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Deficiência, autismo e neurodiversidade

ARTIGO ARTICLE
Disability, autism and neurodiversity

Francisco Ortega 1

Abstract This article analyzes the emergence of the Resumo O artigo analisa o surgimento recente do
neurodiversity movement in the context of studies movimento de neurodiversidade, situando-o no con-
about disabilities and the political organization of texto dos estudos sobre a deficiência e da organiza-
disabled people. The neurodiversity movement is ção política de deficientes físicos. O movimento da
organized by the so-called high functioning autists, neurodiversidade é organizado por autistas chama-
who believe that autism is not a disease to be treated dos de alto funcionamento que consideram que o
and, if possible, cured. It is instead a human differ- autismo não é uma doença a ser tratada e se for
ence that has to be respected just like other differ- possível curada. Trata-se antes de uma diferença
ences (sexual, racial, among others). The activists humana que deve ser respeitada como outras dife-
of the neurodiversity movement oppose the groups renças (sexuais, raciais, entre outras). Os ativistas
of parents of autistic children and professionals seek- do movimento de neurodiversidade se opõem aos
ing for a cure for autism. This article presents the grupos de pais de filhos autistas e profissionais que
arguments of the pro- and anti-cure groups and buscam uma cura para a doença. No texto, são apre-
analyzes both positions as well as their impact upon sentados os argumentos dos grupos pró-cura e anti-
the field of health and the development of public cura, avaliando as duas posições e seu impacto na
policies for autists. área da saúde e no desenvolvimento de políticas pú-
Key words Disability, Autism, Neurodiversity, Psy- blicas para autistas.
chiatric classifications Palavras-chave Deficiência, Autismo, Neurodiver-
sidade, Classificações psiquiátricas

1
Instituto de Medicina
Social, UERJ. Rua São
Francisco Xavier 524/7o
andar/Bloco D,
Maracanã. 20559-900
Rio de Janeiro RJ.
fjortega2@gmail.com
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Nada sobre nós sem nós: médico-individual com sua ênfase no diagnóstico
os estudos da deficiência e a retórica anticura e que constrói o indivíduo deficiente como sujeito
dependente. Mike Oliver3 denomina esse modelo
Para compreendermos o surgimento do movimen- de “modelo da tragédia pessoal”. Para os teóricos
to chamado de “neurodiversidade”, devemos nos do modelo social, a deficiência não é uma tragédia
remeter ao campo dos chamados “estudos da defi- pessoal; é um problema social e político4. Ela não
ciência” (disability studies), os quais, nas últimas existe para além da cultura e do horizonte social
décadas, vêm desenvolvendo uma área de reflexão que a descreve como tal e nunca pode ser reduzida
sobre a deficiência (disability) que escapa ao dis- ao nível biológico e/ou patológico. Para eles, só
curso de médicos, educadores e especialistas diver- existem atributos ou características do indivíduo
sos. O discurso acadêmico sobre a deficiência sur- considerados problemáticos ou desvantajosos em
ge como posicionamento crítico sobre o discurso si por vivermos em um ambiente social que consi-
dos especialistas. Como se deduz do lema dos “es- dera esses atributos como desvantajosos. Assim,
tudos da deficiência”, “nada sobre nós sem nós” por exemplo, andar de cadeira de rodas é um pro-
(nothing about us without us), o movimento é com- blema apenas por vivermos em um mundo cheio
posto basicamente por pesquisadores “deficientes” de escadas, e consideramos deficientes indivíduos
(disabled). O campo acadêmico dos estudos da que não olham nos olhos quando se comunicam,
deficiência surge no mundo anglo-saxão no fim como é o caso dos autistas, apenas por que nossa
dos anos setenta do século passado, coincidindo sociedade estabelece o contacto visual como um
com o movimento antipsiquiátrico, o surgimento elemento básico da interação humana5,6.
do feminismo organizado e dos movimentos de Nos últimos anos, a “virada lingüística” (lin-
raça, tais como o black power. Desde sua constitui- guistic turn) chegou também aos estudos da defici-
ção, a área dos estudos da deficiência tem efetuado ência, com a incorporação das teorias pós-estrutu-
um deslocamento desde uma abordagem marxis- ralistas e a construção discursiva da deficiência7,8. A
ta inicial no começo dos anos setenta, ligada à re- influência de autores como Derrida e Foucault no
descoberta da obra de Gramsci no Reino Unido, campo permite compreender como a normaliza-
para posições mais recentes próximas do pós-es- ção pressupõe a deficiência para sua própria defini-
truturalismo e do construtivismo social. Trata-se ção: o indivíduo só pode ser considerado “normal”
de um deslocamento análogo aos efetuados nas por oposição ao indivíduo considerado “deficien-
áreas de gênero, sexualidade e raça, nas quais os te”. A deficiência aparece como construção cultural.
estudos da deficiência se inspiram. Mas do que um fato biológico, constitui uma ma-
Em 1975, a Union of the Physical Impaired neira de regulamentar os corpos considerados nor-
against Segregation (UPIAS) publica um texto se- mais e corresponde à recusa da sociedade em acei-
minal, Fundamental Principles of Disability, que lan- tar a variabilidade do corpo humano. Por outro
çará as bases do chamado “modelo social da defici- lado, embora a lesão fosse “real” antes dos discur-
ência” (social model of disability). A novidade teóri- sos médicos, científicos, psiquiátricos e jurídicos
ca fundamental é a divisão entre “lesão” (impair- sobre ela, a proliferação desses discursos possibili-
ment) e “deficiência” (disability). Enquanto a pri- tou o surgimento da deficiência, a qual não existia
meira remete à condição física da pessoa, a defici- antes desses discursos9. Nesse sentido, um dos teó-
ência por sua vez faz referência a um vínculo im- ricos mais representativos dos estudos da deficiên-
posto por uma sociedade sobre o indivíduo com cia, Lennard Davis10, faz no livro Enforcing Nor-
alguma lesão: Nossa posição acerca da deficiência é malcy a chocante afirmação de que a “Europa tor-
bastante clara e coerente com os princípios acorda- nou-se surda durante o século XVIII”. Para o autor,
dos. Na nossa opinião, é a sociedade que desabilita a deficiência é um processo social que corresponde
pessoas com alguma lesão física. A deficiência é algo a uma maneira hegemônica de pensar sobre o cor-
imposto sobre a lesão. A propósito, nós somos desne- po, a qual alcançou uma relativa organização por
cessariamente isolados e excluídos de uma participa- volta do século XVIII. Antes dessa data, existiam
ção completa na sociedade. Por isso, pessoas com defi- obviamente pessoas surdas e seus familiares, mas
ciências constituem um grupo oprimido na socieda- não existiam discursos nem políticas públicas so-
de1. A dicotomia “lesão/deficiência” (impairment/ bre e para a surdez, assim como não havia nenhum
disability) é construída de maneira análoga à dico- tipo de instituição educacional para surdos. Como
tomia “sexo/gênero”, sendo o primeiro um atribu- conseqüência, os surdos não eram constituídos
to biológico e o segundo, uma construção social2. como um grupo. Só após a introdução das políti-
Basicamente, o modelo social da deficiência cas e instituições educacionais para surdos (os
surge como alternativa ao modelo hegemônico quais, tendo a maioria nascida de pais que ouviam,
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não se viam a si mesmo como parte de uma comu- O exemplo dos surdos é muito significativo
nidade), eles são constituídos como grupos, desen- para entender o movimento da neurodiversidade,
volvendo um senso de comunidade, um subgrupo como será mostrado mais adiante, o qual, em
ou comunidade étnica no meio da nação. muitos aspectos, assemelha-se ao movimento sur-
Surge então um nacionalismo surdo como re- do. A tomada de consciência desse movimento (e
sistência à “cultura ouvinte” (audist culture), que de deficientes em um sentido mais genérico, inclu-
contesta o que Davis define como um dos mitos indo a cultura autista) vem produzindo processos
fundacionais da “cultura indeficiente” (ableist cul- de coming out deficiente, análogos aos coming outs
ture), qual seja, acreditar que a norma entre os se- de gays, lésbicas e negros, declarando um “orgulho
res humanos é ouvir e falar, comunicar-se por mé- surdo” que remete ao orgulho gay, lésbico ou ne-
dio de fala e audição. No século XIX, os surdos gro, o qual corresponde na neurodiversidade à de-
eram considerados estrangeiros vivendo nos Esta- claração do orgulho autista, como veremos.
dos Unidos e movimentos de surdos organizados Quando um grupo social é estigmatizado pela
cogitaram fundar um estado de surdos no oeste do maioria da sociedade, a autodeclaração da identi-
país. Jane Elizabeth Groom propôs, nos anos de dade constitui um processo de coming out. A afir-
1880, que os surdos deixassem a Inglaterra e crias- mação “sou deficiente” (surdo, cego, autista, entre
sem um estado de surdos no Canadá10. Esses exem- outros) constitui uma afirmação de auto-categori-
plos testemunham que os surdos se viam como zação, um processo de subjetivação e de formação
uma comunidade étnica, uma minoria lingüística de identidade. Para os teóricos dos estudos da defi-
convivendo dentro do mesmo país. Na atualidade, ciência, essa afirmação permite um deslocamento
o movimento surdo reivindica o senso de comuni- do discurso dominante da dependência e anorma-
dade, considera-se um subgrupo lingüístico convi- lidade para a celebração da diferença e o orgulho da
vendo com outras minorias lingüísticas (latinos, identidade deficiente12,13. Trata-se tanto de um com-
italianos, entre outros, no caso dos Estados Uni- promisso coletivo e político de protesto contra as
dos) que tem que ser respeitada. Isso tem conduzi- barreiras sociais incapacitantes encaradas pelos in-
do em alguns momentos a uma certa tensão com divíduos com algum tipo de lesão, como de uma
os movimentos de deficientes por não considera- transformação da identidade pessoal vivenciada
rem a surdez como uma deficiência. Os surdos sen- com orgulho. Além dos impasses que as políticas
tem que sua cultura, linguagem e comunidade os cons- identitárias apresentam14, parece-me importante
tituem como uma sub-nacionalidade, totalmente ressaltar uma questão recorrente associada ao enal-
adequada, fechada em si mesma, auto-definidora den- tecimento da identidade e do orgulho deficiente.
tro de uma estrutura maior do estado ouvinte10. Pois, freqüentemente, a afirmação identitária está
Como conseqüência, numa época em que o scree- ligada à recusa da cura, a qual é vista como uma
ning fetal torna-se cada vez mais nossa realidade, forma de combater a diferença e a diversidade do
abortar uma criança que sabemos que nascerá sur- corpo e do cérebro humano. O “movimento anti-
da seria para eles análogo a abortar uma criança cura” constitui um desafio apresentado que ultra-
por falar espanhol, chinês, ser negra ou homosse- passa o âmbito mais estrito dos deficientes, suas
xual. Evidentemente esses casos nos parecem cho- famílias, médicos e cuidadores, estendendo-se ao
cantes e são repudiados pela maioria das pessoas. âmbito das políticas públicas de saúde e educação.
Mas, e se se coloca a questão da possibilidade de O argumento básico é o seguinte: se a deficiência é
abortar uma criança com síndrome de Down, ou um fenômeno criado socialmente e perpetuado cul-
que vai nascer sem algum membro, ou ser autista, turalmente, então também a cura e os valores a ela
isto é, casos, nos quais um número maior de pes- associados são igualmente socialmente construídos:
soas mostraria uma inclinação para o aborto? Aí a Se você não acreditar que há deficiência, se não acre-
questão fica mais complexa, como veremos mais ditar que há algo que necessita ser ‘curado’ ou preve-
adiante no caso do autismo. Por outro lado, é pos- nido geneticamente – então você será igualmente li-
sível pensar em situações em que pais surdos de bertado da necessidade de cura15.
nascença decidissem abortar fetos se soubessem que Os teóricos dos estudos da deficiência denun-
nasceriam ouvintes, de maneira semelhante ao que ciam um modelo utópico de perfeição corporal e
já está acontecendo no caso de pais de crianças sur- cura no qual a deficiência não existe. Na cultura
das de nascença envolvidos em querelas judiciais somática contemporânea ou biossociabilidade, as
exigindo que não seja realizado um implante cocle- ações individuais passam a ser dirigidas com o
ar nos seus filhos. O aumento da consciência dos objetivo de obter melhor forma física, mais longe-
surdos (e de outros “deficientes”) pode levar e está vidade, prolongamento da juventude, entre outros.
levando a tornar realidade essas possibilidades11. Todo um vocabulário médico-fisicalista baseado
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em constantes biológicas, taxas de colesterol, tono A história do movimento de neurodiversidade,


muscular, desempenho físico, capacidade aeróbica e mais especificamente em relação à cultura autis-
populariza-se e adquire uma conotação “quase ta, está ligada ao deslocamento das concepções
moral”, fornecendo os critérios de avaliação indivi- psicanalíticas para uma concepção biológica e ce-
dual. Ao mesmo tempo, todas as atividades soci- rebral do transtorno autista. Dos anos de 1940 a
ais, lúdicas, religiosas, esportivas, sexuais são res- 1960, predominaram as explicações psicanalíticas
significadas como práticas de saúde. O que alguns do autismo na teoria e clínica psiquiátrica. De Leo
autores denominaram de healthism ou santé-isati- Kanner no seu artigo seminal, “Os distúrbios au-
on16-20, e que pode ser traduzido como a ideologia tísticos do contato afetivo”, de 1943, até Bruno Bet-
ou a moralidade da saúde, exprime essa tendência. telheim, Margareth Mahler e Francis Tustin, o au-
Segundo essa ideologia, a saúde tornou-se tam- tismo foi compreendido em termos de falhas no
bém um valor absoluto ou padrão para julgar um estabelecimento das relações objetais precoces do
número crescente de condutas e fenômenos soci- indivíduo, especialmente com os pais. Isso não quer
ais17,18. Como resultado, contemplamos as doen- dizer que ainda hoje não existam explicações psi-
ças que retorcem a figura humana como sinônimo canalíticas do transtorno autista, predominante-
de fracasso pessoal. “É uma religião secular”, sali- mente do campo lacaniano. No entanto, é inegável
enta David Morris19, “da qual os deficientes e os que desde os anos sessenta vem se produzindo um
desfigurados estão, evidentemente, rigorosamente deslocamento para explicações orgânicas, especi-
excluídos a não ser que estejam dispostos a repre- almente cerebrais do transtorno, culminando em
sentar o papel ossificado designado para eles nos 1980 com a inclusão do autismo na rubrica de trans-
reality shows como modelos corajosos de ‘ajusta- tornos abrangentes do desenvolvimento, separan-
mento pessoal, esforço e realização’”. Historicamen- do-se definitivamente do grupo das psicoses in-
te, as deficiências estavam ligadas ao crime, ao mal, fantis, na terceira edição do DSM (DSM-III). A
às aberrações21. Os estereótipos atuais contra os síndrome de Asperger, no entanto, só foi incluída
gordos, idosos e outras figuras que fogem do pa- na quarta edição do DSM (DSM-IV) em 1994. O
drão do corpo ideal têm o mesmo efeito estigmati- termo foi usado por Lorna Wing em 1981 em defe-
zador e excludente. A obsessão pelo corpo perfeito rência ao trabalho de Hans Asperger, contempo-
faz aumentar o preconceito e dificulta o confronto râneo de Leo Kanner23,24. Desde então, e mais espe-
com o fracasso de não atingir esse ideal, como tes- cificamente no mundo anglo-saxão, as compreen-
temunham anorexias, bulimias, distimias e depres- sões cognitivistas, neurológicas e genéticas do trans-
sões. Essa fixação produz e reforça as doenças de- torno dominam o campo psiquiátrico. É impor-
bilitantes22. Morris19 aponta com razão que o mo- tante sublinhar que nas explicações psicanalíticas
delo biomédico que sustenta essa obsessão implica do transtorno, e mais especificamente no caso de
assumir “que há algo errado com os portadores de dois dos seus principais teóricos, Leo Kanner e
deficiências”. Os corpos anormais e deficientes de- Bruno Bettelheim, o autismo era concebido exclu-
vem ser exorcizados na construção de uma ima- sivamente em termos negativos, focalizando na
gem nacional que pressupõe um ideal de perfeição culpa dos pais, os quais teriam falhado no estabe-
corporal. É nesse contexto que se situa a retórica lecimento de relações objetais precoces. A famosa
anticura defendida por diversos teóricos e ativistas “mãe geladeira” de Kanner, ou as metáforas de “for-
do movimento deficiente. Vejamos, a seguir, como talezas vazias”, “tomadas desligadas”, “conchas”,
esses desdobramentos constituem o pano de fun- “carapaças”, “ovos de pássaros” e “buracos negros”
do para o recente surgimento do movimento da usadas pela tradição psicanalítica para se referir às
neurodiversidade. crianças autistas, remetem para uma visão negati-
va que enfatiza as idéias de déficit, impossibilidade
e deficiência25.
Transtornos do espectro autista Desde meados de 1940 até pelo menos meados
e neurodiversidade de 1960, houve no mundo anglo-saxão uma ver-
dadeira “orgia de ataques aos pais” (orgy of parent-
O surgimento do termo e do movimento de “neu- bashing) usando a expressão de Edward Dolnick26,
rodiversidade” na virada do século XXI, ao qual que dificultou a aparição de algum tipo de organi-
me referirei mais adiante, deve ser analisado a par- zação de autistas e/ou de seus familiares. No seu
tir de um marco sociocultural e histórico mais livro, Dolnick destaca que os pais absorveram as
amplo que incorpore a história e os desdobramen- acusações e suportaram pacientemente a culpa não
tos dos estudos da deficiência e dos movimentos apenas pela hegemonia médica e sociocultural do
de deficientes. paradigma psicanalítico, mas – e o que é mais im-
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portante – devido ao fato de que, frente às explica- mas de adaptar as crianças autistas tem dado o
ções orgânicas que remetiam para uma certa ine- tom na lista. Esse padrão que enfatiza exclusiva-
vitabilidade, uma sentença definitiva, a abordagem mente a procura pela cura levou a uma série de
psicológica parecia oferecer algum tipo de espe- críticas de adultos no espectro de transtornos au-
rança. “Havia uma parte de mim que queria acre- tísticos, os quais se sentem incompreendidos e des-
ditar em Bettelheim” declara Annabel Stehli, mãe considerados pelos especialistas e os familiares de
de filha autista, após a leitura de A fortaleza vazia autistas. Como conseqüência, surgiu em 1992, en-
de Bruno Bettelheim, “porque isso significaria que tre os autistas australianos e dos Estados Unidos, a
se eu melhorasse, Georgie iria melhorar. [...] Se eu Autism Network International (ANI), criada pelos
mudasse, Georgie iria melhorar e eu queria que autistas Jim Sinclair e Donna Williams29. Apesar de
minha filha melhorasse”26. não vetar a entrada a não-autistas, a tomada de
O deslocamento do modelo psicanalítico e a decisões deveria estar na mão dos autistas. “Por
aproximação das neurociências possibilitou que autistas para autistas” (By autistic for autistics) tem
os pais fossem desresponsabilizados e desimplica- sido um valor central da ANI desde sua origem,
dos dos destinos subjetivos dos filhos25. Apesar reproduzindo a ideologia dos estudos da deficiên-
das críticas do modelo psicanalítico a essa aparen- cia: “nada sobre nós sem nós” (nothing about us
te “desimplicação” e da aproximação das neuroci- without us). Essa exigência da presença de autistas
ências, é precisamente devido ao deslocamento do na tomada de decisões é reivindicada freqüentemen-
paradigma psicanalítico que surgiram tanto os te pelos ativistas do movimento (sendo a maioria
movimentos de pais e profissionais que buscam portadores da síndrome de Asperger, isto é, uma
uma cura para o autismo e apóiam terapias com- forma de autismo de alto funcionamento) na críti-
portamentais e psicofarmacológicas como os mo- ca aos movimentos de associações de pais e especi-
vimentos da neurodiversidade. Estes últimos rejei- alistas dos movimentos pró-cura. Para os primei-
tam as explicações psicológicas negativistas e cul- ros, é uma questão de empowerment do movimen-
pabilizantes, afirmando um autismo cerebral, na to, de autodeterminação na base da auto-advoca-
base de uma identidade autista vivenciada com cia. Obviamente, não se trata de que os pesquisa-
orgulho, como mostrarei mais adiante. dores e profissionais trabalhando com autismo
devam se encontrar eles mesmos dentro do espec-
tro do transtorno, mas de que na tomada de deci-
Os movimentos pró e anticura no autismo sões, na auto-organização social e política do mo-
vimento estejam portadores do transtorno. O que
A história do movimento de auto-advocacia do não resolve o problema, visto que ativistas do mo-
autismo é precedido pela publicação de relatos au- vimento e organizações de pais e profissionais pos-
tobiográficos de indivíduos autistas. Temple Gran- suem, como veremos, concepções antagônicas do
din e Donna Willians são possivelmente as mais que seja o autismo, quais sejam, doença a ser trata-
conhecidas. Já desde meados dos anos de 1960 apa- da ou diferença a ser respeitada e cultivada. Isso
recem as primeiras associações de pais de autistas. não impede que as críticas do movimento deslegiti-
Entre as pioneiras se encontra a British Society for mem a posição dos grupos pró-cura com o argu-
Autistic Children (conhecida atualmente por The mento de que estão decidindo por eles. Os grupos
National Autistic Society). Em 1964, Bernard Ri- de pais e profissionais objetam que a maioria dos
mland, autor de Infantile Autism: The Syndrome autistas, especialmente as crianças, não tem condi-
and Its Implications for a Neural Theory of Behavior, ção de saber qual é decisão correta, e que as vozes
funda a Autism Society of America. Logo surgiriam do movimento são de indivíduos que não deveri-
associações semelhantes em muitos países24,27,28. am ser considerados autistas. São acusados de es-
Mas é o surgimento da Internet no início dos anos tar no extremo mais funcional do espectro do trans-
noventa do século passado que marca o principal torno, beirando a “normalidade”, uma situação
ponto de inflexão nas organizações de auto-advo- muito díspar da vivida pela maioria das crianças
cacia. Entre as pioneiras se encontra a Autism and autistas. Tratar-se-ia de uma minoria que se advo-
Developmental Disabilities List (AUTISM List), cri- ga o direito de falar no nome de uma maioria que
ada em 1991 por Ray Kopp e o Dr. Zenhausern na não possui as capacidades cognitivas e emocionais
Universidade de St. John no formato de lista de In- requeridas para essa tomada de decisão.
ternet. A lista foi em grande medida responsável O objetivo das listas criadas por autistas é con-
pela difusão da terapia comportamental (Análise testar a visão negativa do autismo representada
aplicada do comportamento – Applied Behavioral nas primeiras listas de profissionais e familiares de
Analysis – ABA). A obsessão pela cura e pelas for- crianças autistas, cuja obsessão com a cura é con-
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siderada um desrespeito da forma de ser autista. www.neurodiversity.com), o conceito “neurodiver-


Se o autismo não é uma doença e sim uma diferen- sidade” tenta salientar que a “conexão neurológica”
ça, a procura pela cura constitui uma tentativa de (neurological wiring) atípica (ou neurodivergente)
apagar a diferença, a diversidade. É por isso que os não é, como vimos, uma doença a ser tratada e se
movimentos de anticura vêm ganhando força den- for possível curada. Trata-se antes de uma diferen-
tro dos movimentos de auto-advocacia autista29. ça humana que deve ser respeitada como outras
Na contramão se encontram organizações como diferenças (sexuais, raciais, entre outras). Eles são
Cure autism now (www.cureautismnow.org), fun- “neurologicamente diferentes”, ou “neuroatípicos”.
dada em 1995 por Jonathan Shestack and Portia Indivíduos diagnosticados com autismo, especial-
Iversen, pais de uma criança autista, e que reúne mente portadores da síndrome de Asperger, são a
pais, médicos e cientistas consagrados a acelerar o força motriz por trás do movimento. Para eles,
ritmo da pesquisa biomédica do autismo, levan- como já foi mencionado, o autismo não é uma
tando fundos para a pesquisa e a educação. Esta doença, mas uma parte constitutiva do que eles são.
organização vem sendo criticada duramente por Procurar uma cura implica assumir que o autismo
ativistas do movimento autista, que a acusam de é uma doença, não uma “nova categoria de diferen-
demonizar os autistas e assustar as suas famílias, ça humana”, usando a expressão de Singer30. Se a
promovendo visões estreitas do transtorno e não neurodiversidade ou “neuroatipicidade” é uma do-
escutando as experiências de adultos autistas. Um ença, então a “neurotipicidade” também é. Nesse
exemplo ilustrativo dessa crítica aparece no site sentido, vale a pena conferir na web o irônico site
www.autistic.org, que mostra uma lixeira cheia de do Instituto para o estudo dos neurologicamente
fetos autistas mortos com as iniciais de Cure au- típicos (Institute for the Study of the Neurologi-
tism now, diante de uma clínica de abortos com a cally Typical) (http://isnt.autistics.org). O autor do
legenda “O verdadeiro significado da ‘prevenção “instituto” confessa que criou o site como expres-
do autismo’”. são do “ultraje autista”, depois de conferir que o
que é escrito por “especialistas” e “profissionais”
sobre o autismo é “arrogante, insultante e simples-
Neurodiversidade e cultura autista mente errado”. No site, a “síndrome neurotípica” é
caracterizada como um transtorno neurobiológico
O termo neurodiversidade foi cunhado pela soció- caracterizado pela preocupação por questões sociais,
loga e portadora da síndrome de Asperger Judy delírios de superioridade e obsessão com a conformi-
Singer em 1999 num texto com o sugestivo título de dade. Além disso, os indivíduos neurotípicos (NT)
“Por que você não pode ser normal uma vez na sua “freqüentemente assumem que sua experiência do
vida? De um ‘problema sem nome’ para a emergên- mundo é ou a única ou a única correta. Neurotípicos
cia de uma nova categoria de diferença” (‘Why can´t acham difícil ficar sozinhos e, geralmente, são apa-
you be normal for once in your life?’ From a ‘problem rentemente intolerantes as menores diferenças no
with no name’ to the emergence of a new category of outros. No site, apreendemos que 9.625 em cada
difference)30. Para ela, o aparecimento do movimen- 10.000 indivíduos são neurotípicos e que não existe
to tornou-se possível por vários fenômenos, prin- cura conhecida para a “síndrome neurotípica”. O
cipalmente a influência do feminismo, que forne- objetivo desse site é, obviamente, desconstruir a re-
ceu às mães a autoconfiança necessária para ques- tórica pró-cura de muitas organizações de pais e
tionar o modelo psicanalítico dominante, que as profissionais. Visa-se mostrar que o absurdo de
culpava pelo transtorno autista dos filhos; a ascen- tentar curar ou diagnosticar a “normalidade” - que
são de grupos de apoio aos pacientes e a subse- aparece aqui na versão cerebral de “neurotipicida-
qüente diminuição da autoridade dos médicos, de” - é semelhante ao absurdo de tratar de curar o
possibilitado, sobretudo, pelo surgimento da In- autismo. Por que nos chocariam as tentativas de
ternet, que facilitou tanto a organização dos gru- curar a “neurotipicidade” (possibilidade apresen-
pos como a livre transmissão de informações sem tada ironicamente no site), enquanto que aceita-
mediação dos médicos; e, finalmente, como vimos, mos sem pensar a retórica pró-cura de associações
pelo crescimento de movimentos políticos de defi- como Cure Autism Now, Defeat Autism Now ou
cientes, movimentos de autodefesa e auto-advoca- Autism speaks que, no fundo, defendem uma de-
cia, especialmente de surdos, que estimulou a auto- terminada “normalidade” ou “tipicidade” cerebral?
representação da identidade autista. Curar um neurotípico seria o mesmo que curar
Como lemos no início da entrada “neurodiver- um indivíduo gay, negro, canhoto ou autista, afir-
sity” na wikipedia e nas dúzias de sites dedicados ao mam os defensores da neurodiversidade. Para eles,
movimento (sendo o mais famoso o autismo não é como um câncer que deva ser cu-
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rado, estando mais para as tentativas de curar a tamento - Applied Behavior Analysis), que para
sinistralidade, ou a homossexualidade31. Se, como muitos pais constitui a única terapia que permite
vimos, a deficiência é uma construção social, a cura que as crianças autistas realizem algum progresso
também é. Assumir o autismo como diferença libe- no estabelecimento de contato visual e em certas
ra os indivíduos do desejo ou da necessidade da tarefas cognitivas. Para os ativistas autistas, a tera-
cura, o que resulta muito importante em uma épo- pia reprime a forma de expressão natural dos au-
ca na qual existem grandes chances de dispormos tistas35. A questão é acirradamente debatida no
em breve de testes genéticos que poderão impedir mundo anglo-saxão, já que muitos pais estão lu-
crianças autistas de nascer. tando na justiça para conseguir que governos e com-
Em torno dos padrões autísticos de pensamen- panhias de seguros de saúde paguem pela terapia,
to e de interesses vem aumentando o número de cujo custo é muito elevado. Desse modo, os argu-
páginas da Internet que exprimem a “cultura autis- mentos defendidos pelos movimentos da neurodi-
ta”. Como vemos ao clicar o termo “cultura autis- versidade de que o autismo não é uma doença e as
ta” e “neurodiversidade” no Google, encontramos tentativas de cura, uma afronta contra os autistas
uma quantidade enorme de sites que afirmam a podem fornecer razões para recusar o financiamen-
identidade autista (e mais especificamente Aspie, to das terapias. Esse fato provoca a irritação de pais
em referência à síndrome de Asperger) e celebram e profissionais que lutam pela implantação e cus-
essa subcultura, os quais incluem desde indicações teio público das terapias. Ao publicar repetidamente
de literatura de ficção e especializada sobre os mais artigos que influenciam os leitores a ver o autismo
variados aspectos do espectro do transtorno até como apenas uma forma diferente de ser, acusa Kate
organizações de apoio, blogs e mecanismos de chat Weintraub em uma carta aberta dirigida ao New
que facilitam a interação entre autistas, esclarecem York Times, vocês estão ajudando a influenciar uma
elementos do transtorno, ajudam a compartilhar geração de pais, professores e outros líderes da comu-
experiências e até mesmo encontrar amigos ou fu- nidade autista a negar o tratamento a crianças autis-
turos companheiros e cônjuges. Para a famosa tas. Isto é algo muito sério, com conseqüências muito
autista Temple Grandin, o casamento entre autis- graves. Se seu filho tem autismo severo e sua escola
tas é natural, visto que, “os casamentos funcionam anuncia que a ABA não estaria mais disponível, pois
melhor quando duas pessoas com autismo se ca- se passou a considerar anti-ético ensinar crianças a
sam ou quando a pessoa se casa com um deficien- parecer mais com seus pares e, ao invés disso, seriam
te ou com um parceiro excêntrico [...] Eles se atra- utilizadas apenas a aceitação e a acomodação, neste
em porque seus intelectos trabalham em um com- caso, você não ficaria muito feliz, não mais feliz do
primento de onda similar”32. O objetivo funda- que ficaria se tivesse um filho surdo e os implantes
mental dos movimentos é promover a conscienti- cocleares não estivessem mais à disposição, porque a
zação e o empowerment da cultura autista, que in- surdez não seria mais considerada um transtorno36.
clui a comemoração do “dia do orgulho autista” O assunto chegou aos tribunais. Várias famílias
(Autistic pride day), que, inspirado pelo dia do canadenses entraram em 2004 em uma ação judi-
orgulho gay, é festejado no dia 18 de junho como cial argumentando que o governo deveria pagar
celebração da neurodiversidade dos autistas. Des- pela terapia ABA para seus filhos por ser “medica-
de 2005, o “dia do orgulho autista” teve os seguin- mente necessária”. Trata-se do caso Auton vs. Bri-
tes temas: ‘Aceitação, não cura’ (2005); “Celebran- tish Columbia. Michelle Dawson, ativista autista
do a neurodiversidade” (2006); “Autismo fala. É canadense35, questionou a ética da terapia ao ser
hora de escutar” (2007). No Brasil, o recentemente chamada como testemunha. Esse depoimento foi
criado Movimento Orgulho Autista Brasil integra citado pela suprema corte canadense na sua deci-
uma rede de países que comemora a neurodiversi- são contra as famílias de filhos autistas31,37. Situa-
dade nessa data33,34. Prova disso é o fato que o ções como essas vêm elevando enormemente a tem-
principal evento mundial do “dia do orgulho au- peratura do debate: de um lado, as famílias de au-
tista” de 2005 foi realizado em Brasília. Na contra- tistas e suas lutas por acesso aos tratamentos e te-
mão, se encontram também no Brasil as associa- rapias comportamentais – que implicam reconhe-
ções de pais e profissionais que buscam cura para cer o autismo como uma doença (principalmente
o autismo. As mais conhecidas são AMA (Associ- com causas genéticas e/ou cerebrais) – e para quem
ação de Amigos de Autistas, www.ama.org.br), os movimentos de autistas com sua retórica anti-
AUMA (Associação de Amigos da Criança Autista, cura e pró neurodiversidade representam um ul-
www.autista.org.br). traje a suas reivindicações. De outro lado, os ativis-
Um dos pontos mais conflitantes diz respeito à tas autistas que consideram as terapias pró-cura
terapia cognitiva ABA (Análise aplicada do compor- um passo adiante na negação e intolerância da dife-
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Ortega F

rença e da (neuro)diversidade e na implantação de O deslocamento do paradigma psicanalítico do


políticas eugênicas e genocidas. Vejamos estes as- autismo permitiu, como já foi assinalado, que pais
pectos mais pormenorizadamente. e profissionais constituíssem associações e grupos
pró-cura. Para eles, o transtorno autista é uma
doença com uma etiologia orgânica (principalmente
Fronteiras disputadas: doença ou diferença? cerebral e/ou genética). A superação do modelo
psicanalítico e a aproximação das neurociências
O historiador Charles Rosenberg observa que, “en- desresponsabilizou e desimplicou os pais dos desti-
tidades patológicas se tornaram atores sociais in- nos subjetivos dos filhos e abriu o caminhou a sua
discutíveis, reais na medida em que temos acredi- organização em associações que buscam a cura do
tado neles e agido individualmente e coletivamente transtorno e a implantação de terapias cognitivas e
a partir dessas crenças” 38. Ele chama a atenção comportamentais. O estatuto orgânico do autis-
acerca do “poder e capacidade de penetração das mo legitimou o movimento. Na frase feliz de Ro-
entidades patológicas” e suas aparentes “estrutu- senberg, “legitimidade social pressupõe identidade
ras neutras” (value-free frameworks)39. Estamos somática”39. Porém, o transtorno continua sendo
nos acostumando nas últimas décadas a negociar uma categoria problemática, pois não existe con-
em público o estatuto nosológico de numerosas senso nem em relação à etiologia do transtorno,
doenças psiquiátricas, a maioria das quais possu- nem acerca da intervenção clínica mais adequada40.
em uma natureza problemática. Talvez o caso mais Do ponto de vista dos ativistas autistas, as tera-
gritante dos debates acerca da legitimidade episte- pias constituem atentados contra a diferença e a
mológica de uma categoria de doença psiquiátrica diversidade do cérebro humano. Além disso, a pos-
aconteceu no início dos anos setenta do século pas- sibilidade de em breve dispormos de um teste gené-
sado, quando a Associação de Psiquiatria Ameri- tico para detectar o risco de autismo em um feto ou
cana decidiu votar a inclusão ou não da categoria embrião pode abrir a porta para que pais tenham a
de homossexualidade por ocasião de uma revisão opção de impedir o nascimento de um filho, mes-
do DSM. Trata-se de uma doença ou de uma esco- mo com as formas mais brandas do transtorno
lha? E se é uma doença legitimada (com uma sub- (como é a síndrome de Asperger). Nesse sentido,
seqüente base biológica), como pode ser decidido Arthur Caplan41, diretor do Center for Bioethics da
por voto o seu estatuto ontológico?38,39 Os confli- Universidade de Pensilvânia, publicou em 2005 um
tos acerca do estatuto ontológico e a conseqüente artigo com o provocativo título de “Você teria per-
legitimidade social de doenças e transtornos men- mitido que Bill Gates nascesse?” (Would you have
tais e as decisões acerca da etiologia, diagnóstico e allowed Bill Gates to be born?), no qual sublinha o
terapêutica têm sido endêmicos na história da psi- fato freqüentemente observado que Gates apresen-
quiatria dos últimos 150 anos39. Embora não exis- ta muitos traços de personalidade da síndrome de
ta consenso acerca de numerosas doenças psiqui- Asperger, pretendendo chamar a atenção com isso
átricas, o fato de serem nomeadas como doenças para os riscos envolvidos nos testes genéticos. Ob-
constitui uma forma de poder e utilidade social. O viamente o espectro do transtorno autista é muito
diagnóstico e a eventual inclusão nos DSMs evi- amplo, abarcando desde os casos mais “de alto fun-
dencia que “a presumida existência de entidades cionamento” como (presumivelmente) Bill Gates,
patológicas ontologicamente reais e definidamen- o filósofo Ludwig Wittgenstein e o pianista Glenn
te específicas constituiu o princípio-chave que or- Gould, até os “de baixo funcionamento”, crianças e
ganiza quais decisões clínicas particulares pode- adultos com retardo mental e severos comprome-
riam ser tomadas racionalmente”38. timentos cognitivos e funcionais. Ao meu ver, isso
Vejamos o caso do autismo: mesmo sendo re- nos coloca diante de importantes dilemas éticos e
conhecida como entidade nosológica em 1980 pelo sociopolíticos. A questão é dupla: permitirá o teste
DSM-III (e a síndrome de Asperger em 1994 pelo genético estabelecer as sutilezas necessárias para
DSM-IV), os transtornos do espectro autista vem definir claramente em que ponto do espectro autis-
se tornando “categorias problemáticas”, usando a ta o feto e/ou embrião se encontra? Mas, ao mesmo
expressão de Rosenberg (que a usa para falar de tempo, se se trata de um espectro, ou seja, um con-
“gender identity disorder”, “attention deficit and tínuo, qual deve ser o ponto de corte que nos justi-
hiperactivity disorder”, “social anxiety disorder” e fique a dizer que até um certo ponto é aceitável o
“premenstrual syndrome”, entre outras). É o esta- grau de comprometimento cognitivo, mas para
tuto ontológico do autismo que está sendo dispu- além desse ponto se justificaria o aborto? Em pou-
tado: doença para uns, exemplo da diversidade do cas palavras, permitirá o teste genético diferenciar
cérebro humano, para outros. os autistas de “baixo” e “alto” funcionamento? Isso
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sem mencionar, como acredito, que, mesmo nos disputadas” - usando a feliz expressão de Rosen-
casos mais severos de autismo, não exista consenso berg -, um estatuto ambíguo que exige a sua cons-
ao respeito do aborto dessas crianças, como não tante negociação pública. No campo específico da
existe mesmo em relação à síndrome de Down e educação e da educação especial, os modelos tradi-
outras doenças e transtornos. Para os ativistas do cionais orientados para o modelo da deficiência ten-
movimento autista, trata-se de um risco de genocí- tam curar, consertar, reparar, remediar, melhorar
dio que deve ser combatido. Abortar um feto autis- as “deficiências” das crianças. Nesses modelos, os
ta seria como abortar um feto homossexual ou ca- autistas são aproximados o máximo possível de
nhoto (caso fosse possível detectar essas caracterís- uma norma ou são ajudados a enfrentar as defici-
ticas geneticamente). Os testes pré-natais constitu- ências da melhor maneira possível. Um modelo
em uma verdadeira ameaça eugênica que visa ao educativo baseado na neurodiversidade, em con-
aborto dos neurodivergentes. Dada a tecnologia, trapartida, “terá um profundo respeito pela dife-
pergunta Susanne Antonetta, autora de A mind rença (e não deficiência) de cada criança”, escreve
apart. Travels in a Neurodiverse World, e diagnosti- Armstrong43, “encontrando o melhor nicho ecoló-
cada com transtorno bipolar, “Escolheríamos ape- gico para cada criança, no qual suas qualidades são
nas crianças perfeitas? Perfeitas para os olhos de maximizadas e seus defeitos são minimizados”. O
quem? Nossa cultura?”6. A gravidade da situação modelo da neurodiversidade necessariamente for-
levou a que, em 2004, ativistas do movimento en- çará uma mudança no sistema educativo “pela cla-
trassem com uma petição nas Nações Unidas exi- ra diversidade e força da organização neurológica
gindo que, diante das ameaças, fossem reconheci- de suas populações de estudantes”43.
dos como “grupo social minoritário”, que merece
proteção perante a “discriminação” e o “tratamento
inumano”. Eles se consideram uma minoria, uma Considerações finais
cultura diferente com padrões de comunicação e
hábitos diferentes42. Tentei neste texto mostrar alguns dos desafios que
Diante dessa situação, cabe perguntar quais se- apresentam os movimentos da neurodiversidade.
riam as políticas públicas possíveis para dar conta Meu objetivo principal não era tomar partido a
da neurodiversidade. As políticas propostas pelos favor ou contra os grupos pró- ou anticura, pois
grupos pró-cura já foram salientadas: acesso e fi- acredito que ambos têm suas razões. Os primeiros
nanciamento de terapias comportamentais (espe- ao criticar as políticas identitárias agressivas prati-
cificamente ABA), contingenciamento de recursos cadas por ativistas radicais do movimento autista
para pesquisa genética e neuroquímica do trans- que pretendem falar em nome de todos os autis-
torno, entre outras. No caso da neurodiversidade, tas. Os ativistas autistas são freqüentemente autis-
a situação é um pouco diferente, entrando em mui- tas de “alto funcionamento”, geralmente Aspergers,
tos casos em conflito com os interesses dos grupos que se outorgam o direito de manifestar-se em
pró-cura. Sirva como exemplo o interessante arti- nome de todos os autistas, o que causa irritação
go de Baker37, que propõe distinguir entre “defici- dos pais de filhos autistas de “baixo funcionamen-
ências neurológicas” e “neurodiversidade”. Essa dis- to” com grave retardo físico. Obviamente, seria
criminação permitiria desenhar políticas públicas hipocrisia subsumir todas as formas de autismo
que possibilitassem o acesso ao tratamento àqueles ao “alto funcionamento”, para depois dizer que
indivíduos que desejassem ser tratados e que ga- autismo é um estilo de vida. O movimento da neu-
rantissem aos que recusassem o tratamento o di- rodiversidade é minoritário dentro do espectro total
reito de fazê-lo, pois, “o autismo é para alguns um do autismo. Muitos autistas não possuem nem a
elemento fundamental da identidade, no qual não capacidade cognitiva de falar nem dizer o que pen-
se quer que o Estado interfira sem necessidade”37. sam ou sentem, quanto menos de se organizar
O desafio seria distinguir entre os dois elementos, política e comunitariamente. Os ativistas autistas,
apoiando simultaneamente ambos, ou seja, esta- por sua vez, têm suas razões ao temer políticas
belecer uma fronteira definida entre um e outro igualmente agressivas que incluam testes genéticos
que fosse aceita tanto pelo movimento pró-cura e que possibilitem abortar fetos autistas, bem como
anticura. “Gerir simultaneamente ambos os aspec- a imposição de ideais e padrões de normalidade
tos da diversidade depende de esforços recompen- cerebral, que redundem em terapias e obrigação
sadores e sustentadores que sustentem uma base de ser “curados”. Se o autismo é um espectro, não
de participação mais ampla, ao invés de uma pro- pode ser tratado como uma entidade nosológica
teção categórica a indivíduos selecionados”37. Ca- fechada. Seu alcance e limites exigem uma cons-
tegorias psiquiátricas possuem sempre “fronteiras tante negociação pública. Qualquer decisão acerca
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Ortega F

de um ponto de corte ao longo do espectro do


transtorno autista será sempre arbitrária, resulta-
do de interesses e lobbies de determinados grupos.
Ou, porventura, acreditamos que existem critérios
objetivos que permitam estabelecer um ponto de
corte no espectro a partir do qual os indivíduos
possuiriam ou não uma “teoria da mente” 44,45 ou
as “condições de ‘personalidade’” (selfhood)46, e as-
sim tomar decisões objetivas acerca da imposição
de terapias ou testes genéticos (no caso dos fetos),
ou que possibilitassem atribuir aos indivíduos uma
autonomia e responsabilidade pelas suas ações?

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