalização a posteriori, etc. Ele
corresponde àquilo que chamamos aqui de consciência pro-
fissional do professor, ou seja, aquela que se manifesta por
meio de racionalizações e intenções (motivos, objetivos, pre-
meditações, projetos, argumentos, raz ões, explicações, justi-
ficações, etc.) e graças à qual ele pode dizer d iscursivamente por
que e como age. Em resumo, a consciência profissional pare-
ce-nos ser caracterizada pela capacidade de julgamento e,
de maneira mais ampla, de argumentação.
Para atingir essas finalidades pedagógicas inerentes ao
seu trabalho, o professor deve tomar certas decisões em fun-
ção do contexto em que se encontra e das contingências que
o caracterizam (a manutenção da ordem na sala de aula, a
transmissão da matéria, etc.). Ora, tomar decisões é julgar.
Esse julgamento se baseia nos saberes do professor, isto é,
em razões que o levam a fazer esse ou aquele julgamento e a
agir em conformidade com ele. Essa visão do professor, esse
modelo do ator, por mais simplificado que seja, parece-nos

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corresponder, em seus aspectos gerais, ao trabalho do pro-
fessor, e também é suficiente para atender às necessidades
do nosso campo de pesquisa sobre os saberes dos professo—
res. Ele permite, sobretudo, evitar que caiamos nos excessos
do “psicologismo” que marcam há muito tempo a pesquisa
sobre o ensino. Em relação à pesquisa, esse modelo do ator
leva-nos a interessar-nos não pelas representações ”mentais
do professor”, mas por seus juízos tais como podem ser ex-
pressos em proposições, num discurso, etc..

O professor não é um cientista: o espectro


do julgamento
Segundo essa visão, o professor não é um cientista, pois
seu objetivo não é a produção de novos conhecimentos, nem
mesmo o conhecimento das teorias existentes. Os juízos do
professor estão voltados para o agir no contexto e na relação
com o outro, no caso os alunos. Ele não quer conhecer, mas
agir e fazer, e, se procura conhecer, é para melhor agir e fazer.
O professor também não é um cientista pelo fato de os seus
juízos não se reduzirem a juízos empíricos, mas abrangerem
um espectro muito mais amplo de juízos. Esse aspecto pare-
ce-nos fundamental e merece ser discutido.
Como mencionamos anteriormente, os partidários da
concepção argumentativa do saber buscam desenvolver
uma teoria do juízo que exceda os juízos de realidade para
englobar diversos tip os de juízo nos quais estejam presentes
exigências de racionalidade. Noutra ocasião, já discutimos
as implicações desse enfoque recente e muito rico em possi-
bilidades para o estudo do saber e da ação em Educação. Li-
mitemo-nos a algumas considerações básicas sobre esse as-
sunto. A nosso ver, “o saber ensinar na ação" implica um
conjunto de saberes e, portanto, um conjunto de competên—
cias diferenciadas. Van der Maren (1990: 1.024) descreveu
muito bem o contexto característico da ação pedagógica, a
qual requer um vasto leque de competências:
Ela [a situação educativa] define-se através dos
oito aspectos seguintes: (1) uma pessoa (adulta)

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supostamente dotada de saber (2) está regular-
mente em contato (3) com um grupo (4) de pes-
soas (crianças) que se supõe estarem aprendendo
(5), e cuja presença é obrigatória (6), para ensi-
nar-lhes (7) um conteúdo socialmente determina—
do (8) por meio de uma série de decisões tomadas
em situação de urgência.
Ora, para realizar esse trabalho e solucionar as numero-
sas dificuldades por ele ocasionadas através das múltiplas
interações entre esses oito elementos fundamentais, o pro-
fessor deve ser capaz de assimilar uma tradição pedagógica
transformada em hábitos, rotinas e truques do ofício; deve
possuir uma competência cultural proveniente da cultura
comum e dos saberes cotidianos que partilha com seus alu-
nos; deve ser capaz de discutir com eles e de fazer valer o
seu ponto de vista; deve ser capaz de se expressar com uma
certa autenticidade diante de seus alunos; deve ser capaz de
gerir uma classe de maneira estratégica a fim de atingir ob-
jetivos de aprendizagem, ao mesmo tempo em que negocia
o seu papel; deve ser capaz de identificar certos comporta-
mentos e de modifica-los numa certa medida, etc. Em suma,
o “saber ensinar”, do ponto de vista de seus fundamentos
na ação, remete a uma pluralidade de saberes. Essa plurali-
dade de saberes forma, de um certo modo, um “reservató-
rio" onde o professor vai buscar suas certezas, modelos sim-
plificados de realidade, razões, argumentos, motivos, para
validar seus próprios julgamentos em função de sua ação. É
claro que, dentro da própria ação, esses julgamentos podem
ser instantâneos ou parecer originados de uma intuição e
não de um raciocínio; mas o que chamamos de deliberação
não é necessariamente um processo longo e consciente; por
outro lado, o que chamamos de intuição intelectual nos pa-
rece ser o resultado de processos de raciocínio que se toma-
ram rotineiros e implícitos de tanto se repetirem.
Assim, ao agir, o professor é forçado a tomar decisões, a
fazer escolhas, etc., resultantes de julgamentos profissionais
que não se limitam a fatos, isto é, a um saber empírico. Na
realidade, o professor se baseia em Vários tip os de juízo para

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estruturar e orientar sua atividade profissional. Por exem-
plo, ele se baseia com frequência em'valores morais ou em
normas sociais para tomar uma decisão. Aliás, uma grande
parte das práticas disciplinares do professor colocam em
jogo juízos normativos sobre as diferenças entre o que é per-
mitido e o que é proibido. Para alcançar fins pedagógicos, o
professor também se baseia em juízos ligados a tradições es-
colares, pedagógicas e profissionais que ele mesmo assimi-
lou e interiorizou. Finalmente, ele se baseia em sua ”expe-
riência vivida” como fonte viva de sentido a partir da qual o
passado lhe permite esclarecer o presente e antecipar o futu-
ro. Valores, normas, tradições, experiência vivida são elemen-
tos e critérios a partir dos quais o professor faz julgamentos
profissionais. Ora, como se pode constatar, esses diferentes
tipos de juízo não se reduzem ao conhecimento empírico ou
a uma teoria informacional do ensino, e nem por isso são ir-
racionais. De fato, seguir uma norma, respeitar uma tradição,
adotar um valor, agir em função da experiência vivida não
são comportamentos irracionais ou a-racionais, na medida
em que o ator e' capaz de dizer por que adota tais comporta-
mentos.

limites da consciência profissional


Entretanto, é evidente também que os comportamentos
e a consciência do professor possuem várias limitações e
que, por conseguinte, seu próprio saber é limitado. Como
qualquer outro ator humano, o professor sabe o que faz até
um certo ponto, mas não é necessariamente consciente de
tudo o que faz no momento em que o faz. Além disso, tam-
bém nem sempre sabe necessariamente por que age de de-
terminada maneira. Por fim, suas próprias ações têm mui-
tas vezes consequências imprevistas, não intencionais, cuja
existência ele ignora.
Essa questão das consequências não intencionais da ati-
vidade profissional dos professores é da maior importância.
Defato, se os professores sabem o quefazem, como podem reprodu-
zir fenômenos aos quais, no entanto, se opõem conscientemente?
Tal questão é crucial para toda concepção a respeito do sa—

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ber docente e, de maneira mais ampla, da profissão docente.
Ela também representa um elemento capital para toda teo-
ria da educação, pois levanta o problema clássico, que se
tornou uma verdadeira aporia, das relações entre os ”deter-
minismos sociais” e a ”liberdade” dos atores.
Para ilustrar esse problema, basta citar o fracasso esco—
lar, que todos os estudos mostram depender principalmen-
te da origem socioeconômica e cultural dos alunos. Ora,
uma grande parte dos professores defende valores de igual-
dade e de justiça em relação aos alunos, recusando-se a sele-
ciona-los e avalia-los a partir de sua origem socioeconômi-
ca. No entanto, por serem os principais agentes da escola, e
a menos que sua ação seja considerada nula e sem efeito, é
preciso reconhecer, como diria Bourdieu, que os professo—
res “realizam objetivamente uma tal seleção”, levando as-
sim uma multidão de alunos ao fracasso escolar.
Observa-se portanto um corte importante entre as inten-
ções profissionais dos professores e os resultados objetivos
de suas ações. Os exemplos desse tipo poderiam ser multi-
plicados, mas o princípio é o mesmo: a menos que os profes-
sores sejam transformados em seres oniscientes, é preciso
admitir que existe, às vezes, um abismo entre suas boas in-
tenções e o que fazem realmente. Toda ação encerra, poten-
cialmente, consequências não intencionais que escapam à
consciência dos atores e ao seu conhecimento a respeito do
que vai acontecer.
Nessa perspectiva, podemos dizer, baseados em Haber-
mas (1987), que toda atividade social comporta sempre dois
aspectos indissociáveis: um aspecto intencional, que pode
ser estudado levando-se em conta os motivos do ator, seu
discurso, seus objetivos, os significados que atribui à sua
atividade, etc., e um aspecto não intencional, que pode ser
estudado levando-se em conta as regularidades resultantes
dessa ação, através, por exemplo, de estudos descritivos ou
estatísticos, quando se trata da ação de um grupo como o
dos professores. Ora, o que acaba de ser dito em relação à
ação vale também em relação ao conhecimento: o que um

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