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Caso Clínico

Case Report

Maria de Lurdes Castro1 Edema agudo do pulmão pós-extubação traqueal – Caso


Petra Chaves1 clínico
Margarida Canas1
Maria Leonor Moedas2
Post-tracheal extubation pulmonary oedema – Case report

Recebido para publicação/received for publication: 08.11.18


Aceite para publicação/accepted for publication: 08.12.31

Resumo Abstract
O edema agudo do pulmão pós-extubação traqueal é Negative pressure pulmonary oedema is an uncom-
um acontecimento raro (≈ 0,1%)1. A etiologia é mul- mon complication of traqueal extubation (≈ 0,1%)
tifactorial, sendo a obstrução da via aérea superior o mostly caused by acute upper airway obstruction.
factor desencadeante principal. O esforço inspiratório Upper airway obstruction from glottis closure leads
contra a glote encerrada causa pressões intratorácicas to marked inspiratory effort, which generates nega-
muito negativas, que se transmitem ao interstício pul- tive intrathoracic pressure transmitting to pulmonary
monar, condicionando uma transudação de fluidos a interstitium, and inducing fluid transudation from
partir dos vasos capilares pulmonares1-5. Relatamos pulmonary capillary bed1-5. We report a case of post-
um caso de edema agudo do pulmão pós-extubação -extubation pulmonary oedema in a fifteen years old

1 Interna de Anestesiologia, Hospital de S. António dos Capuchos, Centro Hospitalar de Lisboa Central – EPE (CHLC – EPE)
2 Assistente Graduada de Anestesiologia, Hospital de S. José, CHLC – EPE

Trabalho realizado no Hospital de São José , CHLC-EPE

Directora da área de anestesiologia do CHLC – EPE – Dr.ª Isabel Fragata


Direcção do Serviço de Anestesiologia
Hospital de Santa Marta
Rua de Santa Marta, n.º 50
1169-024 Lisboa
Telefone 213594000

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Edema agudo do pulmão pós-extubação traqueal – Caso clínico
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num doente de quinze anos, operado no serviço de patient, submitted to surgery following traumatic
urgência por amputação traumática da perna esquer- amputation of his left leg. We review the pathophysi-
da. Revemos a fisiopatologia, o padrão radiológico, ology, radiological findings, potential risk factors and
potenciais factores de risco e medidas preventivas des- preventive measures of this post-anaesthetic respira-
ta complicação respiratória pós-anestésica. tory complication.

Rev Port Pneumol 2009; XV (3): 537-541 Rev Port Pneumol 2009; XV (3): 537-541

Palavras-chave: Edema agudo do pulmão pós-extubação Key-words: Post-extubation pulmonary oedema, up-
traqueal, obstrução da via aérea superior, laringospasmo, per airway obstruction, laryngospasm, intra-thoracic
pressão negativa intratorácica. negative pressure.

Caso clínico O doente foi transferido para o recobro, ex-


Relatamos um caso clínico de edema pul- tubado e em ventilação espontânea com
monar agudo pós-extubação traqueal num SpO2 100%. Após 30 minutos, iniciou um
doente do sexo masculino, de 15 anos, atle- quadro de agitação acompanhado de ta-
ta de competição, admitido no serviço de quipneia, tiragem intercostal, secreções ro-
urgência após amputação traumática da sadas e SpO2 inferiores a 85%. À ausculta-
perna esquerda. Na avaliação pré-operatória, ção pulmonar apresentava fervores dispersos.
apurou-se apenas uma história de rinite A gasimetria arterial revelou acidose respira-
alérgica. Não se identificaram alterações do tória, hipoxémia e hipercapnia (pH:7,23
exame objectivo, nomeadamente a existên- PO2:63mmHg PCO2:66mmHg HCO3:
cia de factores preditivos de via aérea difícil, 25,6 mEq/L SpO2:86%) e o doente foi re-
bem como alterações do exame cardio- intubado orotraquealmente, ligado a próte-
pulmonar. O doente foi submetido a regu- se ventilatória e transferido para a unidade
larização do coto de amputação sob aneste- de cuidados intensivos (UCI). Realizou ra-
sia geral. Não houve intercorrências na diografia de tórax, que mostrou um padrão
intubação orotraqueal, ventilação mecânica alveolar disperso, de predomínio central.
e intervenção cirúrgica, e o procedimento Na tomografia torácica eram visíveis múlti-
teve a duração de 150 minutos. Durante a plas densidades dispersas, mais evidentes à
cirurgia foram infundidos 1300 ml de so- direita, sugerindo pneumonite bilateral,
ros. Na recuperação anestésica há a referir com predomínio de alveolite disseminada,
“mordida” do tubo na extubação, seguida de não parecendo corresponder a micro-
obstrução da via aérea superior por laringos- êmbolos gordos pós-trauma.
pasmo, resolvido com ventilação manual O doente permaneceu intubado e ventilado
por máscara facial com FiO2 de 1. na UCI, sendo extubado 9 horas depois da

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admissão, sem sinais de dificuldade respira-


tória, mantendo SpO2 98-100%. A radio-
grafia de tórax e a gasimetria arterial 3 horas
após a extubação mostraram normalização
do quadro clínico, pelo que foi transferido
para a enfermaria de cirurgia plástica e re-
construtiva, onde permaneceu nove dias. O
coto de amputação teve boa evolução, per-
mitindo o início da reabilitação no mês se-
guinte e a colocação de prótese na perna es-
querda.

Fig. 1 – Radiografia de tórax efectuada cerca de 30 minutos


Discussão após a instalação do quadro de insuficiência respiratória,
O edema pulmonar de pressão negativa é evidenciando um padrão de afectação alveolar difusa
uma complicação com uma incidência esti-
mada de 0,1%, ocorrendo habitualmente mo hidrostático. As imagens de alveolite são
após episódios de obstrução da via aérea su- geralmente centrais, bilaterais e localizadas
perior em doentes jovens e atléticos1-3. O es- em zonas não dependentes do pulmão, onde
forço inspiratório contra a glote fechada gera são atingidas as pressões intratorácicas mais
pressões intratorácicas que podem atingir negativas1,3, podendo contudo haver o en-
-100 cmH204. Estas pressões são transmitidas volvimento preferencial de um campo pul-
ao interstício pulmonar, resultando numa di- monar3, como se verificou neste doente.
minuição das pressões perivasculares no leito Apesar de este tipo de edema ser essencialmen-
capilar pulmonar, favorecendo a transudação te hidrostático, pode existir alteração da per-
de fluidos para o interstício. Por outro lado, a
pressão intrapleural negativa resulta num au-
mento da pós-carga e pré-carga ventricular
esquerda, causando disfunção diastólica do
ventrículo esquerdo e promovendo ainda
mais transudação. Outro factor provavel-
mente implicado na fisiopatologia desta for-
ma de edema agudo do pulmão é a vasocons-
trição pulmonar provocada pela hipóxia e
pela libertação de catecolaminas, consequên-
cia da obstrução da via aérea1-4. Neste doente,
a activação adrenérgica teve provavelmente
um papel importante, dadas as implicações
psicológicas e físicas da amputação. Fig. 2 – Tomografia torácica feita 1 hora após: pneumonite
O padrão radiológico habitual deste tipo de bilateral, não sugestiva de microembolia gorda pós-
-traumática. Sem evidência de derrame pleural, pneumotó-
edema sugere o predomínio de um mecanis- rax ou consolidação

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cia em doentes jovens, capazes de gerar pres-


sões intratorácicas mais negativas, e a
presença de distúrbios dos tecidos moles da
nasofaringe (doenças alérgicas, apneia do
sono, tumores), ambos presentes neste
doente2,4. Apesar de identificados, os facto-
res de risco são inespecíficos e muitas vezes
inerentes ao doente, não sendo passíveis de
intervenção preventiva. Provavelmente, a
prevenção da obstrução da via aérea e do la-
ringospasmo (recorrendo a dispositivos
supraglóticos com bite block) é a principal
estratégia preventiva do edema pulmonar
agudo pós-extubação traqueal.
Fig. 3 – Radiografia de tórax efectuada 12 horas depois:
sem evidência de derrame, consolidação ou pneumotórax O edema agudo de pressão negativa tem ha-
bitualmente bom prognóstico1-5 e pode
resolver-se apenas com a administração de
meabilidade capilar ou lesão da membrana, oxigénio suplementar por máscara facial, ou
provocadas pelas pressões intratorácicas nega- necessitar de intubação e ventilação mecâni-
tivas ou pela hipóxia extrema, manifestando- ca por curtos períodos, sem deixar sequelas,
-se clinicamente como hemoptises1, 4. como sucedeu com este doente, que se man-
Na maior parte dos casos descritos na litera- teve assintomático após a extubação.
tura, o edema surge imediatamente após a Além das características clínicas apontadas, o
extubação1,3,4. No entanto, pode ocorrer padrão radiológico típico é importante na
após um período variável de tempo, até 2 a identificação precoce desta complicação. Ge-
3 horas depois da ocorrência de obstrução ralmente, são afectadas as zonas centrais do
da via aérea, como se verificou neste caso. pulmão, bilateralmente. Na presença de sus-
Esta apresentação mais tardia pode ser ex- peita clínica, deve ser efectuada radiografia e
plicada por um mecanismo inicial de pro- tomografia torácica para confirmar o diagnós-
tecção. O esforço expiratório vigoroso con- tico e excluir outras causas de insuficiência res-
tra a glote fechada gera pressões positivas piratória aguda pós-operatória, como a pneu-
(auto-PEEP) no interstício pulmonar, que monia de aspiração, o tromboembolismo
se opõem à transudação de fluido. Poste- pulmonar, a microembolia gorda pós-
riormente, a desobstrução da via aérea resul- -traumática e o edema pulmonar induzido por
ta num aumento do retorno venoso, que opióides. Neste caso, as características clínicas
leva a um aumento da pressão hidrostática, e o padrão radiológico não eram sugestivos de
favorecendo a transudação4. pneumonia de aspiração ou tromboembolis-
Relativamente aos factores de risco para esta mo pulmonar. Em relação à microembolia
complicação, são geralmente referidos as gorda, é uma situação clínica que surge em do-
musculaturas torácica e diafragmática de- entes jovens, mas habitualmente no contexto
senvolvidas, que explicam a maior incidên- de fracturas fechadas dos membros inferiores,

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inexistentes neste doente. Quanto ao edema importância da prevenção de episódios de


pulmonar induzido por opióides, está relacio- obstrução da via aérea superior, particular-
nado com o aumento da permeabilidade da mente nos doentes de maior risco e, final-
membrana alveolocapilar e é confirmado ape- mente a utilidade dos estudos radiológicos
nas pela recolha de líquido proteico dos alvéo- na confirmação da suspeita diagnóstica.
los, por broncofibroscopia. No entanto, pude-
mos excluir esta hipótese, dado que houve
resolução do edema, apesar de o doente ter re- Bibliografia
cebido opióides para analgesia no período pós- 1. Broccard AF, Liaudet L, Aubert JD, Schnyder P,
Schaller MD. Negative pressure post-tracheal extuba-
-operatório.
tion alveolar haemorrhage. Anesthesia and Analgesia
Embora seja referida na literatura uma inci- 2001; 92:273-275.
dência de cerca de 0,1%, é provável que este 2. Lorch DG, Sahn SA. Post-extubation pulmonary
número represente uma subestimação da ver- oedema following anaesthesia induced by upper airway
dadeira incidência e que muitos dos casos de obstruction. Are certain patients at increased risk? Chest
1986; 90: 802-805.
insuficiência respiratória pós-operatória tran- 3. Cascade PN, Alexander GD, Mackie DS. Negative-
sitória correspondam a situações de edema -pressure pulmonary oedema after endotracheal intuba-
pulmonar agudo por pressão negativa não tion. Radiology 1993; 186: 671-675.
diagnosticadas5. 4. Perez RO, Bresciani C, Jacob CE, et al. Negative pres-
sure post-extubation pulmonary oedema complicating
O caso clínico descrito tem por objectivo re-
appendectomy in a young patient: case report. Current
cordar a possibilidade deste diagnóstico num Surgery 2004; 61 (5) : 463-465.
contexto de insuficiência respiratória pós- 5. Stoelting RK, Dierdorf SF. Anesthesia and co-existing
-anestésica em doentes jovens, bem como a disease; 4th ed., Philadelphia. Churchill Livingstone, 2002.

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