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PRECISAMOS FALAR SOBRE KEVIN: CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS

Joaquim de Almeida Lemos Neto1

Precisamos falar sobre Kevin, é um filme lançado em 2011, dirigido pela realizadora
escocesa Lynne Ramsay e adaptado do romance epistolar homônimo de autoria de Lionel
Shriver, autora norte-americana e radicada em Londres, publicado no Brasil em 2003.
(MARONI, 2013; TAVARES, 2013). Tal filme tem um roteiro angustiante, cuja enredo é
apresentado de maneira fragmentada e desorganizada cronologicamente. Sua narrativa é
desenvolvida em tempos distintos que se alternam ao longa da trama. Rezende e Weinmann
(2013), consideram três tempos: a) juventude de Eva (Tilda Swinton) e Franklin (John C.
Reilly): reencontro dos dois, após o retorno de Eva, quando Franklin pede a permanência de
Eva e Kevin é concebido; b) momento da tragédia protagonizada por Kevin (Ezra Miler), em
sua adolescência: catástrofe anunciada desde o início do filme e declarada apenas no final; c)
momento atual: após o assassinato em massa no colégio. Eu acrescento um quarto momento no
tempo do filme que, segundo esses autores, estaria inserido no “momento atual de Eva, tempo
em que transcorrem suas memórias” (RESENDE;WEINMANN, 2013, p. 70), ou d) o próprio
momento das memórias de Eva (infância de Kevin e início de sua adolescência), o qual possui
substancial tempo no filme e é quando se pode perceber a relação dos membros daquela família.
A partir desses quatro tempos distintos, posso começar a análise psicanalítica do filme
em termos do estabelecimento de vínculos amorosos e afetivos, partindo cronologicamente da
juventude de Eva2, quando ela participa do festival La Tomatina3, em Buñol, região de Valência,
na Espanha; simbolizando um “êxtase sexual, onde uma multidão seminua se espoja e refocila
na massa de tomates, num frenesi vermelho que lembra sangue paixão, morte e sexo” (TELLES,
2014. p. 1). Neste momento do filme, percebo a independência de Eva, quando ela, ainda
solteira, mostra seu lado aventureiro e desbravadora do mundo. Telles (2014) elege a cena que
retrata um pôster da ‘Legendária Eva Katchadurian’ como símbolo de seu lado estrangeiro e de
seu amor pelas viagens; no mesmo sentido, elejo a cena de seu quarto decorado com mapas e

1
Graduado em Psicologia (UESPI), especializando em Psicoterapia Corporal (CESUPEG)
2
Considero Eva Katchadourian, uma bem-sucedida empresária editora de guias de viagens, como a protagonista
do filme, uma vez que a trama tem como fio condutor de seus acontecimentos a percepção por esta personagem.
3
“Batalha” de tomates iniciada em 1945 e que acontece anualmente, na última quarta-feira do mês de agosto.
Segundo a versão mais popular de sua origem, a La Tomatina remonta a encenação de uma briga na Plaza del
Pueblo, durante o desfile de Gigantes Y Cabezudos naquele ano, quando alguns jovens utilizaram na encenação
tomates como munição (RODRIGUES, 2013).
máscaras exóticas que remontam sua vida de aventuras, como indicativo de que seus vínculos
afetivos se encontram nesta vida independente. Em variadas cenas são retratados momentos de
escapismos para essa vida abandonada por Eva, constituindo talvez seu maior conflito
inconsciente: o desejo de independência e a aversão ao papel de mãe.
Ainda nesse primeiro tempo, ocorre o reencontro e Eva e Franklin, ocasião em que o
mesmo pede melancolicamente a permanência de Eva, quando ela está para ir para casa. É
também nesse tempo que Eva toma a decisão da concepção de Kevin, “do mesmo modo que
toma decisões sobre viagens; partilham o facto de serem ambas aventuras do corpo, baseadas
na escolha” (THORNHAM, 2015. pp. 28, 29).
Freud (1996/1932, p. 90) diz que “a mãe somente obtém satisfação sem limites na sua
relação com seu filho menino; este é sem exceção, o mais perfeito, o mais livre de ambivalência
de todos os relacionamentos humanos”. Talvez Eva buscasse essa satisfação quando decidiu
engravidar, afinal seu maior vínculo afetivo era com sua vida de solteira. No entanto, a mãe de
Kevin não parece bem à vontade com gravidez, estranha-se; tampouco demonstra afeição pela
maternidade, já que sente saudades de sua antiga vida de viagens, de Nova Iorque e, agora, vê-
se obrigada a ter uma vida de dona de casa em uma pequena cidade, para criar bem o filho
(MARONI, 2013). Este primeiro tempo, didaticamente dividido por mim, com base na análise
de Resende e Weinmann (2013) encerra-se com o conflito consciente de Eva em adaptar-se ao
papel de mãe (Eva se fecha e se isola, ao contrário das demais grávidas no filme) e a rejeição a
Kevin; situação ilustrada pelas cenas na maternidade, quando se mostra Franklin embalando o
bebê, fazendo-o parar de chorar.
O segundo período cronológico dividido por mim, que se estende durante a infância e
adolescência de Kevin, é o de maior expressão no desenrolar da trama e de maior riqueza para
esta análise, pois é o período mais bem retratado pelo filme. Simultaneamente ao nascimento
de Kevin, a rejeição à maternidade fica explícita, quando a médica pede para que Eva “pare de
resistir” (PRECISAMOS..., 2011), como se lutasse para impedir que a criança nascesse.
(TELLES, 2014). O vínculo amoroso com Kevin não ocorre devido à grande dificuldade que a
mãe tem de se relacionar com o filho, mostrando-se artificial e sem espontaneidade, apesar do
claro esforço que Eva faz para ser carinhosa, chegando a se desesperar por não conseguir
acalmar a criança. A cena de Eva parada com o carrinho de criança o lado da britadeira, para
mim resume a angústia sentida por ela ao não se reconhecer ligada afetivamente ao filho.
Evidencia também a pulsão de morte desta personagem, ao tentar livrar-se do incômodo que o
filho representa em sua vida.
O desejo de Eva de ter a vida independente e aventureira de solteira é muito bem
mostrado nas cenas de seu quarto decorado com mapas, simbolizando seu desejo escapista que
está presente de maneira subliminar na maior parte do filme. Thornham (2015) cita as imagens
alinhadas no escritório da empresa de Eva, com a promessa de fuga para o exotismo da
Tailândia e do Vietnã são substituídas pelos pôsteres da agência de viagens onde ela passa a
trabalhar; e eu as utilizo para ilustrar este desejo inconsciente de Eva de escapar da vida
doméstica.
É também nesse segundo tempo que há maior exposição do papel do pai de Kevin,
Franklin, que parece se dar infinitamente melhor com o filho que a própria mãe. A princípio a
maior ligação afetiva de Kevin é com o pai, cujas cenas de Franklin segurando-o, ninando-o ou
o sorriso de Kevin quando o pai chega do trabalho retratam essa maior interação. Uma relação
que, com o avançar da trama, mostra-se distanciada, circunscrita apenas à relação de Eva e
Kevin. Concordo com Maroni (2013) quando afirma que é por causa de Kevin que o pai, em
vários momentos, se aborrece com a mãe, sendo bem evidente que a decisão de desfazer o
casamento, tomada por Franklin, foi por causada pela relação entre mãe e filho.
Franklin não exercia a função paterna, de autoridade por isso não promoveu a castração
do filho no Complexo de Édipo. A disfuncionalidade das relações familiares fica evidente
quando o pai disputa com Eva o lugar dela e então o amor do filho, não tolerando que Eva
percebesse a maldade, frieza e o sadismo de Kevin (TAVARES, 2013). A cena da refeição em
família, quando Franklin incita Eva a dizer ao filho que ele não deveria se sentir culpado pelo
acidente de sua irmã, além de agradecê-lo por ter chamado a ambulância é emblemática da
negação das pulsões de morte (ódio, manipulação, destrutividade), por parte do pai (MARONI,
2013).
A irmã de Kevin, Celia (Ursula Parker), é fruto de uma relação amorosa madura, e
recebe uma criação diferente da de Kevin, que passa a maltratá-la, e sendo o provável causador
de dois graves acidentes: a morte do pequeno animal de Celia no triturador da pia e o citado na
cena descrita no parágrafo anterior, a perda da visão de um dos olhos (TELLES, 2014). Cito
Freud (1996/1932) para explicar os ciúmes de Kevin-criança em relação à irmãzinha:

A criança não perdoa ao indesejado intruso e rival não é apenas a


amamentação, mas sim todos os outros sinais de cuidado materno. Sente que
foi destronada, espoliada, prejudicada em seus direitos; nutre um ódio
ciumento em relação ao novo bebê e desenvolve ressentimento contra a mãe
infiel, o que muitas vezes se expressa em desagradável mudança na conduta.
Torna-se ‘arteira’, talvez irritável e desobediente, e sofre um retrocesso nos
progressos que havia feito quanto ao controle das excreções (p. 83).
A rivalidade de Kevin em relação à Celia é muito bem retratada nas brincadeiras repleta
de sadismo, como o “sequestro de natal”, por exemplo. Julgo tal brincadeira, bem como a cena
do tiro com arco e flecha na janela onde Eva observava o treino de Kevin, como retrato do
retorno dos conteúdos recalcados por Kevin.
Quanto ao controle das excreções, diferente do esperado por Freud, não houve
retrocesso em Kevin, talvez por ele, conscientemente, não manter o controle de seus esfíncteres
e assim subjugar a mãe à sua manipulação. Segundo Telles (2014), ao não conter as fezes,
Kevin força a mãe a limpá-lo, tratando-se de um exemplo típico de ambivalência anal, ao
mesmo tempo que exige ser amado e atendido, Kevin a agride e controla Eva. O momento
crucial para o fim da fase anal é quando Eva enfurece-se e joga o filho contra a parede,
provocando-lhe uma fratura no braço, numa atitude de rebelião às afrontas do filho. Kevin não
denuncia a mãe ao pai, mas concretiza seu controle sobre ela, constituindo um segredo que
exclui o pai e ilustra a relação perversa entre mãe e filho.
Tavares (2014) remete-me, com este episódio, à outra passagem do filme que ilustra
bem o vínculo entre Eva e Kevin, quando ambos saem para passar um tempo à sós, jogando
minigolfe e jantando; na ocasião Kevin aponta a frieza e maldade da mãe como geratriz das
suas atitudes. A culpa de Eva fica bem evidente a partir deste ponto e transpassa por todo do
último período de tempo cronológico do filme (após o atentado perpetrado por Kevin).
Da mesma maneira que o filme, concluo esta análise retomando brevemente o momento
do massacre na escola, e citando Maroni (2013), quando “Kevin deixa o colégio como se fora
um astro-aplaudido-por-ninguém, mas infinitamente espelhado [...] o herói monstruoso,
infinitamente visto!” (p. 6) revelando sua grande ambivalência afetiva em relação à Eva, pois
não a mata, como o faz com Franklin e Celia, mas pereniza seu sofrimento. Se tratava-se de
ciúmes em relação à mãe, o ato de matar o pai e a irmã, não posso afirmar, mas não seria de
todo errôneo pensar que a chacina no colégio conseguiu chamar a atenção de Eva. Essa
ambiguidade é palpável na cena final, quando Eva vai visitá-lo dois anos após o assassinato,
quando seria transferido para um presídio e finalmente consegue perguntar por que ele teria
feito aquilo e Kevin responde “pensei que sabia, agora não estou tão certo” (PRECISAMOS...,
2011); esta confissão rompe a barreira que separa mãe e filho, o que possibilita uma legítima
aproximação afetiva.
REFERÊNCIAS:

FREUD, Sigmund. Feminilidade In: FREUD, Sigmund. Novas conferências introdutórias


sobre Psicanálise e outros trabalhos (1931-1936). Edição Standard Brasileira das Obras
Completas de Sigmund Freud, v. XXII. Rio de Janeiro: Imago, 1996 [1932], pp. 75-92.

MARONI, Amnerisa. Precisamos falar sobre Kevin!. Ponto de vista 311 [online]. 08 out.
2013. Disponível em: <http://pontodovista311.wordpress.com/2013/10/08/precisamos-falar-
sobre-kevin/>. Acesso 02 nov. 2017.

PRECISAMOS falar sobre Kevin (We need to talk about Kevin), Dir.: Lynne Ramsay, 110
min, EUA / Reino Unido. Paris Filme, 2011.

REZENDE, Thianne; WEINMANN, Amadeu. O(s) tempo(s) na Psicanálise e no Cinema: o


sentido no só-depois. Trivum [online]. v. 6, n. 1, pp 68-81, 2014. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_abstract&pid=S2176-48912014000100008>.
Acesso 02 nov. 2017.

RODRIGUES, Vagner. La Tomatina: a guerra de tomates da Espanha. Blog Cultura


Española [online]. 28 fev. 2013. Disponível em: <http://
http://culturaespanhola.com.br/blog/?s=tomatina&x=0&y=0>. Acesso 05 nov. 2017.

TAVARES, Andreza. Indicando: Precisamos falar sobre Kevin! Silêncio o quê? [online]. 19
mai. 2013. Disponível em: <http://silenciooq.blogspot.com.br/2013/05/indicando-precisamos-
falar-sobre-kevin.html>. Acesso 02 nov. 2017.

TELLES, Sérgio. Precisamos Falar sobre Kevin, de Lynne Ramsay. Psychiatry on line
Brasil. [online]. v. 19. n. 9. set. 2017 Disponível em:
<http://www.polbr.med.br/ano14/psi0913.php>. Acesso 02 nov. 2017.

THORNHAM, Sue. ‘Um ódio tão intenso...’ Temos de falar sobre Kevin: Pós-feminismo e
cinema feminino. Revista Lusófona de Estudos Culturais. v. 3, n. 1, pp. 21-42, 2015.

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