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José Martins

Império do Terror:
Estados Unidos, ciclos econômicos
e guerras no início do século XXI

Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann


São Paulo
2005
Direitos desta edição reservados à
Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann.
proibida a reprodução total ou parcial sem autorização expressa da Editora

SUMÁRIO
Supervisão editorial:
Iraci Borges
João Ricardo Soares
Raquel Polla
Diagramação: Prefácio vii
Mônica Biasi
Capa: PARTE I
Alexsandro Carvalho Império e ciclos nos longos últimos trinta anos do século XXI

Capítulo 1 - Os loucos anos 70 13


Dados internacionais de catalogação (CIP)elaborados na fonte por A grande transformação 18
Iraci Borges - CRB-8-2263 Capítulo 2 - Controvérsias sobre a natureza e a cronologia dos ciclos
M381i econômicos 21
Catastrofismo vulgar 21
Martins, José Antônio Uma história mal contada 25
Império do terror : Estados Unidos, ciclos econômicos e Ciclos econômicos e lutas de classes 28
guerras no início do século XXI. São Paulo : Editora Instituto Ciclos de guerras 32
José Luís e Rosa Sundermann, 2005.
Capítulo 3 - Acumulação, mercados e produção do complexo militar-
192 p.; 22 cm. (Série Polêmicas, 3)
industrial global 35
ISBN 85-99156-01-2 Malthus x Ricardo: duas almas habitando um único corpo 36
Remédios para enfrentar a crise 38
1. Economia política. 2. Ciclos econômicos. 3. Mercado. A produção global de armamentos 40
4. Acumulação de capital. 5. Capital financeiro. I. Título. Reforço do poder geopolítico e econômico dos Estados Unidos 42
lI. Série. Liberdade para a crise 47
CDD:330
Capítulo 4 - Anotações à margem sobre o dinheiro, o crédito e a reprodução
Índice para catálogo sistemático: Economia dos Estados Unidos. do capital 49
Economia Internacional. Sistema Financeiro. Crises Econômicas. Problemas circulatórios 54
Ciclos Econômicos. Globalização. Relações Internacionais. Geo-
Espécie ameaçada de extinção 56
política. Guerras. Organizações Internacionais.

PARTE 11
Editora Instituto José Luís e Rosa Sundermann 2001: Anatomia de um ciclo econômico
Rua Humaitá, 476
CEP: 01321-010 - São Paulo - SP
Telefone: (11) 3106-3345 Capítulo 5 - No balanço da Nova Economia 61
edi tora j lrsundermann@yahoo.com. br Produtividade e luta de classes 62
Turbulências no mercado 65
Improdutivinet.com 69
Impresso no Brasil
Maio de 2005 A "sociedade do conhecimento" na sarjeta 74
Capítulo 6 - 2001, uma odisséia no interior do ciclo 79
Fotografando perigosas relações de produção 81
Meu destino é acumular 85
Ciclo acelerado 89
Teoria, para que te quero... . 94
Capítulo 7 - A macroeconomia dos terroristas 99 PREFÁCIO
Fantasmas samurais 100
O jogo americano começa a mudar 103
Um raio no céu azul 106
Venha para o mundo da civilização 110
Balança, mas não cai 115
A prosperidade da guerra 119
Não é sempre que o mundo tem a oportunidade de comemorar uma pas-
pARTE 111
sagem de século. Menos ainda uma passagem de milênio. É muita coisa ao
A arquitetura da destruição
mesmo tempo. Em tão raríssimos momentos é de se esperar uma comemora-
Capítulo 8 - Estados Mínimos da América do Sul 125 ção especial, uma grande explosão festiva de alegria, euforia e otimismo em
Desigual, combinado e planejado 126 todo o mundo. Enfim, uma comemoração mais do que especial para um mo-
Capital financeiro e cucarachas desgovernadas 131 mento tão especial.
Um soldado perigoso, um soldado que pensa 136 Surpreendentemente, não houve nada disso na passagem do ano 2000
Genocídio global 140
para 2001, na passagem para o século XXI e para o 11 Milênio da era cristã.
Capítulo 9 - Desorganização das Nações Unidas 143 Em nenhum lugar do mundo. Nem em Nova York, capital do Império, a
Todos os caminhos levam à Roma 145 Roma moderna, centro da civilização cristã, do mundo capitalista e do espe-
Protecionismo dos ricos e colaboracionismo dos pobres 147
táculo globalizado. Parecia até que a Big Aple estava mais deprimida e pessi-
Depois da ONU, da OMC, da ALCA 150
mista do que em outras passagens comuns de ano.
O quinta-coluna da ALCA 152
Pode ser que essa falta global de entusiasmo em uma data tão especial seja
Capítulo 10 - Uma guerra em processo 155
coisa difícil de explicar. O que não se pode dizer é que não existiam motivos
Diálogo com os mortos 156
Quanto custa uma guerra? 159 materiais sobrando para que o mundo se sentisse, naquele momento, ame-
Pra lá de Bagdá 161 drontado com alguns fatos e algumas sensações de que alguma coisa pesada
Mais perigoso que dezenas de Saddams e AI Qaedas juntos 163 e ruim estava para acontecer logo no primeiro ano do novo século e milênio e
Devagar com o andor 167 não ter data para terminar.
Armagedon 168
Agora, quatro anos depois daquele insosso Reveillon, todos ainda guar-
A superprodução não debelada 171
dam na memória as imagens do 11 de setembro de 2001, os atentados que
Sobre a utilidade das mercadorias 174
explodiram e mandaram pelos ares as torres gêmeas em Nova York e o
A Europa entra na dança 176
Os custos da recuperação 179 Pentágono em Washington. Todos também ainda guardam as imagens das
A paz reina em Nova York 181 guerras que se seguiram nos anos seguintes e se prolongam até agora:
Observações gerais acerca do novo ciclo de expansão 182 Afeganistão, Iraque ... Nunca se falou tanto de "guerra ao terror", de Bin
Voracidade apocalíptica dos "eleitos de Deus" 184 Laden, de Saddam, de Bush, de Sharon, de AlQaeda, de "eixo do mal", de
"novos ataques terroristas" e por aí afora. E se fala cada vez mais.
Referências 189
Com tanto barulho, todos também parecem finalmente concordar com algo
que se tornou um lugar comum, uma verdadeira unanimidade: "o mundo mu-

vii
dou, o mundo já não é mais o mesmo depois do 11 de setembro de 2001"! Não precisamente na Bolsa de Valores de Nova York, na sua Bolsa eletrônica
faltaram, desde então, montanhas de livros, de filmes, de debates e outras popularmente conhecida como Nasdaq, onde eram negociadas as ações da
formas de manifestações para tratar destas mudanças e suas conseqüências até então reluzente e aparentemente invencível Nova Economia. O que esta-
sobre a vida mundial. va em jogo era a possibilidade de que aquelas turbulências do mercado que
Mas as comemorações da passagem do milênio em Nova York e no resto marcaram profundamente a chegada do século XXI pudessem evoluir para
do mundo não foram sem entusiasmo porque todos já sabiam de tudo isso uma crise de dimensões catastróficas e conseqüências sociais imprevisíveis.
que estava para acontecer. Evidentemente, ninguém sabia o que iria aconte- Acontecer na economia de ponta do mercado mundial a mesma catástrofe
cer em 11 de setembro daquele novo ano. O que não é tão evidente é que econômica que acabou ocorrendo na Argentina na virada de 2001 para 2002.
muita coisa preocupante já estava se passando bem antes daqueles explosi- Foram os desdobramentos desse turbulento ciclo econômico que marca-
vos acontecimentos. Em particular nos Estados Unidos (EUA). ram os acontecimentos políticos e as grandes transformações da velha ordem
É evidente também que ninguém sabia das guerras e das grandes mudan- internacional de que falamos acima. Nesse movimento, salienta-se particular-
ças geopolíticas que aconteceriam nestes primeiros anos do século XXI. O mente a nova política externa unilateral dos EUA de potência única, as guerras
que não é tão evidente, mais uma vez, é que as pressões para a mudança de preventivas e suas importantes conseqüências nas novas condições globais
jogo dos EUA no campo internacional também já estavam se avolumando de produção de armamentos e na dinâmica de uma nova guerra mundial.
muito antes do 11 de setembro: forte tendência ao isolamento econômico, Partindo desses acontecimentos ocorridos concretamente no início do sé-
protecionismo, nacionalismo, neo-realismo geopolítico, ideologia de valores culo XXI, este livro trata, de maneira prática, dos princípios e dos movimentos
patrióticos e outras idiossincrasias totalmente opostas à tendência de interna- mais gerais que fundem em uma mesma unidade as determinações dos ciclos
cionalismo político e liberalismo econômico que ainda predominavam no fi- econômicos periódicos (também conhecidos nos EUA como business cycle,
nal do século passado. ciclos de negócios) e os desdobramentos geopolíticos e militares em geral.
O que se pode verificar pela análise é que tanto o 11 de setembro quanto O livro está organizado de forma simples. Tem três partes. A Parte I apresenta
as grandes mudanças na velha ordem imperial têm uma história. Quer dizer, um resumo do desenvolvimento da economia mundial nos últimos 30 anos do
não aconteceram como um raio no céu azul da civilização. São resultados de século passado. Nos capítulos 1 e 2, as controvérsias teóricas sobre a natureza
movimentos materiais anteriores e perfeitamente verificados na investigação. e a cronologia dos ciclos econômicos ocorridos naquele período; no capítulo 3,
Da mesma forma que aquele desanimado Reveillon de 2001. Todos têm uma a relação orgânica entre a acumulação do capital, as crises e a produção de
história. Uma história econômica, em primeiro lugar. Na origem dos aconteci- armamentos. No encerramento, no capítulo 4, algumas anotações à margem
mentos, uma situação material cada vez mais ameaçadora. Um mundo que se sobre o dinheiro, o crédito e a dinâmica da economia capitalista.
desequilibra. Mais um ciclo econômico se fechava no terceiro trimestre de Na Parte lI, um triplo movimento de aprofundamento das teses centrais do
2000. Com um grande estrondo. A explosão da mais pesada crise industrial livro. No capítulo 5, tratando das condições reais de expansão do capital em
dos EUA nos últimos 50 anos criava a possibilidade de uma depressão econô- um ciclo econômico; no capítulo 6, tratando da microeconomia do último ciclo
mica global. econômico, quer dizer, das condições endógenas e determinantes do ciclo; no
Nada é mais perigoso para a governabilidade capitalista e a permanência capítulo 7, tratando da macroeconomia do ciclo, focando nas condições exógenas
do regime que uma depressão global. É por isso que a teoria das crises econô- do mesmo ciclo econômico, quer dizer, nas ações de política econômica e da
micas (e das suas diferentes formas e intensidade de manifestação) está no política propriamente dita do Estado (gastos com armamento, guerras etc).
centro da disputa teórica entre a economia política capitalista e a economia Trata-se de uma análise dos mecanismos anticíclicos concretamente utilizados
política dos trabalhadores, como Marx denominava a sua própria teoria. Essa pelos capitalistas, procurando antecipar-se e contrapor-se àquelas determina-
disputa teórica, tão antiga como o próprio regime capitalista, estava mais atu- ções endógenas de superprodução e crise.
al do que nunca nos últimos meses do século passado e início do século XXI. Na Parte III, a verificação dos desdobramentos reais da crise e das ações
Mais do que uma disputa meramente abstrata, tratava-se da verificação políticas internacionais. No capítulo 8, centrado mais na América do Sul
concreta daquela manifestação da crise global no coração do sistema. Mais para verificar as formas de intervenções imperialistas externas e do capital

viii
IX
financeiro internacional em economias e áreas dominadas do mercado mun-
dial. Verifica-se, em particular, a função do desenvolvimento desigual e com-
binado do capital mundial, como mecanismo de exploração e superação dos
ciclos periódicos. No capítulo 9, são verificados os desdobramentos da crise
econômica sobre as velhas instituições e organizações internacionais do pós-
guerra (Organização das Nações Unidas - ONU, Organização Mundial do
Compercio - OMC) e os blocos econômicos regionais, com ênfase em uma
crônica elevação da temperatura protecionista dos EUA. No capítulo 10, fi-
nalmente, procura-se fazer um estudo aprofundado do que se poderia chamar
da economia da guerra. Trata-se de uma síntese de todas as investigações de
campo e desenvolvimentos teóricos anteriores para esclarecer as determinações
econômicas da guerra e o sentido que essa guerra assume necessariamente:
uma guerra em processo, uma guerra que procura se globalizar.
Nas páginas finais, procura-se estabelecer as perspectivas dos próximos PARTE I
ciclos econômicos, os seus períodos de crises e os desdobramentos da guer-
ra mundial que se segue, organicamente articulada àqueles movimentos
econômicos.
IMPÉRIO E CICLOS NOS LONGOS
Resultado geral da investigação: unidade orgânica dos ciclos econômicos ÚLTIMOS TRINTA ANOS DO SÉCULO XX
com as guerras imperialistas. Em processo. A economia do imperialismo e a
guerra mundial em novo processo de identificação, de reaproximação e de
fusão. A economia dos terroristas e as guerras imperialistas em uma mesma
unidade de terror global.

A te il rigor, [iglio, si aspeta.

José Martins, fevereiro de 2005.

x
Capítulo 1

OS LOUCOS ANOS 70

Existem inesgotáveis controvérsias acerca de novos fenômenos ocor-


ridos na economia mundial a partir do início dos anos 70. E uma
bibliografia que se multiplica com muita rapidez. O único ponto que
parece aceito por todos é que alguma coisa muito significativa se al-
terou na forma que o regime capitalista vinha funcionando até então 1•
Foram muitas as rupturas. Comecemos pela superfície do pro-
cesso, pelo funcionamento das instituições financeiras e dos fluxos
monetários internacionais. Em 15 de agosto de 1971, o presiden-
te dos EUA, Richard Nixon, anuncia ao mundo o fim da conversi-
bilidade do dólar em ouro. O sistema de Bretton Woods terminou.
O seu cerne era a conversibilidade. O dólar americano era a chave
de confiança e a moeda de reserva por ser "tão bom quanto o
ouro", quer dizer, tinha a garantia do governo americano de que
podia ser convertido em determinada quantidade de ouro.
Rompia-se assim com o sistema de câmbio fixo entre as princi-
pais economias e desfazia-se na prática o velho sistema monetário
que regulava os fluxos financeiros e o comércio internacional do

1. "A história dos vinte anos após 1973 é a de um mundo que perdeu suas referên-
cias e resvalou para a instabilidade e crise." (Hobsbawn, 2002)
"Algo de fundamental parece haver-se modificado, no último quarto de século, no
modo como funciona o capitalismo. Na década de 1970, muitos falaram em crise.
Na de 1980, a maioria falou em reestruturação e reorganização. Na de 1990, já
não temos certeza de que a crise dos anos 70 foi realmente solucionada, e começou
a se difundir a visão de que a história do capitalismo talvez esteja num momento
decisivo." (Arrighi, 1996)

13
pós-guerra. Acreditou-se por um certo tempo que aquela suspen- bárbara" de que falava Keynes. Desfazia-se de seus últimos resíduos
são unilateral da conversibilidade do dólar em ouro fora uma medida de um padrão concreto de medida do valor e assumia a sua própria
temporária e que, de qualquer modo, os EUA reassumiriam a sua natureza abstrata, a de simples medida de uma determinada quan-
obrigação de restaurar a conversibilidade e reativar o sistema de tidade de tempo de trabalho abstrato (valor) contido nas merca-
Bretton Woods, mesmo que modificado, e tudo continuaria como dorias. Mas tudo isso aconteceu da forma mais inesperada, atra-
no passado. Afinal, diziam, o mundo não podia acabar. vés de uma incondicional e inédita centralização do poder mone-
tário dos EUA sobre o resto do mundo. Incondicional porque o
Em discurso em 26 de abril de 1973, John Connaly, secretário
dólar não precisava mais ser "tão bom quanto o ouro" para ser a
do Tesouro dos EUA, resumiu cruamente a visão oficial do governo
moeda reserva internacional. Inédito porque isso nunca tinha acon-
americano acerca dessa possibilidade de volta ao passado:
tecido na história do mercado monetário mundial.
'~ era de supremacia americana nas finanças internacionais, que
começou na Segunda Guerra Mundial, já terminou. O sistema monetá- Nem todos aceitavam essa inadmissível rebeldia da moeda contra
rio e comercial que proporcionou a base para a era pó-guerra desmoro- a sua forma mercadoria, sua forma de valor de uso, para assumir
nou-se. Não adianta nos enganarmos, dizendo que foi apenas abala- uma forma exageradamente abstrata. O economista Ernest Mandel,
do, que o reconstruiremos. Ele desapareceu para sempre." (apud Rolfe por exemplo, nos dizia:
e Burtle, 1975)
((O sonho da desmonetização do ouro não passa de uma utopia
Desmentindo esse pessimismo de fachada das autoridades quanto tecnocrática. O ouro permanecerá mais do que nunca a base de reserva
à perda da supremacia dos EUA, os fatos que se seguiram à maior dos Bancos Centrais e o tesouro de 'última instância', na medida em
moratória da história do sistema monetário mundial mostraram, que a moeda de papel de reserva, o dólar, é cada vez menos 'tão bom
quanto o ouro', pois ela perde cada vez mais seu poder de compra."
ao contrário, uma nova realidade de reciclagem, de expansão e de
(Mandei, 1978)
reforço daquela desgastada supremacia imperial americana nas
finanças internacionais do pós-guerra e no tabuleiro geopolítico em Os fatos posteriores, principalmente nos anos 80 e 90, mostra-
geral. Em primeiro lugar, apesar de todos os choques que atingi- ram que as coisas se passariam bem diferentemente dessas cogita-
ram o sistema, a grande roda, como Adam Smith chamava a orga- ções de MandeP.
nização monetária internacional, não foi interrompida. Ao contrá- Mas não havia nenhuma resistência séria ao avanço da moeda
rio, o comércio e os investimentos globais continuaram em níveis dos EUA. Nem na Europa e nem no Japão apareceu nenhuma
crescentes de atividade. Ritmados, é claro, por crises periódicas de unidade monetária competitiva com o dólar, embora tenha havido
superprodução cada vez mais potentes. Mas o mundo não tinha vários planos neste sentido. E se não apareceu naquele momento
acabado. Estava apenas mais acelerado. de crise aberta no sistema, apareceu muito menos nas décadas
Em segundo lugar, o dólar não foi "destronado". O que aconteceu seguintes. Os desenvolvimentos posteriores autorizam dizer que,
foi que o mundo se encontrou de repente em um puro padrão- nos dias atuais, deve ser sepultada a idéia de que no novo siste-
dólar, inconversível, e continuou vivo, bem mais vivo do que antes. ma monetário mundial, originado naqueles dramáticos aconteci-
Paradoxalmente, o uso do dólar nas transações internacionais re-
forçou-se, ao mesmo tempo em que sua reputação diminuía com
seguidas desvalorizações frente ao ouro no decorrer da década de
70. O ouro desaparecia de fato como referência de valor das 2. Marx nos conta que: "Num debate parlamentar sobre os 'Bank-acts' de sir Robert
Peel, de 1844 e 1845, Gladstone observava que nem mesmo o amor levou tanta
moedas nacionais e o dólar reforçava o mesmo papel de moeda de
gente à loucura como as cogitações sobre a essência da moeda. Ele falava de inglês
reserva internacional que exercia no antigo sistema de Bretton para ingleses. Os holandeses, ao contrário, apesar das dúvidas de Petty, sempre
Woods. Quer dizer, o sistema monetário mundial se libertava final- foram divinamente maliciosos nas especulações com o dinheiro, e nunca perderam
mente das suas últimas reminiscências metálicas, daquela "relíquia a malícia para especular sobre o dinheiro." (Marx, 1987)

14 15
mentos de 1971 e nos anos seguintes, possa haver qualquer bancos centrais e de outras instituições ou acordos, muitas vezes
alternativa real para o dólar. especulativo, esse mercado de hotmoney anuncia a emergência do
Esse inabalável predomínio do dólar americano talvez possa mais recente processo de globalização da era capitalista, que só vai
ser explicado por outros importantes desdobramentos que levaram se instalar e se tornar mais evidente a partir do início dos anos 70.
ao solene sepultamento do Acordo de Bretton Woods em agosto Desde seu início, esse novo sistema monetário internacional - e
de 1971 e o surgimento do novo sistema de taxas cambiais flu- seu corolário, o sistema de taxas cambiais flutuantes - já exprimia
tuantes. O mercado de eurodólares, ou de euromoedas, é o princi- claramente as contradições de uma gigantesca internacionalização
pal. Vejamos como Rolfe e Burtle resumem a origem mais imedia- do capital industrial dos EUA nos anos 60 e as tentativas vacilan-
ta desse mercado: tes e ineficazes dos diversos governos nacionais para defender sua
autonomia de ação frente àquele embrionário processo de
UOs persistentes e crescentes déficits americanos haviam minado o sis-
globalizaçã04•
tema durante duas décadas, particularmente nos cinco ou seis anos
anteriores ao seu fim. Mas não foram os déficits comerciais como tais Na origem dessa transição de um sistema monetário internacio-
que precipitaram o seu fim, mas os vastos movimentos de capital a nal para outro, portanto, desenrolava-se uma transição ainda
curto-prazo entre nações. Em 1971, o déficit americano básico era de
mais fundamental das condições produtivas de capital no merca-
pouco mais de 9 bilhões de dólares, a quantia mais elevada do pós-
guerra, mas menos do que um terço do déficit total dos Estados Unidos
do mundial. As instabilidades e descontroles que se assistia nos
de 29,8 bilhões de dólares. Foi essa grande cascata de dólares espalhan- mercados monetários e financeiros internacionais eram antes de
do-se pelo resto do mundo e, em especial, pelos países de moeda forte tudo manifestações de novas condições da produção e da acumu-
que rompeu o sistema. (... ) Além dos fluxos de dentro dos Estados Uni- lação do capital global. Eram geradas pela adaptação das formas
dos, existem vastas quantidades de dinheiro fora de seus países de mais superficiais do mercado capitalista às necessidades de valo-
origem que se chamam euromoedas, Estas podem ser enviadas de um
rização e reprodução ampliada da produção de mais-valia. Adap-
país para outro com grande velocidade; são tão móveis quanto um tele-
fonema ou uma mensagem de telex. Além do mais, esses fundos não tação dos fluxos monetários e de juros aos novos fluxos da pro-
estão sujeitos a qualquer autoridade monetária supranacional, já que dução e dos lucros.
não há nenhuma. J> (Rolfee Burtle, 1975)3
O mais importante, entretanto, era que o novo sistema monetá-
Esse mercado era a própria forma protozoária de um novo siste- rio e de crédito internacional estava sendo formatado não só para
ma financeiro mundial que se estava a gestar e que iria comandar alavancar a explosiva produção global do capital, mas, sobretudo,
doravante o comércio e os investimentos internacionais. O impor- para que os governos e os capitalistas pudessem enfrentar os cho-
tante a notar é que nessas novas formas simples de ques cíclicos e periódicos de superprodução com mãos mais livres
supranacionalidade, de curto prazo, de ausência de controles de e instituições governamentais mais flexíveis.
Apesar dessa erupção de uma nova e rica realidade, essas
novas formas de funcionamento de um sistema financeiro
3. Uma curiosidade: nos primórdios desse novo sistema financeiro mundial, ainda
especificamente capitalista - desmetalizado, desestatizado,
nem se imaginava a revoluçãoda microeletrônicae tantas outras inovações tecnológicas
que transformaram de cabo a rabo os modernos meios de comunicação do mercado
mundial. Tudo em pouco menos de 20 anos. Naquele momento em que Rolfe e
B.urtle estão descrevendo esse embrião da mais recente globalização financeira, 4. Em 1977, o economista americano Robert Triffin resumia assim a situação: "A
ainda não existiam nem as mais simples calculadoras eletrônicas, nem mesmo as intemacionalização dos mercados de capitais, sobretudo com o crescimento dos mercados
~ensagens via fax, e muito menos os sistemas digitalizados, de leitura ótica, de eurodólares e das sociedades multinacionais, tornou cada vez mais difícil a gestão
~~formatizados, robotizados, intemet etc. Mas isso não impedia que essas euromoedas da economia mundial pelos governos e instituições internacionais. O setor privado se
ja fos "tã ,.
sem ao moveis quanto um telefonema ou uma mensagem de telex", o que já ajustou à interdependência crescente da economia mundial; o setor público não con-
era uma novidade assombrosa para os seus primeiros observadores e analistas. seguiu fazer o mesmo." (apud MandeI, Business Week, 3/10/1977)
16
17
desnacionalizado, desburocratizado, desregulado, incontrolado _ neste período. Em um artigo publicado em 1984 para analisar a
vão ser consideradas inviáveis, permanentemente instáveis, pela crise econômica de 1980/1982, já procurávamos formalizar, mes-
quase totalidade dos historiadores, economistas, sociólogos, mo que embrionariamente, a unidade desses três movimentos en-
geógrafos e outros analistas deste recente processo de globalização. trelaçados - ciclos periódicos, economia dos EUA e globalização
E as novas formas da acumulação do capital financeiro mundial do capital".
- apenas formas secundárias e subordinadas ao processo de con-
junto da produção e circulação capitalista, da mesma forma que Esse choque de 1980/1982 foi o mais pesado do período pós-
a concorrência, as empresas, o comércio etc. - vão ser tomadas guerra. O que ele colocou em jogo no começo dos anos 80 não era
como o demiurgo do processo e como a suficiente comprovação mais aquela sucessão monótona de ciclos econômicos que se assis-
de decadência e de uma crise permanente do sistema produtor de tira nos 35 anos anteriores. Para além da realidade mais imediata,
capital desde o início dos anos 70 até os dias atuais>. aquele "terremoto de 1980/1981" pode ser considerado como o
definitivo ponto de ruptura da velha ordem do pós-guerra e, mais
É como se as décadas que se seguiram aos anos 70 tivessem
importante, como o detonador de um novo período de
sido nada mais do que o palco de um mero longo período de
aprofundamento da globalização e de emergência das antigas cri-
declínio econômico ou de decadência do sistema. Como veremos
ses de superprodução de capital, da mesma natureza daquelas
a seguir, essa visão de esgotamento e de um longo declinio será
que marcaram a paisagem econômica mundial entre 1840 e 1929.
predominante nas análises do período 1970/2000. Do mesmo
modo que para o pessimismo com os desequilíbrios do sistema As transformações globais iniciadas nos anos 80 não se restrin-
monetário e financeiro nos anos 70, que vimos anteriormente, giram mais ao acabamento e aos retoques finais no novo sistema
haverá então um outro ainda mais absurdo, o da impossibilidade monetário mundial. Isso já tinha sido resolvido nos anos 70 e
absoluta de continuidade do processo de acumulação do capital devidamente sacramentado no final daquela década pela política
industrial no mercado mundial e, conseqüentemente, uma crise monetária do sanguinário Paul Volker, presidente do Federal Reser-
permanente do capital. No centro desse debate, a natureza das ve (Banco Central dos EUA), nos governos de Carter e Reagan. O
crises econômicas capitalistas e suas formas de funcionamento, fato mais importante ocorrido é que os capitalistas americanos
os ciclos econômicos. reagiram ao "terremoto de 1980/1981" com artilharia pesada,
com uma inaudita reestruturação produtiva global. Nos 20 anos
A grande transformação
seguintes, à medida em que se sucediam novos e mais potentes
Quando se aprofundam as investigações do período iniciado abalos sísmicos no mercado mundial, essa mais recente onda his-
nos anos 70, o que mais se evidencia é um crescente entrelaça-
mento dos ciclos periódicos de superprodução do capital com o
que ocorre no interior da economia dos EUA e, por extensão qua- 6. "O relógio da recuperação econômica mundial já está funcionando há aproxima-
damente 18 meses, desde que a economia norte-americana recuperou o caminho da
se automática, com as explosivas transformações do mercado global
sua expansão produtiva. A demora de uma generalização é resultado principalmente
das difíceis condições criadas pelo terremoto de 1980-1981 sobre o sistema pro-
dutivo mundial e, conseqüentemente, sobre seu sistema financeiro e comercial.
5. "Já no início da década de 70 (e fim dos anos 60) começam a surgir os primeiros
Uma análise linear da atual recuperação certamente cairá nos mesmos equívocos de
sintomas do esgotamento do ciclo expansivo do após guerra, iniciando um processo
períodos anteriores, equívocos sustentados em grande parte pelas ilusões de um
q~e logo irá levar a economia mundial a um persistente período de estagnação econô-
período do pós-guerra que não apresentou até 1970, aproximadamente, grandes
m ica , desorganização política e institucional e instabilidade. Aparentemente
descontinuidades cíclicas da economia mundial. Por isso, a previsão de uma possí-
confirmando a teoria dos ciclos longos( ... ) a produtividade entra em declínio, a taxa
vel recuperação das diversas economias não pode deixar de ser feita neste momento
de lucro e a acumulação de capital diminuem, declinando também os investimentos
em que a economia norte-americana já está suficientemente forte para exportar a
p~o~utivos, envolvendo a economia mundial num prolongado período de estagna-
sua quase isolada recuperação, evitando com isso que o sistema global retroceda de
çao. (CNPQ - Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnológica, 1989)
imediato à mesma desordem que o ameaçava em 1980-1981." (Martins, 1984)
18
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tórica de globalização da indústria capitalista acelerava mais e mais
a expansão do mercado e da indústria mundial, até o último rincão
do globo, exatamente na medida dos impactos daqueles abalos
periódicos e da necessidade de serem superados. Promoveu-se as-
sim uma grande transformação da crosta industrial terrestre.
Essa expansão do mercado - quer dizer, a agregação contínua de
novos espaços de valorização, ou reformas e reestruturaçôes dos Capítulo 2
antigos, com a globalização radical do trabalho assalariado e do
exército industrial de reserva - ocorre com o objetivo determinante CONTROVÉRSIAS SOBRE A NATUREZA E A
da classe capitalista (com seus governos nacionais e algumas orga-
nizações internacionais) de se contrapor à tendência à queda da CRONOLOGIA DOS CICLOS ECONÔMICOS
taxa geral de lucro.
Desse modo, no final do século passado, a classe operária mun- Catastrofismo vulgar
dial - aprisionada nas condições materiais de existência do capital,
Na sua análise dos anos 80, o historiador Robert Brenner des-
condições cada vez mais globalizadas - estava internacionalizada
taca em seu mais recente livro uma
com uma profundidade e uma extensão geográfica que poucos po-
deriam imaginar 30 anos antes. O exército industrial de reserva "reoiraoolta do setor manufatureiro dos Estados Unidos" e "um momen-
to crítico para a economia mundial como um todo", além de "uma virada
tinha sido revolucionariamente globalizado. Tudo isso só poderia
histórica nas tendências da competitividade ou, por sua vez, da ascen-
ser realizado com níveis recordes de acumulação do capital indus- são paralela na taxa de lucro do setor de manufaturados." (Brenner, 2003)
trial; conseqüentemente, com elevação das taxas de exploração da
força de trabalho global (produtividade) e potencializando novas Infelizmente, o autor não consegue deduzir todas as conseqüên-
crises periódicas mais e mais ameaçadoras ao sistema 7 • cias das excelentes e abundantes verificações empíricas que ele
realiza acerca desta "virada histórica') que estava a ocorrer na
indústria de manufaturados dos EUA e da economia mundial. O
problema talvez seja a sua insistência em demonstrar a todo cus-
to um suposto "longo declinio" e "estagnação" que teria perdura-
do de 1970 até os dias atuais na economia dos EUA e, por
extensão, na economia mundial. Vejam o que ele nos diz:
"Para uma avaliação das perspectivas futuras da economia atual dos
Estados Unidos, o ponto de partida precisa ser o próprio longo declínio.
Nunca é demais enfatizar que a revitalização da economia ameri-
cana, em torno de 1993, ocorreu contra o pano de fundo de uma
estagnação econômica dos Estados Unidos e em escala mundial que
perdurava há pelo menos duas décadas, desde o início de 1970."
(Brenner, 2003)

É claro que Brenner não está sozinho nessa cruzada do dec/inismo


7. Para uma análise detalhada desse recente processo histórico, devidamente doeu-
~e~tado por farta quantidade de dados empíricos, vide o livro de José Martins, Os
econômico. Como vimos anteriormente, são em grande número os
limites do irracional- globalização e crise econômica mundial, S. Paulo, Ed. Fio do partidários de um suposto longo período de estagnação do capital
Tempo, 1999.
industrial, a partir do início da década de 70, depois de um exube-
20
21
rante e grande boom pós-guerra (ou "trinta anos gloriosos", para os Ao inverter as determinações do processo de conjunto da acumula-
mais entusiasmados) que, por seu lado, teria se estendido do final ção capitalista, quer dizer, ao romper a unidade entre produção indus-
trial e circulação, essa velha e incurável tara genética da Economia
dos anos 40 até o início dos anos 708.
política, os partidários da doutrina do "longo declinio" e da "expan-
Mas quais são os fundamentos reais em que eles se apóiam
são financeira" também são incapazes, antes de tudo, de avaliar a
para deduzir esses fantasiosos "trinta anos gloriosos" ou,. por ~u~r~ natureza das crises periódicas de superprodução de capital e dos
lado, o "longo declinio" da acumulação industrial que tena se 1ll1.Ci- correspondentes ciclos industriais do pós-guerra. Falam, quando mui-
ado nos anos 70 e perdurado até agora? Isso é um verdadeiro to, de crises de sobreacumulação de capital (ou de superacumulação).
mistério. Além das surradas "curvas ascendentes", seguidas das Quer dizer, são incapazes, à maneira de Keynes, de ir além da esfera da
"curvas descendentes", de Kondratiev, que todos repetem como circulação das mercadorias enquanto tais, enquanto um indistinto pro-
papagaios, sem oferecer nenhuma justificativa séria, alguns fal~m duto ou "renda",
de uma espécie de crise das instituições reguladoras do capital
financeiro, um súbito enfraquecimento da "capacidade de inter- É assim que eles encontram caminho livre para substituir as crises
venção do Estado e outras instituições políticas" nos movimentos do de superprodução de capital- originadas fundamentalmente no aumen-
to desmesurado da taxa de produtividade (exploração) da classe ope-
mercado e outras lamentações burocráticas.
rária mundial e manifestada na totalidade do sistema por complexas
A forma que assume o longo declínio, essa miragem de uma evoluções dos preços das mercadorias, da taxa de lucro, da taxa de
suposta "e stagn açào persistente do capital indust~ial"? U~a acumulação, do emprego e desemprego, das contas públicas, das
"ultrafinanceirização"! Para o economista frances Franço s í

moedas nacionais, dos sistemas financeiros nacionais e internacio-


Chesnais, por exemplo, teria ocorrido nais, das inovações tecnológicas, da concorrência entre capitais e eco-
"ofim do ciclo do capitalismo sob o domínio do ca?ital industrial {...}, a nomias nacionais etc. - por uma mítica e ingênua "expansão financei-
autonomia total que imprime sua marca ao conjunto de operaçoes da ra", por «uma fraqueza dos governos e das elites que dirigem os princi-
economia contemporânea [que) leva a marca da ultrafinanceiri:aç~o,
pais países adiantados"!
do domínio do capital rentista (rentier). (... ) O sistema, pela pYlmelr~
vez em toda sua história, confiou completamente aos mercados o desti- Alguns misturam as bolas e confundem crise de superprodução
no da moeda e das finanças ... Os governos e as elites que diri~em o~ de capital com crise de superacumulação de mercadorias, como se
principais países capitalistas adiantados, deixaram que o capItal-dI-
nheiro se tornasse hoje uma força incontrolável. (Chesnais, 1996)9
JJ

9. Osvaldo Coggiola é um dos poucos que se contrapõem vez ou outra a essas vulgari-
dades keynesianas de administração do capital financeiro: "Tem de se ver o fenômeno
em sua lógica produtiva. (... ) A crença de que a instabilidade da economia moderna
8. Vejam, por exemplo, o entusiasmo do conhecido historiador Eric Hobsbawn po: deriva da volatilidade da moeda, da "preferência pela liquídez" e das práticas financei-
ras ar~iscadas, é própria do pós-keynesianismo. Nessa questão esquece-se que a
esse período: "Só depois que passou o grande boom, nos pertu.r~a~os anos 70, a
espera dos traumáticos 80, os observadores - sobretudo, para I.mclo de conversa, superfl.cie monetária não é geradora, mas receptora dos desequilíbrios reais do
capitalismo. O peso inédito do capital financeiro foi decisivo, sim, na concentração
os economistas _ começaram a perceber que o mundo, em partlcular o mundo do
capitalismo desenvolvido, passara por uma fase excepcional de sua história; talvez empresarial mundial. (... ) nunca se deve esquecer porém que em última instân-
uma fase única. Buscaram nomes para descrevê-Ia: os 'trinta anos gloriosos' dos cia, o ciclo do crédito se contrai e se expande seguí~do o ci~lo í~dustrial, os bancos
concentram e redistribuem a mais-valia gerada no processo de produção, e inclusi-
franceses (les trente glorieuses), a Era de Ouro de um quarto de século dos anglo-
americanos. O dourado fulgiu com mais brilho contra o pano de fundo baço e
:re os capitais fictícios emitidos sem contra partida real dependem das atividades
I~dustríais. Qualquer que seja a sua separação da produção, os capitais financeiros
escuro das posteriores décadas de crise. Numa perspectiva longa, a Era de Ouro
nao são" puros papels ,.. ",enquanto o mercado reconhecer algum preço. O mesmo
foi mais uma reviravolta ascendente na curva de Kondratiev, como o boom vitoriano
de 1850-1873, e a belle époque dos vitoria nos tardios e eduardianos. Como v~le para os títulos públicos. O que explica a circulação de qualquer forma de
outras viradas ascendentes anteriores, foi precedida e seguida por curvas descen- dinheiro é a existência de valores surgidos de atividades reais e direitos derivados
da geração de mais-valia já criada ou a ser gestada." (Coggiola, 2003)
dentes." (Hobsbawn, op. cit.)
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tudo fosse a mesma coisa. É com essas delinqüências teóricas que, A reafirmação desse papel dos EUA, outrora representado em
no trânsito congestionado desse marxismo bastardo, as idéias circu- muito menor intensidade pela Inglaterra e outros coadjuvantes eu-
lam inconseqüentemente, sem mão nem contra-mão. Para fazer a ropeus na fase colonialista, agora se reapresenta em uma transição
mesma manobra de negação das crises periódicas de superprodução histórica qualitativamente nova, quer dizer, não apenas com uma
de capital no período pós-guerra, outros partidários do "declinismo" mera troca de atores, como uma linear ascensão e queda de superpo-
econômico afirmam, ao contrário dos primeiros, que os mecanis- tências. Reapresenta-se principalmente em uma dimensão espacial
mos estatais de controle do mercado são muito mais poderosos também renovada e qualitativamente atualizada para enfrentar os
agora do que no passado. Com essa inversão dos seus próprios desafios finais desta era capitalista que conseguiu realizar, nos
pressupostos, eles podem então abolir por telepatia as crises perió- últimos longos 30 anos do século XX, a proeza de uma completa
dicas em geral e colocar no seu lugar a idéia de um burocrático e globalização do mercado mundial, das condições de existência da
monótono "padrão linear de movimento", um "continuum depres- população mundial (e da classe operária em particular) e de sub-
sivo", uma "crise permanente" que se perde no horizonte '". missão absoluta da espécie humana e das condições naturais às
necessidades de crescentes níveis de valorização e de acumulação
Escamoteando a periodicidade e a regularidade dos ciclos eco- do capital mundial. Essa é a base material, quer dizer, econômica,
nômicos ocorridos nos últimos 30 anos do século XX, substituin- do necessário aprofundamento e extensão do poder imperialista
do-os com a idéia absurda de uma suposta crise permanente da dos EUA nos últimos 30 longos anos do século XX.
produção capitalista 11 , essa doutrina do "longo declinio" fecha tam-
bém todas as portas para uma observação criteriosa dos impactos Uma história mal contada
desses dinâmicos ciclos periódicos de expansão e contração da A reafirmação dos EUA como o centro do sistema, acompanha-
indústria dos EUA, cujas diferentes fases se acoplam organicamen- do de aumento do poder, depois de todas as turbulências dos anos
te às profundas transformações tecnológicas, populacionais etc., 70 e início dos anos 80, não passou desapercebida pelos partidá-
ocorridas na totalidade do mercado mundial. Impossibilita assim a rios da doutrina da longe durée [longa duração]:
verificação criteriosa do novo papel da economia e do igualmente
«Sempre que acontece um deslocamento do centro, opera-se uma
renovado poder imperialista dos EUA de centralizar e de regular de
recolocação, como se uma economia-mundo não pudesse viver sem um
maneira inédita a totalidade do mercado mundial e suas corres- centro de gravidade, sem um pólo. Mas esses deslocamentos e recolocações
pondentes superestruturas geopolíticas. do centro são raros e cada vez mais importantes. (...) No horizonte do
mundo europeu, a horafatídica terá assim soado cinco vezes e, em cada
vez, esses deslocamentos do centro se realizaram no curso de lutas de
enfrentamentos, de fortes crises econômicas. São exatamente as tem~es-
10. Vejam a opinião do eclético sociólogo húngaro Istvan Mészaros acerca desse assun-
tades econômicas que acabam derrubando o antigo centro, quejá vinha
to: "É preciso admitir que enquanto a relação atual entre os interesses dominantes e o
sendo ameaçado, e confirmando a existência do novo. Tudo isso, eviden-
Estado capitalista prevalecer e impuser com sucesso suas demandas à sociedade não
temente, sem regularidade matemática: uma crise crônica é uma prova-
haverá grandes tempestades a intervalos razoavelmente distantes, mas precipitações de
freqüência e intensidade crescentes por todos os lugares. De resto, os picos das histó-
=. os fortes a terminam, os fracos sucumbem. O centro não quebra,
ricas e bem conhecidas crises periódicas do capital podem ser - em princípio - com-
então, a cada golpe. Ao contrário, as crises do século XVII giraram na
pletamente substituídos por um padrão linear de movimento. Seria, contudo, um gran- maioria das vezes a favor de Amsterdam. Vivemos atualmente, há al-
de erro interpretar a ausência de flutuações extremas ou de tempestades de súbita guns anos, uma crise mundial que se mostra forte e durável. Se Nova
irrupção como evidência de um desenvolvimento saudável e sustentado, em vez da York sucumbisse à provação - o que não acredito nem um pouco - o
representação de um continuum depressivo, que exibe as características de uma crise mundo deveria encontrar ou inventar um novo centro. Se os Estados
cumulativa endêmica mais ou menos permanente e crônica, com a perspectiva última Unidos resistem, como tudo leva a prever, eles podem sair mais fortes da
de uma cri~e estrutur~l cada vez mais profunda e acentuada." (Mészaros, 2002) provação, pois os outros correm o risco de sofrer bem mais que eles com
11. "Não existe crise permanente do capital, o que existe são crises periódicas em
a conjuntura hostil que estamos atravessando. De qualquer modo,
centralidade, decentralidadee recentralidade} parecem lieados
o' J usualmente
,
permanência." (Marx, 1985)
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a crises prolongadas da economia em geral. Portanto, é através dessas Conclusão, ou, na língua de Braudel, Ia grande [inale: desde os
crises que se deve, sem dúvida, abordar o estudo difícil desses mecanis- anos 70, os EUA "retiraram-se do comércio" e se transformaram ape-
mos de conjunto pelos quais a história geral se desdobra." (Braudel, 1985) nas em "banquezros
. do mun do " , trans f armaram-se em uma mera eco-
nomia rentista e decadente. Uma perfeita repetição dos holandeses
Brilhante. Mas, infelizmente, apesar dessa momentânea luci-
que, em meados do século XVIII, se transformaram em "banqueiros
dez de análise, outros estudos dessa escola da longe durée reve-
da Europa".
lam uma enorme dificuldade para demonstrar um suposto "declinio
do poder americano" a partir dos anos 70. Como eles chegaram a Puro esquematismo intelectual, que não encontra nenhuma cor-
essa conclusão? Resumidamente, eles periodizam o que chamam respondência seja com a forma seja com o conteúdo do desenvolvi-
de "capitalismo" em quatro longos "ciclos históricos", de aproxi- mento histórico do regime capitalista de produção. Mas não se
madamente 100 anos cada um, em média: o genovês (Itália), o trata de realizar aqui uma crítica detalhada às notáveis e evidentes
holandês, o inglês e, finalmente, o norte-americano. fragilidades internas e externas dessa mal sucedida tentativa de
periodizaç~o, ~istórica da era capitalista. Interessa salientar apenas
O economista ítalo-americano Giovanni Arrighi, um dos mais que essas idéias de decadência e de longa duração estão imbricadas
destacados epígonos de Ferdinand Braudel, descreve a evolução organicamente com as de longo declínio, financeirizaçâo, ciclos lon-
desses ciclos da seguinte forma: o que marca a "decadência" de
gos de Kondratie~, crise pe~manente e outras vulgaridades que já
cada um desses centros da "economia-mundo" é o "amadurecimento"
repas.samos antenormente. E o que nos confirma o sociólogo norte-
do ciclo e o aparecimento de uma "expansão financeira" nesses
amencano Immanuel Wallerstein, outro laureado epígono de Braudel
centros, sintoma de maturidade de determinado ciclo de longe durée em seu mais recente livro, que ostenta um título (O Declinio d~
do desenvolvimento capitalista. Esse centro decadente "se retira", Poder Americano) para ninguém duvidar do que ele está afirmando:
então, da anterior "expansão do comércio", que é transferida para
um novo centro ou pólo, e assim sucessivamente. Portanto, em
"O_s p~ocessosa que em geral nos referimos quandofalamos de globalização
nao sao, na verdade, novos. A escolha que temos quefazer hoje não é a de
cada transição, o centro decadente se transforma em "banqueiro do submetermos ou não a esses processos, mas sim o quefazer quando esses
mundo", "fornecedor de dinheiro" para o novo centro que centraliza processos desmoronarem, como estão desmoronando. (...) Podemos antes
a "expansão do comércio", e assim sucessivamente. olhar para a situação atual, de modo muito mais produtivo, em dois outros
enquadramentos temporais, aquele que abrange o período desde 1945
Essa estratégica "retirada" do centro dominante é uma "tendência aos dias .de hoje, e o que decorre entre 1450, aproximadamente, e os
sistêmica recorrente em âmbito mundial". E a «expansão financeira" nosso~ dias. O período entre 1945 e os dias de hoje é o período típico de
também, bien sur! Assim, muito antes da decadência atual dos EUA, um Ciclode Kondratieff da economia-mundo capitalista que tem, como
a mesma tendência se evidenciava na Itália do século xv, quando a ser:zpre,duas fases: uma fase A, ou curva ascendente de expansão econô-
mica, que neste caso ocorreu de 1945 a 1967-1973, e uma fase B, ou
«oligarquia capitalista" genovesa passou das mercadorias para a ativi-
cu','Vadesce~dente de contração econômica, que existe desde 1967-1973
dade bancária, e na segunda metade do século XVI, quando os ate ~ossos dias e que provavelmente [sic] continuará por muitos anos. O
genoveses, fornecedores oficiais de empréstimos ao rei da Espanha, pe:zodo de 1450 até hoje, em contraste, assinala o ciclo de vida da econo-
"retiraram-se gradualmente do comércio". Seguindo os holandeses, essa mla-mun~o capitalista, que teve sua gênese, o seu período de normal
tendência foi reproduzida pelos ingleses no fim do século XIX e início desenvoluimento e agora entrou em um período de crise terminal ))
(Wallerstein, 2004) .
do século XX, quando o fim da «fantástica aventura da revolução
industrial" criou um "excesso de capital monetário". Para resumir esse assunto, o que não podemos deixar de ano-
tar é que se verifica na historiografia econômica, tal como ela se
Finalmente,
apresenta atualmente, a conformação de um verdadeiro escudo
"depois da igualmente fantástica aventura do chamado fordismo- paradoigmátíco
,. tanto na historiografia quanto na análise econômi-
keynesianismo, o capital dos Estados Unidos tomou um rumo semelhan-
ca dos longos últimos 30 anos do século XX e, o que é pior,
te nas décadas de 1970 e 1980.)) (Braudel, op. cit.)
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distorcendo a maioria das análises atuais de um processo que É justamente para se desviar da depressão econômica que
está longe de revelar todas as suas conseqüências. aquelas ações políticas e geopolíticas dos capitalistas se multipli-
cam na totalidade do sistema, resultando então em contínuas e
Neste caso particular da doutrina da longe durée, a distorção
profundas mudanças nas condições históricas de funcionamento
mais danosa encontra-se exatamente nessas idéias que se fazem
do mercado mundial, nas relações internacionais e as nas condi-
atualmente sobre uma imaginária decadência econômica e do poder
ções de existência da população mundial. Trata-se, por isso mes-
geopolítico dos EUA e, conseqüentemente, da fragilidade do seu
mo, de um processo histórico de extrema violência e de mudanças
poder imperialista etc. É claro que as conseqüências dessas idéias
cruciais para as circunstâncias em que deverão se desenrolar as
diversionistas da realidade, dessa história mal contada, são ex-
verdadeiras erupções revolucionárias.
tremamente prejudiciais para as avaliações e diagnósticos que se
fazem, por exemplo, sobre as perspectivas geopolíticas internacionais, Longe de qualquer tentação economicista, fatalista ou, principal-
as relações dos ciclos econômicos com as guerras imperialistas etc. mente, voluntarista, existe então a possibilidade de se investigar
seriamente (dados em apoio) e se verificar com um bom grau de
Ciclos econômicos e luta de classes precisão que os ciclos econômicos são periódicos e não totalmente
Quando enfatizamos a determinação dos ciclos econômicos perió- aleatórios. E, dentro destes períodos, as suas diferentes fases -
dicos sobre a dinâmica estrutural do sistema capitalista, não esta- retomada, expansão, aceleração máxima, desaceleraçâo e crise -
mos desconsiderando a influência de ações políticas externas ao obedecem a certas condições concretas particulares a cada ciclo e,
processo de valorização do capital. A história não se faz a si mesma. principalmente, a um tempo razoavelmente regular. A não ser no
São os homens que fazem sua própria história, mas, é sempre bom caso muito raro, que já falamos, de uma depressão global, quando
relembrar, a fazem sob condições materiais dadas, herdadas. o tempo desaparece, a última fase (desaceleração e crise) de um
determinado ciclo também tem hora para começar e para terminar.
No caso dos ciclos econômicos, as ações dos homens (devidamente
encarnados em classes sociais antagônicas) a favor ou contra as São mais uma vez as condições endógenas do processo de repro-
necessidades de sobrevivência do capital ocorrem na superfície em dução do capital que fazem com que a fase de crise não possa ficar
mutação permanente, na realidade imediata da luta de classes e das se prolongando por um tempo muito longo para ser superada. Quan-
relações internacionais. Para tentar evitar a depressão econômica, do ocorre essa superação, depois de no máximo dez a vinte meses
os capitalistas são, por seu lado, obrigados a criar permanentemen- de diminuição acentuada da produção industrial da economia de
te novas circunstâncias externas ao processo de valorização para ponta do sistema (EUA), tem que ser iniciada a qualquer custo a
permitir a redução dos custos de produção (capital constante e variá- primeira fase (retomada e expansão) de um novo ciclo. Muito lon-
vel) e a ampliação das bases da demanda ou de realização daquela ge, portanto, de qualquer "estagnação permanente", "longo declinio"
produção (livre comércio, sistemas monetários e de crédito, reorga- e outras divagações.
nizações dos Estados nacionais, a geopolítica do imperialismo etc.). A depressão econômica global é diferente de uma simples fase
Os ciclos econômicos também são históricos. Portanto, se eles ~e crise periódica. É uma rara ruptura do mercado mundial, que
possuem um elevado grau de racionalidade e não acontecem alea- Interrompe aquela sucessão mais ou menos regular das diferentes
toriamente, também não obedecem a nenhum automatismo natu- fases de um ciclo periódico. A sua erupção também depende sem-
ral, repetindo monotonamente e eternamente suas diferentes fases pre das condições endógenas de determinado ciclo econômico. Mas'
ou, muito menos, encaminhando-se mecanicamente para uma ine- essa rara ruptura não pode ser enquadrada rigidamente por ne-
vitável depressão global, um fatal "desmoronamento", como que- nhum esquematismo de longo prazo ("ciclos longos"), que não leva
rem os partidários da doutrina dos "ciclos longos", do "longo em conta a rica dialética das condições endógenas com as ações
declínio", da "decadência do sistema" e outras variantes. políticas e sociais que falamos acima.

28 29
Uma crise cíclica pode se manifestar com variados graus de in- suas potencialidades. Aquelas declarações do Sr. Fischer, do FMI,
tensidade e de extensão, no tempo e no espaço. Isso depende de servem também para dissipar qualquer dúvida a respeito.
diversos fatores, que só podem ser verificados no próprio desdobra- Esse aumento da exploração e dominação imperialista é irmão gê-
mento de um determinado ciclo. Depende, por exemplo, da profun- meo de outra reação fundamental dos capitalistas à depressão global:
didade da depressão nas áreas dominadas: quanto mais profunda e o aumento do desemprego e a redução dos salários da classe trabalha-
extensa a crise na periferia do sistema no primeiro momento do dora mundial. Tanto no centro quanto na periferia. Esse aumento da
período de crise geral do ciclo, com menos força ela vai se manifes- exploração da força de trabalho se manifesta na produção de capital
tar no centro do sistema no segundo momento do mesmo período. como uma redução do salário relativo, quer dizer, como uma redução
É exatamente por isso que as políticas econômicas do Fundo do custo unitário do trabalho na produção industrial global. Isso quer
Monetário Internacional (FMI) impostas às economias dominadas dizer aumento da taxa de mais-valia, da produtividade e, finalmente,
nos momentos de crise geral são sempre ações que aprofundam da taxa média de lucro embutida no preço das mercadorias'ê.
ainda mais a depressão nessas economias, acompanhada de des- O aumento simultâneo da exploração imperialista (com redução
valorizações cambiais que diminuem ainda mais os preços das do custo das matérias-primas e insumos, exportados pela periferia
matérias-primas exportadas (enquanto aumenta o volume exporta- e consumidos no centro do sistema) e da classe trabalhadora mun-
do) para as economias dominantes etc. dial (com redução do custo salarial e aumento da produtividade)
No final do século passado, quando novas e ameaçadoras forma- representa uma providencial medida de contratendência à depres-
ções de nuvens voltavam a cobrir a economia dos EUA, a imprensa são econômica global. Mas existem outras importantes reações ca-
brasileira ficou decepcionada com as declarações do Sr. Stanley pitalistas que se contrapõem à depressão global e que estaremos
Fischer, diretor-gerente do FMI, sobre os efeitos que novas elevações destacando neste livro. É o caso do aumento da produção e das
da taxa de juros nos EUA poderiam causar em economias domina- despesas com armamentos. Veremos mais à frente como essas
das, como o Brasil, que já afundavam cada vez mais na crise. medidas anticíclicas estão sendo implementadas atualmente nas
economias dominantes do sistema.
"Num dia de queda acentuada das Bolsas norte-americanas) o diretor
adjunto do FMI (Fundo Monetário Internacional), Stanley Fischer, disse Por ora, basta adiantar que só a ocorrência de condições econô-
ontem que no atual estágio é mais importante para o mundo a garantia micas muito especiais de um determinado ciclo periódico fará com
da estabilidade da economia dos EUA do que a ajuda a mercados emer-
que essas "redes de proteção" dos capitalistas - quer dizer, as suas
gentes. 'É mais importante para o mundo que a economia dos Estados
Unidos se mantenha sólida e estável) num ambiente sem inflação) do
ações políticas e outros fatores exógenos (externos) ao processo de
que ajustar sua política monetária de acordo com problemas de países produção e acumulação do capital - não sejam mais capazes de
específicos. A prioridade é tomar decisões para manter a economia norte- impedir que a violência da fase de retração e crise daquele ciclo
americana forte', disse." (Folhade S. Paulo, 24/09/99) particular atinja a economia de ponta do sistema em toda sua
plenitude. Da mesma maneira que atingiu em recentes ciclos dos
Aprofundar e estender ao máximo a depressão na periferia é a
anos 90 o México, a Tailândia, a Rússia, a Argentina, e que já
principal medida para que os efeitos da crise geral se manifestem
começa a causar sérios abalos no Japão, na Alemanha ...
com uma mínima intensidade e duração no centro do sistema. A
queda da taxa de lucro tem que ser a maior possível na periferia,
para amortecer a queda que ocorre simultaneamente no coração do
12. Essas relações entre custo da força de trabalho e taxa de lucro no mercado
sistema. Encontramos assim uma das mais importantes medidas de g~obal foram desenvolvidas melhor e exemplificadas com casos concretos no livro
contratendência à crise global. Essa medida - que podemos verificar cl.tado: Martins, José. Os limites do irracional- globa/ização e crise econômica mun-
com facilidade no atual enfraquecimento produtivo nacional na Ásia, dIal, particularmente no capítulo IX - Os salários e os trabalhadores também são
Leste Europeu e América Latina - está longe de ter esgotado todas globalizados, p. 143 e seguintes.

30 31
A chave de uma proxlma depressão global encontra-se, portan- adaptação permanente ou de crise permanente do sistema frente às
to escondida em alguma parte da complexa e toda poderosa in- crises, não se verifica no decorrer do tempo de existência do regime
d6stria de manufaturados dos EUA. Querem saber? que é uma capitalista de produção nenhum caso em que a totalidade do siste-
crise catastrófica, uma verdadeira depressão global? E ocorrer glo- ma pôde se sustentar por muito tempo (cinco anos, por exemplo)
balmente aquilo que ocorreu isoladamente na Argentina na fase de com a sua base produtiva contraída, em ponto morto, em uma
crise do último ciclo periódico (2000/2001). Querem saber quan- "persistente estagnação industrial", sem que grandes guerras ou re-
do ocorrerá essa depressão global? Quando acontecer com a eco- viravoltas revolucionárias se manifestassem na ordem do dia, amea-
nomia dos EUA o que aconteceu com a da Argentina. çando com a própria abolição desse regime histórico de dominação.

A totalidade dos capitalistas (e a quase totalidade dos seus eco- De acordo com um estudo do Departamento do Comércio dos Esta-
nomistas) não acredita que aquilo que aconteceu com a economia dos Unidos (1993), desde meados do século XIX (1854/1991) ocor-
da Argentina possa algum dia acontecer com a dos EUA. Eles ape- reram 31ciclos econômicos na economia de ponta do sistema capitalis-
nas reagem permanentemente para que isso não aconteça. Do ou- ta. Na média, as fases de expansão duraram em torno de três anos (ou
tro lado da arena, os trabalhadores (também enquanto totalidade) 35 meses) e as de contração um ano e meio (ou 18 meses).
sabem como, quando e por que isso poderia acontecer, mas sabem No período mais recente, de 1945 a 1991, foram registrados
também que não é necessário aguardar até o último dia do apocalipse nove ciclos econômicos. Na média, as fases de expansão de cada
para que eles comecem a agir. Aqui começa a verdadeira luta teóri- ciclo duraram mais de quatro anos (50 meses) e as de contração
ca, a reviravolta da práxis de que falava Marx. Exatamente em pouco menos de um ano (11 meses). Assim, somando-se as fases
torno da determinação material das crises econômicas capitalistas de expansão e de contração, cada ciclo completo se repetiu a cada
e do seu modo de funcionamento em ciclos econômicos. Serão os cinco anos. E essa repetição aconteceu indiscriminadamente em to-
homens, mais uma vez, que farão a sua própria história que, por das as décadas do pés-guerra (1945/1991). O mítico "longo boorn"
seu lado, nada mais é do que a história da luta de classes. do pós-guerra não foi poupado: entre 1947 e 1949, a produção
industrial daquela economia caiu em média 1 ,84% ao ano; em 1954,
Ciclos de guerras a queda foi de 5,80%; em 1958, foi de 6,41 %; e assim por diante.

A periodicidade, quer dizer, a repetição regular das crises (ou O estudo do Departamento do Comércio salienta também que,
pelo menos pressões periódicas muito claras de superprodução de em épocas de grandes guerras - guerra civil americana, as duas
capital, que podem ser verificadas empiricamente), faz com que guerras mundiais do século XX, a da Coréia e a do Vietnã -, os
uma crise cíclica não ocorra aleatoriamente. Portanto, toda crise ciclos do capital são marcados por fases prolongadas de expansão,
deve ser datada, e toda análise séria procura determinar o momen- muito acima da média histórica, e por fases de contração e crise
to exato em que ela pode se manifestar. Não tem nenhuma impor- muito curtas. Assim, entre dezembro de 1914 e agosto de 1918,
tância dizer, como dizem a grande maioria dos ec;momistas, que ocorreu na economia dos EUA uma expansão de 44 meses e uma
"mais cedo ou mais tarde essa bolha vai estourar". E o caso daque- contração de apenas sete meses; no período entre junho de 1938 e
les partidários da financeirização, do capital especulativo, dos fevereiro de 1945, a expansão durou 80 meses e a contração
desequilíbrios, das desproporções, do subconsumismo e de outras apenas oito meses; entre fevereiro de 1961 e dezembro de 1969
inúmeras bobagens. Esse tipo de catastrofismo de almanaque não (Guerra do Vietnã), a expansão se prolongou por 106 meses e a
tem nenhuma importância na análise da dinâmica econômica. contração por apenas oito meses.

A periodicidade dos ciclos econômicos é a bússola que orienta a Esses períodos de grandes operações bélicas dos capitalistas po-
investigação. Qual é a duração média de um ciclo econômico e suas dem ajudar a responder às indagações sobre o porquê da aparente
sucessivas fases? Ao contrário daquelas populares doutrinas de uma longevidade do regime capitalista. Esses mesmos períodos que tam-

32 33
bém são considerados ingenuamente pelas doutrinas econômicas mais
populares como longos períodos de «crescimento sustentado" e outras
curiosidades. É claro que aqui também os festejados «trinta anos
gloriosos do pós-guerra" se enquadram perfeitamente nessas conside-
rações, como demonstram os dados acima apresentados.
Pode-se concluir que esses períodos de grandes guerras são os
mais adequados para sustentar, por uma longa duração, a expan-
Capítulo 3
são da produção capitalista e para encurtar suas crises. As crises
de superprodução de capital podem ser neutralizadas por um bom ACUMULAÇÃO, MERCADOS E PRODUÇÃO DO
tempo quando os capitalistas conseguem aumentar de maneira
COMPLEXO MILITAR-INDUSTRIAL GLOBAL
desmesurada as ações bélicas dos principais Estados capitalistas.
Supondo-se a hipótese absurda de que o mundo vivesse perma-
nentemente em guerra, pode-se dizer que assim o capital teria eli- Além de grande revolucionária, Rosa Luxemburgo conhecia os
minado completamente suas crises. Esse é o verdadeiro caráter do segredos da economia política como ninguém. As suas contribuições
atual regime histórico de produção e de reprodução social, em que teóricas sobre a reprodução ampliada e as crises do capital, principal-
a destruição da humanidade é uma condição necessária para seu mente, são fundamentais para se entender o sentido que Marx dava
saudável desenvolvimento. Essa é a mãe de todas as contradições. para a questão dos mercados e da realização do capital. Nesta questão,
ela é pioneira na abordagem do papel crucial do consumo improdutivo
no desenvolvimento da acumulação e crises do capital. Assim, além
das seções produtivas de meios de produção (seção I), dos meios de
consumo assalariado (seção II a) e da seção de bens de luxo (seção
II b), todas já presentes nos esquemas de reprodução do chamado
"livro 2" de O Capital, de Marx, ela acrescenta, para facilidade
analítica, a seção de «meios de destruição", quer dizer, a produção
de armamentos e o consumo deste tipo particular de mercadoria.
Rosa salienta alguns importantes temas que Marx tinha apenas
esboçado em diversos manuscritos. Eram temas que ele previa
desenvolver e publicar em outros estudos separados, dentro do
seu plano de sistematizar, em seis rubricas, a obra que levaria o
nome de Economia: livro 1. O Capital; livro 2. A Propriedade
Fundiária; livro 3. O Trabalho Assalariado; livro 4. O Estado; livro
5. O Comércio Exterior; livro 6. O Mercado Mundial.
Todos os elementos fundamentais para a elaboração deste "todo
artístico" estão dispersos em seus inúmeros manuscritos não publica-
dos em vida (como os Manuscritos de 1844; Ideologia Alemã; Materi-
ais para a 'Economia', também conhecidos como Grundrisse - Funda-
mentos etc.), ou em textos publicados em vida (Miséria da Filosofia;
Manifesto do Partido Comunista; Salário, Preço e Lucro; Guerra Civil em
34 35
França; O 18 Brumário), centenas de artigos publicados em jornais e acumulação - quer dizer, aquela parte da mais-valia social que é
revistas e, finalmente, Princípios de Uma Critica da Economia Política - convertida em meios de produção e salários - de praticamente 100%.
onde se encontra o Plano da Economia, que falamos acima. Daquele Haveria, conseqüentemente, o máximo do desenvolvimento das forças
plano, ele só conseguiu sistematizar e publicar em vida (assim mesmo produtivas, da produtividade e da produção de riquezas. Só assim,
parcialmente) o livro 1, O Capital. ainda no correto entendimento de Ricardo, esse revolucionário modo
A crescente produção e consumo de mercadorias de luxo e de de produção poderia se afirmar e se justificar historicamente.
armamentos são muito importantes para esclarecer o papel do Estado Mas essa paixão ricardiana pela acumulação - expressão abstrata
e do imperialismo na regulação das crises globais do capitalismo do mais puro liberalismo econômico, do ser capital em sua máxima
moderno. Dentro da perspectiva colocada por Rosa Luxemburgo, as clareza - encontra seus limites na própria lei do valor, no próprio
despesas improdutivas criadas no regime capitalista para o consumo envelope capitalista que comanda a moderna acumulação de merca-
de bens de luxo e de armamentos não se destinam à uma imprecisa dorias e de propriedades privadas: quanto mais elevada a taxa de
demanda de mercadorias em geral, quer dizer, de simples valores de acumulação, quer dizer, quanto mais exuberante e ampliada a repro-
uso, de "excedentes econômicos" ou de um "Produto" qualquer, co- dução do capital, como desejava Ricardo, tão mais rapidamente se
mo aparece nas versões malthusianas modernas de "demanda efeti- reduz os preços e a taxa geral de lucro, e tão mais pesadamente
va" e outras firulas da teoria macroeconômica do pós-guerra , siste- reaparecem as crises cíclicas e periódicas de superprodução de capital.
matizadas pelos vulgares expedientes de Keynes e avidamente
O problema da realização do capital, portanto, não é um pro-
consumidas pelos regulacionistas em geral.
blema formal de oferta e demanda da massa de valor e de mais-
Para Rosa, ao contrário, essas despesas improdutivas - centrali- valia produzida, mas de limites internos do próprio capital continuar
zadas e organizadas através dos impostos na administração mone- se valorizando indefinidamente. Em termos mais amplos, o proble-
tária dos Bancos Centrais (taxa de juros) e em outras formas de ma da demanda, ou dizendo melhor, da realização do capital, en-
regulação estatal- destinam-se à realização de uma parte importante contra-se no seu caráter histórico, na sua transitoriedade como
da mais-valia produzida socialmente e cujo destino deveria ser a modo de produção e de reprodução da espécie humana. As crises
reprodução ampliada de capital, na forma de uma massa crescente do capital não passam, então, de manifestações periódicas deste
de valor e de mais-valia, e não de "coisas úteis", de "ativos finan- caráter histórico, e não de qualquer determinação natural, política,
ceiros", de "formas de riqueza" e outras jóias da economia vulgar. ou de desequilíbrios e outras superstições criadas pelos economis-
tas, os verdadeiros ideólogos deste sistema de exploração.
Malthus x Ricardo:
duas almas habitando um único corpo Abrem-se então as portas para os expedientes estatais de encur-
Se em Malthus - representante em seu tempo da reação da tamento do mercado, do processo de valorização e de regras práti-
antiga propriedade fundiária e, neste início de século XXI, patrono cas para a regulação das crises do capital. Trata-se de refrear a
moderno das classes médias consumidoras de bens de luxo e dos taxa de acumulação, prolongar ao máximo os ciclos de expansão e
economistas de Estado - encontramos a paixão pelo consumo, em amortecer os seus inevitáveis choques periódicos. Essas tentativas
David Ricardo, o maior dos economistas, encontramos a paixão de regulação da economia sempre passam, necessariamente, por
pela acumulação. Para Ricardo, a totalidade, ou pelo menos a maior uma redução drástica da taxa de acumulação global do capital.
parte da massa de mais-valia produzida, transformada em uma Trata-se então de se inventar fórmulas de organização política,
massa de lucro, deveria se converter em novos capitais, voltar na burocráticas, externas ao próprio processo de valorização, que pos-
forma de novos investimentos em meios de produção (máquinas, sam socorrer e manter o regime capitalista e seu Estado funcionando.
estruturas, matérias-primas, insumos etc.) e salários (alimentos para Para tanto, a vida econômica é reificada como um sistema tecnológi-
a reprodução da força de trabalho). Haveria assim uma taxa de co, as relações de produção são naturalízadas pela economia política
36 37
e a acumulação de capital se apresenta, finalmente, sob o manto de Tanto para Marx quanto para Rosa, o problema dos merca-
uma linguagem só encontrada em épocas passadas na organização dos, da reprodução e realização do capital não é, portanto, de
militar: políticas, estratégias, planejamentos, planos, controles, me- uma "insuficiência de demanda" estrutural, congênita ao modo
canismos, instrumentos, ajustes, metas, objetivos, execução etc. de produção capitalista, como afirmava Malthus, os economistas
do começo deste século e como continuam afirmando seus mo-
Remédios para enfrentar a crise dernos epígonos da "crise permanente", da impossibilidade deste
Como bem coloca Rosa Luxemburgo, o problema dos mercados modo de produção caminhar com suas próprias pernas e se afir-
não pode ser tratado apenas com a discussão dos esquemas de cir- mar como um modo de produção estável, com suas próprias leis
culação (e de reprodução) do capital, que estão magistralmente descri- internas de funcionamento e de crises.
tos por Marx no chamado "livro 2" de O Capital. Ela insiste, na sua
disputa com os economistas da II Internacional, comandados por
a problema da demanda pela mais-valia assume, então, o seu
verdadeiro lugar. E na teoria e na prática capitalista, resume-se a
Kautsky, Berstein e Cia., que esses problemas da circulação do capital,
um problema do Estado, a um problema político, a uma corrida
que são sistematizados melhor no "livro 2", só poderiam ser es-
para se descobrir alguma forma de consumo improdutivo que te-
clarecidos com os desenvolvimentos de Marx, no chamado "livro 3",
nha o poder de esterilizar partes maiores da mais-valia produzida.
onde são suficientemente tratados os temas da formação dos preços
Não se trata, portanto, de preencher uma hipotética "insuficiência
de produção, da taxa de lucro, da tendência à queda desta taxa de
de demanda", um subconsumismo congênito, desproporções ou
lucro e, finalmente, das causas gerais e das formas concretas das
desequilíbrios da reprodução do capital que uma boa regulação
crises econômicas capitalistas. Como vimos no capítulo anterior, a
burocrática possa resolver.
economia política capitalista depois de Keynes, e tal como é ensinada
atualmente nas faculdades de economia de todo o mundo, adota aquele a verdadeiro problema é que o regime capitalista tem que desenvol-
viciado método de se separar rigidamente as esferas da produção e da ver a produção de algum tipo de valor de uso cujo consumo impeça
circulação; a primeira é mistificada pela teoria neoclássica (rnicro- o seu retomo para a esfera produtiva, cujo consumo faça com que
economia), a segunda, pela teoria keynesiana (macroeconomia) 13• ele desapareça na própria circulação do capital. Esses antibióticos
contra a superprodução são justamente aquelas mercadorias que
não podem ser consumidas nem como meios de produção, nem
13. Nessa idealização da realidade, a economia capitalista passa a ser analisada como como meios de reprodução da força de trabalho. Deve-se lembrar
uma simples economia de consumidores de mercadorias e não uma complexa economia que a produção dessas mercadorias é capaz de elevar a taxa geral de
produtora de capital. É o reino do produto (ou "renda", como é popularmente conheci-
do) e da esfera da repartição. A esfera da produção desaparece da análise. Ou melhor,
lucro sem alterar a produtividade da força de trabalho, quer dizer, a
ela depende doravante das flutuações do produto e da demanda agregada. A produção taxa de mais-valia. As modernas formas de consumo improdutivo,
é nada mais do que um resíduo do consumo, de "padrões de consumo". Na base dessas sejam aquelas individuais (de bens de luxo), sejam aquelas estatais
mistificações, a idéia de uma eterna circulação simples - em que todos são ao mesmo (de armamentos), mostraram-se historicamente as mais adequadas
tempo proprietários e produtores - e de um imutável "sistema produtor de mercado-
rias" - em que o dinheiro, a moeda, os preços e outras formas do valor são meros meios
para cumprir esse papel. A paixão pelo consumo se sobrepõe, na
de troca ou de pagamento para a circulação de um dado produto, de um dado nível de economia política, à paixão pela acumulação. E revela também a
renda, de repartição e de consumo. Mas essa idealização de uma eterna circulação gênese do Estado especificamente capitalista e da forma característi-
simples não tem nada a ver com a circulação do capital, uma precisa categoria históri- ca da acumulação capitalista no mercado mundial, o imperialismo.
ca. Tratando-se então de mercadorias enquanto tal, do mesmo modo que a produção
em um primeiro momento, agora é a própria circulação do capital que desaparece da Mas a escolha entre manteiga ou canhões não é nada simples. Se
análise econômica. Mas aqui não é necessário nem o local para nos ocuparmos
um elevado grau de liberdade e de acumulação de capital leva às
exageradamente dessas galimatias econômicas. Importa dizer apenas que a esfera da
repartição é a da luta política, enquanto a esfera da produção é a da luta social. A crises mais devastadoras para o sistema, uma dose exagerada ou
"moderna ciência econômica" existe para justificar a primeira e negar a segunda. períodos muito prolongados de regulação e de esterilização de meios
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de produção pode levar àquilo que Ricardo chamava melancolica- Outra coisa muito difícil de se saber é se as transformações
mente e de forma pessimista, nos seus últimos escritos, de "Estado geopolíticas recentes, que acabaram se concretizando com muita
estacionário". Um abafamento muito prolongado do fogo da acumula- rapidez nos anos 80 e 90, foram o motor das últimas transforma-
ção através de uma contínua redução da sua taxa de acumulação ções econômicas mundiais, ou o contrário, as transformações
pode levar o regime capitalista de produção a uma crise de estagnação econômicas é que precipitaram as coisas. Podemos correr o risco,
e inanição muito mais perigosa para as classes dominantes do que com pequena margem de erro, e ficarmos com a última hipótese.
aquela que o regulacionismo estatal promete evitar. A economia determinou a política. Um grande estrategista militar,
Esse pêndulo do capital comanda as oscilações de períodos mais que fascinava Hegel e que inspirou outros gênios como Tolstoi
ou menos prolongados dos desdobramentos concretos do mercado etc., já dizia no início do século passado que nenhum regime
mundial e do Estado capitalista, quer dizer, do espaço social e das pode permanecer por muito tempo sentado apenas nas pontas
condições políticas em que a lei do valor se manifesta em toda sua das baionetas.
plenitude. Duas almas habitando em um único corpo. A alma da O grande mérito do historiador Paul Kennedy, em seu magnífico
demanda burocrática, militarizada e parasitária em um canto, a do livro Ascensão e Queda das Grandes Potências - transformações
livre mercado e da acumulação desenfreada no outro. econômicas e conflito militar de 1500 a 2000, terminado de escre-
Nos últimos 20 anos, aconteceram importantes mudanças ma- ver por volta de 1985, foi o de ter atualizado com muita precisão a
teriais que ilustram esse movimento pendular, onde se misturam tese daquele famoso estrategista do começo do século passado,
doses maiores ou menores de liberalismo ou de controle estatal fazendo uma precisa relação entre potência militar e economia na-
da acumulação. Doses cada vez mais difíceis de serem calibradas, cional. Kennedy não deixa nenhuma dúvida, como não havia para
diga-se de passagem. As mudanças recentes da ordem imperialis- Napoleão, de que o peso da última é que sempre acaba determinando
ta podem ser ilustradas melhor com as profundas alterações ocor- as grandes transformações geopolíticas e dos regimes. Regimes,
ridas na produção e no consumo mundial de armamentos nos diga-se de passagem, solidamente instalados (pelo menos aparen-
últimos dez ou doze anos do século XX. Vale a pena, portanto, temente) sobre suas gigantescas produções de armas e as corres-
investigar alguns desses elementos que mexeram de forma incomum pondentes despesas estatais com as guerras regulando a dinâmica
nos pratos do poder e dominação na ordem capitalista mundial. do mercado e do capital nacional. Vale a pena fazer uma rápida
verificação sobre algumas importantes transformações ocorridas
A produção global de armamentos neste sinistro mercado nos últimos anos do século passado.
Na ordem geopolítica internacional, muita coisa pode ser prevista Os números são impressionantes. Os dados da US Arms Control
com uma certa facilidade. Trata-se geralmente daquelas coisas de and Disarmament Agency (ACDA), do Departamento da Defesa
menor importância. As mais importantes, entretanto, aquelas que dos EUA, mostram que, em 1986, a Rússia exportava em tomo de
mudam sua estrutura de funcionamento em profundidade, são quase US$ 30 bilhões anuais em armamentos (em valores constantes de
impossíveis de serem previstas. Vejam, por exemplo, o que ocorreu 1996), o que correspondia a 22% das suas exportações totais. Em
com a Rússia em menos de dez anos, na virada dos anos 80 para os 1991, já exportava apenas US$ 7 bilhões, correspondente a 9%
anos 90. Quem, em 1986 - no próprio momento em que aquela das suas exportações. Em 1996, finalmente, apenas dez anos de-
economia, sempre grosseiramente regulada com uma absurda produ- pois, exportou míseros US$ 3 bilhões, correspondente a 3,7% das
ção de armamentos, já dava mostras de enormes rachaduras -, poderia suas exportações. Quer dizer, em 1996 suas exportações de arma-
prever a magnitude da sua derrocada nos dez anos seguintes? Nin- mentos tinham caído para um décimo de dez anos atrás! Em 1986,
guém. Muito menos os estrategistas e os órgãos de inteligência dos a Rússia ainda era a maior exportadora de armamentos do mundo.
EUA, justamente quem se beneficiou com quase total exclusividade Participava com 46,5% do comércio global; em 1996, essa parti-
pela derrocada russa. cipação tinha caído para 8%!
40 41
Essa derrocada representa profundas mudanças nas participações pesas militares em geral das diversas economias nacionais. Segundo:
das demais regiões e países no comércio mundial de armas. Os EUA um substancial aumento da posição relativa dos EUA neste merca-
foram o mais beneficiado com essa nova ordem comercial. Se em do, simultaneamente àquela diminuição absoluta do consumo de
1986 eles participavam com apenas 26% das exportações mundi- armas. Dados da Stockolm Internacional PeaceResearch Institut (SIPRI)
ais, em 1996 já estavam participando com 55%. Praticamente os da Suécia mostram uma queda rápida das despesas militares mundiais
EUA ocuparam o vazio deixado pela Rússia; os demais grandes a partir de 1987, um declínio de 4,5% ao ano entre 1989 e 1997,
exportadores mundiais, em sua quase totalidade baseada na Europa representando um corte de aproximadamente um terço do total.
ocidental, passaram de uma participação de 21 % para 29%. Em As despesas militares globais totalizaram US$ 740 bilhões em
1996, os dez maiores exportadores de armas eram os seguintes, 1997, com os EUA tomando-se o maior exportador e Taiwan su-
com suas respectivas participações no mercado global de armamen- plantando a Arábia Saudita como o maior comprador. As despesas
tos: EUA 55%; Inglaterra 14%; Rússia 8%; França 8%; Suécia 3%; militares da Rússia em 1997 foram de US$ 24 bilhões, compara-
Alemanha 2%; Israel 2%; China 1%; Canadá 1%; Holanda 1%. dos com US$ 273 bilhões dos EUA. Naquele mesmo ano, os gas-
Em termos de áreas geopolíticas, em 1986 a área européia tos da OTAN totalizaram US$ 451 bilhões. As despesas declina-
como um todo (incluindo a Rússia) concentrava quase 68% das ram significativamente na Europa oriental, África e América Lati-
exportações globais de armas; dez anos depois caiu para 38%. E na. As excessões deste padrão de redução global foram o Norte da
os EUA, que em 1986 exportavam menos da metade da Europa, África, Oriente Médio e Sul e Leste da Ásia. O SIPRI informa que
agora praticamente inverteram a posição. Em 1996, EUA e Euro- não existem dados precisos para a China, pois os números forneci-
pa ocidental contabilizavam 85% das exportações mundiais de dos por Pequim são subestimados.
armas; a Europa oriental supria 9% adicionais. Outras áreas,
Vejam também as interessantes relações que são mostradas no
como Leste da Ásia (China e Japão), Oriente Médio (Israel) e
estudo de Carl Conetta e Charles Knight, Post-Cold War Us Expendi-
Oceania (Austrália) respondiam pelo resíduo restante de 6% do
ture in the Context of World Spending Trends, Project on Defense
mercado.
Alternatives Commonwealth Institute, Londres, janeiro de 1997.
Outros dados importantes: as exportações de armamentos dos Entre 1986 e 1994, enquanto as despesas militares mundiais ca-
EUA se elevaram principalmente a partir de 1990, com as expor- íram 35,2%, as dos EUA caíram bem menos (21%) e as da OTAN
tações adicionais se direcionando principalmente para os países menos ainda (16%). No mesmo período, naqueles países que os
desenvolvidos, que fazem parte da Organização do Tratado do EUA consideram como "Estados potencialmente inimigos" - Rússia,
Atlântico Norte (OTAN) e outros "aliados especiais", como Japão, Bielorússia, China, Cuba, Irã, Iraque, Líbia, Coréia do Norte, Síria
Austrália, Coréia do Sul e Israel. Aproximadamente 75% das im- e Vietnã - as despesas militares caíram 69%.
portações de armas das economias desenvolvidas são feitas pelos
Os EUA gastavam 28,2% do total mundial em 1986 e 34,3%
EUA. São os armamentos maiores e mais sofisticados. As expor-
em 1994; enquanto isso, os "Estados potencialmente inimigos"
tações dos países da Europa ocidental são dirigidas em sua maio-
gastavam 42,4% em 1986 e apenas 19,9% em 1994. Assim, os
ria (76% do total) para países e regiões subdesenvolvidas. São
autores do estudo concluem que, "a despeito da redução real de
armamentos menos potentes e menos sofisticados.
21 % dos gastos dos Estados Unidos no período 1986-1994, as mu-
Reforço do poder geopolítico e danças nos gastos dos 'Estados potencialmente inimigos' produzi-
econômico dos Estados Unidos ram uma mudança na posição relativa dos EUA equivalente a 157%
A nova ordem geopolítica representou duas coisas muito importan-
de aumento nos gastos que existiam em 1986".
tes para a evolução econômica mundial nos anos 90. Primeiro: uma Quer dizer, em termos relativos, os EUA continuaram a gastar
grande diminuição da demanda global por armamentos e das des- em despesas militares muito mais do que durante a Guerra Fria.
42 43
Essa foi a base militarista para o acelerado aumento do poder as suas vendas externas de armas e ao mesmo tempo aliviaram
geopolítico americano no final do século. Ilustra também a falsida- seus gastos domésticos (no orçamento fiscal). Essa foi uma das
de daquelas idiotices sobre "o declinio do poder americano", que principais razões para a geração de um significativo superávit fiscal
verificamos no capítulo anterior. naquela economia de ponta do sistema, durante os dois mandatos
de Bill Clinton. Veremos nos próximos capítulos como esse superávit
Em termos absolutos, esses gastos caíram bastante. Verifica-se
fiscal foi o principal instrumento do governo americano para enfren-
- com dados da OTAN, Dépenses de défence des pays de f'OTAN-
tar os dois últimos e pesados choques econômicos (1997 e 2001).
que, no período 1980/1984, os EUA gastavam com despesas
militares anualmente 5,8% do seu Produto Interno Bruto (PIE); no Verifica-se, então, uma coisa muito importante para os diferentes
período 1985/1989, gastavam 6,3%; entre 1990/94, gastaram ritmos de acumulação e crescimento das principais economias, nos
4,9%; em 1996, os gastos foram de 3,7%, e em 1997, de 3,6%. anos 90: os EUA deslocaram para o resto do mundo (principal-
mente para os países da OTAN e Japão) uma significativa parcela
Essa grande diminuição absoluta dos gastos militares dos EUA
das suas despesas improdutivas com armamentos. Ao mesmo
no final do século foi muito importante para a recuperação do seu
tempo, aumentaram sua parte no mercado e se tomaram, de lon-
abalado poder econômico frente às principais economias. Essa di-
ge, os maiores produtores dos mais potentes e atualizados arma-
minuição de gastos militares pode ser explicada por várias razões.
mentos, como veremos a seguir.
Uma delas foi a mudança do relacionamento dos EUA com seus
aliados em todo o mundo. Este fato pode ser ilustrado pelo aumen- Outra importante razão para a diminuição dos gastos militares
to da corrida armamentista na Ásia, em grande parte patrocinada dos EUA foram as transformações ocorridas na estrutura de pro-
pelos EUA, mas cada vez menos através de assistência financeira. dução global do setor. Essas transformações são assim descritas
Em 1986, segundo o citado estudo de Conetta e Knight, China, no SIPRI Yearbook 1999 (capítulo 10. Arms production):
Coréia do Norte e Vietnã, juntos, gastaram o equivalente a US$ 62
''li produção de artefatos bélicos é uma atividade extremamente concen-
bilhões em defesa; em 1994, gastaram US$ 58,7 bilhões. Em
trada tanto em países quanto em empresas. Estima-se, em 1996, que os
1986, o grupo "pró-ocidental" (Austrália, Japão, Malásia, Nova 10 maiores países produtores de armamentos do mundo contabilizam
Zelândia, Filipinas, Singapura, Coréia do Sul, Taiwan e Tailândia) mais de 90% da produção mundial de armamentos (excluindo a China).
gastou US$ 67,5 bilhões. Em 1994, esse mesmo grupo gastou Os Estados Unidos contam com mais da metade do total mundial, en-
US$ 89,5 bilhões. Se em 1986 o grupo "pró-ocidental" gastou em quanto os dois países seguintes em tamanho, França e Inglaterra, contam
com 10% cada e os três seguintes - Alemanha, Japão e Rússia - próxi-
defesa 8,5% mais do que os "Estados potencialmente inimigos"
mos de 4% cada. De modo similar, as maiores empresas produzem uma
daquela área, em 1994 gastou 52% mais que aqueles Estados. parte crescente dos armamentos mundiais. As vendas de armas das 100
A mesma coisa ocorreu no Oriente Médio, que é outra área com maiores empresas produtoras de armas na OCDE e nas economias sub-
desenvolvidas (excluindo a China), no montante de U5$156 bilhões em
importantes conflitos militares. Na OTAN também: em 1985, as 1997, representam mais do que três quartos da produção mundial de
despesas militares dos EUA correspondiam a 72% dos gastos to- armas. As mudanças na indústria global de armas, que ocorreram desde
tais daquela organização; em 1997, essa relação tinha caído para 1996, contribuíram para a crescente concentração. Desde o começo dos
59%. Isso foi muito importante para aliviar o suporte americano, anos 90, a produção de armas tem sido caracterizada pelo doumsizing
em termos de recursos financeiros próprios, para manter sua do- [Uenxugamento"J, pela concentração crescente (particularmente nos EUA
no período 1993-98) e pela intemacionalização (a principal fase no co-
minação militar e econômica em todo o mundo. Seus aliados ar-
meço dos anos 90 e ímpeto renovado na Europa nos anos recentes). JJ

cam cada vez mais com seus próprios recursos para comprar ar-
mamentos produzidos nos EUA. Diferentemente da época da Guerra Essa enorme concentração e internacionalização ocorreu simul-
Fria, os consumidores das armas americanas começaram a pagar a taneamente a uma "privatização" das empresas produtoras de arma-
maior parte da conta. Com essas mudanças, os EUA aumentaram mentos. A rapidez das mudanças de forma e de crescimento dessas
44 45
empresas só poderiam ter acontecido na esteira das mudanças geo- cou mais avioes no mercado. As remessas de jatos para o mercado
políticas que verificamos antes. O mais importante é que aquelas aumentaram 15% naquele período, mesmo com 32 mil trabalhado-
mudanças foram marcadas pelo rápido esgotamento dos mecanismos res a menos que um ano atrás. Naquele ano, a Boeing previa uma
estatais de regulação das economias e grandes setores produtivos. margem de lucro operacional de 5% a 5,5%. Eram esperadas ven-
A rápida diminuição da demanda de armamentos - anteriormente das de quase US$ 50 bilhões, mas não se revelava qual a proporção
financiada e intlacionada pelos gastos dos governos, em todo o das vendas de armamentos neste faturamento.
mundo - criou um ambiente de livre mercado e de concorrência em Para concorrer com as americanas Lockheed Martin e a Boeing,
que só as empresas líderes (e privadas) puderam sobreviver. foi anunciada no dia 14/10/1999 a fusão da alemã DaimlerCrysler
As empresas americanas, em primeiro lugar, seguidas de perto e a francesa Aeroespatiale Matra. A nova gigante aeroespacial eu-
pelas da Europa ocidental, praticamente monopolizaram este novo ropéia pretende fabricar aviões civis e militares, satélites, mísseis,
cenário. De acordo com dados da SIPRl, das 100 maiores empre- lançadores de foguetes etc., e faturar anualmente US$ 22,6 bi-
sas produtoras de armamentos do mundo, 41 são americanas. lhões. Com aquela internacionalização da produção de armamen-
Elas faturaram US$ 87 bilhões com a produção de armamentos tos a pleno vapor, ou melhor, na velocidade supersônica, também
em 1997, o correspondente a 56% das vendas mundiais daquele na União Européia e alhures, nos primeiros anos do século XXI
ano. Outras 37 grandes produtoras de armas (37,8% das vendas aquela «nova ordem" geopolítica dos anos 90 já estava bem
mundiais) localizam-se na Europa ocidental, 8 no Japão (4,3% das envelhecida e sofreria novas e profundas transformações. Mas como
vendas), 6 em Israel, 3 na Índia, 2 na Austrália etc. já dissemos no início, para as transformações dos anos 90, essas
novas e repentinas transformações também eram quase impossí-
Nos EUA, em particular, os investimentos em pesquisa e desen-
veis de se prever em 1999, quando ainda se respirava os ventos
volvimento financiados pelo governo caíram de 1,07% do PIB em
da exuberante Nova Economia, da globalização triunfante e do
1990 para 0,79% em 1997, enquanto os mesmos investimentos
ilusório multilateralismo americano nas relações internacionais.
financiados pelas empresas privadas subiram no mesmo período
de 1,57% para 1,80% do PIB. As empresas americanas foram as Liberdade para a crise
que melhor se adaptaram, no primeiro momento, a este novo mer-
Na medida em que os gastos militares dos EUA diminuíram no
cado menos regulado pelas despesas dos governos.
decorrer dos anos 90, a sua produção industrial cresceu como
A reestruturação da produção mundial de armamentos resultou nunca. Não apenas a sua produção de armamentos, mas princi-
em empresas produtoras ainda mais gigantescas do que as que exis- palmente a produção civil. Verifica-se, na medida em que os gastos
tiam na época da Guerra Fria. A maior delas, a americana Lockheed militares do governo americano se desaceleravam, que os gastos
Martin, conseguiu vender US$ 18,5 bilhões em armas em 1997, privados daquela economia com máquinas, equipamentos e salá-
para um faturamento total da empresa de US$ 28 bilhões. É mais rios aumentavam. No período 1983/1989, quando o «gasto com
do que a soma dos orçamentos de defesa de 10 economias médias. a defesa" ainda era muito elevado, os investimentos em máquinas
É difícil descobrir o que é produção de armamento ou produção e equipamentos cresciam a uma taxa de 6% ao ano. No período
civil em empresas como a Lockheed, General Electric, General Mo- 1993/1999, quando os gastos militares do governo diminuíram
tors, IBM, Monsanto, quer dizer, nas maiores empresas americanas. aceleradamente, os gastos com máquinas dobraram para 12% ao
A Boeing, por exemplo, é a maior produtora mundial de grandes ano. Em resumo, quando os gastos improdutivos diminuíram, a
aviões civis, mas também uma das maiores na produção de aviões taxa de acumulação daquela economia bateu recordes do período
supersônicos de combate (F-16 etc.). Segundo relato da Bloomberg pós-guerra. A alma ricardiana é que ditava o ritmo.
News (14/10/1999), o lucro da Boeing aumentou 79% no terceiro A expansão da economia americana nos últimos anos do século
trimestre de 1999, quando a empresa demitiu trabalhadores e colo- passado se deveu em grande parte a essa reversão de gastos (de
46 47
improdutivos para produtivos de mais-valia). Grande parte da deman-
da global se deslocou do Estado (demanda improdutiva) para o consu-
mo individual e de capital constante (máquinas, instalações e maté-
rias-primas). Uma oportuna observação: ao contrário do que se ima-
gina, aquela expansão da economia americana se deve principalmen-
te ao aumento do consumo de máquinas e equipamentos e não ao
consumo individual, de bens de consumo. Este último permaneceu Capítulo 4
exatamente nos mesmos níveis de crescimento dos anos 80 (em
tomo de 8% ao ano), enquanto a taxa de consumo de máquinas
dobrou. Essa é a chave para se entender a reafirmação da liderança ANOTAÇÕES À MARGEM SOBRE
daquela economia, que até o final dos anos 80 parecia ameaçada O DINHEIRO, O CRÉDITO E A
pelo Japão e Europa ocidental, e, conseqüentemente, do poder impe-
REPRODUÇÃO DO CAPITAL
rial de Washington sobre o resto do mundo.
Com todas essas mudanças, os mercados puderam se expan-
dir com muito mais liberdade, com base predominantemente As duas maiores montadoras de veículos do mundo entraram
econômica, menos política. A produção de mais-valia pôde se no século XXI com seu crédito seriamente abalado na praça. Os
realizar muito mais no próprio funcionamento do mercado. A valores em jogo são gigantescos. A soma das dívidas da General
economia que melhor se adaptou a esses novos tempos de Motors Co. e da Ford Motors Co. é de aproximadamente US$
globalização e desregulação estatal foi exatamente a dos EUA. 350 bilhões. E quase a soma das dívidas externas de todas as
Nesse meio tempo, a produção mundial de armamentos também economias da América do Sul. As duas gigantes globais estão na
se concentrou nas empresas privadas americanas, enquanto as mira da temida agência de classificação de crédito Standard &
despesas improdutivas do governo com aquelas mercadorias di- Poors (S&P). Recentemente, tiveram sua classificação de risco de
minuíram de modo significativo. Nessa virada do pêndulo do ca- crédito rebaixada por essa agência para níveis próximos dos junk
pital, na maior parte dos últimos dez anos do século passado, em bonds [títulos de alto risco]!".
que o livre mercado novamente se sobrepôs à regulação estatal, a
alma ricardiana se remetia inesperadamente sobre a alma Nos últimos anos, as duas empresas - do mesmo modo que
malthusiana. A paixão pela acumulação ressurgia com força e todas as demais concorrentes do ramo - só conseguem vender
duelava com a paixão pelo consumo com ampla vantagem. seus automóveis concedendo incentivos absurdos para os ariscos
consumidores. Financiamento com taxa zero de juro, por exem-
O mais importante de tudo isso, portanto, é que naquele perío-
plo, além de outros incentivos em dinheiro. Foi a GM, a líder do
do o corpo capitalista mundial ficou mais livre para acumular, mas
ramo, que começou com essa arriscada aventura. Entupiram os
também mais exposto para sofrer crises mais pesadas à frente. A
EUA de carros novos. Venderam tanto que, como diziam por lá,
diminuição de um fator anticíclico tão importante como as despe-
não tinha mais tanta gente querendo comprar o quarto carro da
sas militares, principalmente quando isso acontece na economia
família. O feitiço virou contra o feiticeiro.
de ponta do sistema, mostraria suas conseqüências logo no primei-
ro ano do século XXI. De maneira mais clara do que tinha se
mostrado até então, em que a crise global continuava se circuns-
14. No dia 16 de novembro de 2002, a Bloomberg Neios noticiava:
crevendo apenas nas áreas dominadas e de maneira ainda bastan-
"S&P rebaixa classificação da GM, que possui dívidas de US$187 bilhões", e
te tênue no Japão e União Européia. Esse é um assunto que desen- "S&P rebaixa rating de crédito da Ford Motor, cujas dívidas chegavam a US$162
volveremos melhor mais à frente, nas partes II e 111deste livro. bilhões em 30 de setembro."

48 49
Mesmo com os longos financiamentos sem juros e outros descon- do tempo de rotação e de circulação do capital investido no ramo.
tos, as vendas desabaram 15. Este é um caso clássico de comporta- E esse tempo tende a se prolongar à medida que se avoluma a
mento das empresas e da demanda em períodos de crise de super- superprodução de mercadoria-capital.
produção de capital. Em geral, a massa de mercadorias produzidas,
O capitalista individual e seus economistas não conseguem ava-
enquanto valores de uso, utilidades, crescem relativamente mais
liar esse problema da realização de uma determinada taxa de lucro
rápido que a massa de valor e de mais-valia nelas embutidas. Essa
- que é a verdadeira questão da demanda - além de meros proble-
contradição do duplo caráter do trabalho contido na mercadoria
mas de elevação dos estoques, das condições da concorrência no
acontece porque no decorrer do período anterior de expansão e
ramo e, finalmente, como a queda absoluta de vendas dos produ-
superprodução do ciclo aumentou-se de modo desmesurado a produ-
tos de sua empresa, como tem acontecido nos últimos anos no
tividade e a intensidade da força de trabalho, através do emprego
ramo produtor de equipamentos de transporte dos EUA.
de uma quantidade relativamente menor de operários produzindo
uma quantidade desproporcionalmente maior de mercadoria-capital. Para garantir a realização da taxa de lucro média do ramo, o preço
de mercado de uma empresa não pode acompanhar a queda do preço
Esse aumento da exploração da classe operária e da taxa de
de produção do ramo. A queda do preço de produção é o que caracte-
mais-valia (ou de produtividade) está na base da diminuição da
riza um processo de deflação, quer dizer, de queda da taxa geral de
taxa de lucro do capital-dinheiro investido na produção de valor e
lucro. A deflação se apresenta como um poder gravitacional capaz de
mais-valia, que agora reaparecem embutidos em uma montanha
imobilizar e engolir até as melhores empresas de um ramo de produ-
de mercadoria-capital. Esta é, repetimos, a origem mais profunda
ção. É como um buraco negro da economia. Veremos como se desen-
das crises modernas de superprodução de capital. Crises pletóricas,
volve concretamente esse processo na parte II deste livro.
como dizia Fourier. A crise econômica especificamente capitalista
não pode ser revertida apenas aumentando o consumo individual Liquidar os estoques de mercadorias para não liquidar o capi-
das mercadorias, particularmente do consumo de bens de luxo, tal acumulado. Nos períodos de crise, GM e Ford fazem o mesmo
como é o caso das mercadorias produzidas pela GM e pela Ford. que todas as empresas bem situadas no seu ramo de produção
As crises características da era capitalista são predominantemente fazem para escapar do buraco negro da deflação: aumentam as
crises pletóricas de exploração (superprodução do capital), não são despesas improdutivas para acelerar as vendas e eliminar esto-
crises provocadas pelo subconsumo das massas. ques, aproveitando as oportunidades oferecidas pela política mo-
netária do Federal Reserve (Fed , Banco Central dos EUA), que
Mas os capitalistas e seus economistas tomam consciência des-
inunda o mercado com meios de circulação e de crédito para o
sa superprodução de capital apenas como uma insuficiência de
consumo individual. Conseguem assim escapar da deflação, por
demanda, como um desequilíbrio metafísico entre a oferta (produ-
um certo tempo, trocando a queda dos seus preços de mercado
to) e a procura (consumo). Essa ilusão tem um fundamento práti-
individuais (e a correspondente taxa de lucro embutida nestes
co, pois a realização da taxa média de lucro depende efetivamente
preços) pela elevação das suas despesas financeiras, pelo aumen-
to do seu endividamento nos bancos. Essa é a origem daquelas
absurdas dívidas das duas empresas que verificamos acima.
15. "Vendas da Ford caem 34% em outubro nos EUA, apesar dos descontos. Os
financiamentos sem juros e os descontos atraíram menos compradores às concessio- Por um certo tempo, apenas por um certo tempo, é tolerável
nárias, depois de provocar um ritmo de crescimento recorde do setor no mesmo que o capital-dinheiro continue se reproduzindo de maneira
período do ano passado. As vendas de automóveis nos EUA diminuíram em 26% em
estacionária, quer dizer, com uma taxa de acumulação que não
outubro, para um ritmo anual de 15,8 milhões de carros e caminhões leves. O
mesmo mês do ano anterior fixou um recorde, com um ritmo anual de 21 3 milhões
aumenta nem diminui. Mas aquelas despesas mercantis (impro-
à medida em que a General Motors liderou as rivais no oferecimento de financia: dutivas) aumentam com a mesma rapidez da superprodução e da
mentos sem juros para reavivar a demanda." (Bloomberg News, 03/11/2002) concorrência. É o poder financeiro, a capacidade de se endividar,
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que decide a parada. É também o período de uma enorme centra- então como um crescente problema financeiro: a insolvência do
lização do capital social. Só as mais poderosas empresas do ramo capital, quer dizer, a diminuição dos lucros, aparece como um
(ou das nações, no mercado internacional) podem abaixar os pre- problema de insolvência financeira, um problema de crédito e de
ços de mercado no ritmo da queda dos preços de produção e confiança, de aumento do risco dos empréstimos, de incapacidade
debilitar o poder de mercado das mais fracas. No caso presente, de pagamento das dívidas acumuladas.
a GM e a Ford travam essa queda de braço entre si e com as Vimos acima que o montante das divisas da GM e da Ford é
demais montadoras globais. Muitas tradicionais montadoras já superior à soma da dívida externa de todos os países da América
estão desaparecendo neste processo. Como a italiana Fiat, que do Sul. As duas maiores montadoras do mundo teriam que redu-
está sendo absorvida pela endividada GM. zir ainda mais a produção e os preços de mercado dos seus
Enquanto isso, produzem-se mercadorias sem se alterar as automóveis, ao se defrontarem com uma crescente perda de cré-
condições produtivas do ciclo anterior, de modo que ainda não dito barato para acelerar a circulação das suas mercadorias. Mas
se pode garantir uma nova taxa de exploração, mais elevada, tem uma diferença. Doravante, a redução da produção e dos
que corresponda às novas necessidades de valorização do capital, preços dos automóveis não será mais para recuperar o custo de
que dariam sustentação ao novo ciclo periódico de acumulação, produção das suas mercadorias, como as montadoras fizeram
a um nível mais elevado de acumulação, a uma retomada geral nos últimos anos, mas para pagar as gigantescas dívidas que elas
da produção. contraíram no mesmo período.
Fugir do buraco negro da deflação é fugir da produção para se Os capitalistas não produzem e vendem mercadorias só com o
refugiar no aumento da demanda. Mas essa fuga é de alto risco. objetivo de comprar ou consumir outras mercadorias, como imagi-
As massas de lucros produzidas nas empresas não acompanham nam os economistas ao tratar da questão da demanda. Muitas
as massas de mercadoria-capital que continuam sendo produzidas vezes eles produzem e vendem apenas para conseguir dinheiro e
e vendidas em quantidades cada vez maiores. Paradoxalmente, o tentar pagar suas dívidas. É o que estavam fazendo neste início de
prejuízo aumenta na mesma velocidade que as vendas. É preciso século as duas maiores montadoras mundiais de automóveis, ao
voltar rapidamente aos lucros, pois o risco se acelera. O mercado que parece com muita dificuldade.
não demora em mandar a cobrança 16.
Concretiza-se assim uma crise de crédito, a forma mais palpá-
Nos períodos de crise, a acumulação do capital cede lugar à vel e mais popular da crise de superprodução de capital. Junto
mera acumulação de dívidas. O problema da demanda aparece com uma brutal elevação da quantidade de moeda injetada nas
economias dominantes pelos respectivos Bancos Centrais, uma
paradoxal diminuição conjunta da oferta, dos preços e da deman-
16. O limite da Ford é exposto apropriadamente pela Bloomberg News em 25/10/ da. Nisso consiste a deflação, uma doença incurável apenas com
2002: "o rating de risco de crédito da Ford Motors Co. foi rebaixado pela Standard
& Poors por receios com a viabilidade do plano da segunda maior montadora mun-
os remedinhos para resfriado oferecidos pelas autoridades mone-
dial para voltar aos lucros. A Ford, que perdeu US$ 5,45 bilhões no ano passado, tárias dos EUA e Japão.
anunciou em janeiro um plano para cortar empregos, fechar fábricas e lançar novos
É por isso também que as crises financeiras, quer dizer, as
modelos, com o objetivo de gerar lucros antes dos impostos de US$ 7 bilhões até
2005. O esforço pode não ser bem sucedido, em função da queda na demanda por crises do sistema de crédito global, sempre se manifestam antes
automóveis, da concorrência de preços liderada pela rival General Motors Corpo e que a crise da produção propriamente dita. É por isso, finalmente,
da participação debilitada da Ford no Mercado, segundo comunicado da S&P. A que se aumentam as despesas improdutivas e o endividamento
Ford e seus maiores concorrentes ofereceram descontos em dinheiro e nos financi-
das empresas e das nações. A explosão efetiva de uma crise de
amentos durante todo o ano para atrair compradores. O rebaixamento do rating
pode elevar o custo dos empréstimos para Ford, o que dificulta o financiamento de crédito global é a única forma capaz de fazer a dialética entrar na
todos esses incentivos que eles estão tentando manter." cabeça dos capitalistas e seus economistas.
52 53
Problemas circulatórios que estava em vias de acontecer no último período de crise. Essas
No começo do mês de outubro de 2002, a Organização Mundial turbulências circulatórias do capital global aumentam a cada ci-
do Comércio (aMC) publicou mais um relatório anual. Nele é re- clo periódico. No último período de crise, elas estavam sendo
lembrado que no ano 2000 - no auge do último período de expansão muito mais fortes que nos ciclos anteriores. Mesmo depois de um
da economia mundial - as importações e exportações de mercado- primeiro ensaio de recuperação da produção mundial, no primei-
rias registraram um crescimento vertiginoso de 12%, a taxa anual ro semestre de 2002, as coisas ainda estavam piorando!".
mais elevada em dez anos. Mas, em 2001, como resultado da A circulação do capital não deve ser considerada como uma
crise global, o comércio internacional de mercadorias desabou: mera formalidade monetária, um jogo de desequilíbrios cambiais
"O ano de 2001 foi caracterizado pela primeira diminuição do co- ou entre oferta e demanda, que pode ser perfeitamente corrigido
mércio mundial de mercadorias em volume desde 1981. Todos setores com políticas monetárias e fiscais nacionais, como imaginam os
do comércio sofreram as conseqüências da desaceleração mundial. As
economistas. Acontece que não basta aos capitalistas explorar a
exportações de produtos manufaturados caíram 2,5%, enquanto o co-
mércio de produtos agrícolas e minerais só progrediu 1,5%, sensi- massa de trabalhadores e extrair uma determinada quantidade de
velmente menos que no ano anterior. De todas as regiões, a América mais-valia, materializada em uma massa de mercadorias, em um
do Norte registrou a queda mais forte do volume das exportações e produto. Este tem que ser vendido, como vimos, para que eles
importações de mercadorias (5% e 3,5% respectivamente). O valor em recuperem o capital-dinheiro na produção, agora acrescido de uma
dólares do comércio mundial de mercadorias diminuiu 4,5%, a mais massa de mais-valia. Mas isso se dá globalmente, no mercado
forte regressão em uma década. Para os serviços comerciais, o recuo
mundial. A verdadeira questão da demanda, ou da realização,
observado em 2001 foi o primeiro desde 1983." (OMe, comunicado
de 08/10/2002) como já demonstrava Rosa Luxemburgo, seguindo fielmente a te-
oria de Marx a respeito, é a realização da mais-valia que se distri-
Isso é muito perigoso. a progresso da circulação do capital bui pela totalidade das mercadorias produzidas, e não de um
global estava se estrangulando no momento do seu «salto perigo- produto qualquer, de uma soma de simples mercadorias, de utili-
so", parafraseando Hegel, para quem «o momento da objetivação dades, como também imaginam os economistas. Trata-se então,
é de sofrimento" ... Para os capitalistas, isso acontece quando a em termos mais concretos, da realização de uma determinada
massa crescente de capital-mercadoria - grávida de uma massa taxa de lucro, embutida nos preços de produção da massa total
também crescente de mais-valia (ou lucro) extraída do operariado das mercadorias, que na circulação das mercadorias aparece como
mundial - tem que ser jogada no mercado, vendida, metamor- um mero e indistinto produto de utilidades oferecidas aos ávidos
foseada em uma quantidade de dinheiro que só então pode cum- consumidores individuais.
prir novamente sua função de capital-dinheiro e inaugurar um
novo ciclo de investimentos industriais, aumento da produção e Essa questão da demanda é determinada pela totalidade do
recuperação de um ritmo circulatório normal de reprodução glo- capital, pelo mercado mundial, embora pareça para os economis-
bal. O sofrimento do nosso capitalista hegeliano está justamente tas um problema meramente provinciano, nacional ou, nos casos
no seu medo, muito justificado, de que essa realização seja mal mais avançados de vulgaridade, um problema das firmas indivi-
sucedida, ou, pior, que nem aconteça.
A circulação do capital tem que ser ininterrupta. Como uma 17. "A atividade econômica mundial se recuperou durante o primeiro semestre de
circulação sangüínea. Qualquer interrupção mais demorada ou 2002 e o comércio mundial começou a se reerguer a partir do primeiro trimestre.
variações muito grandes da sua pressão arterial - principalmente Apesar dessa mudança de tendência do começo do ano, o valor em dólares das
exportações mundiais de mercadorias ficou 4% abaixo do nível medido no ano
as de pressão baixa, as deflacionárias - podem ocasionar graves passado. Durante os seis primeiros meses de 2002, as importações da União
conseqüências no corpo capitalista. a
sangue pode se coagular e Européia e dos Estados Unidos caíram 6%, enquanto as do Japão e da América
gangrenar partes sensíveis do seu organismo. É justamente isso Latina recuaram mais de 10%." (OMe, comunicado de 08/10/2002)

54 55
duais, como se fosse um problema originado pelas diferentes es- EUA, como é relatado em uma interessante matéria do jornalista
truturas de concorrência de capitalistas isolados-". Sérgio Dávila:
Se aquela metamorfose do capital-mercadoria em dinheiro não «Um estudo que acaba de ser divulgado pelo Departamento de Agricultura
ocorrer, ou se essa realização da mais-valia global se desacelerar mostra que 33 milhões passam fome hoje em dia nos EUA) contra 31 mi-
lhões de dois anos atrás. São americanos que não sabem quando vão comer.
muito, como mostravam na época os dados publicados pela OMe,
As pessoas não têm dinheiro suficiente para viver em Nova York, para pagar
podem ocorrer duas coisas. o aluguel e comprar comida) ou pagar o aquecimento e comprar comida. E o
Primeiro: cairiam simultaneamente os preços e as taxas de aluguel aumentou muito. O preço para um apartamento hoje em dia é 800
lucros globais. dólares) ou seja) mais do que o salário mínimo da região de Nova York (775
Segundo: com a queda dos preços, quer dizer, da taxa média de dálares)." (Folhade S. Paulo, 01/12/2002)
lucro, os capitalistas reduzem a conversão do dinheiro realizado o regime capitalista de produção, com sua forma histórica e parti-
em capital-dinheiro e, portanto, em capital-produtivo de mais-
cular de circulação e reprodução das riquezas sociais, não é capaz de
valia. Reduzem-se os adiantamentos (investimentos) em capital
garantir nem mesmo as necessidades básicas de reprodução da po-
constante (máquinas, matérias-primas, insumos etc.) e em capi- pulação mundial. Mas essa realidade só pode ser perfeitamente veri-
tal variável (força de trabalho, salários)!".
ficada nos periodos de crises catastróficas, inesperadamente, quando
Assim, a produção mundial cai e o desemprego da força de ocorre uma súbita elevação do desemprego mesmo nas regiões que
trabalho aumenta de maneira descontrolada. Aumenta, da mesma não apresentam nenhum motivo natural para que falte emprego e
forma, a concorrência entre os capitais individuais e a possibilida- comida para a sua população. Países com ricas possibilidades de re-
de de guerras entre as nações, colocando em risco a própria exis- produção material e classes privilegiadas que nunca imaginaram que
tência da espécie humana. poderiam ser arruinados pelo livre funcionamento do Estado e das leis
do mercado entram então na dança macabra da reprodução capitalista:
Espécie ameaçada de extinção «Os argentinos nunca pensaram que seu país) que consideravam uma ilha
Em Nova York, a cidade mais rica dos EUA, mais de 1 milhão e européia na América Latina) poderia cair no abismo da miséria. Mas o país
caiu e arrastou para a decadência seus principais representantes: a tradicional
meio de pessoas depende de doações para comer. Quinhentos mil
classe média. O desemprego atinge 21)5% da população economicamente
são crianças e trezentos mil são idosos. São dados oficiais da prefei- ativa. Outros dados mostram que 40% das pessoas enfrentam problemas de
tura da cidade. A desigualdade social atinge níveis históricos nos trabalho. Estes recordes de desemprego não diferenciam classe nem nível
educacional.já que 30% do exército de desocupados têm estudos universi-
tários completos ou parciais.
18. É claro que algumas economias nacionais estarão em melhor condição para
A pior crise econômica da história do país) que começou com um processo
evitar as piores conseqüências dessas turbulências circulatórias globais. Mas isso
recessivo há quatro anos e aprofundou-se com a suspensão do pagamento
não é aleatório, separado da totalidade do sistema, nem um jogo de soma zero.
de parte da dívida pública de US$ 114)5 bilhões) e com uma brusca
Também é um assunto - como os EUA estão exportando sua crise para o resto do
desvalorização do peso) atingiu duramente a classe média. Atualmente)
mundo, por exemplo - que só poderemos tratar mais à frente.
19 milhões de argentinos - 53% da população - se encontra abaixo da
19. Relembrando: o enfraquecimento da "decisão de investir" dos capitalistas não
linha de pobreza) segundo dados oficias. Destes) 60% eram da classe
pode ser resolvido apenas com reduções de taxas de juros pelo Banco Central (expan-
média." (AgênciaReuters, 28/11/2002)
são monetária) e aumento de gastos do governo, como procura ensinar a economia
política dos capitalistas. Quem sabe do que estamos falando é Alan Greespan - presi- Enquanto vastas áreas e imensos contingentes populacionais são
dente do Banco Central dos Estados Unidos, que, por dever de ofício, não pode se
cercados pelo mercado e não podem continuar produzindo e consu-
iludir com as abobrinhas neoclássicas e keynesianas, pois tem um império para
cuidar-e todos os economistas japoneses, que estão tentando escapar da "armadilha
mindo mercadorias como antes, os capitalistas procuram organizar
da liquidez" há mais de oito anos e até agora não conseguiram. Mas esse é um novas ondas de acumulação, novos ciclos de crescimento econômico
assunto que trataremos melhor nos capítulos seguintes. global. A pressão arterial do mercado mundial tem que ser recuperada
56 57
e estabilizada. A circulação de dinheiro e de mercadorias não pode
parar. Só assim a propriedade privada moderna - quer dizer, a anti-
ga propriedade metamorfoseada em propriedade especificamente ca-
pitalista, agora baseada exclusivamente na apropriação ininterrupta
do trabalho alheio - pode ser aceita como uma coisa natural e eterna
mesmo para aqueles países e classes sociais que são mais ameaça-
dos por essa forma histórica e transitória de reprodução social.
Não se trata, portanto, de uma mera imposição ideológica, política,
cultural. Trata-se de procedimentos materiais, econômicos. A conti-
nuidade desse regime em que a forma salário e a reprodução contí-
nua do lucro governam as necessidades sociais de produção e consu-
mo só pode ser garantida se os capitalistas forem capazes de reeditar
sucessivos ciclos periódicos de crescimento econômico e de acumula-
ção capitalista global. Esse é o problema que cerca permanentemente PARTE 11
a economia mundial. A tarefa da crítica da economia é esclarecer
esse problema e antecipar os seus possíveis desdobramentos.
2001:
A necessária produção e a reprodução da espécie humana é inter-
rompida periodicamente só porque os capitalistas deixaram de receber
ANATOMIA DE UM CICLO ECONÔMICO
a taxa média de lucro que eles esperavam conseguir com a venda das
suas mercadorias. Mas, para existir, a espécie tem que consumir e
produzir continuamente, não importa o regime social de produção e
reprodução. Ninguém pode negar que, se alguém é impedido de tomar
água ou de se alimentar por alguns dias, vai necessariamente morrer.
A análise crítica das crises econômicas capitalistas mostra que a
espécie humana fica periodicamente ameaçada de extinção só por-
que ocorreu uma queda na taxa de lucro do capitalista. Só porque o
enorme desenvolvimento das forças produtivas sociais de que a espécie
é capaz e necessita entra em choque com as limitadas relações socais
de produção e reprodução do capital. Só a análise crítica das crises
econômicas capitalistas pode mostrar o que ameaça de morte a espé-
cie humana e, conseqüentemente, o que tem que ser feito para que
ela fique livre para sempre dessa ameaça. Esse é o único objetivo e
razão de ser da crítica da economia política. Antes de qualquer con-
sideração filosófica, moral, ideológica, cultural, religiosa etc., a análise
crítica das verdadeiras causas das crises econômicas capitalistas pode
mostrar que o atual regime social de produção e reprodução é uma
ameaça material, concreta, perfeitamente comprovada com a análi-
se, contra a espécie humana. E que, por isso, a revolução proletária
só pode ser um ato puramente material.
58
Capítulo 5

NO BALANÇO DA NOVA ECONOMIA

Nada é mais perigoso para a govemabilidade capitalista do que


uma depressão econômica global. É por isso que a teoria das crises
econômicas (e das suas diferentes formas e intensidade de manifes-
tação) está no centro da disputa teórica entre a economia política
capitalista e a economia política dos trabalhadores. Rosa Luxemburgo
dizia em seu livro Reforma ou Revolução - no começo do século XX,
no seu confronto teórico com Kautsky e Berstein, da ala revisionista
da Social Democracia Alemã - que, se fosse verdade que as crises
econômicas globais e suas conseqüentes crises sociais tinham desa-
parecido do regime capitalista, os trabalhadores não teriam mais
nenhum argumento moral para lutar pela revolução social. Marx,
por seu lado, já dizia muito tempo antes que uma verdadeira revolu-
ção proletária só poderia ocorrer na esteira de uma crise econômica
catastrófica. E complementava: uma é tão certa quanto a outra.
Mas, então, quando e como se apresenta uma crise social? Além das
estruturas econômicas, em cujos lentos movimentos ocorrem as crises
políticas, a crise social só pode se manifestar em períodos muito espe-
ciais em que ocorre uma interrupção absoluta dos lentos e progressi-
vos movimentos da estrutura econômica. Uma crise social só pode se
manifestar naqueles raros períodos em que a valorização do capital é
bruscamente paralisada, em que uma depressão capitalista global inte-
rrompe catastroficamente a reprodução material da espécie humana.
Diferentemente das crises políticas, que podem eventualmente
provocar abalos nos partidos políticos ou substituições de gover-
nos instalados, a crise social provoca necessariamente uma crise
de absoluta ingovernabilidade das classes dominantes e, sirnulta-
61
neamente, do seu Estado. A crise política ameaça com mudanças rios nem sempre revela o que está por trás dessa merda toda. Mas às
nas formas de governo do regime democrático, a crise social amea- vezes revela. Às vezes de maneira cínica e direta, às vezes de maneira
ça com a abolição dos próprios fundamentos materiais deste regi- realista e preocupada. Alan Greenspan, por exemplo, presidente do
me, abrindo-se a possibilidade de uma revolução social. A depres- Fed (Banco Central dos EUA) e guardião dos interesses de todos os
são econômica global é aquele raro momento em que uma crise {{homens de mercado" da ordem capitalista, prefere a maneira cínica
social abre a possibilidade, pela primeira vez na história, de uma e direta para revelar o segredo dessa beleza americana:
revolução política com alma social.
"Insegurança no emprego éfator positivo) diz Fed. As rápidas mudanças
Essa disputa teórica, tão antiga quanto o próprio regime capita- tecnológicas estão deixando os trabalhadores mais inseguros quanto a
lista, estava mais atual do que nunca nos últimos meses do século seus empregos) afirmou ontem o 'chairman' do Federal Reserve) Alan
Greenspan, sugerindo que tal inquietude deverá conter as pressões por
passado e início do século XXI. Mais do que uma disputa meramente
aumentos salariais e sobre a inflação) mesmo com o índice de desem-
abstrata, tratava-se da verificação concreta daquela crise global no prego próximo de seu menor patamar em 30 anos. Esse (nível mais ele-
coração da economia mundial. Mais precisamente na Bolsa de Va- vado de possíveis demissões» afirmou Greenspan, é um 'subproduto bem
lores de Nova York, na sua Bolsa eletrônica popularmente conheci- vindo) da expansão da informação em tempo real e do uso da internet
da como Nasdaq, onde se negocia as ações das empresas da cha- que estão transformando o mercado de trabalho nos EUA. Greenspan já
havia utilizado o argumento da insegurança no trabalho para explicar os
mada Nova Economia. O que estava em jogo era a possibilidade de
aumentos salariais relativamente baixos no atual período de expansão
que aquelas turbulências do mercado que marcaram profunda- econômica. Os seus comentários sugerem que as pressões dos trabalha-
mente a chegada do século XXI pudessem evoluir para uma crise dores por aumentos de salários estão mais moderadas devido ao temor
de dimensões catastróficas. Vale a pena reconstruir detalhadamente que esses têm de ser demitidos por (habilidades profissionais que se tor-
aquela história, a história de um verdadeiro ciclo econômico capita- naram obsoletas'," (BloombergNews/GZM, 12/07/2000)
lista. É o que procuraremos fazer nos próximos capítulos.
O economista David Friedman (em artigo intitulado Qual, afi-
nal) é o nível de produtividade?, publicado originalmente no jornal
Produtividade e luta de classes
Los Angeles Times e retranscrito pelo O Estado de s. Paulo em 11/
Até onde vai a fase de expansão de um ciclo econômico? Até o 07/2000) prefere a maneira realista e preocupada:
ponto em que os capitalistas forem capazes de garantir uma taxa
crescente de produtividade, quer dizer, uma taxa crescente de ex- "Se por acaso se revelar que os ganhos de produtividade dos EUA ocorrem
mais à custa de grupos internos) como a classe trabalhadora) que é
ploração da força de trabalho. Até a metade de 2000, o último
desproporcionalmente afetada pela globalização, ou de fabricantes estran-
ano do século passado, a produtividade global da economia ameri- geiros afligidos por condições financeiras adversas) o futuro será muito
cana estava subindo a um ritmo assombrosoê". menos róseo. É verdade que o poder político da classe trabalhadora encon-
tra-se em seu mais baixo patamar em décadas. Além disso) países como o
A euforia entre os capitalistas com tanta exploração sobre os operá-
Japão) a China e a maior parte do mundo de média e baixa renda parecem
estar imobilizados em padrões de investimento e comércio que) pelo menos
por ora) suprem os EUA com produtos de alta qualidade e baixo custo quan-
20. '~ produtividade americana, medida chave para determinar o nível de vida da
população, subiu 5.3% no segundo trimestre do ano, colocando os ganhos com relação
to com capital para os consumir.
ao ano passado no nível mais alto dos últimos 17 anos, informou ontem o Departamento
O problema de se construir riqueza a partir da desigualdade econômica é
do Trabalho dos Estados Unidos. No segundo trimestre, os ganhos em produtividade-
que algo ruim sempre acaba acontecendo. Neste exato momento) os for-
a quantidade de produção por hora de trabalho - representou uma brusca aceleração
com relação ao 1.9% registrado no primeiro trimestre do ano. O índice foi superior ao
madores de opinião asiáticos estão discutindo formas de eliminar sua
esperado. Analistas haviam prognosticado uma alta de 4.5%. Com a força desse indica- cada vez menos atraente dependência dos EUA. Os colarinhos azuis po-
dor registrado no segundo trimestre, a produtividade subiu 5.1 % nos últimos 12 dem estar dóceis agora) mas se a economia desacelerar e o choque de
meses, o maior índice em 17 anos, quando o ganho anual do segundo trimestre de alguma adversidade abater-se) como parece provável) sobre a força de
1983 também alcançou 5.3%." (O Estado de S. Paulo, 09/08/2000) trabalho da nação) sobrevirá a inquietação social. No decorrer do tempo)

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é sempre dificil apaziguar os menos privilegiados e evitar o conflito) si- neira prática, nas ruas, como deve ser quando a lógica encontra seus
multaneamente preservando as desequilibradas relações i,,-ternas e limites para resolver problemas que dizem respeito à luta de classes.
internacionais que alimentam o topo da riqueza americana. E por isso
que os mercados alegram-se com dados adversos de emprego interna- Turbulências no mercado
mente e com condições estáveis) porém não espetaculares) no exterior.
É possível que os dados sobre o crescimento da produtividade nos EUA Sempre preocupados com as taxas de juros do Fed e as bolsas
ainda venham a se revelar o prenúncio de uma era econômica benfazeja. de valores, que eles chamam genericamente de "mercado", os ana-
No entanto) as chances de que reflitam uma realidade social por demais listas econômicos americanos não sabiam o que dizer dos primeiros
conhecida e potencialmente explosiva não podem ser ignoradas. Tudo sinais de tempestade na acidentada evolução da sua economía-",
depende de se colocar a história na perspectiva correta."
Eles deveriam se preocupar menos com os humores do Sr. Greenspan
Esse tipo de discussão teórica não se resolve apenas com conside- e suas vacilantes taxas de juros e começar a se preocupar com
rações lógicas, com o diálogo amistoso de diferentes idéias acerca da coisas mais fundamentais. Por exemplo, essa preocupação ainda
realidade. A dialética tem limites. Certos assuntos só podem ser mais ou menos difusa dos "homens do mercado" com aquilo que
resolvidos na rua. A força decide. Foi o que aconteceu naquele mês eles chamam ingenuamente de "metas de lucros das empresas".
de agosto. A resposta dos colarinhos azuis aos argumentos cínicos de Acontecia que os lucros industriais continuavam jorrando na econo-
Greenspan e aos preocupados de Friedman foi imediata. No momen- mia americana. Mas o crescimento desses lucros não estava mais
to mesmo em que os mercados alegravam-se com os dados recordes tão exuberante como antes: no segundo trimestre de 2000, a massa
de produtividade na economia americana, os 86 mil trabalhadores de lucro ainda continuava estagnada nos níveis do ciclo anterior.
da Verizon Communications - maior empregador do ramo de teleco-
Estamos nos referindo aos resultados apresentados na fabricação
municações dos EUA, nascida da fusão recente da Bell Atlantic com a
de bens duráveis - metalurgia, siderurgia, eletroeletrônicos, computa-
GTE - entraram em greve e foram para as ruas:
dores, material de transporte, automobilística, aviação, aeroespacial
"Greve na Verizon parece longe do fim. Gigante americana de comunica- etc. Esses são os ramos de produção estratégicos, os que determinam
ções encontra dificuldades em negociar. A paralisação de 86 mil traba- os rumos da economia dos EUA e as características particulares de
lhadores da Verizon evoluiu para uma das maiores e mais obstinadas
greves em muitos anos) despertando dúvidas quanto ao preparo da compa- cada ciclo econômico. É neles que se localizam as grandes empresas
nhia para negociar contratos trabalhistas e ao modo como trata a parali- e, no caso americano, algumas das maiores empresas do mundo,
sação. (...) Nas filas de piquetes aumentou a tensão entre a diretoria e os como General Electric, General Motors, Boeing, IBM, Xerox, Lockhed
grevistas. Os sindicatos informaram quarta-feira que nove piqueteiros Martin etc. Encontram-se acima da média da composição orgânica
foram atingidos por veículos de gerentes em episódios distintos) mas nin- do capital nacional - maiores plantas, maiores faturamentos, maior
guém foi parar no hospital. A Verizon informou que membros do sindica-
produtividade etc. São esses ramos de bens duráveis que criam o
to haviam atirado garrafas) pedras e ovos nos gerentes que tentavam
entrar nos prédios da companhia. Até agora) 24 membros dos sindicatos preço de produção regulador do mercado para toda a economia, quer
em toda a região foram detidos durante a greve) segundo a Verizon.)) (O dizer, o padrão nacional de custo industrial, preço, taxa de lucro,
Estado de S. Paulo, 11/08/2000). investimentos, estrutura de força de trabalho etc.

Algumas garrafas, pedras e ovos nos colarinhos brancos da gigante


americana das comunicações foram suficientes. Uma semana depois, 21. "Apesar da notícia que a taxa de desemprego se manteve em 4%, indicando que
a empresa cedia aos colarinhos azuis em todas as suas reivindicações. a taxa de juros não deve ser alterada, a Bolsa de Nova York teve ontem uma discreta
alta. (... ) Segundo analistas, o mercado está preocupado com a possibilidade de a
A greve tinha sido vitoriosa. Estava dada a resposta teórica dos
desaceleração da economia, apontada pelos dados divulgados ontem pelo Departa-
trabalhadores às divagações dos capitalistas, ora cínicas e alegres, mento do Trabalho, prejudicar as metas de lucros das empresas. 'O mercado quer
ora realistas e preocupadas, como vimos acima, acerca da produtivida- crescer, mas ainda não há bastante empolgação', resumiu um analista da Salomon
de americana. A resposta teórica dos trabalhadores foi dada de ma- Smith Barney, Marshal Acuff." (O Estado de S. Paulo, 05/08/2000)

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Por outro lado, nos ramos que compõem a fabricação de bens não Vejamos essas coisas em suas manifestações mais concretas. As
duráveis - alimentos, tecidos, vestuário, brinquedos, química, cosmé- vicissitudes da Kodak, por exemplo, no desenrolar do ciclo. A maior
ticos, medicamentos etc., predominam as pequenas e médias empre- fabricante mundial de filmes e equipamentos fotográficos não conse-
sas. Esses ramos de produção localizam-se, em geral, abaixo da guia mais segurar seus lucros. Em 26 de setembro de 2000, quan-
média nacional, alojando urna grande quantidade de empresas familia- do o mercado ficou sabendo de seus minguados lucros para o ter-
res, menos produtivas e menos competitivas no comércio internacional. ceiro trimestre daquele ano, os preços das suas ações na bolsa de
Essas empresas empregam também uma quantidade de força de tra- Nova York caíram 25% em menos de cinco horas. Um quarto do
balho desproporcionalmente maior do que no setor de bens duráveis. seu preço de mercado evaporou-se em menos de cinco horas. Se-
Segundo dados do US Departament of Commerce - Bureau of gundo a própria direção da empresa, esta foi a maior queda em um
Economic Analyses (BEA), no seu relatório National Income and Pro- só dia desde o grande crash da bolsa de Nova York de outubro de
duct Accounts, second quarter 2000, publicado em 7 de agosto de 1987, quando a empresa perdeu de urna só tacada 30% do seu
2000, a massa de lucro global da indústria americana naquele ano valor. Esqueceram de dizer que, somando-se o fatídico desempe-
(US$ 193 bilhões em termos anuais) ainda estava ligeiramente abaixo nho de 26 de setembro, o preço das ações dessa empresa global já
dos lucros de 1997 (US$ 195bilhões), último ano de expansão do acumulava urna queda de 43% no ano. E a tendência era de cair
ciclo anterior. Essa massa de lucro se dividia pela metade entre os ainda mais. Portanto, diferentemente do que aconteceu em 1987,
setores de bens duráveis e de não duráveis. agora a coisa estava mais pesada do que naqueles ciclos passados.
O mais importante é que esse não era um problema só da Kodak.
O problema é que a mesma massa de lucro correspondia a urna
massa (quantidade) de mercadorias produzidas 35% maior neste ano A Kodak não estava sozinha. Naquele mesmo dia, outras grandes
do que em 1997. Isso na fabricação de bens duráveis. Nos de não perdas ocorreram com os papéis da empresa Lexmark International,
duráveis, o aumento da produção no mesmo período foi bem menor, segundo maior fabricante mundial de cartuchos de tintas para impres-
em tomo de 15%. Com esta desproporção entre massa de lucro e soras de computadores. Também com projeções de lucros menores,
quantidade de mercadorias produzidas, os preços de produção das essa empresa viu 28% do seu valor de mercado virar pó. Outra
mercadorias dos ramos mais dinâmicos (bens duráveis) caíram 6%, grande derrocada foi protagonizada pela Intel, a maior fabricante
e os preços dos menos dinâmico (bens não duráveis) aumentaram 6%. mundial de chips para computadores; os seus papéis caíram mais
5%, acumulando urna queda de mais de 30% em apenas três dias.
Outros dados mostravam que esse desempenho inferior dos ra-
A lista não tinha fim. A cada semana, urna grande novidade:
mos de bens não duráveis se devia a urna baixa produtividade
Xerox, AT&T,Crysler, Motorola, DeU... Eram cada vez mais generali-
somada a urna elevação do custo unitário da força de trabalho.
zados os casos de quedas de preços de ações das maiores empresas
Exatamente o contrário do que se verificava na fabricação de bens
mundiais. A causa? Queda no faturamento e, conseqüentemente,
duráveis, onde estava ocorrendo urna vertiginosa elevação da pro-
dos lucros. A Xerox Corp., por exemplo, anunciou um prejuízo de
dutividade e simultânea queda no custo unitário.
US$ 167 milhões para o terceiro trimestre daquele ano, quando teve
Em resumo, os dados sobre a produtividade, essa variável estraté- um faturamento de US$ 4,5 bilhões, urna queda de 4%. No auge de
gica da economia, devem ser verificados de maneira criteriosa, ao sua valorização, em meados do ano anterior, cada ação da Xerox
contrário do que fazem os «homens do mercado" e seus economis- valia 60 dólares. Doze meses depois valia apenas 10 dólares! Os
tas. Devem ser verificados naqueles pontos e naquelas relações rumores de concordata da gigante multinacional cresciam no mercado.
que sustentam a produtividade global do sistema e seus ciclos eco- Resultado: seu crédito secou. Qualquer empréstimo para a Xerox
nômicos. Esses pontos e essas relações que se encontram de ma- passou a ser de alto risco; para conseguir dinheiro de giro, ela já
neira mais evidente nos ramos industriais de manufaturas de bens estava pagando juros até 17% acima dos títulos do Tesouro americano.
duráveis e nos de não duráveis. São taxas dos chamados junk bonds (bônus desqualificados, de alto
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risco). Há poucos dias da virada para o século XXI, estavam se des- as possibilidades de que essa sugestiva transição acontecesse nos
manchando os grandes ícones da economia americana do século XX22• seis meses seguintes.
As grandes oscilações e quedas das bolsas de valores dos EUA Aquela primeira fase, que estava a se encerrar, caracterizou o
continuaram serpenteando por todo o mês de outubro. No dia 18, ingênuo «pouso suave" que os filhos de Greenspan tanto deseja-
por exemplo, uma quarta-feira, foi a vez do anúncio de queda dos ram. Mas a segunda fase que agora se iniciava tinha todos os
lucros da gigante IBM comover os sensíveis mercados de capitais ingredientes para concretizar o temido «pouso estrondoso":
de todo o mundo: ((Vo~ê está ouvindo o estrondo? É o som das bolsas de valores indo água
abaixo - perderam-se cerca de US$ 5 trilhões desde o início do ano de
«Pregão dramático levou índice Dow fones a voltar para nível abaixo de
acordo com o Morgan Stanley Dean Witter. O que foi este estalo? 'Um
l?OOO pontos. Num dos mais movimentados pregões de todos os tempos
mercado mundial de títulos sobrecarregado se espatifando. E aquele ba-
(SlC), o mercado de ações americano caiu ontem puxado pelo declínio
que surdo? O colapso de outra instituição financeira japonesa. Sob a lide-
vertiginoso dos papéis da Intemational Business Machines (IBM). A queda
rança de Wall Street, os mercados globais caíram em média 17% desde o
de 16% dos papéis da maior fabricante mundial de computadores levou o
início do ano, como se vê no Dow fones World Index. Em relação ao dólar.
índice Dow fones Industrial, logo na primeira hora de negociações, a
tombar para um nível abaixo de 10.000 pontos, um marco que, segundo
a Europa caiu 21 %; o índice Nikei japonês, 25%; e a Coréia do Sul, 51 %
- e nen~um destes mercados parece ter atingido o fundo do poço. (...) O
os analistas, retratl} o momento de correção pelo qual passa as bolsas de
q~e esta havendo? Apenas há um mês, a economia mundial parecia per-
valores do país. O Indice Composto Nasdaq, que reúne os papéis do setor
[eitamente segura. E certo que o endividamento das empresas era alto e
te.cnológico, também recuou pela nona vez em dez dias, novamente preju-
havia acontecido um colapso das empresas pontocom e, desde abril, os
dicado por empresas do setor de computação. Tanto no caso da IBM,
mercados continuavam a ignorar esses avisos. O faturamento e os lucros
como no da RF Micro Devices e da Covad Communications, o motivo da
nos EUA pareciam saudáveis e o crescimento, tanto nos EUA quanto na
venda desenfreada foi o anúncio de lucros inferiores ao esperado. (...) A
Europa, era especialmente encorajador - 3, 7% para os EUA, 3,5% para a
tumultuada quarta-feira sacudiu ontem também as bolsas em todo o mun-
Eu~opa. (-..) A grarz..derrz.udança que está ocorrendo é que, por toda parte,
do. Na Ásia, o índice Nikei composto por 225 ações da Bolsa de Valores de
os inuestidores estao euitando correr riscos. Até recentemente, investido-
Tóquio fechou o pregão de ontem com sua menor pontuação em mais de
res_americ~~os ~ europeus esbanjavam nas aplicações, ignorando pa-
um ano e meio, em queda de 3,05%. A queda provocada por empresas de
droes tra~lclOnals de lucratividade e adotavam modelos de negócios
tecnologia contaminou também Hong Kong e, na Europa, provocou forte
rx:ntocor:! mseguros como sendo a grande revelação do mercado. Agora, os
~ecuo de 6,18% na Bolsa de Moscou. Os mercados latinos, fortemente
riSCOSsao novl}mente importantes. (.. .) A idéia de que as Economias da
Influenciados por Wall Street, tiveram em São Paulo a maior queda, com
Europa e da Asia poderiam se acelerar (sempre um mito), enquanto os
perdas também em Buenos Aires." (Gazeta Mercantil, 19/10/2000)
EUA retrocederiam, foi eliminada. Em um mundo mais conectado do que
nunc~, o perigo é ~ue, uma vez que um ciclo financeiro comece a piorar,
Essas turbulências estavam longe de acabar. Tendiam, ao contrá-
ele va longe demais. A prosperidade global, dada como certa há apenas
rio, a aumentar de tamanho e de intensidade. Estavam apenas no poucas semanas, encontra-se agora seriamente ameaçada." (Business
meio de um caminho que, a história ensina, poderia levar a Week/Valor, 25/10/2000)
economia mundial para as profundezas do inferno. Os movimen-
O economista Stephen Roach, do Morgan Stanley Dean & Co, ti-
tos dos últimos 30 dias estavam a indicar que o mercado mundi-
nha uma imagem ainda mais sugestiva para o "pouso" que vinha pela
al de capitais estava fechando uma fase de desaceleraçâo crônica
frente: a tarefa de conduzir a economia americana, de dez trilhões
- iniciada no mês de abril daquele ano, quando os preços das
de dólares, para um pouso suave seria algo semelhante a pousar
ações pararam de subir - e se aprontando para entrar na fase
um ônibus espacial em um porta-aviões, à noite, em mar revolto.
mais perigosa de inanição e ... desabamento. Eram muito grandes
Improdutivinet.com
22 Até os mais insuspeitos representantes da Nova Economia - aqueles
.. "D epois. d e mais
. d e um século ligando os Estados Unidos com ondas de rádio e
fios , a AT&T Corp ., que Ja ., f 01. a mais
.. rica e mais
. soSlid
I a empresa do país está ~esmos que são os seus maiores beneficiados pelas novas tecnologias,
desmanchando-se." (Wall Street ]ournal/O Estado de S. Paulo, 26/10/2000) Internet, empresas pontocom etc. - estão agora denunciando a falsidade
68 69
de todas aquelas idéias que, de tempos em tempos, em períodos de nova fronteira aberta pela internet podem tomar-se mais eficientes do
exuberante expansão do capital, ressurgem agarradas apenas no velho que jamais sonharam. Por essa razão, as empresas que têm mais chance
de ser fabulosamente bem sucedidas na internet, diferentemente do que
e nebuloso fetiche da tecnologia. Aquelas idéias acerca do mundo
diz o senso comum, são justamente as gigantes da economia tradicional,
capitalista como uma "sociedade do conhecimento" e outras asneiras as GE, as GM, as multinacionais, as companhias bilionárias com opera-
morrem aos primeiros sinais de que mais uma grande crise se apro- ções globais. Quase todas as empresas pontocom vão sumir do mapa."
xima. Nossa preocupação com essas ideologias baratas deve-se ape-
nas a isso: o momento da queda dessa moda da sociedade espetacu- Bravo, Mr. Ellison. Mesmo que o senhor tenha falado todas
lar é um importante sinal de que uma grande crise econômica mun- essas verdades só depois que a vaca já tinha afundado as quatro
dial se aproxima. Era exatamente isso que estava a ocorrer a alguns patas no brejo, parabéns. Mr. Ellison merece parabéns principal-
dias apenas do Revei/lon de um novo século, de um novo milênio. mente pela perfeita localização que ele faz da internet dentro da
economia, quer dizer, na esfera da circulação. Mr. Ellison é um
Depois que os investidores capitalistas já tinham decretado, na
homem prático, que vive apenas no mundo concreto da concorrên-
prática, a morte das "empresas de alta tecnologia", fugindo delas
cia (toda sua vida se resume em destruir e ocupar o lugar de seu
como o diabo foge da cruz, um dos seus oráculos descrevia em
arqui-rival Bill Gates, dono da Microsoft). Mas, de uma maneira
detalhes os preparativos para seu enterro. Seu nome é Larry Ellison,
ingênua, acabou encontrando na realidade - quer dizer, no mundo
presidente da Oracle, a segunda maior empresa do mundo de soft-
dos fenômenos - uma importante comprovação da teoria crítica.
ware, logo atrás da Microsoft do popular Windows. A revista Veja,
de 18 de outubro de 2000, dedica capa e matéria especial de dez A grande maioria dos economistas ainda não se deu conta dessa
páginas para descrever a vida particular do Mr. Ellison, 56 anos, o função da internet: mero meio de comunicação e circulação da
segundo homem mais rico do mundo (fortuna pessoal de US$ 50 massa de mercadorias fabricadas na esfera da produção de capi-
bilhões) e as suas opiniões sobre a Nova Economia e suas moribun- tal. Aliás, a mesma função que tiveram, no decorrer do tempo, o
das empresas pontocom. Deixemos de lado as fofocas sobre a pes- correio, o telégrafo, o rádio, o telefone, o telex, o fax e agora, final-
soa do Sr. Ellison e vamos às suas precisas opiniões econômicas: mente, a internet. Assim, a aplicação capitalista dessas tecnologias
'~ idéia de que as empresas novas criadas na internet poderiam dominar foi diminuindo progressivamente o tempo de circulação e de rota-
o cenário está totalmente sepultada. Elas é que serão varridas da vida ção do capital imobilizado na produção das mercadorias.
econômica numa velocidade maior do que o mais pessimista dos analis-
tas poderia prever. As empresas pontocom, na maioria parecem nada? Isso realmente tem um efeito muito importante na elevação da
Pois bem, elas são nada. A imensa maioria das empresas listadas na taxa de lucro e, em um determinado ciclo de negócios, é um dos
Nasdaq vai desaparecer. Essas companhias começaram a vender ações principais fatores que se contrapõem à queda daquela mesma taxa
na bolsa e, mesmo sem gerar um centavo de lucro, passaram a valer, em de lucro. Mas pára por aí. Se os desenvolvimentos técnicos aplica-
alguns casos, bilhões de dólares. Ou seja, milhões de pessoas investiram
dos na esfera da circulação do capital alteram positivamente a taxa
fortunas nelas e perderam tudo. JJ
de lucro, eles não provocam nenhum efeito nem na taxa de mais-
"Uma empresa que vende comida de cachorro na internet precisa antes
valia (e, portanto, na taxa de produtividade) e nem na massa de
ser uma boa companhia de comida de cachorro na economia tradicional. JJ
lucro, pois estas variáveis se movimentam por outras razões que
"Primeiro, não souberam entender o que é a internet, Depois acredita-
são encontradas unicamente na esfera da produção de capital.
ram que ela revogaria todas as leis econômicas. A meu ver não existe
sequer uma nova economia. Nem velha. O que existe é apenas a econo- As empresas situadas exclusivamente na esfera da circulação do
mia. A novidade é a tecnologia que permite comunicações globais instan-
capital são totalmente improdutivas, não produzem nem um grama
tâneas a um custo baixíssimo, ou seja, a internet, Por meio dela, as
empresas podem comunicar-se com seus empregados, clientes, fornece- de valor ou de lucro. Elas apenas apressam ou retardam a realização
dores em qualquer parte do mundo a um custo quase insignificante. As do valor, da mais-valia e do lucro gerados nas empresas situadas
companhias da chamada velha economia que reagirem com vigor a essa totalmente ou em parte na esfera da produção de capital. Para cum-
70 71
prir essa função auxiliar das empresas produtivas de capital, as dutivas (como a Orade, de Mr. Ellison), que se concentram direta
empresas improdutivas da circulação recebem uma parte da alíquota ou indiretamente nos ramos de comunicação, armazenamento de
da massa global de mais-valia (lucro) gerada na produção, de acordo informações, processamento das informações e outras inutilidades
com o tamanho do seu capital individual e com a taxa geral de lucro burocráticas capitalistas. Esse fenômeno pode ser ilustrado por um
da economia, como de resto acontece com todas as demais empresas levantamento recentemente realizado pela empresa de consultoria
do sistema, estejam elas na esfera da produção ou da circulação do Dun & Brodstreet Company Data, relacionando o faturamento e o
capital. Isso é o que Marx chama de comunismo do capital. valor de mercado de diferentes empresas. Foram analisadas três
Por isso, os economistas do Departamento do Comércio, do Fed, empresas do setor industrial e do comércio, também conhecidas
do Departamento do Trabalho, da OCDE, do FMI etc., não param até pouco tempo como "Velha Economia". Em seguida, três empresas
de construir sofisticados modelos econométricos, fazem toneladas de de "alta tecnologia", destacadas integrantes da Nova Economia.
textos e travam intermináveis discussões para determinar o efeito
VALOR DE MERCADO FATURAMENTO DIFERENÇA
das "novas tecnologias" na produtividade da economia e ... não encon-
(US$ bilhões) (US$ bilhões)
tram nada. É conhecida a frase do prêmio Nobel americano de eco-
ExxonMobil 317 185 + 71 %
nomia (Robert M. Solow, 1987) de que "as novas tecnologias estão
Waal-Mart 201 167 + 20%
por toda parte, menos nas estatísticas sobre a produtividade". Bingo!
Boeing 53 58 -8%
O Sr. Greenspan tem consciência dessa impotência teórica da econo-
Cisco Systems 378 19 + 1889%
mia política vulgar, embora prefira muitas vezes relaxar e embolar as
Microsoft 290 23 + 1161 %
coisas, conferindo às novas tecnologias de comunicação um papel cen-
Oracle 187 10 + 1770%
tral ao aumento da produtividade da força de trabalho e na massa de
lucro das empresas. Assim, acaba embolando também a perfeita com-
preensão dos rumos dos negócios dentro de um ciclo econômico. Fica o que se observa logo de cara é uma evidente disparidade entre
difícil, por exemplo, entender por que os lucros das maiores empresas os dois grupos de empresas. As três primeiras - que estão muito
mundiais estavam naquele momento caindo para níveis preocupantes longe dos ramos improdutivos de comunicação, transmissão, ar-
e apontando para mais um período de crise na economia. Aí, suas dú- mazenamento de mensagens e outros instrumentos administrativos
vidas quanto a elevar ou baixar as taxas de juros do Fed se trans- e gerenciais - têm seu valor de mercado nas bolsas de valores giran-
formam em um pesadelo, que começa com a idéia de um "pouso suave" do em tomo do seu faturamento. Observem que o valor de mercado
da economia e que vai se transformando em estrondos por todo lado. da Boeing é 8% inferior ao seu faturamento. Parece que não era aqui
que estava ocorrendo a "exuberância irracional" do Sr. Greenspan+'.
Parabéns também para Mr. Ellison por testemunhar que não
existe nem "Nova Economia" nem "Velha Economia". Existe ape- Já as três últimas empresas, que se especializam justamente na-
nas a economia. Mas aquela definição do que é produtivo ou quelas tarefas improdutivas e burocráticas do sistema, apresentavam
improdutivo no sistema não deve ser tratada como algo de me- naquela oportunidade seus valores de mercado desmesuradamente
nos importância para as particularidades concretas do ciclo de descolados do seu "faturamento", Observem que o valor de mercado
negócios. Vejamos a coisa mais de perto. da Oracle era três vezes maior do que o da Boeing, que é simples-

Historicamente, observam-se duas particularidades muito interes-


santes com os diferentes tipos de empresas (produtivas de capital 23. Esses dados deveriam fazer aqueles inconseqüentes apóstolos do "capitalismo
ou improdutivas) envolvidas na corrida da valorização de um deter- cassino", da "ultra-financeirização" e outras veleidades, que repassamos no capítulo
2, refrear um pouco suas vazias especulações ideológicas sobre as bases do que eles
minado ciclo periódico. A primeira é que a especulaçâo com o dinheiro
chamam de "sistema produtor de mercadorias" e qualificar um pouco mais as suas
circulante ocorre de maneira muito centralizada nas empresas impro- queixas lamuriosas sobre os exageros especulativos do mercado.
72 73
mente a maior e quase monopolista produtora mundial de grandes Bloomberg News ilustrava bem o atual estado de ânimo do merca-
aviões comerciais (só a Airbus européia ainda insiste em concorrer do frente a tempestade que se avizinhava:
com ela), além de grandes aviões de combate, como verificamos no «Wall St. teme onda de pânico nas bolsas - As ações do mercado ameri-
capítulo 3. Já o valor de mercado da Microsoft é quase quatro vezes cano desabaram ontem, empurrando o Índice Nasdaq abaixo do nível dos
maior que o da Boeing, o da Cisco seis vezes. Não era uma maravilha? 2000 pontos, pela primeira vez em mais de dois anos, e levando o índice
Dow fones lndustrial a bater em sua quinta maior queda em pontos da
Pois são as ações dessas fantasiosas «empresas de alta tecnolo-
história. (... ) 'Estamos sentindo pânico no ar', disse Uri Landsman que
gia", dentre as quais se destaca a Oracle de Mr. Ellison, que são administra o Fleck Time fundo (Há um sentimento de que a recessão
negociadas em uma bolsa muito especial chamada de Nasdaq. Elas americana poderá afetar o mundo e o mercado sente o impacto', acrescen-
centralizam o principal foco da especulação do mercado de dinheiro tou ... Com a queda de ontem, a Nasdaq passou a acumular 62% de baixa
e de capitais. Geralmente, essa especulação atinge sua mais elevada em relação ao pico de 5048 pontos registrados em 10 de março de 2000,
o maior declínio da bolsa eletrônica americana em seus 30 anos de histó-
agitação e efervescência naquele ponto do ciclo em que a animação
ria. O Dow fones lndustrial caiu 4,1%, ou 436,37 pontos, a maior perda
da produção e do comércio alcança seu auge. Naquele ponto, mesmo em pontos desde 14 de abril de 2000. O terceiro principal índice do mer-
empresas tradicionais do setor produtivo podem ser arrastadas para cado de ações americano, o Standard & Poors 500, recuou 4,3%, para
o surto especulativo. Mas quando aparecem os primeiros sinais de fechar em 1180,16 pontos. No acumulado, o S&P 500 já perdeu 23% em
desaceleraçâo e de enfraquecimento dos negócios, a especulação desen- relação ao pico de 23 de março do ano passado. Para os analistas, uma
freada (irracional, como ensina o Sr. Greenspan) continua aquecida queda de 20% já é um crash. "

apenas naquelas empresas improdutivas da Nasdaq. Mas, como se Duas brevíssimas observações. Primeira: pela primeira vez desde
podia verificar nos últimos meses do século passado, essa inércia que apareceram os primeiros sinais de crise nos EUA, todos os índi-
especulativa só tem fôlego até um certo ponto mais à frente do ciclo, ces das bolsas de valores de Nova York desabaram no mesmo dia.
exatamente quando a própria expansão da produção de capital tam- Pesadamente. Dow Jones e S&P 500, da "Yelha Economia" - que
bém já se aproxima de mais um período de reversão da superprodução ainda serviam de refúgio para os que abandonavam o mais que
e do supercomércio em esgotamento, desânimo nos negócios e ... crise. avariado barco da Nasdaq -, também começavam a ficar à deriva.
É neste ponto de mais um pesado período de crise que a econo- O motivo? As fortes quedas de lucros na economia que em um
mia mundial estava entrando. E aqui acontece a segunda coisa primeiro momento se concentraram mais nas empresas pontocom,
interessante que falamos anteriormente: as maiores quedas e ins- de meios de comunicações e telecomunicações, agora já estavam
tabilidades nas bolsas, que podem desembocar em falências e fe- corroendo também sólidas empresas industriais. Não foi por acaso
chamentos de milhares de empresas, primeiro acontecem naquelas que as ações da gigante General Electric, por exemplo, foram as
empresas improdutivas ligadas direta ou indiretamente aos ramos que mais caíram (quase 10%) naquela segunda-feira de março.
de comunicação etc., exatamente aquelas que continuaram mono-
polizando até o dia anterior a especulação pura e simples. Segunda observação: também pela primeira vez os analistas es-
tavam deixando de lado aquela conversa para boi dormir de que a
A "sociedade do conhecimento"na sarjeta empolada e decadente dama européia escaparia ilesa deste corrosivo
Poderia ter sido em 12 de março de 1929. Mas foi em 12 de processo, coisa que ninguém parecia duvidar até poucos dias antes.
março de 2001, um dia em que o mercado financeiro mundial foi Agora começavam a sentir no bolso (e nas bolsas) que a totalidade
abalado pelas turbulências mais profundas do ano. Tudo muito capitalista, quer dizer, o mercado mundial, é muito mais do que suas
didático, na única forma capaz de enfiar na cabeça dos capitalistas ingênuas idéias de uma rede de balanças comerciais e de ativos finan-
que o novo período de crise econômica global não estava para ceiros, presentes em seus toscos manuais de comércio internacional.
brincadeira. Os espetaculares acontecimentos mereceram um noti- Quanto ao Japão, a coisa estava ficando "pra lá de russa". A
ciário carregado de realismo da mídia internacional. O relato da deflação se aprofundava: juros, preços, investimentos e produção
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se afogavam na armadilha da liquidez. Com taxa zero de juros, as Passados apenas 12 meses, os capitalistas da Nova Economia
grandes empresas que ainda não tinham apodrecido não queriam Ja não estavam tão entusiasmados. Muito pelo contrário, estavam
saber de novos empréstimos dos bancos, enquanto as que já ti- muito mais preocupados em salvar seu capital e suas empresas da
nham apodrecido estavam proibidas até de passar perto dos ban- lata de lixo do mercado, mesmo destino que tiveram aquelas suas
cos. Armadilha da liquidez é isso: quem pode tomar empréstimo ideologias baratas sobre a Nova Economia.
não quer, e quem quer não pode. A taxa zero de juros se transfor- No dia 12 de março de 2001, a Bloomberg News informava o
ma na maior taxa do mundo. destino definitivo daquelas idéias, através de um obscuro chefe de
Síntese das duas breves observações acima ou, se quiser, indigesta investimentos de uma tal de PanAgora Asset Management Inc., um
moral dos gloriosos acontecimentos de 12 de março de 2001: ao tal de Edgar Peters, mais um daqueles tipos de orgulhosos homens
contrário do último período de crise geral (julho/97 a dezembro/ práticos que não precisam pensar para agir, admiradores da "nova
98), desta vez o contágio não vinha da Ásia, mas da maior econo- sociedade do conhecimento", amantes das novidades, assinantes da
mia do planeta; não vinha da periferia, mas do coração do sistema. revista Veja etc. Mas agora, aterrorizado com a situação da econo-
mia e com o que ele estava vendo nas telas das bolsas mundiais,
Como veremos em nosso próximo capítulo, esta crise que come- exclamava pela Internet:
çava a se manifestar com maior clareza nas bolsas, estava prepara-
"Certamente há temor lá fora, temor e decepção. Então, muitas pessoas
da, madura, já no primeiro semestre de 2000, exatamente quando
acreditavam na história da Nova Economia e ver todos aqueles sonhos
a aceleração da máquina industrial capitalista dos EUA atingiu suas completamente destruidos à sua frente é desmoralizador. A idéia de que
marcas mais elevadas. Mas não era bem assim que os capitalistas tudo seria diferente com a Nova Economia está indo para a sarjeta. "
estavam apreciando, exatamente um ano antes, aquela pletora de
capital. Acontece que, no desenvolvimento do ciclo econômico, o
período de expansão do capital aparece crescentemente como uma
coisa absoluta, autônoma, como se não dependesse desta ou da-
quela limitação interna ao seu próprio processo de crescimento e de
rápida acumulação. Dependendo do entusiasmo com que se trava
essa santa cruzada - que no começo de 2000 também era o mais
elevado dos últimos 50 anos -, os capitalistas podem até se con-
vencer de que, além do capital e suas intrincadas relações, eles
estão criando finalmente uma Nova Economia.

Como orgulhosos homens práticos que não precisam pensar


para agir, criadores da nova sociedade do conhecimento, amantes
das novidades etc., eles proclamam então a sua libertação de
todos os inconvenientes da Velha Economia. Proclamam a sua
liberdade frente a todas aquelas antigas coisas sem as quais o
capital nunca pôde se frutificar e se reproduzir para alturas cada
vez mais elevadas mas que, ciclicamente, com uma inexplicável
regularidade, era violentamente confrontado por acontecimentos
aparentemente sobrenaturais: interrupção dos lucros, colapso das
bolsas, falências de grandes empresas, catástrofe econômica, cri-
ses sociais ...
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Capítulo 6

2001, UMA ODISSÉIA NO


INTERIOR DO CICLO

Havia alguma coisa diferente no ar. Diferente, mas não nova. E


nem muito recente. Quem levantou a lebre foi a revista inglesa The
Economist, zelosa guardiã da consciência mais refinada (e das vi-
cissitudes reais) do regime capitalista: seria aquele ciclo econômico
diferente dos outros ciclos ocorridos nos últimos 50 anos? E se
fosse, ele seria parecido com quê? A revista tenta responder a
essas intrincadas perguntas na sua edição de 13/03/2001, em
uma longa e interessante matéria transcrita pelo jornal Valor:
"O ciclo de negócios está diferente. E agora? O longo crescimento ame-
ricano traz novas questões para a compreensão da economia - a ex-
pansão econômica dos EUA já é a mais longa da história. Se a econo-
mia exibir fôlego suficiente para continuar em alta no primeiro tri-
mestre deste ano - as opiniões se dividem quanto a essa possibilidade
- serão exatamente dez anos de crescimento. É mais do que o dobro da
média dos períodos de expansão desde a II Guerra. A maioria dos
economistas ainda acredita que a recessão pode ser evitada. Outros
duvidam que isso seja possível. De toda forma, quase todos baseiam
suas opiniões em uma percepção muito particular do conceito de ciclo
de negócios. Em vista dos acontecimentos recentes, talvez essa per-
cepção precise mudar. Não existem dois ciclos idênticos, mas o padrão
dos últimos 50 anos tem se mantido relativamente constante. Essa
regularidade parece ter sido rompida pela {nova economia', em movi-
mento associado ao risco de os EUA entrarem num período de retro-
cesso econômico."

Em resumo: depois daquelas veleidades que tivemos que con-


viver na última década do século XX, de que a Nova Economia
tinha sepultado os ciclos econômicos, agora os capitalistas esta-
vam dizendo que aquela mesmísaima Nova Economia acabou
79
detonando, na verdade, uma coisa muito mais perigosa: o ciclo era uma repetição dos demais ciclos do pós-guerra ou não. E
rompimento daquele monótono e previsível padrão dos últimos salvou a matéria da revista:
50 anos de ciclos econômicos, que iam e vinham sem causar "Para um observador que merece atenção a resposta é não. Larry
muito estrago na ordem capitalista global. Bastavam, na concep- Summers, secretário do Tesouro no governo Clinton, afirmou que o
ção dos capitalistas, ágeis providências monetárias dos sucessi- ciclo americano atual é fundamentalmente diferente dos similares ocor-
vos presidentes do Banco Central americano - os Greenspans de ridos no pós-guerra - mas não porque seja <novo). Para Surnmers, a
situação corrente tem mais em comum com os ciclos econômicos ante-
plantão - mexendo para cima ou para baixo as taxas de juros da
riores à Segunda Guerra - ou mesmo) acredite se quiser, com o ciclo
economia de ponta do sistema, para recolocar o mercado mundial japonês do fim da década de oitenta. É uma comparação que o ex-
nos trilhos da expansão. secretário) sabiamente) preferiu não fazer enquanto estava no cargo.
Mas se a coisa mudou, como sugere a The Economist, mudou Summers também espera que a recessão possa ser evitada) mas se
estiver certo quanto ao funcionamento atual das coisas) as previsões
para quê? Talvez as sagradas escrituras ajudem a responder:
baseadas em cálculos ortodoxos sobre o comportamento dos ciclos de
UNa Bíblia) sete anos de fartura eram seguidos de sete anos de escas- negócios serão de pouca utilidade:' (The Economist, op. cit.)
sez. Ciclos de negócios nunca exibiram essa regularidade. Desde 1945)
os períodos de expansão têm variado em duração de 12 meses aos atu- As sagradas escrituras cedem lugar para a riquíssima Paidéia.
ais 120 meses (presumindo que a economia ainda não se tenha contra- Aberta a caixa de Pandora, restava aos capitalistas torcer para
ído). As recessões tiveram entre 6 e 16 meses. A pior recessão moderna que a depressão que se avizinhava não fosse tão implacável como
aconteceu entre 1973 e 75) quando o PIB caiu 3)4%. A menos expres-
em outras transgressões aos deuses no passado; restava aos ca-
siva ocorreu em 1969-70) com declínio mínimo na produção. »
pitalistas torcer para que os indecifráveis e irados demônios envi-
Quando as angústias dos capitalistas são maiores do que as ados do Olimpo não fossem tão punitivos com as transgressões
sagradas escrituras podem dar conta, só lhes resta um derradeiro avolumadas nos últimos dez anos de contínua superprodução do
recurso: consultar seus oráculos economistas. capital. O roteiro da crise já estava traçado pelos fundamentos de
<~ maioria dos economistas - incluindo) ao que parece) Alan Greenspan, uma desafiadora superprodução. Mas naquele início de 2001,
presidente do Federal Reserve - avalia a atual desaceleração como se aquele roteiro só podia ser vislumbrado em embaçadas fotos da
este fosse) nos aspectos mais relevantes) um ciclo de negócios como evolução daquela superprodução. Vejamos uma delas.
qualquer outro dos nove experimentados pelos EUA desde 1945. Se
estes analistas estiverem certos) os cortes nas taxas de juros feitos até Fotografando perigosas relações de produção
agora) somados a outros que estão por uir, devem funcionar como remé-
dio rápido e eficaz. Servirão para restaurar a demanda e diminuir a Algumas observações preliminares. Como verificamos anterior-
lacuna entre estoques desejados e reais. A pergunta que fica é: o ciclo mente, a indústria de manufaturas de bens duráveis é a ponta da
aindafunciona desta forrna?' (The Economist, op. cit.) economia dos EUA. É o mais representativo dentre os demais seto-
Ainda funciona? Difícil de responder. Mas a revista teve um res produtivos - bens não duráveis, minas, agricultura, transpor-
pouco de sorte. Acabou ouvindo o Sr. Larry Summers, um te, utilidades públicas etc. São esses setores que regulam a dinâmi-
economista sério, coisa rara naqueles tempos de Novas Economi- ca econômica global, no desdobramento das diferentes fases do
as. Mas Summers, que possui pelo menos uma das virtudes de
ciclo econômico: expansão, desaceleração e crise.
um bom economista, a de não ficar apenas na superfície das Quando se analisa a dinâmica cíclica da economia dos EUA,
coisas, também não respondeu exatamente como funcionam os não é correto o procedimento corrente dos economistas de traba-
ciclos econômicos nem qual é a natureza do ciclo atual. Isso já lhar com os dados mais agregados dos «setores não agrícolas"
seria exigir demais de um economista que se educou principal- (nonJarm sectors). Assim, eles misturam alhos com bugalhos, colo-
mente para dar receitas de boa govemança aos capitalistas. Pelo cando no mesmo saco aqueles setores produtivos de mais-valia e
menos respondeu ao que estava sendo perguntado, se o último lucro, listados acima, com uma série interminável de setores im-
80 81
produtivos: serviços, comércio, finanças, governo, e milhares de superficial que engloba os setores produtivos e improdutivos, e
outras "novidades", derivações dessas inutilidades sociais. que é normalmente utilizada nos cálculos do mercado e seus eco-
O mais correto é destacar na investigação o mais importante nomistas. Seria um escândalo econômico. Pois esse escândalo acon-
dentre os setores que produzem a mais-valia, exatamente a teceu no setor mais básico daquela economia, naquele em que se
indústria de bens duráveis. É essa indústria de manufaturas que produz o seu combustível essencial: valor, mais-valia e lucro.
antecipa as variações que serão reproduzidas mais à frente no E o famigerado custo unitário do trabalho (CUFT), aquele nível
resto da economia, como bem observa o relatório de produtivida- de gastos dos capitalistas com capital variável, que reflete indire-
de e custos do Departamento do Trabalho americano: tamente a evolução do valor da força de trabalho e, em
"o produto e as horas trabalhadas na indústria de manufaturas tende a contrapartida, o aumento da massa de mais-valia produzida?
variar mais de trimestre para trimestre que os dados dos setores mais agre- Observava-se em relatórios anteriores que essa taxa tinha caído a
gados dos (negócios' (business) e (setores não agrícolas' (nonfarm sectors}." uma assombrosa taxa de 1,7% em 1999. Agora, verificava-se
Vejamos então a foto do capital e suas execráveis relações de que, no mesmo período, na indústria de bens duráveis essa cria-
produção: tura tinha caído 4,8%!
Nesta nova foto, verificam-se outras coisas muito importantes.
Indústria de Bens Duráveis dos EUA
Em um primeiro momento, que a economia americana alcançou
mudanças médias trimestrais da produtividade e
medidas correlacionadas, 2000 (em %, anualizadas) seus pontos mais elevados de expansão do último cíclico no de-
correr do primeiro semestre de 2000. Quer dizer, no desenvolvi-
ANUAL TI TIl TIII TIV mento do primeiro e segundo trimestres daquele ano (TI e TIl na
Produtividade 10,5 13,9 10,2 11,5 6,6 tabela acima). Observa-se que os números nesses dois trimestres
Produto 10,0 12,7 13,7 8,1 -0,5 são ainda mais exuberantes do que na média do ano e, conse-
Horas Trabalhadas -0,5 - 1,1 3,2 - 3,0 - 6,7 qüentemente, do ciclo como um todo.
Remuneração Horária 1,9 0,1 0,7 2,7 6,4 Podemos então anotar: o período de expansão do mercado mun-
Custo Unitário do Trabalho (CUFT) - 4,8 - 8,6 - 5,9 - 4,6 2,6 dial - iniciado entre o último trimestre de 1998 e primeiro tri-
Fonte: Dep. do Trabalho dos EUA, relatório Productivity and Costs, março /2001 mestre de 1999 - alcançou o ponto mais elevado daquele ciclo
exatamente nos dois primeiros trimestres de 2000. Aqui a super-
Vejam os desempenhos das criaturas tal como se revelavam
produção de capital atingia seu ponto máximo no ciclo.
em 2000, repetindo aproximadamente o desempenho dos dois
anos anteriores (1998 e 1999) que não aparecem na foto acima. O caldeirão estava borbulhando como nunca se viu: enquanto
Não é por acaso que a indústria de bens duráveis é a ponta que a produtividade e o produto (que podemos chamar, em geral, de
regula a evolução da economia americana e, por extensão, toda a potências produtivas sociais, considerando esse produto despoja-
economia mundial. Fotos anteriores da evolução nos últimos 50 do da sua forma mercadoria, quer dizer, na sua forma pura de
anos dessa indústria revelam recordes e mais recordes anuais do riqueza que a população trabalhadora é capaz de produzir) se
processo de valorização do capital. E agora o que verificamos em elevavam para níveis inimagináveis, entre 10 e 14% ao ano, o
primeiro lugar nesta nova foto, que retrata a evolução da indús- CUFT caia de maneira inversamente proporcional, dentro de uma
tria em 2000? Aqueles recordes multiplicados por dois (ou mais)! faixa de (-)6,0 a (-)8,5%.
O crescimento anual do produto foi de 10% e o da produtivi- Essas eram basicamente as relações de produção que poderiam
dade de 10,5%! Imaginem se estas fossem as taxas de crescimen- sustentar todas as possibilidades de crescimento e acumulação do
to do Produto Interno Bruto (PIE) daquela economia, essa medida capital no último período de expansão: uma determinada acelera-
82 83
çâo da produtividade da força de trabalho (ou taxa de exploração) de acordo com os dados concretos do último ciclo do século pas-
que, dadas as características produtivas deste ciclo, poderia ga- sado. No terceiro trimestre de 2000 (T Hl}, as coisas ainda se
rantir uma correspondente taxa de lucro para conservar e reprodu- mantiveram dentro do figurino capitalista, com a produtividade
zir de maneira ampliada o capital total instalado. ainda altamente acelerada, o produto com uma certa desacelera-
ção , e o CUFT ainda lá embaixo. Mas as horas trabalhadas (-
Mas havia, ao mesmo tempo, uma espada pendurada e
3,0%) e os salários (+2,7%) já estavam fugindo do padrão apre-
apontando para a cabeça dos eufóricos capitalistas. Qualquer
sentado nos dois primeiros trimestres. Algo não estava cheirando
ruptura dessas relações de produção abriria uma crise para valer.
muito bem.
Produtividade, produto, horas trabalhadas, salários e custo uni-
tário do trabalho. Na medida em que essas criaturas se relacio- Foi no quarto trimestre (T IV) que as coisas começaram a se
nam no processo de produção capitalista, elas estabelecem não precipitar, como que puxadas com muita força para baixo. No últi-
apenas um processo de valorização e de acumulação - a par de mo trimestre de 2000, a foto ficou muito embaçada. Parecia que,
um rápido desenvolvimento das potências produtivas sociais -, de repente, todas aquelas estranhas criaturas começaram a enco-
mas estabelecem também o que se denomina na economia políti- lher. Ou melhor, quem deveria crescer agora se encolhia, e quem
ca dos trabalhadores de relações de produção. No caso, relações deveria encolher agora crescia. E essas metamorfoses ocorreram
de produção especificamente capitalistas, que se escondem sob o com muita rapidez e intensidade, se comparadas ao ponto mais
nome de custos de produção e aparecem totalmente de ponta- elevado do ciclo ( T I): a produtividade caiu de 13,9 para 6,6%; o
cabeça como "gastos do capital", como formas mistificadas de produto caiu de 12,7 para (-) 0,5%; as horas trabalhadas caíram
despesas do capital para se produzir uma determinada mercado- de (-) 1,1 para (-) 6,7%; os salários subiram de 0,1 para 6,4%; o
ria, um valor de uso, um produto. famigerado CUFT, finalmente, subiu de (-) 8,6 para 2,6%.

Mas se essas relações de produção são a própria condição históri- Estávamos constatando praticamente aquele ponto que falamos
ca de existência da produção de capital, aparecendo mesmo como acima, em que a ruptura cíclica das relações de produção reverte-se
o próprio capital que se auto-valoriza, de um lado; de outro, elas abruptamente e coloca-se como um obstáculo absoluto à continui-
se tornam cada vez mais estreitas no decorrer de um ciclo econômi- dade do processo de valorização do capital. É nisto que consiste a
co. A superprodução de capital - que caminha pari passu com o crise de superprodução de capital e que se formaliza em ciclos
enorme desenvolvimento da potência produtiva social, periódicos com suas diferentes e sucessivas fases: recuperação,
quantificado, no exemplo daquele ciclo, nas enormes taxas de aceleração máxima, desaceleração, paralisação e crise. Vale a pena,
produtividade da força de trabalho estampadas nas fotos que portanto, aprofundar um pouco mais esse estudo concreto de um
estamos apreciando - entra então em choque com o processo ciclo econômico.
simultâneo de estreitamento das relações capitalistas de produção
em que ela se assenta. Meu destino é acumular
Nos anos 90, a economia dos EUA mostrou sua força com enor-
Em um determinado ponto do ciclo econômico, essas relações de
me capacidade de aumentar a produtividade da força de trabalho
produção revertem-se abruptamente e se colocam como um obstá-
industrial, produzir massas gigantescas de lucro e, finalmente, acu-
culo absoluto à continuidade do processo de produção. Abre-se
mular capital como nunca. Como se pode verificar com os dados
então necessariamente um período de crise e de destruição de capi-
do relatório mensal Industrial Production and Capacity Utilization
tal. É neste sentido que se pode afirmar, como afirmava Marx, que
[Produção Industrial e Utilização da Capacidade], de março de
o limite do capital é o próprio capital.
2001, do Banco Central dos Estados Unidos (Fed), o resultado foi
Mas verifiquemos onde pode ter ocorrido esse ponto de fratura, uma elevação recorde da capacidade industrial.
84 85
Estados Unidos - Capacidade Industrial Esse índice representa um elemento importante dos ciclos sucessi-
(variação média anual % em períodos e anos selecionados) vos de valorização e acumulação, em que a mais-valia, aquela nova
PERÍODOS ANUAIS ANOS massa de valor gerada pelo investimento em capital variável e corres-
1967/ 1980/ 1989/ 1995/ 1998 1999 2000 2001 pondente exploração da força de trabalho, devidamente materializa-
1979 1988 1994 2001
da nas mercadorias da nova produção industrial, não é totalmente
Total da consumida na esfera da circulação. Uma parte da produção indus-
3,5 2,2 2,2 5,0 6,5 4,6 4,6 3,2
Indústria trial volta então para a esfera da produção para simplesmente repor
Manufaturas 3,7 2,5 2,5 5,6 7,2 5,1 5,0 3,5 a parte do capital constante consumido nos processos de produção
Duráveis 3,6 3,1 3,0 8,8 10,2 8,4 8,8 6,3 anteriores. Simultaneamente, uma parte maior ou menor da mais-
Não Duráveis 3,9 1,8 2,0 2,0 4,1 1,3 0,8 0,3 valia não consumida individualmente também retoma para a esfera
Mineração 0,4 0,2 -0,6 -0,2 -0,1 -1,5 -0,8 -1,0 da produção sob a forma de novas massas de capital constante,
Gás e 4,9 1,2 1,4 2,1 1,1 2,4 3,3 3,9 como massas de valor objetivadas em meios de produção adicionais.
Eletricidade
Esse percentual «poupado" da mais-valia corresponde à taxa de
acumulação. Temos assim um determinado ritmo de acumulação
A capacidade industrial instalada não é apenas a soma do capital
de capital, que deve ser necessariamente acompanhado por um
fixo (máquinas, prédios etc.), como pode parecer à primeira vista.
processo contínuo e também ritmado de valorização do capital.
Ela representa, de acordo com a própria definição do Fed, «o mais
Para que não seja bruscamente interrompida essa dança macabra
elevado nível de produto que as plantas industriais podem susten-
entre capital constante de um lado e capital variável de outro, a
tar". É, portanto, um índice que representa, em um dado momen-
taxa de lucro deve acompanhar o mais proximamente possível os
to, o nível máximo de emprego e consumo de elementos materiais
exuberantes passos da taxa de acumulação. Mas, como veremos
(máquinas, construções, meios de comunicação e transporte, maté-
mais adiante, manter essa sincronia entre produtividade e lucros se
rias-primas, energia elétrica, gás etc.) com que o capital investido
torna um verdadeiro pesadelo para os destemidos capitalistas.
vai ser movimentado em diferentes tempos de trabalho pelos ope-
rários empregados na indústria e na agricultura, para alcançar uma Não cabe nesta investigação analisar os números da tabela menci-
determinada produção de valor e de lucro. Os dados sobre a capa- onada para pormenorizar os outros diferentes e importantes aspectos
cidade industrial mostrados na tabela acima são os indicadores a que dizem respeito diretamente com a teoria geral do crescimento
disponíveis nas estatísticas oficiais que mais se aproximam do que econômico e do emprego, assim como com outros importantes aspec-
chamamos de capital constante, mesmo que eles representem esse tos práticos que transformaram a estrutura industrial americana nos
valor só de maneira longínqua, através do aumento da massa real últimos 50 anos. O que se procura é salientar apenas os elementos
dos valores de uso (inputs) que constituem a matéria deste capital. que cercam o fechamento do último ciclo econômico do século XX e a
profundidade da crise que se seguiria no início do século XXI.
Enquanto índice do capital constante, a capacidade industrial repre-
senta então fluxos de capital-dinheiro que se materializam imedia- Aqueles aumentos recordes da produtividade social do trabalho
tamente em capital-mercadoria (meios de produção), saindo da circu- na economia americana, que verificamos anteriormente, no período
lação para serem consumidos na esfera produtiva na forma de custos mais elevado do último ciclo (primeiro e segundo trimestres de 2000),
de produção (capital produtivo de valor e mais-valia), retomando a revelam-se agora, nos números acima, como recordes de elevação
forma de capital-mercadoria (agora como um novo produto, uma pro- do capital constante no mesmo período. A tabela demonstra que no
dução industrial) e reingressando de novo na circulação para tentar se período 1995/2001 houve uma vertiginosa elevação do capital cons-
realizar em uma quantidade de dinheiro maior do que aquela que foi tante na indústria americana, alcançando níveis que superam de
avançada no início, para tentar realizar um capital valorizado. longe outros períodos anteriores do pós-guerra. Isto aconteceu parti-
86 87
cularmente nas manufaturas, com uma concentração máxima nos ponto, agora com novos elementos e outras formas, aquela contradi-
ramos de ponta daquela indústria (bens duráveis). ção que já verificamos anteriormente entre o enorme desenvolvi-
mento das forças produtivas sociais e as estreitas relações sociais de
Observa-se nesses ramos de ponta da economia americana que o
produção sobre as quais se assenta a produção de capital-".
capital constante cresceu a uma taxa anual de mais de 9% entre
1995 e 2000, e nos diversos períodos do pós-guerra anteriores aos Ciclo acelerado
anos 90 ele crescia entre 3 e 4%. Enquanto isso, nos demais setores
Lá.pela metade de 2001, continuavam aparecendo estatísticas que
e ramos da indústria americana - não duráveis, mineração, gás e
indicavam com clareza uma iminente derrocada da economia mundial. A
eletricidade - o capital constante cresceu lentamente, de maneira
mais recente dizia respeito à evolução da produtividade do trabalho
quase estagnada, principalmente nos últimos três anos. Houve, por-
na economia americana. Desta vez, no primeiro trimestre de 200125•
tanto, uma significativa concentração de capital e uma monopolização
do recente processo de acumulação nos ramos produtores de máqui-
nas, computadores, automóveis, aviões, armamentos etc. Isso é muito 24. É esse processo histórico que é relatado, de maneira mais ou menos ingênua, pela
importante para nossa análise, pois são nesses ramos de ponta que revista americana Business Week, quarta semana de abril de 2001: " Os investimen-
se localiza, em geral, o epicentro da superprodução de capital, deter- tos, num surto fantástico, foram o combustível do foguete da economia no fim dos
anos noventa. A economia crescia, movida a gastos de capital que as empresas eleva-
minando assim o caráter e a extensão da subseqüente crise econômica.
vam em todas as áreas, de computadores de última geração a caminhões. A produtivi-
A acumulação ampliada - e a concentração de capital que ela impli- dade e os lucros decolaram em sincronia. A economia entrou na era dourada de
crescimento rápido e inflação baixa. Nas palavras do ex-secretário do Tesouro ameri-
ca, corno acabamos de verificar nos dados acima - é em si mesma um cano, foi dos acontecimentos o mais raro: expansão movida a investimentos. Isso é
poderoso meio material para incrementar a produtividade social do coisa do passado. Economistas e executivos preocupam-se com a possibilidade de que
trabalho. No período de expansão do ciclo, nada parece estar se antepon- a explosão de investimentos da década de noventa venha a se transformar, neste
do a essa marcha triunfal. Mas isso, que parece uma coisa muito início de milênio, em colapso que levaria de roldão a economia. A preocupação com
os lucros fez com que as empresas começassem a cortar seus orçamentos de capital.
natural, logo se revela como um processo de desenvolvimento econômico
No quarto trimestre, os gastos de capital caíram à taxa anualizada de 1,5%, após
histórico, provisório. Um processo que cria seus próprios limites, na crescerem mais de 20% nos três primeiros meses de 2000. É inquietante a possibi-
exata medida em que avança e acelera sua velocidade com taxas neces- lidade de que as empresas façam cortes radicais, para compensar os excessos de
sariamente crescentes de acumulação. Uma máquina de lucros que se investimento dos últimos anos. 'O pior está por vir', diz Richard Benner, economista-
chefe para os Estados Unidos da Morgan Stanley. 'Isso é apenas o início do retrocesso
deteriora em virtude dos mesmos mecanismos que a fazem funcionar.
nos gastos de capital'. O que está por trás do veloz retraimento dos gastos de capital?
O investimento das empresas foi afetado por tripla maldição: lucros apertados, condi-
Acontece, corno já constatamos, que esse processo de acumulação
ções de financiamento mais restritivas e crescimento lento. Os lucros corporativos
capitalista é essencialmente um processo de produção industrial, cujo caíram 11 % no quarto trimestre do ano passado - o pior desempenho desde a recessão
objetivo é unicamente a valorização do capital. Corno também consta- de 1991. E a fragilidade deve aumentar ainda mais. As mesmas forças que puseram o
tamos, a taxa de acumulação determina o ritmo e a magnitude da crescimento em marcha podem acabar provocando sérios estragos à Nova Economia. "
acumulação, enquanto a taxa de lucro determina o da produção. E 25."A produtividade caiu 2,1 % na indústria de manufaturas no primeiro trimestre
para que o período de expansão dos ciclos econômicos não sofra de 2001, o produto caiu 7,8% e as horas trabalhadas declinaram 5,8%. Este foi o
maior declínio na produtividade do trabalho no setor industrial desde o terceiro
interrupção, a taxa de acumulação deveria acompanhar aproximada- trimestre de 1989, quando ela caiu 3,2%. Na indústria de bens duráveis, a produ-
mente a taxa de lucro. Mas é nos limites cada vez mais estreitos tividade caiu 2,4% no primeiro trimestre de 2001. Isto reflete uma grande redu-
desta última que, de maneira oposta, se desenrola o ritmo cada vez ção no produto, 9,3%, e um correspondente declínio de 7,1 % nas horas trabalha-
mais ampliado da acumulação. A crise explode quando essa compres- das. A combinação da queda de 2,1 % na produtividade industrial e os 4,7% de
aumento na remuneração horária, causou um aumento de 7,0% no custo unitário
são da taxa geral de lucro engendra urna desvalorização de partes do trabalho industrial. A última vez que o custo unitário do trabalho cresceu tanto
crescentes do capital total, acumulado na forma de capital constante em um trimestre foi no primeiro trimestre de 1991, quando ele cresceu 7,2%."
(propriedades, estoques, mercadorias etc.). Reencontramos neste (EUA, Dep. do Trabalho, Productivity and Costs, primeira semana de junho/200 1)

88 89
Para que se tenha uma visão mais impressionista daquela situa- cósmica, agora tinha caído para (-) 2,4%. Isso não passou desa-
ção, vale a pena refazer e atualizar a tabela que apresentamos percebido pelo Departamento do Trabalho, que bem observava
anteriormente apenas acrescentando os números referentes ao pri- (nota 25) que "este foi o maior declinio na produtividade do trabalho
meiro trimestre de 2001. no setor industrial desde o terceiro trimestre de 1989, quando ela
caiu 3,2%". Mas o problema se alastrava também para a produção
Indústria de Bens Duráveis dos EUA que, no mesmo curtíssimo período de doze meses, desabou de
mudanças médias trimestrais da produtividade e 12,7% para (-) 9,3% ao ano. Para desespero dos comandantes e
medidas correlacionadas, 2000 e 2001 (em %, anualizadas) co-pilotos, eles sentiam a estranha sensação de que a astronave
estava desenhando uma acrobacia que não tinha nenhuma graça:
ANUAL TI TIl TIII TIV TlOl
estava ficando de ponta cabeça.
Prod utividade 10,5 13,9 10,2 11,5 6,6 - 2,4
Esses experimentados navegadores (pelo menos eles) sabem o
Produto 10,0 12,7 13,7 8,1 -0,5 -9,3
que alimenta as turbinas da sua formidável astronave, versão mo-
Horas Trabalhadas -0,5 - 1,1 3,2 -3,0 - 6,7 - 7,1
derna e globalizada do malfadado Titanic. Por isso, aterrorizados,
Remuneração Horária 1,9 0,1 0,7 2,7 6,4 4,0
eles observavam a fulminante queda das horas trabalhadas, de
Custo Unitário onde jorra o combustível essencial (valor e mais-valia) para movi-
- 4,8 - 8,6 - 5,9 -4,6 2,6 6,5
do Trabalho (CUFT)
mentar as turbinas, circuitos de iluminação, controles eletrônicos,
Fonte: Dep. do Trabalho dos EUA relatório "Productivity and Costs", radares, ventilação e tudo o mais que mantêm funcionando a sua
1" semana de junho/2001
imponente máquina espacial. Eles sabiam bem que a queda de
Vejam que foto mais sinistra. Muito mais do que a anterior, 7,1% das horas trabalhadas registradas naqueles primeiros meses
que captava as nauseantes criaturas do capital apenas até o quarto do século XXI indicava que o suprimento daquele combustível crí-
trimestre de 2000 (T IV, na tabela acima). Naquela altura da tico para a operação do sistema estava se esgotando.
aterrissagem da "máquina de lucros" - ou nave espacial, em uma Ficaram ainda mais horrorizados quando seus aparelhos - to-
singela homenagem ao genial cineasta Stanley Kulbrick, recente- talmente informatizados, digitalizados, graças aos avanços
mente falecido, do qual tomamos emprestado o título do seu filme tecnológicos ocorridos na Nova Economia - sinalizavam uma ver-
mais conhecido para esse capítulo -, já dava para perceber na tiginosa elevação da remuneração horária e, principalmente, do
cabine desta nave uma despressurização um tanto quanto preo- custo unitário do trabalho. Estava explicada a causa daquela asfi-
cupante para seus comandantes e co-pilotos, Para quem esperava xiante elevação da temperatura em toda a extensão e locais do
uma "aterrissagem suave", tudo estava acontecendo em um tempo aparelho que eles já vinham sentindo desde o quarto trimestre de
muito mais curto do que recomenda qualquer plano de navegação. 2000. Tudo que antes era virtual, agora se transmutava em pe-
Agora, apenas um trimestre depois, a trajetória da planejada sadelo real. Por isso, quando eles relutantemente voltaram seu
aterrissagem ficou claramente fora de controle. Os números do olhar para a parte externa da astronave, só esperavam não com-
primeiro trimestre de 2001 (T I 01) mostram que o problema na provar o que era absolutamente inadmissível, que as turbinas
nave espacial de segurança máxima não era mais só de estavam pegando fogo.
despressurização. Agora eram as turbinas. Parece que elas esta- Ainda não estavam. Mas ouvia-se uma estrondosa perda de
vam emitindo sinais de que algo muito grave está acontecendo. A pressão nas turbinas da invencível espaçonave americana que
Odisséia estava começando. transporta a economia mundial. É o que se podia ler nos núme-
O que se podia visualizar nos sinalizadores era que a produtivi- ros do relatório sobre a Tendência dos Indicadores Compostos,
dade, que um ano antes (T I) tinha sido de 13,9%, velocidade publicado em 08/06/2001 pela Organização para a Cooperação
90 91
e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Com esses indicadores, normais, entre 3,8 e 3,3. Mas, a partir de julho do mesmo ano,
procura-se medir a pressão arterial de momento das principais teve início uma contínua e rápida descompressão. Em novem-
economias e, mais do que isso, antecipar a tendência mais prová- bro, a pressão já era negativa, soando o sinal de pane no siste-
vel destas economias nos próximos meses. Os últimos números ma. Desde então, as luzes vermelhas do painel de controle da
apresentados eram fantásticos. Vamos a eles. cabine da espaçonave não se apagaram mais. Seguiram-se seis
meses de queda da pressão, culminando, nos meses de março e
OCDE - Principais Economias abril de 2001, com números absolutamente inaceitáveis (res-
Tendência dos Indicadores Compostos* pectivamente -3,5 e -4,3) para qualquer padrão de funciona-
(média móvel mensal dos últimos 12 meses) 2000 e 2001 mento desta unidade geradora de energia da espaçonave.

ANO/MÊS ESTADOS UNIDOS JAPÃO ALEMANHA G-7 3) As anormalidades verificadas na célula principal de regulação
2000/março 3,5 5,3 8,7 4,4 acabaram danificando, com um certo intervalo de tempo, outras
peças fundamentais do núcleo central de operação do sistema.
2000/abril 3,7 4,7 8,1 4,2
Em primeiro lugar, a economia alemã, que ainda se mantinha
2000/maio 3,8 4,6 7,6 4,0 dentro dos padrões normais de funcionamento até setembro de
2000/junho 3,3 4,3 6,9 3,5 2000, a partir da virada do ano também mergulhou em uma
2000/julho 2,5 4,1 6,3 2,9 descompressão ainda mais acelerada do que aquela verificada
na economia americana. Em abril de 2001, último dado dispo-
2000/ agosto 1,5 3,8 4,9 2,1
nível, sua pressão tinha caído para -4,2. A economia japonesa,
2000/ setembro 0,8 3,5 4,2 1,5 outra peça fundamental do sistema, sofreu uma recaída que não
2000/outubro 0,5 2,9 2,9 0,9 poderia ter ocorrido em pior momento, pois a maior parte dos
2000/novembro - 1,1 2,8 2,1 -0,1 procedimentos rotineiros já tinha sido utilizada para recuperá-Ia
de um enfraquecimento que já durava mais de cinco anos. No
2000/ dezembro -1,0 2,3 1,0 -0,3
mês de abril de 2001, ela já registrava a primeira marca negati-
200l/janeiro -1,9 1,6 0,0 -1,0
va de pressão, mostrando que o impacto da descompressão da
200 l/fevereiro - 2,6 0,7 -1,6 -1,8 economia americana foi mais forte do que poderia suportar seu
200 l/março - 3,5 0,3 - 2,7 - 2,5 já abalado estado de funcionamento.
200 l/abril - 4,3 -1,5 - 4,2 - 3,3 4) Nestas condições, todo o núcleo do sistema, constituído pelas sete
* Trend Restored Leading Indicators maiores economias do planeta (G-7), acabou refletindo aquele
desfalecimento agudo da economia americana. Aliás, com o G-7
Leitura das informações recebidas: observava-se um comportamento muito mais direto e em linha
1) A forma e a rapidez com que estava ocorrendo a descompressão com a situação da economia americana, o que confirma nova-
nas turbinas era alarmante. Desde que a astronave iniciou sua mente o papel determinante desta última para o destino da eco-
última decolagem, quase dez anos antes, nunca tinha ocorrido nomia global.
nada parecido.
O tempo se esvai e a solidão aumenta. Os últimos recursos para
2) De acordo com as medições apresentadas, o problema se lo- se reverter o curso descendente e descontrolado da pressão das
calizou originalmente na célula principal de regulação do sis- turbinas já foram adotados e aparentemente não surtiram os efei-
tema, a economia americana. Até maio/junho de 2000, a pres- tos esperados. A situação era desesperadora. O estado de ânimo
são daquela economia ainda se apresentava dentro dos padrões da tripulação era cada vez mais baixo.
92 93
Teoria, para que te quero ... presas baixaram 4,8o/c;, a maior queda em quase dez anos, com base nas
414 companhias do Indice de 500 da Standard & Poors que apresen-
Para que nos serve todos esses desenvolvimentos teóricos e taram lucros no dia lQ de maio. As companhias também decidiram elimi-
de acompanhamento de publicações de índices econômicos que nar empregos para se tornarem mais eficientes. "
temos feito até agora? O mesmo que para um médico serve o seu
A persistente queda dos lucros e da produtividade na economia
repertório médico e alguns exames laboratoriais: diagnosticar as
americana a partir do quarto trimestre de 2000 é a manifestação
causas da enfermidade de um determinado paciente, antecipar as
de um quadro patológico que já foi há muito tempo perfeitamente
etapas do seu alastramento e, finalmente, o remédio e o tratamen-
diagnosticado pelo repertório médico da economia política dos tra-
to a que ele deve ser submetido.
balhadores. Acontece o seguinte: a elevação da capacidade produ-
Em 2001, a sala de espera do nosso "consultório" estava cada tiva da força de trabalho (ou simplesmente produtividade) faz com
vez mais apertada para acomodar tantas vítimas de uma estranha que uma quantidade relativamente menor de trabalho produza
epidemia que tinha se alastrado pelo mundo nos primeiros meses uma quantidade superior de mercadorias. Se o trabalho aumenta
do século XXI. Uma epidemia tipicamente capitalista ameaçava a em produtividade, o simultâneo aumento da quantidade de merca-
espécie humana. As notícias de novos casos da doença não para- dorias produzidas (produto) representa uma quantidade diminuí-
vam de chegar. Vejam como as revistas especializadas estavam no- da de trabalho. Por isso, no decorrer da primeira fase (expansão)
ticiando este assunto: de um ciclo econômico, o custo unitário do trabalho (CUFT) - que
«Para qualquer lugar do mundo que se olhe, há um incessante fluxo de exprime o preço de uma determinada quantidade de trabalho fixa-
más notícias. Em 7 de junho, o governo britânico apresentou dados do nas mercadorias isoladas - deve cair.
segundo os quais a produção industrial havia caído durante três meses
Mas, no processo de produção de capital, não se trata de valori-
seguidos. No dia seguinte, a Alemanha anunciou que sua indústria
passava pelo segundo mês consecutivo de declínio. Em seguida, no dia zar apenas uma massa de mercadorias produzidas com uma deter-
11, veio a notícia de que a economia japonesa tivera uma súbita retração minada quantidade de trabalho - um dia, uma semana, um mês.
no primeiro trimestre. Enquanto isso, o crescimento da economia ame- Não se trata de valorizar apenas um produto isolado. Trata-se de
ricana estava, na melhor das hipóteses, estagnado. Coincidência? É valorizar o capital total instalado (C+ V), que só pode se realizar no
pouco provável. Na medida em que a economia global se une cada vez
decorrer de uma série sucessiva de processos de produção. Assim,
mais, tudo indica que o ciclo econômico também tenha se globalizado.
Em vez de subirem e caírem individualmente, as economias nacionais aquela diminuição do valor da força de trabalho fixada em cada
reagem cada vez mais em conjunto às mesmas forças. A Nova Econo- mercadoria produzida ocorre com a elevação da composição orgâ-
mia repousa sobre o comércio global, sobre mercados de capitais globais nica do capital (C/V) e se manifesta, finalmente, como uma dimi-
e comunicações internacionais. Infelizmente, a porta se move de um nuição relativa do capital variável em relação ao capital constante.
lado para o outro. As mesmas ligações que propiciaram o crescimento
de ontem, podem espalhar o desastre de hoje." (Business WeeklValor, Em outras palavras, a quantidade de trabalho despendida nos
03/06/2001) sucessivos processos de produção diminui continuamente com rela-
ção à massa de trabalho materializada no capital constante que ela
Ainda existiam fragmentos de dialética em alguns casos da de-
cadente imprensa do século XXI. A Business Week é um destes movimenta. A esse aumento do valor do capital constante (C),
raros casos. Do mesmo modo a Bloomberg News, que também fala materializando uma superprodução de capital, corresponde uma
de passagem daquelas forças que movem a porta da economia diminuição progressiva da taxa geral de lucro e dos preços de produ-
ção, pois cada produto sucessivo contém uma massa de trabalho e
mundial de um lado para o outro:
de mais-valia (lucro) menor que aos níveis anteriores da produção,
(~ redução dos ganhos de produtividade e a elevação dos custos de mão
quando o capital gasto com salários (V) era proporcionalmente
de obra afetaram os lucros das empresas, porque, na opinião dos analis-
tas, o esfriamento da demanda de consumo faz com que seja difícil para
muito mais elevado que o capital gasto com meios de produção,
elas elevar os preços. No primeiro trimestre de 2001, os lucros das em- matérias-primas e insumos (C). Assim, diferentemente da taxa de
94 95
mais-valia (MV/V), a taxa de lucro (MV/C+V) deve ser calculada capital começa a entrar em crise, que o custo unitário da força de
relacionando-se a quantidade de mais-valia produzida e realizada trabalho também começa a aumentar, seguindo a queda dos inves-
não apenas com relação à parte que reaparece nas mercadorias, timentos, da produtividade física e do produto. Agora, uma massa
mas a esta parte mais aquela do capital não consumida, mas utili- de trabalho maior é fixada em cada unidade produzida - como
zada, e que continua operando na produção. relatavam os últimos relatórios do Departamento do Trabalho dos
EUA e a imprensa especializada -, refletindo apenas o fato de que
A quantidade de trabalho gasto na produção determina o pre-
uma mesma massa de trabalho global se fixava em um número
ço, mas não a proporção entre trabalho pago (valor da força de
menor de mercadorias. O capital começava a virar de ponta-cabe-
trabalho ou salário) e trabalho não pago (mais-valia ou lucro).
ça, é como se o capital variável (V) começasse repentinamente a
Esta proporção, representada pelo salário relativo (ou taxa de
crescer mais rapidamente que o capital constante (C). Como sem-
mais-valia), é determinada pela evolução da produtividade social
pre fazem, os economistas e a sua imprensa tomavam então essas
do trabalho. Na sua totalidade, a massa de mais-valia é determi-
conseqüências da crise como as suas causas.
nada pela sua taxa e, simultaneamente, pela quantidade de tra-
balho empregado ou, o que quer dizer a mesma coisa, pela mag- No interior da invencível espaçonave americana que carrega a
nitude do capital variável. A diminuição do custo unitário da economia mundial, ouvia-se os primeiros acordes de uma divina
força de trabalho é acompanhada de um aumento global da mas- valsa, Danúbio Azul. Estávamos mais próximos do que nunca de
sa de mais-valia (ou de lucro), na mesma medida que em que acontecimentos inesperados para a maioria das pessoas. O que se
essa massa de lucro por unidade diminuirá progressivamente com vislumbrava naquele momento - depois de todas as investigações
o desenvolvimento da produtividade do trabalho, apesar da ele- realizadas, com base nos últimos dados disponíveis e também em
vação da taxa de mais-valia. nossa experiência de mais de 20 anos acompanhando o dia-a-dia
da economia mundial - é que o desenlace do primeiro ciclo de
No decorrer da primeira fase do ciclo econômico, a taxa de mais-
superprodução e crise do novo milênio estava marcado para os
valia sobe, de um lado, enquanto o número de operários abaixa
meses seguintes. Que assim fosse, em nome de Marx, de Engels e
(relativamente ou, em alguns casos isolados, absolutamente). Esse
de Rosa Luxemburgo ...
aumento da exploração da classe operária, que aparece como
uma massa relativamente menor de salários (V) valorizando uma
massa crescente de capital constante (C), é a contradição que
periodicamente explode em crises e paralisações da produção,
quer dizer, em crises de superprodução de capital e queda da
correspondente taxa geral de lucro-".
Abre-se então a segunda fase do ciclo econômico (desaceleração e
crise), que pode (apenas pode) desembocar na estagnação e na
derrocada global da economia. É só nesta segunda fase, quando o

26. Em palavras mais simples: a causa da crise do capital é o aumento da exploração


da classe operária, não a sua diminuição. Portanto, a exploração da classe operária
só pode desaparecer junto com o desaparecimento do capital. Já vimos anteriormen-
te que uma crise catastrófica do capital é a condição absolutamente necessária para
que se apresente a possibilidade de uma verdadeira revolução social, para uma
verdadeira emancipação do proletariado. A crise do capital e a revolução social são
duas coisas que caminham necessariamente juntas. Uma é tão certa quanto a outra.

96 97
Capítulo 7

A MACROECONOMIA
DOS TERRORISTAS

Quando não se sabe o que se passa na origem dos fenômenos,


tudo parece nascer e crescer na própria superfície. O trigo nasce na
padaria e cresce mais no saquinho maior ou menor do pãozinho; o
feijão germina na prateleira do supermercado; os estoques de carros
e caminhões nascem e crescem nas lojas das concessionárias; a
energia elétrica é gerada nas lâmpadas e nas contas de luz. Para
completar, a economia expande ou desacelera de acordo com as
taxas de juro do Banco Central.
Então, quando as pessoas não sabem o que é produção de
capital e taxa de lucro, aquilo que está efetivamente na origem de
todos os fenômenos econômicos atuais, elas falam de Banco Cen-
tral e taxa de juro. É muito mais fácil. Afinal, qualquer um pode
ver sem nenhum esforço as mais variadas taxas de juro afixadas
diariamente, instantaneamente, nos jornais e nos noticiários da
televisão. Com a taxa de lucro é mais difícil.
Ninguém vê nem sabe de onde vem nem para onde vai essa
misteriosa criatura. E quando ela começa a se mexer ameaça-
doramente nas profundezas da produção e do processo de va-
lorização propriamente dito, só resta então às pessoas pedir ao
Banco Central que mexa nas taxas de juro. E torcer para que tudo
volte ao normal, para que tudo volte a funcionar de acordo com
aquelas idéias que os consumidores inertes fazem da realidade
capitalista.
Quer aquecer a economia? Abaixa as taxas. Quer desaquecer?
Levanta as taxas. Tudo se resolveria, então, com uma adequada
99
política monetária do Banco Central, aumentando ou diminuindo Não há mais esperança que só a ação do Banco do Japão possa
a quantidade de dinheiro, de meios de pagamento e de crédito na reanimar a produção do país. A economia está patinando e a taxa
economia, adaptando-se assim a demanda às necessidades de de juros espanando no "desconhecido mundo das taxas superzero",
um crescimento equilibrado do produto e da inflação. Para os economistas da superficialidade, a situação japonesa pas-
sou a ser um grande mistério desde que o problema da inflação
É assim que a economia é ensinada nas faculdades, é assim foi substituído por outro muito maior, a deflação.
que as coisas são consideradas na realidade social, na mídia, no
mundo dos fenômenos econômicos. Tudo é superfície. Qual é para eles a solução deste novo problema? Simples: inje-
tar dinheiro na economia, fazer uma política deliberadamente in-
Como veremos adiante, todas essas idéias vulgares, essa fal- flacionária, reforçar a demanda, aumentar os gastos públicos, re-
sa consciência do ser capital, acaba tendo uma certa influência duzir os impostos e por aí afora.
no desdobramento da situação econômica imediata e, finalmente,
Uma receita que só pode ser aplicada, diga-se de passa-
no desenlace concreto de um determinado período de crise eco-
gem, em economias dominantes, com moeda forte, efetiva-
nômica. O que se passa na superfície da dinâmica econômica
mente conversível, como a japonesa. Mas foi exatamente isso
tem, portanto, que ser levado em conta, pois é nela que a crise
que os japoneses fizeram mais nos últimos tempos. Com re-
se manifesta. Em primeiro lugar, a crise das idéias correntes
sultados nulos:
acerca dessa realidade; em seguida, a crise propriamente dita, a
crise material. "em seu informe mensal correspondente a agosto de 2001" - noticia o
mesmo The Wall Street Journal- "o banco central japonês disse que uma
Fantasmas samurais maior desaceleração da segunda maior economia do mundo é inevitável
se o gasto de capitais segue vacilante, os estoques aumentam e as rendas
Às vezes, aquelas idéias sobre a invencibilidade da política das famílias seguem diminuindo."
do Banco Central regular os períodos de expansão e de neutrali-
zar os períodos de retração econômica se chocam com a própria E então? Não perguntem para aqueles especialistas em
realidade da superfície econômica. Na segunda maior economia superficialidade, que ainda não aprenderam qual é a diferença
do mundo, por exemplo, que já vive os limites práticos dessas entre gasto de dinheiro e gasto de capitais. Repitam com a gente,
futilidades teóricas desde a segunda metade dos anos 90 do dizem aqueles ideólogos da "nova sociedade do conhecimento": o
século passado-", trigo nasce na padaria, o feijão no supermercado, o dinheiro no
Banco Central. ..

O importante era o seguinte: será que poderia acontecer na


primeira economia do mundo o que já estava acontecendo na
27. "Agindo para conter o aprofundamento da retração econômica do Japão, o segunda? Não era para se duvidar muito dessa possibilidade. No
banco central do país relaxou ainda mais o crédito ontem, impelindo a segunda
mesmo momento em que aquele ciclo de 2001 adentrava na zona
maior economia do mundo a um território desconhecido.
cinzenta da desaceleração e crise, o Departamento do Trabalho
O Banco do Japão já pôs tanto dinheiro na economia que as principais taxas de
juros de curto-prazo já caíram a quase zero. Ao jogar ainda mais dinheiro no americano publicou o índice da inflação (ou melhor, da deflação)
sistema, o Japão entrou no 'desconhecido mundo das taxas superzero', disse on- do mês de julho: (-) 0,3%. O maior recuo mensal em 15 anos,
tem o ministro da Fazenda Heizo Takenaka. observava a publicação.
Normalmente, bancos centrais tentam estimular a demanda numa economia ao
reduzir as taxas de juros - uma abordagem que teve que ser abandonada no Isso era motivo para preocupação? Para aqueles especialistas
deflacionário Japão porque as taxas já são as mais baixas possíveis." (The Wall da superficialidade, é claro que não. Ao contrário, para eles "é
Street Journal, 15/08/2001).

100 101
um ótimo indicio=P" Menos para o Sr. Greenspan, presidente do ponesa? Isso só poderia ser conferido alguns meses depois. Uma
Banco Central americano, que naquele mesmo momento estaria coisa, porém, era definitiva: nos EUA, nos anos seguintes, se
comandando mais uma rodada de corte na taxa básica de juro falaria cada vez menos a palavra inflação e cada vez mais a fatí-
da maior economia do planeta. Já estava muito próxima dos 3% dica palavra deflação.
ao ano. O "oráculo de Washington" - como o Sr. Greenspan era
chamado pela revista Business Week - talvez estivesse sentindo O jogo americano começa a mudar
um frio correndo pela espinha. Acontece que ele estava aplican- É hora de não ceder ao pessimismo. Essa era a mensagem da
do na maior economia do planeta aquela mesma receita anticíclica revista Business Week apenas um mês antes do 11 de setembro:
que os japoneses já vinham aplicando há um bom tempo. Sem
(~grande expansão chega ao fim. O que vem agora? O extraordinário
sucesso, como acabamos de verificar.
período de expansão da Nova Economia exalou um último suspiro e
A cada 0,25 pontos de redução na taxa de juros do Fed, ele chegou ao fim. As conseqüências foram terríveis: desaquecimento eco-
sentia o chão cada vez menos firme sob seus pés. As tão veneradas nômico de duração e intensidade inesperadas e queda nos investimen-
tos que ainda afeta seriamente os EUA e o resto do mundo. A nova
"expectativas do mercado" dos economistas não ficariam impassí-
realidade também inspirou infindáveis buscas interiores a respeito do
veis com uma taxa do Fed abaixo de 3% sem a ocorrência, ao significado da festa celestial que todos haviam testemunhado. A per-
mesmo tempo, de sinais muito concretos de retomada dos gastos gunta inevitável: E agora? Agora isto: a Nova Economia, que sustentou
com capital, recuperação dos lucros das empresas, aumento da a febre de crescimento da década passada, continua viva. É prematuro
produção e outras coisas importantes, mas que dificilmente acon- afirmar que a desaceleração está superada, mas as fundações de uma
teceriam até o último trimestre de 2001. intensa recuperação já foram lançadas. É hora, então, de revisitar ques-
tões do mundo macroeconôrnico e das rotinas empresariais - como se
À medida que a taxa de juros do Fed se aproximava dos 3% ao faz nas páginas desta edição - para compreender a ascensão e a queda
ano, o mundo de Greenspan também começava a se transmutar da economia e sondar o futuro próximo. Uma coisa é certa: o ânimo
naquele "desconhecido mundo das taxas superzero" em que o Ja- americano sai retemperado, porque não se afastou da fé na tecnologia e
na prosperidade." (Business Week, 15/08/2001)
pão já tinha mergulhado. Quer dizer que a economia americana
estaria desembocando na mesma situação atual da economia ja- Para o perfeito diagnóstico de que "o extraordinário período de
expansão da Nova Economia exalou um último suspiro e chegou ao
fim", a revista não apresentou em todo o restante da edição ne-
28. "Os preços que os consumidores pagam nos Estados Unidos tiveram, em julho, a
maior queda em 15 anos. Os números confirmam que os riscos inflacionários estão nhum argumento sério para justificar o seu exagerado otimismo
regredindo, deixando o caminho livre para que o Federal Reserve (Fed, o banco central com o futuro da economia americana. Apenas fé. E retórica, muita
americano) mantenha sua política de corte nas taxas de juro. 'Isso é um sinal muito retórica. Para tanto, convocou uma tropa de ideólogos de segunda
encorajador de que os consumidores serão capazes de ampliar seus rendimentos um
categoria (Michael Porter, da Harvard Business School; Alvin Toffler,
pouco mais, o que é um ótimo indício para a economia seguir adiante', disse o economis-
ta-chefe da AG Edwards & Sons, Gary Thayer."(O Estado de S. Paulo, 17/08/2001). um "futurista", como é apresentado pela revista; Lawrence Lindsey,
O Sr. Gary Thayer é mais um daqueles típicos economistas americanos educados
economista amigo de Bush, e por aí afora). Tudo para concluir com
na mesma escola de Paul Krugman e outras raridades do gênero. Por isso, eles uma oração beirando a demência de um tal de Zachary Karabell -
nunca serão capazes de distinguir os efeitos de uma diminuição dos preços em um apresentado como autor de uma raridade de livro com o sugestivo
período de expansão ou, ao contrário, em um período de desaceleração e crise da
título A Visionary Nation [A Nação Visionária]:
produção industrial. Dito de outra maneira, eles nunca poderiam distinguir a
diferença de uma diminuição dos preços motivada pelo aumento da produtividade "O caso de amor com as empresas pontocom foi apenas mais um capítulo
ou, ao contrário, por uma queda da taxa de lucro. Por quê? Porque eles não sabem da busca da fórm ula mágica para criar um mundo melhor. Essa obsessão-
o que é produtividade e muito menos o que é uma taxa de lucro. Eles não foram encontrar o elo entre a satisfação espiritual e afinanceira - é tão americana
educados para isso. Para eles, o trigo nasce na padaria, o feijão no supermercado, quanto a torta de maçã. Se a sedução da economia pontocom desaparecer,
o dinheiro no Banco Central...
nós iremos transferi-Ia para outra coisa." (Business Week,op. cit.)
102 103
Obsessão pela torta de maçã! Que beleza de identidade nacio- Na base daquela mudança de jogo, um dramático estreitamento
nal. Ninguém pode dizer que estávamos exagerando em nossa ava- das margens de ação dos capitalistas para enfrentar o mais pe-
liação sobre o nível mental dos analistas que a revista escolheu sado choque cíclico capitalista desde a grande crise de 1929.
para levantar o ânimo dos capitalistas americanos. Como verificamos anteriormente, o século XXI se iniciava sob o
signo de um ciclo econômico típico do século XIX. Só que, ago-
Alguma coisa pesada estava para acontecer. Mesmo as ideologi-
ra, muito mais agudo, dado o grau de globalização alcançado
as mais grosseiramente elaboradas exprimem sempre algum tipo
pelo capital nos últimos 100 anos, uma globalização particular-
de fadiga material, um certo estresse social. Por trás de toda essa
mente acelerada a partir do começo dos loucos anos 70 do sé-
repentina degradação editorial da mais influente revista de econo-
culo passado. O tamanho da superprodução de capital acumu-
mia e negócios dos EUA, por exemplo, transparecia uma coisa
lada neste período mais recente, como verificamos nos capítulos
muito importante, e também muito nova, naquela quadratura de
anteriores, é que explica os tremores de terra que agora se mani-
crise da economia de ponta do sistema: uma clara exaltação dos
festavam na superfície.
valores nacionais americanos. Falava-se muito pouco das virtudes
da globalização, como até pouco tempo atrás, e quase que só sobre Doravante, os desdobramentos da crise da economia global
as virtudes da economia americana enquanto tal, independente de seriam muito rápidos. O desenlace do ciclo periódico teria que se
qualquer vínculo com as demais economias dominantes (União decidir nos seis meses seguintes, aproximadamente. Estavam em
Européia e Japão). Isto se depreendia com uma certa facilidade aberto as possibilidades de uma crise parcial e localizada, como nos
daquela edição especial da Business Week. ciclos anteriores dos anos 90, ou de uma depressão global, uma
crise catastrófica nos EUA, no coração do sistema. Não se tratava
Por trás dessa grosseira ideologia econômica nacional america-
mais de uma previsão da crise, das suas causas e da data de
na, apresentada agora pela revista, confirmava-se uma guinada
eclosão. Isso já estava confirmado. Agora se tratava do acompanha-
geopolítica que já vinha se manifestando no decorrer do primeiro
mento dos cenários possíveis, da forma e da profundidade da crise.
semestre daquele ano: os EUA não estavam nem um pouco dispos-
tos a se afogarem abraçados com tradicionais aliados imperialistas Acontece que as condições de produção e superprodução que
(União Européia e Japão) nas ondas turbulentas da crise econômi- podem ser perfeitamente investigados e determinamos com ante-
ca global que esperava na próxima esquina. Ao contrário. Os ame- cedência não são suficientes, por si só, para se determinar a
ricanos se preparavam, muito antes da catástrofe, para se desven- forma (parcial ou global) e a profundidade da crise que se segui-
cilhar dos compromissos econômicos mais ou menos tácitos ou ria. Existem também aqueles fenômenos relacionados à realiza-
explícitos com seus principais aliados. Curto e grosso, como eles ção do capital, que devem ser criteriosamente acompanhados.
gostam: os americanos começavam a se preparar para uma retira- Eles podem alterar tanto a profundidade quanto a duração do
da de isolamento e nacionalismo. O jogo estava mudando. período de eclosão de uma crise que, repetimos, já tinha sido
gerada na produção e na superprodução do capital do período de
Isso evidentemente afetaria e modificaria de cabo a rabo o qua-
expansão anterior. Tratava-se então de verificar e avaliar os des-
dro de relações internacionais que eles mesmos sustentaram até o
dobramentos da crise já instalada.
final dos anos 1990. Alemanha e Japão, as duas outras maiores
potências econômicas atuais, seriam então as principais afetadas Tratava-se de estabelecer e acompanhar os fatores mais relevantes
pela nova diplomacia econômica americana. Supõe-se que os ale- que iriam determinar a forma e a profundidade da crise. Esses
mães e japoneses não precisaram esperar aquela edição especial fatores aparecem na superfície do sistema com a maior complexidade
da Business Week para saber dessas novas intenções americanas possível de idéias, decisões políticas, militares, geopolíticas e toda a
que, .repetimos, já vinha se concretizando com muita rapidez a sorte de elementos exógenos ao próprio processo de produção. São
partir da posse do novo governo Bush, no começo do ano. aqueles fatores externos e anticíclicos que tratamos anteriormente.
104 105
Tudo isso apareceria como erupções mais ou menos violentas A produção industrial americana caiu 1% em setembro, depois de
nesta superfície. É nesta superfície altamente movediça que deve- ter caído 0,7% em agosto. Estava caindo há 12 meses seguidos. Este
riam se manifestar os próximos acontecimentos relativos à crise. longo período de recuo representava o pior cenário de retração desde
a Segunda Guerra Mundial, em meados do século passado, quando
Um raio no céu azul aquela produção industrial caiu seguidamente entre novembro de
No meio da manhã de 11 de setembro de 2001, no mesmo 1944 e outubro de 1945. Agora, a queda começou em setembro
momento em que os aviões e as bombas explodiam o World Trade do ano 2000 e não parou mais. Desabou 6,7% naqueles últimos
Center em Nova York e o Pentágono - sede do comando militar da 12 meses. As indústrias de bens duráveis, núcleo das indústrias
mais importante organização terrorista global - em Washington, como um todo, caiu 8% no mesmo período. É para nenhum
outros prédios do centro de poder daquela organização terrorista catastrofista botar defeito. Esses dados foram publicados pelo Fed
começaram a ser rapidamente evacuados. Dentre eles o Capitólio, em 16 de outubro, no seu relatório mensal Industrial Productionê",
sede do Congresso daquela organização terrorista global. Em meio
O relatório indicou também que a capacidade instalada estava
ao pânico, descendo rapidamente as suas longas escadarias que
batendo recordes de ociosidade. Este índice é importante porque
dão para a rua, o senador democrata Robert Byrd mantinha a
antecipa os níveis de emprego da economia como um todo. Em
lucidez: "Não deveríamos estar demasiadamente surpresos. Vive-
setembro de 2001, utilizava-se apenas 73,8% da capacidade
mos em tempos muito, muito estressantes e estamos abertos ao
total da indústria. A ociosidade já estava bem maior que nas
ataque" (Agência Estado, 11/09/01).
pesadas crises de 1980/1982 e 1990/199l.
De que "tempos estressantes" estaria falando o senador? Quem
Nos últimos 40 anos (1960/2000), o índice médio de utiliza-
responder mais ou menos corretamente a esta pergunta é porque
ção das indústrias de bens duráveis foi de 79,6%. Entre 1994/
está preparado para encarar algumas outras coisas muito impor-
95, auge da utilização nos anos 90, chegou ao elevado índice de
tantes. Primeiro, não ficar demasiadamente surpreso, como reco-
83,6%. Nos últimos três meses de 2000, este índice já apontava
menda sabiamente o senador, com acontecimentos inesperados para
80,7%. Agora, em setembro de 2001, tinha deslizado para 71,8%.
a maioria das pessoas. Para essa maioria que ainda não entendeu
Nada indicava que este deslizamento estivesse perdendo força. Mas
muito bem o que quer dizer crise econômica, os acontecimentos
precisaria ser barrado de qualquer maneira nos próximos meses,
daquela célebre semana de setembro ofereceram uma amostra grá-
pois naquele ritmo de setembro podia-se antever para apenas um
tis (e muito didática) dos estragos que uma crise catastrófica -
ano depois (outubro de 2002) uma taxa de desemprego entre 15 e
quer dizer, uma depressão econômica global - poderia provocar na
20% da força de trabalho na economia americana! Uma taxa pró-
superfície do sistema. Ainda era apenas uma amostra grátis.
xima da verificada na grande crise de 1929.
Segundo, também saberá que aqueles acontecimentos inespera-
dos foram determinados por um prévio processo material e que os
desdobramentos deste estressante processo continuará determinan- 29. Não é por acaso que o Fed se encarrega de elaborar este relatório que, curiosa-
mente, não trata de moeda, crédito, reservas bancárias, taxas de juro e outras atri-
do outros acontecimentos inesperados, talvez ainda mais importan-
buições mais específicas de um banco central. Acontece que o Fed não é um banco
tes (e muito mais pesados, com certeza) do que os que acabavam central qualquer, é o responsável pela administração da moeda da economia regula-
de irromper na superfície e exatamente no centro do sistema em dora do sistema global. Por isso ele tem que considerar seriamente as condições de
11 de setembro de 2001.Tudo é superfície. Tudo é real. Nos perío- produção e reprodução de valor daquela economia, forçado por uma necessidade
teórica que não é entendida pela maioria dos economistas: a quantidade de valor
dos de crise, os fenômenos econômicos se confundem cada vez
agregado na esfera produtiva de qualquer economia capitalista é a condição básica
mais com os fenômenos políticos e geopolíticos. Catastroficamente. para a produção e reprodução da sua massa monetária. Este é um princípio da
A economia mostra com maior clareza tanto sua forma quanto seu economia política dos trabalhadores. As condições concretas de crise econômica
conteúdo. Mostra-se mais do que nunca como economia política. oferecem abundantes elementos para que este princípio seja verificado melhor.

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Da mesma forma, se aquela progressão da queda da produção Aparentemente, Greenspan caíra finalmente na "armadilha da
industrial não fosse interrompida nos meses seguintes, também se liquidez", Sabemos que isso não é coisa simples de se resolver. E o
poderia antecipar a queda do Produto Interno Bruto (PIE) daquela mais importante: uma situação de "armadilha da liquidez" na eco-
economia no ano seguinte. Além da produção industrial, o PIE nomia reguladora do sistema teria efeitos muito diferentes de uma
contabiliza os setores improdutivos da economia. Assim, mantida situação similar que já se arrastava há um bom tempo na segunda
a progressão de queda do setor produtivo de capital, os setores economia do mundo. Seus efeitos depressivos contaminariam ime-
improdutivos da economia seriam atingidos com violência. O re- diatamente a totalidade do mercado mundial. Pois era justamente
sultado seria uma destruição de capital sem precedentes históri- isso que parecia estar ocorrendo em Wall Street, onde se centraliza
cos. Começando pelo sistema financeiro privado. e se decide o destino do sistema financeiro mundial:

Talvez por isso os responsáveis pelo Crédit Suisse First Boston, "Wall Street jamais será a mesma. Com o tempo) os destroços do distrito
um importante banco global, andaram prevendo naquele mês de financeiro de Nova York darão lugar a outras formas. (...) Os excessos
dos anos dourados) estimulados pela obsessão global em relação ao mer-
outubro de 2001 que o PIE mundial poderia cair mais de 8% em cado de ações) terão se tomado coisa do passado. (.. .) Mesmo antes dos
2002. Exagero? Provavelmente sim, provavelmente não. É bom atentados) o sistema financeiro passava por dificuldades. Os bancos ba-
lembrar que se tratava da previsão de banqueiros globais, que lançavam sob uma pilha de empréstimos ruins que dobrou de tamanho
normalmente não têm nenhuma vocação e muito menos interesse em 12 meses) atingindo US$192 bilhões. Estrelas dos fundos de hedge,
pelo catastrofismo econômico, embora nunca tenham nada contra como George Soros e Ju lia ri H. Roberlson [r., haviam se auto-destruido.
Investidores de fundos mútuos tinham perdido o apetite por ações.
um determinado catastrofismo político.
Corretoras on-line claudicavam com a queda abissal do volume de opera-
Na verdade, já há alguns meses que estes Senhores do Universo ções e as tradicionais forcejavam por extrair lucros das comissões bara-
tíssimas que tinham de oferecer para se manter no mercado.' (Business
estavam se preparando para uma explosão iminente do mercado
Week, segunda semana de outubro de 2001)
financeiro global. Politicamente, em primeiro lugar, como veremos
adiante. A gravidade da situação financeira dos EUA vinha sendo Poderia haver uma situação econômica mais estressante para
bem camuflada pela política monetária do Fed dos últimos 12 os Senhores do Universo do que aquela? Considerando apenas
meses. Mas a assombrosa expansão da liquidez promovida pelo suas últimas movimentações políticas, é como se tivéssemos vol-
Banco Central americano, tudo para socorrer um baleado sistema tado de repente para outubro de 1929. A minuta de testamento
financeiro privado, acabava de bater no fundo do poço. Nos últi- de Wall Street descrita na matéria acima correspondia, de uma
mos dias de outubro, a taxa básica real de juro dos EUA já estava certa forma, também a um cenário de depressão global. A mesma
girando em torno de zero. E a produção de valor, como mostrado atmosfera fúnebre nas avaliações sobre a situação econômica cer-
naquele mesmo relatório do Fed, continuava em queda livre. cava as autoridades dos diversos governos e de grandes institui-
ções financeiras globais, como vimos no caso do Crédit Suisse
Nos 12 meses anteriores, o apodrecimento do sistema de crédito
First Boston etc.
privado americano estava sendo controlado pela mais audaciosa
política monetária que se tem notícia na história econômica recente Entretanto, a depressão global era ainda apenas um cenário
daquele país. Agora a munição do Fed tinha perdido seu poder de possível, mas não realizado. Nem deveria ser tomado como o
fogo, frente a uma produção industrial que não respondeu no tempo mais provável. Pelo menos até aquele momento. A definição da-
necessário para uma retomada da economia. E isso é muito perigoso. quele período de crise, como vimos anteriormente, dependeria da
Afinal, onde se definem basicamente as possibilidades de reprodução evolução dos fatos na virada de ano e primeiro semestre do próxi-
da massa monetária? Relembrando: sem expansão da produção de mo. De fatos econômicos e políticos. De fatos internos ao desen-
valor, as formas do valor não podem se reproduzir por muito tem- volvimento do ciclo econômico, de um lado, e de fatos externos e
po. Principalmente a mais desenvolvida delas, a forma moeda. anticíclicos, de outro.
108 109
Venha para o mundo da civilização rá durar anos e levar ao deslocamento de tropas americanas para os mais
diversos pontos do mundo. Acrescentem-se os bilhões de dólares que serão
Muita coisa já estava acontecendo. A reação do governo dos
gastos com novas tecnologias destinadas a defender um público amedron-
EUA à possibilidade de colapso econômico foi imediata. Uma rea- tado do antraz e de outros horrores terroristas. Todos esses custos atingi-
ção com poucos paralelos históricos. Começando pela intensifica- rão uma soma elevadíssima. Em outras palavras, guerras custam dinhei-
ção de suas ações terroristas sobre seu próprio país, com os espe- ro. E a história nos ensina que as guerras tendem a ser inflacionárias e
taculares acontecimentos de 11 de setembro, e posteriores desdo- não deflacionárias. (... ) A longo prazo (com pedidos de desculpas a Keynes),
um mundo mais seguro custará dinheiro: para cobrir o custo de sensores
bramentos imperialistas sobre o resto do mundo.
capazes de detectar a presença de antraz e outros venenos; de remédios
Uma visão superficial e unânime tenta responsabilizar os aconte- para vacinar pessoas contra essas doenças; de dispositivos de segurança
capazes de detectar redes terroristas e ajudar a frustrar seus planos. E,
cimentos políticos irrompidos em 11 de setembro como a causa da
sim, para cobrir o custo de reconstrução nacional em países como o
crise econômica de 2001. Mas o que se passava era exatamente o Afeganistâo. Algumas dessas despesas terão um efeito multiplicador so-
contrário. Aquelas ações políticas dos principais Estados capitalistas bre a economia global como um todo. Afirma-se, com freqüência, que a :Ja
já faziam parte de um período de luta contra a tendência ao desa- Guerra Mundial pôs fim à grande depressão da década de 30. A única
bamento da economia mundial. Aquelas ações terroristas de 11 de boa ação de Osama Bin Laden poderia consistir no fato de ter colocado em
ação as forças que porão fim ao grande colapso econômico de 2001."
setembro foram justamente uma das primeiras medidas políticas
dos capitalistas e outras organizações militar-nacionalistas radicais Venha para o mundo da civilização. Não é a toda hora que encon-
dos EUA para evitar que acontecesse o desabamento econômico. tramos uma descrição tão objetiva do mundo do capital como esta do
A Nova Economia está morrendo? Viva então a Nova Guerra. A Sr. Ignatius. Em poucas linhas, esse vírus obscurus consegue descre-
resposta dos terroristas de Washington para um iminente colapso ver, embevecido e orgulhoso com suas descobertas de homem prático,
econômico foi muito simples: guerra. A guerra sempre foi o mais as maravilhas da paixão de Thomas Malthus e seu epígono Keynes
poderoso antídoto dos capitalistas para seus problemas econômi- pelo consumo do Estado, que economistas mais sérios como Smith e
cos. Só a guerra pode abafar a crise do capital. Essa "mãe de todas Ricardo tratavam corretamente como consumo improdutivo ou, melhor
as contradições", que verificamos anteriormente (capítulo 2 deste ainda, como o lado mais podre e catastrófico do regime capitalista.
livro), acabava de ser mais uma vez demonstrada, com muita pre- As descobertas do Sr. Ignatius poderiam ser mais completas.
cisão, em um artigo de um certo Sr. David Ignatius, (22/10/01). Bastaria escrever diferentemente a última frase do seu artigo. Ima-
Vale a pena uma leitura mais prolongada desse artigo: ginemos que ela ficasse assim:
((Ofamoso comentário feito por john Maunard Keynes, de que os econo- (~ única boa ação do governo Busb e de grupos nacional-militaristas
mistas deveriam deixar de se preocupar tanto com o que acontecerá a internos poderia consistir no fato de ter colocado em ação as forças que
longo prazo, porque "a longo prazo estaremos todos mortos", não parece porão fim ao grande colapso econômico de 2001."
tão engraçado nos dias atuais. Mas, quando pensamos nos efeitos econô-
micos do episódio de 11 de setembro, é importante distinguir entre os Assim, confrontada com os fatos reais do problema, a solução
efeitos de curto prazo - que foram devastadores - e as conseqüências a militar para a crise toma rumos bem diferentes daqueles imagina-
prazo mais longo, que podem ser bem diferentes. (...) Muitos comentaristas dos pelo nosso orgulhoso keynesiano.
expressaram o receio de que o episódio de 11 de setembro lance a instável
economia global na recessão. Isso poderá ser verdade, a curto prazo. Mas Só as pessoas altamente desinformadas - e este parece ser, nes-
não creio que essa psicologia .deflacionária perdure - pela simples razão te momento, o caso de 99% da população mundial - acreditam
de que não há meio de os Estados Unidos e seus aliados saírem dessa
que todos aqueles episódios de 11 de setembro e outros posterio-
confusão sem gastar muito dinheiro. A começar pelo pacote de estímulo da
administração Bush, de reduções de impostos e novos gastos, que injetará res sejam obra de um grupo de fanáticos islâmicos que costumam
até US$130 bilhões de dólares na economia no próximo ano. Acrescente- se esconder nas cavernas do Afeganistão, bater nas mulheres, co-
se a isso o custo da própria guerra, que, segundo o presidente Bush, pode- mer de boca aberta etc.
110 111
Mas essa desinformação deve mudar, à medida que a latente quer dizer, a eclosão de uma guerra civil. Do mesmo modo que essas
guerra civil nos EUA assumir contornos mais definidos. Essa possi- classes evitarem também a própria revelação pública daquele "in-
bilidade de uma nova guerra civil americana é o principal motivo de cêndio do Reichtag americano" encenado em Nova York e Washington
todos esses atentados terroristas recentes naquele país. Incluindo em 11 de setembro, o que já seria por si só um forte motivo político
aquele de Atlanta, imputado também de maneira errada apenas pa- para desencadear essa nova guerra civil americana.
ra um indivíduo, Timothy McVeigh - um nacionalista radical, herói
Mas a manutenção da segurança nacional dos EUA não depen-
na Guerra do Golfo, várias medalhas etc. -, executado pela justiça
de só de ações políticas. A segurança nacional em geral depende,
americana apenas um mês antes dos atentados de 11 de setembro.
antes de tudo, da segurança econômica. Depende, portanto, da
Recomenda-se, dentre outras, a leitura dos diversos artigos escritos capacidade do neomacarthismo globalizado instalado em Washing-
por Gore Vidal - um brilhante escritor americano, coisa raríssima - ton evitar que os períodos de crise, que vão certamente se repetir
acerca do caso McVeigh e atentados recentes, para se entender me- ciclicamente e de maneira cada vez mais pesada, desemboquem
lhor o estresse atual da sociedade americana e os motivos que inúmeros em um colapso econômico dos EUA e, por extensão, mundial.
e poderosos grupos sociais mais ou menos fundamentalistas, naciona-
A questão mais importante nos primeiros anos do século XXI era
listas etc., daquele país têm para atacar militarmente suas institui-
a possibilidade de acontecer ou não um tipo de colapso econômico
ções e outros símbolos muito fortes do seu próprio Estado nacional.
mundial como aquele de 1929/1945. E o que se verificava con-
Uma iminente guerra civil é um verdadeiro tabu naquele país, cuja cretamente era que as considerações ligadas à guerra e à segurança
particularíssima estrutura democrática de governo caracteriza-se pelo nacional americana se materializam em ações do Estado que procu-
macarthismo político, uma máquina bem lubrificada de repressão ideoló- ram se contrapor às fortes tendências endógenas do ciclo que leva-
gica, censura política e controle social, inaugurada no início dos anos riam àquele colapso econômico. O rumo da economia dependia
50 e permanentemente aperfeiçoada nas décadas seguintes. Perto desta mais do que nunca daquelas ações terroristas comandadas pelo
atualizada estrutura política - que desde 11 de setembro assumiu a governo americano no seu próprio território, em primeiro lugar, e,
nova forma de neomacarthismo globalizado -, os primo-irmãos New em seguida, em todos os cantos do mundo.
Deal americano e o nazismo alemão, ambos experimentados nos anos
30 e 40 do século passado, não passariam de formas ingênuas e O lendário Paul A. Samuelson, prêmio Nobel de Economia - de
infantis de organização terrorista de Estado. É totalmente falsa, portanto, uma época em que este prêmio ainda era concedido para pessoas
a idéia de que uma crise econômica global poderia implantar regimes razoavelmente alfabetizadas -, era enfático em um artigo com o
fascistas e nazistas pelo mundo. Esse anacronismo representaria para título Um novo tipo de economia de guerra. Não acreditava que a
os capitalistas das economias dominantes um inaceitável enfraquecimen- crise atual repetiria o colapso da década de 30 do século passado'".
to da capacidade de organização e repressão do seu Estado atualê".
De todo modo, as coisas ficam cada vez mais difíceis de serem 31. "Guerras à moda antiga, como as duas guerras mundiais e a Guerra Fria entre
camufladas. Até quando a mídia americana e mundial será capaz de a URSS e o Ocidente, estimularam gastos e criaram vigorosas oportunidades de
trabalho. Desta vez, será diferente. Agora serão necessárias ações governamentais e
continuar com toda essa encenação de Bin Laden, AI Qaedas, guerras
estímulos de bancos centrais para evitar a gigantesca depressão que um sistema
entre civilizações e outras bobagens? Enquanto as classes dominan- capitalista puro tenderia a sofrer, como aconteceu de 1929 a 1935. (... ) Como um
tes americanas evitarem um confronto mais aberto dentro dos EUA, dos poucos economistas vivos que conheceu bem a Grande Depressão entre as duas
guerras mundiais, apresso-me em afirmar que seria necessário um paranóico para
acreditar que nos Estados Unidos e na Europa haverá repetição do colapso verifica-
30. Para melhor compreensão do macarthismo original e dos desdobramentos recentes do na década de 1930, quando milhares de bancos e milhões de empresas faliram.
desta aperfeiçoada democracia corporativista americana, recomenda-se também a Os esforços do bombardeio no Afeganistão e, possivelmente, em outras regiões,
leitura do recente livro Casei-me com um comunista, de Phillip Roth, outro brilhante absorverá contingentes humanos e seus gastos darão alguma contribuição ao PIB".
escritor americano - mais uma raridade, agora o estoque está quase acabando. (Samuelson, Valor, 22/10/2001)

112. 113
A sua convicta opmlao sobre a impossibilidade de um proxlmo totalmente apodrecido, muito mais do que o japonês. Os dados
colapso econômico era desproporcionalmente maior do que as suas ainda eram muito precários, mas já havia fortes indícios de que o
justificativas. Havia, é claro, uma aposta bem fundamentada nos Tesouro americano já entrara em uma faixa de forte aceleração do
benefícios da guerra para a economia. E pelo menos ele estava sinali- déficit fiscal. Isso se confirmaria depois, como veremos à frente.
zando que já houvera, na macroeconomia dos terroristas, um certo A natureza da crise, quer dizer, a explosão ou não de um colap-
avanço nas avaliações sobre a crise atual: deixaram de lado o otimismo so econômico nos 12 meses seguintes, repetimos, dependia em
ingênuo quanto às possibilidades de uma política monetária isolada grande medida desse poder de fogo dos recursos fiscais america-
reerguer a economia. E receitavam claramente os gastos com guerras. nos para evitar o desabamento da economia mundial. Se ele fosse
Em plena lua de mel com a armadilha da liquidez, agora esses extremamente vigoroso, suficiente para se contrapor às tendências
economistas abraçavam, com o mesmo voluntarismo monetarista do ciclo, o mais provável era que ocorresse apenas uma recessão.
anterior, a última tábua de salvação: a política fiscal, os déficits Pesada, mas passageira. Os macroeconomistas do terrorismo, em
orçamentários, os gastos públicos como impulsionadores da de- geral, rezavam de joelhos para que isso fosse verdade.
manda e do produto. Como já verificamos na primeira parte deste Caso contrário, e não se podia descartar esta possibilidade apenas
livro, aqui não se trata de uma demanda qualquer, mas do consu- com palavras, estariam escancaradas as portas para uma depressão
mo estatal de mercadorias muito especiais daquela seção da produ- global e suas inevitáveis conseqüências políticas e sociais que, de
ção social que Rosa Luxemburgo denominara "Seção de produção resto, já começavam a se manifestar por todos os poros do sistema.
de meios de destruição". Era exatamente isso que a macroeconomia
De todo modo, uma importante lição histórica estava se repetindo
dos terroristas estava propugnando no início do século XXI: para
e de certa forma inaugurando solenemente o novo milênio: quando
salvar a moeda, façamos a guerra!
ficam mais fortes e ameaçadores os ventos de mais um terremoto
Essa aposta não era nem um pouco tranqüilizadora. Ninguém econômico, os capitalistas apresentam apenas uma alternativa: ca-
sabia qual o verdadeiro poder de fogo dos recursos fiscais do governo var enormes buracos para enterrar suas multidões de vítimas soci-
americano, pois não se podia quantificar o buraco a ser preenchido. ais. Tudo isso transparecia de forma cifrada e cínica naquele debate
O grande perigo é que essa desesperada intervenção na economia econômico cercando o último período de crise. Mas ainda poderia
pudesse levar a um imediato e rápido crescimento da dívida públi- haver grandes surpresas, pois nada garantia que eles evitariam a
ca, abrindo as portas para uma crise do crédito público. Pois era derrocada da sua economia e, como observava a sempre inteligente
justamente aquele crédito público relativamente sólido, baseado revista inglesa The Economist, em sua edição da última semana de
em um enorme superávit fiscal, que vinha sendo velozmente corro- outubro de 2001, os buracos que eles estavam abrindo poderiam
ído pela desaceleração econômica dos últimos 12 meses e, para muito bem ser transformados em suas próprias sepulturas ".
aumentar o ritmo da corrosão, pelo improvisado mas poderoso
programa de gastos fiscais implementado a partir da posse de Bush. Balança, mas não cai
Engels observava no final do século XIX que a explosão de
Essa era a grande preocupação de economistas mais prepara-
uma grande crise econômica geralmente não ocorre quando todo
dos como Greenspan, Rubin e Summers. Eles sabiam bem que foi
aquele superávit fiscal dos últimos três ou quatro anos (e um sóli-
do crédito público correspondente) que permitiu, nos meses críti- 32. "Para acabar com a Grande Depressão, Keynes propôs que os governos pagas-
cos anteriores, a política do Fed de rápida diminuição das taxas de sem pessoas para cavar buracos e depois tarnpá-los. Os Estados Unidos têm que
evitar chegar a tal ponto. Mas o buraco que seus formuladores de políticas públicas
juros sem se assistir uma simultânea desvalorização da moeda
estão propondo cavar pode transformar-se, econômica e politicamente, em sua pró-
nacional, o dólar. Conseguiu-se assim a proeza de abafar, tempora- pria sepultura." (The Economist, outubro/2001)
riamente, a explosão de um sistema de crédito privado nacional Que Shakespeare seja louvado!

114 115
mundo está esperando, mas quando quase ninguém cogita que As demissões logo começaram:
ela ainda possa acontecer. Acompanhar a evolução concreta e (~Enron Corpoinstruiu 7.500 funcionários do seu escritório-sede, em
imediata dos ciclos econômicos é conviver pacientemente com esse Houston, no Estado do Texas, a voltarem para casa. Desses, 4 mil foram
"paradoxo de Engels". demitidos. Osfuncionários foram orientados a levarem todos seus objetos
pessoais e informados de que eles seriam contatados pela empresa se
A situação econômica mundial do último trimestre do glorioso houvesse necessidade de voltarem ao trabalho na terça-feira. (O Estado
JJ

ano de 2001, por exemplo, adaptava-se perfeitamente àquela de S.Paulo, 04/12/01)


criteriosa observação: de um lado, um acelerado agravamento das
Além do emprego, os trabalhadores perderam também suas aposen-
condições reais da economia americana e mundial, mais que sufi-
tadorias, pois o seu fundo de pensão privado, que cuidava da admi-
ciente para uma grande explosão; de outro, uma resistente sobrevida
nistração das suas contribuições, investia tudo nas ações da empre-
do sistema monetário, financeiro e de capitais em todo o mundo -
sa. Há um ano, cada uma dessas ações valia US$ 160; na última
bancos, divisas e bolsas de valores funcionando como se nada
semana valia US$ 0,30. Junto com as ações da empresa, o futuro
estivesse acontecendo ou para acontecer. No meio dos termos da
dos seus trabalhadores também virou pó. Se casos assim se generali-
equação, as novas condições geopolíticas, militares e imperialistas
zassem na economia de ponta do sistema imperialista, a temperatura
decidindo o tamanho da explosão.
social ficaria insuportável. O estresse da sociedade americana seria
No final do primeiro ano do século XXI, a indústria america- muito grande para ser abafado apenas com o novo espetáculo ma-
na passava por sua pior crise desde a Grande Depressão, nos carthista recentemente montado. A «legislação antiterrorista", inaugu-
anos 30. Estava caindo há 14 meses seguidos. No mês de rada por Clinton em 1995 e agora aprofundada por Bush, teria que
outubro, sofreu a sua mais profunda queda mensal. Parecia que passar por novos "aperfeiçoamentos". Mais para uso interno. Por
o buraco não tinha fundo. E começava a apresentar suas pri- isso, além desse aprofundamento do terrorismo de Estado, os capita-
meiras vítimas de peso. A falência da Enron Corp., informada à listas americanos tinham que agir com firmeza para que aquela fase
justiça no dia 2 de dezembro, foi considerada a maior da histó- de crise econômica não se tomasse uma depressão e que o capital
ria daquele país. voltasse a acumular logo no primeiro semestre de 2002.
Uma empresa gigante. O conglomerado, com sede em Houston, Uma sólida e invencível "corporaçâo-modelo do século XXI" está
no Texas, era a sétima colocada na lista das 500 maiores empre- estendida no chão. Além do rastro sangrento de desemprego nos EUA,
sas da revista Fortune, valia cerca de US$50 bilhões. Vendia tudo: Inglaterra e pelo mundo afora, a Enron deixou uma dívida de mais de
eletricidade, gás natural e até água. Até poucos meses antes da US$ 30 bilhões. Isso de acordo com os primeiros levantamentos. De
falência, era considerada uma empresa muito rentável, louvada todo modo, já era uma dívida maior que as dívidas externas de muitas
pelos teóricos do mundo dos negócios como a "corporaçâo-modelo economias dominadas, como Colômbia, Equador, Peru etc. Mas aqui
do século XXI". Seu presidente, Keneth Lay, amigo pessoal de George não é o FMI que cuida do caso. É coisa interna à economia de ponta
Bush, era considerado um "inovador", uma história de grande su- do sistema, que parece ter centenas de "argentinas" prontas para
cesso. Um típico "empresário shumpteriano", essa máxima comenda decretar moratória se estourar uma depressão. E esse estouro, embora
concedida aos capitalistas mais espertos. não fosse o cenário mais provável naquele ciclo que estava se encer-
rando, ainda não podia ser descartado.
A Enron tinha negócios em todos os cantos do mundo. E partici-
pava gulosamente de privatizações de empresas públicas nas eco- Até que a economia mostrasse sinais reais de recuperação
nomias dominadas. No Brasil, era a proprietária, dentre outras, da e, o mais importante, os preços agregados da economia paras-
distribuidora de energia Elektro, que abastece grande número de sem de cair -, Greenspan levava sua taxa nominal de juros para
cidades no estado de São Paulo, da Companhia Estadual de Gás mais perto de zero. E, não menos importante, por outros diver-
(CEG) no Rio de Janeiro etc. sos métodos, não relaxava a pressão do bombeamento de liquidez

116 117
para o sistema (moedas, depósitos e meios de pagamento). Esta era a primeira razão, estritamente econômica, que permitia
Quando o Fed aumenta aceleradamente a liquidez do sistema - acreditar que o cenário mais provável para o desenlace da crise
com ou sem rebaixamento real da taxa de juros de curto prazo, e é seria o de uma recessão global e não de uma depressão global. Em
desta taxa que se trata quando o Banco Central executa uma políti- outras palavras, a força dos recursos fiscais com que os EUA pu-
ca monetária ativa -, pode ocorrer a realização momentânea de deram contar para enfrentar a desaceleração industrial é o que
uma gigantesca massa de mercadorias. Mas isso pode ocorrer sem explica em grande parte a inabalável força da sua moeda, o dólar,
que se realize nem uma minúscula grama do capital superproduzido. frente às demais moedas fortes da União Européia e Japão. Uma
Os economistas, em geral, não entendem essas diferenças. Não abrupta desvalorização do dólar - resultado de uma crise de confi-
entendem, portanto, o verdadeiro problema da demanda nas crises ança na economia americana, quer dizer, de uma grande crise fi-
modernas de superprodução. nanceira - é uma condição necessária para o desencadeamento de
uma depressão global.
Não entendem, mas são obrigados a se defrontar com o problema
quando ele aparece. Por exemplo, quando se procura aumentar as Assim, mesmo com a profunda desaceleração industrial na econo-
vendas e reduzir os estoques de mercadorias através de facilidades mia de ponta do sistema, com a furiosa redução das taxas nominais
no financiamento ao consumidor individual. O comentarista George do seu Banco Central, e o descomunal déficit das suas transações
Will destaca esse problema, ao analisar as vendas recordes de auto- correntes com o resto do mundo, a sua moeda continuou se valori-
móveis nos EUA: zando frente ao euro e ao iene. "O dólar ainda é a moeda do mundo" ,
festejava Greenspan, não tanto como um rompante triunfal-patrióti-
'~s montadoras venderam automóveis com financiamento sem juros e
co, o que seria perfeitamente normal nestes tempos de «combate ao
mais veículosforam vendidos em outubro do que em qualquer mês. Como
isso pode ser notícia ruim? Eis como: essefinanciamento representa uma terrorismo", mas como alguém realmente surpreso com a resistência
queda de 4,7% nos preços. Assim as margens de lucro estão minúsculas. da sua moeda nacional depois de todas as arriscadas manobras do
Além disso, o que os analistas chamam de 'prosperidade sem lucro' está Fed com a taxa de juros nos últimos 12 meses.
prejudicando novas vendas, que provavelmente vão desabar quando vol-
tar ofinanciamento normal. (TheWashingtonPost, 03/12/01)
JJ
Entretanto, a força da moeda americana não poderia se garan-
tir apenas pela força do seu superávit fiscal. Mesmo porque esse
Queda nos preços e taxas de lucro minúsculas. É assim que se superávit já desaparecera no decorrer dos 12 meses anteriores, à
caracteriza uma "prosperidade sem lucro", uma expressão perfeita medida que a nova administração Bush dilapidava recursos com
para se definir o que é uma verdadeira crise de demanda na eco- a isenção e redução de impostos de um lado e, de outro, aumen-
nomia capitalista moderna, uma ameaça que pode jogar a econo- tava as despesas com incentivos a empresas em dificuldade e
mia global em um precipício financeiro. principalmente com as novas despesas de guerra. É claro que os
Uma crise financeira, a economia política dos trabalhadores economistas e os deputados de Bush acabariam criando o enor-
ensina, só pode acontecer depois de uma grave crise do crédito me déficit fiscal que já se avoluma aceleradamente. Mas isso
público. A economia americana entrou naquela recente fase de exigiria um certo tempo, alguns anos. O que explica a rapidez do
crise com um grande trunfo: um significativo superávit fiscal e, esfacelamento do superávit fiscal americano, em menos de 12
conseqüentemente, uma pressão reduzida sobre a sua dívida pú- meses, é a profunda retração, no mesmo período, do nível de
blica, o que não ocorria com a União Européia e Japão. Isso garantiu atividades da economia real.
que a confiança sobre o crédito público e os títulos do Tesouro
americano não fosse atingida pela desabalada política monetária A prosperidade da guerra
do Fed, mantendo-se as taxas de juros de longo prazo da economia O tempo foi passando. Já no final do terceiro trimestre de 2001,
relativamente baixas e inalteradas. os arsenais especificamente econômicos de combate à depressão
118 119
econômica estavam praticamente inoperantes nos EUA. Sobraram A América do Sul foi o primeiro alvo e cobaia para a nova
os arsenais da guerra propriamente dita para se contrapor a uma ofensiva comercial americana. Muita gente agora sente até sauda-
possível depressão econômica. Parece que foi essa situação de esgo- des do neoliberalismo da era Clinton. O protecionismo comercial
tamento da política econômica americana que levou o economista crescente dos EUA; a entrada oficial da China na OMC; a destrui-
Robert Rubin, ex-secretário do Tesouro de Clinton, e que geralmen- ção do Mercosul e a proliferação de novos acordos bilaterais de
te sabe o que está dizendo, a afirmar que: comércio com os EUA em todo o mundo; as pressões imperialistas
"visto de um modo geral, o que acontecer internamente e internacional- ainda maiores sobre os países produtores de matérias-primas; o
mente no combate ao terrorismo terá maior impacto na nossa economia enfraquecimento do poder de fixação de preços dos países produ-
do que qualquer coisa que façamos agora na área econômica. (O Esta-
JJ tores de petróleo com o aumento do terrorismo americano no Ori-
do de S. Paulo, 03/10/2001) ente Médio, Ásia Central, América do Sul etc., são novos elemen-
tos que criam um novo esquema na repartição dos mercados inter-
No desenlace da guerra na Ásia Central longínqua e pobre, a
nacionais, com uma pressão insuportável para o Japão e União
solução para a estratégica questão da credibilidade na moeda ame-
Européia, que dificilmente experimentarão fortes recuperações eco-
ricana. No início do século XXI, a ação terrorista e de guerra dos
nômicas na seqüência de um novo ciclo de expansão nos EUA.
EUA tornou-se o fator mais importante para a manutenção da
"politica do dólar forte". Mas não apenas isso. As ações militares Por trás desta nova rodada de abertura de mercados, e além
dos EUA, que de início se generalizam na área asiática, tornou-se dos seus efeitos econômicos, revelaram-se desde o início outras
também a alavanca mais importante para a superação das sucessi- coisas muito importantes. A inequívoca confirmação da suprema-
vas crises periódicas da economia mundial. cia geopolítica americana, por exemplo, depois das suas mano-
Essas ações militares dos EUA - e das próximas que se anunci- bras de terrorismo internacional e as fulminantes vitórias milita-
am para o Oriente Médio, África, América Latina e demais áreas res no Afeganistão e Iraque. Simultaneamente ao sucesso destas
dominadas - já começavam, no final de 2001, a dar resultados manobras, a diplomacia americana mexeu fundamentalmente no
para a superação da crise. O preço internacional do barril de pe- tabuleiro geopolítico de alianças em todo o mundo. De um lado,
tróleo já estava abaixo de 20 dólares e os das matérias-primas, em cercando a Europa continental (leia-se Alemanha) com o
geral, também estavam no fundo do poço. Isso reduzia significati- restabelecimento da histórica aliança com a Rússia. Do outro
vamente os custos de produção do capital constante da indústria, lado do mundo, cercando ainda mais o Japão com um claro refor-
possibilitando uma correspondente elevação da taxa de lucro na ço das relações e comprometimento com a China, outra antiga
economia americana. aliada estratégica dos EUA na Ásia.

Outro efeito econômico importante da guerra foi a facilidade Ficam assim abafadas - apenas temporariamente e com um poten-
muito maior de ampliação das bases territoriais de realização da cial de explosão bem mais elevado para os próximos anos - as inevitá-
produção capitalista global, através de uma abertura muito maior veis ambições de um rearmamento da Alemanha e Japão. Deste último
dos mercados nas áreas dominadas de todo o mundo. Entre outras principalmente, que tem mais urgência em resolver seus problemas
coisas, o governo Bush acabou recebendo com facilidade a aprova- econômicos. Como resultado desse reforço momentâneo da sua supre-
ção pelo Congresso dos EUA do famigerado fast track (via rápida), macia nas relações internacionais, os EUA mantêm sua liderança na
que lhe dá poderes para fechar· acordos comerciais em geral (inclu- produção e comércio de armamentos de ponta, mais caros e mais
sive na OMC) que não precisarão mais ser aprovados antecipada- sofisticados, o que significará não apenas vantagens de mercado e
mente e nem modificados pelos deputados e senadores america- reforço da sua demanda interna, mas principalmente a manutenção
nos. Clinton tentou durante seus dois mandatos conseguir esse da liderança no desenvolvimento científico e tecnológico do sistema
fast track e não conseguiu. global. A Europa e o Japão foram mantidos drasticamente no segun-
120 121
do plano, produzindo armamentos leves, menos sofisticados e ven-
didos principalmente aos países dominados, que representam a par-
te mais reduzida do mercado internacional de armamentos. Apro-
funda-se ainda mais aquela situação favorável aos EUA do final do
século passado, assunto que verificamos no capítulo 3 deste livro.
A prosperidade armada, que foi a saída para os EUA escapar de
uma severa depressão econômica, colocaria em cena um novo tipo
de desenvolvimento cíclico para a provável recuperação ainda no
primeiro semestre de 2002: muito menos exuberante, com fases
mais curtas e, no geral, mais dependente de ações políticas do que
nos demais ciclos dos últimos 50 anos.
Essa vacilante recuperação americana provocaria um desgaste
muito elevado na velha ordem geopolítica. Simultaneamente a esse
novo tipo de ciclo econômico, a prosperidade armada patrocinada PARTE nr
pelos EUA colocaria definitivamente novos e explosivos componentes
geopolíticos no centro das questões econômicas internacionais que A ARQUITETURA DA DESTRUIÇÃO
se desenvolveram nos primeiros anos do século XXI - comércio inter-
nacional e balanços de pagamentos, sistema monetário e cambial,
novas tecnologias, competitividade e concorrência etc. As questões
econômicas seriam crescentemente militarízadas, enfraquecendo os
componentes próprios ao livre mercado (globalização) e aumentando
o potencial de conflitos entre as classes, de guerras civis no interior
das nações e de crescentes rivalidades entre as principais nações.
Frente à potência do ciclo econômico que se encerrava, este era o
cenário mais favorável que se podia vislumbrar para o capital mundial.

122
Capítulo 8

ESTADOS MÍNIMOS
DA AMÉRICA DO SUL

No começo de março de 2002, havia indicações de que a econo-


mia dos EUA estaria ensaiando mais um período de expansão. Essa
virtual retomada da economia de ponta puxa99ria a economia glo-
bal para um novo período de relativa estabilidade econômica e gover-
nabilidade política em suas diferentes áreas geoeconômicas. Ocorrendo
essa retomada, o período de crise aberto no último trimestre de 2000
estaria sendo revertido. Teria durado em tomo de 15 meses.
Até então, existiam apenas pequenos sinais dessa reversão cíclica.
A provável recuperação só poderia ser conferida no momento cer-
to, quer dizer, no decorrer dos meses seguintes, com divulgação de
dados mais confiáveis ligados à reprodução do capital fixo (deman-
da por máquinas, equipamentos e instalações), produção e produ-
tividade industrial, consumo de matérias-primas e insumos, preços
de produção, comércio exterior, mercado cambial e outras variáveis
que indicam efetivamente se está ocorrendo ou não uma reversão e
início de um novo ciclo econômico.
Se realmente o último período de crise estivesse se despedindo,
isso não estaria acontecendo por acaso. Já tinha provocado estra-
gos que dificilmente serão compensados com uma anunciada ex-
pansão armada que, por isso mesmo, seria de curta duração e
baixa dinâmica de acumulação.
Os meios utilizados para a superação daquele período de crise
não vão deixar saudades. Acontece que, como toda superação de
uma pletora periódica de capital - do mesmo modo que a sangria
para o alívio de uma pletora da medicina, de onde os economistas

125
tiraram essa imagem para retratar uma crise econômica especifica- Essa recente e insólita identidade sul-americana não tem raízes
mente capitalista -, a mais recente recuperação do capital global tam- nacionais, como nos antigos processos de unificação. É imediata-
bém teria que deixar necessariamente um rastro de sangue e de des- mente global, quer dizer, imediatamente determinada pelas neces-
truição para grandes massas da população de continentes inteiros. A sidades internas do capital global superar suas intermináveis cri-
América do Sul é um caso exemplar desse processo. ses periódicas e retomar sucessivos ciclos de expansão do mercado
mundial especificamente capitalista.
Desigual, combinado e planejado
Sabemos há muito tempo que essas recuperações capitalistas
Em nenhuma área dominada da economia mundial os sinais de
nunca acontecem pacificamente. O que se verifica é exatamente o
uma destruição especificamente capitalista são mais evidentes do
contrário. As crises de superprodução - geradas nas economias
que na América do Sul. Da Venezuela e Colômbia, ao norte, à Argen-
dominantes do sistema capitalista (EUA, União Européia e Japão)
tina, ao sul, passando pelos Andes e pelo Brasil, nenhum país escapa.
- continuarão a reaparecer periodicamente e imporão sempre a
A globalização se desdobra pelo continente como um mesmo sangrento
necessidade de destruição de excessos de forças produtivas acu-
processo de saque das suas riquezas naturais, de terrorismo im-
muladas em quantidades cada vez mais gigantescas, para que o
perialista e principalmente de aumento da exploração da sua popula-
sistema possa se regenerar e continuar existindo.
ção trabalhadora. Mas é deste mesmo processo que brota o seu
contrário. Como na Argentina, onde, no último período de crise glo- As contrações periódicas do capital provocam explosões e cri-
bal, ocorreu o mais avançado estágio de deterioração econômica na- ses, quando então as paradas súbitas do trabalho e a destruição
cional do continente e simultaneamente o aparecimento do seu con- de uma grande parte das empresas capitalistas redirecionarâo o
trário, a movimentação das massas clamando pela revolução social. capital, sempre pela violência, a um nível do qual ele poderá reto-
Do mesmo modo que as primeiras erupções sociais do século mar seu curso. Sem se suicidar, o capital poderá de novo empregar
XXI no continente sul-americano, particularmente na Argentina, sua plena capacidade produtiva. É por isso que, por razões estrita-
desencadearam-se no último período de crise econômica, os seus mente econômicas, nossa época não pode escapar da violência.
posteriores desdobramentos também estariam balizados pela emer- Violência e destruição. Não foi a economia política dos traba-
gência de mais um período de expansão global. lhadores que descobriu esse "corretivo natural e necessário" do
Devido a essa ação combinada, desigual e planejada do moder- capital. Os próprios economistas capitalistas sempre reconhece-
no regime capitalista para a superação de suas crises periódicas, a ram que o capital precisa de grandes destruições periódicas de
América do Sul acabou adquirindo nos últimos anos uma identida- forças produtivas sociais para superar suas sucessivas crises. É
de capitalista e uma unidade material - por enquanto, necessaria- enorme a lista dos que exprimem cinicamente essa necessidade
mente negativa - que nenhuma antiga idéia de unificação política interna do capital. Bem antes, por exemplo, do eclético e plagiador
do continente (Bolívar etc.) poderia realizar. Joseph Schumpeter - economista tido pelos seus atuais epígonos
acadêmicos como o criador original do gracioso e inofensivo con-
É uma identidade mais do que estrutural, mais do que uma
ceito de "destruição criativa" -, Fularton já decretava em 1858:
fórmula abstrata de existência comum. É muito mais um planeja-
mento de não-existência, de uma determinada organização capita- "Uma destruição periódica de capital tomou-se uma condição necessária
lista orientada para a expansão do capital e para a destruição das de existência da taxa média de lucro. Nesta perspectiva, os sacrifícios
condições de existência e de reprodução dos diferentes países loca- apavorantes que presenciamos habitualmente com tanta apreensão e medo
podem ser exatamente o corretivo natural e necessário de uma opulência
lizados nas áreas dominadas do mercado mundial. O que aconte- excessiva e superdimensionada. É a vis medistrix; a força que dá ao
ceu na Argentina, como veremos mais à frente, é um dos resulta- nosso atual sistema social o poder de se aliviar de tempos em tempos de
dos mais visíveis desse processo que atinge indistintamente, em uma pletora - sempre renovada e que ameaça sua existência - a fim de
maior ou menor grau, todos os países da América do Sul. reencontrar uma condição sadia e sólida."
126 127
Para evitar as revoluções sociais - violência breve e concentrada, Outra coisa importante. As necessidades do moderno regime ca-
mas radical -, os capitalistas fazem guerras que nunca terminam e pitalista de produção para as superações periódicas da crise econô-
que destróem sistematicamente as forças produtivas não apenas mica não agem mais apenas com uma sistemática destruição das
sob a forma de máquinas, instalações de produção, de meios de forças produtivas globais, uma destruição que reaparece a cada novo
circulação, de comunicação e de subsistência, mas também de ho- período de crise. Agora, com o aprofundamento da globalizaçâo dos
mens, quer dizer, de uma superpopulação de operários em excesso últimos 20 ou 25 anos, essas necessidades agem mais profunda-
para as necessidades do capital. Vejamos mais de perto como se mente que antes. Acabam também freando até a evolução industrial
desenrolam concretamente esses imundos métodos capitalistas de e social de áreas e continentes inteiros em que se localizam as econo-
planejamento e de reprodução dos homens e seu mundo natural. mias dominadas do mercado global - América Latina, Leste Euro-
peu, Ásia, África, Oriente Médio etc. Além de "criativas' para as
A "destruição criativa" do último ciclo econômico apresentava cla-
economias dominantes, para as áreas e economias dominadas essas
ramente seus efeitos. Os argentinos que o digam. Em março de 2002,
leis internas podem ser aplicadas em sua pureza de simples destrui-
a produção industrial da Argentina contabilizava 43 meses de para-
ção, de "décadas perdidas".
lisação. Quase quatro anos de queda contínua! Crise como estag-
nação estrutural. Em janeiro, tinha recuado mais 2,4% em relação ao Essas leis internas da valorização e reprodução capitalistas im-
mês anterior. Comparando-se com janeiro de 2001, verificava-se uma pedem um aumento muito rápido e geral das forças produtivas. A
queda acumulada de 18,4% nos últimos 12 meses. A maior queda sua função é de diminuir a amplitude internacional dos ciclos eco-
da atividade industrial do país desde que este indicador começou a nômicos. Para serem aplicadas da melhor maneira possível, essas
ser medido. A produção de veículos caiu 65%, a de têxteis 56%, a leis são politicamente garantidas através da expansão da demanda
metal-mecânica 54,1% e a siderúrgica 20,2%. Subiram apenas a de dos Estados por armas, créditos orçamentários suplementares para
óleos e oleaginosos (36,2%), a de cigarros (11,3%) e a dos químicos a violência policial e imperialista global, "guerra contra o terroris-
básicos (8,9%). Com esses números, a produção industrial argentina mo" etc. As crises capitalistas modernas se tomam, portanto, cada
recuou aos níveis de 10 anos atrás. Por habitante, o atual nível vez mais planejadas e mais próximas uma das outras.
corresponderia a 20% menos que em 1992, em termos reais.
Virtualmente falando, o desenvolvimento das forças produtivas
Ao contrário de Buenos Aires, otimismo em Nova York, Tókio e nas áreas dominadas do mercado mundial (e não apenas o
Frankfurt, com sinais mais concretos de recuperação da economia aprofundamento de atividades primário-exportadoras, das plata-
americana. Começavam a aparecer fortes indicadores de recuperação formas de exportação e terceirizaçâo de empresas globais) serviria
da economia de ponta do mercado mundial. Divulgava-se, por exemplo, pelo menos para alimentar a grande massa da população mundial.
uma queda da taxa de desemprego daquela economia para 5,5%. Isso Como na Argentina, onde houve uma época em que todo mundo
era diferente de se anunciar abobrinhas do tipo "confiança do consu- comia, estudava e morava com razoável conforto. Agora, calcula-
midor" e outras idiotices psicológicas da moderna "ciência econômica". se que quase a metade da população do país encontra-se abaixo
da chamada "linha de pobreza". Quer dizer, estão passando fome.
Ao contrário de Washington, Buenos Aires anunciava que a taxa
Oito anos antes, o índice não passava de 15% da população.
de desemprego da economia argentina continuava aumentando.
Oficialmente já passava de 22% da população economicamente Durante a década de 90, o índice de pobres saltou de 12% para
ativa do país. Oficialmente. A estagnação das economias domina- 30% da população. Em 2001, quando o último período de crise eco-
das trabalhando em sincronia com as recuperações das economias nômica global se aprofundou e provocou a crise financeira no país,
dominantes. Esse movimento concreto faz parte do processo histó- culminando com a moratória da dívida, a pobreza superou pela pri-
rico que chamamos na economia política dos trabalhadores de meira vez o patamar de 40% dos argentinos. Nos cinco primeiros
desenvolvimento desigual e combinado. meses de 2002, o aumento dos preços a partir da desvalorização
128 129
cambial e o crescimento do desemprego (25% dos trabalhadores) fize- cidade produtiva de cereais (cinco vezes maior que no Brasil, por
ram a pobreza quebrar nova barreira, a de 50% dos argentinos. Assim, exemplo), operariado com elevada produtividade e tradição indus-
existiam no final de maio de 2002 cerca de 18,2 milhões de pobres trial, clima temperado extremamente favorável para a reprodução
na Argentina. Destes, são 7,8 milhões de indigentes (22% da população). da espécie humana, enormes reservas de petróleo e outras fontes
de matérias-primas. No entanto, essa sociedade potencialmente
A cidade de Quilmes, na região metropolitana de Buenos Aires,
tão rica não é mais capaz de organizar sua economia nem para
já fez parte do mais poderoso cinturão industrial da América Lati-
alimentar sua população.
na. O jornal argentino Página 12 publicou uma reportagem que
Essa "destruição criativa" acabou resultando em uma nova e rotineira
retrata as condições atuais da população daquela cidade:
paisagem urbana no país, uma paisagem característica do pleno desen-
{{(Ficamelhor sefor condimentado com alho. Este comentário gastronômico,
volvimento capitalista na América do Sul e da sua fome especificamen-
pronunciado esta semana na cidade de Quilmes, refere-se à forma como
a carne de gato pode ficar mais saborosa para o paladar humano. Por te capitalista. Como se podia ver em 26 de março de 2002, quando
causa do rápido alastramento da pobreza na cidade, os felinos estão de- "a polícia de Buenos Aires reprimiu hoje cerca de trezentas pessoas que
saparecendo rapidamente das ruas de Quilmes para alimentar os esfo- estavam pedindo comida em frente a um supermercado, na provincia de
meados argentinos. " (Página 12, 20/06/2002) Buenos A ires . Mulheres e homens começaram a se aglomerar em frente
ao supermercado desde ofinal da manhã para tentar conseguir alimen-
A pobreza neste município de 600 mil habitantes estaria atingindo
tos. Porém, a policia chegou com ordens de evitar novos saques, como os
55% da população. Destes, 24,1% são considerados indigentes. que ocorreram em dezembro do ano passado e dispersou os desemprega-
Dos 115 mil menores de 15 anos, 45 mil não conseguem alimentos dos com gás lacrimogênico e balas de borracha. Outros pontos da provín-
suficientes para suprir as necessidades diárias de calorias para um cia de Buenos Aires e no interior do pais também registraram concentra-
desenvolvimento adequado. Segundo o jornal, ção de desempregados e manifestantes em frente a supermercados e
outros comércios menores, como açougues, pedindo comida. " (Agência
"os habitantes pobres de Quilmes estão recorrendo à caça de gatos para Estado, 26/03/2002)
se alimentar. Pepe, um dos entrevistados, que tenta sobreviver como
catador de papel e garrafas, afirma que é preciso paciência com a carne
[elina, já que ela requer uma hora de fogo baixo. (... ) Além disso, aprovei- Capital financeiro e cucarachas desgovernadas
tando as dezenas de riachos e banhados que passam pelo município, os As classes dominantes argentinas passaram a última década
quimeiíos estão aproveitando a grande presença de sapos para comple- aplicando zelosamente as receitas do Departamento do Tesouro
mentar sua alimentação. " (Página 12. op. cit.) dos EUA e do Fundo Monetário Internacional (FMI), seu xerife eco-
Em mais um dos relatos do Página 12, Ariel, uma das crianças nômico na América Latina. Deu no que deu. E, depois de tudo, qual é
da cidade, afirma que, entre carne de cavalo e de sapo, prefere a de o remédio que o governo argentino encontra para consertar a situa-
cavalo. "É mais gostosa que a de sapo", explica. A situação dos ção? Simples: entregar-se ainda mais às ordens do FMI e aos seus
habitantes de Quilmes agravou-se nos últimos meses com o catastróficos ajustes econômicos. Ninguém mais pode duvidar de que
aprofundamento da crise econômica. De lá para cá, sempre segun- as condições de sobrevivência da grande maioria da população da-
do a reportagem do Página 12, além de sapos e cavalos, os ratos - quele país ficarão ainda mais desesperadoras.
caçados nas lixeiras da cidade - também começaram a integrar o Eles fizeram tudo que lhes foi ordenado por Washington para al-
menu diário. Segundo as pessoas consultadas, os ratos são lavados cançar o tão almejado objetivo neoliberal de um Estado mínimo. Con-
em água sanitária para "eliminar as doenças". seguiram. Bem antes dos seus demais colegas sul-americanos, que
É importante lembrar que não estamos falando de uma socieda- seguem o mesmíssimo caminho. Essa utopia imperialista se desen-
de tribal ou de um pequeno país desértico e sem população, como rola nos traiçoeiros movimentos do capital financeiro. O Estado
o Chade, Burkina Faso ou Togo. Estamos falando de um país ple- mínimo é o reino da liberdade do capital financeiro globalizado,
namente capitalista, modernas estruturas de mercado, elevada capa- cuja função econômica é altamente estratégica: determinar a forma
131
130
de distribuição da mais-valia produzida para os principais grupos trole financeiro estatal em economias sem um forte sistema bancá-
empresariais (nativos e de fora) e quais deles vão controlar a pro- rio privado e de mercados de capitais internos em direção aos gran-
priedade das maiores e das mais lucrativas empresas de uma de- des fluxos financeiros e monetários internacionais quer dizer
, "
terminada economia nacional, planejando assim o que, como e globalizados. E o resultado da rápida abertura dos mercados inter-
para quem vai se produzir nesta economia etc. nos de economias com condições de produtividade nacionais muito
abaixo da média do mercado mundial. É o resultado da privatização
Mas esse capital financeiro não cria nada. Ele apenas planeja. Ele
das empresas estatais e da desnacionalização dos principais ramos
apenas administra. A única coisa que ele "produz" é o juro, essa
industriais, des~rticulando desastrosamente todo o aparelho pro-
forma derivada do valor e do lucro que são extraídos na produção
dutivo interno. E o resultado da desregulamentação de leis trabalhis-
propriamente dita. Através de uma miríade de taxas de juros, o capital
tas e de outras regras sociais de assistencialismo aos trabalhadores.
financeiro organiza e reparte entre os diversos capitais o lucro produzi-
É o resultado do desmantelamento da Previdência pública, das
do na totalidade de uma determinada economia. É a forma operacional,
condições de saneamento, da produção de alimentos, da saúde
administrativa, burocrática, do capital propriamente dito. Mais preci-
pública, do combate às endemias e epidemias, da educação pública
samente, o capital financeiro é a organização burocrática da circulação
e gratuita, dos transportes públicos, dos serviços públicos em geral.
e da acumulação do capital. Como o próprio Estado.
O capital financeiro é a própria realidade genérica do Estado- Finalmente, o Estado mínimo materializa-se no dia-a-dia dessas
nação moderno. Uma realidade que se manifesta com diferentes economias dominadas nos sucessivos ajustes fiscais (superávits
particularidades e resultados nas economias dominantes, em um primários), nas políticas monetárias restritivas (taxas de juros), nos
pólo do sistema, ou nas economias dominadas, no outro pólo. Na ajustes monetaristas do balanço de pagamentos (taxas de câmbio)
sua realidade globalizada, organiza e administra mecanismos institu- e em um aumento muito rápido do grau de dolarização das econo-
cionais que permitem a transferência de massas gigantescas de valor mias nacionais, desembocando no final do processo como uma
e de mais-valia das economias dominadas para as economias domi- inevitável tendência ao completo desaparecimento das suas débeis
nantes do sistema. Nesse sentido, organiza uma função que já trata- moedas nacionais e sua substituição formal pelo dólar dos EUA.
mos anteriormente: incrementar a exploração das economias dominan- Além do mito, além da propaganda neoliberal, o Estado mínimo
tes sobre as dominadas para a superação das crises periódicas e globais é essa criação imperialista que sempre acaba, como mostra o que
do capital, evitando-se assim que essas crises desorganizem os Esta- aconteceu concretamente na Argentina, em um débil e inoperante
dos nacionais das economias dominantes, o coração do sistema. Estado nacional à deriva nas ondas turbulentas das crises e da
O Estado mínimo, uma forma particular de atuação política do globalização econômica. E agarradas aos destroços flutuantes do
capital financeiro global, também não é o começo de nada. É apenas o velho Estado nacional, também suas classes dominantes internas
encerramento, a forma residual e realizada de um longo processo de seguem à deriva. É quando elas procuram uma nova forma de
enfraquecimento de determinada economia nacional. É apenas o vazio governabilidade, um novo regime político que seja adequado para
da impossibilidade dessa economia continuar existindo com uma certa o vazio de terra arrasada que elas mesmas criaram.
autonomia nas profundezas da globalização. Esse é um processo que Esse novo regime político já se manifesta previamente em uma
ocorre tanto no sul como no norte, tanto nas economias dominadas importante mudança nas relações internacionais dos países da Amé-
como nas dominantes. Mas ocorre de forma desigual. E combinada. rica do Sul. Já foi-se o tempo em que os EUA e o FMI tinham um
Nas economias dominadas, é o resultado dos planos de estabiliza- certo trabalho para forçar os governos do continente a obedecer
ção monetária de economias que não têm moedas conversíveis, quer fielmente às suas ordens. Agora, como se verificou com a crise na
dizer, moedas que sejam aceitas como coisas válidas, cambiáveis Argentina, são os próprios dirigentes daquele país - junto, diga-se
no mercado cambial mundial. É o resultado da alienação do con- de passagem, com os demais governos sul-americanos, o brasileiro
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puxando a fila - que imploram de joelhos aos EUA e ao FMI para livro-texto de Macroeconomia - em parceria com Stanley Fischer,
que eles aumentem os controles sobre os destinos da sua que foi até recentemente diretor do FMI, aquele mesmo indivíduo a
desgovernada economia. Sem pudor. Como cucarachas desgovernadas. que nos referimos no capítulo 2 deste livro -, uma cartilha liberal
No campo das relações internacionais desses Estados mínimos, que está inevitavelmente presente nas bibliografias das mais co-
que na última década do século passado espalharam-se como pra- nhecidas faculdades de economia do Brasil, Argentina etc.
ga na América do Sul, também essa novidade: o rninimalisrno di- Entre outras coisas, o Sr. Dornbusch dizia, ou melhor, decretava,
plomático, marcando a perda irreversível da já precária soberania e em um documento denominado Argentina: A Rescue Plan That Works
de uma certa autonomia que ainda existiam naqueles antigos Esta- [Argentina: um Plano de Resgate que Funcione]:
dos-nação, agora transformados em meros territórios econômicos,
em territórios de caça das potências imperialistas. <~ Argentina está esperando por mais um empréstimo, um pacote do
FMI, que ajudaria na solução de uma lista enorme de problemas insolú-
Os dirigentes argentinos entendem que resolver os problemas veis nas áreas econômica, política e social. É claro, todos sabem que esta
econômicos do país resume-se a uma única atitude: fazer todas as não é a melhor resposta. A verdade é que a Argentina está falida. Falida
economicamente, politicamente e socialmente. Suas instituições estão
contorções que forem necessárias para agradar ao FMI. Em situa-
inoperantes, seu governo destroçado, sua coesão social em colapso. (...) A
ções de crise social, essas classes proprietárias das economias do- Argentina se parece com as economias européias no começo dos anos 20,
minadas perdem toda capacidade de agir por conta própria e con- e não com um país com problemas de liquidez que necessitaria de um
seqüentemente de organizar os seus respectivos Estados nacionais. ano para voltar ao normal, como aconteceu com a Coréia, o México e o
É por isso que na atual situação a burguesia argentina só tem Brasil. (...) É hora de ser radical. Qualquer programa plausível de recons-
trução precisa ser construido em tomo de três pontos:
certeza de uma coisa: agarrar-se de qualquer jeito no governo ame-
ricano e no FMI é a única alternativa que sobrou para ela garantir 1. o reconhecimento de que será um esforço de décadas, não de alguns
a governabilidade e a sobrevivência do seu claudicante regime eco- anos. A economia produtiva Argentina, seu sistema de crédito e
nômico e social. O mesmo acontece, ainda em forma não tão catas- suas instituições foram destruidos, Tanto seu capital fisico quanto
o moral terão que ser reconstruidos e isso leva um tempo muito longo.
trófica, com seus vizinhos sul-americanos. É uma questão de tempo.
2. porque a capacidade política Argentina foi incinerada, é preciso
Mas agarrar-se ao governo americano para salvar a pele tem seu suspender temporariamente sua soberania em todos assuntos financeiros.
preço. Um preço bastante alto, a julgar pelo que andam pensando
os americanos, o FMI e seus economistas mais influentes sobre 3. o resto do mundo [leia-se Estados Unidos e FMI] deve fornecer suporte
financeiro para a Argentina. Mas isso só deverá ser feito com a aceita
como e quem deve governar diretamente a economia argentina.
ção da Argentina de reformas radicais e com comando estrangeiro no
Vejam, por exemplo, o que escreveu reservadamente, pouco antes controle e na supervisão dos gastos fiscais, emissão de moeda e admi-
de falecer repentinamente, o conhecido economista alemão natura- nistração dos impostos." (MIT, 27/02/2002)
lizado americano, Rudi Dornbusch, observador permanente da re-
alidade econômica da América Latina, principalmente México, Ar- Como vemos, o capital financeiro não tem nada de abstrato. É o
gentina e Brasil. Passava a maior parte do seu tempo visitando próprio manual de operação das economias dominadas e assola-
essas tenebrosas economias, onde fazia palestras para empresári- das pela globalização e as crises econômicas. E a Argentina atual é
os e acadêmicos, conversava com as autoridades econômicas, es- um caso terminal deste acidentado processo. Nos períodos mais agu-
crevia rotineiramente nos grandes jornais da América Latina (qua- dos do último período de crise global, os velhos dirigentes argentinos
se sempre pregando a completa dolarização dessas economias) etc. estavam muito mais preocupados em escapar da prisão e da ira
popular que inundava as ruas, pedindo suas cabeças, do que com
Credenciais não faltavam ao Sr. Dornbusch: era professor do questões para eles absolutamente irrelevantes em situação de crise
conhecido Massachusets Institute of Technology (MIT), autor de um social, como soberania nacional, quem deve cuidar dos destinos
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da sua economia ou quem deve governar diretamente o país. Só O golpe contra Chávez deveria parir assim uma ditadura empre-
nos curtos períodos de recuperação, como ocorreria posteriormen- sarial ao invés de uma ditadura militar. Uma ditadura predominan-
te, eles retomam timidamente essas considerações. temente econômica ao invés de uma ditadura predominantemente
política. Uma ditadura de mercado ao invés de uma ditadura de
Trata-se agora de planejar a sua reconstrução. E nada será como
Estado. Isso é mais do que uma simples curiosidade. Trata-se de
antes. A começar pela sua forma plenamente globalizada. Os três
mais um desdobramento da recente onda de globalização do mer-
pontos enumerados pelo Sr. Dornbusch mostram apenas a base
cado mundial. A ditadura de mercado é a forma necessária que
econômica deste planejamento. Mas esse aprofundamento do plane-
assume o novo regime político imposto pelos EUA para os países da
jamento imperialista para a Argentina tem que ser necessariamente
América do Sul. Onde está a importância desta forma? Na própria
acompanhado por um novo regime político, por uma forma de orga-
forma. Uma forma globalizada - e mais militarizada do que nunca,
nização global do seu antigo Estado nacional. A plena abertura dos
como se comprova pelo Plano Colômbia - que procura implantar um
mercados, o controle das fontes de matérias-primas e a dolarização
novo regime político e garantir uma nova governabilidade para esses
do sistema monetário e financeiro mostram apenas a forma econô-
Estados mínimos da América do Sul. Uma governabilidade direta-
mica planejada para os novos Estados globalizados da América do
mente global, sobrepondo-se à soberania e à autonomia destes Esta-
Sul. A militarização globalizada terá que ser a sua forma política. É
dos-nação totalmente destroçados pela globalização, pelas crises eco-
esse importante complemento que não aparece com toda clareza no
nômicas no mercado mundial e pelo planejamento do capital finan-
abalizado e realista documento do falecido Sr. Dornbusch.
ceiro internacional (Tesouro dos EUA, FMI etc.).
Um soldado perigoso, um soldado que pensa O exército imperial organizando a sucata. Queriam aumentar a
"Eu sou um soldado, em essência eu sou um soldado patriota, um lista. Como já aconteceu com o Equador e com a Argentina, de ma-
soldado bolivariano", exclama orgulhosamente Hugo Chávez, presidente neira mais concreta que nos demais países da região, a Venezuela
da República Bolivariana da Venezuela, deposto por algumas horas também deveria ser incluída na sinistra lista de sucatas nacionais da
na madrugada do dia 12 de abril de 2002 por um golpe de Estado globalização. Seu destino, como dos seus desafortunados precur-
comandado pelos EUA e executado pelos empresários venezuelanos. sores, seria também o de uma crise política e social permanente. Um
destino que passaria, se o golpe fosse bem sucedido, a ser planejado
Golpe de Estado ou golpe de mercado? O que ocorreu naquela
e governado diretamente pelo Departamento de Estado americano e
madrugada na Venezuela não foi apenas mais um daqueles tradici-
organizações internacionais e regionais como FMI, Banco Mundial,
onais golpes que marcam a suja história da América do Sul, em
Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e outras imundices.
que um militar ou uma junta de militares derrubava um presidente
Sem esquecer, é claro, das novas bases militares dos EUA no terri-
civil eleito pelo voto popular e se instalava em seu lugar. Agora os
tório venezuelano, como as demais já existentes na Colômbia, Equa-
tempos são outros. E a sujeira é bem maior.
dor, Bolívia, Argentina etc. Só faltava a capitulação da Venezuela
O complô e a tentativa de derrubada do presidente Hugo Chávez para o exército imperial fechar territorialmente e militarmente os
traz uma novidade: um reles empresário, presidente da Fedecámaras revolucionários colombianos e outros movimentos populares e anti-
(federação dos empresários) que atende pelo nome de Pedro imperialistas na região andina.
Carmona, seria o novo homem forte da Venezuela. Quer dizer, ao
invés de um comandante militar, de um general, foi o presidente da Quando o Estado mínimo atinge seu ponto de ebulição, a dita-
Fedecámaras que comandou e personificou nacionalmente o golpe dura econômica sobrepõe-se imediatamente a uma insuficiente di-
para derrubar Hugo Chávez, um ex-coronel comandante da briga- tadura política. Neste ponto terminal do processo, os elementos
da de paraquedistas que foi eleito e reeleito democraticamente pelo formais dos velhos Estados políticos da América do Sul permane-
povo venezuelano com ampla maioria dos votos. cem, mas suas funções são radicalmente alteradas. Nas antigas
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ditaduras militares dos anos 70 e 80, havia muita centralização restaurar um velho Estado em que a simetria e a congruência da
política nacional, o que se tornou incompatível com a incondicio- representação democrática, para usar alguns termos da ciência
nal e profunda "abertura" para o mercado internacional e a inicia- política, disciplina em que Chávez é formado, já tinham sido com-
tiva privada. O antigo exército nacional (e junto com ele os antigos pletamente apodrecidas pelas velhas oligarquias nacionais que ele
ditadores), do mesmo modo que outras burocracias policiais de derrotou nas urnas com quase 60% dos votos. Esse massacre
repressão política e social, transformam-se assim em mera guarda eleitoral era a própria medida numérica da crise da representação
nacional desse novo Estado imediatamente e diretamente globalizado. democrática daquele apodrecido Estado nacional.
E fundem-se e subordinam-se ao exército imperial, cada vez mais
Mas as reformas da velha Constituição e do viciado sistema
visível nas operações terroristas e de neomacarthismo globalizado
oligárquico de poder político venezuelano não foram feitas no vazio
de Washington nesses Estados desterritorializados pela globalização.
de decisões dos novos mandatários. Foram acompanhadas pela
No curto golpe da madrugada de 12 de abril de 2002, por exem- criação dos "círculos bolivarianos" - organizações populares de
plo, os generais e demais milicos venezuelanos apenas cumpriram as base territorial(20/06/2002) que passaram a influir diretamente
diligências policiais necessárias para que os empresários, os bancos, nos rumos do Estado. As reformas começaram então a tomar ares
as multinacionais do petróleo, a corruptela sindical e a tecnocracia de revolução.
da Petróleo da Venezuela (PDVA), a gigante estatal do petróleo, pu-
Poucos dias antes do golpe, o cientista político e presidente
dessem organizar o novo governo, ou o que eles estavam chamando
venezuelano resumia ele mesmo este processo, em entrevista à
de "governo provisório". Sempre serão provisórios esses governos,
revista brasileira Carta Capital, edição de 27 de fevereiro de 2002:
pois, no vazio de um efetivo Estado-nação, essa nova forma de regi-
me político corresponde também, e necessariamente, a uma crise "O que é a revolução? A revolução é, no plano político, um sistema
permanente do regime democrático que deveria dar-lhe conteúdo. democrático, mas com conteúdo social, conteúdo popular de participa-
ção. Nós não compartilhamos da tese liberal da democracia clássica
No momento do golpe, os EUA acusavam Chávez pela crise da representativa. A diferença entre democracia meramente representati-
democracia venezuelana e responsável pela sua própria deposi- va, que é a que tínhamos aqui até 1998, e o modelo que está nascendo
ção. O porta-voz da Casa Branca, Ari Fleicher, depois de elogiar o na Venezuela (...) está nas comunidades que vão adquirindo graus cres-
comportamento exemplar dos militares venezuelanos, já no meio centes de participação, inclusive na tomada de decisões, na adminis-
tração de recursos, participação política, participação na elaboração da
do dia em que ocorreu o golpe disse que os EUA iriam trabalhar Constituição nacional, como fizeram, participação na elaboração das
com o governo provisório "para restaurar os elementos essenciais leis, na gestão da escola bolivariana do bairro, do município, ou seja, é
da democracia'ê>, um conjunto de mecanismos de participação que devolve o poder ao
povo. (...) Nós estamos reorganizando a sociedade, reestruturando o
Mas que "elementos essenciais da democracia" o governo de que estava completamente desestruiurado. Os círculos bolivarianos, por
Hugo Chávez teria danificado? Na verdade, ele procurou e procura exemplo, são núcleos de organização social popular para criar uma soci-
edade participativa, igualitária, de incluídos, pessoas que você via que
estavam excluídas e não tinham direitos e agora recuperam o direito à
33. Alguns momentos depois do golpe, apareceram também as primeiras manifes- moradia digna, à escola digna, à saúde, direitos da sociedade igualitária."
tações dos banqueiros internacionais em um despacho de Londres para a Agência
Estado: "Segundo analistas da Cyti londrina, a saída de Chá vez abre caminho para Um homem perigoso, um homem que pensa (Shakespeare). E
que a Venezuela volte a ser governada por uma administração alinhada com polí- quando esse homem é um experiente soldado, e mais ainda, quan-
ticas de livre comércio e afasta o fantasma do populismo na América Latina. Chávez do ele comanda o governo do quinto maior produtor mundial de
representava uma permanente ameaça aos direitos de propriedade privada no
petróleo e terceiro maior fornecedor deste produto para os EUA, o
país. Qualquer pessoa será melhor do que Chávez. A nossa expectativa é que após
um governo interino, tenhamos na Venezuela uma administração liberal, aberta perigo é maior ainda. Chávez fez mais mudanças na política do
ao mercado." (Agência Estado, às 07h51minutos de 12/04/2002) que na economia. Mas foram grandes mudanças. Ao promover
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uma ruptura radical com o falido sistema de poder no país e pro- nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de
curando restaurar aquelas condições de similaridade e congruência crianças dum grupo para outro." (Dicionário Aurélio)
do regime democrático, ele acabou destampando insondáveis for-
Por volta de 1945, quando estava terminando a Segunda Grande
ças e movimentos sociais que normalmente só aparecem como abs-
Guerra e ao mesmo tempo a fase romântica dos fascismos nacio-
trações na doutrina e na retórica do Estado democrático.
nais - como aqueles que existiram na Alemanha, Itália, Japão e
Os partidários da ordem imperial e apoiadores do fracassado golpe alhures -, os EUA já davam as primeiras demonstrações de um
ocorrido na Venezuela só vêem Chávez como um terrível "caudilho novo genocídio global, uma fase superior do genocídio capitalista.
populista". Não precisamos repetir aqui seus inúmeros outros cha- Em Hiroshima e Nagasaki, para começar, como uma amostra grátis
vões sobre o governo Chávez, que podem ser encontrados ad nausean do que viria pela frente. Um genocídio que só poderia se realizar
na mídia nacional e mundial e que servem muito mais para preparar em toda sua plenitude no ritmo e na medida dos assombrosos
e justificar novos golpes contra a experiência bolivariana do que para avanços da globalização dos últimos 20 ou 30 anos.
qualquer explicação descompromissada das mudanças que estão real-
Esse genocídio especificamente capitalista tem um objetivo bem
mente ocorrendo naquele país nos últimos anos.
definido: a realização prática da governabilidade do mercado mun-
Entretanto, o cientista político argentino Atílio Borón, antigo vice- dial e dos seus correspondentes "valores e principios democráti-
reitor da Universidade de Buenos Aires, descreve com sobriedade cos", de que tanto falam os representantes do governo dos EUA
em seu artigo Nuvens ameaçadoras sobre a Venezuela o que estava para justificar, entre outras coisas, golpes de Estado em economias
sendo transformado e revolucionado na sociedade venezuelana: e áreas dominadas, ações terroristas e guerras regionais etc., sempre
que as determinações e necessidades do mercado mundial não este-
"O governo de Chávez tem o mérito de ter introduzido na vida pú-
jam sendo milimetricamente obedecidas.
blica venezuelana uma reforma de fundamental importância e de
duradouros efeitos: depois de longas décadas de oca e inconse- Mas esse moderno genocídio capitalista não se desdobra apenas
qüente retórica democrática, seu governo conferiu um sentido de com esse aspecto militar-terrorista que, por enquanto, tem se delimi-
dignidade às classes e camadas populares do pais. Depois de
tado prioritariamente, do mesmo modo que os efeitos mais catastró-
Cháoez, ser mulato, mestiço ou negro deixa de ser estigma. E isso
explica tanto a intensa adesão dos setores mais pobres e mar- ficos das crises econômicas, às áreas dominadas do mercado mundi-
ginalizados para ele, como o ódio que sua figura suscita entre os al. Ele começa basicamente pela imposição de determinadas políti-
ricos que, não por acaso, são quase todos caras pálidas. Poucas cas econômicas que condenam os Estados nacionais em geral a
vezes se viu uma superposição tão difusa entre classe e cor, como a uma adaptação forçada às necessidades do mercado e à superação
que afiorouna Yenezuela." (Borón, 2002)
de suas crises econômicas globais. Não se trata apenas de um
É essa epopéia bolivariana que acabou desafiando seriamente problema político, mas econômico em primeiro lugar.
os caros "princípios democráticos" do império a que se refere o seu Modernamente, a palavra genocidio tem motivado burlescos inci-
porta-voz Mr. Ari Fleicher. dentes diplomáticos. Vejam, por exemplo, o que se passou recente-
Genocídio global mente no Brasil. Em viagem de trabalho pelo país, um burocrata de
alta patente da ONU verificou, dados oficiais na mão, que mais de
"Genocidio: crime contra a humanidade, que consiste em, com o 50 milhões de brasileiros não conseguem comprar nem um prato de
intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, comida, quer dizer, estão passando fome. Verificou então uma situa-
racial ou religioso, cometer contra ele qualquer dos atos seguintes: ção claramente definida: mais de 50 milhões de brasileiros estão
matar membros seus; causar-lhes grave lesão à integridade física ou "submetidos a condições de vida capazes de os destruir fisicamente"
mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de o destruir (Aurélio). Ainda no Brasil, sabem o que o ilustre visitante declarou à
fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem a evitar imprensa? Que o governo deste país está cometendo um genocídio.
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Genocídio. Essa foi exatamente a palavra que ele utilizou para
descrever as condições de vida que estão destruindo fisicamente
mais de 50 milhões de brasileiros. Corretamente, seguindo à letra
o que está definido no dicionário.
O presidente da República ainda era Fernando Cardoso, que
não gostou nem um pouco da palavra genocídio. Apenas da
palavra. Não houve nenhuma ressalva quanto aos números: mais Capítulo 9
de 50 milhões de brasileiros não têm nem um prato de comida,
quer dizer, mais de 50 milhões de brasileiros estão neste momen-
DESORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS
to condenados à morte. Em câmaras de gás? Não, sem nenhum
equipamento, campo de concentração e nem custo de execução.
Pelo moderno e altamente eficiente método especificamente capi-
talista da fome. Como tem ocorrido nos últimos 50 anos, uma recuperação cíclica
O governo brasileiro exigiu então imediata retratação do burocra- da locomotiva americana sempre vai salvar o Japão e União Euro-
ta-embaixador. Que se retratou, já na Europa, dizendo que não péia da derrocada, certo? Errado. Os tempos mudaram. E muito. O
era a palavra genocídio que ele queria dizer. Mas o que ele queria mundo capitalista não se embala mais pela música romântica da
dizer então? Bem ... apenas não deveria ter dito aquela maldita Guerra Fria, nem pela frenética da Nova Economia e sua feliz
palavra. Ficou o dito pelo não dito. O governo brasileiro, que globalização. A partir de 2001, aquela pesada onda de superprodução
preza muito os valores universais da democracia, ficou satisfeito de capital trouxe de volta antigos sucessos musicais que todos
com a retratação do imprudente burocrata da ONU. Encerrava-se imaginavam ter desaparecido para sempre: protecionismo, mono-
assim mais um incômodo incidente diplomático entre um buro- pólio de mercados, armamentos e guerra. Uma velha música eco-
crata de uma organização internacional e um governo de cucarachas nômica para embalar o novo jogo geopolítico mundial.
da América do Sul.
Até agora, em choques periódicos anteriores, o principal mecanis-
O grande filósofo texano George W. Bush, atual ocupante da mo imperialista de superação das crises globais era direcionar seletiva-
presidência dos EUA, comentando a recente carnificina do exército mente a necessária destruição de capital sobre as economias domi-
do Estado de Israel no povoado palestino de Jenin, declarou para a nadas (via FMI, neoliberalismo, ajustes fiscais etc.). Com o peso inusi-
CNN e para o mundo que "Sharon é um homem de paz!", Seguindo tado do último choque, entretanto, as economias dominantes da União
essa categorizada avaliação, aqueles que têm a grande sorte de Européia e do Japão ficaram ameaçadas de também começar a pagar
habitar na América do Sul e mais particularmente no Brasil, agora parte daquela sinistra fatura para salvar os EUA da crise.
podem exclamar com toda a certeza do mundo que "Cardoso tam- E começa um certo descontrole da velha ordem. Quanto mais
bém é um homem de paz!". avançamos no tempo desta primeira década do século XXI, podemos
Querem a prova? Se pedirem ao ilustre sociólogo da Universida- verificar melhor como os efeitos desastrosos daquele último cho-
de de São Paulo, Fernando Cardoso - que, além da presidência do que na economia dos EUA estão na origem do novo quadro
Brasil ainda ocupava a Fazenda Buritis e outros latifúndios que geopolítico mundial. As ações políticas derivam da necessidade
não produzem uma grama de cereais -, para dar um nome àquele econômica. Para escapar de uma depressão econômica e da explosão
genocídio ... desculpe!, àquela iniqüidade social que atinge mais de de uma guerra civil no interior do seu próprio país, os americanos
50 milhões de brasileiros, ele responderá como um orgulhoso e estão, cada vez mais, exportando sua crise doméstica e suas
culto economista schumpeteriano: "destruição criativa!". idiossincrasias para o resto do mundo.
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Já no final de 2003, observava-se em todas as economias que Todos os caminhos levam à Roma
ainda jogam um papel de destaque no comércio internacional um O unilateralismo da atual diplomacia dos EUA é a forma política
desesperado esforço de se desembaraçar dos últimos rescaldos da- dessas novas condições materiais de reprodução e crise nas diver-
quele incêndio de 2000/2001. No epicentro da globalização eco- sas áreas geoeconômicas. Até poucos meses atrás, as suas
nômica e das crises periódicas, o problema político do desemprego conseqüências geopolíticas ainda eram explicadas pelos ideólogos
nacional. Só as economias que tiverem sucesso na empreitada da do império como um "conflito de civilização", como "diferenças cul-
recuperação de taxas elevadas de produtividade e de produção indus- turais inconciliáveis entre o Ocidente e o Oriente"! Agora essas
trial poderão apagar temporariamente suas elevadas taxas de desem- idéias estão se embaralhando. Aliás, uma das características do
prego, com a criação de novos postos de trabalho na indústria. momento atual é que as idéias oficiais acerca das novas condições
Mas essa é apenas uma condição necessária, pois é cada vez geopolíticas tornaram-se altamente perecíveis.
menor a garantia de que o crescimento da produção nacional e do Essa insanidade ideológica acerca de "conflitos entre civiliza-
emprego da força de trabalho coincida com as fronteiras nacionais. ções", por exemplo, teve livre curso até a campanha militar no
Nada ocorrerá mais com o automatismo das recuperações passadas. Afeganistão. Posteriormente, entretanto, a partir dos protestos
As novas condições de um exército industrial de reserva muito das principais potências européias (a Alemanha puxando o coro)
mais globalizado não garantem que os novos postos de trabalho contra a invasão do Iraque pelo exército americano, aqueles mes-
criados pela recuperação cíclica devam se localizar necessariamente mos ideólogos descobriram perplexos que os conflitos mais ásperos
na sua própria economia. Nem mesmo na economia de ponta do das novas relações internacionais estão se deslocando para o in-
sistema. Os novos postos de trabalho criados pelo capital globali- terior do Ocidente. Pior ainda, descobriram que esses conflitos
zado transitam livremente pelas envelhecidas fronteiras nacionais. bélicos atuais ameaçam concretamente estilhaçar aquelas relações
Uma das principais conseqüências dessa nova realidade da globa- estáveis que existiam entre as grandes democracias ocidentais -
lízação nos anos 90 - e a conseqüente crise de superprodução de capital EUA, Alemanha, França, Inglaterra, Rússia etc. Então, como gran-
no início do século XXI - é que um novo período de expansão global des entendidos de Oriente que sempre foram, agora se pergun-
não poderia se materializar plenamente sem desenterrar uma perigosa tam abobalhados: "afinal, o que é Ocidente?".
onda protecionista no mercado mundial. Melhor dizendo, sem uma Existe uma particularidade econômica muito forte e de terminante
pesada disputa pelos novos postos de trabalho a serem criados, muito na atual quadratura das relações internacionais. Acontece o seguinte:
mais globalizados e muito menos nacionalizados. da China à Alemanha, da Austrália ao México, da Suécia à África
do Sul etc., a possibilidade de crise bate na porta de todos e todos
A nova onda protecionista só poderia começar pela economia de
ponta, que deve puxar uma nova recuperação global, pois nada dependem de exportações para o mercado interno dos EUA. É nes-
tira da cabeça dos capitalistas americanos e seus políticos em tas novas circunstâncias que as velhas superestruturas burocráti-
Washington que a última crise econômica aconteceu porque o resto cas internacionais balançam.
do mundo está roubando seus empregos. Ninguém tira da sua O problema do pensamento burocrático é imaginar que o desen-
cabeça que a recente perda de empregos naquela economia é resul- volvimento da realidade material pode ser construído e controlado
tado de uma maciça transferência de suas indústrias para países e eternamente por organizações e acordos supra-nacionais bem inten-
regiões (principalmente China e outros paises asiáticos, mas tam- cionados, bem trabalhados. Por isso, fica mais difícil para eles com-
bém para a América Latina, Leste Europeu etc.), onde predomi- provarem praticamente que todas aquelas organizações internacionais
nam baixíssimos salários reais, vultuosos subsídios estatais às em- sobreviventes da velha realidade do pós-guerra são coisas que já
presas exportadoras e políticas cambiais totalmente voltadas para perderam sua relevância e tendem a desaparecer na nova realidade
a expansão dos superávits comerciais no comércio internacional. econômica e geopolítica destas primeiras décadas do século XXI.
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Pouco tempo atrás, aqueles que acreditavam na possibilidade de da globalização que centralizou radicalmente o comércio internacio-
uma "democracia global" e outras ilusões quanto ao potencial das nal não fosse o resultado das próprias crises econômicas globais. É
paquidérmicas organizações internacionais serem o embrião de algu- por causa dos potentes ciclos econômicos e suas crises periódicas
ma coisa cosmopolita e parecida com um Estado Global, uma "gouer- globais que não se pode mais imaginar que as atuais necessidades
nança global", assistiram preocupados o que aconteceu com a Or- de expansão do mercado global e de ocupação de mercados nacio-
ganização das Nações Unidas (ONU), essa decadente matriarca de to- nais dominados possam ser controladas burocraticamente, com a
das as organizações internacionais. Depois da intervenção militar uni- lentidão das antigas regras de acordos multilaterais etc.
lateral dos EUA no Iraque, pouca gente ainda acredita que a ONU é Doravante, qualquer organização do comércio internacional tem
uma coisa relevante para a nova ordem imperialista do século XXI, um que ser muito mais um instrumento de superação das potentes crises
espaço relevante para aquelas idiotice pequeno-burguesas de globais do que propriamente um instrumento para a expansão da
"gouernança global" etc. Pouca gente ainda acredita naquelas boba- globalização, quer dizer, para o desenvolvimento estrutural das econo-
gens de um ultraimperialismo bonzinho e pacífico, de um "império sem mias nacionais dentro de uma certa ordem capitalista global. Qualquer
Roma" e tantas outras bobagens da propaganda burguesa de fim de retomada de crescimento das economias dominadas da América do
século que sobreviveram até a explosões de 200l. Sul, por exemplo, só poderá acontecer como um resíduo desse movi-
Agora é a vez do crepúsculo da OMC, deste outro elefante bran- mento de superação das crises globais. A impossibilidade de blocos
co da globalização restringida do século passado. Ela perdeu sua econômicos regionais, como o Mercosul, e de acordos comerciais
utilidade com algo novo no comércio internacional: um apro- multilaterais, como a ALCA, será determinada por essa nova realidade
fundamento radical do monopólio industrial e tecnológico da eco- que surgiu na esteira do último choque cíclico da virada do século.
nomia americana, massacrando até mesmo as economias domi- As pressões para o enfraquecimento (e desorganização) dos antigos
nantes da União Européia e o Japão. Conseqüência: esse unila- organismos de controle do comércio internacional só poderiam partir
teralismo tecnológico provocou uma atroz concentração e depen- do governo dos EUA, quer dizer, das necessidades nacionais (e ne-
dência do comércio internacional ao mercado interno dos EUA. cessariamente egoístas) daquela economia em que se localiza o olho
Todos os caminhos e rotas do comércio intemacionallevam à Roma. do furacão das crises globais. Pela primeira vez na história, abre-se
Com uma queda significativa das exportações para o mercado um processo em que as novas modalidades de organização do comércio
americano, as economias da Alemanha, do Japão (e da China, apenas internacional devem atender estritamente às necessidades imediatas
para ficar nas maiores exportadoras e importadoras do mundo) iriam de uma única economia nacional. É o aparecimento desse novo pro-
à falência. Do mesmo modo que as suas maiores empresas, que reti- cesso que torna irrelevante a existência da velha OMC e outras
ram mais da metade dos seus lucros operacionais globais das subsidiá- burocracias semelhantes.
rias instaladas no território dos EUA- as japonesas concentrando-se mais
Protecionismo dos ricos e colaboracionismo dos pobres
na costa do Pacífico e as européias mais no leste e meio-oeste.
Não houve nem o comunicado final no encerramento da gran-
Quando as condições materiais mudam, as superestruturas desa- de reunião de ministros da OMC no final de 2003. Não poderia
bam depois de um certo tempo. O que se assiste aqui é um esface- haver nada mais revelador do fracasso da mais alta burocracia
lamento dos antigos instrumentos imperialistas de organização do de mais de 140 países reunida no balneário mexicano de Cancun.
comércio internacional, do mesmo modo que a geopolítica de uma Ficaram discutindo por mais de dez dias e não acordaram nem
única superpotência já provocou o esfacelamento dos instrumentos um protocolar comunicado conjunto. Nem uma mísera declara-
de decisões imperialistas que ainda funcionavam na ONU. ção de intenções de que devem continuar as discussões da cha-
Essas organizações burocráticas internacionais ainda poderiam mada Rodada de Doha, iniciada no ano passado e que regrediu à
continuar funcionando como antigamente se aquele desdobramento estaca Zero nesta reunião no México.
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o balanço da segunda cremação seguida de uma veneranda tratada como um novo pária do mercado mundial? É bom começar
organização internacional em menos de nove meses ficou por conta a se acostumar com essa realidade. Imagine como Mr. Yuter, represen-
de notícias e comentários na mídia mundial. Como os do inteligen- tante dos fazendeiros dos EUA, deve se sensibilizar com a choradeira
te comentarista econômico (coisa raríssima nos dias de hoje) Alherto do governo brasileiro e sua má fia do agrobusiness nacional contra
Tamer, que resumiu bem a situação em sua coluna no jornal O os subsídios do governo americano aos seus conterrâneos.
Estado de S. Paulo. Começando pelo título: Após Cancun não há
Esse problema do protecionismo agrícola é um pouco
mais nada e Brasil deve sair lutando. E mais:
complicado. Acontece o seguinte: são produzidos anualmente nos
«Todomundo sai falando tudo. Analisando, porém, entrevista por entre- EUA 220 milhões de toneladas de milho, 120 milhões de trigo,
vista, chega-se à conclusão de que o sistema de negociações 80 milhões de soja, e assim por diante. Para sustentar essa pro-
multínacionais, as OMCs da vida, estão superados e não se aplicam
dução, o governo dos EUA banca a massa de lucro e a renda
mais ao mundo globalizado. Desde 1995, quando se criou a organização,
o mundo passou por três crises financeiras, guerras, terror e, agora, os fundiária dos seus fazendeiros e proprietários territoriais. A mes-
paises industrializados se fecham numa luta desesperada para voltar a ma relação ocorre entre os governos europeus e japoneses e seus
crescer. Os países pobres ficam mais pobres, os importantes ricos fica- fazendeiros e proprietários fundiários. Tem muita gente que ain-
ram mais ricos e a OMC, impotente, está sendo posta simplesmente à da não entendeu a particularidade da produção agrícola no regi-
margem." (O Estado de S. Paulo, 18/09/2003)
me capitalista. Por isso, é difícil entender que, ao contrário da
Além da sua objetividade e clareza de estilo, o velho Tamer ain- produção de bens de luxo e de armamentos, a produção de ali-
da nos fornece de brinde declarações de importantes atores envol- mentos é um tipo de produção inadequada geneticamente com a
vidos e que esclarecem melhor o que está verdadeiramente em jogo, valorização do capital, quer dizer, a produção de alimentos é
quer dizer, o que deve marcar as novas condições e o futuro do totalmente incompatível com a produção de lucro.
comércio internacional. Começando pelo Sr. Robert Zoelick, o todo Alguns, como os atuais representantes do Itamaraty, talvez este-
poderoso representante comercial dos EUA. Quanto às futuras re- jam apenas fazendo de conta que ainda não entenderam essa lei
lações dos EUA com a OMC, ele informa com toda crueza que: da acumulação capitalista. Têm então o caminho livre para imagi-
"Nôs estamos começando a nos movimentar para outro lado. Estive- nar que o mercado de produtos agrícolas pode ser tratado como o
mos sempre engajados na OMe, mas não vamos esperar para sem- mercado de um produto qualquer. Para eles, uma fábrica de frangos,
pre". Concretamente falando: depois do fracasso de Cancun, os de ovos ou de queijos segue a mesma lógica de uma fábrica de ra-
representantes imperiais estavam rifando publicamente a OMC. dares, aviões de combate, automóveis, ou de televisores, ou de brin-
Vejam o que diz esse outro importante representante comercial quedos, ou de pílulas anticoncepcionais etc. Serão então sempre
dos EUA, seu secretário da Agricultura, o barra-pesada Clayton incapazes de entender por que a propriedade territorial (e a cor-
Yuter: "Minha hipótese é que nunca mais vamos ter uma reunião respondente produção agrícola) capitalista é tratada por esses países
multilateral. Não iremos mais passar por isso." Mas como seria dominantes como uma questão de Estado e não de mercado.
para ele a nova organização do comércio internacional? Yuter pre- Sem subsídio estatal, não haveria produção agrícola no regime ca-
vê a criação de um grupo de 18, mas só de países industrializados pitalista. Essa é uma lei geral. Pode-se admitir a produção industrial
em vez de se reunir numa mesa com os 148 da OMC, quase todos urbana sem grandes subsídios nas economias dominantes, pelo me-
"banquirrotos" que podem chegar a até 200 ... nos nos períodos de prosperidade dos lucros. Mas não se pode nunca
As economias da América do Sul estão contabilizadas entre os imaginar a existência do Estado japonês sem a proteção permanente
200 "banquirrotos" denunciados pelo do Sr. Yuter? Não duvidem à sua produção de arroz, do Estado europeu à sua produção de trigo
disso .. Quer dizer que, com essa repentina obsolescência da OMC, e, finalmente, do Estado americano à sua produção do com belt
mesmo o Brasil, a maior economia da América do Sul, poderá ser [cinturâo do milho].
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Em resumo: o protecionismo agrícola no mercado mundial não é Tratados de Livre Comércio (TLCs). Arquiva-se então o projeto da
um problema econômico como outro qualquer. É um problema velha ALCA, cuja estrutura era a de um acordo multilateral (em
imediatamente político e social que não pode ser objeto de nenhum que todos os países se reúnem e decidem democraticamente regras
tipo de acordos multilaterais ou de aberturas liberalizantes de mer- comuns para todos) e parte-se para a corrida dos acordos bilate-
cados das economias dominantes para certos gêneros agrícolas das rais, dos TLCs, em que um país faz acordo isolado com outro país
economias dominadas. Os governos das economias dominadas - sem se importar com a situação dos outros.
como os do Brasil, da Rússia, da Índia e da China, apenas para
A chamada "ALGA Iight" representa uma pesada reviravolta dos
listar aquelas economias com territórios e populações continentais
EUA na sua estratégia de integração hemisférica. Acontece que as
- insistem neste espetáculo mistificador de que estão lutando con-
circunstâncias que levaram os EUA a imaginar um grande acordo
tra o "protecionismo dos ricos". Na verdade, fazem esse espetáculo multilateral para o comércio nas Américas não são mais as mesmas.
apenas para esconder da sua população faminta e desempregada A expansão triunfante da globalização econômica, de um lado, e o
que eles estão mais do que dispostos a continuar abrindo e cosmopolitismo como doutrina nas relações internacionais, de ou-
desregulamentando seus mercados internos para satisfazer as ne- tro, sofreram sérios abalos com o forte choque cíclico que atingiu o
cessidades financeiras e industriais dos seus patrões imperialistas.
mercado mundial a partir do segundo semestre do ano 2000. Já
Depois da ONU, da OMC, da ALCA... tratamos desse assunto.

Durante quase dez anos, o projeto para a implantação da Área Como resposta aos estragos provocados por aquela recente crise
de Livre Comércio das Américas (ALCA) consumiu uma montanha em sua economia nacional, os EUA estão difundindo dois ingredientes
de reuniões, projetos, preparativos e discussões sem fim. Não deu altamente explosivos na agenda internacional: o protecionismo econô-
em nada. Recentemente, reunidos na cidade americana de Miami, mico e o realismo político. O primeiro fragmenta aquele modorrento
os representantes dos EUA e do Brasil decidiram que não tinham quadro da globalização econômica das últimas décadas do século pas-
mais nada para discutir'": sado. Já a doutrina do realismo político desloca com muita rapidez o
eixo das relações internacionais - até recentemente mediadas por gran-
A montanha pariu um rato. No encerramento do encontro, os
des organizações multilaterais - para o unilateralismo e às velhas ali-
34 países participantes publicaram um texto com o pomposo título
anças militares e choques entre Estados nacionais.
de Declaração de Miami, É a base do que acabou sendo chamado
de ~~GA light:", que traz um cardápio genérico de obrigações, Trata-se de uma contradição em processo. Esse engessamento da
permitindo que cada um dos países envolvidos tenha liberdade de globalização e do multilateralismo da segunda metade do século passa-
escolher pontos adicionais ou apenas aqueles que deseja aderir de do não é um congelamento absoluto do mercado mundial, mas um
acordo com seu interesse particular. movimento, um acelerado processo de fragmentação econômica e
A montanha pariu um rato. O pior é que esse rato é muito mais geopolítica nas relações internacionais. Trata-se, em seu fundamento,
perigoso para a América do Sul e para o Brasil do que aquela mon- de uma aguda manifestação da contradição entre os interesses particu-
tanha que vinha sendo projetada até a reunião em Miami. Acontece lares das diferentes burguesias e seus Estados nacionais ameaçados
que com essa tal de ~~GA light" vai rolar doravante um vale-tudo pelas sucessivas crises econômicas de um lado e, de outro lado, as ne-
nas relações entre os EUA e o restante das Américas. A diplomacia cessidades de expansão ininterrupta do capital internacional.
dá um nome para esse vale-tudo: acordos bilaterais, os famigerados O aprofundamento desse processo de ressurgimento do Estado
nacional - entravando a anterior livre globalização do capital e o
festejado "renascimento" da civilização dos anos 90 - dependerá
34. "Os Estados Unidos e o Brasil encerraram antecipadamente as conversações
destinadas a criar um acordo comercial de 34 nações depois de concluírem que do peso das próximas crises econômicas globais e da forma como a
havia pouco a mais a discutir." (The New York Times, 21/11/2003) economia americana procura se recuperar dessas crises.
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Já se presencia nas diversas áreas geoeconômicas mundiais uma cional - entre Celso Amorim, ministro das relações exteriores do
série de conseqüências práticas desse novo processo global. Uma Brasil, e Robert Zoellick (responsável pelo comércio exterior dos EUA),
das mais importantes é essa guinada radical dos acordos multilaterais uma semana antes do início da reunião da ALCA em Miami. Foi em
e das correspondentes organizações internacionais para os acordos Washington que a '~GA light" foi sacramentada. A reunião de Miami
bilaterais. A <~GA light" exprime perfeitamente essa guinada dos EUA foi apenas uma formalidade, uma rapidíssima formalidade.
na imposição dos seus interesses imperialistas na América do Sul.
Se o poder de fogo dos EUA já era muito grande no acordo multi-
o quinta-coluna da ALCA lateral que era negociado com a velha ALCA, ele toma-se avassalador
no mano a mano dos acordos bilaterais. Aliás, essa briga de porco
a inacreditável colaboracionismo do governo brasileiro com o de acordos bilaterais já está rolando a todo vapor. A '~GA light"
poder imperial abre ainda mais as fronteiras da América do Sul nem tinha ainda sido oficializada e os EUA já estavam anunciando
para a destruição econômica e o avanço militarista dos EUA. Publi- acordos fora da ALCA com países andinos:
camente, o presidente da República declara que essa tal de <~CA
light" é uma grande coisa para o Brasil "O Departamento de Comércio dos Estados Unidos anunciou nesta ter-
ça-feira, em Miami, o início de negociações para acordos bilaterais com a
"O presidente Luiz lnácio Lula da Silva disse que o acordo da ALGA fe- Colômbia, o Peru, a Bolívia e o Equador. Com isso, os Estados Unidos dão
chado em Miam i pelos 34 países do bloco econômico é muito bom para o o primeiro passo para fechar um acordo de livre comércio com a Comunida-
Brasil. 'Hoje, foi com alegria que eu vi o meu ministro Celso Amorim de Andina, com exceção da Venezuela, ampliando sua ofensiva de nego-
fazendo aquilo que nós sonhávamos: fazer a ALGA apenas naquilo que é ciações bilaterais na América Latina." (BBC Brasil, 20/11/03)
possível e o restante vamos brigar na aMC', afirmou nesta sexta-feira,
em discurso aos lideres dos movimentos pela reforma agrária." (O Estado Cerca de seis meses antes, os EUA já tinham oficializado com o
de S. Paulo, 21/11/2003) Chile outro acordo bilateral, que será o modelo para os demais acor-
dos na América do Sul.
a que esse infeliz está querendo dizer? Essa declaração aparen-
temente ingênua comete um enorme erro e esconde um grave pro- Mas essa aplicação da "ALGA light" na região andina vai além dos
blema. a enorme erro é que o presidente ainda fala da aMC como interesses meramente comercias dos EUA. Representa uma nova ofen-
se aquela velha organização internacional ainda fosse uma coisa siva da sua estratégia geopolítica e militar para toda a América do
muito importante. Mas todo mundo sabe que a aMC já foi sepul- Sul. Os dois alvos imediatos são as Forças Armadas Revolucionárias
tada, em termos práticos, no grande fracasso que foi a sua última da Colômbia (Farcs) e o governo da Venezuela.
reunião em Cancun, no México, como já vimos anteriormente.
Não é por acaso que o presidente da Venezuela rebelou-se publica-
a grave problema que o sempre alegre presidente do Brasil escon- mente contra as maracutaias diplomáticas arquitetadas entre os EUA
de é que, para ele e para o Itamaraty - que escreve os discursos e e o governo brasileiro, que abrem caminho para mais uma rodada
declarações para ele ler -, nas Américas existe os EUA e ... os outros do rolo compressor imperialista na América do Sul:
países. Encontramos aqui um comportado serviçal da famigerada
"rNâa queremos nem ALGA nem ALCA light', reafirmou nesta quinta-
Doutrina Monroe, que estabeleceu já no século XIX que "a América feira o presidente da Venezuela, Hugo Cháuez, Foi assim que se manifes-
é dos americanos". O presidente do maior país da América do Sul tou sobre a posição de Brasil e EUA em reduzir o alcance da área de livre
procura esconder como pode que a diplomacia brasileira cedeu a comércio. O presidente venezuelano ainda se queixou dos acordos alinha-
essa velha doutrina imperialista quando resolveu "flexibilizar' as vados em Miami. Ele também não gostou nada do fato do Brasil e EUA
terem se reunido numa mini-reunião de cúpula em Washington para tra-
suas pretensões a um acordo multilateral para as Américas. Sem
tar do tema: 'O que foi isso, afinal? Nós levantamos nossa voz de protesto.
nenhuma luta. Bastou uma "reunião de cúpula" em Washington - Ninguém vai nos impor um acordo. A Venezuela é um país que tem digni-
noticiada pela BBG Brasil, dentre outros órgãos da mídia interna- dade'." (BBCBrasil, 28/11/03)
152 153
Que bela lição para um bando de malandros e oportunistas
que, quando conseguem assumir os governos, a primeira ação di-
plomática é empestear ainda mais a América do Sul com o deslavado
colaboracionismo imperialista! Essa revolta de Hugo Chávez - que
chega a elogiar na entrevista o ex-presidente brasileiro Fernando
Cardoso, dando a entender que este pelo menos não estava dis-
posto a trair com tanta ligeireza os compromissos do Brasil com o Capítulo 10
projeto de uma integração dos países da América do Sul - é um
alerta muito claro de que o atual governo brasileiro terá crescentes
dificuldade para manter a confiança e a credibilidade que até re-
UMA GUERRA
centemente ele ainda tinha com seus vizinhos da América do Sul. EM PROCESSO

A experiência mostra: quando a política externa domina a vida


pública, é a questão militar que prevalece sobre a economia. Mas
não é só isso. Maquiavel já dizia que os príncipes erguiam fortale-
zas não contra o inimigo exterior, mas contra o inimigo interior, de
modo que o perigo externo não passa de um diversionismo e uma
mistificação das lutas de classes interiores.
Os EUA de George W. Bush é uma ilustração prática destes
princípios da ciência política. Na sua base, uma situação econômi-
ca cada vez mais ameaçadora. Um mundo que se desequilibra ".
Até a metade de 2002, a recuperação da economia americana ainda
não estava garantida. No mês de junho daquele ano, segundo dados
do Departamento do Comércio dos EUA, as encomendas de bens de
consumo duráveis caíram 3,8%, bem mais que as expectativas do
mercado, que era de uma queda de apenas 0,7%. A demanda caiu em
todos os setores, com exceção da "defesa", com gastos cada vez maio-
res com a "guerra contra o eixo do mal".
Mas o pior é que as encomendas de máquinas e equipamentos
(bens de capital) diminuíram 6,7%, a maior queda desde fevereiro
de 2000. Isso mostrava que os capitalistas continuavam com o pé
no freio dos investimentos. Pesquisas privadas indicavam que os

35. "De repente, o mundo está se desequilibrando de novo. As tensões geopolíticas


continuam em ponto de ebulição e a recuperação da economia global parece, na
melhor das hipóteses, incerta." (Stephen Roach, economista-chefe do Banco Morgan
Stanley, O Estado de S. Paulo, 25/06/2002)

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investimentos fixos - que além de máquinas e equipamentos inclu- sões de contratar ou investir. O problema não são as altas taxas de
em gastos com edifícios e instalações - cairiam 5,1% no ano. Re- juros. Mais importante para nós é o uso da capacidade, que ainda
corde-se que nos longos períodos de crescimento dos anos 90 os está muito baixo, em conseqüência da fraca demanda', afirmou
Hol/and. A Butler planeja cortar os gastos de capital pela metade."
capitalistas americanos investiram o dobro em fábricas e equipa- (Bloomberg News, 23/08/2002)
mentos do que na década anterior. Agora, nesse início de uma
nova década, estavam reduzindo esses investimentos para a meta- As reduções da taxa de juros já tinham completado o seu traje-
de do que faziam até a eclosão da crise. to, "run their course", como diz Richard Simmons, diretor finan-
ceiro da Champion Parts Inc., com sede em Hope, Arkansas, que
Tudo isso acaba mexendo na taxa de utilização da capacidade
recondiciona carburadores e outras autopeças:
instalada, uma variável altamente estratégica não só para a recu-
"Não temos nenhuma intenção de comprar qualquer tipo de bens de capital.
peração dos investimentos como para o nível de emprego da força
O que a companhia ainda está querendo é vender a planta da Pensilvânia,
de trabalho. Em julho daquele ano, essa taxa tinha caído para fechada em março, devido ao excesso de capacidade", complementa
74,4% nas manufaturas. Simmons. (Bloomberg News, op. cit.)
Aqui acontecem duas coisas. A primeira é que os capitalistas só Quando isso acontece, é sinal que a economia já está flutuan-
começam a investir em fábricas e equipamentos novos quando a taxa do no perigoso território da "armadilha da liquidez", assunto que
de utilização da capacidade alcançar 80%. Pelo menos foi o que acon- tratamos anteriormente. Não há mais espaço para reduções de
teceu nas recuperações das crises de 1980/1982 e 1990/199l. juros. Já chegou no fundo do poço. Como no Japão. O que faria
A segunda é que uma queda desta taxa abaixo de 70% faria a taxa Keynes, então, frente a essa situação deflacionária se ele fosse o
de desemprego, naquele momento em 6%, pular instantaneamente atual presidente dos EUA, já que o presidente do Banco Central
para 11% ou 12% da população economicamente ativa. O gover- não tinha mais nada que pudesse fazer? Em primeiro lugar diria:
no americano precisaria, neste caso, de mais de um Saddam e "No longo prazo estaremos todos mortos. Portanto, perdido por perdi-
muitos outros Bin Ladens para segurar a barra doméstica. do, vamos aumentar imediatamente a demanda agregada da econo-
mia para eliminar a capacidade ociosa da indústria nacional."
Diálogo com os mortos
Mas como isso se passa na prática? (~través da elevação do
Se John Maynard Keynes, o badalado ideólogo dos economistas de
déficit público e aumento das despesas do Estado com a guerra".
Estado e da burocracia em geral, fosse o presidente do Banco Central
Mas não era exatamente isso que estava sendo feito pelo filósofo
dos EUA naquele momento, o que ele faria para enfrentar a situação?
texano George W. Bush, atual presidente dos EUA? Aliás, uma
Com certeza abaixaria, com muita rapidez, a taxa referencial de juros da
coisa que não poderia ser feita por todos os governos. Como os do
economia. Mas foi exatamente isso que Alan Greenspan, o atual
Japão e da Alemanha, por exemplo, cujas economias nacionais
presidente do Fed, fizera nos 18 meses anteriores: rebaixou a taxa de
estão fadadas a uma enorme derrocada econômica nos próximos
juros para o menor patamar nos últimos 41 anos!
anos se não iniciarem imediatamente suas próprias produções nacio-
Esse infalível estimulante keynesiano para a "decisão de investi- nais de armamentos e suas próprias guerras. Por enquanto não
mentos" dos capitalistas estava funcionando? Deixemos que os podem, pois continuam ocupadas por bases e tropas militares ameri-
próprios capitalistas respondam: canas. Mas essa é uma situação que deve se modificar com rapi-
''John Hol/and está reduzindo a compra de equipamentos este ano na dez ainda nesta primeira década do século.
Butler Manufacturing Co., construtora centenária de edifícios pré-fa- O resultado dessa política econômica bush-keynesiana podia
bricados, e as taxas de juros baixas não chegam a fazê-Ia mudar de
idéia. Alguns economistas e investidores pressionam o Federal Reser- não ser o melhor para os trabalhadores dos EUA e a sua produção
ve a reduzir sua taxa de juros referencial pela 12° vez desde o começo nacional. Mas pelo menos para o complexo militar-industrial e a
do ano passado. (Isso não faria nenhuma diferença em nossas deci- especulação financeira os lucros eram imediatos:
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"Os bônus da Lokheed Martin Corpo apresentaram fortes altas, depois Quanto custa uma guerra?
que os investidores arrebataram títulos de dívidas de empresas do setor
de defesa, em meio a maior preparação militar nos Estados Unidos desde Exatamente no dia em que se tentava ser patriótico nos EUA,
a Guerra do Vietnã. Os bônus da Raytheon Co., Northrop Grumman Corpo com o governo e mídia encenando um grosseiro espetáculo de como-
e Boeing Co. também subiram mais do que os índices gerais, à medida que ção nacional pelo primeiro aniversário dos atentados de 11 de se-
os Estados Unidos caçam' tropas do AI Qaeda na guerra contra o terrorismo tembro, o Fed (Banco Central dos EUA) resolveu publicar um relató-
e cogitam invadir o lraque para derrubar Saddam Hussein. 'Uma guerra rio mostrando que a economia estava desacelerando. No livro bege -
mais ampla seria boa para essas empresas porque o governo gastaria mais',
comentou fim Fields, que possui títulos da Boeing entre os US$ 2,3 bilhões como é conhecido o relatório mensal sobre o estado da economia e
sob administração na Wright Investors. Os investidores apostam que mais que serve de base para as decisões do Fed de política monetária,
dinheiro será destinado à fabricação de armas e sistemas, o que benefici- taxas de juros etc. -, Alan Greenspan e equipe informavam o seguinte:
ará os cofres das empresas como a Lookheed Martin e United Tecnologies
Corpo Neste mês, o senado dos Estados Unidos votou pela elevação do - a economia tinha desacelerado nas seis semanas anteriores,
orçamento de defesa para o próximo ano em 13%, para US$ 355 bilhões, ao ser pressionada pela lentidão da produção industrial e por
o maior aumento desde 1966, quando Lyndon fohnson foi presidente. 'O pouco ou quase nenhum acréscimo do emprego.
mercado leva em conta nos preços um aumento nos gastos militares', afir-
mou Sasha Kamper, analista do setor militar da Principal Capital Income - embora o aumento das vendas de automóveis e de casas
Investors. 'Não estou certo se o mercado se importa se isso está em um tivesse suportado a recuperação iniciada no primeiro semes-
contexto de uma guerra mais ampla ou de uma maior defesa doméstica' tre, os capitalistas industriais estavam menos otimistas do
afirmou. " ( BloombergNews, 23/08/2002) que no começo do ano. Suas fábricas estavam em dificulda-
Era hora do Sr. Sasha ler (ou reler) Maquiavel para entender me- des e não contratando operários.
lhor as relações desta trilogia do terror: economia - defesa doméstica - - o setor manufatureiro americano estagnou em agosto de 2002,
guerras mais amplas. Descobriria que à medida que aumenta o dese- com as encomendas declinando pela primeira vez em nove
mprego de capital e de trabalho e as pressões sociais domésticas ficam meses, indicando que a recuperação podia estar perdendo
maiores para os capitalistas, maiores serão os seus impulsos de in- força. '~ recuperação será acidentada", concluía enigmatica-
cendiar o mundo com guerras internacionais cada vez mais amplas. mente o relatório do Fed.
Descobrira também que, por enquanto, a eclosão de uma nova Os alertas de que os EUA estavam entrando no terreno movediço
guerra civil americana ainda se gesta em complexos movimentos ma- da estagnação não pararam por aí. No dia seguinte à divulgação do
teriais da sua base econômica nacional. Com mais rapidez do que livro bege, falando perante a Comissão de Orçamento da Câmara
antes, é verdade. Seu sintoma principal era, naquele início de recupe- de Deputados daquele país, Greenspan alertou para a nova e pe-
ração, uma crônica incapacidade da "América Corporativa" voltar a rigosa armadilha do déficit público, que ressurgiu com força inu-
produzir valor e capital em volumes adequados a um novo e vigoroso sitada na superação do ultimo período de crise, na virada do ano.
ciclo de expansão global. É por isso que, em curtíssimo prazo, só
havia uma medida a ser tomada pelos criativos capitalistas Os EUA registraram superávit pela última vez no ano fiscal terminado
americanos: incendiar o Iraque e todo o Oriente Médio. Os prepara- em 31 de setembro de 2001. O perigo então era que os EUA já não
tivos já estavam mais do que avançados. (~ maior preparação militar contavam mais com essa estratégica munição anticíclica. Já vimos
nos EUA desde a Guerra do Vietnã", como vimos na descrição da anteriormente que, sem aquele superávit, os EUA dificilmente teriam
Bloomberg News, já estava em ponto de bala. escapado de uma depressão na virada do ano 2001. Talvez Greenspan
estivesse pensando nisso. Não só nisso. Estaria pensando que eles
- Viva a guerra! - gritam os orgulhosos patriotas americanos. também já não tinham mais aquela outra estratégia munição sob sua
- ,A Nação, o Estado, o dólar e Wall Street têm que viver! - responsabilidade, a taxa de juros do Fed, cuja política monetária
completam os economistas liberais e keynesianos. estava com a corda da armadilha da liquidez amarrada no pescoço.
158 159
s.
Agora, naquele ano fiscal de 2002 que se encerraria em 31 de pentágono avaliava em US$ 50 bilhões. Existiam outras avalia-
setembro, as projeções do próprio governo indicavam que o défi- ções de dentro do governo que iam bem mais 10nge38•
cit público não ficaria abaixo de US$ 165 bilhões. Seria o primei-
Existia também o custo geopolítico. Dessa vez, os EUA arcariam
ro déficit desde 1997 e o maior desde 1994. Para o ano fiscal
com pelo menos 90% das despesas. Em 1991, arcou com apenas
seguinte, o déficit poderia alcançar US$ 250 bilhões. Já seria de
20% da conta. O resto foi pago pela coligação de cerca de 30 nações
aproximadamente 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) de 10 (Alemanha, Japão, França, Arábia Saudita e outros aliados de época)
trilhões. Estaria próximo dos perigosos níveis da Alemanha, Japão
que agora não estavam apoiando a nova campanha decidida unilate-
etc. Em resumo, a maior economia do planeta estaria novamente
ralmente por Washington.
com seus fundamentos macroeconômicos altamente danificados.
Por isso, eram tão importantes os números apresentados no últi- Pra lá de Bagdá
mo livro bege e o alerta de Greenspan para o crescimento do
O problema do governo americano é que seu cofre estava se mostran-
déficit público. O problema aparecia ainda maior quando se con-
do muito pequeno para bancar a construção de um império de mil anos.
siderava que nos números acima não estavam previstas as despe-
Mas os dados estavam lançados. Essa guerra poderia ser um excelente
sas adicionais da guerra contra o Iraque, que deveriam coincidir
antídoto para a superação da perigosa crise econômica que continua
com o novo ano fiscal americano'",
pairando sobre a economia global. Mas não basta querer (e fazer) uma
Mas quem quer fazer guerra precisa de dinheiro. De muito dinhei- guerra para curar a enfermidade. Esse remédio não é uma panacéia
ro. Sempre foi assim. E foi no trato desta equação entre economia e milagrosa e automática. Ele é cheio de sutilezas. Para ser eficaz,
guerra, entre manteiga ou canhão, que as grandes potências precisa ser ministrado na hora certa, na composição certa, na dosa-
atingiram o máximo de ascensão, antes de iniciar o caminho de gem certa etc. Não é por acaso que a guerra sempre foi tratada como
volta, da abrupta queda-", Todas se imaginavam construindo um arte - "a arte da guerra", como já diziam os sábios ancestrais chineses.
império de mil anos! A Inglaterra, antiga potência do século XIX, é
Bush estava demorando demais para iniciar a invasão do Iraque.
um dos casos mais recentes. Hoje ela sobrevive como pode, na
Isso poderia ser fatal para a economia americana. Nunca uma guerra
desonrosa figura de prostituta geopolítica dos EUA, a grande po-
foi tão anunciada. Nem tão prorrogada. Mas esse descompasso não
tência imperialista atual. Mas esta última também precisa tomar
estava ocorrendo por acaso nem por falta de vontade dos estrategis-
cuidado com sua arriscada política externa atual (unilateralismo
tas texanos que cercavam George Bush de liquidar rapidamente a
geopolítico, por exemplo) para não apressar sua hora.
fatura. O que transparecia no meio de um caótico emaranhado
Mas, afinal, quanto essa nova guerra no Iraque custaria aos geopolítico que não parou de crescer nos meses anteriores eram algu-
EUA? Antes dela se concretizar, era muito difícil fazer esse cálcu- mas velhas lições de estratégia militar, para as quais esses grosseiros
lo. Dependia de quanto tempo ela iria durar e de outros desdo- terroristas de Washington não estavam bem preparados.
bramentos imprevistos. Mas podia se avaliar que custaria no
Quem quer ser dono sozinho do mundo tem que pagar sozinho
mínimo US$ 80 bilhões , o que custara em preços atuais a Guer-
a conta. Essa deveria ser a primeira lição da política unilateral
ra do Golfo de 1991 (US$ 60 bilhões em preços da época). O
americana recentemente inaugurada nas relações internacionais.
Pelo menos o governo da Turquia, deste fantasma que restou do
36. '~s previsões foram feitas sem incluir qualquer gasto adicional em caso de
. guerra com o Iraque. Embora o presidente dos EUA, George W. Bush, e outras
autoridades governamentais falem reiterada mente em tirar o líder iraquiano Saddam 38. '~ guerra com o Iraque pode custar até US$ 200 bilhõ~s, ~st~m~ ~ c~efe dos
do poder, os gastos com uma campanha militar não estão incluídos no orçamento da assessores econômicos de Bush, Lawrence Lindsey. A estimativa e significativarnen-
atual administração." (Bloomberg News, 10/09/2002) te maior que a anterior, calculada privada mente pelo Pentágono, em torno de US$
37. Kennedy, 1989. 50 bilhões." (The Wall Street Journal, 16/09/2002)

160 161
velho império turco-otornano, conhece bem essa velha lição. E pa- Eram preparativos para o desdobramento da guerra que vma a
ra começar, porque tinham coisas muito mais importantes para se seguir. Acontece que o governo de Teerã (o segundo da lista de três
acertar, os turcos aproveitaram-se da situação para faturar uma do "eixo do mal" apontado por Bush) já não tem mais dúvidas que
boa grana em cima dos apressados americanosê". o dominó da guerra está mais do que inclinado para seu lado.
A chantagem em dinheiro dos turcos era o menos importante. O Também já se noticiava que até os famigerados "inspetores da ONU~'
que realmente importava é que a Turquia é peça chave no jogo já estavam querendo vasculhar as instalações iranianas em busca
geopolítico e bélico mais amplo do novo período de guerras imperialis- de armas químicas de destruição em massa etc.
tas. A invasão e o esfacelamento do lraque é apenas o começo desse Quando se afirma que a atual invasão do lraque vai provocar
novo período. Por coincidência, começa no coração daquele amplo uma explosão incontrolável em todo o Oriente Médio e região do
território que já foi controlado por muito tempo pelo antigo império Golfo, deve-se considerar também que o epicentro dessa explosão
turco-otomano. Mais que um território de passagem, os turcos têm o se localizará em grande parte exatamente naquela região norte do
KnOW how que os americanos precisam para garantir um mínimo de moribundo Iraque, e também que é dali que o QG imperialista
controle e governabilidade do norte do lraque para depois da inva- americano vai comandar a continuação do seu macabro carrossel
são e da deposição de Saddam. E mais, têm o know how que os de guerra, agora em direção à próxima parada, estação Teerã.
americanos precisarão para continuar a guerra em outras adjacências.
Mas o que importa para a nossa análise da economia do imperi-
Além de petróleo que não acaba mais, o norte do Iraque está coa- alismo é que essa continuação praticamente inevitável da guerra
lhado de curdos. Compõem a quase totalidade da população que vai custar muito, mas muito mais dinheiro do que os americanos
ocupa aquela região. É a partir daí que eles desfecham seus ataques tinham planejado e reservado para a invasão e a manutenção do
contra o governo turco. Com o apoio de Saddam Hussein nos últimos controle no atual território iraquiano. Esse cenário também não era
anos do seu reinado. Apoiados também pelo Irã, cujo noroeste do país nem um pouco parecido com aquele de "uma guerra rápida e bem
também é povoado por uma maioria de curdos. Nas últimas semanas sucedida" que os economistas de todos os matizes estavam contando
de janeiro de 2003, segundo as notícias que chegavam, comandos para uma pronta recuperação da economia americana e mundial.
militares xiitas que povoam o sul do Iraque se deslocaram para o
norte, preparando-se também para lutar na região, aliados aos curdos. Voltemos então para os cálculos econômicos. Dizíamos que quem
quer ser dono do mundo sozinho tem que pagar a conta. Muitos
cidadãos norte-americanos estavam tentando recalcular - depois
39. "Segundo The Washington Times, o Pentágono adiou para meados de março a data de devidamente notificados que seu governo pagaria um pedágio
para um ataque por causa da dificuldade de deslocar as forças terrestres e obter apoio
internacional.( ... ) O governo da Turquia desafiou ontem o ultimato dado pelos EUA e
de mais de US$ 25 bilhões para os turcos - quanto ainda iria sair
adiou para a semana que vem a decisão sobre a permissão para a entrada das tropas do seu bolso até que os soldados americanos e ingleses comple~as-
americanas no país - escolhido como uma das bases de lançamento de um possível sem suas invasões e ocupações territoriais no Oriente Médio, Asia
ataque ao vizinho Iraque. Os dois países divergem sobre a compensação financeira de Central... Não foi preciso de muito cálculo. O resultado já estava
Washington a Ancara pelos prejuízos que a guerra traria. O governo turco quer até
mesmo uma declaração por escrito dos EUA garantindo a entrega da ajuda. Apesar de na mão. Bastou olhar para o que o Sr. George Keynes Bush estava
na quinta-feira à noite o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, ter declarado que fazendo com os recursos públicos do seu país para se ter uma
esperava uma resposta de Ancara até o fim do dia de ontem, Gul manteve sua negativa idéia do estrago que essa história de imperialismo de uma só po-
à proposta americana de US$6 bilhões em ajuda financeira e US$20 bilhões em
tência pode causar sobre a sua própria população trabalhadora.
empréstimos. A Turquia quer uma quantia maior, da qual pelo menos US$l O bilhões
seria em ajuda e, segundo o The New York Times, possivelmente está incluindo na
barganha o direito de acesso à produção de petróleo da região de Kirkuk, no norte do Mais perigoso que dezenas de Saddams e AI Qaedas juntos
Iraque, e de manutenção de forças militares turcas no norte iraquiano, habitado pela
minoria curda. A Turquia teme que uma revolta dessa etnia leve os curdos turcos a Para quem vinha da Ásia para os EUA, nos primeiros dias de
também buscarem a independência." (O Estado de S. Paulo, 21/02/03) outubro de 2002, era bem mais seguro viajar pelo ar do que pelo
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mar. Pelo menos para o imenso fluxo de mercadorias que navegam além da exploração imperialista decorrente, desta vez das economias
por aquelas águas. Diariamente, bilhões de dólares em mercadorias dominantes sobre as economias dominadas - ALCA, FMI, Israel, Plano
provenientes da Ásia e outras partes do mundo são descarregados Colômbia ... Isso é necessário. Materialmente necessário. Sem a realização
nos 29 portos da Costa Oeste dos EUA, que vai de San Diego, divisa dessa determinação econômica geral, é impossível se pensar na renova-
com o México, ao sul, até Seatle, na divisa com o Canadá, ao norte. ção do capital e na retomada da sua reprodução ampliada, globalizada.
E do mesmo modo no sentido inverso.
Essa é também a razão mais profunda do atual estresse que está
Mas essa circulação de mercadorias foi seriamente prejudicada por dilacerando as condições sociais nos EUA. As recentes ações geopolíticas
uma greve dos trabalhadores naqueles portos da Costa Oeste. Durou dos capitalistas americanos e seu governo são conseqüências diretas
quase duas semanas. No dia 7 de outubro, já havia aproximadamente daquelas condições econômicas internas. Reencontramos aqui outra
200 grandes navios paralisados nos portos. Só nos de 10s Angeles e regra geral: as relações políticas internacionais e os seus desdobramentos
Long Beach, os dois maiores portos dos EUA, havia 120 navios geopolíticos reais são ritmados pelas possibilidades de crises sociais
aguardando para serem carregados e mais 13 estavam chegando. no interior dos Estados nacionais. Sempre foi assim. Já abordamos
A greve interrompeu boa parte da produção industrial americana e esse assunto, lembrando aquela lição que já estava presente em Ma-
asiática. Seus efeitos foram globaíst", O objetivo da greve era econômi- quiavel: os príncipes erguem fortalezas não contra o inimigo exterior,
co, puramente material: proteger os trabalhadores da estiva dos crescen- mas contra o inimigo interior, de modo que o perigo externo não passa
tes acidentes de trabalho, após cinco trabalhadores terem morrido em de um diversionismo e uma mistificação das lutas de classes interiores.
acidentes desde que foram implementadas reestruturações produtivas Naquele momento da greve, o perigo interno para os capitais ameri-
que vão acelerar o desembarque de contêineres e cortar empregos. canos estava passeando nos portos da Costa Oeste. Mais perigoso
Na base deste conflito particular, uma determinação material: para que dezenas de Saddams e AI Qaedas juntos. Era uma greve de traba-
superar a crise cíclica em curso, os capitalistas precisam aumentar a lhadores produtivos. Fazia tempo que não se noticiava uma greve de
taxa de exploração da classe operária mundial. O exército industrial de trabalhadores produtivos nos EUA. Essas greves são extremamente
reserva, mais globalizado do que nunca, precisa ser periodicamente didáticas. Pode-se verificar na prática como a produção do capital
reformado. Em todas as partes do mundo. Nesse processo econômico depende dos operários para continuar circulando e produzindo. Mas
especificamente capitalista, a classe operária residente nos EUA e em não apenas isso. Quando os operários param, como neste caso da
outras economias dominantes da Europa e Japão precisa se aproximar greve dos portos da Costa Oeste, os patrões e as leis do mercado não
cada vez mais das condições de existência daquela outra parte da podem sozinhos resolver essa ameaça para a livre circulação do capital.
classe operária que reside no Brasil, na Argentina, na China, na Rússia Como então resolver o conflito? Só a força resolve. A "força
e nas demais áreas e economias dominadas do sistema. legítima", como eles costumam embelezar com palavras a sua vio-
Em resumo, a economia capitalista só pode superar seus ciclos lência prática. Sempre foi assim também. Como aplicá-Ia? Basta
econômicos aumentando a exploração da classe operária mundial, chamar Bush para impôr as leis do Estado democrático:
{(O presidente dos EUA, George W. Bush, decidiu pedir ao departamento
de Justiça para que dê entrada a uma ordem judicial para re~brir os
40. "Os efeitos da greve espalharam-se pelo mundo. Na Ásia, Toyota, Honda Motor, portos da Costa Oeste, por um período de até 80 dias, intervzn~o ~a
Nissan e Hyundai Motors começaram a embarcar peças por avião, para manter disputa trabalhista que tem gerado um custo de cerca de US~ ~ bzlhoes
suas fábricas e centros de serviços nos EUA funcionado. A greve pode prejudicar o por dia à economia dos EUA. A decisão, que tem um custo polzt~co,deve
crescimento no Japão, Hong Kong e Singapura, já atingidos pela desaceleração de ser anunciada por Bush hoje e configura a primeira intervenç~o de um
2001. Na Europa, os trabalhadores nos portos podem se unir à disputa, boicotando presidente em uma disputa trabalhista nos últimos 25 anos, aczona~do a
muitas embarcações, afirmou Kees Marges, da Internacional Transport Workers Taft-Harley Act. datada de 1947, a legislação permite a.ogoverno inter-
Federatíon (Federação Internacional dos Trabalhadores em Transportes)." (Bloomberg vir, por até 80 dias, numa paralisação que coloque em rtsco a segurança
News,05/10/2002)
nacional e a economia." (AE-DowJones, 08/10/2002)
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Mas a violência política, do Estado, não pode substituir por muito çâo necessana para que a crise econômica não se transformasse em
tempo a violência econômica, do mercado. As razões fundamentais uma crise social, quer dizer, em guerra civil e, finalmente, na possibi-
do conflito não foram resolvidas com a repressão democrática, foram lidade real de revolução.
apenas abafadas. Poderiam aflorar com muito mais intensidade a
seguir se a economia de ponta do sistema continuasse deslizando Devagar com o andor...
para estagnação. Até algumas semanas antes do início da invasão do É para se livrar de uma guerra interna (guerra civil) que os
Iraque, a economia de ponta do sistema continuava patinando. Se a capitalistas americanos partem para a guerra externa. Essa opção,
produção industrial não avança, o valor agregado não aumenta, os como vimos, já tinha sido determinada pelas condições internas da
gastos com capital não se recuperam e a taxa geral de lucro continua sua economia nacional. E agora tendia a se generalizar. Tendia a ser
desabando. Na esfera da produção propriamente dita, os custos de cada vez mais global. Atualizava a antiga fórmula de Clausewitz:
produção eram pressionados pelo persistente aumento do preço do a guerra é a continuidade da política por outros meios". Nos perío-
CC

petróleo (16% só naqueles dois primeiros meses do ano), elevando dos de crise catastrófica - ou, como na experiência que estamos
os preços de produção (atacado). Na esfera da realização, as empresas analisando, na possibilidade concreta de que a catástrofe econômi-
do setor civil da economia (quer dizer, do mercado em sua forma mais ca aconteça -, a economia do imperialismo e a política internacio-
pura de existência) eram obrigadas a fazer promoções e dar des- nal tomam-se duas coisas cada vez mais unidas, cada vez menos
contos nos seus preços de mercado para vender seu produto e di- disfarçadas, ao contrário do que aparecia nos períodos de expan-
minuir seus estoques (automobilística, vestuário, eletroeletrônicos etc.). são da acumulação global e da coexistência pacífica nas relações
Nessas condições, os capitalistas acabam deduzindo de seus internacionais, principalmente no período da fajuta "Guerra Fria".
lucros, que já vinham pressionados pela crise, aquela elevação dos A guerra mundial deixa de ser considerada um resultado "fortuito"
custos de produção e dos preços de atacado. É por isso que, en- das condições econômicas para se tornar a própria continuidade
quanto os preços do atacado aumentam, os preços ao consumidor da política e da diplomacia internacional, para voltar à fórmula de
(inflação) diminuem. A inflação cede lugar para a deflação, concre- Clausewitz.
tizando assim uma queda ainda maior da taxa geral de lucro, em- Mas continuemos nas formas econômicas desse novo período
butida no preço global das mercadorias produzidas. que está se abrindo na economia do imperialismo. As despesas
Aqui aparece o problema social. Nesse movimento de desvalorização estatais tomam o lugar das despesas civis, na tentativa de que um
do capital, o desemprego formal e informal da força de trabalho aumento acelerado da demanda improdutiva faça os investimentos
continuava pressionando para baixo o salário e as condições de sobre- capitalistas privados serem arrastados a reboque e reverta o ciclo
vivência da classe trabalhadora vivendo nos EUA. Se essa situação de estagnação. Mas o que a situação da economia americana mos-
econômica persistisse por muito tempo, o crescente estresse social trava poucas semanas antes da invasão do Iraque é que esse rotei-
no interior daquela economia poderia explodir em muitas outras gran- ro não é nem um pouco automático. Ainda não mostrara nenhum
des greves operárias, movimento de massas e rebeliões sociais. Essa resultado. A economia não pegou no tranco. O único resultado foi
explosão poderia ser detonada porque a superação da crise econômi- manter a economia patinando em uma fina camada de gelo. Os
ca exigia, naquele momento, uma taxa de exploração bem mais ele- únicos ramos industriais que cresciam eram aqueles ligados à pro-
vada da força de trabalho para uma conseqüente elevação da taxa dução de armamentos e aos gastos em "defesa". Já era uma grande
geral de lucro. Esse aumento da miséria e da exploração da classe coisa. Evitou-se com isso um mergulho nas profundezas das águas
trabalhadora era a condição necessária e mais importante para que geladas. Mas ainda não era suficiente para uma retomada geral.
o capital se livrasse da sua crise mais recente e desse a partida para Essa índefinição tem limites econômicos, não pode durar muito
mais· um ciclo periódico de expansão. A capacidade política (Estado) tempo. As coisas aparecem ameaçadoramente, em primeiro lugar, na
~:: capitalistas de aumentar a exploração dos operários era a condi- explosão das contas públicas da economia. Para fazer a guerra, o
167
governo americano continuava aumentando suas despesas. Exagera- sentada antes de tudo como um espetáculo social. O mundo capitalista
damente. Começou a ficar mais claro o tamanho do rombo nas contas enquanto uma sociedade de espetáculo. O Armagedon é editado para
do Tesouro americano. Eram números assustadores. Seis meses antes, aparecer como um congelado "jogo de guerra". Como um videogame,
como vimos anteriormente, contabilizava-se que o déficit público da- um playstation que roda livre e solto em todas as telinhas e sites pelo
quela economia poderia alcançar aproximadamente US$ 250 bilhões mundo afora. Como uma arte barata, como um filme de Spielberg.
no atual ano fiscal de 2003. Já era perigosamente elevado, quase Mas além da te linha da CNN, tanto hoje como antigamente, a
2,5% do seu PIB de US$ 10,5 trilhões. Já indicava uma clara ameaça guerra é mais do que um jogo. É muito diferente de uma partida de
para o futuro do crédito público daquela economia e conseqüentemen- final de campeonato de futebol. Dependendo dos seus desdobramentos,
te para a principal moeda de reserva internacional, o dólar americano. pode revelar sua função revolucionária na economia do universo, quer
Agora aquele número tinha que ser atualizado para nada menos dizer, no desdobramento da história real da espécie humana. Foi neste
do que US$ 375 bilhões, o que corresponderia a aproximadamente sentido que Heráclito, titular absoluto de um reduzido time dos grandes
3,6% do PIB! Quem fazia a projeção era a insuspeita corretora Gol- filósofos da humanidade, chamou a guerra de "a mãe e a rainha de
dman, Sachs & Co, uma das 22 firmas que comercializam com o Fed todas as coisas", explicando que "a guerra e a justiça são conflitos e,
os títulos públicos do governo. Em menos de dois anos, a excelente por meio do conflito, todas as coisas são geradas e chegam à morte".
situação fiscal dos EUA acabou ficando pior que a da União Européia A guerra que estava se iniciando não se esgotaria e nem seria
(Alemanha e França) e Japão. decidida com a entrada espetacular das tropas americanas em Bag-
Mas foi com aquela fragilidade nos flancos que eles partiram dá nas semanas seguintes. Em outras palavras, não bastava vencer
para o isolamento geopolítico e para a guerra. O mais importante Saddam, embora essa tarefa pudesse apresentar algumas dificul-
desses últimos números da situação financeira do governo dos dades. O problema era saber o que poderia ser gerado e o que
EUA é que eles apontam limites econômicos concretos que podem poderia morrer com os desdobramentos futuros desta nova guerra
determinar, mais cedo do que se poderia imaginar, as possibilida- imperialista. Mas fiquemos, por enquanto, nos seus desdobramen-
des militares reais do imperialismo unipolar, de uma única potên- tos mais imediatos e concretos sobre a economia. No curto prazo
cia cuidando da ordem capitalista mundial. da conjuntura econômica mundial, para ser mais preciso.
Devagar com o andor ... que o santo é de barro. São esses limites Aqui tudo pode acontecer. O curto prazo é um terreno extr~-
econômicos que estarão na base de futuros e altamente explosivos mamente movediço. Principalmente quando se trata da economla
descontroles geopolíticos da velha ordem imperialista. Com essa fragili- mundial. Mas é só nele que os economistas e os seus capitalistas
dade exposta dos EUA, as demais potências econômicas imperialistas raciocinam. E naquele momento só precisavam de uma coisa para
(do mesmo modo que as potências apenas militares Rússia e China) resolver suas ansiedades: de uma "guerra rápida"! A derrubada de
não ficarão paradas frente às suas próprias crises internas, em grande Saddam tinha que ser rápida'".
parte exportadas pelos Estados Unidos. Não é exagerado afirmar que
nos últimos 50 anos nunca tinha aparecido com tanta clareza a possi-
41. "Uma vitória rápida e decisiva dos Estados Unidos e forças aliadas no Ira~ue
bilidade de uma nova guerra mundial. pode revitalizar a emperrada recuperação dos Estados Unidos. Algo diferente diSSO
pode levar a maior economia mundial de volta à recessão. A derrubada de Sadd.a~
Armagedon " a confiança
. d os consumi id ores e os mves
"t'mentos empresanals
Hussein estimula na I .

Finalmente começou a guerra. Uma guerra pra valer. Antigamente, 'I f


e reduziria ainda mais os preços do petro eo, a irmararn econorrusv=>- executivos ,e
. mistas

quando o meio de comunicação mais rápido ainda era o velho telégrafo, investidores. Uma guerra demorada poderia elevar novamente os preç.?s do petro,.
id b ços das açoes e levar a
leo reduzir os gastos dos consumi ores, pesar so re os pre d U'
as notícias dando conta que uma guerra tinha se iniciado demorava , . " Co t ados pelos Esta os m-
desaceleração da economia, informaram. m os passos om " d 16
algum tempo para chegar. Mas pelo menos chegavam. Agora não. As .
dos parp' resolver o impasse , o petro'I eo b ruto t eve on t e m sua maior que a em
imagens e os lances são instantaneamente congelados. E a guerra é apre- meses, de 9,3%, para US$ 31,67 o barril." (Bloomberg News, 19/03/03)

168 169
Uma guerra rápida queria dizer um desembarque em Bagdá no tanques que se arrastavam penosamente pela areia, em meio à infer-
máximo em seis semanas, menos de dois meses. Era o cenário mais nal poeira e ao calor escaldante dos desertos da velha Mesopotâmia.
provável. Uma invasão do Iraque que durasse mais do que isso, de Se eles conseguissem vencer todas as dificuldades - com a rapidez
três a seis meses, por exemplo, deixaria de ser uma guerra rápida. esperada pelos seus capitalistas, é claro -, a economia dos EUA
Mas esse era o cenário menos provável. As derrotas militares america- poderia se desdobrar por mais dois ou três anos de sobrevida. Se
nas só começarão a acontecer mais pra frente, pra lá de Bagdá. É fracassassem, estariam antecipando revolucionariamente um perí-
claro que naquele momento as pessoas inteligentes torciam por odo de grandes terremotos nas sólidas estruturas da economia e da
uma zebra. Mas a torcida só anima, não ajuda em nada na análise correspondente política do imperialismo.
e muito menos muda a realidade.
A superprodução não debelada
Na manhã de 20 de março de 2003, primeiro dia da guerra, o
preço do barril de petróleo já tinha caído para menos de US$ 30, a Se ainda era necessária uma confirmação da deterioração da
moeda americana estava se valorizando rapidamente frente à moe- conjuntura econômica mundial, ela acabava de ser fornecida por
da européia (euro) e ao ouro. Mas os índices da Bolsa de Valores dois importantes barômetros da produção de capital nas principais
de Nova York, que não tinham parado de subir nos dias anterio- economias. Os resultados do primeiro - medindo a tendência dos
res, estavam caindo. Por quê? Segundo os últimos despachos da "indicadores compostos" das economias dos EUA, União Européia e
Bloomberg News, "porque o presidente Bush declarou que os comba- Japão para os meses seguintes - estavam no relatório publicado em
tes devem ser mais demorados do que o previsto"! 7 de abril de 2003 pela Organização para a Cooperação Econômi-
ca e Desenvolvimento (OCDE). Os resultados do segundo - medin-
Se a invasão demorasse mais de dois meses, quer dizer, não fosse do a evolução da produção industrial e utilização da capacidade
a "guerra rápida" que os capitalistas estavam esperando, eram gran- nos EUA - estavam no relatório publicado alguns dias depois, em
des as possibilidades da economia dos EUA mergulharem em uma 15 de abril, pelo Federal Reserve (Fed, Banco Central dos EUA).
devastadora depressão já na virada de junho para julho. Com a
economia mundial a tiracolo. Isso também estava sendo avaliado As medições apresentadas nos dois relatórios confirmavam a mesma
nos principais centros de pesquisas e de previsões econômicas dos tendência de uma forte crise econômica nos EUA, com as demais
EUA. Previam que o barril do petróleo poderia chegar a US$ 80, o economias dominantes a tiracolo. Comecemos pelo que foi detectado
dólar americano se desvalorizaria frente ao ouro e às moedas euro- pelo barômetro da OCDE. Retrospectivamente, mostrava que depois
péia (euro) e japonesa (iene), os índices das bolsas de valores desa- de setembro de 2001, mês dos célebres atentados capitalistas nos
bariam em queda livre e ocorreria finalmente "uma ruptura muito EUA, aquela economia reguladora do sistema apresentava uma ten-
séria" no sistema financeiro e nas trocas internacionais. dência muito forte de recuperação e reversão do período de crise do
ciclo anterior. Esse ponto de reversão de 18 meses seguidos de que-
o mais importante a destacar é que a economia nunca dependeu da da produção industrial deveria marcar um período de expansão
tanto de uma guerra como naqueles meses de março e abril de 2003. de pelo menos três anos, caso repetisse o padrão dos ciclos nos anos
Esta não era uma imagem, era o verdadeiro rosto da economia capitalista 90. Mas não repetiu. Sofreu uma inesperada e precoce inflexão,
mais uma vez ameaçada por uma crise catastrófica. Era o verdadeiro apontando para um novo "buraco" cíclico. Como no período 1980/
rosto do Armagedon: o futuro imediato da maior economia do planeta 1982, quando ocorreu o mais pesado choque cíclico do pós-guerra.
dependendo dramaticamente do desempenho dos mísseis de Bush -
que cruzavam aos milhares os céus de Bagdá procurando o esconderijo Aquilo que parecia um novo período de expansão começou a ser
de Saddam -, dos seus desastrados generais e outros comandantes da abortado a partir de maio de 2002. A economia de ponta do
guerra. escondidos na retaguarda das salas refrigeradas do QG em sistema começou a perder pressão e altura de vôo. De uma pressão
Washington e, finalmente, dos seus medrosos soldados e modernos atmosférica extremamente elevada (acima de 10 pontos) nos pri-

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meiros quatro meses de 2002, começou a cair com a mesma velo- de "desemprego do capital" acende o sinal de alarme para uma
cidade com que tinha subido. Em outubro daquele ano, já estava perigosa necrose do sistema nervoso do organismo econômicow,
próxima de zero. Nos três meses seguintes (novembro, dezembro e Durante a crise de superprodução de capital, o "desemprego do
janeiro), ainda mostrou pequenos sinais de reação. Mas, em feve- trabalho" é uma conseqüência inevitável do "desemprego do capi-
reiro de 2003, sofreu uma recaída muito forte: pela primeira vez tal". Quando a taxa de utilização da capacidade cai abaixo de 70%,
nos últimos 15 meses a pressão da locomotiva do universo tinha a taxa de desemprego da força de trabalho pode crescer de forma
caído para abaixo de zero. Exatamente 1 ponto abaixo de zero. O descontrolada, superando rapidamente os 10%. Como ocorreu na-
fantasma do "duplo mergulho" voltava a assombrar muito mais quele choque de 1982 que tratamos anteriormente. O único cami-
agressivamente do que já assombrava seis ou sete meses antes. nho capitalista para a restauração do mercado de trabalho é uma
nova e potente reestruturação produtiva global, um novo patamar
Sem querer se prolongar muito na análise desse barômetro bas-
produtivo e tecnológico, com aumento da taxa de exploração (produ-
tante preciso da OCDE, observava-se também que, entre as gran-
tividade) acompanhada de um rebaixamento dos salários relativos
des economias da União Européia, as duas que apresentaram as
e das condições de existência da classe operária mundial. Em resu-
maiores quedas de pressão em fevereiro foram Inglaterra (-5 pon-
mo, uma reformulação do exército industrial de reserva global.
to~) e França (-1,3%). Eram fortes candidatas a sofrer as primeiras
baixas do terremoto econômico que poderia se abater sobre a velha e Foi o que ocorreu nos últimos 20 anos de fulminante globali-
decaída Europa se aquelas tendências apontadas não fossem reverti- zação do capital e que reacendeu as crises cíclicas de superprodução
das Quanto à economia japonesa, a pressão não subia nem descia com a potência de antigamente. A superação da última crise, que
há muito tempo. Continuava prostrada, respirando por aparelho. estava próxima de atingir o coração do sistema, exigia então uma
decidida renovação do período de globalização anterior, só que
As medições registradas naquele último relatório do Fed, que captam
agora em um patamar muito superior. Outra coisa muitíssimo im-
em cima da hora a pressão sangüínea da economia dos EUA, reforça-
portante: como no último período anterior de globalização, a nova
vam os resultados relatados pela OCDE. Mostravam que no mês de
reestruturação produtiva global também teria que ser comandada
março de 2003 a indústria daquela economia estava produzindo
pelos EUA - a economia reguladora do sistema e que monopoliza
O,~% menos do que no mês fevereiro. A produção industrial já vinha
inicialmente a técnica produtiva superior - sendo, depois, grada-
camdo nos meses anteriores. Nos três primeiros meses do ano, como
tivamente generalizada no mercado mundial.
um todo, a produção de manufaturas caiu a uma taxa anual de 0,7%.
A explosão social e geopolítica resultante desse processo poderia
Era o seg~ndo trimestre seguido de queda na indústria que regu-
ser prorrogada, até certo ponto, pela própria guerra. Falando em
la a economia global. Também se verificava nas medições do Fed
termos puramente econômicos, pela reciclagem dos operários em
que a queda na produção de bens duráveis, o núcleo dinâmico
soldados, quer dizer, pela metamorfose dos salários dos operários
daquela indústria, foi devida principalmente ao declínio do produ-
desempregados nas linhas de produção da indústria nacional pe-
to dos ramos de máquinas, metais, automóveis e autopeças. Isso los soldos dos mesmos operários, doravante empregados nas li-
era um bom indicador que os investimentos em capital fixo esta-
nhas de destruição da guerra imperialista.
vam longe de ser retomados.
A outra face desse declínio na produção era uma acentuada
42. O único caminho para superar essa situação seria uma quebradeira de grandes
ociosidade da capacidade industrial instalada. Em março, a taxa
empresas industriais e um período mais ou menos longo de concentração do capital]
de utilização da capacidade das indústrias de bens duráveis tinha acompanhado de uma ruptura correspondente no mercado de força de trabalho. E
caído para 68,9%. Nos três primeiros meses do ano, caiu para para evitar esse destino que os capitalistas agem adotando política~ ~ue pro~uram
69,4%, muito abaixo da média dos anos 90, que girou em tomo contrapor fatores exógenos àquelas tendências colocadas pelas condzçoes endogenas

de 83%, uma das mais elevadas dos últimos 50 anos. Essa taxa do organismo capitalista.
173
172
Sobre a utilidade das mercadorias tipo de novos armamentos para sua indústria civil. Como na Se-
gunda Guerra Mundial (1939/45)44.
A guerra vai ser longa. Muita gente imaginava que ela se limita-
ria à invasão e ao controle imperial do território iraquiano. Imagi- No auge da Segunda Guerra Mundial, em 1944, os gastos mili-
navam também que seria uma guerra "rápida e bem sucedida" e tares dos EUA alcançaram 38% do seu PIE. No pico da Guerra da
que a vitória dos EUA garantiria uma pronta recuperação da eco- Coréia, em 1953, cerca de 14%. Na guerra do Vietnã, em 1966,
nomia americana e mundial. Ainda não tinha acontecido nem uma alcançava 9,4%. Comparando-se com essas guerras passadas, os
coisa nem outra. Nem uma vitória, que o próprio esquema de atuais gastos militares ainda estão bem pequenos - US$ 366 bi-
propaganda do governo americano relutava em comemorar, nem lhões por ano, aproximadamente 3,5% do PIB. É muito pouco.
uma recuperação da economia para Wall Street festejar. O que se Tratamos desta redução das despesas de guerra nos últimos dez
via eram "os falcões de Washington" aumentando o rufar dos seus anos do século passado no capítulo 3 deste livro.
tambores de guerra e os economistas recolhendo suas garrafas de Mas nesse início de século XXI, o pêndulo começa a mudar de
champanhe para serem estouradas em outra oportunídade". direção e de velocidade. As despesas militares atuais ainda não
correspondem a uma crise catastrófica, que só deve se manifestar
Os gastos com as guerras do Afeganistão e do Iraque foram
mais agressivamente nos próximos oito a dez anos. Esses números
incapazes de curar totalmente a fraqueza da economia dos EUA.
comparativos com outras guerras passadas fornecem desde agora
Não se repetiram os vigorosos impactos econômicos de conflitos
um excelente argumento para quem precisa justificar uma intensifi-
do passado, lamentam os economistas. E fazem constatações.
cação e ampliação da guerra imperialista atual. Como os representan-
Por exemplo, que agora a economia dos EUA é muito maior do
tes do complexo-industrial-militar dos EUA, base material de sus-
que durante as guerras do passado, quando o aumento das des-
tentação da nova diplomacia da maior potência militar do planeta.
pesas de guerra fazia a diferença. Mas não se arriscam a esclare-
cer por que as despesas de guerra faziam a diferença e agora não O poderoso complexo-industrial-militar é o núcleo burguês do-
estão fazendo, ou melhor, ainda não estão fazendo. minante da indústria e da política daquele país. Patrocinou recen-
Outras constatações: com as atuais tecnologias de guerra que temente, entre outras proezas, a eleição (e reeleição) de George W.
permitem ataques à longa distância, há uma redução de perdas Bush e os atentados de 11 de setembro de 2001. O leitor pode
de armamentos e a necessidade de serem repostos. Além disso, o avaliar qual foi dessas duas proezas a mais danosa para a socieda-
exército, a marinha e a aeronáutica dos EUA entraram no conflito de. Esses fabricantes de meios de destruição não se preocupam
com explicações sobre a crise no seu setor. Eles estão preocupados
com o Iraque com seus estoques de armamentos completamente
abarrotados, ao contrário daquelas guerras passadas, quando
tiveram que fazer a toque de caixa encomendas enormes de todo
44. John Kenneth Galbraith - conhecido economista americano que tem a c:xpe-
riência de ter vivido a realidade econômica dos EUA desde os anos 20 do século
passado até os anos 90 - afirma em seu excelente e mais recente livro, U"'.a
43. '~s pessoas não estão dançando em Wall Street", relata melancolicamente o viagem no tempo econômico - um relato em primeira mão, que aquela economia
noticiário da Bloomberg NeW5. Os homens do mercado foram tomados por uma só conseguiu se recuperar da grande depressão dos anos 30 por causa da Segun-
súbita recaída de pessimismo. "O vínculo entre as notícias do conflito no Iraque e os da Guerra Mundial. Os capitalistas americanos aproveitaram, segundo ele, a
movimentos do mercado se rompeu. Não por acaso, isso coincidiu com a advertên- reserva de mão de obra desempregada e a capacidade industrial ociosa. que
cia do Fundo Monetário Internaciona1.(FMI) de que o ano de 2003 será um ano foram criadas pela depressão, utilizando-as para fins militares e para ap?lar a
fraco para a economia. A chave para entender a queda dos mercados, de acordo economia de guerra. Os capitalistas puderam então produzir armamentos ~ von-
· - d capaCidade
com os analistas, é a fragilidade da economia americana. Agora que a guerra parece tade, sem a necessidade de novos investimentos para amp Iiaçao a
industrial instalada. Resultado: o PIB daquela economia dobrou, em term~s re-
estar chegando ao final, baixos índices de consumo, baixa confiança por parte dos
ais, entre 1939 e 1944. E a taxa de desemprego da força de trabalho caiu de
consumi~ores, um dólar fraco e um déficit fiscal em alta projetam problemas para o
futuro, dizem os economistas." (Bloomberg News, 10/04/2003) 17%em 1939 para l%em 1944.
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apenas com a baixa demanda do governo para suas mercadorias compra de 48 caças F-16 da gigante americana de armamentos
nos últimos anos, o que fez com que as ações de suas principais Lockheed Martin no valor de US$ 3,5 bilhões. Além das aerona-
empresas caíssem bem mais que a média nas bolsas de valores. ves, o contrato cobria peças de reposição, mísseis, bombas e trei-
Segundo a Bloomberg News, o índice S&P para as ações do setor namento para pilotos poloneses.
aeroespacial e defesa caiu 33% desde a última alta em julho de Mas não foi só isso. O acordo envolveu também um programa
2002, três vezes o declínio de 11% no mesmo período do índice de investimentos e empréstimos dos EUA para a Polônia no valor de
S&P 500, que reúne as ações das 500 maiores empresas dos EUA. US$ 12 bilhões. Só as grandes corporações americanas participam.
As ações da Raytheon, que fabrica o míssil Tomahaiok, já caíram A General Motors, por exemplo, já firmou um projeto para modernizar
28%; as da Boeing, que fabrica junto com a Lockheed Martin a mai- sua filial polonesa. De acordo com a GM, isso fará suas exportações
oria dos caça-bombardeiros e grandes helicópteros de combate, já ca- aumentarem de US$ 200 milhões para US$ 600 milhões ao ano.
íram 20% só no primeiro trimestre de 2003.
Alargar mercados para que sua economia nacional possa escapar da
O complexo-militar industrial não está parado frente a essa situa- crise global. Pelo tamanho da crise atual, isso só pode ser conseguido
~ão. Se o marasmo da produção industrial e seus conseqüentes preju- através das armas. Unilateralmente. A economia e a política do imperi-
1Z0S resultam da fraca demanda para suas mercadorias, eles conclu- alismo se fundem de novo no mesmo movimento. Como antigamente.
em sem pensar duas vezes que a única saída só pode ser um aumento Pode-se imaginar o que as diplomacias francesa e alemã estavam achan-
substancial das compras pelo governo. Para quem manda no execu- do desse "acordo do século", expressão usada pelo ministro da defesa da
tivo, no legislativo, no judiciário e na imprensa do país, conseguir esse Polônia durante a assinatura do contrato com os americanos. O mes-
objetivo não será nem um pouco difícil. mo ministro também fez questão de descrever o acordo como "o refor-
ço de laços estratégicos com os EUA".
Mas essa solução tem que considerar um outro aspecto do proble-
ma. Não basta o governo dos EUA comprar dez vezes mais merca- Isso é nitroglicerina pura. Acontece que, exatamente no dia anterior,
dorias das empresas do complexo-industrial-militar. Ele tem que a Polônia tinha participado em Atenas, capital da Grécia, de um
realizar o seu desejo de consumidor por completo e renovar as outro acordo. Aliás, de uma pomposa cerimônia de "alargamento"
encomendas dessas mercadorias. De maneira contínua e ampliada. da União Européia para o Leste Europeu, com a incorporação oficial
Acontece que essas mercadorias, além do seu valor de troca, pos- no bloco comandado pelo eixo franco-alemão de diversos países da Eu-
suem um valor de uso muito especial. Há que se efetivar a utilida- ropa Central, antigos aliados da Rússia no Pacto de Varsóvia, que se
de dessas mercadorias. Isso só pode ocorrer no ato do seu consu- extinguiu com o fim da Guerra Fria.
mo. Enquanto meios de destruição, o ato do seu consumo por seu E a diplomacia de Moscou, como deve estar se sentindo? Como as
lado só pode ser efetivado através da destruição de grandes mas- da França e da Alemanha, com uma brocha, uma enorme brocha
sas de capital e de população, quer dizer, através de guerras cada geopolítica na mão. Falando mais claramente. Ao contrário da ceri-
vez, mais amplas. Mas este embaraçoso aspecto do problema já mônia de "alargamento" da União Européia para o Leste Europeu
esta sendo resolvido pela efetivação da nova política externa dos - que não passou de mais uma jogada de efeito diplomática das
EUA, a popularmente conhecida "doutrina Bush", decaídas potências européias, sem nenhuma conseqüência prática
-, o acordo dos EUA com a Polônia é o primeiro fato concreto
A Europa entra na dança anunciando o rompimento das alianças geopolíticas do pós-guerra
Parecia. que a guerra já estava rendendo seus frutos para aque- entre os EUA e a "Velha Europa", como é chamado pela diplomacia
les angustiados empresários americanos do ramo de meios de des- americana o eixo França-Alemanha.
truição. Notícia da BBG.com de 18 de abril de 2003 dava conta Esse pacote polonês foi mais do que um bom negócio para a
que a Polônia acabava de assinar um acordo bilionário para a Lockheed Martin. O mais importante é que ele inaugura de fato o
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novo plano armamentista americano para a Europa: deslocamento Nesse sentido mais amplo, está certo o general polonês descre-
espacial do seu poderio militar - ainda estacionado no território da vendo a compra dos 48 caças da Lockheed Martin como "o acordo
moribunda Organização do Atlântico Norte (OTAN) - para a Polônia, do século". É claro que esse negócio ainda não resolve todos os
República Checa, Hungria, Romênia e outras pequenas, porém problemas comerciais da Lockheed e das suas parceiras do comple-
estratégicas repúblicas do Leste Europeu. xo militar-indutrial dos EUA. É provável também que o idiota do
general polonês nem sabia o que estava falando. Mas o fato é que,
É a primeira etapa desse novo plano armamentista americano:
nos próximos anos, a partir da explosão de mais um potente perío-
meter uma cunha militarizada na coluna vertebral do equilíbrio de
do de crise global, vai esquentar ainda mais a temperatura geopolítica
poder do continente europeu, que se estende da Estônia, Letônia,
na área européia. O processo de guerra mundial assume um cará-
Lituânía e Polônia, ao norte, até os Bálcãs, ao sul, fechando-se final-
ter cada vez mais irreversível.
mente com a Turquia, o elo que une as batalhas atualmente travadas
no Oriente Médio e na Ásia Central, com as futuras que se anunciam Os custos da recuperação
para a área européia.
Os efeitos da guerra começaram a aparecer também nos resulta-
Essa nova estratégia militar americana no continente europeu não dos mais importantes da economia de ponta do sistema. Até o
confronta apenas a "Velha Europa". Mexe também, talvez mais perigo- primeiro semestre de 2003, o produto industrial dos EUA estava
samente, nas suas conseqüências de curto prazo, nas atuais e relativa- caindo seguidamente. Por isso, a expansão de 2,9% no terceiro tri-
mente amistosas relações dos EUA com a Rússia. Diferentemente mestre já representava um grande avanço. Essa expansão foi puxada
das velhas potências econômicas da União Européia, a Rússia não tem por importantes componentes da produção industrial.
muita coisa a perder com sua atrasada economia. É exatamente isso
que a torna bem mais imprevisível e perigosa, com seu poderio bélico de Dados do Departamento do Trabalho dos EUA indicavam que, para
uma verdadeira potência imperial. A "Velha Europa" é uma potência a totalidade das manufaturas, a produtividade física da força de tra-
econômica, mas ainda continua um anão militar. A Rússia é um anão balho (unidades produzidas por hora de trabalho) subiu explosiva-
econômico, mas já é de fato uma potência militar (e nuclear). É isso mente para 8,6% no período julho/setembro de 2003. É um resultado
que impede, no decorrer do atual processo, uma possível aliança militar da relação entre aquele aumento de 2,9% do produto e a redução de
da Rússia com o eixo franco-alemão contra os EUA. 5,2% do tempo de trabalho. Isso quer dizer que menos trabalhadores
(menos horas de trabalho) produziram uma quantidade
Antes de qualquer iniciativa das antigas potências européias, os
desproporcionalmente maior de bens industriais, de mercadorias. Na
descendentes de Ivan, Pedro, Catarina, Alexandre e, mais
indústria de bens duráveis - máquinas, computadores, automóveis,
recentemente, de Josef, não hesitarão em movimentar suas divi-
aviões, navios, armamentos, aeroespaciais, eletro-eletrônicos etc.-,
sões e seu aparato nuclear ao menor sinal de que sua unidade
o produto cresceu 7,8% e o tempo de trabalho caiu 6%. Resultado:
nacional esteja realmente ameaçada. É gente que, como se dizia
a produtividade física do setor cresceu 14,7%!!! Foi o maior au-
antigamente, dá um boi para não entrar em uma briga, mas depois
mento de produtividade desde o primeiro trimestre de 1971, quando
que entra, dá uma boiada para não sair. Os descendentes de
ocorreu um aumento de 15,1%.
Napoleão, Hitler e outras figuras menos conhecidas da "Velha Eu-
ropa" temem mais do que ninguém essa marcante personalidade A coisa não se limitou à massa das mercadorias, de valores de
dos eslavos. E, diga-se de passagem, em todas aquelas investidas uso. O mais importante ocorreu no custo unitário da força de traba-
fracassadas sobre Moscou do passado, sempre sobrou alguma coi- lho, quanto de salário em cada unidade de mercadoria produzida.
sa não muito agradável para a Polônia, essa tradicional mulher de Como já verificamos anteriormente (capítulo 6 deste livro), esse
malandro das grandes potências européias, que agora se arrisca a custo mede melhor a produtividade da força de trabalho, pois
se juntar com os EUA em mais uma arriscada aventura. mede a produtividade em valor, em quantidade de capital produzi-

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do, e não apenas como produtividade física, medida em quantidade Time is money. Tempo é dinheiro. A redução dos custos é a ver-
de mercadorias, de valores de uso. dadeira religião do capitalista-empresário. É a sua missão. Só lhe
Relembrando: a produção de valores de uso diz respeito apenas resta então partir como um fanático cruzado para reduzir ao máxi-
mo o tempo de trabalho e aumentar ao infinito a massa de mercado-
à riqueza produzida, enquanto a produção de valor diz respeito à
rias. A paixão pelo lucro aparece no interior da fábrica como uma
produção de capital. No atual estágio histórico da produção social,
fanática cruzada pela eficiência, o que, no dia-a-dia do nosso práti-
a produção de capital submete e determina a produção de riqueza
co capitalista, resume-se a uma radical redução do número de ope-
- o que, como e para quem produzir. Para o capital, a produção
de riqueza aparece como um tempo de imobilização, um custo que rários empregados e da correspondente massa salarial a ser
ele tenta livrar do seu processo de valorização. O ideal dos capita- contabilizada no custo de cada unidade de mercadoria produzida.
listas é produzir dinheiro com dinheiro, sem passar pela produção A realização de uma adequada taxa de exploração antecede a de
de algum tipo de riqueza. Até agora, não conseguiram realizar essa uma desejada taxa de lucro. Até o segundo trimestre de 2003, o
façanha, embora muitos economistas continuem afirmando que custo unitário da força de trabalho ainda estava subindo (1,3% no
ela é possível. primeiro trimestre e 1,9% no segundo). Quer dizer, a taxa de ex-
A riqueza não é produzida só pelo trabalho. É produzida pelo trabalho ploração (produtividade) estava diminuindo. Porém, no terceiro
e pela natureza (meios de produção). Mas só o trabalho produz o capital, trimestre aquele custo unitário desabou 4%!!!
um valor em processo, um valor que procura valorizar-se, multiplicar- Nas indústrias de bens duráveis, esse custo caiu o absurdo de
se. Dentro de uma unidade de mercadoria, o trabalho concreto produz 9,6%, a maior redução desse custo desde o segundo trimestre de
valor de uso, o trabalho abstrato produz capital. A produtividade física é 2000, quando a economia americana estava no ponto mais elevado
relacionada com a produção de riqueza, enquanto a produtividade em do seu último período de expansão. A queda do custo unitário da
valor é relacionada à produção de capital. Essa dialétíca, ou melhor, esse força de trabalho no terceiro trimestre de 2002 mostrava que a taxa
duplo caráter do trabalho contido na mercadoria, é inaceitável para os de exploração sobre a classe operária voltara a subir com muita força.
economistas. Daí a sua eterna confusão sobre o que é produtividade, pro-
dução, superprodução, ciclos econômicos ... Esses dados publicados no relatório do Departamento do Trabalho
indicavam que os capitalistas americanos estavam conseguindo
Como indivíduos práticos, os capitalistas não estão preocupa- aprofundar a taxa de exploração naquele país. Essa é a primeira e
dos nem um pouco com o tipo de mercadoria ou de riqueza que necessária condição para colocar nos trilhos um novo período de
eles são obrigados a fabricar. Antes de qualquer consideração, eles recuperação e de expansão do capital global, que deve contar tam-
deslocam seu capital para este ou para aquele ramo guiados unica- bém com outras condições favoráveis na totalidade da produção e
mente pela taxa de lucro que esperam realizar no final do ciclo de circulação do capital: comércio exterior, matérias-primas, mercado
investimento, fabricação e venda das mercadorias. É apenas essa de capitais, mercado de câmbio ...
busca incessante por uma taxa de lucro que determina as utilida-
des produzidas neste transitório regime social de produção. A paz reina em Nova York
Independentemente do que os seus economistas ou seus consu- Recapitulando: a recuperação cíclica dos EUA foi puxada, em pri-
midores pensam sobre a utilidade das mercadorias, o capitalista meiro lugar, por um inédito aumento da exploração da força de tr~-
quer antes de tudo saber quanto custa produzi-Ias, pois é a balho - aumento do desemprego e da produtividade, com uma SI-
ímprevisível variação dos custos de produção que determina, ain- multânea diminuição dos salários diretos e indiretos - associado a
da no processo de produção, se a taxa de lucro individual da sua uma agressiva política de expansão da demanda agregada daquela
empresa será realizada acima ou abaixo da taxa média de lucro do economia. Combinação de fatores internos (produção de valor e de
ramo em que ele resolveu investir o seu capital. mais-valia) e fatores externos (ações políticas, política econômica etc.).

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Se a recuperação da produção é comandada pelo aumento da tuição no time da América Corporativa: sai Bill Gates e entra
exploração da classe operária, a expansão da demanda está sendo Dick Chenney!
realizada pela articulação de três ações de política econômica: polí- 2. A taxa de acumulação e a expansão do produto da economia de
tica monetária reduzindo as taxas reais de juros de curto e longo ponta do sistema serão bem menos exuberantes do que nos anos
prazo; política fiscal reduzindo os impostos das empresas e aumen- 90 do século passado. A maior economia do planeta será crescen-
tando os gastos de guerra do governo; política cambial relaxando a temente militarizada e dependente das vultuosas despesas do
manutenção de um dólar forte e aumentando as exportações. governo e seus inevitáveis déficits públicos. Outra substituição:
Resultado: na segunda metade de 2003, a macroeconomia começou sai David Ricardo e entra Thomas Malthus. A economia liberal,
a se mexer, depois de quase dois anos de semiparalisia do sistema. Os da iniciativa privada, de altas taxas de acumulação e de lucros,
gastos dos consumidores individuais cresceram 3,8% entre os meses predominância de ramos produtores de bens de consumo indivi-
de abril e junho de 2003; entre janeiro e março, já tinham crescido 2%. As dual etc., é crescentemente deslocada para um papel secundário pela
compras de bens duráveis, como automóveis, foram as que mais impul- acumulação militarizada de baixas taxas de acumulação e de lu-
sionaram esses gastos de consumo, com uma alta de 24,1 %. Com a redu- cros, predominância da produção de meios de destruição, consumo
ção das taxas reais de juros de longo prazo, os gastos das empresas com improdutivo etc.
investimentos em máquinas e equipamentos também subiram 8%, a 3. Uma detalhada radiografia da indústria dos EUA no início de 2004
maior alta desde o segundo trimestre de 2000. Consumo e investimento - além dos instrumentos fiscais e monetários que estão turbinando
começam a se elevar de forma mais sincronizada. a demanda agregada (PIB) daquela economia - mostrava, em
primeiro lugar, que as coisas estavam se encaminhando para o
Os gastos do governo também foram outro potente motor da recu-
clássico estado semiestacionário. Neste caso, uma fraca taxa ge-
peração, apresentando uma alta de 25,2% no segundo trimestre. A
ral de lucro - mesmo que acompanhada por uma elevada taxa
guerra no Iraque foi fundamental para se conseguir essa performance:
de exploração ou produtividade da força de trabalho - mantém a
nesse período, os gastos militares subiram 45,9%, a maior alta desde o
economia apenas ligada, funcionando em ponto morto, produzin-
terceiro trimestre de 1951, durante a Guerra da Coréia.
do muita mercadoria e pouco capital, sem uma vigorosa taxa de
Observações gerais acerca do novo ciclo de expansão acumulação de capital e uma conseqüente ampliação da capacida-
1. A recuperação que se desenrola nos EUA não vai ser marcada de instalada.
por nenhuma "exuberância irracional", como nos ciclos econômi- 4. Essa característica semi-estacionária do ciclo atual indica que a
cos dos anos 90. Ela se baseará em uma expansão centralizada economia dos EUA afunda cada vez mais na mesma situação de-
principalmente pelos grandes ramos produtores de armamento, flacionária da economia japonesa. Só que agora estamos tratan-
aeroespacial, energia, petroquímica e engenharia pesada. São do da economia reguladora do mercado mundial. E o problema
ramos controlados por aqueles cartéis empresariais encastelados é que esse tipo de recuperação com deflação dos preços e das
no governo e no Congresso dos EUA. É claro que esses cartéis taxas de lucro, aumentando apenas a massa de lucro, implanta
irradiarão estímulos de recuperação das taxas médias de lucro na maior economia do planeta dois novos ingredientes que, como
para outros ramos produtores de bens de consumo leves, como tendência, já estão sendo velozmente aplicados. O primeiro é
automóveis, computadores pessoais, eletro-eletrônicos, teleco- uma decidida escalada dos gastos com armamentos e a guerra
municações, indústrias do' entretenimento etc. Mas, ao contrá- do governo e a conseqüente deterioração do déficit público. O
rio dos períodos de expansão anteriores, aquela Nova Economia segundo é um aumento do protecionismo, seja através da crôni-
(internet, novas tecnologias de comunicação etc.) que predomi- ca desvalorização do dólar frente ao euro e ao iene, o que já está
nava até o ano 2000 perderá seu glamour para ceder lugar a ocorrendo, seja através de medidas explosivas contenciosas co-
uma acumulação mais regulada, estatal e protecionista. Substi- merciais, que estão apenas começando. Esses novos ingredien-
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Companhia das Letras. Em primeiro lugar, O mundo de ponta-
tes serão claramente sentidos à medida que se aproximar o novo
cabeça - idéias radicais durante a revolução inglesa de 1640, em
e muito mais potente período de crise. A síntese desses dois
que Hill realiza uma pesquisa original da revolução, revelando o
novos ingredientes encontra-se na própria corrida para o mono-
movimento das classes trabalhadoras (camponeses, ferreiros,
pólio na produção dos armamentos de ponta, das guerras pre-
funileiros, pedreiros, lenhadores, tecelões, artesãos etc.) e como
ventivas e da política de superpotência única dos EUA.
essas classes proletárias acabaram sendo o principal motor da-
Essas características do novo ciclo, que já se desenrolava com quela primitiva revolução capitalista. A revolução a partir de bai-
desenvoltura na virada de 2004 para 2005, permitem prever xo. Protagonistas determinantes da revolução e, no entanto, to-
grandes abalos no mercado mundial e na estrutura atualmente talmente invisíveis na historiografia posterior. Nossos leitores de-
montada da globalização, além, é claro, dos correspondentes terre- vem procurar esse livro. É leitura obrigatória para quem se preo-
motos na velha ordem geopolítica internacional, já em estado avan- cupa com a gênese do mundo moderno.
çado de decomposição. Baseando o novo período de recuperação
O outro livro é O eleito de Deus - Oliver Cromwell e a revolução
dos lucros empresariais em taxas menores de acumulação, elevado
inglesa, em que Hill descreve a "gloriosa" a partir dos movimentos e
desemprego e descontrole da dívida pública e das contas externas,
das ideologias das classes proprietárias. A revolução a partir de
os capitalistas americanos continuarão plantando, nos próximos
cima. Aqui o que se salienta é a presença mais conhecida de Cromwell
dois anos de 2005 e 2006, as condições para uma crise bem mais
e outros heróis consagrados na historiografia oficial e ensinada nas
criativa do que aquela última que eles acabaram de superar.
escolas. Mas, na pena de Hill, o colorido da história é totalmente
Voracidade apocalíptica dos "eleitos de Deus" diferente e original. Embora não seja tão obrigatória quanto a leitura
do primeiro, a deste segundo livro também seria muito importante.
O excelente historiador inglês Cristopher Hill foi um dos maiores
Mas por que estamos recordando tudo isso e até utilizando
entendidos da revolução inglesa. Apesar de comunista, ele ainda
conseguiu esse reconhecimento do stablishment intelectual e acadê- nesta conclusão um dos títulos desses livros? Exatamente porque
ninguém melhor do que Hill, fazendo a historiografia da revolução
mico daquele país. A conhecida revolução gloriosa, ocorrida na virada
para o século XVII, foi tão importante que sem ela não teriam aconte- inglesa, para explicar uma coisa muito discutida no final de 2004:
como se desenrola o verdadeiro caráter da religião e das diferentes
cido a revolução industrial na própria Inglaterra, nem as revoluções
concepções de Deus em cada classe ou em cada um dos partidos
republicanas nos Estados Unidos e na França no final do século XVIII,
políticos envolvidos tanto nas revoluções como no posterior desen-
nem as posteriores revoluções de unificações nacionais na Europa e
volvimento da política e, finalmente, no moderno Estado capitalista.
Japão na segunda metade do século XIX etc.
A coisa não é nada simples. Tomemos alguém bem mais inteli-
A "gloriosa" não fundou um mundo maravilhoso. Limitou-se a
gente do que Bush e seus 60 milhões de eleitores. Hegel, por exem-
revolucionar o mundo. Ela abriu efetivamente a era capitalista e
plo, que na sua Filosofia da História identifica o Estado com Deus:
inventou a moderna democracia burguesa tal como a conhecemos
nos dias de hoje. Para tanto, os ingleses tiveram que inventar um «O ingresso de Deus no mundo é o Estado: seu fundamento é a potência
da razão que se realiza como vontade. Na idéia do Estado não se devem
monte de coisas importantes: a economia política, a economia na-
ter em mente estados particulares, instituições particulares, mas consi-
cional e a economia mundial, o mercado mundial, o imperialismo,
derar a idéia por si mesma, esse Deus real. "
as crises econômicas de superprodução, as guerras mundiais etc.
Em resumo, os ingleses produziram o verdadeiro capital. É justamente esse idealismo ou razão política de Hegel - que Marx
considerava como o lado místico da sua filosofia, a ser isolado e re-
E~istem vários livros de Hill, recentemente falecido, escreven-
levado para se resgatar o seu lado racional - que se reapresentou nos
do sobre os fundamentos daquela revolução. Recomenda-se
últimos dias de 2004, nas eleições para presidente do Estado mais po-
particularmente a leitura de dois, publicados no Brasil pela Ed.
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tente do planeta. A moral religiosa e voluntarista do lado obscuro de O ataque ainda nem tinha começado. Por enquanto, estão destruin-
Hegel se reapresentou com toda a força como o fundamento real da do apenas alguns pontos estratégicos. Hospitais, por exemplo. A car-
democracia e da civilização. Como naquela primitiva revolução inglesa nificina poderá ser dezenas de vezes mais elevada que a da cidade espa-
do século XVII, as considerações religiosas ainda comandam o ideário nhola de Guernica, realizada pelos nazistas alemães de Hitler duran-
da República do século XXI, uma República alienada e organizada te a Guerra Civil Espanhola. Em Fallujah, tem mais de 150 mil
como Estado-capital, um Estado plenamente desenvolvido e realizado pessoas, não se sabe quantas dezenas de milhares de crianças, ido-
como Estados Unidos da América. sos ... Não haverá um Picasso para tantas Guernicas ...

A confluência entre religião e Estado nas profundezas da maior Até mesmo Roosevelt, Hitler, Stalin ou Churchil ficariam horroriza-
potência econômica e militar do planeta ficou muito evidente para dos com a «voracidade apocaliptica" que tem sido comandada recente-
que pudesse passar desapercebida. E isso causa um certo mal- mente por Clinton, Bush e Sharon no Oriente Médio e outras partes
estar em alguns jornais com espíritos mais iluministas e republica- da Ásia. Os primeiros se contentavam com a barbárie. Os seus moder-
nos. No editorial O triunfo da América profunda do jornal O Estado nos sucessores propagam a civilização e a democracia, como não cansa
de S. Paulo, por exemplo, no dia seguinte à vitória de Bush nas elei- de repetir o presidente dos EUA que acaba de ser reeleito. Sempre haverá
ções americanas, pode-se ler: alguma ideologia para justificar essa «vontade de Deus".
"Passando a influenciar decisivamente os termos do debate público nacio- O que a civilização faz em Jenin, Shabra, Shatila, Fallujah e em
nal, a direita religiosa encontrou o porta-voz ideal em um George W. Bush tantos outros «altares de sacrifício" da humanidade é apenas uma
(renascido em Deus' e membro do patriciado anglo-saxâo protestante trans-
prefiguração do que pode se passar nas outras áreas restantes do
formado em homem comum, capaz de tratar um problema imensamente
complexo de segurança nacional, a ameaça terrorista, como um confronto mundo. Tanto nas áreas dominantes como dominadas. A globalização
apocalíptico entre o Bem e o Mal. JJ dessas guerras da moderna civilização é uma questão de tempo. E as
razões para isso são as mais terrenas possíveis. No centro do movimen-
Em Paris, no mesmo dia, o jornal Le Monde também tratou em
to, a produção e consumo das mercadorias verdadeiramente necessá-
seu editorial do mesmo assunto:
rias à reprodução física dos seres humanos, essa espécie de primatas
"Dizer que a reeleição de George W. Bush é má noticia é pouco. Para a superiores. É o que nos mostra com maestria o escritor norte-america-
Europa como, sem dúvida, para o resto do mundo. Homem incapaz de no Russel Banks, em um artigo que leva o título O Deus das peque-
dúvida e de auiocritica, convencido de que sua intuição é infalível, e de que
Deus o inspira em suas ações, George W. Bush não deu sinal algum de que nas coisas:
pretenda mudar ou se emendar. (...) Enquanto os europeus se recusam a «Quando um grupo de primatas superiores - chimpanzés ou gorilas -
fazer de suas origens judaico-cristãs o ceme da sua nova constituição, nos começa a sentir falta de alimento, os machos adultos são acometidos de
Estados Unidos a religião está no coração do debate público. JJ
loucura devoradora, de voracidade apocalíptica. Eles engolem todas as
bananas e todas as frutas que restam no território do grupo. E, quando
Guiado talvez pela potência da razão de que falava Hegel, o não há mais bananas e frutas, eles invadem o território de seus vizinhos
poder terrorista dos EUA começou a cercar a cidade iraquiana de e se tomam seus senhores por meio da violência. Nós, seres humanos,
Fallujah três dias após a reeleição de George W. Bush. O ataque é somos uma variedade de primatas superiores, e nosso grau de evolução
iminente. No final da tarde de sábado (6/11/2004), a BBC.com não nos impede de ter um acesso de loucura devoradora. Pelo contrário. A
informava: única diferença entre os chimpanzés e nás é que inventamos uma teolo-
gia para justificá-Ia. (Le Monde / Folha de S. Paulo, 31/10/2004)
JJ

"Ataques americanos destróem hospital em Fallujah. Um hospital foi com-


pletamente destruido em um dos mais intensos ataques aéreosjá realizados A anatomia do homem é a chave para se compreender a dos
contra a cidade de Fallujah. Testemunhas disseram que apenas afachada gorilas. O fato inescapável neste convulsivo início de século XXI é
.sobrou do Hospital de Emergência de Nazzal, no centro da cidade. Não há
que nos defrontamos, com muito maior urgência do que no sécu-
noticias sobre mortos ou feridos. Funcionários do hospital disseram que
todos os equipamentos foram destruidos. JJ
lo passado, com as questões terrenas que afligem nossa varieda-

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de de primatas superiores. Particularmente, as perspectivas per- REFERÊNCIAS
feitamente detectáveis para os próximos anos de mais um catas-
trófico período de superprodução e escassez de bananas e frutas 1. ARCARY, Valério. O Capitalismo pode conhecer uma morte natural?
Revista Sinergia, Cefet, São Paulo, 2002.
na nossa caverna global.
2. ARRIGHI, Giovanni. O longo século :xx - dinheiro, poder e as origens
O ritmo e o desdobramento da próxima crise geral vai determinar a do nosso tempo. São Paulo: Contraponto/Unesp, 1996.
magnitude das guerras mais amplas que serão iniciadas pelos EUA. As 3. BANKS, Russel. O Deus das pequenas coisas. Le Monde / Folha de S.
despesas de guerra, relativamente ao PIB, estarão crescendo progressi- Paulo (Caderno Mais), 31/ 10/2004.
vamente no mesmo período. Os interesses particulares dos capitalistas pro- 4. BLOOMBERGNEWS.com. 12/07/2000; 12/03/2001; 23/08/2002;
dutores de meios de destruição coincidem com os interesses gerais da eco- 05/10/2002; 10/04/2003.
nomia capitalista quando os períodos de crise atingem seu ponto máximo 5. BORÓN, Atílio. Nuvens ameaçadoras sobre a Venezuela. Internet,
de agravamento. Esse ponto máximo de agravamento do próximo perío- 09/04/2002.
do de crise ainda não pode ser exatamente determinado. Ainda ocorrerão 6. BRAUDEL,Ferdinand. La dinamique du capitalismo. Paris: Artaud, 1985.
pequenos espasmos de recuperação econômica, seguidos de recaídas cada
7. BRENNER, Robert. O Boom e a bolha: os Estados Unidos na economia
vez mais profundas. Apenas como referência geral, tudo indica que aquele mundial. Rio de Janeiro: Record, 2003.
ponto máximo da próxima crise na economia dos EUA se localizará em
8. CHÁVEZ, Hugo. O que é a revolução? Carta Capital, 27/02/2002.
algum período situado entre os anos 2005 e 2010.
9. CHESNAIS,François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
Além de longa, a nova guerra imperialista promete ser tão des- 10. COGGIOLA, Osvaldo. O capital contra a história. São Paulo: Pulsar, 2003.
truidora quanto for necessário para a sobrevivência do regime ca-
11. CONETTA, Carl; KNIGHT, Charles. Post-Cold War US Expenditure in
pitalista. É isso que os fatos, os números atuais e a experiência the Context of World Spending Trends. Londres: Project on Defense
passada nos ensinam. É isso que já pudemos verificar neste livro, Alternatives Commonwealth Institute, jan., 1997.
através dos movimentos mais recentes da economia do imperialis- 12. CNPq - Conselho Nacional de Pesquisa Científica e Tecnologia. Cenários
mo. Mas quem poderia se opor à única e infalível fórmula capita- econômicos, políticos e tecnológicos mundiais. Brasília, mimeo, 1989.
lista, essa macroeconomia dos terroristas de gerar o pleno emprego 13. DÁVILA,Sergio. A desigualdade social atinge níveis históricos nos Estados
do trabalho e do capital no momento da catástrofe econômica? Unidos. Folha de S. Paulo, 01/12/2002.

Quanto mais se encolhem as linhas de produção, mais se alar- 14. DORNBUSH,Rudi. Argentina: a rescue plan that works. MIT, 27/02/2002.
gam as linhas de destruição. Essa é a receita dos capitalistas e 15. FISHER, Stanley. Folha de S. Paulo, 24/09/1999.
seus economistas. Primatas renascidos em Deus. Quem poderia 16. FRIEDMAN, David. Qual, afinal, é o nível de produtividade? The Los
romper radicalmente com esse império do terror e sua arquitetura Angeles Times / O Estado de S. Paulo, 11/06/2000.
da destruição projetada apenas para a sobrevivência do capital e 17. GALBRAITH, John Kenneth. Uma viagem pelo tempo econômico - um
das suas classes proprietárias? A história ensina: só aquela única relato em primeira mão. São Paulo: Pioneira, 1994.
classe que, com violência breve e concentrada, mas radical, sem- 18. HILL, Christopher. O Eleito de Deus - Oliver Cromwell e a revolução
pre se mostrou capaz de travar a guerra social contra a guerra do inglesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
capital. O império do terror só pode ser interrompido e destruído 19. . O mundo de ponta cabeça: idéias radicais durante a revolução
por uma revolução social comandada pelo proletariado internacio- inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
nal, também a única classe capaz de substituir a macroeconomia 20. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos - o breve século XX 1914-1991.
dos terroristas e oferecer um plano de vida para a espécie huma- São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
na, 'libertada em definitivo dessa pré-história, dessa civilização de 21. IGNATIUS, David. Crise também pode ser vítima da guerra. Washington
gorilas renascidos e reeleitos em Deus. Post/O Estado de S. Paulo, 22/10/2001
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188
22. KARABEL,Zachary. A visionary nation. Business Week, 15/08/2001.
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econômica e conflito militar de 1500 a 2000. SãoPaulo: Campus, 1989.
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