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INTRODUÇÃO1
Podem os crentes ser cidadãos?
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996.
Os entendidos parecem ter razão quando dizem que um dos bens mais necessários para
desenvolver a vida em vista da possibilidade de ser feliz é uma autoestima moderada.
Diga-se prontamente que autoestima não é egoísmo, amor desmedido da própria pessoa, e menos
ainda egolatria, adoração de si mesmo. Ao contrário, a autoestima é um sentimento muito mais razoável e
sensato: saber apreciar-se a si mesmo como um ser humano que, afinal de contas, possui uma dignidade
que deve ser aceita, e é capaz, como pessoa peculiar, de realizar alguns projetos com sucesso, desde que
tais projetos possam atrair a sua simpatia.
Nestes tempos em que até o gato parece ter dignidade (é o que dizem os militantes dos direitos dos
animais), o mínimo que se pode pedir às pessoas é que tenham certo orgulho em ser o que são. E se
considerarmos aquilo que faz de cada um de nós uma pessoa única na espécie, será que não haverá
nenhum projeto que sejamos capazes de encetar e concluir com algum sucesso?
Para alguma coisa servem os provérbios, com sua profunda sabedoria popular: nem tanto ao mar,
nem tanto à terra, que corresponde à afirmação que Aristóteles fez passar à história, graças à sua célebre
máxima: a virtude está no termo médio, ou no meio.
No entanto, esse negócio de ficar no termo médio, que é mais ou menos como ter uma cabeleira
discreta que nos coloca entre o urso peludo e a rã totalmente alopécica, é bem mais difícil do que à
primeira vista parece. Se não for assim, seria bom avisar aos crentes já meio crescidinhos, que andam
muito embaralhados de tanto receber ordens contrapostas.
Nos tempos gloriosos e triunfalistas, esse mesmo crente tinha que sentir-se superior ao resto dos
mortais, pois acreditava estar em vias de ser a salvação do mundo. Havia quem ficasse de boca cheia para
dizer que era católico, e que tinha um amigo bispo e uma prima carmelita de clausura; mas com a chegada
da maré baixa, nos esvaímos em pedir perdão pelo que fez Torquemada, pela expulsão de mouros e
judeus, por Caupolican torturado e, por que não, pelo que ocorreu durante as Cruzadas. Isto para não falar
nas desculpas pedidas por conta do que fez Constantino, como se cada um estivesse na sua mesmíssima
pele na época do in hoc signo vincis.
Era assim, sem um contido e respeitável termo médio, que as coisas se passavam: ou frio ou
quente; ou éramos a reserva espiritual do universo, galardão do solar ibérico, como se o joio não estivesse
misturado com o trigo, ou então o diabo em pessoa, vestido de pele de cordeiro, como se o trigo não
pudesse florescer apesar do joio aparecer no meio dele.
Portas adentro, as coisas não melhoravam muito, principalmente quando éramos acometidos de
1
Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996. (Ed. Esgotada)
ataques mórbidos de autonegação seguidos da obrigação de sacrificar-nos por puro prazer, sem benefício
para ninguém. Ou então quando parecia haver também a obrigação de negar as próprias qualidades a
ponto de chegar à convicção, em geral totalmente infundada, de que se era escória pura, enquanto os
outros, inclusive os mais imbecis, não apenas eram algo, mas guardavam valores ocultos nos quais se
devia ter uma fé daquelas que movem bem mais do que montanhas.
Crer que uma pessoa tem certas qualidades é crer que ela pode fazer alguma coisa. Poder, mas
que palavra terrível! Deve-se fugir do poder como da peste - diziam os cristãos progressistas -, embora
cada qual administrasse sua pequena dose de poder. Enquanto isso, os cristãos reacionários pensavam
sem maiores rodeios, pelo que davam a entender, que se o poder vinha de Deus não havia por que sentir
nojo dele.
Ou tudo ou nada. Mas o problema é que há tantas formas diferentes de poder ...! Mau é o poder de
dominação, o poder de exploração, não o poder de levar a cabo projetos que arrebatam, não o poder de
acreditar que esses projetos terão algum sucesso. Neste último sentido, tem que haver o poder de fazer, de
ajudar os outros para que possam fazer, e de tentar conseguir os meios para poder fazer, desde que os
meios não se convertam em fins. Isto só os mortos não podem, mas o Deus dos cristãos é um Deus de
vivos.
A verdade é que não se pode ir muito longe com esses movimentos pendulares; mas uma coisa é
certa, caminha se a passos firmes para a neurose, decerto mais extensa do que o desejável. Seria melhor,
portanto, que nos resignássemos, com ânimo sereno, a ser o que somos. Isto é, não somos a reserva
espiritual do universo mundo, tampouco a sua escória. Lamento muito, tanto pelos masoquistas, que se
regozijam pensando em sua acachapante inferioridade em relação a todo bicho vivente, quanto pelos que
estão imbuídos do extremo oposto. Pois não somos superiores nem inferiores: somos pessoas, cidadãos
de um mundo modelado com pranto, mas também com dádiva; um mundo que pode ser melhor porque
acreditamos na força criadora de uma promessa e de nosso próprio encantamento, e nela confiamos;
temos esperança em um reino, que não está situado noutra galáxia, e não agimos como se fôssemos uma
quinta coluna a combater por um rei estrangeiro, mas por um rei que está conosco neste mundo que é o
nosso.
E é por isso que temos de vivê-lo a fundo, sem presunçosa superioridade, nem melindrosas atitudes
de inferioridade: temos de vivê-lo sem complexos. Na história dos cristãos há muita coisa a deplorar, mas
também há uma impressionante quantidade de pessoas que fizeram da felicidade alheia a sua própria
felicidade, mostrando, com o exemplo de suas vidas, que o mundo pode ser infinitamente mais humano do
que é. Mas, de qualquer maneira, cada um de nós é responsável por sua própria vida, e não temos de
outorgar-nos medalhas de bons, nem nos flagelarmos pelas ações dos canalhas.
E já que é assim, sem complexos, qual é a atitude que um crente sensato pode manter diante da
chamada "ética civil", que anda tão em moda nos últimos tempos?
A ética civil é, em princípio, a ética dos cidadãos, ou seja, a moral que os cidadãos de uma
sociedade pluralista têm de encarnar para que a convivência pacífica seja possível, dentro do respeito e da
tolerância para com as diversas concepções de mundo2. Ao longo deste livro, explicaremos mais
detidamente em que consiste esse tipo de ética, mas agora quero apresentar uma pequena caracterização
para esclarecer desde já qual vai ser o enfoque do trabalho.
Não faz muito tempo, embora pareça ter sido há séculos, escreveu-se um livro que tinha um título
provocador: "Podem os vermelhos ser cristãos?" Naqueles idos, estavam em moda os diálogos entre
cristãos e marxistas, e tal pergunta de algum modo recriminava o fato de alguns cristãos não aceitarem que
se pudesse ser ao mesmo tempo cristão e marxista. O movimento" Cristãos pelo socialismo" defendia a
possibilidade de identificação, aduzindo, entre outras razões, que de fato havia cristãos que também eram
marxistas - ou vice-versa - , enquanto outros entendiam que, sendo o cristianismo e o marxismo duas
2 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, Tecnos, Madri, 1993, capo 12; A. Cortina, 1. Conil!, A. Domingo, D.
Garcia Marzá, Ética de Ia empresa, Trotta, Madri, 1994, capo 2; M. Vidal, Ética civil y sociedad democrática, DDB, Bilbao, 1992; A.
Domingo, B. Bennássar, " Ética civil" , em M. Vidal (ed.), Conceptos fundamentales de ética teológica, Trotta, Madri, pp. 269-291;
E. G. Martinez Navarro, "Reflexiones sobre Ia moral cívica democrática" , em Documentación social, número 83 (1991), pp. 11-26.
cosmo visões, era possível ser cristão e militar num partido comunista, mas não "ser" ambos de uma só
vez: a última instância de conduta tinha que ser uma ou outra, pois não podia ser as duas ao mesmo
tempo.
Com todo o respeito que tenho pelos "Cristãos pelo socialismo", mui especialmente por figuras
como as de Alfonso Carlos Comin e o recentemente falecido Juan Garcia Nieto, creio que o fulcro da
questão se enraizava no que pessoas muito marcantes para mim, como Ricardo Alberdi ou Rafael Belda
assinalavam: é perfeitamente possível compartilhar duas ideologias, desde que elas não pretendam erigir-
se em instâncias últimas de conduta, mas permitam que a pessoa escolha uma delas como instância
última, e sirva-se da outra como modo de realizar a primeira; modo que pode ser compartilhado por outras
pessoas, que, por sua vez, podem ter como referência instâncias últimas diferentes das suas3.
Obviamente, não é minha intenção voltar ao tema dos diálogos entre cristãos e marxistas, nem
relembrar que a dificuldade essencial consistia no fato de que eram duas visões do mundo e da história
incompatíveis, haja vista que cada uma reclamava adesão absoluta. Como, a esta altura, mais de um leitor
deve estar se perguntando por que motivos surgem agora as dificuldades de compaginar marxismo e
cristianismo, devo dizer que estou simplesmente tentando lembrar uma velha experiência, no intuito de
trazer à tona uma outra, para cuja solução talvez a anterior tenha alguma utilidade, embora se trate de
questões diferentes.
O problema que ora se coloca diz respeito à ética civil ou ética dos cidadãos, que mais de um leitor
pode considerar incompatível com a ética cristã. E quando digo "mais de um" estou pensando em alguns
crentes, convictos de que a fé torna as coisas tão claras que nada mais lhes resta a aprender de seus
vizinhos, além daquilo que já tinham aprendido no catecismo; também estou pensando em não crentes
laicistas para quem a religião é, em suma, uma relíquia de irracionalismos do passado, um obstáculo para
a felicidade racional e sensata das pessoas e, por conseguinte, que não é possível ser, ao mesmo tempo,
cristão e cidadão, a menos que se esteja totalmente esquizofrênico4.
Foi pensando em uns e outros que coloquei a questão que é, na realidade, o enfoque deste livro. O
problema não é mais o de saber se os cristãos podem ser vermelhos ou se os vermelhos podem ser
cristãos. Agora, a pergunta é: podem os crentes, isto é, as pessoas que têm crença e fé religiosa, ser
cidadãos? Podem professar uma moral cívica? Ou: será que lhes interessa fazer isso?
Naturalmente alguns poderiam responder à minha pergunta partindo do ponto de vista da crença,
para dizer que o melhor seria dar a volta por cima da questão e entregar-se de vez à evangelização da
cidadania; afinal, diriam, a atenção de um bom crente deve concentrar-se nisto: fazer apostolado. Tudo
bem, mas gostaria de replicar pelo menos duas coisas: que as pessoas, em princípio, podem ser ou não
cristãs, enquanto ser cidadão, como veremos, é ser membro de uma determinada comunidade política ou
de uma comunidade humana universal, no caso dos "cidadãos do mundo". Se por um lado, consideramos
que o crente não duvida de que sua fé seja contagiante - se duvida, é porque não se inteirou do valor da fé
- , de outro lado temos de reconhecer que muito amiúde e de maneira explícita surgem dúvidas sobre esta
questão: os crentes podem ser cidadãos como os outros. Por quê?
Porque em definitivo, ejá houve quem o dissesse, os crentes são vistos como aquela espécie de
quinta coluna a que já me referi. Os católicos, por exemplo, seriam os que recebem ordens de Roma,
ficando obrigados a algo como uma "disciplina de voto" e, portanto, não estariam realmente livres para
dialogar com os cidadãos ou para construir, junto com eles, uma vida comum.
Ocorreria então com os cristãos a mesma coisa que ocorre com os parlamentares. Supõe-se que
quando estes vão ao Parlamento é para debater propostas até chegar a um acordo. Mas muita gente
pensa que, em vez disso, eles só fazem uma representação teatral para o público, já que nenhum deles
tem a menor intenção de se deixar convencer pelos demais. Todos já estão sobejamente convencidos
3 R. Alberdi, R. Beld, lntroducción crítica al estudio del marxismo, DDB, Bilbao, 1986 (segunda edição corrigida).
4 A. Cortina, J. Garcia Roca, "Laicismo, ética e religión en el debate socialista espanol", em Euroizquierda y cristianismo,
Fundación Friedrich Ebert/lnstituto Fe y Secularidad, Madri, 1991, pp. 165-184; A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical,
capo 12.
sobre o que vão votar, e nenhum argumento no mundo, por mais engenhoso que seja, os faria modificar
sua decisão.
De acordo com esta analogia, o crente que dialoga com o não crente também estaria fazendo uma
representação, porque já vem com o seu voto marcado ou pelo Vaticano ou pelo bispado correspondente,
e os argumentos do seu interlocutor não conseguiriam arredá-lo de sua posição. " Daqui não saio, daqui
ninguém me tira" seria, no fundo, o pensamento do. crente. Com a agravante de que com o crente não
ocorre o mesmo que com o parlamentar, pois este sabe de sobra que é defensor dos interesses do seu
partido e o crente está convencido de que a sua proposta é boa para a humanidade inteira, que o seu
trabalho é em proveito dela, inclusive daqueles que nem se dão conta de que é para seu bem. O crente
seria, por conseguinte, um integrista em potência, e numa potência próxima do ato.
Desde já, gostaria de dizer pelo menos três coisas sobre este livro. A primeira, é que lamento de
todo o coração que muitos não crentes conheçam pouco as pessoas que pertencem a essa coisa - que
pode ter a aparência de um "bunker" - chamada"igreja". Se a olharmos por dentro, fica difícil encontrar
outra comunidade de pessoas que apresente maior plural idade. Limitemo-nos a dizer que o seu espectro
engloba desde os que estão convencidos de que os melhores profetas dos últimos tempos têm sido extra
eclesiais, até aqueles que acreditam que fora do mundo dos católicos praticantes não há salvação, ainda
que esta seja entendida no mais amplo sentido da palavra.
Em segundo lugar, gostaria também de dizer - já que a genética está tão em moda hoje em dia -
que a predisposição ao integrismo está presente nos gens de qualquer ideologia; por conseguinte, o
desenvolvimento dessa predisposição depende sobretudo do meio, como muito bem o assinalam os
"culturalistas".
Se se der à planta um meio propício para que ela creia que é a reserva espiritual da humanidade, se
se lhe disser que ela é superior, ela só terá razões para tomar-se integrista. Faça se o vazio em tomo dela
na vida social, discriminando-a como a um leproso por causa de sua crença, no sentido bíblico do termo, e
ela desenvolverá idêntico integrismo. Dê-se a um povo miséria e dor, e ele recorrerá à sua religião como a
um cravo ardente, utilizando-a como instrumento de coesão para ver se consegue sair de sua miséria. Dê-
se à planta, neste caso entendida como figuração da pessoa ou do povo, um meio normal no qual possa se
considerar em condições de dar uma contribuição mesmo parcial, e daí resultará um cidadão ou um povo
dialogante de esplêndida qualidade.
Ao dizer estas coisas, posso imaginar o enfado de alguns de meus amigos crentes a resmungar:
será que a esta altura não teremos nada melhor para fazer senão ficar mendigando cartas de cidadania,
como se não houvesse nada de mais importante no mundo? Respondo de antemão que, obviamente, há
grande quantidade de projetos muito atrativos, um dos quais quero comentar aqui, pois ele me parece ser
verdadeiramente urgente. É o projeto de construção de uma ética cívica entre crentes e não crentes em um
país como a Espanha, e em outros bem parecidos. País no qual tanto há laicistas convencidos de que os
crentes não podem ser cidadãos, quanto fideístas, por sua vez persuadidos de que não vale muito a pena
ser cidadão, visto que eles, os crentes, já possuem todas as respostas de que precisam para viver, e não
têm mais nada a aprender de seus concidadãos.
Na esteira dessas considerações, a última mensagem desta introdução consistirá em lembrar que
os problemas morais de uma sociedade pluralista e multicultural exigem uma resposta válida para essa
sociedade no seu todo, e não apenas para uma parte dela. Se quisermos que as leis não deem as costas
para a sensibilidade moral de um ou vários setores da população, torna-se urgente descobrir quais são os
valores morais que podemos compartilhar.
É certamente possível ser crente e cidadão, e não só é possível, como também necessário. Desde
que não se entenda "ser crente" no sentido integrista ou fideísta, nem se entenda "ser cidadão" só no
sentido laicista. No primeiro caso, se a fé nada tem a aprender da racionalidade cidadã, o jogo está
desfeito; no segundo caso, se a fé é uma substância imbecilizante, a situação do jogo será exatamente a
mesma. Fé e razão são bois da mesma canga, no entanto, ressaltemos que se a fé se apresenta como
instância última de ação, o mesmo não ocorre com a ética civil.
A ética civil consiste num conjunto mínimo de valores que se não forem compartilhados pelos
cidadãos de uma sociedade pluralista, tornam a convivência (e não apenas a coexistência) entre eles
impossível. Mas tais valores podem fundar-se em modos distintos de conceber o homem e a história, e são
esses modos que funcionam como instâncias últimas de conduta. Aqui não há portanto incompatibilidade
entre duas cosmovisões, como no caso do marxismo, pois estamos falando de dois níveis distintos de
exigência: o nível das premissas últimas que, no caso dos crentes, são religiosas e o das conclusões, que
compõem a ética cívica e podem ser compartilhadas por uns e outros5.
Assim sendo, se estiverem de acordo, pensemos juntos e sem complexos como fazer um mundo
mais humano, no qual seja possível vivenciar os valores cristãos e cidadãos de liberdade, igualdade e
solidariedade. Porque toda e qualquer pessoa merece esse mundo e não outro, posto que cada pessoa é
um fim em si mesma e não um meio para outra coisa, utilizando a linguagem kantiana; ou, na linguagem
mais cálida da fé cristã, porque cada pessoa é filha de Deus, feita à sua imagem e semelhança.
Capítulo 1
Uma sociedade corrompida?
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 17-33.
11 A. Domingo, "La perversion de Ia paI abra", em El Ciervo, número 525 (1994), pp. 5-7.
12 No caso da Administração Pública, há três tipos principais de corrupção: a prática do suborno (que é a oferta de uma
recompensa a um funcionário público para que ele modifique seu parecer ou sua decisão em favor do interessado), o nepotismo
(ou a concessão de empregos ou de contratos públicos em função dos laços de parentesco e não do mérito) e o peculato, ou o
desvio e o desfalque de dinheiro público para o uso privado. Ver N. Bobbio, N. Matteucci, Diccionario de politica, Siglo XXI, Madri,
1983, vol. I, pp. 438 e seguintes.
13 B. MandevilIe, La labuia de las abejas, Fondo de Cultura Economico, México, 1982.
privados é desvirtuar a natureza da política, mesmo sabendo que sempre houve indivíduos corruptos14.
Mas é bom lembrar que a corrupção não é apenas política, e acredito que isto também não é
nenhuma novidade. Há corrupção também na atividade econômica e empresarial, na atividade docente e
das áreas de saúde, assim corno no conjunto das atividades profissionais. A corrupção política se distingue
dos outros tipos de corrupção por estar voltada diretamente para a gestão dos bens públicos, desviando-
os, nesse caso específico, para fins privados. Mas em que consiste a perversão de todas essas atividades?
Qual é a causa que leva urna atividade humana a corromper-se?
Para responder a esta pergunta, recorrerei às contribuições de Alasdair MacIntyre, autor que
oferece, a meu ver, análises extremamente valiosas para entender o que está ocorrendo nas sociedades
desenvolvidas, embora não esteja de acordo com a solução proposta por ele. No caso em tela, sua análise
dos conceitos de "atividade social" e "práxis social" nos será de grande ajuda15.
Segundo MacIntyre, atividade social é urna atividade cooperativa que tende a alcançar bens que lhe
são internos e que nenhuma outra pode proporcionar. Esses bens são precisamente os que lhe dão sentido
e, por sua vez, lhe conferem legitimidade social, posto que qualquer atividade humana encontra seu
sentido na busca de um fim próprio16, assim como necessita ser aceita pela sociedade em que se
desenvolve, a fim de ser socialmente legitimada17.
Por outro lado, essas distintas atividades buscam também um outro tipo de bens, que chamamos
externos porque não são os que lhes dão sentido, mas mesmo assim também podem ser alcançados pela
realização dessas atividades. Esses bens são comuns à maior parte das atividades humanas e, por isso,
não servem para especificá-las nem para distingui-las umas das outras. São bens como o dinheiro, o
prestígio ou o poder, resultantes da política ou da medicina, do esporte ou da pesquisa, mas são de tipo
diferente dos bens internos graças aos quais cada atividade se distingue das demais e adquire um
sentido18.
A título de exemplo, o bem interno da atividade esportiva, que a distingue de outras, é o prazer de
jogar ou de assistir a um bom jogo. Não obstante, essa atividade é também um meio de ganhar dinheiro, de
obter prestígio através dos meios de comunicação e, enfim, de conseguir algum poder social, caso a
pessoa interessada saiba movimentar-se pela vida. Evidentemente, estas três coisas podem ser
conseguidas através de outras atividades, como a de um banqueiro hábil ou a de um político astuto.
A mesma coisa acontece com a atividade docente ou a médica. Elas podem proporcionar dinheiro,
prestígio e poder, mas seu bem interno consiste, respectivamente, em transmitir ensinamentos que formam
pessoas autônomas e críticas, e assegurar a saúde dos pacientes. De sua parte, o bem interno da política
é produzir o bem comum, e o da atividade empresarial gerar riqueza para satisfazer as necessidades
humanas19. Em que consiste, portanto, a corrupção de cada uma dessas atividades?
A corrupção das diferentes atividades e instituições se dá quando aqueles que delas participam não
as consideram pelo que elas são, visto que eles não dão valor ao bem interno que através delas se busca e
que lhes dá sentido, especificidade e legitimidade. Eles as realizam exclusivamente por causa dos bens
externos que podem alcançar graças a elas: vantagens econômicas, vantagens sociais, poder. Com isto,
tal atividade e os que a praticam acabam perdendo a legitimidade social e, por conseguinte, toda
credibilidade. Pois quando uma atividade e as instituições através das quais ela se realiza deixam de
buscar o fim para o qual estão socialmente legitimadas, elas se desnaturalizam, se corrompem e ficam
obviamente sem legitimação. A propósito, é bom lembrar que a corrupção não é apenas ilegal, mas
também imoral.
14 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capo 9, ponto 3: " El desencanto político".
15 Alasdair MacIntyre, Tras la virtud, Critica, Barcelona, 1987, pp. 233 e seguintes.
16 Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro I, capo I. ...
17 A. Cortina, J. ConilI, A. Domingo, D. Garcia Marzá, Etica de la empresa, Trotta. Madri, 1994, capo I.
18 A. MacIntyre, Tras ia virtud, pp. 233 e seguintes.
19 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, principalmente na parte III; A. Cortina, J. Conill, A. Domingo, D. Garcia
Marzá, Ética de Ia empresa, sobretudo o capítulo I.
Uma sociedade desmoralizada é aquela em que as diferentes atividades vão perdendo a própria
substância, porque os que as realizam preferem os bens externos aos internos, de tal modo e tanto que
todas as atividades acabam por homogeneizar-se e sua única meta passa a ser, finalmente, o dinheiro, o
prestígio e o poder.
A obtenção moderada desses bens é certamente necessária para viver, pois todos nós precisamos
de meios econômicos para manter uma existência digna, alcançar um reconhecimento social que nos
permita ter uma certa autoestima, sem a qual nada se pode empreender e, enfim, poder fazer as coisas
que desejamos.
Mas a corrupção consiste em trocar os bens internos pelos externos, a ponto de considerar como
tolos aqueles que realizam determinadas atividades por causa do seu bem interno. Chegar a esse ponto é
um péssimo sintoma, pois o fato de uma sociedade considerar como tolos aqueles que se comprometem
com o bem interno de uma atividade social benéfica mostra claramente o alto nível de decomposição em
que a sociedade se encontra. Ou, o que dá no mesmo, mostra o nível de desmoralização e de desânimo a
que chegou.
A existência de uma sociedade desmoralizada acarreta também a marginalização de muitas
pessoas. Se a política não busca o bem comum, se a empresa não visa a satisfação das necessidades
humanas, se a atividade informativa não procura elevar o nível de informação e opinião dos cidadãos, se a
medicina e a enfermagem não se desvelam pelo bem dos pacientes, e se o mesmo podemos dizer das
atividades restantes, é certo que às margens delas fica um número elevado de pessoas. E para isso não há
direito, porque não temos o direito de proceder assim.
O problema não está portanto nos casos concretos, que sempre se pode denunciar, mas na
situação geral de desnaturalização das atividades como um todo, na exata medida em que uma sociedade
só busca prioritariamente os bens externos. E o que estamos dizendo não é apenas um discurso para
cristãos, mas vale para qualquer pessoa, porque a riqueza pessoal vem da riqueza das atividades que
desenvolvemos.
MacIntyre lembra ainda que para levar a bom termo cada uma das atividades sociais e alcançar os
bens que lhe são próprios, é necessário desenvolver alguns hábitos, que ele chama de "virtudes"20. Ou
seja, a predisposição que a pessoa tem ou adquire para alcançar o fim específico de uma atividade21. Os
jornalistas, por exemplo, devem adquirir algumas virtudes que não são as mesmas dos docentes, dos
trabalhadores de uma empresa ou dos políticos, e esse desenvolvimento de virtudes diferentes, de
habilidades e capacidades resulta em riqueza para o conjunto da sociedade.
Se substituirmos os bens internos pelos bens externos, aqueles que têm habilidade para ganhar
dinheiro e alcançar prestígio e poder acabam aparecendo como figuras eminentes em cada uma de suas
atividades, embora, no fundo, não sejam tão eminentes assim.
As pessoas habilidosas para as relações sociais cujo domínio constitui efetivamente um autêntico
poder - acabam por conseguir doutorados honoris causa, prêmios artísticos, cargos de responsabilidade22.
Não digamos por ora se a "virtude" delas vai ao ponto de apoderar-se dos meios de comunicação - versão
moderna da pedra filosofal buscada pelos alquimistas, que acreditavam que ela transformava tudo em
ouro; o fato de aparecer nos meios de comunicação não converte todo discurso em ouro, mas o faz reluzir,
parecer ouro. O que é mais do que suficiente para o público, nessa nossa cultura da imagem. A este
respeito, José L González Faus adverte.., nos de forma pertinente sobre o perigo que há em que a
democracia acabe sendo "substituída pela telecracia (que não é o poder do povo, mas a 'ditadura a
distância'), ou pela pseudocracia (império do falsificado)”23.
O sinal mais alarmante da decomposição aparece quando o cidadão comum começa a invejar
aqueles que praticam a corrupção e deseja estar em seu lugar; ou quando o chamado "homem da rua" diz
20 A. MacIntyre, Tras Ia virtud, pp. 237 e seguintes.
21 C. Thiebaut, "Virtud", em A. Cortina (ed.), Diezpalabras clave en ética, Verbo Divino, Estella, 1994, pp. 427-461.
22 A. Cortina, La moral dei camaleón, Espasa-Calpe, Madri, 1991, capo 8: " Amicus Plato".
23 J. I. González Faus, " Critica de Ia razón occidental", em Sal Terrae, março de 1991, p. 258.
em seu foro íntimo ou comenta com seus amigos: "Quem dera pudesse eu fazer o mesmo!". Nesse
momento, que receio estar chegando para a Espanha, teremos chegado ao fundo e só nos restará
chafurdar no lamaçal, como se costuma dizer. Porque então teremos perdido a sensibilidade para o mal, a
capacidade de indignação, e já não haveria motivo para exigir justiça.
Capítulo 2
A crise dos valores morais
In: Adela Cortina. Etica Civil e Religiao, Sao Paulo: Paulinas, 1996, pp. 34-50.
1. O CONCEITO DE CRISE
A palavra "crise" significa, segundo o dicionário, aquele momento em que se dá uma mudança
marcante em alguma coisa, por exemplo, numa enfermidade ou na natureza de uma pessoa". No caso da
enfermidade, a pessoa entra em crise quando chega ao ponto de tomar o caminho da recuperação ou o
caminho da morte. Quanto aos valores pessoais, eles entram em crise quando alguém começa a pôr em
questão suas convicções, a duvidar de que sejam verdadeiras, passando a viver uma situação de
inquietude ou de angústia por não saber se confirmará ou abandonará tais convicções. Estão neste caso as
crises de valor ou as crises de fé das pessoas.
O momento crítico é, portanto, aquele em que ocorre uma mudança marcante, cujo desenlace não
se deixa adivinhar. No caso da enfermidade, será a cura ou a morte. No caso das pessoas, a confirmação
das convicções ou o abandono delas. Em qualquer uma dessas opções pessoais pode ocorrer um
crescimento ou uma deterioração. Por isso, as crises pessoais podem nos levar a crescer ou a deteriorar. É
costume dizer em sociologia que o conceito médico de crise não se aplica às sociedades, já que estas não
podem morrer. As sociedades podem ter uma vida de alta ou baixa qualidade, mas não perecem como os
indivíduos. Receio, porém, que tenhamos chegado ao momento em que, graças aos avanços técnicos e à
nossa falta de juízo, se possa modificar esse tópico da sociologia: nossas sociedades podem morrer
porque estamos destruindo o ecossistema, e o final dessa história tanto pode ser, como dizia Bloch, um
optimum ou um pessimum. Temos a capacidade de destruir a terra e a vamos exercendo pouco a pouco,
na medida em que estamos aniquilando o ecossistema29.
Podemos também sobreviver, mas ficaríamos como se tivéssemos sido atingidos pela doença de
Alzheimer, isto é, com uma vida de baixa qualidade, pois haveria setores a morrer de fome, de guerra e de
solidão. A terceira possibilidade social consistiria em que, como no caso das pessoas, a crise servisse para
o crescimento e o amadurecimento. Mas será que estamos realmente numa crise social de valores, que só
pode levar-nos a uma destas três saídas: disfunção social, existência de baixa qualidade, crescimento e
amadurecimento?
Convém analisar melhor a situação dos valores, porque alguns deles talvez não tenham sido postos
em questão como se dá a entender. Há certo tempo, chegou entre as notícias de Ruanda a declaração de
uma religiosa que lá trabalhava, dizendo: "Nós não podemos sair daqui enquanto houver um só doente".
Diante de um testemunho de amor desse calibre, crentes e não crentes terão sentido um calafrio por
perceber que o amor a céu aberto não está posto em questão. Um amor assim continua produzindo
28 J. L. Fernandez, A. Hortal, Ética de Ias profesiones, Universidad Pontificia Comillas, Madri, 1994,
29 K. O. Apel, La transformación de la filosofia, Taurus, Madri, 1973, vaI. 11, pp. 341 e seguintes; Hans lonas, El principio
responsabilidad, Herder, Barcelona, 1994.
admiração, tanto é verdade que todos e cada um queremos ser amados.
Nota-se hoje em dia que há maior tolerância em face de formas de vida diferentes da nossa, e que
já não são tão apreciados como outrora valores tais como a moderação nos gastos, tanto da parte dos
homens como das mulheres, a docilidade dos filhos, a fidelidade das esposas -entendida aqui como não
dormir com outro homem -, os valores varonis, o patriotismo, a conservação fiel de uma mesma ideologia30.
Por outro lado, quando entramos no terreno das coisas às quais damos realmente valor, vê-se que o amor,
o reconhecimento, a lealdade, a ternura continuam sendo indiscutíveis; quanto ao dinheiro, prestígio e
poder, continuam sendo buscados, como sempre31.
Não se pode, portanto, falar pura e simplesmente de "crise de valores", pois continuamos
apreciando certas atitudes e ações como sendo mais valiosas do que outras. Tampouco se pode dizer que
todos os valores morais apreciados durante um tempo não interessam a mais ninguém. A meu ver,
estamos num momento crítico no sentido de que o modo de descobrir valores e o modo como se quer
encarná-los está mudando. Por isso, passo a comentar rapidamente cinco dimensões de nossa crise atual,
para ver se podemos enfocá-la como etapa de crescimento, e não como disfunção ou doença de
Alzheimer. É bom lembrar que o mundo humano nos abre um leque de possibilidades - com maiores ou
menores limitações - para que façamos nossa escolha, mas não nos impõe um destino implacável que só
leve à resignação32. Tentar fazer o melhor, não obstante todas as limitações, é a atitude própria das
pessoas de corpo inteiro.
38 A. Cortina, La moral dei camaleón, Espasa-Calpe, Madri, 1991.
39 Esta é uma das razões pelas quais o Plano de Estudos da DCA contém a rubrica "Realidade Nacional".
40 I. Ellacuría, Filosofia de Ia realidad histórica; el compromiso político de Ia filosofia en América Latina.
seremos levados a ver que existem pelo menos dois terços da humanidade que são "povos inteiros
crucificados", o que desde já significa que o ponto de partida é uma situação de "desumanidade ". Um
projeto ético não pode evitar esse ponto de partida, mas deve visar a que o processo evolutivo de
hominização - pelo qual o ser humano foi surgindo paulatinamente - possa completar-se em processo de
humanização.
É neste sentido que Jon Sobrino propõe que se vá além do "princípio esperança" de Ernst Bloch, e
talvez além penso eu - do "princípio responsabilidade" de Hans Jonas, para assumir o "princípio
misericórdia", que é uma necessidade imperiosa quando se convive com a injustiça que atinge os povos
crucificados. Não se trata de ficar dando voltas em torno das gerações passadas, mas de assumir o
sofrimento das gerações presentes41.
41 Jon Sobrino, El principio misericordia, DCA, San Salvador, 1992, p. 8.
42 Os dois modelos de fundamentação que menciono a seguir foram examinados e criticados de forma detalhada em
meus Ética mínima, sobretudo na parte 11; Ética sin moral, Tecnos, Madri, 1990, no capítulo 3; e em Ética aplicada y democracia
radical, capítulos 2 e 3.
43 Jean François Lyotard, La condición postmoderna, Cátedra, Madri, 1984; G. Vattimo, Elfin de Ia modernidad, Gedisa,
Barcelona, 1986; J. ConilI, El enigma dei animalfantástico, Tecnos, Madri, 1991, capítulos 7 e 8.
44 A. J. Ayer, lenguaje, verdad y lógica, Martinez Roca, Barcelona, 1971, capítulo 6; A. Cortina, Ética mínima, parte II.
45 Alasdair MacIntyre, op. cit.; B. Barber, Strong Democracy, University ofCalifornia Press, 1984; M. Walzer, "The
Communitarian Critique of Liberalism", em Political Theory, volume 18, número 1 (1990), pp. 6-23.
46 J. Rawls, Teoria de Ia Justicia, Fondo de Cultura Economico, Madri, 1978; Political Liberalism.
47 Xavier Zubiri, Sobre el hombre, principalmente os capítulos 1 e 7; J. L. L. Aranguren, Ética, parte I, capítulo 7; D. Gracia,
Fundamentos de bioética, Eudema, Madri, 1988, pp. 366 e seguintes; A. Pintor Ramos, Verdad y sentido, Universidad Pontificia de
Salamanca, 1993; J. Conill, "La ética de Zubiri", em El Ciervo, números 507-509 (1993), pp. 10 e 11.
comunicativas e no fato da argumentação48.
Em outros de meus trabalhos, esforcei-me para mostrar que é possível estabelecer uma
fundamentação racional da moral, e que, para tanto, a contribuição dos zubirianos e da ética do discurso é
complementar49. Nesta perspectiva, e em contraposição aos que consideram as questões morais muito
"subjetivas", procuro mostrar que se pode argumentar sobre a moral e chegar a juízos compartilhados
sobre uma grande quantidade de problemas, tais como a eutanásia, o desemprego, o dinheiro sujo ou o
aborto, as desigualdades econômicas ou a engenharia genética. Podemos argumentar sobre tudo isto e
chegar a acordos que nos permitam, juntos, construir o mundo. Potencializar esse projeto de argumentação
e de busca de acordo é a "indicação" que extraio das considerações que acabam de ser feitas.
5. A CRISE DO SENTIDO. CRIAR E PARTILHAR SENTIDOS.
Em sociedades de democracia liberal como a nossa, é inegável a existência de uma crise de
sentido, mas, sobretudo, de sentido partilhado. Grupos diferentes continuam orientando suas vidas ou pelo
sentido religioso, ou pelo sentido que encontram numa ideologia política. No entanto, verifica-se que os
projetos partilhados pelo conjunto da sociedade estão em baixa. E chegamos a essa situação por causa da
perda de credibilidade das grandes utopias, do retrocesso do sentido religioso da vida e do
depauperamento do sentido patriótico, exceto no caso dos nacionalismos e dos Estados Unidos. Nem
todos os cidadãos partilham um projeto político, ou religioso, nem sentem que sua pátria possa realizar
alguma tarefa de singular transcendência.
A conjunção desses fatores, somados à depauperação das atividades sociais, que acaba por
despojá-las de seu sentido próprio, como já assinalamos, tem como resultado a crise generalizada de
sentido que hoje envolve as sociedades de democracia liberal. Ora, nós, seres humanos, necessitamos
muito mais de sentido do que de felicidade, pois esta é uma meta que vez por outra se pode experimentar,
ao passo que o sentido do que fazemos e vivemos é essencial para todos.
Por isso podemos dizer que a falta de sentidos partilhados, assim como a falta de projetos que nos
arrebatem, individual ou coletivamente, é uma das mais graves carências de nossas sociedades e um dos
maiores motivos de desmoralização. O que fazer para alcançar motivação e sentido?
48 K.O. Apel, Transformación de lafilosofia; Estudios éticos, Alfa, Barcelona, 1986; Verdad y responsabilidad, Paidós,
Barcelona, 1992; J. Habermas, Conciencia moral y acción comunicativa; "Justicia y solidaridad", em K. O. Apel, A. Cortina, D.
Michelini, J. De Zan, Ética comunicativa y democracia, Crítica, Barcelona, 1991, pp. 175-205. Para a ética do discurso, tal como é
tratada entre nós, ver A. Cortina, Razón comunicativa y responsabilidad solidaria, Sígueme, Salamanca, 1985, Ética mínima; Ética
sin moral; Ética aplicada y democracia radical; J. Conill, El enigma dei animal fantástico; J. Muguerza, Desde Ia perplejidad, FCE.
Madri, 1991; V. Domingo García Marzá, Ética de Ia justicia, Tecnos, Madri, 1992.
49 A. Cortina, Ética sin moral, pp. 55 e seguintes.
50 J. Conill, El enigma dei animal fantástico, capítulo 8.
A reanimação de nossas sociedades - entendo "reanimação" como sinônimo de "moralização" -
exige, portanto, que tenhamos em mente os bens internos das diferentes atividades e adquiramos as
virtudes necessárias para alcançá-los, pois em caso contrário o tecido social se desfará e uma grande
quantidade de pessoas será deixada à margem. Essa reanimação só terá êxito se fortalecermos o sentido
do que é justo, o que implica em tomar decisões que levem em conta os que são afetados por elas,
recriando e encarnando a justiça social em nossas atividades e instituições51. Mas de que ponto podemos
fazê-lo?
O momento é de somar e não de subtrair; é o momento de assumir aquela perspectiva que já
partilhamos com outros nas sociedades democráticas. São aqueles valores em que há coincidência de
intenção, porque a democracia não é apenas uma forma de organização política, visto que obtém
legitimidade na defesa de certos valores morais concretizados nos direitos humanos da primeira, segunda
e terceira geração, e na defesa de valores como a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Esses valores
constituem aquilo que me parece adequado chamar de ética dos mínimos, que já estão incorporados em
nossas instituições, mas que é preciso trazer de novo à luz.
A ética dos mínimos é uma ética cívica, de todos os cidadãos, e é ela que nos permite tomar
decisões morais partilhadas (por exemplo, nas comissões de ética dos hospitais ou das empresas), bem
como criticar os políticos e transmitir certos valores às gerações futuras, em centros não confessionais.
Mas é legítimo transmitir certos valores a crianças e jovens, ou será que isso é uma coisa ilícita na
sociedade pluralista? Tem sentido criticar ações de outros se não o fazemos a partir de certos valores
efetivamente partilhados?
A mesma humanidade que aprendeu através da história que a escravidão, o assassinato, a mentira
e a opressão são coisas perversas, não pode sair dizendo agora que não tem nada em comum, ou que
carece de uma perspectiva que lhe permita, com os cuidados necessários, tomar algumas decisões mais
humanizadoras do que outras. E é deste ponto, ou desta perspectiva, que temos de fazer o necessário
para que a nossa crise seja de crescimento, capaz de fortalecer os valores e sentidos partilhados, e de
propor, numa atitude de diálogo, valores que podem não ser aceitos por todos, mas que consideramos
valiosos.
Capítulo 3
Moral cívica e moral da crença religiosa
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 51-82.
1. E AS RELIGIÕES NASCERAM...
E as religiões nasceram, pelo que dizia Miguel de Unamuno, para saciar o desejo humano de
imortalidade52. Porque nós, seres humanos, somos nosso próprio sonho e o sonho uns dos outros,
necessitamos de um adormecido que eternamente sonhe conosco, ao qual mantemos dormindo com a
cadência de nossas liturgias, pois se ele acordar nossa morte será definitiva53. A esperança íntima que tem
iluminado as religiões é que o tempo pode ser linear ou circular, pois a vida não termina, mas se
transforma.
As religiões nasceram (como dizia um amigo meu, e se ele não acreditasse nisso, ter-se-ia
declarado ateu) para que os homens pudessem contar minuto por minuto, segundo por segundo, com um
testemunho fiel de sua existência. Pois o que seria de nossa vida se não fosse vivida diante do Outro,
minuto por minuto e segundo por segundo?
As religiões nasceram - como diz e repete o meu amigo Antonio Andrés - para dar às nossas vidas
51 D. Garcia Marzá, Ética de lajusticia; E. G. Martinez Navarro,"Justicia", em A. Cortina (ed.), Diezpalabras clave en ética,
pp. 155-202.
52 Este capítulo inspira-se no artigo "Morales racionales de mínimos, morales religiosas de máximos", em Iglesia Viva,
número 168 (1993), pp. 527-543. O número da revista dedicava-se a estudar a colaboração possível entre diferentes religiões com
vistas à construção de uma ética cívica, cada uma delas guardando, obviamente, sua especificidade.
53 Miguel de Unamuno, Niebla, em Obras selectas, Plenitud, Madri, 1965, pp. 579-585.
um sentido que ultrapassa os limites da morte e ilumina a cada dia nossos pequenos sentidos54.
As religiões nasceram, pelo que dizem os sábios e tantas pessoas humildes, para que a felicidade e
a plenitude sejam possíveis, bem como a misericórdia e a paz, a fidelidade e a compaixão. Para nos dar
um coração de carne e sepultar o coração de pedra.
As religiões nasceram... Sim, mas que terá havido desde seu nascimento para que ao longo dos
séculos despertem tantos receios e suspeitas, a ponto de que já se tenha dito que primeiro ternos de nos
libertar das religiões para poder alcançar a liberdade humana?
Há muitas hipóteses sobre o assunto disseminadas em textos, conversas e conferências. No que diz
respeito às religiões monoteístas, uma compreensão a-histórica de Deus e da verdade teria levado a
substancializar as mediações que a história requer e a impô-las como verdades absolutas, quando
logicamente elas estão marcadas pelo caráter provisório das coisas históricas. Ademais, se as instituições
religiosas correspondentes se instalam no centro da sociedade e tomam para si o poder político, ou
estabelecem com ele uma convivência estreita, a intolerância e a intransigência se tornarão os inevitáveis
companheiros de propostas que, na realidade, só podem ser feitas corretamente num clima de convite e de
diálogo.
Graças a Deus - é bem o caso de dizer -, graças a Deus que em muitas partes de nosso pequeno
mundo os acontecimentos históricos foram afastando as instituições religiosas do poder político e de seus
arredores, e levando-as para o lugar que deve ser o seu, ou seja, a sociedade civil, pois só a partir daí é
que as religiões podem continuar a fazer as propostas para as quais nasceram.
Ontem como hoje, continuamos necessitando de um sentido pleno e de plena misericórdia, de
imortalidade e felicidade, de fidelidade indefectível como também de graça, pois todos esses são bens que
somente Deus pode dar aos homens55. Mas será que tais bens podem ser considerados como fazendo
parte de uma ética universal ou mundial? Ou será que a ética, por mais universal que seja, tem de limitar-
se a oferecer certos bens mínimos, algo semelhante a um denominador comum às diferentes religiões, a
crentes e não crentes, bens alcançados ao longo da história e aos quais seria imoral renunciar56?
54 F. Cubells, El mito del eterno retorno y algunas de sus derivaciones doctrinales en lafilosofia griega, Valencia, Anales
dei Seminario, 1967; V. Medo, "Dharma, conciencia i llibertat en I'hinduisme i el bhudisme", en Quaderns FundacióJoanMaragall,
número 13 (1993); Experiencia yóguica y antropología filosófica. Invitación a Ia lectura de Sri Aurobindo, Valencia, 1994.
55 J. L. Ruiz de Ia Pena, El don de Dios. Antropología teológica especial, Sal Terrae, Santander, 1991, principalmente a
parte 11.
56 O. González de Cardedal, El poder y Ia conciencia, Espasa-Calpe, Madri, 1984, pp. 57 e seguintes; Espana por pensar,
pp. 113 e seguintes.
57 N. Daniels, Just Health Care, Cambridge University Press, 1985; D. Gracia, Fundamentos de bioética, Eudema, Madri,
1988.
por conseguinte, pragmáticos, já que o pragmatismo anda tão arraigado nos norte-americanos quanto a
metafísica nos alemães. Qualquer pessoa pragmática sabe que a ação tem suas urgências, e por mais,
que um estado social de direito pareça conformista, se quiser atender a todos os cidadãos terá de decidir
se as cirurgias plásticas para fins estéticos serão pagas com dinheiro público, ou se é inevitável fixar, com
os riscos de erro que isso supõe, até que ponto a sociedade está obrigada por uma questão de justiça. Ou
seja, qual é o mínimo decente que tem de ser estabelecido em "condições de justiça".
O exercício necessário da virtude da justiça requer algumas condições, que são as seguintes: que
os recursos sejam escassos, que haja conflito de interesses e dúvida sobre a idoneidade das pessoas
encarregadas de tomar a decisão. Falamos quanto a isso de "condições de justiça" porque se os recursos
fossem abundantes, se os interesses fossem coincidentes e se as pessoas fossem idôneas, não seria
necessário exercer essa modesta virtude, cuja única aspiração é "dar a cada um o que é seu". Não de
fazê-lo ditoso e bem-aventurado, mas de dar-lhe o mínimo exigível - ou mínimo decente - para que trabalhe
como possa e queira por sua felicidade. Pois a sociedade não pode decidir em seu lugar acerca de seu
modo de ser feliz, e tampouco está obrigada a custear a satisfação de todos os seus desejos, sejam quais
forem.
Uma sociedade que queira empenhar-se em fazer felizes seus cidadãos, segundo um modelo
determinado de felicidade, é uma sociedade totalitária, mesmo que o modelo escolhido seja o da maioria,
posto que os ideais de felicidade são muito diversos e ninguém, nem mesmo a sociedade, tem o direito de
impor seu ideal aos demais. Por outro lado, a sociedade também não está obrigada a pagar aos seus
membros todos os caprichos que eles possam ter; afinal, isso só serviria para engendrar cidadãos passivos
e essencialmente exigentes, incapazes de distinguir entre uma necessidade que deve ser custeada e um
capricho cujo custo deve ser pago apenas pelo interessado.
Uma sociedade na qual todos os cidadãos não tenham uma "Mercedes", nem por isso é uma
sociedade injusta; mas uma sociedade na qual apenas um cidadão passa fome é uma sociedade injusta, E
quanto a isso, é bom ter juízo, pois pode acontecer que as "Mercedes", tão importantes para o 'bem-estar
de alguns tenham como contrapartida a fome que outros estão passando.
É por isso que os economistas da saúde, que se dão conta de que é preciso distribuir recursos
escassos e que isto deve ser feito com justiça, esforçam-se em fixar um mínimo decente, um mínimo
razoável; eles têm consciência da dificuldade que há em distinguir os gostos pessoais das necessidades
que é de justiça atender de acordo com a disponibilidade dos recursos. Mas fazem parte desse mínimo os
serviços odontológicos? E as lipoaspirações para as pessoas que vivem da Imagem de seus corpos, E os
tratamentos caríssimos 'para manter alguém em vida? O simples fato de formular tais questões pode Irritar
os maximalistas, que ademais recorreriam com razão ao argumento: acabem com a corrupção, diminuam
os gastos públicos, vivam mais sobriamente e verão como vai sobrar mais recursos para serem repartidos,
E eles tenham razão, No entanto, por mais que contássemos com governantes perfeitos e cidadãos não
menos perfeitos, os recursos continuariam sendo insuficientes para pagar os desejos de todas as pessoas,
e a pergunta continuaria sendo válida: o que se pode custear com os recursos públicos e a que ponto não
se deve chegar58?
Tal pergunta, explicitamente formulada pelos economistas da saúde, estende-se inevitavelmente a
outros setores da vida social59. O comitê de ética de um hospital tem de saber quais são os "mínimos
decentes" de moralidade a serem respeitados para se comportar com justiça numa sociedade plural60, Os
membros do comitê podem ser crentes ou não crentes e entender de modo muito diferente em que
58 A respeito da diferença entre as necessidades biológicas e os desejos psicológicos, ver D, Bell, Las contradicciones
culturales dei capitalismo, p, 34,
59 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, principalmente a parte III.
60 Na Espanha, desde que a Lei do Medicamento começou a vigorar, cada hospital passou a ter seu Comitê Ético de
Pesquisa Clínica, cuja função é analisar e aprovar ou recusar os projetos de pesquisa que se pretende levar a cabo, Ademais, um
número mais reduzido de hospitais começa a seguir o exemplo norte-americano e a criar Comitês Éticos, com a incumbência de
assessorar o pessoal médico e paramédico nos casos em que se deve tomar decisões moralmente conflitivas, e de organizar
cursos, seminários e conferências sobre questões de bioética, Tais comitês não pretendem prescrever o que deve ser feito, nem
controlar ou sancionar procedimentos, mas colaborar para a efetivação de uma cultura da área de saúde,
consiste o "bem" do paciente, Uns podem pensar que consiste em mantê-lo em vida a todo custo; outros,
que esse bem está em respeitar as decisões dele, desde que tenha conservado as capacidades suficientes
para decidir-se de modo racional por uma solução, E poderíamos alongar-nos mencionando um bom
número de possibilidades... Levando em conta o fato de que os membros do comitê podem ter diferentes
concepções, do bem, como é que esse comitê funcionara se a mesma diversidade de concepções existe
também entre os pacientes? Terão eles de fixar um "mínimo decente" de valores partilhados, a fim de que
as decisões sejam respeitosas da pluralidade?
Os educadores também têm de saber quais são os seus “mínimos decentes de moralidade na ora
de transmitir os valores sobretudo no que diz respeito a educação publica numa sociedade pluralista. Pois
é certo que, por serem educadores, não têm legitimidade para transmitir, sem mais, apenas os valores que
Ihes pareçam oportunos. Como se deu, por exemplo, no caso lapidar de um menino que chegou em casa,
comentando que o professor havia defendido, diante da classe, o racismo, a xenofobia e a "aporofobia",
isto é, a hostilidade contra o pobre. Nesse caso, deveriam os pais ficar muito entusiasmados e ir até a
escola para felicitar o diretor? Ou será que, alegando falta de tempo, um bom número de pais
simplesmente deixaria de ir até a escola para protestar e, ao mesmo tempo, exigir que tal professor deixe
de transmitir a seus filhos semelhantes "valores"? O exemplo citado não é capcioso, pois, como é sabido e
experimentado, fatos como esse e outros do mesmo jaez costumam ocorrer. Não seria urgente descobrir
quais são os valores que podemos partilhar e que vale a pena ensinar? É ou não é urgente descobrir um
"mínimo decente de valores" já partilhados?
Essa é certamente uma tarefa difícil, mas pelo fato de ser difícil não podemos deixar de realizá-la,
sobretudo se ela é necessária. Em nossas sociedades pluralistas, chegar a um acordo sobre esse mínimo
é, sem dúvida, uma tarefa difícil.
De igual modo, também as empresas61 e os órgãos de informação terão de explicitar esses
mínimos. Aquelas, quando organizam os seus projetos; estes quando programam as informações. Há todo
um universo de mínimos decentes de moral idade - e não apenas de legalidade - exigido para que se possa
operar com justiça nos diferentes setores da vida social. Porque o direito é inevitável numa sociedade em
que há interesses em conflito; mas o direito não basta para assegurar que uma sociedade seja justa: é
preciso também que haja hábitos, ou ethos, que vem a ser o húmus sobre o qual se desenvolve a vida dos
povos.
Assim sendo, todos os setores sociais, e não somente a comunidade política, necessitam
estabelecer padrões mínimos, pois são eles, com sua pretensão à universalidade, que ultrapassam os
limites de determinada sociedade para aceder à comunidade mundial e às obrigações morais que devemos
ter para com as gerações futuras. A esta altura podemos perguntar: como os leitores estarão acolhendo
este modesto discurso sobre os mínimos decentes?
Obviamente, desconheço a reação dos leitores estadunidenses ante a simples expressão "mínimo
decente". Mas acho que posso dizer que, em nossas latitudes, os setores pós-modernos a abominariam e a
veriam como uma imposição autoritária da razão moderna, mais interessada em ordenar o mundo, em si
mesmo caótico, por categorias. Por outro lado, os utópicos desprezariam o humilde conceito por considerá-
lo a expressão de um repugnante conformismo social-democrata.
"Há que pedir o impossível, para conseguir o viável; há que exigir o máximo, para receber o
mínimo". Mas começar pelo mínimo pode parecer que estamos renunciando, logo de entrada, a uma
transformação radical. Mas em geral, os pós-modernos e os utópicos não costumam ser gerentes de
hospitais, nem responsáveis pela legislação da saúde, e tais ofícios devem mesmo Ihes parecer abjetos.
Falar de mínimos pode soar como rebaixamento, ou como desistência, ou sucedâneo, principalmente em
tempos de crise, quando as pessoas, anêmicas, não andam muito motivadas e se contentam em ficar
tomando sol.
Entre os crentes, uma reação semelhante à dos pós-modernos e utópicos ante o mínimo decente
pode desencadear-se, também, quando se fala dos mínimos éticos próprios à moral cívica. Como esta se
pretende racional, aceita deixar em outras mãos - como as da religião - aquela parte do fenômeno moral a
61 A. Cortina, J. Conill, A. Domingo, D. Garcia Marzá, Ética de Ia empresa.
que chamamos "felicidade", desde que permaneçam sendo universalmente exigidos certos princípios
básicos, certos deveres inegociáveis, ou certos "mínimos decentes" que assegurem a convivência humana,
se não em condições de felicidade, pelo menos de justiça.
71 M. Roche, Rethinking Citizenship. Welfare, ldeology and Chance in Modern Society, Polity Press, 1992.
72 Ver, por exemplo, D. Heater, Citizenship, Longman, London and New Y ork, 1990, capítulo 6.
73 lbid., p. 203.
74 A. Cortina, La moral dei camaleón, capítulo 10; Ética de la sociedad civil.
O materialismo histórico foi, até o momento, a última novidade na longa história dos empenhos em
salvar o povo, sem o consentimento do povo. Mas diante dele, está a ética cívica a lembrar que os homens
são autônomos e não heterônomos, cidadãos e não súditos. E quem se esquece disso acaba ficando
aquém dos mínimos decentes em matéria de compreensão do que é moral.
A vida moral tem um forte componente que ultrapassa as possibilidades exigentes do mínimo
decente de uma ética cívica, um componente que nossos esquemas cognitivos morais ainda não puseram
em circulação e que, por isso mesmo, ainda não é susceptível de intersubjetividade argumentativa. Mas já
o é de forma narrativa, ou biograficamente, se entendermos, como MacIntyre, que a vida humana é uma
unidade narrativa, inserida em tradições75.
A meu ver, é nesta ordem de coisas - apesar do "rabisco grosseiro" que caracteriza conceitos e
termos como "o justo" e "o bom", "os mínimos" e "os máximos", cujos perfis nunca serão nítidos por causa
da riqueza da realidade desbordante - é, digo, nesta ordem de coisas que entra também aquela distinção
do Evangelho de João: "A Lei veio por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo". Os
mínimos deontológicos já estavam claramente formulados na lei de Moisés, mas a verdade moral,
enquanto realização plena ou felicidade, advém de um dom, e não de prescrições legais.
8. UM COMBATE DESIGUAL
Neste final de século, pergunto-me o que há de moralmente exigível nas mensagens das grandes
religiões que possa causar incômodo a qualquer não crente que - para falar como L. Kohlberg - se encontre
na etapa pós-convencional do desenvolvimento de sua consciência moral. Ou seja, que tenha atingido essa
etapa na qual já sabe como distinguir entre as normas convencionais da sociedade em que vive e os
princípios morais universalistas, que tanto pode ser o princípio kantiano ("Aja de modo a tratar a
humanidade, tanto em tua pessoa como na de qualquer outro, sempre como fim e nunca como simples
meio"), os princípios supremos dos pragmáticos norte-americanos ("Todos os homens merecem igual
consideração e respeito"), ou o princípio da ética dialógica ("Uma norma só é correta se todos os afetados
por ela estão dispostos a dar-lhe o seu consentimento, após um diálogo celebrado em condições de
simetria"). O que pode dizer um crente a quem afirma que os homens são fins em si mesmos, que todos
merecem igual tratamento, e que ninguém pode decidir por eles sem consultá-los82, pois daí poderia
resultar um vinho que, de tão forte, seria intragável? Parece que todos já aceitaram, como uma grande e
gozos a conquista, o reconhecimento da dignidade dos homens, cada qual a seu modo propondo-se a
concretizá-la com suas formulações: pelo respeito de seus fins subjetivos, como se todos estivéssemos a
compor um Reino Universal dos Fins, para retomar Kant; postulando que todos devem ser tratados de
modo igual, para falar como os pragmáticos; e, enfim, exigindo que todos sejam consultados e ouvidos de
forma significativa quando se trata de tomar decisões que vão afetá-los, de acordo com os termos da ética
dialógica ou do discurso.
Mas, então, onde está o problema? É claro que em face desse respeito e apreço pela dignidade
humana, a atitude e a motivação do crente que aceita voluntariamente a tradição religiosa em que se
inscreve não têm que ser idênticas às do não crente, inclusive daquele que, tendo nascido no seio de uma
tradição religiosa, optou voluntariamente pela secularidade. Mas quando se trata dos conteúdos, não posso
deixar de perguntar-me o que há de especifico no moralmente exigível que o crente tem de manter, mesmo
correndo o risco de ficar sozinho, por considerar que é um imperativo da sua fé que os outros se negariam
a aceitar. Será que os crentes admitem a existência de valores absolutos, isto é, de coisas valiosas em si
mesmas, como a vida, por exemplo, e que para os não crentes tudo seria relativo, a ponto de sumirem no
relativismo? Tentar responder a essa pergunta é uma exigência da qual não se pode fugir, atualmente.
Supondo-se que a fé induza a defender certas coisas como absolutamente valiosas, e a ética civil não, não
poderia: o crente compartilhar uma ética cívica, para a qual tudo é relativo, enquanto para sua ética própria
81 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capítulo 13, n. 5; Ética de la sociedad civil, Anaya, Madri, 1994.
82 0 que supõe, obviamente, que não se pode privá-los da vida. Ver a respeito o capítulo 8 de Ética sin moral.
não o é? Mas será que as coisas são mesmo assim? A linha divisória entre a moral religiosa e a moral
cívica passa pela defesa de valores absolutos ou não?
Capítulo 4
O mundo complicado dos valores absolutos
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 83-104.
83 Este capítulo tem origem no artigo "Os valores morais absolutos existem?", publicado em Iglesia viva, número 171
(1994), pp. 235245.
84 A. Cortina, Ética mínima, principalmente a parte 11.
85 Immanuel Kant, Fundamentación de Ia metafísica de los costumbres, Real Sociedad Económica Matritense de Amigos
dei País (Cátedra "Garcia Morente"), Madri, 1992.
preço. Mas têm dignidade, e quem tem dignidade não é trocável, mas respeitável. Não resisto ao desejo de
transcrever o texto em que pela primeira vez uma ética filosófica postula que as pessoas não têm preço,
mas dignidade:
"No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser substituído
por algo equivalente; em compensação, o que está acima de qualquer preço e por conseguinte não admite
equivalente é o que tem dignidade.
As coisas relativas às inclinações e necessidades do homem têm um preço comercial; já aquelas
que, sem supor uma necessidade, conformam-se a certo gosto, isto é, a uma satisfação produzida por
simples diversão, sem nenhum dos fins de nossas faculdades, têm um preço de afeto; no entanto, aquilo
que constitui a condição para que algo seja fim em si mesmo não tem simplesmente valor relativo ou preço,
mas um valor interno, ou seja, dignidade. A moralidade é a condição através da qual um ser racional pode
ser fim em si mesmo, porque é somente por ela que é possível ser membro legislador no reino dos fins.
Assim sendo, a moralidade e a humanidade, esta última enquanto capaz de moralidade, é só o que possui
dignidade"86.
Naturalmente, um discurso como esse, das mãos de Kant, serve de fundamento para os direitos
humanos e para as obrigações morais, bem como de orientação moral para a conduta humana. Pois dele
se deduz com toda a clareza que quem deseja comportar-se racionalmente tem de evitar, a todo custo, a
instrumentalização das pessoas, visto que elas não são instrumentos. Tal é a afirmação central do
personalismo, que depois tomará formas diversas87, e que nos permite entrar em temas muito atuais.
Embora um ancião já não proporcione satisfações por não estar de posse de todas as suas faculdades e
do domínio do seu corpo, nem por isso temos permissão para eliminá-lo; seu valor não está em satisfazer
desejos, em ser "valioso para", mas em ser valioso "em si mesmo".
Podemos dizer a mesma coisa a respeito de temas delicados como o "direito ao filho" que, na
esteira das descobertas de técnicas de reprodução medicamente assistidas, diferentes setores reivindicam:
ora, o valor em si do futuro filho está à frente dos desejos - que não são direitos - dos pais presumidos, de
modo que é preciso pensar antes de tudo no bem da criança e não somente nos desejos dos pais88. E por
que falar na exploração do homem pelo homem, essa instrumentalização de que somos objetos
mutuamente e que percorre nossa história ao longo e ao largo, senão para reafirmar que, diante do valor
absoluto da pessoa, tal exploração é, sem nenhuma dúvida, imoral, por ser irracional.
Sem embargo, a orientação que aqui procuramos dar à ação é muito geral, e dificilmente pode
conduzir à tomada de decisão em casos concretos, dada a complexidade do real. Para que o
reconhecimento do valor absoluto da pessoa possa tornar-se diretriz da conduta, teria de expressar-se
através de um princípio ético, que é origem fundamentalmente de mandatos negativos.
O que significa que o princípio ético se formularia da seguinte maneira: "Trate cada pessoa como
algo absolutamente valioso e não como algo relativamente valioso, ou seja, não instrumentalize as
pessoas", e fundamentaria deveres negativos revestidos da forma de proibição, como "não farás tal
coisa...". Ora, esse tipo de deveres que formam um deontologismo absolutista não é de boa ajuda em
casos determinados. Ao dizer isto, estamos chegando à segunda acepção da palavra "absoluto", diferente
da que vimos tratando até agora: ela já não se refere aos seres absolutamente valiosos, mas ao tipo de
mandatos que devem ser cumpridos para que haja respeito aos seres absolutamente valiosos. Algumas
tradições éticas reconheceram mandatos desse tipo como "absolutos", no sentido que agora passaremos a
comentar.
O relativismo moral
Quando se constata que os conteúdos morais mudam conforme as épocas, as culturas e os grupos,
a conclusão que parece mais evidente é a de que se chegou ao relativismo moral, isto é, que para decidir
sobre o que é justo e bom, temos de nos situar dentro de um grupo determinado e estar conscientes de
que os resultados a que chegarmos valem para tal grupo e não para os restantes. Como cada grupo tem
seus costumes e suas tradições, suas opções morais não podem ser comparadas com as de outros, pois
não há entre elas uma medida comum. Assim sendo, o justo e o injusto, o bom e o mau são sempre
relativos a algum grupo humano e dependem de suas formas de vida, donde a impossibilidade para os
diferentes grupos de estabelecer acordo e alçar-se ao plano da intersubjetividade99.
O relativismo surgiu na Grécia com os chamados "sofistas" (séc. V a.C.), quando os discursos
públicos manifestavam a diversidade dos pontos de vista e davam a entender que cada um deles poderia
ser defendido com argumentos aparentemente convincentes, sem que se pudesse encontrar um critério
que lhes fosse superior e capaz de dirimir as disputas. O relativismo é portanto uma das interpretações
possíveis do fato da diversidade cultural, embora não seja a interpretação mais acertada. Não obstante, ele
continua presente na atualidade sob a forma do "relativismo cultural", para o qual os critérios morais
dependem das diferentes culturas. Está também presente em outras duas posições: o "contextualismo",
que postula que só podemos saber se uma proposta moral é correta ou incorreta em função de cada
contexto de ação, e o "etnocentrismo", que considera impossível justificar a qualidade (boa ou má) de uma
opção quando não se tem um interlocutor definido. Para o etnocêntrico, só podemos justificar uma decisão
em face daqueles que já compartilham nossa forma de vida, pois só eles poderiam entender-nos100.
Frequentemente, o relativismo conduziu ao ceticismo, movimento filosófico iniciado por Pirron e sua
escola no século li a. C. Pensa o adepto do ceticismo que, como não podemos estabelecer nenhum critério
a partir do qual decidamos entre uma e outra opção, todas têm o mesmo valor, nenhuma é melhor do que a
outra e, portanto, é impossível distinguir o justo do injusto, e o bom do mau. Mesmo sendo obrigados a
tomar decisões, nunca encontraremos uma justificativa racional para elas.
O relativismo é inumano
Tais posições, bastante presentes no contexto filosófico e social de nossa época, são humanamente
indefensáveis. Eu mesma afirmei num artigo que a diferença entre "relativismo" e "pluralismo respeitoso"
está em que o segundo é humanamente necessário, enquanto o primeiro é humanamente insustentável,
98 Ver, por exemplo, J. Gato, "Eutanasia", em Diezpalabras clave en bioética; J. Gato (ed.), La eutanasia y el arte de mo
rir, Universidad Pontiticia de Comillas, 1990; Ética y legislación en enfermería.
99 Alasdair MacIntyre, Justicia y racionalidad, EIUNSA, Barcelona, 1994; J. Conill, "EI relativismo moral contemporáneo",
em Iglesia viva, número 171 (1994), pp. 223-233.
100 R. Rorty, "Solidarity or Objectivity?", em J. Racman, C. West (editores), Post-Analytic Philosophy, New Y ork, 1986, pp.
3-19; A. Cortina, Ética sin moral, pp. 105-115.
como se pode verificar em nossas sociedades, que só são relativistas da boca para fora101.
A nós, europeus, sufocados e envergonhados por nosso inveterado etnocentrismo, parece mal-
educado, autoritário e dogmático dizer que as diferentes opiniões não são igualmente respeitáveis; por isso
afirmamos que qualquer cultura é tão racional quanto a nossa, e talvez até mais. Mas, na realidade,
consideramos irracional que uma cultura condene à morte um cidadão por causa de um livro que escreveu,
por mais blasfemo que seja o livro; indignamo-nos com o tratamento que essa mesma cultura dá às
mulheres; desaprovamos o sistema de castas; afirmamos inclusive que os fundamentalistas do FIS (Frente
Islâmica da Salvação) "ainda" estão na Idade Média e "ainda" não chegaram à Modernidade, como se
todos tivessem de seguir o nosso próprio processo cultural.
Mas nas horas decisivas, ninguém parece crer no relativismo. Pois quem considera irracional tirar a
vida, causar danos físicos e morais, privar alguém de liberdade, e não assegurar às pessoas os mínimos
materiais e culturais para que elas possam viver dignamente, pensa que isso se aplica de igual modo a
todas as sociedades, e não apenas à sua. Quer o diga ou não, considera que uma cultura indiferente à
observância desses mínimos está abaixo dos níveis de racionalidade ou, o que vem a dar nà mesmo, de
m0ralidade. Porque quando alguém diz com sinceridade que "isto é justo", não está apenas formulando
uma opinião subjetiva ("eu aprovo x") ou restrita ao seu próprio grupo, mas uma exigência que todo e
qualquer homem também deve ter por justa. E quando argumenta para esclarecer porque considera que
algo é justo, está dando a entender que julga ter razões suficientes para convencer a qualquer interlocutor
racional, e não apenas tentando suscitar nos outros a mesma atitude.
De fato, é preciso distinguir entre: a) causar psicologicamente nos outros uma atitude, mediante a
propaganda, por exemplo; b) praticar o intercâmbio de razões a fim de que cada um possa, de maneira
autônoma, tomar uma decisão ponderada102. No primeiro caso, o que interessa não é dialogar com o
interlocutor, mas ganhá-lo para a nossa causa através de meios psicológicos: não nos interessamos por ele
em si mesmo como interlocutor válido, mas pretendemos utilizá-lo para nossos fins, o que é próprio da
manipulação e da propaganda103.
Se a linguagem moral, ou pelo menos parte dela, não nos remetesse a critérios intersubjetivos, não
haveria entre nós outros "diálogos" senão os estratégicos, que nos servem para utilizar nossos inter
locutores como meios de atingir nossos fins, e não para tratá-los como fins em si mesmos. Assim como
também não haveria lugar entre nós para uma autêntica comunicação, mas para a manipulação ou, na
melhor hipótese, para a negociação. No entanto, como uma parte de nossa linguagem moral tem
pretensões universais, nós a desvirtuaríamos se a usássemos para manipulações.
Como já lembrei, Jürgen Habermas tentou mostrar em sua teoria da evolução da consciência moral
das sociedades que estas tanto aprendem tecnicamente quanto moralmente. Aliás, nossas sociedades de
democracia liberal têm desenvolvido um processo de aprendizagem que já deixou marcas em nossos
esquemas cognitivo-morais104. Repetindo o que já foi dito, a teoria da evolução social refere-se à
aprendizagem que desenvolvemos quando formulamos julgamentos sobre o que é justo. Isto quer dizer
que durante esse processo de aprendizagem as sociedades hoje democráticas recorreram aos três níveis:
o pré-convencional, em que o egoísmo é a instância para julgar o que é justo; o convencional, em que são
tidas por justas as normas vigentes na comunidade concreta; e o pós-convencional, graças ao qual
aprendemos a distinguir entre as normas de nossa comunidade concreta e os princípios universais, que
levam em conta toda a humanidade, de tal sorte que a partir desses princípios podemos, também,
questionar as normas de nossas sociedades concretas.
Sob este aspecto podemos dizer que, embora uma grande parte dos cidadãos das sociedades de
democracia liberal ainda se situem no nível pré-convencional e convencional, os valores que dão
legitimidade às instituições democráticas dessas sociedades derivam do nível pós-convencional. Ou seja,
101 "Todas Ias opiniones son igualmente respetables?", em ABC Cultural, número 155 (1994), p. 63.
102 W. D. Hudson, Lafi/osofia moral contemporánea, Alianza, Madri, 1974, capo 4.
103 A. Cortina, La moral del camaleón, capítulos 2 e 3.
104 J. Habermas, La reconstrucción delo materialismo histórico; A. Cortina, Ética mínima, sobretudo o capítulo 5.
são valores universais, que ultrapassam os limites das comunidades concretas e nos dão força para criticar
inclusive as normas dessas comunidades concretas.
6. OS VALORES UNIVERSAIS
O universalismo moral, que surgiu no Ocidente com a filosofia grega e a religião cristã, tornou-se
irreversível, de tal forma que qualquer retorno ao particularismo moral é um retrocesso. Esse universalismo,
que brotou das cosmovisões grega e cristã na etapa das civilizações desenvolvidas, vem impregnando
paulatinamente a forma de racionalidade que se manifesta através de argumentos. É por isso que no nível
pós-convencional se postula o universalismo moral, que pode ser defendido com argumentos
intersubjetivamente aceitáveis, e não precisa limitar-se tão somente à fundamentação religiosa. Quais são
esses valores universais que constituem o universalismo moral nos dias de hoje?
A chave de todos esses valores continua sendo o valor absoluto das pessoas, e não é outro o
motivo pelo qual venho tentando esclarecer, desde o começo deste capítulo, ser este o valor absoluto no
sentido mais profundo da palavra. Reconhecer esse valor implica em que as pessoas não devem ser
tratadas como instrumentos, posto que possuem uma dignidade que as faz sujeitos de direitos. São direitos
referentes às duas gerações a que aludimos, sem esquecer os da terceira geração, que são os de viver em
paz na sociedade e desfrutar de um meio ambiente sadio. Os valores inscritos em tais direitos são, por sua
vez, universais: o valor da vida, a liberdade (positiva e negativa), a igualdade, a solidariedade, a paz e a
tolerância ativa105.
Mas será que se pode dizer, seriamente, que esses valores estão em vigor nos diferentes grupos e
países? Ou, ao contrário, será que se tem de reconhecer que não é bem assim, pois há sociedades que
vivem moralmente de mínimos, como aquelas em que as pessoas podem perder a vida pelas mãos de
outras (valor da vida), em que os cidadãos não desfrutam de independência (valor da liberdade negativa)
nem autonomia (valor da liberdade positiva), em que uns poucos possuem todos os bens sociais e
dominam o restante, a quem faltam condições materiais, econômicas e culturais dignas (valor da
igualdade)? Será que não temos de reconhecer que uma humanidade que permite a depredação de
grandes zonas da terra, que permite a fome e a guerra (valor de solidariedade), não é uma humanidade
que vive moralmente de mínimos?
De acordo com o que postulam diferentes teorias éticas da atualidade, e se quisermos falar
seriamente e não simplesmente dizer coisas "engenhosas", e por vezes estúpidas, então os valores que
mencionei são universais, e não precisam de nenhum tipo de imposição para que as diferentes culturas os
aceitem como seus. Afinal de contas, qualquer pessoa quer ser livre para decidir o tipo de vida que deseja
viver, mesmo que sua decisão venha a consistir na alienação de sua vida.
Esses valores engendram, obviamente, princípios morais universais que orientam a conduta em
vista de sua promoção e seu respeito, muito além do relativismo. São princípios que, ocasionalmente, nos
induzirão a criticar as normas das sociedades concretas, justamente por se tratar de princípios pós-
convencionais. Mas, por outro lado, sua aplicação em casos determinados exigirá de quem deve tomar as
decisões um conhecimento profundo da situação e um grande senso de responsabilidade, a fim de evitar
que o desconhecimento leve a uma decisão moralmente equivocada quando de um conflito de princípios. A
responsabilidade e o desejo de compreender-se são hoje em dia, a meu ver, duas atitudes essenciais para
que possamos encarnar os valores universais em nosso mundo.
Capítulo V
A graça veio por Jesus Cristo
In: Adela Cortina. Etica Civil e Religiao, Sao Paulo: Paulinas, 1996, pp. 105-116.
4. A CHUVA QUE CAI SOBRE A ERVA ROÇADA, O CHUVISCO QUE IRRIGA A TERRA
Quem defende seriamente uma ética de mínimos não pode, de modo nenhum, estar sugerindo que
se acabe com as religiões. Não somente porque esta seria uma atitude intolerante, hostil ao pluralismo,
mas principalmente porque estamos vivendo um momento de crise das tradições de sentido, que situam a
pessoa no mundo e lhe permitem identificar-se e saber qual a direção em que caminha.
Essas tradições estão em crise, entre outras razões, porque houve épocas em que quiseram impor
seu sentido, e o sentido não pode ser imposto; porque quiseram impor o caminho que, segundo elas,
conduz à felicidade, mas a felicidade também não pode ser imposta. Mas quando uma religião não é nem
impositiva nem fundamentalista, ela tem uma capacidade libertadora e revitalizadora que seria um
verdadeiro crime tentar extirpar.
E disso a história das religiões nos dá boas provas. É uma história obscurecida por inegáveis
sombras, mas também, iluminada por luzes que é impossível ocultar atrás da má fé. Nosso presente é o
reflexo fiel desse duplo jogo de luzes e sombras, mas creio poder afirmar, pelo menos no que toca ao
cristianismo, que as luzes são bem mais intensas que as sombras.
Em nossas sociedades democráticas, é hora de ir amadurecendo os valores comuns para tentar
encarná-los, sabendo que cada qual os fundamentará depois, a partir de uma ética de máximos diferente.
Estas éticas são éticas de sentido e de felicidade, elas nos orientam sobre como ser feliz. Mas o sentido e
a felicidade não podem ser impostos; podem ser apresentados como um convite, ou um conselho feito a
partir da própria experiência, da própria carne e do próprio sangue.
As tradições religiosas não nasceram para fornecer normas e sim para anunciar que esta vida não
termina, mas se transforma; que Deus é Pai e que nós, os seres humanos, somos irmãos; para prometer
um mundo diferente e lembrar que Deus está conosco para tornar isso possível, inclusive muito além da
morte.
Se hoje, nós, os crentes, assumirmos a dupla iniciativa de tentar fortalecer os valores que temos em
comum com todos os membros da sociedade, e continuar convidando os demais, com o diálogo e pela
própria vida, para juntar-se a nós naquilo que cremos, estaremos realizando uma tarefa que é ao mesmo
tempo humana e cristã, pois me parece tratar-se da mesma coisa.
Como não estamos sozinhos na realização dessa tarefa, quero terminar com uma calorosa
lembrança da Bíblia: " A palavra de Deus é como chuva sobre a erva roçada, como chuvisco que irriga a
terra" (SI 72, 6). Não é estéril. Nem sem fruto. Assim o cremos e, por isso, sem complexos a mais ou a
menos, estamos juntos com todos os outros na tarefa de levantar o ânimo deste nosso mundo.