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Avaliação e complexidade da ação pedagógica: desafios para avaliar

com o pensamento complexo1 - Reunião San José – Costa Rica/2011


Cleoni Maria Barboza Fernandes2

Refletir quer dizer, ao mesmo tempo: a) pesar, repesar, deixar


descansar, imaginar sob diversos aspectos o problema, a ideia; b) olhar
o seu próprio olhar olhando, refletir-se a si mesmo na reflexão. É
preciso alimentar o conhecimento com a reflexão; é preciso alimentar a
reflexão com o conhecimento.
Edgar Morin

Discutir avaliação é trabalhar em terreno minado por ideologias, valores e


representações. É uma temática complexa que se insere em diferentes dimensões da ação
pedagógica: axiológica, epistemológica, pedagógica/técnica e de estruturas de poder
presentes nessas dimensões que configuram o tecido de relações interpessoais e
pedagógicas no ato de ensinar e de aprender contextualizado.

Na maioria das vezes, a avaliação é trabalhada como um elemento/momento


isolado da ação pedagógica, fora da complexidade que envolve a tarefa educativa, sem
percebermos que ela é consequência de tomada de decisões em outras instâncias e
reveladora de valores e ideologias previamente definidos fora do campo educativo: nas
corporações, nas associações e nas representações socioculturais da sociedade em que
vivemos.

O ato de avaliar, complexo e integrado ao contexto da ação pedagógica, é um ato


de investigar a qualidade do resultado dessa ação. O grande desafio é mudar a lógica
classificatória e centrar esforços para saber se o ato de avaliar tem a qualidade que deveria
ter (Luckesi: 2010).

Nesta perspectiva, fundamento o processo de avaliação como um processo crítico


de percurso da ação/relação pedagógica de ensinar e aprender que pressupõe um
planejamento assentado em outro paradigma, que ouso denominar de paradigma da

1
Texto encomendado para debate no GT de Humanidades y Ciencias Sociales do Proyecto Innova Cesal
– Programa Alfa III.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Pesquisadora do Centro de Estudos de Educação
Superior da Faculdade de Educação/PUCRS. Responsável pela coordenação do desenvolvimento do
Projeto Innova Cesal na PUCRS. cleoni.fernandes@pucrs.br
complexidade (Morin: 2001). Encontro na epistemologia histórica 3 de Bachelard a
relação da pedagogia científica com a prática pedagógica cotidiana, quando ele afirma
que o pensamento complexo é “um pensamento ávido de totalidade” (2000, p.123). Para
Bachelard (1985):

Na realidade não há fenômenos simples; o fenômeno é um tecido de relações. Não há


natureza simples, nem substância simples, porque a substância é uma contextura de
atributos. Não há ideias simples, porque como viu Dupréel, deve ser inserida, para ser
compreendida, num sistema complexo de pensamentos e experiências. A aplicação é
complicação. As ideias simples são hipóteses de trabalho, conceitos de trabalho, que
deverão ser revisadas para receber seu justo papel epistemológico. As ideias simples não
são a base definitiva do conhecimento: aparecerão, por conseguinte, com um outro aspecto
quando forem dispostas numa perspectiva de simplificação a partir das ideias completas.
(p.130).

Há necessidade de um planejamento em aberto, isto é, conectado com a realidade, com


as rupturas e continuidades que se operacionalizarão no percurso da ação pedagógica,
tanto em relação ao conhecimento e suas relações com mundo lá fora, quanto nas relações
pedagógicas professor/aluno/aluno.

Planejamento que não se reduz a um Plano de Ensino engessado na formulação inicial,


nem numa formulação que se eternize ano após ano. Planejamento como ato de escolhas
e decisões em suas finalidades ético-existenciais inseridas no Projeto de Curso/Instituição
e de Sociedade. Planejamento como ideação e ato de organização do conhecimento
curricular, em que a Avaliação seja um ato crítico que comunica ao professor e aos alunos
como está sendo a construção pedagógica do conhecimento, para além de provas e notas.
Não se trata de negá-las, mas de por em relação com a ação pedagógica, priorizando a
concepção do pensamento complexo como base epistemológica/pedagógica do processo
de ensinar e aprender.

Esta compreensão significa que toda ação de pensamento envolve a necessidade de


integrar qualquer evento/informação em um contexto que produza sentido. Nesse sentido,
a avaliação da aprendizagem precisa ser tecida junto com o planejamento do processo de
ensinar e de aprender.

3
Sem adentrar em maior aprofundamento, nesse texto, compreendemos que a epistemologia de Bachelard
supera a epistemologia cartesiana propondo uma pedagogia do pensamento complexo, o que exige a
urgência de reler o simples sob um olhar múltiplo a partir de concepção de complexidade. Complexidade
que envolve a contextualização dos modos de produção do conhecimento científico e suas relações de
movimento de totalidade, tanto em cada área arbitrada, quanto em relação entre as diversas áreas, bem
como envolve a construção pedagógica desse conhecimento sistematizado a ser trabalhado na
Universidade.
Avaliar implica em uma tensão constante entre processo e produto, em estabelecer uma
interação permanente entre ensinar, aprender e avaliar. Avaliação envolve avaliações que
ocorrem cotidianamente na relação professor-aluno, desde o planejamento em aberto
elaborado previamente pelo professor até o contato com os alunos e suas reconstruções
de sentido para conectar realidade desses alunos e o conhecimento a ser trabalhado.

Nessa perspectiva, a avaliação assume um caráter diagnóstico para além do meramente


classificatório, que permite posicionar professor e alunos frente ao processo de ensinar e
de aprender, exigindo cuidados éticos nessa relação, na medida em que ela encaminha
para a classificação ou não desses alunos, atribuindo valores subjacentes aos resultados
finais, sejam eles conceitos ou notas.

Valores estes que incidem sobre os alunos:


• auto-estima pelos valores sociais vigentes na instituição e na sociedade;
• autonomia para buscar outras alternativas de solução e/ou outras reflexões
que fortaleçam o pensamento divergente – condições fundantes para o
desenvolvimento do pensamento complexo;
• compromisso com o próprio processo de aprendizagem;
• aprendizagem da auto-crítica e da crítica educativa;
• equilíbrio entre ação e reflexão das relações com o conhecimento e a
realidade.

Valores que incidem sobre o professor:


• compromisso com o grupo que está sendo avaliado, verificando o que eles
sabem e não o que eles não sabem;
• posição anti-dogmática e decisões democráticas (restituição sistemática
dos trabalhos realizados) – o direito dos alunos frente aos resultados e
posições de professor e de alunos no percurso de ensinar-aprenderavaliar;
• rigor epistemológico e técnico na elaboração dos instrumentos de
avaliação, objetivando clareza de enunciados e de critérios de correção,
bem como favorecendo a produção de sentidos, tanto na relação com o
aprendido, quanto na relação com a realidade problematizada;
• utilização de diversos procedimentos de avaliação: projetos de
aprendizagem; provas com consultas; entrevistas; seminários e, também,
testes padronizados, que assim como diversas estratégias de ensino,
podem atender a diversos estilos cognitivos e níveis de complexidade de
conhecimento.

Uma avaliação que contemple a complexidade das relações com conhecimento é


predominante qualitativa, o que não exclui o quantitativo, mas trabalha com ele e a partir
dele – só se qualifica o que se tem em quantidade, entretanto o foco é qualitativo, pois
exige relações para além da descrição e da resposta única.

[...] A avaliação nesta perspectiva encaminha para o trabalho com o conhecimento


em uma tecitura permanente, na qual o pensamento complexo é um pensamento plural,
que lida com a ordem e a desordem, com a interação, a organização e reorganização. E
que tem como característica principal a “religação, que visa reabrir as fronteiras entre
as disciplinas do conhecimento e promover a intercomunicação entre os compartimentos
estanques do saber, produzidos pelo pensamento fragmentador” (MARIOTTI, 2000, p.
88-89).

Nessa compreensão, o pensamento complexo configura-se como outra concepção


de mundo, conhecimento, ciência e vida que exige processos de análise e de síntese dos
fenômenos e fatos estudados em conexão com o mundo da vida e do trabalho, tanto em
seus modos de produção de conhecimento no passado, quanto na resignificação no
presente.

Acrescento que a Avaliação não fica restrita à possibilidade de medição, ela se


constitui em fonte permanente para ensinar e aprender em sala de aula, tanto para o
professor promover a curiosidade epistemológica – curiosidade intencionada para atrair
atenção dos alunos para operações do pensamento mais elaboradas, quanto para verificar
se os alunos estão acompanhando ou não sua comunicação didática de conhecimentos,
assim como a relação com a realidade sociohistórica e cultural em que estão inseridos.

Retomo em artigo anterior (FERNANDES, 2010), a discussão sobre competência


e pensamento complexo e explicito a avaliação como um processo em tecitura conjunta.

“Destaco algumas habilidades como operações com pensamento4 complexo, que


precisam estar presentes na Avaliação, favorecendo processos de análise e de síntese mais
elaborados, por que procuram uma religação constante e assumem um desafio para
ultrapassar a simplificação dos fatos, ou como afirma Bachelard (1985) “Na realidade
não há fenômenos simples; o fenômeno é um tecido de relações”:

4
Apoiada em Raths et al (1977) e Anastasiou e Alves (2004), destaque para algumas operações que foram
selecionadas em termos de previsão.
▪ Processo de análise: decomposição, recomposição de fatos,
fenômenos e processos de comparação por meio de hipóteses,
interrogantes, aproximações e distanciamentos teóricos tendo
como referência o contexto em que está o objeto em estudo;
▪ Observação: procedimento que exige construir um referencial
teórico que trabalhe o objeto, sem a visão da neutralidade, mas
consciente da subjetividade nele envolvida, para além do caráter
opinativo. Envolve um preparo prévio com objetivos definidos,
critérios prévios e uma ética relacional construída no cotidiano das
relações professor-aluno-aluno-realidade. Aprendizagem do
registro sistemático que pode ser comparada, sintetizada e
compartilhada;
▪ Obtenção e organização dos dados: exige um trabalho minucioso
de preparação e independência, fortalecendo ao mesmo tempo,
protagonismo e compartilhamento de dúvidas, o que fortalece o
sentimento de pertença e o espírito de equipe. Requer observação,
identificação, comparação, análise, síntese, interpretação, crítica,
imaginação, suposições, dentre outras habilidades;
▪ Aplicação de fatos e princípios a novas situações: envolve a
construção pedagógica do conhecimento que exige a re-
significação dos fatos e princípios sem o caráter prescritivo e de
simples aplicação, mas contextualizados na historicidade do
espaço-tempo em que foram produzidos na tentativa de
compreender as relações tecidas junto, que configuram um
pensamento complexo para compreensão do próprio
conhecimento produzido e suas relações com as teorias estudadas.
Fundamental exercício acadêmico para Projetos de Prática, sua
significação no percurso curricular e na carreira profissional, tanto
em temos de decisões, quanto em termos de formação de atitudes
investigativas.

Voltando à esta discussão, trago de Fernandes (1995) uma observação importante


para evitarmos a síntese como um resumo – que em muitas situações é necessário:
a necessidade de experimentar a síntese, não como uma habilidade de reproduzir
organizadamente os conteúdos, tendo um parâmetro de quantificar as
informações assimiladas como capacidade desejável, mas sim como um processo
de elaboração dialeticamente imbricado com o processo de análise. Isto implica
em decompor e recompor argumentos, estabelecer relações e elaborar
discrepâncias de dados e fatos, produzindo um certo nível de interpretação.
(p.12).

Assim, a avaliação se fundamenta nas concepções de ensinar e aprender, que nessa


discussão, procura fundamentar-se no paradigma da complexidade, envolvendo dois
princípios básicos: a visibilidade e a partilha dos critérios de avaliação por parte do
professor com seus alunos – democratização das relações; e ao compromisso com a justiça
– retomada dos processos de ensinar, de aprender e de avaliar, observando critérios
partilhados, acesso aos resultados e aos processos vivenciados em sala de aula, para um
diagnóstico e uma tomada de decisão mais equilibrada.

Ao observar estes princípios, em uma perspectiva de pensamento complexo, a


avaliação precisa se constituir em uma avaliação emancipatória (Saul: 1995)
configurando um processo de observação, análise e síntese crítica de um dado
conhecimento contextualizado em uma dada realidade, visando a apropriação e
transformação desse conhecimento e desse sujeito.

Sem a pretensão de oferecer soluções, essa contribuição situa-se na


problematização do tema e de encaminhamentos possíveis de operacionalização,
observando o contexto e as arquiteturas do desejo – que representamos como a
configuração inconsciente do sujeito – afetos, preferências, rejeições com o próprio
conhecimento, recriando significados.

BIBLIOGRAFIA:
ANASTASIOU, Léa Camargo; ALVES, Leonir. (2004). 3ed. Processos de ensinagem:
pressupostos de trabalho em aula. Joinville: Univille.
BACHELARD, Gaston. (1985). O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
FERNANDES, Cleoni. (1995). Objetivos de ensino e sua articulação com “formas
inteligentes” de aprender no cotidiano da Escola. In: Finalidades e Objetivos da
Educação. Módulo 6. Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da
Fonseca. Rio de Janeiro.
FERNANDES, Cleoni. (1999). Sala de aula universitária – ruptura, memória educativa,
territorialidade – o desafio da construção pedagógica do conhecimento. Tese de
Doutorado. PPGEdu,/FACED/UFRGS.
FERNANDES, Cleoni. (2010). Texto para discussão no Forum Innova Cesal – reunião
Lisboa.
Luckesi, Cipriano. Avaliação da Aprendizagem Escolar (2000) 2ed. São Paulo: Cortez.
_____________Aprendizagem: Aquisição de habilidades
http://luckesi.blog.terra.com.br/2010/06/19/perguntas-e-respostas
MARIOTTI, Humberto. (2000). As paixões do ego: complexidade, política e
solidariedade. São Paulo: Palas Athena.
MORIN, Edgar.(2001). Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget.
RATHS, Louis et all. (1977). Ensinar a pensar. São Paulo: EPU.
Saul, Ana Maria. (1995). 3ed. Avaliação Emancipatória: desafio à teoria e à prática
de avaliação e reformulação de currículo. São Paulo: Cortez.

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