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O

APLAUDIDO
DRAMATURGO
CURADO
PELAS
PÍLULAS
PINK
Roteiro de Coelho De Moraes baseado na obra de Natália Corrêa
(1923)
Personagens: Homem, Dramaturgo; Mulher (vários papeis ou
não); Gerente; duas pessoas quaisquer para a foto.
TRATAMENTO 2020
1

CENA 1

EXT. RUA. DIA


HOMEM pelas ruas com sua pasta de couro. A cada momento,
em cortes e áreas diferentes, encontra o DRAMATURGO, este
com roupas diferentes e rosto pintado de colorido, alucinado,
muito loquaz, mexe os braços ininterruptamente, enquanto
fala.

DRAMATURGO
Eu sou o aplaudido dramaturgo
curado pelas pílulas pink.

A cena desses encontros se repete inúmeras vezes com cortes


variados e bruscos. Finalmente HOMEM entra num restaurante
ou bar fechado ou café e senta-se à mesa pedindo algo com os
dedos. DRAMATURGO senta-se à sua mesa

O senhor me dá licença?
Vale a pena a compra que vai fazer.
Carrinhos para bebês, carros nupciais,
féretros ou carros de corridas,
somos a empresa que mais transporta
e que mais oferece bons transportes.

HOMEM
Mas, afinal de contas,
o senhor é dramaturgo ou vendedor de
automóveis?

DRAMATURGO o olha com admiração

DRAMATURGO
A lista telefônica...
é uma aflição de personagens em busca de
um autor. Pirandello roubou a minha ideia,
mas eu não ligo... por isso eu me separo da
dramaturgia
para entrar nos domínios da religião...

sorri, orgulhoso

... o que é contra os meus desígnios


pois só a dramaturgia pode demonstrar a
existência
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de Deus.

CENA 2
INT. HALL. TARDEZINHA
HOMEM entra no Hall DO HOTEL. DRAMATURGO o encontra
inesperadamente, estendendo um cartão...

HOMEM
Le o cartão, pausadamente
Olha assustado para o DRAMATURGO

Eu sou o aplaudido dramaturgo...


curado pelas pílulas pink.

DRAMATURGO
Feliz

Exato! Claro! Uma mulher!

HOMEM
Como?

DRAMATURGO
O senhor precisa de uma mulher.
Oh! Não me refiro às vis necessidades
fisiológicas. Bem vê, não sou um alcoviteiro.
Preocupo-me, sim,
com os aspectos morais da solidão.
O homem solitário é um perigo.

andam pelo corredor, DRAMATURGO com a mão sobre o ombro


de HOMEM.

Uma perversão com riscos dramáticos para


toda a Humanidade.
Para não julgar que eu exagero,
lembro-lhe da bomba atômica.
Se o senhor não sentir hoje uma mulher
nos seus braços,
nada nos garante que esta mesma noite não
incendeie a cidade.

HOMEM vai reagir para escapar da situação.

Não proteste!
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Vou resolver o assunto.


Dentro de meia hora terá no seu quarto
aquela a quem esta cidade terá de
agradecer por não ter perecido numa
catástrofe.

CENA 3
INT. QUARTO DO HOMEM. À TARDE
HOMEM toma banho. Batem à porta. HOMEM Sai molhado em
toalhas. Entra uma MULHER excelente, alta, morena, com
roupas sensuais e movimentos e gestos eróticos, animais.
HOMEM começa a se envolver. Se abraçam, gemem. Batem à
porta. HOMEM hesita mas abre. É o gerente. Ele está sério,
mas, de repentes, sorri amarelo. Ele tenta olhar para dentro do
quarto à procura da MULHER.

GERENTE
Senhor?
Este nosso respeitável hóspede
apresentou uma reclamação...

a mulher se cobre com lençol. O reclamante, que não estava


visível, avança, por trás do GERENTE, invadindo o quarto, sério

DRAMATURGO
Eu sou...
o aplaudido dramaturgo...
curado pelas pílulas pink.

HOMEM
Mas...

DRAMATURGO
Não há mas... nem meio mas...
Sou um dramaturgo,
o que quer dizer que eu moralizo a cidade.

entra, seguido do gerente a vistoriar o local.

O senhor sofre o império da corrupção


que eu combato.
Esta pobre mulher que recebe dinheiro para
satisfazer o seu vício...

verifica a toalha de HOMEM


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... é a prova de que o senhor..


é um fomentador da guerra.

levanta o lençol da MULHER, o gerente repete servil e feliz.

Porque a guerra...
não é mais do que um desenvolvimento
lógico da libertinagem.
Demonstro isso, claramente, nas minhas
peças.

CENA 4
INT. ESCRITÓRIO. DIA
Entra, repentinamente, uma pessoa com maus modos, sem
educação, com modos revolucionários, cabeludo e roupa de
soldado camuflado, apoiando a mão na mesa, olhando cara a
cara

DRAMATURGO
Eu sou o aplaudido dramaturgo...
curado pelas pílulas pink.

HOMEM
Meu caro senhor.
Conheço suas intrigas.
Não voltarei a cair nas armadilhas de seus
favores.

DRAMATURGO
Perdão, amigo.
Sou um dramaturgo de vanguarda.
Combato a velha dramaturgia
que vive do triângulo clássico.
Mas, a vida persiste em ser acadêmica.
Impõe uma realidade que é uma justificação
da arte dramática conservadora.
O senhor é o perfeito exemplar do
argumento que essa fauna reacionária usa
para rebater as minhas teorias.
Cumpre-me chamar-lhe a atenção de que
está colaborando para o atraso do espírito,
permitindo que a sua mulher o atraiçoe.

HOMEM
vai pra cima bater no DRAMATURGO
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Cai fora daqui.


Suma da minha frente.

DRAMATURGO
Eu sei onde ela vai. Eu sei onde ela fica.

HOMEM
Não sei por que a minha secretária permitiu
que você entrasse.

DRAMATURGO
Eu sei em que apartamento ela fica com o
outro.

HOMEM
empurrando O DRAMATURGO

Vai embora... não me faça perder tempo.

DRAMATURGO
sai e joga um papel amassado para o chão

Isso mesmo, não perca mais tempo.


Se se apressar,
poderá apanhá-los,
agora mesmo, em flagrante.

HOMEM ouve a porta se fechar. Hesita. Pega o papel, lê. Joga


fora, vai para a gaveta e pega o revolver.

CENA 5
INT. HOTEL. QUARTO. TARDE
HOMEM entra, violentamente, porta adentro do mesmo hotel.
HOMEM se aproxima do quarto, ouve gemidos. Entra, o quarto
está em penumbra, e vê a mulher trepada em cima de outro
sujeito.

HOMEM
Enfrenta a morte, miserável!

a mulher goza muito e somente depois disso, enquanto HOMEM


grita sempre, mesmo nua, se arrasta pelo chão, pedindo
perdão, indo aos pés de HOMEM.

DRAMATURGO
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que era o sujeito com a mulher.

Espere... espere...
eu não sou um vulgar sedutor de mulheres
casadas.
O senhor é o culpado de tudo isso.
Nunca percebeu que sua mulher era uma
personagem?
Eu não podia ser insensível a este fato.
Fique sabendo que me encontro no
aborrecido exercício de um dever
profissional.
Sou um dramaturgo...

enquanto o DRAMATURGO DISCURSA, HOMEM olha para a


MULHER e lhe dá o revolver, tomando as mãos da mulher,
adequando as mãos ao gatilho, apontado para o DRAMATURGO.

... o aplaudido dramaturgo curado pelas


pílulas pink.

HOMEM
para a mulher.
Para me convencer de seu arrependimento.

sai. Do corredor ouve-se um tiro.

CENA 6
HOMEM em casa, lendo jornais. Nos jornais mostra que a
MULHER se matou nos bancos do jardim público, em frente à
estátua de um poeta. Imagem de meio página.

HOMEM
pensa / voz OFF
Ela terá feito desaparecer o corpo
do tal dramaturgo?

sorriso clichê de mofa.

CENA 7
EXT. PRAÇA. DIA DE SOL
Alguém, passeia – mostram-se as pernas - pela praça como
turista e tirando fotos, em rua de maior movimento. Aproxima-
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se do HOMEM, enquanto HOMEM observa uma Igreja. HOMEM se


enerva e se controla.

DRAMATURGO
Tenho estado a observá-lo.
O senhor atravessa uma crise moral.
Não negue.
O seu interesse pelas coisas antigas não me
engana.
Gosta de portas carcomidas por carunchos?
Está, portanto,
em perigo da mais atroz desumanização que
culminará no desejo de destruir o seu
semelhante.
Sei o que digo.
Conheço os homens por dentro,
o que não admira, visto que...
permita que me apresente,
sou o aplaudido dramaturgo curado pelas
pílulas pink.

HOMEM empurra o sujeito para trás e se fasta.

Acho muito conveniente que guarde uma


recordação desse nosso encontro.
Sugiro que tire uma foto.

HOMEM para, se volta. DRAMATURGO posa para a posteridade,


entre duas pessoas quaisquer, um casal. Sorriem. E HOMEM,
sem nenhuma emoção bate a foto, sem mesmo olhar pelo visor.

CENA 8
HOMEM busca no painel da máquina, pela foto tirada. Pega a
foto, nada há ali. Pega outra e nada. Apenas as duas pessoas
que ladeiam um espaço vazio onde deveria estar o
DRAMATURGO. As pessoas olham a foto e se surpreendem.
HOMEM sai correndo pela rua.

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