Você está na página 1de 4

RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ARTIGO ORIGINAL

Ventilação mecânica em pacientes com


fístula broncopleural
broncopleural

Relato de 2 Casos
Maria Gabriela Cavicchia* , Silvia M.T.P. Soares**, Desanka Dragosavac***, Sebastião Araújo****

fístula broncopleural é uma complicação gra-


ABSTRACT
The broncopleural fistula is caractrised of the air escape
into the pleural space. The most commom causes are the
surgeries, pneumonias, radiotherapy and mechanical ven-
tilation. The positive pressure ventilation (IPPV) forces the
A ve que pode ocorrer em pacientes submetidos
à ventilação mecânica. Ela se traduz por fuga
aérea para dentro do espaço pleural, podendo ser de-
corrente de lesões da árvore traqueobrônquica ou do
bronchies and increases the tendency of borders to pull parênquima pulmonar. Manifesta-se por pneumotórax
apart.
Besides that, due to hemodinamic instability, neurologic que, após drenagem, resulta em perda aérea para o
deficit and infections, the use of IPPV can be prolongued. exterior. Dentre as suas principais causas, podemos
The present study describes the evolution of two patients citar: a pneumonia, a radioterapia, os tumores, a tu-
with different ventilatory treatments. berculose, a cirurgia, o trauma, as intubações recor-
In the first case pressure controledventilation with PEEP rentes e a ventilação mecânica prolongada. Especial
(positive end expiratory pressure) otimized were used.
In the second case, volume controled ventilation and non- atenção deve ser dada, na vigência de fístula, a pa-
invasive mechanical ventilation were used. In patients with cientes submetidos à ventilação mecânica. O uso da
bronchopleural fistula different ventilatory strategies can pressão positiva exerce uma força na sutura brônquica,
be used, once current volume, PEEP and intrathoracic pres- acentuando o mecanismo de mola e aumentando ain-
sure are low together with permissive hipercarbia.
da mais a tendência das bordas a se distanciarem1. A
Key Words: bronchopleural fistula, mechanical ventilation
este problema somam-se outros comprometimentos
que podem prolongar o tempo de ventilação mecâni-
ca, como a instabilidade hemodinâmica, o déficit neu-
rológico e as infecções nosocomiais. Além disso, a
presença de secreção brônquica acentua e perpetua a
contaminação da mesma, diminuindo sua resistência
ou formando microabcessos que provocarão a deis-
cência da cicatriz lesional. A presença de drenos em
aspiração pode perpetuar a fuga aérea, e os ajustes
ventilatórios também podem acentuar a lesão. Diante
da necessidade dos cuidados ventilatórios otimizados
Trabalho realizado na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital de Clínicas para esses doentes, as estratégias ventilatórias são mui-
da Universidade Estadual de Campinas/SP. to discutidas e controversas. As fístulas broncopleurais
* Fisioterapeuta, Aprimoranda em Fisioterapia Respiratória em UTI -
UNICAMP
merecem particular atenção, por se tornarem um evento
** Fisioterapeuta da UTI - HC/UNICAMP. praticamente fatal em pacientes com escape maior de
*** Médica , Prof. Dra. Colaboradora do Departamento de Cirurgia da FCM - 50% do volume corrente. Nesse estudo de caso, rela-
UNICAMP.
****Médico, Prof. Assistente Dr. do Departamento de Cirurgia da FCM -
tamos duas situações em que os pacientes apresenta-
UNICAMP. ram fístula broncopleural na vigência de ventilação
Autora Principal: Maria Gabriela Cavicchia mecânica, sendo manuseados com diferentes estraté-
Endereço: Rua Manoel Cavalheiro n. 4 - Centro
CEP 13920-000 - Pedreira / SP gias ventilatórias, na Unidade de Terapia Intensiva do
Telefone (0XX19): 3893-1799 Hospital de Clínicas – UNICAMP, Campinas / SP.

Volume 14 - Número 2 - Abril/Junho 2002 55


ARTIGO ORIGINAL RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva

RELATO DE CASOS dia, o paciente evoluiu com insta- da troca gasosa, com queda da rela-
Caso 1. Paciente A. O., 69 anos, bilidade hemodinâmica, hipotermia ção PaO2/FiO2 para 59,8, aumento
HC-765711-7, com neoplasia e hipotensão durante a diálise, sen- de PaCO2 de 72,2 para 108 mmHg
gástrica avançada, pneumonia e do introduzida noradrenalina. Os (Figura 3) e fuga aérea acentuada
empiema à direita. Foi drenado o drenos torácicos apresentaram dé- (o volume exalado diminuiu de 555
tórax à direita, evoluindo com bitos de 1500 ml e 200 ml, à direita ml para 280 ml com a mesma pres-
fístula broncopleural, sepse, insu- e à esquerda, respectivamente, num são inspiratória). Paciente foi a óbi-
ficiência respiratória e renal (não período de 24 horas. Houve piora to no quinto dia de internação.
oligúrica), sendo encaminhado
para a UTI. Na admissão apresen-
tava-se sedado, traqueostomizado, Figura 1. Evolução da PaO2/FiO2 durante a internação (caso1).
com PA 110 X 60 mmHg, FC de
100 bpm, em anasarca, com 2
drenos torácicos à direita. O dreno
anterior apresentava borbulha-
mento intenso e, o posterior, saída
de secreção purulenta. Ambos fo-
ram colocados em aspiração con-
tínua. O paciente fazia uso de
dopamina (dose dopaminérgica) e
estava no segundo dia de tratamen-
to com Ceftriaxone e Metronidazol * M – Manhã; T – Tarde; D – Dia; N – Noite.
(cultura de líquido pleural positiva
para Streptococcus pneumoniae). A
ausculta pulmonar estava bastante
comprometida à D devido à fístula, Figura 2. Valores de PEEP (cmH2O) utilizados durante a internação
e o murmúrio vesicular estava mui- (caso1).
to diminuído à E. Foi levantada a
hipótese de pneumotórax hiper-
tensivo à E, sendo realizada a dre-
nagem torácica. A adaptação ven-
tilatória foi no modo pressão con-
trolada, com 20 cmH2O, FR de 12
ipm, PEEP de 8 cmH2O e FiO2 de
1,0. Na gasometria, a PaCO2 era de
55 mmHg e a PaO2 de 107 mmHg. * M – Manhã; T – Tarde; D – Dia; N – Noite.
No segundo dia, paciente evoluiu
com melhora gasométrica, já com
FiO 2 = 0,65, sendo iniciada
hemofiltração contínua. No dia se- Figura 3. Correlação entre volume exalado, PaCO2 e valores de
guinte, foi observada uma piora do pressão controlada (PC) (caso 1).
enfisema subcutâneo, sendo dimi-
nuída a PEEP para 5 cmH2O e au-
mentada a FiO 2 para 0,85. Após
essas alterações, houve piora da
relação PaO2/FiO2 de 123,23 para
78,37, com acentuada hipercarbia.
Foi então aumentada a FiO2 para
1,0 e reduzida a PEEP para 8
cmH2O, resultando em aumento da
relação PaO 2 /FiO 2 de 61,1 para
* M – Manhã; T – Tarde, D – Dia; N – Noite.
153,0 (Figuras 1 e 2). No quarto

56 Volume 14 - Número 2 - Abril/Junho 2002


RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva ARTIGO ORIGINAL

Caso 2. Paciente M.C.S.A., 27 51,7 mmHg e saturação de 84,7%), de abertura, não ocorre fluxo de ar
anos, HC-403613-0, portadora de mantinha borbulhamento pelo dre- através da mesma. Um dos fatores
lupus eritematoso sistêmico, insu- no torácico (com saída de líquido relacionados ao fechamento da
ficiência renal crônica, hiper- turvo), sendo então optado pela fístula é o seu débito, ou seja, a
paratireoidismo secundário à tumor ventilação mecânica não invasiva. fuga aérea, que, quanto maior, es-
marrom em coluna torácica, foi Fez uso desse recurso por 28 ho- pecialmente aproximando-se de
submetida à artrodese desse mes- ras, havendo melhora clínica e 50% do volume corrente, mais
mo segmento. No pós-operatório gasométrica. No 14º dia, paciente severa é a acidose respiratória e
tardio, apresentou atelectasia à es- evoluiu com piora do estado ge- maior a mortalidade 3. Isso pôde ser
querda tratada com broncoscopia, ral, sendo novamente intubada e visto comparando o caso 1 com o
e hemotórax também à esquerda ventilada com volume controlado. 2. No caso 2, a fuga aérea era me-
(drenado). Devido a sangramento, A cobertura para o quadro infec- nor, e, portanto, apresentava bons
foi submetida a toracotomia com cioso foi ampliada para vanco- padrões gasométricos, enquanto
esvaziamento de aproximadamen- micina, imipenem e anfotericina que no caso 1, devido ao maior
te 2.000 ml de coágulos mais 500 B (culturas positivas para débito da fístula, a paciente mos-
ml de sangue, sendo realizada Acinetobacter baumanii). Outra trava acidose respiratória impor-
cauterização de lesões tumorais tomografia foi realizada, mostran- tante. Diante desses conceitos, a
sangrantes. O dreno torácico foi do um encarceramento pulmonar ventilação controlada a volume é
trocado devido a obstrução, tendo à esquerda. Paciente foi traque- mais freqüentemente usada, porém
evoluído com bradicardia e fibri- ostomizada, sedada, não necessi- as pressões aéreas quando não bem
lação ventricular durante o proce- tando de drogas vasoativas, com controladas, tornam o fechamento
dimento. Paciente foi reanimada e bom padrão gasométrico. No 19º da fístula dificultoso. Sendo assim,
encaminhada para a UTI. Na ad- dia de internação, houve piora do a ventilação controlada por pressão
missão encontrava-se sedada, em quadro séptico, com hemoculturas pode ser a melhor escolha, uma vez
mau estado geral, hipertensa, fe- positivas para S. Aureus e A. que as pressões intratorácicas má-
bril, sem drogas vasoativas. Foi baumanii multirresistentes, evolu- ximas serão conhecidas. No caso
adaptada em ventilação mecânica indo para óbito no dia seguinte. 1, a opção ventilatória foi o de con-
com volume controlado. A radio- trolar as pressões intratorácicas, as
grafia de tórax mostrava velamento DISCUSSÃO quais variaram de 14 a 20 cmH2O.
completo do hemitórax esquerdo. Um dos dilemas da ventilação me- Inicialmente, o paciente manteve
Foi extubada no 1º PO, manteve- cânica em pacientes com fistula bons níveis de volume exalado,
se febril e foi iniciada hemodiálise. broncopleural é a manutenção de porém, apesar da manutenção das
No quinto dia de UTI foi observa- uma adequada ventilação alveolar, pressões inspiratórias baixas, hou-
do borbulhamento no dreno ante- enquanto ocorrem perdas ven- ve aumento progressivo do débito
rior à direita, com saída de secre- tilatórias através da fístula, levan- da fístula (volume exalado caiu de
ção piosangüinolenta. Uma hemo- do a um aumento das pressões par- 555 ml para 280 ml no D4 de UTI,
cultura foi positiva para S. Aureus ciais de CO2 alveolar e sangüínea. com pressão controlada de 14
multiresistente. Paciente evoluiu No caso 1, a retenção do CO2 este- cmH2O) (Figura 3). Esse fato pro-
agitada, confusa, taquipneica e ve evidente desde a admissão vavelmente foi acentuado pela in-
taquicárdica, sendo reintubada. Foi (PaCO2 de 55 mmHg; pH de 7,20). fecção pulmonar associada. Quan-
adaptada no respirador, no modo Outro dilema está voltado para o to à pressão positiva expiratória fi-
pressão controlada. A antibio- fechamento da fístula, e este é in- nal (PEEP), a literatura não a re-
ticoterapia foi otimizada (com fluenciado pela estratégia ven- comenda por acentuar o mecanis-
vancomicina, floxacina e metro- tilatória usada. A passagem de ar mo de mola, com exceção dos ca-
nidazol) e manteve-se em diálise através da fístula é determinada sos imprescindíveis. Rafferty e
contínua. Fez tomografia de tórax pela diferença de pressão da via cols4 abordam que se forem neces-
evidenciando um padrão con- aérea e a “pressão crítica de aber- sárias PEEPs mais altas, deve-se
densado, pouco expandido, porém tura” da fístula2. Quando a pressão associá-las a volumes correntes
sem atelectasias e sem líquidos. da via aérea excede a pressão de baixos, na tentativa de promover
Paciente foi extubada dois dias de- abertura, o ar flui livremente atra- uma diminuição da fuga aérea. No
pois. No 13º dia, paciente apresen- vés da fístula. Se a pressão da via caso 1, fizemos uso de uma PEEP
tou piora gasométrica (PaO 2 de aérea permanece abaixo da pressão de 8 cmH2O desde sua admissão,

Volume 14 - Número 2 - Abril/Junho 2002 57


ARTIGO ORIGINAL RBTI - Revista Brasileira Terapia Intensiva

porém, quando se optou por redu- latória deve ser baseada em volu- e PEEP otimizada, aceitando-se a
zi-la para valores de 5 cmH 2O, mes correntes baixos, PEEPs bai- hipercarbia acentuada. No segun-
observou-se uma queda importan- xas e pressões intratorácicas bai- do caso, utilizou-se a modalidade
te na relação PaO 2 /FiO 2 , e, ao xas, aceitando-se a hipercarbia volume controlado e a ventilação
retornarmos a PEEP para 8 cmH2O, acentuada. Sempre que possível, mecânica não invasiva. Na condu-
conseguimos otimizar a oxige- deve-se optar pela ventilação me- ta do paciente com fístula bron-
nação do doente (Figuras 1 e 2). Já cânica não invasiva, devido às me- copleural podem ser usadas várias
no caso 2, não houve a necessida- nores pressões geradas nas vias modalidades ventilatórias, desde
de de valores altos de PEEP, uma aéreas, e, conseqüentemente, me- que se trabalhe com volume cor-
vez que a paciente mantinha boa nor fuga aérea. rente, PEEP e pressão intratorá-
troca gasosa. O uso da ventilação cica baixos, além da hipercarbia
mecânica não invasiva (VMNI) se RESUMO permissiva.
deu pela hipoxemia e taquidispnéia A fístula broncopleural se traduz Unitermos: fístula bronco-
(caso 2), com a qual obtivemos por fuga aérea para dentro do es- pleural, ventilação mecânica, estra-
bons resultados iniciais. A litera- paço pleural. Dentre as causas tégias ventilatórias.
tura mostra, e nesse caso pôde ser mais comuns de fístula, podemos
observado, que a VMNI não au- citar as cirurgias, as pneumonias, REFERÊNCIAS
menta o vazamento de ar pela a radioterapia e a ventilação me- 1- Forte V. Fístula broncopleural pós-
fístula 5. No caso de hipercarbia cânica. O uso da ventilação por ressecções pulmonares. In: Margarido
NF, Roberto Saad Jr. R, Cecconello I,
persistente e/ou fuga aérea grande, pressão positiva (VPPI) exerce
et al., eds. Complicações em Cirurgia.
a literatura recomenda a instituição uma força na sutura brônquica, São Paulo: Robe, 1993; 1-460.
da ventilação de alta freqüência, acentuando o mecanismo de mola 2- Schinco MA, Formosa VA, Santora TA.
podendo ser associada com a ven- e aumentando a tendência das bor- Ventilatory management of a
tilação mecânica independente, das a se distanciarem. Além dis- bronchopleural fistula following tho-
para um melhor gerenciamento so, o uso da VPPI pode se prolon- racic surgery. Respiratory Care 1998;
daquele pulmão com fístula2. Em gar diante da instabilidade hemo- 43: 1064-9.
3- Pierson DJ, Horton CA, Bates PW. Per-
nossa unidade, temos utilizado a dinâmica, do déficit neurológico sistent bronchopleural air leak during
ventilação convencional, porém e das infecções nosocomiais, pois mechanical ventilation. Chest 1986;
com otimização dos parâmetros esses fatores dificultam ou impe- 90: 321-3.
ventilatórios. dem o desmame ventilatório. Con- 4- Rafferty T, Palma J, Motoyama EK, et
siderando-se a necessidade de cui- al. Management of a bronchopleural
CONCLUSÃO dados ventilatórios otimizados, o fistula with differential lung ventilation
and positive end-expiratory pressure.
Em pacientes com fístula bron- presente estudo relata a evolução Respiratory Care 1980; 25: 654-7.
copleural que necessitam de venti- de dois pacientes cujas aborda- 5- Aguilo R, Togores B, Pons S, et al.
lação mecânica, cada caso deve ser gens ventilatórias foram diferen- Noninvasive ventilatory support after
conduzido individualmente, po- tes. No primeiro caso, utilizou-se lung resectional surgery. Chest 1997 ;
rém, em todos, a estratégia venti- a modalidade pressão controlada 112: 117-21.

58 Volume 14 - Número 2 - Abril/Junho 2002

Você também pode gostar