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Viver com o autismo

(entrevista com Jos Meereboer, docente para Pedagogia Curativa)

Via de regra vemos os autistas como solitários estranhos, em parte altamente inteligentes e
de difícil acessibilidade social. Mas o que os autistas realmente vivenciam? Onde se origina
o seu medo na vivência social? O que representa não estar “realmente dentro” do seu próprio
corpo e não poder dominar sua própria vontade, por outro lado, no entanto, captar tudo o
que as outras pessoas pensam? E o que tem o autismo a ver com a nossa atual sociedade
de informação? Entrevistado: Jos Meereboer, nascido em 1948 na cidade de Schoorl,
Holanda. Gráfico e Pedagogo Curativo formado. Desde 1979 atua na Alemanha como
professor e docente pedagógico-curativo em diversas instituições, entre outros no Seminário
de Ensino e na Academia de Arte Brehmweg. No dia 11 de janeiro Jos Meereboer proferiu
uma palestra na Livraria Rudolf Steiner intitulada “Lá fora, diante da porta. Autismo – vida
em dois mundos”.

C.P.: o que o autismo diz sobre os tempos atuais?

J. Meereboer: Kanner e Asperger descreveram esse conjunto de sintomas pela primeira


vez, mas eu acredito que o autismo já exista há mais tempo e que antigamente os autistas
eram simplesmente classificados como portadores de deficiências severas. Em minha
opinião eles quase antecipam em que direção se movimenta a nossa sociedade. Tínhamos
primeiro uma sociedade agrícola, depois uma industrializada, agora temos uma sociedade
da informação. E essa sociedade da informática torna as pessoas autistas: quando estamos
sentados diante da tela, fazemos o mesmo que um autista, que, em toda a sua essência, ao
invés de estar em seu corpo, está quase que sentado dentro do aspirador de pó ou do
ventilador. Então não temos contato com o mundo exterior, nem com as pessoas à nossa
volta. Em 1924, no decorrer de um Curso de Pedagogia Curativa, Rudolf Steiner advertiu:
se não desenvolvermos interesse pelo nosso mundo exterior terreno, não estaremos em
condições, entre a morte e um novo nascimento, de preparar nossa próxima encarnação.
Isso também vale quando pessoas de qualquer idade ficam trancadas em recintos de manhã
até a noite. Naturalmente existe uma diferença entre tornar-se autista devido ao excesso de
atividades no computador, ou nascer autista. Na próxima vida os autistas passarão por uma
encarnação saudável, o seu “ser assim” tem a ver com sua última vida. (Vide Flensburger
Hefte 112).

C.P.: como podemos imaginar o fato dos autistas focarem sua atenção no “mundo das
coisas”, como por exemplo em máquinas de lavar roupas, maçanetas, ventiladores, etc.?

J. Meereboer: não podemos afirmar que eles têm interesse por uma coisa e não pela outra,
na realidade lhes falta conectividade com o que é vivo e vital, como por exemplo plantas,
animais e pessoas. E quando tal conexão existe, tratam essa vida como se fosse uma coisa,
um objeto. Os autistas graves não têm ligação a nada e também são como que
automatizados no comportamento e no desenrolar de seu dia. A relação com o seu corpo é
tal que praticamente dele se alienam, pois, o corpo, na verdade, também é algo vivo. Em
vez disso, eles se conectam à técnica e a objetos, ou seja, ao que está morto. A única parte
à qual se conectam é o cérebro como parte do corpo menos vital; porém, como são fixados
dessa forma no cérebro, não estão em condições de aproveitá-lo corretamente; porque, na
realidade, devemos esquecer que temos um cérebro para que ele se torne um aparelho
espelhado de nossa percepção. Quando olhamos no espelho, tampouco nos fixamos no
vidro, mas, sim, na imagem nele refletida. Quando temos impressões sensoriais, nosso
cérebro forma imagens, ou seja, representações mentais dessas impressões. As pessoas
portadoras de autismo grave veem o cérebro como um objeto, por exemplo como um
aspirador de pó.
Utilizamos nossas funções cerebrais para formar representações e criar ordem na nossa
vida interior, os autistas põem isso para fora, querem praticamente estabelecer a ordem no
mundo exterior. Daí se originam obsessões, por exemplo pela simetria: se uma gaveta
estiver puxada, todas as outras precisam estar também; se, durante a refeição, for servida
comida num prato, eles correm para o guarda-louças e colocam mais pratos ao lado do
primeiro para recompor a simetria. Seu mundo de representações é externo, à sua volta, e
tudo precisa ter uma ordem rígida, assim como nós tampouco devemos desordenar nosso
mundo representativo.

C.P.: e o que acontece quando eles não encontram ou não conseguem estabelecer essa
segurança?

J. Meereboer: nesse caso eles ficam com medo e começam a gritar, pois vivenciam uma
dor espiritual. Para eles, a ordem exterior, que nós formamos através do nosso mundo de
representações, é a sua orientação no mundo. Os autistas graves vivem em dois mundos;
por um lado, no mundo pré-natal, porque não completaram integralmente a passagem para
a terra, mas, pelo outro, é fato que estão agora com o seu corpo na terra. Muitas vezes eles
não sabem se estão no mundo espiritual pré-natal ou na terra. Eles se confundem, o que
traz consigo, como consequência, uma orientação limitada de espaço e tempo. Nós, na
nossa infância, nos desenvolvemos de sorte a diferenciarmos esses dois mundos.

C.P.: como percebemos que eles vivem no mundo pré-natal?

J. Meereboer: podemos comparar isso com crianças pequenas que ainda não sabem dizer
“eu” corretamente. Elas tampouco chegaram por inteiro à Terra, ou seja, ainda estão tão
integradas ao mundo exterior que não conseguem distingui-lo de seu mundo interior. A
criança só forma um mundo interior próprio quando ela diz “eu” para si mesma e quando
percebe a terra e o mundo exterior através do seu corpo. Nessa fase inicial as crianças
captam o que as pessoas pensam e não aquilo que dizem. Quando os pais pensam: “filho,
você nasceu cedo demais porque ainda não fundamos a empresa como planejávamos”, a
criança capta esse pensamento e pode, eventualmente, crescer com um sentimento de
culpa por ter atrapalhado os planos de seus pais. Assim também acontece com os autistas:
eles percebem tudo o que as outras pessoas pensam.

C.P.: você pode confirmar isso por experiência própria?

J. Meereboer: eu vivenciei alguns exemplos disso. Um autista vivia num lar, e a 100 km de
distância seus pais conversavam: “amanhã vamos buscar o Peter”. Então não era
necessário dizer isso ao menino – ele já sabia. Outro autista, sueco, assistia a uma peça de
teatro alemã, mas ele não precisava compreender o idioma, pois sabia o que os atores
pensavam.

C.P.: pode-se ajudar essas pessoas através da “comunicação sustentada”. Como isso é
feito?

J. Meereboer: se um autista não tem acesso ao próprio querer e, por isso, não sabe falar
nem escrever, ele se torna dependente do querer dos que o rodeiam. Existem possibilidades
técnicas de auxílio através de uma máquina de leitura, um computador ou simplesmente um
lápis. O terapeuta senta-se ao lado do autista, disponibiliza sua força de vontade e não pensa
em nada; ele segura o braço do autista com firmeza e este, então, fica apto a escrever.
Assim, o autista consegue colocar seus pensamentos no papel. O terapeuta em si não pode
ter pensamentos, senão o autista eventualmente anota os pensamentos do terapeuta ou se
zanga por não conseguir escrever. Cito um exemplo ocorrido numa Aldeia Camphill: um
aluno de 16 anos, que participou pela primeira vez de um exercício de comunicação
sustentada, o que lhe possibilitou externar-se, escreveu: ele queria agradecer muito a sua
antiga professora; ele sempre estava atento à aula e, apesar de estar apenas sentado
passivamente num canto, sem nada fazer, havia aprendido muitas coisas com ela. Nós
achamos que eles não captam nada sentados num canto. Mas esse não é o caso – eles
captam tudo! Se nós também aprendêssemos a perceber o que os outros pensam não
precisaríamos mais de celulares. Comunicação sustentada é para aqueles autistas que não
podem falar. Geralmente os órgãos da fala desses autistas estão perfeitamente saudáveis.
Eles, no entanto, não estão em condições de aplicar essa aptidão, pois não conseguem
acessar sua vontade.

C.P.: de certa maneira as pessoas portadoras da forma grave de autismo vivem num mundo
próprio. Podemos partir do princípio de que pessoas com autismo mais leve estão por assim
dizer no nosso meio, exercendo vida profissional, etc.?

J. Meereboer: aqui ocorrem novamente transições espontâneas. Reconhecemos autistas


no fato de serem totalmente medrosos, ou de não viverem com referências sociais, sendo,
portanto, caminhantes solitários. Eles podem parecer excêntricos e possuem talentos
parciais que podem sobressair. Em conversas, eles se expressam de forma que o conteúdo
faz sentido, mas não é dito no momento certo. Não podemos, na verdade, designar essas
pessoas como autistas, elas apenas possuem sintomas de autismo. Quanto mais rumarmos
em direção ao autismo mais são acrescidos outros medos e o comportamento obsessivo.
Na escola pedadógico-curativa tais crianças muitas vezes têm lindos rostos, fisicamente não
apresentam deficiências, porém leva muito tempo até desenvolverem confiança. Tive uma
menina em minha classe que demorou um ano até dominar o seu medo. No primeiro dia de
aula ela não quis participar de nenhuma atividade, ficou sentada debaixo da mesa, brincando
de tigre, para se esquivar de qualquer pedido de participação. Isso também é típico: não
devemos esperar nada deles. Tive então a ideia de juntá-la com uma menina portadora da
síndrome de Down. Sem esperar nada da outra, esta última simplesmente convidou-a a
participar – o que pessoas com a síndrome de Down sabem fazer muito bem.

C.P.: com o que os autistas adultos disfarçam seu medo no convívio social?

J. Meereboer: com distanciamento, arrogância, petulância, frases desconectas. Na


verdade, eles são muito sensíveis e erguem uma couraça ao seu redor. Mas esta é apenas
uma das muitas formas de representação comportamental dos autistas. Precisamos
discernir o que é comum a todos, como por exemplo a falta de calor humano.

C.P.: eles não conseguem conectar-se a outras pessoas?

J. Meereboer: no caso das crianças acontece muitas vezes que tratam a mãe como se ela
fosse um objeto. A mãe se sente como um artigo de consumo perante seu próprio filho e
não se sente amada por ele. Num patamar mais elevado eles são profundamente ligados à
sua mãe, mas não conseguem externar isso animicamente, nem demonstrar sua afeição.

C.P.: aquilo que você descreve sobre as crianças com síndrome de Down: convidar alguém
sem nada esperar dessa pessoa – isso também é uma habilidade social!

J. Meereboer: os autistas não sabem realizar o que os outros esperam deles – eles precisam
“fazer suas próprias coisas”. Mas, se os convidarmos e nada deles esperarmos, como o
fazem tão bem os portadores de Down, eles não se sentem obrigados. Certa feita eu
vivenciei uma situação com um autista num grupo, que só vinha comer quando todos os
outros já tinham se retirado. Recomendei então aos coordenadores que incluíssem um
portador da síndrome de Down no grupo – e a partir daí o autista passou a comparecer
sempre na hora do almoço. O principal é aceitarmos que uma pessoa é autista e não
prescrevermos terapias contra a sua vontade. Se, além disso, ainda pensarmos de forma
positiva sobre ele, o autista percebe isso e desenvolve confiança. Se, ao contrário,
pensarmos “você é deficiente”, ele também percebe esse julgamento e não irá querer
relacionar-se conosco. E a particularidade das pessoas com síndrome de Down é que elas
não julgam, aceitando-nos como somos. Lição a ser aprendida com elas.

C.P.: os autistas sabem o que são sentimentos?

J. Meereboer: sua relação com os sentimentos não é necessariamente anímica, mas, sim,
mental. Mentalmente eles formam uma visão abrangente da situação na qual se encontram
e, a partir dessa visão, percebem quais pessoas estão tristes, alegres ou quem está de
ânimo positivo ou negativo. Percebem isso de forma quase objetiva, mas não são tocados
emocionalmente. Eles não têm uma empatia anímica, mas, sim, uma visão mental. Eles
podem se conectar a experiências tidas em vidas anteriores. Nós avaliamos a tristeza
segundo nossa tristeza subjetiva, os autistas, no entanto, a sentem como tal. Quando nos
encontramos com uma pessoa, de certa forma o fazemos com o nosso corpo. Olhamos nos
olhos de alguém ou lhe estendemos a mão, e então temos um contato-eu. Nos autistas isto
é mais ou menos impossível – eles não conseguem estabelecer um contato visual com
outras pessoas. Temos a impressão de que eles não conseguem nos perceber dentro de
sua própria tristeza, alegria ou em outros sentimentos. Sua forma de encontro se dá, então,
para além do corpo no qual não estão completamente encarnados, e, de alguma forma, isso
encerra algo objetivo. Certa vez recebi uma carta de um autista: ele fala de si, fala também
sobre mim, sabe exatamente onde estou e o que faço, mas a carta é totalmente supra-
abrangente e impessoal.

C.P.: eles têm uma percepção supra-abrangente, não conseguem, no entanto, conectar-se
a ela. O corpo está saudável, o potencial disponível, porém inalcançável. Eles nunca podem
expressar aquilo que vive dentro deles, nem exteriorizar alguma coisa, ou seja, distanciar-
se, elaborar e livrar-se dela. Se nos pusermos no seu lugar: é quase insuportável!

J. Meereboer: exatamente – são aquelas pessoas “com necessidades especiais” (é uma


expressão melhor do que “deficientes”), que são infelizes com o seu destino. Elas se sentem
abandonadas e incompreendidas. Por isso, para elas, a comunicação sustentada é um
reconforto benéfico: de repente elas conseguem se expressar. Em contrapartida, os
portadores da síndrome de Down são os mais felizes. Todos os outros oscilam entre esses
dois extremos.

C.P.: os autistas podem fazer alguma coisa para sair desse isolamento?

J. Meereboer: os autistas graves nada podem fazer, eles dependem da ajuda e


compreensão de quem os rodeia. Os portadores de autismo mais leve podem ser
incumbidos de uma tarefa condizente na idade adulta, com isso sentir-se-ão cidadãos do
mundo. Por vezes eles poderiam estudar, escrever poemas ou outras coisas, desde que o
ambiente em que vivem o possibilite. Se eles são rejeitados o seu desenvolvimento declina
imediatamente. Se, no entanto, encontrarem compreensão e tolerância no seu meio,
poderão viver relativamente bem.

Tradução: Verena Borkowske


17.8.2018

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