Você está na página 1de 22

O CPC 2015 E SEUS REFLEXOS NO PROCESSO

ADMINISTRATIVO TRIBUTÁRIO
Diego Diniz Ribeiro1

Introdução: o CPC 2015 como instrumento de transfor-


mação da jurisdição civil?

Depois de alguns anos de debate, o novo Código de Proces-


so Civil finalmente foi publicado em 2015 e trouxe, ao menos em
tese, algumas mudanças significativas no desempenho da juris-
dição civil2. O advento do novo Codex dá esperança de um novo
horizonte para o processo civil, em especial quanto a uma cons-
trução mais democrática das decisões de caráter judicativo3.

1. Mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo


– PUC/SP. Conselheiro representante dos contribuintes na 3ª Seção do Conselho
Administrativo de Recursos Fiscais – CARF Advogado licenciado. Professor em
cursos de graduação e pós-graduação.
2. Aqui entendida como “aquela que se volta a não apreciar questões de cunho pe-
nal, isto é, regidas pelo direito penal. A jurisdição civil, nestas condições, aparece de
forma residual. Toda atividade jurisdicional não voltada a resolver conflitos regidos
pelo direito (material) penal é civil. Jurisdição civil é não penal.” (BUENO, Cássio
Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. 4ª. ed. São Paulo:
Saraiva, 2010. v. 1. p. 293.).
3. Neste sentido: BAHIA, Alexandre Melo Franco. NUNES, Dierle. PEDRON, Flá-
vio Quinaud. THEODORO JÚNIOR, Humberto. “Novo CPC – fundamentos e siste-
matização”. 2ª. ed. Rio de Janeiro. pp. 69/162.

219
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Acontece que, depois de mais de um ano de vigência, o


que se observa é que o velho CPC de 1973 permanece resi-
liente, oficiosamente vigorando nos Tribunais (judiciais e ad-
ministrativos) do nosso país - o que não nos surpreende. Já
havíamos alertado para o fato de uma alteração legislativa
não ter força suficiente para romper com velhos dogmas. Para
tanto, mister se faz o advento de transformações de caráter
cultural e estrutural4, na medida em que o Direito5 vai para
muito além da lei6.
Em outros termos, não basta o advento de alterações le-
gislativas, tal como a publicação de um novo código, para al-
terar realidades - em especial quando elas estão presas aos
velhos dogmas. Para tal transformação é indispensável e até
mais importante que sejam promovidas mudanças estrutu-
rais e, acima de tudo, de caráter sócio-cultural.
Não obstante, na atual conjuntura histórica do país, é di-
fícil acreditar que teremos mudanças estruturais e sociais que
de fato promovam transformações profundas no processo ci-
vil brasileiro, de modo que nos resta “espremer” o CPC/2015,
com o fito de extrair dele alguns mecanismos, ainda que in-
suficientes por si sós, para o início da citada transformação.
Para tanto, é fundamental que os operadores do direito fitem
o CPC/2015 com um novo olhar, evitando-se, com isso, uma

4. Neste diapasão: RIBEIRO, Diego Diniz. Precedentes em matéria tributária e o


novo CPC. In: Processo tributário analítico (vol. III). CONRADO, Paulo César (org.).
São Paulo: Noeses, 2016.; RIBEIRO, Diego Diniz. O papel do ‘amicus curiae’ nas de-
mandas tributárias. In: Medidas de redução do contencioso tributário e o CPC/2015.
ARAUJO, Juliana Furtado Costa. BOSSA, Gisele Barra. PSICITELLI, Tathiane.
SALUSSE, Eduardo Perez (orgs.). São Paulo: Almedina, 2017.
5. De forma muito sumária, é possível afirmar que o direito é um valor construído
histórico-culturalmente e que tem por objetivo resolver o necessário problema de
convivência humana. Referido valor é extraído do diálogo promovido entre o caso a
ser resolvido e o sistema-fundamento, com especial ênfase para o caso decidendo.
Neste teor: NEVES, Antônio Castanheira. Metodologia jurídica – problemas funda-
mentais. Coimbra: Coimbra Editora, 1993.
6. Já não é de hoje que se constatou que a estrutura deôntica mínima da lei é
insuficiente para realizar, com justiça, as máximas complexidades de um mundo
cada vez mais plural e heterogêneo.

220
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

indevida projeção do CPC de 1973 e, por conseguinte, a per-


petuação de alguns velhos dogmas nele expressados7.
Feitas essas considerações iniciais, já é possível seguir
adiante.

1. A realização do CPC/2015 no âmbito dos processos


administrativos tributários

O art. 15 do CPC/20158 promove um diálogo do aludido


Codex com as legislações que regulam os diferentes tipos de
processos administrativos. Nos termos prescritos pelo citado
dispositivo, as disposições do CPC/2015 devem ser convoca-
das de forma (i) supletiva e (ii) subsidiária no âmbito dos pro-
cessos administrativos, incluindo aí os processos administra-
tivos de caráter tributário.
Analisando referido dispositivo, Paulo César Conrado e
Rodrigo Dalla Pria afirmam que tal prescritivo legal apresen-
ta uma dúplice faceta: a de externar uma função normativo-
-substitutiva e, ainda, uma função normativo-integrativa9. No
presente trabalho faremos um corte metodológico para nos

7. Em síntese, alerto aqui para o risco de a nova lei ser aplicada com os olhos no re-
trovisor, abstraindo-se dela um raciocínio meramente formal, desprovido de conteú-
do, desconectado da realidade cotidiana e sem sintonia com o Estado Democrático de
Direito (PEREIRA, Paulo Sérgio Velten. Por um processo civil comunicativo e dialó-
gico. In: FREIRE, Alexandre. MACÊDO, Lucas Buril de. PEIXOTO, Ravi. (orgs.).
Coleção Novo CPC: doutrina selecionada – parte geral (vol. 1). Salvador: JusPodivm,
2015. p. 397. (grifos nosso).
8. “Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas
ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e
subsidiariamente.”
9. “Na primeira situação, a da supletividade, o que se supõe é a total ausência de
especial norma reguladora do processo administrativo, caso em que o Código de
Processo Civil acaba por assumir a função ‘normativo-substitutiva’.
Na segunda hipótese, quando o assunto é subsidiariedade, pressupõe-se alguma
regulamentação, ostentando o Código de Processo Civil de 2015 uma função “nor-
mativo-complementar”. (Aplicação do CPC ao processo administrativo tributário.
In: O novo CPC e seu impacto no direito tributário. 2ª. ed. São Paulo: FISCOSOFT,
2016 p. 256.).

221
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

debruçarmos apenas sobre a função normativo-integrativa do


CPC/2015.
Quando se fala em integração normativa, a ideia clássica
daí decorrente é no sentido de suprimir lacunas normativas
para vincular/integrar a legislação omissa por aquela que ser-
virá de complemento normativo. Tal perspectiva é pautada
pela embolorada ideia de que o direito se perfaz pelo intermédio
exclusivo da lei, calcada, pois, na concepção de um divinal le-
gislador que não deixa comportamentos sociais sem prescrições
normativas e que, quando isso eventualmente ocorre, o próprio
direito legislado cria mecanismos no sentido suplantar tais bu-
racos, o que se dá por intermédio de institutos como a analogia,
os princípios gerais do direito e a equidade.10
Acontece que esta visão estrita do caráter integrativo de
normas não condiz mais com o atual estágio evolutivo do di-
reito, o qual se encontra inserido em um contexto de pós-mo-
dernidade e cada vez mais calcado na existência de normas
abertas e com forte carga valorativa. Neste sentido, partindo
de uma perspectiva mais contemporânea da função integrati-
va de normas, admite-se a convocação subsidiária de disposi-
tivos jurídicos não só na hipótese de típica lacuna legislativa11,
mas também nos casos de potencializar os valores jurídicos
que permeiam a legislação objeto da integração.
Assim, no caso do processo administrativo tributário, cuja
função tem por escopo promover – ainda que atipicamente – o

10. BRANCO, Leonardo Ogassawara de Araújo. RIBEIRO, Diego Diniz. CARF deve
suspender processos de ICMS na base da Cofins? Disponível em: <https://jota.info/
artigos/carf-deve-suspender-processos-do-icms-na-base-da-cofins-03052017>.
Acesso em: 18 de out. 2017.
11. Aliás, nem toda lacuna legislativa no processo administrativo implica a obrigató-
ria convocação subsidiária do CPC, pois se assim fosse seria possível falar-se em
convocação do CPC para fins de imputação de sanções decorrentes de uma litigân-
cia de má-fé, por exemplo. Tal fato só reforça a ideia que a clássica interpretação do
caráter integrativo de normas, realizada quase que de forma automática ante um
determinado “vazio” legislativo, não merece prosperar.

222
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

exercício de uma atividade jurisdicional12, o CPC/2015 não só


pode, mas deve ser convocado sempre que tiver por escopo
qualificar a atividade judicativa, qualificação essa que perpas-
sa, quase que simbioticamente, pela valorização dos princí-
pios constitucionais do processo13.
Aliás, no sentido de promover um maior e melhor diálo-
go entre o processo civil e importantes valores constitucio-
nais14, o CPC/2015 previu uma parte geral, bem como outras
disposições legais espalhadas ao longo do Codex com o esco-
po de fomentar valores constitucionais importantes para or-
denamento processual. É o que se depreende, v.g., de ideias
como cooperação, contraditório maximizado, vedação de

12. A respeito da função jurisdicional atipicamente exercida por Tribunais Adminis-


trativos tributário destacamos, mais uma vez, a doutrina de Paulo César Conrado e
Rodrigo Dalla Pria, in verbis:
“...os órgãos de julgamento integrantes do contencioso administrativo tributário exer-
cem, no desempenho de suas funções, atividade jurisdicional, e não propriamente ad-
ministrativa; longe de construírem (ou reconstituírem) o crédito tributário administra-
tivamente debatido, eles examinam a pretensão deduzida no instrumento de
provocação que os impulsiona a agir (no mais das vezes, produzido pelo contribuinte).
Sua atividade, antes de vinculada à arrecadação (nada tendo, portanto, com a noção
de ‘cobrança’), é marcada pela premissa da antiexacionalidade, vocábulo forjado na
intenção de definir os instrumentos processuais destinados a avaliar se a exigibilidade
de dado crédito tributário deve ou não subsistir.
Como judicial, o processo administrativo pode e deve ser visto como instrumento da
jurisdição, portanto.
É certo, por óbvio, que essa jurisdição – a processada no ambiente administrativo –
não experimenta as mesmas características da ‘jurisdição judicial’; fossem sobrepostas
em todos os seus aspectos, seria sem sentido a distinção. Não obstante isso, é de
jurisdição, definitivamente, o que se tem num e noutro âmbito.” (Op. cit. p. 255.).
13. “Os ‘princípios constitucionais’ ocupam-se especificamente com a conformação
do próprio processo, assim entendido como método de atuação do Estado-juiz e,
portanto, método de exercício da função jurisdicional. São eles que fornecem as di-
retrizes mínimas, mas fundamentais, do próprio comportamento do Estado-juiz.
(...)
É correto, portanto, tratar os princípios constitucionais do processo civil como
significativos de um modelo mínimo, mas indispensável, mas vinculante, mas
impositivo, para a atuação do Estado-juiz.” (BUENO, Cássio Scarpinella. Curso sis-
tematizado de direito processual civil. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. v. 1. p. 124.)
(grifos do Autor).
14. De modo a fomentar em concreto um processo civil constitucional, tal como de-
fendido pelo professor Cássio Scarpinella Bueno (Op. cit. Loc. cit.).

223
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

decisão surpresa, motivação estruturada das decisões judi-


ciais e valorização dos precedentes, valorização essa que –
diga-se de passagem – tem por fito tutelar uma segurança
jurídica de índole material e um tratamento também subs-
tancialmente igualitário entre jurisdicionados em situações
semelhantes.
Neste diapasão, a convocação subsidiária do CPC no âm-
bito do processo administrativo tributário deve ser emprega-
da não só nas hipóteses de típica lacuna legislativa, mas em
especial quando servir para impulsionar os princípios consti-
tucionais do processo, dando maior efetividade à orientação
axiológica que permeia este procedimento.

2. O contraditório maximizado, a vedação da decisão


surpresa e o princípio da cooperação

Partindo das premissas aqui fixadas, já é possível olhar


para alguns dos principais vetores valorativos do CPC/2015
passíveis de convocação no âmbito do processo administra-
tivo tributário e, mais do que isso, verificar como tais valores
constitucionais do processo civil irão comunicar-se em con-
creto com o processo administrativo tributário.
Dentre os valores destacados pelo CPC/2015, temos
que os princípios da cooperação (art. 6º15), do contraditório
maximizado (art. 9º16) e o da vedação das decisões surpre-
sas (art. 1017), aliados à motivação estruturada das decisões
(art. 489, § 1º18) e à valorização material dos precedentes

15. “Art. 6o Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se
obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva.”
16. “Art. 9o Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que ela seja
previamente ouvida.”
17. “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em
fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se ma-
nifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício.”
18. “Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
(...).

224
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

(art. 92619), são, a nosso ver, os principais dispositivos do


CPC/2015 para fins de realização do processo tributário,
seja ele judicial ou administrativo.
Os artigos 6º, 9º e 10 do CPC/2015 tratam, em última ratio,
do relevantíssimo princípio da cooperação20, o qual prestigia
a participação efetiva (substancial) das partes no processo
e, acima disso, a responsabilidade dos atores processuais na
construção da melhor21 decisão judicial possível para o caso
em julgamento.
Assim, quando se fala em princípio da cooperação, o que
se apregoa não é a existência de um mundo idealizado, para
não dizer romanceado, no qual as partes antagônicas no pro-
cesso irão desinteressadamente unir esforços em torno de um

§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela


interlocutória, sentença ou acórdão, que:
I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem expli-
car sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto
de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento.”
19. “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la está-
vel, íntegra e coerente.”
20. Para uma interessante análise da repercussão prática do princípio da coopera-
ção no âmbito do processo judicial tributário sugerimos a leitura do preciso traba-
lho de Paulo César Conrado: in Exceção de pré-executividade em matéria tributária:
do sincretismo processual ao dever de cooperação (art. 6.º do CPC/2015), passando
pela “nova” definição de coisa julgada. In: ARAÚJO, Juliana Costa Furtado. CON-
RADO, Paulo César (Orgs.). O novo CPC e seu impacto no direito tributário. São Pau-
lo: Fiscosoft, 2015. pp. 127-136.
21. O que não quer significar decisão perfeita, a qual é impossível de ser alcançada,
uma vez que o mister judicativo é um trabalho realizado por seres humanos (falí-
veis) e para seres humanos (também falíveis e, em especial, com posições antagôni-
cas em uma lide).

225
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

bem comum, qual seja, a prestação da atividade jurisdicional.


Esperamos, sinceramente, que em um estágio civilizatório
mais avançado cheguemos a tal condição. Hoje, todavia, o que
o princípio da cooperação prescreve é o dever das partes liti-
gantes em subsidiar o Estado-Juiz com a maior quantidade
de fundamentos fático-jurídicos para a construção da melhor
decisão possível para o caso decidendo22.
Percebe-se, pois, que nesse aspecto o CPC/2015 visa rom-
per com alguns velhos dogmas processuais, na medida em
que determina que as partes não podem mais se limitar a nar-
rar fatos e realizar pedidos para, em contrapartida, recebe-
rem jurisdição (da mihi factum, dabo tibi jus). Pelo contrário!
Devem em suas manifestações trazer todos os fundamentos
fático-jurídico existentes para contribuir materialmente com
a melhor decisão possível a ser realizada pelo órgão julgador.
É com base nesta ideia que nos deparamos, v.g., com o dispos-
to no art. 378 do CPC/201523.
Rompe-se, portanto, com a autocrática e embolorada
ideia de que o juiz é o único responsável e, principalmente,
capacitado a “dizer” o direito (iura novit curia). Em contra-
partida, prestigia-se a substancial e responsável participação
dos envolvidos na lide, o que está em perfeita sintonia com
um país que pretende levar a sério o significado de um Estado

22. Referido princípio deve ser lido “não como dever ético da parte agir contra seus
interesses, mas a partir da ideia de ‘comunidade de trabalho’ e na leitura da coope-
ração a partir do ‘contraditório como garantia de influência e não surpresa’ (arts. 7o
a 10 do Novo CPC), porque se criarmos um ambiente procedimental em que, real-
mente, as partes possam (já que não são obrigadas, mas facultadas a tal), ao agir na
defesa dos seus interesse, contribuir para a construção do provimento em conjun-
to com o magistrado (que deve agir como facilitador desse procedimento); e mais,
se compreendermos que esse provimento só é legítimo se for o resultado direto da-
quilo que foi produzido em contraditório no processo (art. 489, § 1o, do Novo CPC),
seja na reconstrução dos “fatos”, seja no levantamento de “pretensões a direito”
(reconstrução do ordenamento), então ter-se-á uma compreensão adequada da coo-
peração no Novo CPC.” (BAHIA, Alexandre Melo Franco. NUNES, Dierle. P, Flávio
Quinad. THEODORO JÚNIOR, Humerto. “Novo CPC: fundamentos e sistematiza-
ção. 2a. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015. p. 72.) (grifos dos Autores).
23. “Art. 378. Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para
o descobrimento da verdade.”

226
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

Democrático de Direito24 também no âmbito das relações pro-


cessuais. O julgador deixa de ser o protagonista do processo,
papel esse que passa a ser dividido com os principais interes-
sados na resolução do conflito: as partes litigantes25.
Espera-se, com isto, qualificar a decisão de caráter judica-
tivo, o que, em se tratando de decisão tributária proferida no
âmbito administrativo ganha ainda mais relevância, na medida
em que, quanto mais qualificada for a decisão dos tribunais ad-
ministrativos, maior será a inibição do sucumbente em socor-
rer-se do Poder Judiciário para “rediscutir” a demanda então
decidida administrativamente. Dessa forma, o processo admi-
nistrativo cumpre com uma das suas mais importantes mis-
sões: a de contribuir para redução da litigiosidade judicial no
âmbito tributário, servindo, pois, como um importante filtro.
Partindo, pois, de tais premissas, convém agora verificar
alguns reflexos práticos de tais valores normativos no âmbito
do processo administrativo tributário.
Pois bem. É muito comum que as partes envolvidas em
um processo administrativo apresentem, no transcorrer do
seu processamento e após a estabilização da lide26, documen-
tos, laudos técnicos e pareceres, o que, em tese, tem por es-
copo reforçar seus fundamentos fático-jurídicos. Também é

24. “O processo, na perspectiva de um modelo constitucional, “inaugura uma visão


garantística” dos direitos fundamentais, limitando a atuação daqueles que dele (do
processo) participam de forma equivocada e inaugurando uma hermenêutica proces-
sual condicionada à Constituição e à ideia de Estado Democrático de Direito, à luz da
comparticipação e do policentrismo.” (HORTA, André Frederico. NUNES, Dierle.
Aplicação de precedentes e “distinguishing” no CPC/2015: uma breve introdução. In
Precedentes Judiciais no NCPC. Salvador: JUSPODIVM, 2015.) (grifos dos Autores).
25. Em verdade, a ideia é de que haja um policentrismo processual, em detrimento
de envelhecido protagonismo judicativo aqui denunciado. Nesse sentido: TARUF-
FO, Michele. “Giudizio: processo, decisione. Sui confini: scritti sulla giustizia civi-
le.” Bologna: II Mulino, 2002. p. 160.
26. O que, em regra, ocorre com a apresentação da impugnação administrativa,
oportunidade em que se fixa os pontos controvertidos do processo administrativo
tributário. É que se observa, por exemplo, no seio do processo administrativo fede-
ral, conforme prevê o art. 14 do Decreto n. 70.235/72:
“Art. 14. A impugnação da exigência instaura a fase litigiosa do procedimento.”

227
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

comum que disposições normativas reguladoras do processo


administrativo tributário vedem esse tipo de conduta, como é
o caso, v.g., do art. 16, § 4º do Decreto n. 70.235/7227.
Apesar de tais vedações legais, quer parecer que, não só
com fundamento no já conhecido princípio da verdade mate-
rial28, mas também com arrimo no princípio da cooperação29,
é possível defender a possibilidade das partes litigantes apre-
sentarem novos documentos no transcorrer do processo ad-
ministrativo tributário, desde que, por óbvio, isso não impli-
que em inovação da lide.
A presença de certos documentos, laudos técnicos e pare-
ceres tem o potencial de subsidiar o julgador com um substra-
to fático-jurídico mais robusto, potencial esse que é elevado à
máxima potência quando a parte contrária tem a oportunida-
de de manifestar-se previamente a seu respeito, exatamente
como prevê o art. 9º do CPC. Quem efetivamente ganha com
isso tudo é a própria atividade jurisdicional no caso em con-
creto, já que o exaurimento da questão debatida no litígio ten-
de a qualificar ainda mais a decisão judicativa. Neste diapasão

27. “Art. 16. A impugnação mencionará:


(...).
§ 4º A prova documental será apresentada na impugnação, precluindo o direito de o
impugnante fazê-lo em outro momento processual, a menos que:
a) fique demonstrada a impossibilidade de sua apresentação oportuna, por motivo
de força maior;
b) refira-se a fato ou a direito superveniente;
c) destine-se a contrapor fatos ou razões posteriormente trazidas aos autos.
(...).”
28. Registre-se, desde já, que este importante valor normativo não se assemelha
a uma ferramenta mágica, como pretendem alguns, e, por óbvio, não tem a apti-
dão de “validar” preclusões e atecnias, nem de transformar tais defeitos em um pro-
cesso administrativo “regular”. Este tipo de interpretação a respeito do princípio da
verdade material só se presta a apequenar esta importante norma. Assim, quando
se fala em verdade material o que se quer exprimir é a possibilidade de reconstruir
a relação jurídica de direito material conflituosa por intermédio de uma metodolo-
gia jurídica mais flexível, ou seja, menos apegada à forma, o que se dá pelas caracte-
rísticas peculiares do direito material vindicado processualmente, i.e., pela sua
contextualização.
29. Aqui convocado de forma subsidiária-integrativa, nos termos desenvolvidos no
item 2 do presente trabalho.

228
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

é possível encontrar decisões do Conselho Administrativo de


Recursos Fiscais – CARF, conforme se observa da ementa
abaixo transcrita:

Assunto: Contribuição para o Financiamento da Seguridade So-


cial – Cofins
Período de apuração: 01/10/2009 a 31/10/2009
PARECER TÉCNICO. JUNTADA APÓS APRESENTAÇÃO DE
RECURSO VOLUNTÁRIO. POSSIBILIDADE
A juntada de parecer pelo contribuinte após a interposição de Re-
curso Voluntário é admissível. O disposto nos artigos 16, §4º e 17,
ambos do Decreto nº 70.235/1972 não pode ser interpretado de for-
ma literal, mas, ao contrário, deve ser lido de forma sistêmica e de
modo a contextualizar tais disposições no universo do processo ad-
ministrativo tributário, onde vige a busca pela verdade material,
a qual é aqui entendida como flexibilização procedimental-proba-
tória. Ademais, referida juntada está em perfeita sintonia com o
princípio da cooperação, capitulado no art. 6o do novo CPC, o qual
se aplica subsidiariamente no processo administrativo tributário.
(...).
(CARF; Acórdão n. 3402-003.196).

O mesmo vale para a hipótese de interposição de recurso


de embargos de declaração com efeitos infringentes. Como é
sabido, o CPC/2015 passou a prever, ainda que de forma excep-
cional, a possibilidade de se atribuir efeitos infringentes a este
tipo de recurso de fundamentação vinculada30. Mais do que
isso, determinou que, uma vez detectado este potencial efeito
infringente, a parte contrária deverá ter a oportunidade de ma-
nifestar-se a respeito do recurso interposto, o que garante não
só o contraditório maximizado, mas também contribui para um
debate mais amplo acerca da questão apresentada no recurso,
o que, seguramente, qualificará a decisão a ser proferida.

30. “Art. 1.023 (...).


(...).
§2o O juiz intimará o embargado para, querendo, manifestar-se, no prazo de 5
(cinco) dias, sobre os embargos opostos, caso seu eventual acolhimento implique a
modificação da decisão embargada.

229
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Tal prática, por sua vez, deve ser realizada no processo


administrativo tributário, o que, no âmbito do CARF, já vem
ocorrendo conforme se observa da resolução n. 3402-000.834
que, ante os potenciais efeitos infringentes dos embargos de
declaração interpostos pelo contribuinte, decidiu por intimar
a Fazenda Nacional para manifestar-se a seu respeito.
Registre-se, todavia, que a disposição do art. 1.023, § 2o do
CPC/2015, passível de ser subsidiariamente aplicada no pro-
cesso administrativo tributário, não tem por escopo apenas
cumprir com um simples rito formal, vinculado à ideia de um
procedural due process, mas também apresenta a relevante
função de dar às partes a oportunidade de se fazer ouvir para
convencer o julgador, o que diz respeito à ideia do substantive
due process.
Logo, neste novo cenário processual, não é crível admitir
que um julgador possa, antes de ouvir todas as partes envol-
vidas na lide, pressupor todos os fundamentos passíveis de
arguição para a solução do caso, sob pena de se resgatar o já
esgotado modelo do juiz Hércules ou, o que é pior, admitir-se
que casos são julgados com base em pré-juízos, o que, a nosso
ver, macula a ideia de imparcialidade, ínsita a toda e qualquer
atividade judicativa31.

3. A motivação estruturada das decisões

Outro dispositivo de grande relevância para um novo


modelo de processo civil é o disposto no art. 489, § 1o do CP-
C/201532, o qual prescreve que as decisões de caráter judica-

31. De forma absolutamente indevida, é exatamente isso o que defende o enunciado


n. 03 da Escola Nacional de Formação de Magistrados – ENFAM, in verbis:
“03) É desnecessário ouvir as partes quando a manifestação não puder influenciar
na solução da causa.”
32. Art. 489. São elementos essenciais da sentença:
(...).
§ 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela
interlocutória, sentença ou acórdão, que:

230
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

tivo demandam uma motivação estruturada ou analítica. Em


verdade, o que o CPC/2015 fez foi exemplarmente33 detalhar
a regra já estabelecida no art. 93, inciso IX da Constituição
Federal34, uma vez que parte significativa das decisões de ca-
ráter judicativo não vinham respeitando tal garantia consti-
tucional. A explicitude desta disposição legislativa visa, pois,
corrigir esse gravíssimo defeito.
Dessa feita, toda e qualquer decisão de caráter judicativo,
inclusive aquelas proferidas no âmbito do processo adminis-
trativo tributário, deve ser fundamentada. Com isso o prin-
cípio assegura não só a transparência, mas também viabiliza
que se exercite o adequado controle de decisões jurisdicionais.
Registre-se, por oportuno, que o controle de tais decisões por
meio da sua motivação quer significar não só um controle ex-
terior ao processo, mas também um controle interno, o que
necessariamente perpassa pela ideia de recorribilidade35.

I - se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem expli-


car sua relação com a causa ou a questão decidida;
II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto
de sua incidência no caso;
III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;
IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese,
infirmar a conclusão adotada pelo julgador;
V - se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus
fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta
àqueles fundamentos;
VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado
pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a
superação do entendimento.
33. O referido dispositivo legal não traz um rol taxativo, mas sim exemplificativo de
hipóteses de nulidade de decisões judicativas.
34. “Art. 93 (...).
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e funda-
mentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença,
em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes,
em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo
não prejudique o interesse público à informação;
(...).”
35. Portanto, o princípio da motivação é um instrumento “que se põe a serviço da já
trabalhada ideia de recorribilidade – só é possível recorrer, convenhamos, de deci-
são judicial cujos fundamentos sejam conhecidos, permitindo-se, assim, o controle

231
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Por outro giro verbal, a existência de motivação de uma


determinada decisão é que viabiliza (não apenas sob uma
perspectiva formal, mas especialmente de modo substancial),
o acesso efetivo às instâncias recursais mediante a interposi-
ção do recurso cabível. Em contrapartida, decisão imotivada
(sem fundamento) é o mesmo que negar acesso ao recurso ou
apenas reduzi-lo à uma questão de forma.
Pois bem, um dos exemplos trazidos pelo sobredito pres-
critivo legal e que dá margem para muita discussão em con-
creto é a hipótese do seu inciso IV, quando prescreve que,
para ser motivada, a decisão deve enfrentar todos os argu-
mentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a
conclusão adotada pelo julgador. O que se exige aqui é que a
motivação seja completa, i.e., sem omitir pontos cuja solução
pudesse conduzir o juiz a concluir de forma diferente36.
Dessa feita, sempre que que a decisão for repartida em
capítulos, cada um consistindo no julgamento de uma pre-
tensão, todos eles devem ser precedidos de uma motivação
própria que justifique a conclusão assumida pelo julgador37.
O que se quer dizer, portanto, é que a decisão deve funda-
mentar o acolhimento ou a rejeição de cada um dos pedi-
dos e, ainda, de cada uma das correlatas causas de pedir pró-
ximas expostas ao longo da lide, sob pena de nulidade. Com
arrimo no art. 489, § 1o do CPC/2015, assim decidiu o CARF
(acórdão n. 3402-003.465):

ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALI-


ZADOS – IPI
Período de apuração: 01/03/2010 a 31/12/2011
Ementa

da atividade jurisdicional” (CONRADO, Paulo César. Introdução à teoria geral do


processo civil. 2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003. p. 71/72).
36. DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. 6ª ed.
São Paulo: Malheiros, 2009. p. 249.
37. Op. cit. Loc. cit.

232
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

NULIDADE DE DECISÃO. AUSÊNCIA DE MOTIVAÇÃO. FUN-


DAMENTO AUTÔNOMO NÃO ANALISADO. PROCEDÊNCIA
DO RECURSO.
É nula, por ausência de motivação, a decisão que deixa de anali
sar um dos fundamentos invocados pelo contribuinte em sua
impugnação e que, de forma autônoma, é capaz de infirmar a
conclusão alcançada pelo órgão julgador na parte dispositiva do
julgado.

Da mesma forma, o citado art. 489, § 1o do CPC/2015 deve


ser rigorosamente respeitado quando implicar o advento de
decisões fundamentadas em precedentes, nos exatos termos
do que prevê o art. 927 do Estatuto Processual Civil38. Não
basta, pois, a convocação da ementa ou da súmula decorrente
do chamado precedente, sendo indispensável a comparação
analógico-problemática entre as circunstâncias fático-jurídi-
cas do caso a ser decidido e do precedente.
Nesse sentido, ao julgar recurso voluntário para tratar da
extensão da súmula CARF n. 0139 (acórdão n. 3402-004.614),
referido Tribunal Administrativo decidiu reformar a decisão
a quo para afastar uma suposta concomitância entre o recurso
voluntário submetido a julgamento e um mandado de segu-
rança coletivo ajuizado por uma entidade de classe da qual

38. “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:


I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de de-
mandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial
repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitu-
cional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”
39. Que assim prevê:
“Súmula CARF nº 1
Importa renúncia às instâncias administrativas a propositura pelo sujeito passivo
de ação judicial por qualquer modalidade processual, antes ou depois do lançamen-
to de ofício, com o mesmo objeto do processo administrativo, sendo cabível apenas
a apreciação, pelo órgão de julgamento administrativo, de matéria distinta da cons-
tante do processo judicial.”

233
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

o recorrente era associado, mandamus esse impetrado com o


mesmíssimo fundamento do recurso administrativo. Em mi-
nucioso trabalho, o relator do caso, Conselheiro Carlos Au-
gusto Daniel Neto, analisou cada um dos precedentes que de-
ram origem ao enunciado sumular para assim concluir:

No caso da súmula em comento, os acórdãos em questão


são os seguintes, conforme pesquisa no sítio virtual do CARF:
(...).
Compulsando-os individualmente, verifica-se que absolutamen-
te todos versam sobre ações individuais propostas ou mandados de
segurança individuais impetrados pelo contribuinte, pessoalmen-
te, sem haver um precedente sequer que tratasse da questão dos
mandados de segurança coletivos.
Essa minuciosa análise dos acórdãos paradigmas que em-
basaram a súmula CARF nº 01 bastam para demons-
trar que ela não pode ser aplicada em casos outros que não sejam
ações individuais, sob pena de considerar-se não fundamentada
a decisão proferida com base nela, com fulcro no art. 489, § 1o do
Novo CPC.

Com tal entendimento, respeitou-se a regra estampada


no art. 489, § 1o, inciso VI do CPC/2015, afastando enunciado
de súmula CARF em razão da realização do distinguishing.

4. Os reflexos para os processos administrativos de ca-


sos afetados por técnicas de uniformização de julga-
mento no âmbito judicial

Não é de hoje que o legislador nacional, sob o pretexto de


buscar uma pretensa aproximação de um distante modelo de
Common Law, tem criado inúmeros dispositivos legislativos
no sentido de prestigiar a figura do precedente, em especial
quando tal precedente é vinculado por um Tribunal Superior.
Daí, e.g., a existência de institutos como a repercussão geral e
o julgamento de recursos sob o rito da repetitividade.

234
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

Referida valorização – ainda que aparente40 – de um mo-


delo de stare decisis é renovada com base no CPC/2015, em
especial com o disposto no seu art. 92641, norma que oferece
importantes vetores para a busca de uma verdadeira valoriza-
ção dos precedentes.
Não obstante, o art. 927 do citado Codex42 densifica tais
valores, na medida em que prescreve os tipos formais de deci-
são aptos a veicular um precedente de caráter vinculante. Ao
assim fazer, determina que na hipótese da ocorrência de cer-
tas técnicas de uniformização incidentes antecipadamente à

40. Particularmente tenho uma visão bastante crítica a respeito desta pretensa apro-
ximação do direito brasileiro de um modelo de stare decisis, aproximação essa que
não é uma novidade trazida pelo CPC/2015, mas é por ele tocada e aparentemente
aprimorada. Partilho da opinião que, em verdade, as chamadas técnicas de unifor-
mização da jurisprudência (súmulas, súmulas vinculantes, repercussão geral, recur-
sos repetitivos, incidente de resolução de demandas repetitivas, dentre outras) não
promovem uma verdadeira aproximação do nosso modelo com um sistema de Com-
mon Law, mas, em verdade, implica a criação de uma “jabuticaba” jurídica, o que
tenho chamado de Macunaíma Law, expressão essa cunhada no seguinte trabalho:
RIBEIRO, Diego Diniz. O incidente de resolução de demandas repetitivas: uma busca
pela “common law” ou mais um instituto para a codificação das decisões judiciais In:
ARAÚJO, Juliana Costa Furtado. CONRADO, Paulo César (Orgs.). O novo CPC e seu
impacto no direito tributário. São Paulo: Fiscosoft, 2015. p. 96.
Para maior detalhamento desta postura crítica aqui noticiada remeto o leitor inte-
ressado no assunto aos seguintes textos: RIBEIRO, Diego Diniz. Coisa julgada, di-
reito judicial e ação rescisória em matéria tributária. In Processo Tributário Analíti-
co II. São Paulo: Noeses. 2013; RIBEIRO, Diego Diniz. Súmula vinculante e a
codificação das decisões judiciais no Brasil. http://www.ibet.com.br/download/
Diego%20Diniz%20Ribeiro.pdf. Acessado em 17/01/2016; e RIBEIRO, Diego Diniz.
Precedentes em matéria tributária e o novo CPC. In Processo Tributário Analítico III.
São Paulo: Noeses. 2016.
41. “Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la está-
vel, íntegra e coerente.”
42. “Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de
constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de de-
mandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial
repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitu-
cional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.”

235
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

formação do precedente (como ocorre na repercussão geral e


nos recursos repetitivos), os demais casos análogos e também
pendentes de julgamento devem ficar sobrestados até que
haja decisão no chamado leading case. A questão, portanto,
que remanesce é: tal sobrestamento também deve ser apli-
cado para os processos administrativos? Já tivemos a opor-
tunidade de responder tal questionamento em artigo escrito
com Leonardo Ogassawara de Araújo43, oportunidade em que
assim nos manifestamos:

Não obstante, mesmo que se empregue a função integrativa de uma


norma subsidiária em um sentido clássico, ainda sim a solução
aqui proposta (sobrestamento do processo administrativo tribu-
tário) seria a única resposta cabível para o caso em tela. E isso
porque, ao se analisar as disposições legais que tratam do proces-
so administrativo tributário (Decreto n. 70.235 e lei n. 9.784/99), é
impossível encontrar qualquer disposição normativa que trate do
problema aqui enfrentado, qual seja, o que fazer com processo ad-
ministrativo que apresente recurso com causa de pedir autônoma
e cujo teor está pendente de julgamento no âmbito judicial, em sede
de processo com caráter transindividual. Não havendo disposições
legais nas leis que tratam o processo administrativo tributário,
deve ser aplicado de forma subsidiária o CPC.
Nem se alegue que o RICARF deu solução para essa questão, em
razão do que dispõe o seu art. 62, §§ 1º e 2º44. E isso porque um re-

43. CARF deve suspender processos de ICMS na base da Cofins? Disponível em: <ht-
tps://jota.info/artigos/carf-deve-suspender-processos-do-icms-na-base-da-co-
fins-03052017>. Acesso em: 18 de out. 2017.
44. “Art. 62. Fica vedado aos membros das turmas de julgamento do CARF afastar a
aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob
fundamento de inconstitucionalidade.
§ 1º O disposto no caput não se aplica aos casos de tratado, acordo internacional, lei
ou ato normativo:
I - que já tenha sido declarado inconstitucional por decisão definitiva plenária do
Supremo Tribunal Federal; (Redação dada pela Portaria MF nº 39, de 2016)
II - que fundamente crédito tributário objeto de:
a) Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 103-A da
Constituição Federal;
b) Decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Jus-
tiça, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº
5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº 13.105, de 2015 - Código de Proces-
so Civil, na forma disciplinada pela Administração Tributária; (Redação dada pela

236
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

gimento interno, passível de veiculação autocrática ou antimajo-


ritária por parte de um circunstancial Presidente de um Tribunal
Administrativo ou Ministro da Fazenda não pode se sobrepor ao
que estabelece uma legislação federal fruto de longo e exaustivo
debate democrático promovido no âmbito das casas do Congresso
Nacional, sob pena de, em última ratio, simplesmente esvaziar o
art. 15 do CPC de qualquer conteúdo, ou seja, admitir-se que mero
regimento interno, regularmente veiculado por simples portaria
ministerial, tenha a aptidão de revogar lei federal.
Nesse sentido, não há de se falar que apenas súmulas vinculantes
ou decisões proferidas em sede de recurso repetitivo teriam o con-
dão de vincular o CARF (“vinculação fraca”), como indevidamen-
te quer fazer parecer o citado dispositivo regimental.
Aliás, em 23/02/2017, caso em tudo semelhante ao presente foi de-
cidido no sentido da suspensão do processo administrativo que
tramita neste Conselho: no curso do Recurso Extraordinário nº
566.622/RS, de Relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello, pro-
cedeu-se à suspensão dos processos que tramitam neste Conselho
acerca de matéria idêntica, decidida de maneira favorável à con-
tribuinte pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em decisão
pendente de publicação.
Em 07/03/2017 foi expedido o Ofício nº 594/R endereçado ao Pre-
sidente deste Conselho com cópia da decisão do Ministro Marco
Aurélio Mello que suspendeu os processos administrativos que
tratam da matéria.(...).
(...).
Não é possível se perder de vista, ademais, que, segundo o
preceptivo normativo do caput do art. 926 do Código de Processo

Portaria MF nº 152, de 2016).


c) Dispensa legal de constituição ou Ato Declaratório da Procuradoria-Geral da Fa-
zenda Nacional (PGFN) aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda, nos termos
dos arts. 18 e 19 da Lei nº 10.522, de 19 de julho de 2002;
d) Parecer do Advogado-Geral da União aprovado pelo Presidente da República, nos
termos dos arts. 40 e 41 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993; e
e) Súmula da Advocacia-Geral da União, nos termos do art. 43 da Lei Complemen-
tar nº 73, de 1973. e) Súmula da Advocacia-Geral da União, nos termos do art. 43 da
Lei Complementar nº 73, de 1993. (Redação dada pela Portaria MF nº 39, de 2016)
§ 2º As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e
pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática
dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, ou dos arts. 1.036 a 1.041 da Lei nº
13.105, de 2015 - Código de Processo Civil, deverão ser reproduzidas pelos conse-
lheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF. (Redação dada pela Porta-
ria MF nº 152, de 2016)”

237
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Civil, é o desígnio do legislador que os tribunais devem uniformi-


zar a jurisprudência e mantê-la “estável, íntegra e coerente”, em
prestígio à segurança jurídica que deve pautar a relação entre
aplicadores e jurisdicionados. A dicção prudente do direito deve,
portanto, preferir a coerência e, assim como a posição individual
do aplicador deve observância à decisão colegiada, o entendi-
mento administrativo não pode se lançar à deriva de seus pró-
prios fundamentos e perder de vista a terra firme da construção
pretoriana das cortes superiores de seu país.
(...).
A formalização superveniente do acórdão judicial alterará o co-
lorido jurídico da relação material de fundo: saber disso é sufi-
ciente para se suspender o processo administrativo de forma não
apenas a economizar a verba pública correspondente, mas tam-
bém garantir aos jurisdicionados (contribuinte e Fazenda Públi-
ca) uma prestação mais célere, que será apenas procrastinada
com uma decisão contrária ao pleito formulado na seara admi-
nistrativa, pois este é o sentido do interesse público que deve ser
preservado.
Por fim, a já citada decisão do Ministro Marco Aurélio, no Re-
curso Extraordinário nº 566.622/RS, acima transcrita, é mere-
cedora de encômios, pois não há de se ofertar ao jurisdicionado
decisão esquizóide, ou seja, tendente ao isolamento, falha em
se relacionar com os demais componentes da sociedade jurídi-
ca que integra. O padrão evasivo de distanciamento dos vetores
de amadurecimento institucional é contrário aos artigos acima
transcritos,45 e o CARF não pode se alhear das decisões do Su-
premo Tribunal Federal em recurso extraordinário com reper-
cussão geral reconhecida como se desconhecesse não apenas o
Código de Processo Civil de seu país como também a decisão fa-
vorável à tese defendida pelos contribuintes. Obrigá-los a buscar
a chancela posterior do Poder Judiciário em casos como o aqui
debatido caminha em sentido contrário ao interesse público, in-
correndo, assim, em apego exagerado ao formalismo e às suas
próprias decisões, visão míope e distorcida de que o livre con-
vencimento do aplicador estaria de alguma forma alheado do es-
forço argumentativo da construção do direito, infenso à unicida-
de da ordem jurídica. Não é que os comandos uniformizadores

45. ANDRADE, José Maria Arruda de. Interpretação da norma tributária. São Pau-
lo: MP Editora/APET, 2006, p. 137: “Com essas afirmações, percebe-se o caráter so-
cial e interativo do ‘seguir uma regra’, podendo-se afirmar (...) que esse caráter é defi-
nido mediante a ideia de jogos de linguagem e de vivência com os quais se aprende a
entender o uso das palavras mediante adestramentos”.

238
RACIONALIZAÇÃO DO SISTEMA TRIBUTÁRIO

ganhem verticalidade, mesmo porque se discute caso ainda sem


a definitividade do trânsito em julgado, mas não se pode rele-
gar ao esquecimento, como se inexistente, aquilo que sabemos e
conhecemos.
(...).

Tal questão já foi objeto de análise no CARF e, em nossa


opinião, de forma equivocada não tem encontrado adesão na-
quele citado Tribunal Administrativo. É o que se observa, por
exemplo, do debate retratado no acórdão n. 3402-004.434. Se-
gundo o entendimento prevalecente no citado acórdão o an-
tigo Regimento Interno do CARF – RICARF tinha disposição
prevendo o aludido sobrestamento, previsão essa que foi ex-
traída do atual Regimento Interno. Logo, realizando-se uma
“interpretação histórica”, o silêncio normativo (!) do atual
RICARF permitiria concluir pela vedação quanto ao citado
sobrestamento.
Referido entendimento é equivocado por dois motivos.
Primeiramente porque o silêncio legislativo não tem a apti-
dão de veicular um valor normativo, em especial quando se
observa a regra explícita do art. 15 do CPC, determinando que
aludido Codex deve ser aplicado exatamente nas hipóteses de
lacuna normativa. O segundo motivo é ainda mais gritante:
norma processual é matéria de competência exclusiva de lei
federal, exatamente como prevê o art. 22, inciso I da Consti-
tuição Federal46. Assim, ainda que o Regimento Interno de um
Tribunal Administrativo expressamente vedasse o sobresta-
mento aqui discutido, essa hipotética disposição regimental
seria inconstitucional, uma vez que a matéria por ela tratada
é afeta a lei federal.

46. “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:


I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáuti-
co, espacial e do trabalho;
(...).”

239
IBET - INSTITUTO BRASILEIRO DE ESTUDOS TRIBUTÁRIOS

Conclusões

De forma conclusiva, ressaltamos o que fora dito no início


do presente trabalho: o CPC/2015, por si só, não tem o condão
de transformar realidades e desfazer dogmas, cabendo, pois,
aos mais variados operadores do direito, nas mais diferentes
instâncias judicativas, diariamente trabalharem em concreto
por um novo modelo de processo civil e, em última análise,
por um novo modelo de Direito, liberto de vícios e preconcei-
tos. Só assim será possível vislumbrar um horizonte, ainda
que remoto, de um verdadeiramente novo modelo de proces-
so civil.

240

Você também pode gostar