Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Artigo Deficiencia Autismo PDF
Artigo Deficiencia Autismo PDF
ARTIGO ARTICLE
Disability, autism and neurodiversity
Francisco Ortega 1
Abstract This article analyzes the emergence of the Resumo O artigo analisa o surgimento recente do
neurodiversity movement in the context of studies movimento de neurodiversidade, situando-o no con-
about disabilities and the political organization of texto dos estudos sobre a deficiência e da organiza-
disabled people. The neurodiversity movement is ção política de deficientes físicos. O movimento da
organized by the so-called high functioning autists, neurodiversidade é organizado por autistas chama-
who believe that autism is not a disease to be treated dos de alto funcionamento que consideram que o
and, if possible, cured. It is instead a human differ- autismo não é uma doença a ser tratada e se for
ence that has to be respected just like other differ- possível curada. Trata-se antes de uma diferença
ences (sexual, racial, among others). The activists humana que deve ser respeitada como outras dife-
of the neurodiversity movement oppose the groups renças (sexuais, raciais, entre outras). Os ativistas
of parents of autistic children and professionals seek- do movimento de neurodiversidade se opõem aos
ing for a cure for autism. This article presents the grupos de pais de filhos autistas e profissionais que
arguments of the pro- and anti-cure groups and buscam uma cura para a doença. No texto, são apre-
analyzes both positions as well as their impact upon sentados os argumentos dos grupos pró-cura e anti-
the field of health and the development of public cura, avaliando as duas posições e seu impacto na
policies for autists. área da saúde e no desenvolvimento de políticas pú-
Key words Disability, Autism, Neurodiversity, Psy- blicas para autistas.
chiatric classifications Palavras-chave Deficiência, Autismo, Neurodiver-
sidade, Classificações psiquiátricas
1
Instituto de Medicina
Social, UERJ. Rua São
Francisco Xavier 524/7o
andar/Bloco D,
Maracanã. 20559-900
Rio de Janeiro RJ.
fjortega2@gmail.com
68
Ortega F
Nada sobre nós sem nós: médico-individual com sua ênfase no diagnóstico
os estudos da deficiência e a retórica anticura e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito
dependente. Mike Oliver3 denomina esse modelo
Para compreendermos o surgimento do movimen- de “modelo da tragédia pessoal”. Para os teóricos
to chamado de “neurodiversidade”, devemos nos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia
remeter ao campo dos chamados “estudos da defi- pessoal; é um problema social e político4. Ela não
ciência” (disability studies), os quais, nas últimas existe para além da cultura e do horizonte social
décadas, vêm desenvolvendo uma área de reflexão que a descreve como tal e nunca pode ser reduzida
sobre a deficiência (disability) que escapa ao dis- ao nível biológico e/ou patológico. Para eles, só
curso de médicos, educadores e especialistas diver- existem atributos ou características do indivíduo
sos. O discurso acadêmico sobre a deficiência sur- considerados problemáticos ou desvantajosos em
ge como posicionamento crítico sobre o discurso si por vivermos em um ambiente social que consi-
dos especialistas. Como se deduz do lema dos “es- dera esses atributos como desvantajosos. Assim,
tudos da deficiência”, “nada sobre nós sem nós” por exemplo, andar de cadeira de rodas é um pro-
(nothing about us without us), o movimento é com- blema apenas por vivermos em um mundo cheio
posto basicamente por pesquisadores “deficientes” de escadas, e consideramos deficientes indivíduos
(disabled). O campo acadêmico dos estudos da que não olham nos olhos quando se comunicam,
deficiência surge no mundo anglo-saxão no fim como é o caso dos autistas, apenas por que nossa
dos anos setenta do século passado, coincidindo sociedade estabelece o contacto visual como um
com o movimento antipsiquiátrico, o surgimento elemento básico da interação humana5,6.
do feminismo organizado e dos movimentos de Nos últimos anos, a “virada lingüística” (lin-
raça, tais como o black power. Desde sua constitui- guistic turn) chegou também aos estudos da defici-
ção, a área dos estudos da deficiência tem efetuado ência, com a incorporação das teorias pós-estrutu-
um deslocamento desde uma abordagem marxis- ralistas e a construção discursiva da deficiência7,8. A
ta inicial no começo dos anos setenta, ligada à re- influência de autores como Derrida e Foucault no
descoberta da obra de Gramsci no Reino Unido, campo permite compreender como a normaliza-
para posições mais recentes próximas do pós-es- ção pressupõe a deficiência para sua própria defini-
truturalismo e do construtivismo social. Trata-se ção: o indivíduo só pode ser considerado “normal”
de um deslocamento análogo aos efetuados nas por oposição ao indivíduo considerado “deficien-
áreas de gênero, sexualidade e raça, nas quais os te”. A deficiência aparece como construção cultural.
estudos da deficiência se inspiram. Mas do que um fato biológico, constitui uma ma-
Em 1975, a Union of the Physical Impaired neira de regulamentar os corpos considerados nor-
against Segregation (UPIAS) publica um texto se- mais e corresponde à recusa da sociedade em acei-
minal, Fundamental Principles of Disability, que lan- tar a variabilidade do corpo humano. Por outro
çará as bases do chamado “modelo social da defici- lado, embora a lesão fosse “real” antes dos discur-
ência” (social model of disability). A novidade teóri- sos médicos, científicos, psiquiátricos e jurídicos
ca fundamental é a divisão entre “lesão” (impair- sobre ela, a proliferação desses discursos possibili-
ment) e “deficiência” (disability). Enquanto a pri- tou o surgimento da deficiência, a qual não existia
meira remete à condição física da pessoa, a defici- antes desses discursos9. Nesse sentido, um dos teó-
ência por sua vez faz referência a um vínculo im- ricos mais representativos dos estudos da deficiên-
posto por uma sociedade sobre o indivíduo com cia, Lennard Davis10, faz no livro Enforcing Nor-
alguma lesão: Nossa posição acerca da deficiência é malcy a chocante afirmação de que a “Europa tor-
bastante clara e coerente com os princípios acorda- nou-se surda durante o século XVIII”. Para o autor,
dos. Na nossa opinião, é a sociedade que desabilita a deficiência é um processo social que corresponde
pessoas com alguma lesão física. A deficiência é algo a uma maneira hegemônica de pensar sobre o cor-
imposto sobre a lesão. A propósito, nós somos desne- po, a qual alcançou uma relativa organização por
cessariamente isolados e excluídos de uma participa- volta do século XVIII. Antes dessa data, existiam
ção completa na sociedade. Por isso, pessoas com defi- obviamente pessoas surdas e seus familiares, mas
ciências constituem um grupo oprimido na socieda- não existiam discursos nem políticas públicas so-
de1. A dicotomia “lesão/deficiência” (impairment/ bre e para a surdez, assim como não havia nenhum
disability) é construída de maneira análoga à dico- tipo de instituição educacional para surdos. Como
tomia “sexo/gênero”, sendo o primeiro um atribu- conseqüência, os surdos não eram constituídos
to biológico e o segundo, uma construção social2. como um grupo. Só após a introdução das políti-
Basicamente, o modelo social da deficiência cas e instituições educacionais para surdos (os
surge como alternativa ao modelo hegemônico quais, tendo a maioria nascida de pais que ouviam,
69
Referências
1. UPIAS. Fundamental Principles of Disability. 1975 [aces- 13. Corker M. New disability discourse, the principle of
sado 2007 abr 4]. Disponível em: http://www.leeds.ac. optimization and social change. In: Corker M, French
uk/disability-studies/archiveuk/UPIAS/fundamental S, organizadores. Disability discourse. Buckingham:
%20principles.pdf Open University Press; 1999. p. 192-209.
2. Corker M, French S. Reclaiming discourse in disabil- 14. Feher F, Heller A. Biopolitics. Aldershot: Avebury; 1994.
ity studies. In: Corker M, French S, organizadores. 15. Cheu J. De-gene-erates, Replicants and Other Aliens:
Disability discourse. Buckingham: Open University (Re)defining Disability in Futuristic Film. In: Corker
Press; 1999. p. 1-11. M, Shakespeare T, organizadores. Disability/Postmo-
3. Oliver M. The Politics of Disablement. London: The dernity. Embodying disability theory. London: New York,
Macmillan Press; 1990. Continuum; 2004. p. 198-212.
4. Davis LJ. Bending Over Backwards: Disability, Narcis- 16. Aïach P. Les voies de la médicalisation. In: Aïach P,
sism, and the Law. Berkeley Journal of Employment & Delanoë D, editeurs. L’‘ere de la médicalisation. Ecce
Labor Law 2000; 21:193-212. homo sanitas. Paris: Economica; 1998. p. 15-36.
5. Young I M. Foreword. In: Corker M, Shakespeare T, 17. Crawford R. Healthism and the medicalization of ev-
organizadores. Disability/Postmodernity. Embodying eryday life. International Journal of Health Services 1980;
disability theory. London and New York: Continuum; (10)3:365-388.
2004. p. xii-xiv. 18. Crawford R. The boundaries of the self and the un-
6. Antonetta S. A mind apart. Travels in a Neurodiverse healthy other: reflections on health, culture and AIDS.
World. Tarcher: Penguin; 2005. Social Sciences and Medicine 1994; 38(10):1347-1365.
7. Corker M, Shakespeare T, organizadores. Disability/ 19. Morris D. Illness and culture in the postmodern age.
Postmodernity. Embodying disability theory. London and Berkeley and Los Angeles: University of California Press;
New York: Continuum; 2004. 2000.
8. Corker M, French S, organizadores. Disability discourse. 20. Petersen A. Risk, governance and the new public health.
Buckingham: Open University Press; 1999. In: Petersen A, Bunton R, editors. Foucault, Health and
9. Corker M, Shakespeare T. Mapping the terrain. In: Medicine. London : Routledge; 1997. p.189-206.
Corker M, Shakespeare T, organizadores. Disability/ 21. Foucault M. Les anormaux. Cours au Collège de France,
Postmodernity. Embodying disability theory. London and 1974-1975. Paris: Seuil/Gallimard; 1999.
New York: Continuum; 2004. p. 1-17. 22. Ortega F. O corpo incerto. Corporeidade, tecnologias mé-
10. Davis LJ. Enforcing Normalcy. Disability, Deafness and dicas e cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Gara-
the Body. London and New York: Verso; 1995. mond; 2008.
11. Elliott C. Better than Well. American Medicine Meets the 23. Wing L. Asperger’s syndrome: A clinical account. Psy-
American Dream. New York and London: W.W. Norton chological Medicine 1981; 11:115-129.
& Company ; 2003. 24. Wing L. The History of Ideas on Autism: Legends,
12. Swain J, Cameron C. Unless otherwise stated: discourses Myths and Reality Wing. Autism 1997; 1:13-23.
of labeling and identity in coming out. In: Corker M, 25. Cavalcanti AE, Rocha P. Autismo. Construções e des-
French S, organizadores. Disability discourse. Bucking- construções. São Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.
ham: Open University Press; 1999. p. 68-78. 26. Dolnick E. Madness on the couch. Blaming the Victim in
the Heyday of Psychoanalysis. New York: Simon &
Schuster; 1998.
77