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ESGOTADO

INTRODUÇÃO1
Podem os crentes ser cidadãos?
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996.

Os entendidos parecem ter razão quando dizem que um dos bens mais necessários para
desenvolver a vida em vista da possibilidade de ser feliz é uma autoestima moderada.
Diga-se prontamente que autoestima não é egoísmo, amor desmedido da própria pessoa, e menos
ainda egolatria, adoração de si mesmo. Ao contrário, a autoestima é um sentimento muito mais razoável e
sensato: saber apreciar-se a si mesmo como um ser humano que, afinal de contas, possui uma dignidade
que deve ser aceita, e é capaz, como pessoa peculiar, de realizar alguns projetos com sucesso, desde que
tais projetos possam atrair a sua simpatia.
Nestes tempos em que até o gato parece ter dignidade (é o que dizem os militantes dos direitos dos
animais), o mínimo que se pode pedir às pessoas é que tenham certo orgulho em ser o que são. E se
considerarmos aquilo que faz de cada um de nós uma pessoa única na espécie, será que não haverá
nenhum projeto que sejamos capazes de encetar e concluir com algum sucesso?
Para alguma coisa servem os provérbios, com sua profunda sabedoria popular: nem tanto ao mar,
nem tanto à terra, que corresponde à afirmação que Aristóteles fez passar à história, graças à sua célebre
máxima: a virtude está no termo médio, ou no meio.
No entanto, esse negócio de ficar no termo médio, que é mais ou menos como ter uma cabeleira
discreta que nos coloca entre o urso peludo e a rã totalmente alopécica, é bem mais difícil do que à
primeira vista parece. Se não for assim, seria bom avisar aos crentes já meio crescidinhos, que andam
muito embaralhados de tanto receber ordens contrapostas.
Nos tempos gloriosos e triunfalistas, esse mesmo crente tinha que sentir-se superior ao resto dos
mortais, pois acreditava estar em vias de ser a salvação do mundo. Havia quem ficasse de boca cheia para
dizer que era católico, e que tinha um amigo bispo e uma prima carmelita de clausura; mas com a chegada
da maré baixa, nos esvaímos em pedir perdão pelo que fez Torquemada, pela expulsão de mouros e
judeus, por Caupolican torturado e, por que não, pelo que ocorreu durante as Cruzadas. Isto para não falar
nas desculpas pedidas por conta do que fez Constantino, como se cada um estivesse na sua mesmíssima
pele na época do in hoc signo vincis.
Era assim, sem um contido e respeitável termo médio, que as coisas se passavam: ou frio ou
quente; ou éramos a reserva espiritual do universo, galardão do solar ibérico, como se o joio não estivesse
misturado com o trigo, ou então o diabo em pessoa, vestido de pele de cordeiro, como se o trigo não
pudesse florescer apesar do joio aparecer no meio dele.
Portas adentro, as coisas não melhoravam muito, principalmente quando éramos acometidos de
                                                                                                               
1    Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996. (Ed. Esgotada)
 
ataques mórbidos de autonegação seguidos da obrigação de sacrificar-nos por puro prazer, sem benefício
para ninguém. Ou então quando parecia haver também a obrigação de negar as próprias qualidades a
ponto de chegar à convicção, em geral totalmente infundada, de que se era escória pura, enquanto os
outros, inclusive os mais imbecis, não apenas eram algo, mas guardavam valores ocultos nos quais se
devia ter uma fé daquelas que movem bem mais do que montanhas.
Crer que uma pessoa tem certas qualidades é crer que ela pode fazer alguma coisa. Poder, mas
que palavra terrível! Deve-se fugir do poder como da peste - diziam os cristãos progressistas -, embora
cada qual administrasse sua pequena dose de poder. Enquanto isso, os cristãos reacionários pensavam
sem maiores rodeios, pelo que davam a entender, que se o poder vinha de Deus não havia por que sentir
nojo dele.
Ou tudo ou nada. Mas o problema é que há tantas formas diferentes de poder ...! Mau é o poder de
dominação, o poder de exploração, não o poder de levar a cabo projetos que arrebatam, não o poder de
acreditar que esses projetos terão algum sucesso. Neste último sentido, tem que haver o poder de fazer, de
ajudar os outros para que possam fazer, e de tentar conseguir os meios para poder fazer, desde que os
meios não se convertam em fins. Isto só os mortos não podem, mas o Deus dos cristãos é um Deus de
vivos.
A verdade é que não se pode ir muito longe com esses movimentos pendulares; mas uma coisa é
certa, caminha se a passos firmes para a neurose, decerto mais extensa do que o desejável. Seria melhor,
portanto, que nos resignássemos, com ânimo sereno, a ser o que somos. Isto é, não somos a reserva
espiritual do universo mundo, tampouco a sua escória. Lamento muito, tanto pelos masoquistas, que se
regozijam pensando em sua acachapante inferioridade em relação a todo bicho vivente, quanto pelos que
estão imbuídos do extremo oposto. Pois não somos superiores nem inferiores: somos pessoas, cidadãos
de um mundo modelado com pranto, mas também com dádiva; um mundo que pode ser melhor porque
acreditamos na força criadora de uma promessa e de nosso próprio encantamento, e nela confiamos;
temos esperança em um reino, que não está situado noutra galáxia, e não agimos como se fôssemos uma
quinta coluna a combater por um rei estrangeiro, mas por um rei que está conosco neste mundo que é o
nosso.
E é por isso que temos de vivê-lo a fundo, sem presunçosa superioridade, nem melindrosas atitudes
de inferioridade: temos de vivê-lo sem complexos. Na história dos cristãos há muita coisa a deplorar, mas
também há uma impressionante quantidade de pessoas que fizeram da felicidade alheia a sua própria
felicidade, mostrando, com o exemplo de suas vidas, que o mundo pode ser infinitamente mais humano do
que é. Mas, de qualquer maneira, cada um de nós é responsável por sua própria vida, e não temos de
outorgar-nos medalhas de bons, nem nos flagelarmos pelas ações dos canalhas.
E já que é assim, sem complexos, qual é a atitude que um crente sensato pode manter diante da
chamada "ética civil", que anda tão em moda nos últimos tempos?
A ética civil é, em princípio, a ética dos cidadãos, ou seja, a moral que os cidadãos de uma
sociedade pluralista têm de encarnar para que a convivência pacífica seja possível, dentro do respeito e da
tolerância para com as diversas concepções de mundo2. Ao longo deste livro, explicaremos mais
detidamente em que consiste esse tipo de ética, mas agora quero apresentar uma pequena caracterização
para esclarecer desde já qual vai ser o enfoque do trabalho.
Não faz muito tempo, embora pareça ter sido há séculos, escreveu-se um livro que tinha um título
provocador: "Podem os vermelhos ser cristãos?" Naqueles idos, estavam em moda os diálogos entre
cristãos e marxistas, e tal pergunta de algum modo recriminava o fato de alguns cristãos não aceitarem que
se pudesse ser ao mesmo tempo cristão e marxista. O movimento" Cristãos pelo socialismo" defendia a
possibilidade de identificação, aduzindo, entre outras razões, que de fato havia cristãos que também eram
marxistas - ou vice-versa - , enquanto outros entendiam que, sendo o cristianismo e o marxismo duas

                                                                                                               
2 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, Tecnos, Madri, 1993, capo 12; A. Cortina, 1. Conil!, A. Domingo, D.
Garcia Marzá, Ética de Ia empresa, Trotta, Madri, 1994, capo 2; M. Vidal, Ética civil y sociedad democrática, DDB, Bilbao, 1992; A.
Domingo, B. Bennássar, " Ética civil" , em M. Vidal (ed.), Conceptos fundamentales de ética teológica, Trotta, Madri, pp. 269-291;
E. G. Martinez Navarro, "Reflexiones sobre Ia moral cívica democrática" , em Documentación social, número 83 (1991), pp. 11-26.
cosmo visões, era possível ser cristão e militar num partido comunista, mas não "ser" ambos de uma só
vez: a última instância de conduta tinha que ser uma ou outra, pois não podia ser as duas ao mesmo
tempo.
Com todo o respeito que tenho pelos "Cristãos pelo socialismo", mui especialmente por figuras
como as de Alfonso Carlos Comin e o recentemente falecido Juan Garcia Nieto, creio que o fulcro da
questão se enraizava no que pessoas muito marcantes para mim, como Ricardo Alberdi ou Rafael Belda
assinalavam: é perfeitamente possível compartilhar duas ideologias, desde que elas não pretendam erigir-
se em instâncias últimas de conduta, mas permitam que a pessoa escolha uma delas como instância
última, e sirva-se da outra como modo de realizar a primeira; modo que pode ser compartilhado por outras
pessoas, que, por sua vez, podem ter como referência instâncias últimas diferentes das suas3.
Obviamente, não é minha intenção voltar ao tema dos diálogos entre cristãos e marxistas, nem
relembrar que a dificuldade essencial consistia no fato de que eram duas visões do mundo e da história
incompatíveis, haja vista que cada uma reclamava adesão absoluta. Como, a esta altura, mais de um leitor
deve estar se perguntando por que motivos surgem agora as dificuldades de compaginar marxismo e
cristianismo, devo dizer que estou simplesmente tentando lembrar uma velha experiência, no intuito de
trazer à tona uma outra, para cuja solução talvez a anterior tenha alguma utilidade, embora se trate de
questões diferentes.
O problema que ora se coloca diz respeito à ética civil ou ética dos cidadãos, que mais de um leitor
pode considerar incompatível com a ética cristã. E quando digo "mais de um" estou pensando em alguns
crentes, convictos de que a fé torna as coisas tão claras que nada mais lhes resta a aprender de seus
vizinhos, além daquilo que já tinham aprendido no catecismo; também estou pensando em não crentes
laicistas para quem a religião é, em suma, uma relíquia de irracionalismos do passado, um obstáculo para
a felicidade racional e sensata das pessoas e, por conseguinte, que não é possível ser, ao mesmo tempo,
cristão e cidadão, a menos que se esteja totalmente esquizofrênico4.
Foi pensando em uns e outros que coloquei a questão que é, na realidade, o enfoque deste livro. O
problema não é mais o de saber se os cristãos podem ser vermelhos ou se os vermelhos podem ser
cristãos. Agora, a pergunta é: podem os crentes, isto é, as pessoas que têm crença e fé religiosa, ser
cidadãos? Podem professar uma moral cívica? Ou: será que lhes interessa fazer isso?
Naturalmente alguns poderiam responder à minha pergunta partindo do ponto de vista da crença,
para dizer que o melhor seria dar a volta por cima da questão e entregar-se de vez à evangelização da
cidadania; afinal, diriam, a atenção de um bom crente deve concentrar-se nisto: fazer apostolado. Tudo
bem, mas gostaria de replicar pelo menos duas coisas: que as pessoas, em princípio, podem ser ou não
cristãs, enquanto ser cidadão, como veremos, é ser membro de uma determinada comunidade política ou
de uma comunidade humana universal, no caso dos "cidadãos do mundo". Se por um lado, consideramos
que o crente não duvida de que sua fé seja contagiante - se duvida, é porque não se inteirou do valor da fé
- , de outro lado temos de reconhecer que muito amiúde e de maneira explícita surgem dúvidas sobre esta
questão: os crentes podem ser cidadãos como os outros. Por quê?
Porque em definitivo, ejá houve quem o dissesse, os crentes são vistos como aquela espécie de
quinta coluna a que já me referi. Os católicos, por exemplo, seriam os que recebem ordens de Roma,
ficando obrigados a algo como uma "disciplina de voto" e, portanto, não estariam realmente livres para
dialogar com os cidadãos ou para construir, junto com eles, uma vida comum.
Ocorreria então com os cristãos a mesma coisa que ocorre com os parlamentares. Supõe-se que
quando estes vão ao Parlamento é para debater propostas até chegar a um acordo. Mas muita gente
pensa que, em vez disso, eles só fazem uma representação teatral para o público, já que nenhum deles
tem a menor intenção de se deixar convencer pelos demais. Todos já estão sobejamente convencidos
                                                                                                               
3 R. Alberdi, R. Beld, lntroducción crítica al estudio del marxismo, DDB, Bilbao, 1986 (segunda edição corrigida).
4 A. Cortina, J. Garcia Roca, "Laicismo, ética e religión en el debate socialista espanol", em Euroizquierda y cristianismo,
Fundación Friedrich Ebert/lnstituto Fe y Secularidad, Madri, 1991, pp. 165-184; A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical,
capo 12.
 
sobre o que vão votar, e nenhum argumento no mundo, por mais engenhoso que seja, os faria modificar
sua decisão.
De acordo com esta analogia, o crente que dialoga com o não crente também estaria fazendo uma
representação, porque já vem com o seu voto marcado ou pelo Vaticano ou pelo bispado correspondente,
e os argumentos do seu interlocutor não conseguiriam arredá-lo de sua posição. " Daqui não saio, daqui
ninguém me tira" seria, no fundo, o pensamento do. crente. Com a agravante de que com o crente não
ocorre o mesmo que com o parlamentar, pois este sabe de sobra que é defensor dos interesses do seu
partido e o crente está convencido de que a sua proposta é boa para a humanidade inteira, que o seu
trabalho é em proveito dela, inclusive daqueles que nem se dão conta de que é para seu bem. O crente
seria, por conseguinte, um integrista em potência, e numa potência próxima do ato.
Desde já, gostaria de dizer pelo menos três coisas sobre este livro. A primeira, é que lamento de
todo o coração que muitos não crentes conheçam pouco as pessoas que pertencem a essa coisa - que
pode ter a aparência de um "bunker" - chamada"igreja". Se a olharmos por dentro, fica difícil encontrar
outra comunidade de pessoas que apresente maior plural idade. Limitemo-nos a dizer que o seu espectro
engloba desde os que estão convencidos de que os melhores profetas dos últimos tempos têm sido extra
eclesiais, até aqueles que acreditam que fora do mundo dos católicos praticantes não há salvação, ainda
que esta seja entendida no mais amplo sentido da palavra.
Em segundo lugar, gostaria também de dizer - já que a genética está tão em moda hoje em dia -
que a predisposição ao integrismo está presente nos gens de qualquer ideologia; por conseguinte, o
desenvolvimento dessa predisposição depende sobretudo do meio, como muito bem o assinalam os
"culturalistas".
Se se der à planta um meio propício para que ela creia que é a reserva espiritual da humanidade, se
se lhe disser que ela é superior, ela só terá razões para tomar-se integrista. Faça se o vazio em tomo dela
na vida social, discriminando-a como a um leproso por causa de sua crença, no sentido bíblico do termo, e
ela desenvolverá idêntico integrismo. Dê-se a um povo miséria e dor, e ele recorrerá à sua religião como a
um cravo ardente, utilizando-a como instrumento de coesão para ver se consegue sair de sua miséria. Dê-
se à planta, neste caso entendida como figuração da pessoa ou do povo, um meio normal no qual possa se
considerar em condições de dar uma contribuição mesmo parcial, e daí resultará um cidadão ou um povo
dialogante de esplêndida qualidade.
Ao dizer estas coisas, posso imaginar o enfado de alguns de meus amigos crentes a resmungar:
será que a esta altura não teremos nada melhor para fazer senão ficar mendigando cartas de cidadania,
como se não houvesse nada de mais importante no mundo? Respondo de antemão que, obviamente, há
grande quantidade de projetos muito atrativos, um dos quais quero comentar aqui, pois ele me parece ser
verdadeiramente urgente. É o projeto de construção de uma ética cívica entre crentes e não crentes em um
país como a Espanha, e em outros bem parecidos. País no qual tanto há laicistas convencidos de que os
crentes não podem ser cidadãos, quanto fideístas, por sua vez persuadidos de que não vale muito a pena
ser cidadão, visto que eles, os crentes, já possuem todas as respostas de que precisam para viver, e não
têm mais nada a aprender de seus concidadãos.
Na esteira dessas considerações, a última mensagem desta introdução consistirá em lembrar que
os problemas morais de uma sociedade pluralista e multicultural exigem uma resposta válida para essa
sociedade no seu todo, e não apenas para uma parte dela. Se quisermos que as leis não deem as costas
para a sensibilidade moral de um ou vários setores da população, torna-se urgente descobrir quais são os
valores morais que podemos compartilhar.
É certamente possível ser crente e cidadão, e não só é possível, como também necessário. Desde
que não se entenda "ser crente" no sentido integrista ou fideísta, nem se entenda "ser cidadão" só no
sentido laicista. No primeiro caso, se a fé nada tem a aprender da racionalidade cidadã, o jogo está
desfeito; no segundo caso, se a fé é uma substância imbecilizante, a situação do jogo será exatamente a
mesma. Fé e razão são bois da mesma canga, no entanto, ressaltemos que se a fé se apresenta como
instância última de ação, o mesmo não ocorre com a ética civil.
A ética civil consiste num conjunto mínimo de valores que se não forem compartilhados pelos
cidadãos de uma sociedade pluralista, tornam a convivência (e não apenas a coexistência) entre eles
impossível. Mas tais valores podem fundar-se em modos distintos de conceber o homem e a história, e são
esses modos que funcionam como instâncias últimas de conduta. Aqui não há portanto incompatibilidade
entre duas cosmovisões, como no caso do marxismo, pois estamos falando de dois níveis distintos de
exigência: o nível das premissas últimas que, no caso dos crentes, são religiosas e o das conclusões, que
compõem a ética cívica e podem ser compartilhadas por uns e outros5.
Assim sendo, se estiverem de acordo, pensemos juntos e sem complexos como fazer um mundo
mais humano, no qual seja possível vivenciar os valores cristãos e cidadãos de liberdade, igualdade e
solidariedade. Porque toda e qualquer pessoa merece esse mundo e não outro, posto que cada pessoa é
um fim em si mesma e não um meio para outra coisa, utilizando a linguagem kantiana; ou, na linguagem
mais cálida da fé cristã, porque cada pessoa é filha de Deus, feita à sua imagem e semelhança.

Capítulo 1
Uma sociedade corrompida?
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 17-33.

1. SINTOMA TOLOGIA GERAL DE NOSSA SOCIEDADE


Antes de realizar qualquer projeto, é prudente começar analisando o terreno onde ele será
desenvolvido, a fim de não utilizar materiais inadequados que tornem o esforço totalmente inútil6. Por isso,
vamos começar este livro tomando o pulso da sociedade em que vivemos, e que não é apenas a
espanhola, pois os países do mundo dito "desenvolvido" se parecem tanto uns com os outros que o que
vale para a Espanha pode perfeitamente ser estendido à maior parte das sociedades ditas de democracia
liberal.
De uns tempos a esta parte, tornou-se costumeiro afirmar que essas sociedades andam com a
saúde bastante debilitada. Com os ideais utópicos de 68 perdidos na noite dos tempos, e com tantos
valores tradicionais submetidos a julgamento, parece que a sintomatologia moral de nossa situação, a crer
no que dizem alguns especialistas, apresenta dados tão preocupantes como estes: individualismo egoísta,
ausência de solidariedade, consumismo, hedonismo (ou o simples desfrute do presente sem ambições de
maior alcance), recusa de qualquer compromisso quanto ao futuro, desaparecimento da militância,
enfraquecimento dos laços comunitários e conjugais7.
Isto poderia ser resumido em duas considerações gerais, se continuarmos seguindo os
especialistas: nossa sociedade está corrompida e seus valores estão em crise. Quem ainda não ouviu falar
na crise de valores? Quem não sabe das denúncias de corrupção que inundam nosso quotidiano,
principalmente no que diz respeito à política? Disto tudo talvez se possa tirar a conclusão de que nossa
pobre sociedade encontra-se num grau avançado de enfermidade, perto do coma profundo. E parece
impossível salvá Ia dessa situação.
O leitor decerto percebeu que tanto a profusão de "ismos" que acabamos de citar quanto as
conclusões que tiramos, acabam compondo uma mescla estranha de coisas muito heterogêneas. E tão
heterogêneas que pouco nos podem ajudar na hora de analisar os verdadeiros males que nos afligem, ou
de distinguir entre eles e os aspectos que nada têm a ver com as enfermidades propriamente ditas. Enfim,
são coisas de pouca valia na hora de tirar conclusões que tenham como objetivo uma melhoria da situação,
se é que isto é necessário. Nessas noites em que todos os gatos são pardos, em que o individualismo se
confunde com a corrupção, e a crise de valores com o hedonismo, fica difícil aclarar a situação para tentar
                                                                                                               
5 A estes dois níveis distintos chamei de " éticas de máximos" e de " éticas de mínimos"; o primeiro refere-se às
premissas diferenciadoras e o segundo às conclusões compartilhadas. Trataremos adiante deste assunto de forma mais detalhada;
uma antecipação da temática pode ser encontrada em Ética aplicada y democracia radical, capo 12.
6 Este capítulo e o seguinte originaram-se de uma conferência do VII Forum sobre Cristianisme i món d' avui, intitulada
"Crisis de valores y exigências de Ia ética y de Ia moral", pronunciada no dia 16 de abril de 1994, na cidade espanhola de Valência.
7 D. Bell, Las contradicciones culturales deI capitalismo, Alianza, Madri, 1977.
curar alguém de cuja enfermidade nada se sabe ao certo, supondo-se que esteja enfermo.
Por isso, abordaremos separadamente os diferentes assuntos, começando neste capítulo pela
corrupção de que tanto se fala. Perguntar-nos-emos em que consiste essa corrupção, e se nossa
sociedade é corrompida, para em seguida fazer comentários sobre alguns tratamentos que possam ser
indicados para reanimar o paciente. Gostaria muito de que o leitor guardasse bem a palavra reanimar, que
significa restituir, a quem a está perdendo, a alma (anima, no original) e o ânimo, ou seja, aquele impulso
vital que o enche de força, energia, encantamento e vontade de absorver o mundo.
Nesse sentido, José Luis L. Aranguren lembrou, de acordo com a tradição orteguiana, que a ética é
um quefazer que consiste na formação do caráter. Nascemos com um caráter determinado, que vamos
modificando com o nosso agir, e podemos encaminhá-lo ou para a plenitude ou para a degenerescência,
para a vida venturosa ou para a desgraça8.
Não convém portanto confundir a ética com um conjunto de deveres morais, como se costuma fazer
de maneira excessiva. E tão excessivamente que para muita gente a pergunta sobre a fundamentação da
moral se identificava ou se identifica com a pergunta "por que devo?"; ou, de forma mais explícita: "por que
devo cumprir determinadas normas contrárias ao que é do meu agrado?". A moral aparece então como ave
de mau agouro, ou como aqueles personagens do programa de TV, Un, Dos, Tres, que tocam a campainha
a cada vez que alguém transgride uma norma ou deixa de cumprir um dever, inclusive sexual.
Certamente que no agir ético contamos com orientações para levar uma vida de plenitude,
orientações essas que podem expressar-se como valores que vale a pena encarnar, deveres que é preciso
cumprir, virtudes que convém assumir. Mas o importante é que tudo isso só tem sentido se vem para
iluminar o caminho da felicidade e ajudar as pessoas a crescer do ponto de vista moral9.
O que fazer ético consiste num treinamento vital que nos permite ficar em forma. Assim como o
esporte requer treinamento, assim também é preciso exercitar-se para desenvolver determinadas
capacidades e habilidades no dia-a-dia, para alcançar "a plena forma" humana, para estar de moral
elevada. E manter a moral elevada não significa levantar um objeto com as mãos, mas sim adquirir,
mediante a atividade desenvolvida, a atitude necessária e a predisposição adequada para enfrentar os
desafios vitais com porte humano.
Uma moral elevada é, sem dúvida, o contrário da desmoralização, de ficar desanimado, ou sem
ânimo e sem forças para agir. Por isso, o que é grave numa sociedade de moral baixa não é tanto que nela
se cometam corrupções e transgressões concretas, mas que falte sol, vitaminas e treinamento para o
tecido social, e que ela seja incapaz de responder dignamente aos apelos da realidade. Afinal de contas, é
o que acontece com uma sociedade que não sabe o que fazer com os ciganos, com os imigrantes e com
os deficientes; uma sociedade assim não tem energias para assumir sua responsabilidade e encarar a
realidade.
Dizia Ignacio Ellacuria, na esteira de Xavier Zubiri, que o homem, diferentemente do animal, não
funciona segundo o mecanismo "estímulo/resposta" na sua relação com o meio, pois graças à sua hiper
formalização ele apreende a realidade como realidade e o meio como mundo. E é justamente porque ele
apreende a realidade como tal, que seus posicionamentos éticos hão de ser realistas sem se perder em
idealismos; eles passam a ter o que se chama "senso da realidade"10.
É com esse senso da realidade que vamos tentar abordar no próximo capítulo o tema tão intrincado
da crise de valores, pois de forma nenhuma se deve considerar como sendo a mesma coisa "corrupção" e
"crise" ou "crise" e "morte". Lembro-me da intervenção de um amigo quando de uma mesa-redonda,
afirmando com veemência: "esta sociedade já não tem ilusão, está passando por uma crise de valores,
está morta". Ora, convém lembrar que os mortos não mais passam por crises, e distinguir cuidadosamente
estes três fenômenos: corrupção, crise e morte.
                                                                                                               
8 J. L.L. Aranguren, Ética, Revista de Occidente, Madri, 1958.
9 J. L. L. Aranguren, " La situacion de los valores éticos", em Los Valores éticos en la nueva sociedad democrática,
Fundación Friedrich Ebert/Instituto Fe y Secularidad, Madri, 1985, pp. 13-20.
10 X. Zubiri, Sobre el hombre, Alianza, Madri, 1986: I. Ellacuria, Filosofia de la realidad histórica, Trotta, Madri, 1991; El
compromisso político de lafilosofia en América Latina, EI Buho, Bogotá, 1994.
Uma sociedade está morta quando não existe mais nenhuma solução para ela. Se eu acreditasse
que nossa sociedade está morta, não escreveria este livro nem nenhum outro. Uma sociedade ou uma
pessoa estão corrompidas quando vão perdendo a substância que lhes é própria. Nesse caso, a única
saída razoável é indagar as causas e procurar saná-las, e é isto o que tentaremos fazer neste capítulo, na
medida de nossas forças.
Dizer que uma sociedade ou uma pessoa estão em crise é uma coisa ambígua, pois crise é aquela
etapa de uma enfermidade em que o processo pode decantar-se até a cura ou até a morte. Ou então é
aquela etapa da vida em que se produz uma forte mudança que pode-nos levar ao crescimento e ao
amadurecimento - o que é muito positivo -, ou à estagnação. Por isso, é preciso tomar medidas que
ponham freio à corrupção. Quanto às crises, elas devem servir de ocasião para desencadear uma reflexão
profunda sobre sua natureza e suas causas, a fim de que possamos canalizá-las para o crescimento e não
para a morte.

2. COMO AS ATIVIDADES SOCIAIS SE CORROMPEM


Hoje em dia, o discurso sobre a corrupção tornou-se corriqueiro em qualquer ambiente social: nos
meios de comunicação, nas conversas de bar e na vida quotidiana, em geral. Mas o que é a corrupção?
Corrupção, no sentido mais amplo da palavra, significa" desvirtuar a natureza de uma coisa para
torná-la má", é privá-la da natureza que lhe é própria e pervertê-la. Isto é, quando uma substância ou uma
atividade humana se corrompem, elas perdem sua natureza e se transformam em uma outra coisa
diferente, que acaba cheirando mal.
Atualmente, tornou-se comum nos meios de comunicação fazer acusações de corrupção, dirigidas
principalmente contra políticos ou contra pessoas de algum modo envolvidas com o mundo político. Fala-se
de desvio de dinheiro, de tráfico de influência, de roubo puro e simples. Em geral, essas acusações visam a
casos concretos, mas esses casos estão crescendo tanto que parece que todo o corpo político está
corrompido. Tem-se a sensação que a natureza da política desvirtuou-se há tempos, mas só agora começa
a cheirar mal, por ser uma atividade em estado de putrefação11. Mas quais são as causas profundas que
levam a política a corromper-se? Qual a etiologia da corrupção política, se se levar em conta que os
sintomas são próprios de um nível de corrupção bastante avançado, embora ainda não universal?
Podemos dizer que se o fim da política, se a meta que lhe confere legitimidade é a busca do bem
comum ou o interesse comum pela utilização dos bens públicos, então a corrupção dessa atividade
consiste em utilizar os bens públicos desvirtuando-os para fins privados. E não há dúvida de que o número
de políticos que utilizam bens públicos para fins privados é escandaloso12. Entretanto, convém perguntar: o
fenômeno da corrupção é novo no campo político? Será que podemos afirmar que, assim como o caso da
crise de valores vem apresentando novidades, há também alguma coisa de novo no caso da corrupção?
Infelizmente, a corrupção política não é unia novidade de nossos dias. Nunca existiu uma Idade de
Ouro da qual possamos nos lembrar com saudade e para a qual tenhamos que nos dispor a voltar. Desde
que nós, os seres humanos, somos seres humanos, desde que Adão e Eva começaram a ter filhos e
formaram uma sociedade, desde que essa sociedade começou a tomar certa forma política, começou a
haver condutas corruptas, conforme as possibilidades do momento. Ao dizer isto, não estou justificando de
forma nenhuma a corrupção, nem estou dizendo - como fazem muitos - que ela é parte integrante da
conditio humana e que temos de conviver com ela. Essa corrente que se refere à Fábula das abelhas de
Mandeville para tirar a conclusão de que a natureza humana é assim mesmo e que é dos vícios que sai o
maior benefício para a coletividade, me parece simplesmente cínica13. Utilizar bens públicos para fins

                                                                                                               
11 A. Domingo, "La perversion de Ia paI abra", em El Ciervo, número 525 (1994), pp. 5-7.
12 No caso da Administração Pública, há três tipos principais de corrupção: a prática do suborno (que é a oferta de uma
recompensa a um funcionário público para que ele modifique seu parecer ou sua decisão em favor do interessado), o nepotismo
(ou a concessão de empregos ou de contratos públicos em função dos laços de parentesco e não do mérito) e o peculato, ou o
desvio e o desfalque de dinheiro público para o uso privado. Ver N. Bobbio, N. Matteucci, Diccionario de politica, Siglo XXI, Madri,
1983, vol. I, pp. 438 e seguintes.
13 B. MandevilIe, La labuia de las abejas, Fondo de Cultura Economico, México, 1982.
privados é desvirtuar a natureza da política, mesmo sabendo que sempre houve indivíduos corruptos14.
Mas é bom lembrar que a corrupção não é apenas política, e acredito que isto também não é
nenhuma novidade. Há corrupção também na atividade econômica e empresarial, na atividade docente e
das áreas de saúde, assim corno no conjunto das atividades profissionais. A corrupção política se distingue
dos outros tipos de corrupção por estar voltada diretamente para a gestão dos bens públicos, desviando-
os, nesse caso específico, para fins privados. Mas em que consiste a perversão de todas essas atividades?
Qual é a causa que leva urna atividade humana a corromper-se?
Para responder a esta pergunta, recorrerei às contribuições de Alasdair MacIntyre, autor que
oferece, a meu ver, análises extremamente valiosas para entender o que está ocorrendo nas sociedades
desenvolvidas, embora não esteja de acordo com a solução proposta por ele. No caso em tela, sua análise
dos conceitos de "atividade social" e "práxis social" nos será de grande ajuda15.
Segundo MacIntyre, atividade social é urna atividade cooperativa que tende a alcançar bens que lhe
são internos e que nenhuma outra pode proporcionar. Esses bens são precisamente os que lhe dão sentido
e, por sua vez, lhe conferem legitimidade social, posto que qualquer atividade humana encontra seu
sentido na busca de um fim próprio16, assim como necessita ser aceita pela sociedade em que se
desenvolve, a fim de ser socialmente legitimada17.
Por outro lado, essas distintas atividades buscam também um outro tipo de bens, que chamamos
externos porque não são os que lhes dão sentido, mas mesmo assim também podem ser alcançados pela
realização dessas atividades. Esses bens são comuns à maior parte das atividades humanas e, por isso,
não servem para especificá-las nem para distingui-las umas das outras. São bens como o dinheiro, o
prestígio ou o poder, resultantes da política ou da medicina, do esporte ou da pesquisa, mas são de tipo
diferente dos bens internos graças aos quais cada atividade se distingue das demais e adquire um
sentido18.
A título de exemplo, o bem interno da atividade esportiva, que a distingue de outras, é o prazer de
jogar ou de assistir a um bom jogo. Não obstante, essa atividade é também um meio de ganhar dinheiro, de
obter prestígio através dos meios de comunicação e, enfim, de conseguir algum poder social, caso a
pessoa interessada saiba movimentar-se pela vida. Evidentemente, estas três coisas podem ser
conseguidas através de outras atividades, como a de um banqueiro hábil ou a de um político astuto.
A mesma coisa acontece com a atividade docente ou a médica. Elas podem proporcionar dinheiro,
prestígio e poder, mas seu bem interno consiste, respectivamente, em transmitir ensinamentos que formam
pessoas autônomas e críticas, e assegurar a saúde dos pacientes. De sua parte, o bem interno da política
é produzir o bem comum, e o da atividade empresarial gerar riqueza para satisfazer as necessidades
humanas19. Em que consiste, portanto, a corrupção de cada uma dessas atividades?
A corrupção das diferentes atividades e instituições se dá quando aqueles que delas participam não
as consideram pelo que elas são, visto que eles não dão valor ao bem interno que através delas se busca e
que lhes dá sentido, especificidade e legitimidade. Eles as realizam exclusivamente por causa dos bens
externos que podem alcançar graças a elas: vantagens econômicas, vantagens sociais, poder. Com isto,
tal atividade e os que a praticam acabam perdendo a legitimidade social e, por conseguinte, toda
credibilidade. Pois quando uma atividade e as instituições através das quais ela se realiza deixam de
buscar o fim para o qual estão socialmente legitimadas, elas se desnaturalizam, se corrompem e ficam
obviamente sem legitimação. A propósito, é bom lembrar que a corrupção não é apenas ilegal, mas
também imoral.

                                                                                                               
14 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capo 9, ponto 3: " El desencanto político".
15 Alasdair MacIntyre, Tras la virtud, Critica, Barcelona, 1987, pp. 233 e seguintes.
16 Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro I, capo I. ...
17 A. Cortina, J. ConilI, A. Domingo, D. Garcia Marzá, Etica de la empresa, Trotta. Madri, 1994, capo I.
18 A. MacIntyre, Tras ia virtud, pp. 233 e seguintes.
19 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, principalmente na parte III; A. Cortina, J. Conill, A. Domingo, D. Garcia
Marzá, Ética de Ia empresa, sobretudo o capítulo I.
Uma sociedade desmoralizada é aquela em que as diferentes atividades vão perdendo a própria
substância, porque os que as realizam preferem os bens externos aos internos, de tal modo e tanto que
todas as atividades acabam por homogeneizar-se e sua única meta passa a ser, finalmente, o dinheiro, o
prestígio e o poder.
A obtenção moderada desses bens é certamente necessária para viver, pois todos nós precisamos
de meios econômicos para manter uma existência digna, alcançar um reconhecimento social que nos
permita ter uma certa autoestima, sem a qual nada se pode empreender e, enfim, poder fazer as coisas
que desejamos.
Mas a corrupção consiste em trocar os bens internos pelos externos, a ponto de considerar como
tolos aqueles que realizam determinadas atividades por causa do seu bem interno. Chegar a esse ponto é
um péssimo sintoma, pois o fato de uma sociedade considerar como tolos aqueles que se comprometem
com o bem interno de uma atividade social benéfica mostra claramente o alto nível de decomposição em
que a sociedade se encontra. Ou, o que dá no mesmo, mostra o nível de desmoralização e de desânimo a
que chegou.
A existência de uma sociedade desmoralizada acarreta também a marginalização de muitas
pessoas. Se a política não busca o bem comum, se a empresa não visa a satisfação das necessidades
humanas, se a atividade informativa não procura elevar o nível de informação e opinião dos cidadãos, se a
medicina e a enfermagem não se desvelam pelo bem dos pacientes, e se o mesmo podemos dizer das
atividades restantes, é certo que às margens delas fica um número elevado de pessoas. E para isso não há
direito, porque não temos o direito de proceder assim.
O problema não está portanto nos casos concretos, que sempre se pode denunciar, mas na
situação geral de desnaturalização das atividades como um todo, na exata medida em que uma sociedade
só busca prioritariamente os bens externos. E o que estamos dizendo não é apenas um discurso para
cristãos, mas vale para qualquer pessoa, porque a riqueza pessoal vem da riqueza das atividades que
desenvolvemos.
MacIntyre lembra ainda que para levar a bom termo cada uma das atividades sociais e alcançar os
bens que lhe são próprios, é necessário desenvolver alguns hábitos, que ele chama de "virtudes"20. Ou
seja, a predisposição que a pessoa tem ou adquire para alcançar o fim específico de uma atividade21. Os
jornalistas, por exemplo, devem adquirir algumas virtudes que não são as mesmas dos docentes, dos
trabalhadores de uma empresa ou dos políticos, e esse desenvolvimento de virtudes diferentes, de
habilidades e capacidades resulta em riqueza para o conjunto da sociedade.
Se substituirmos os bens internos pelos bens externos, aqueles que têm habilidade para ganhar
dinheiro e alcançar prestígio e poder acabam aparecendo como figuras eminentes em cada uma de suas
atividades, embora, no fundo, não sejam tão eminentes assim.
As pessoas habilidosas para as relações sociais cujo domínio constitui efetivamente um autêntico
poder - acabam por conseguir doutorados honoris causa, prêmios artísticos, cargos de responsabilidade22.
Não digamos por ora se a "virtude" delas vai ao ponto de apoderar-se dos meios de comunicação - versão
moderna da pedra filosofal buscada pelos alquimistas, que acreditavam que ela transformava tudo em
ouro; o fato de aparecer nos meios de comunicação não converte todo discurso em ouro, mas o faz reluzir,
parecer ouro. O que é mais do que suficiente para o público, nessa nossa cultura da imagem. A este
respeito, José L González Faus adverte.., nos de forma pertinente sobre o perigo que há em que a
democracia acabe sendo "substituída pela telecracia (que não é o poder do povo, mas a 'ditadura a
distância'), ou pela pseudocracia (império do falsificado)”23.
O sinal mais alarmante da decomposição aparece quando o cidadão comum começa a invejar
aqueles que praticam a corrupção e deseja estar em seu lugar; ou quando o chamado "homem da rua" diz

                                                                                                               
20 A. MacIntyre, Tras Ia virtud, pp. 237 e seguintes.
21 C. Thiebaut, "Virtud", em A. Cortina (ed.), Diezpalabras clave en ética, Verbo Divino, Estella, 1994, pp. 427-461.
22 A. Cortina, La moral dei camaleón, Espasa-Calpe, Madri, 1991, capo 8: " Amicus Plato".
23 J. I. González Faus, " Critica de Ia razón occidental", em Sal Terrae, março de 1991, p. 258.
em seu foro íntimo ou comenta com seus amigos: "Quem dera pudesse eu fazer o mesmo!". Nesse
momento, que receio estar chegando para a Espanha, teremos chegado ao fundo e só nos restará
chafurdar no lamaçal, como se costuma dizer. Porque então teremos perdido a sensibilidade para o mal, a
capacidade de indignação, e já não haveria motivo para exigir justiça.

3. ALGUMAS SUGESTÕES PARA RECOBRAR O ÂNIMO


O próprio fato de que as denúncias de corrupção se amiúdem na rua, que um bom número de
profissionais médicos, empresários, jornalistas, professores - se manifeste totalmente contrários a atitudes
que desprestigiam sua atividade social, os movimentos favoráveis à destinação de 0,7 % do PIE para os
países do Terceiro Mundo, a importância das campanhas de voluntariado24, etc., mostram claramente que
nossa sociedade não está de forma nenhuma morta; a decomposição e corrupção existem, mas não se
pode generalizar, nem é o momento para lamúrias e jeremiadas. Pelo contrário, é hora de analisar as
causas e tentar oferecer algumas sugestões que sirvam para melhorar a situação.
Do que até agora dissemos se depreende que o bom método consistiria em ir lembrando qual é o
bem interno, ou o fim próprio de cada uma de nossas atividades sociais, e as virtudes que precisamos
adquirir para alcançá-lo. Sem esquecer que atualmente as sociedades avançadas - ou sociedades de
democracia liberal - chegaram a um nível de desenvolvimento da consciência moral dito "pós-
convencional", que exige de nós que não consideremos uma norma como justa enquanto todos os que são
afetados por ela não estiverem dispostos a dar-lhe seu consentimento, após ter dialogado sobre ela em
condições de simetria. Pois a razão para obter o consentimento de todos é que estejam convencidos de
que a norma satisfaz a interesses universalizáveis, e não particulares ou grupais25.
Com efeito, como mostrou Jürgen Habermas na sequência do psicólogo L. Kohlberg, as sociedades
também aprendem moralmente e não só tecnicamente, daí advindo que os juízos que formulamos sobre o
que é justo ou injusto nem sempre se situam na mesma perspectiva; cada pessoa e cada sociedade passa
por uma evolução a esse respeito. Nessa evolução pode-se detectar três níveis de desenvolvimento, e em
relação a cada um deles a sociedade adota referenciais diferentes na hora de dar valor ao que é justo. No
nível "pré-convencional", justo é o que satisfaz o interesse egoísta; no "convencional", será considerado
justo o que pode ser aceito em função das regras estabelecidas; e no nível "pós-convencional", a
sociedade terá de distinguir entre suas próprias regras, suas próprias convenções e os princípios
universalistas a partir dos quais pode discernir a justiça de suas normas convencionais. Neste terceiro
nível, fazemos juízo acerca do justo ou do injusto, "colocando-nos no lugar do outro"26.
As sociedades de democracia liberal chegaram a esse nível pós-convencional no que concerne ao
desenvolvimento da consciência moral, porque suas instituições - falamos das instituições democráticas -
encontram legitimidade na defesa de princípios universalistas. No entanto, isto não significa que todos os
cidadãos dessas sociedades tenham alcançado pessoalmente esse nível, mas sim que são esses os
princípios das instituições democráticas. Por ser assim, esses princípios geram entre a população uma
cultura política impregnada por eles. Por outro lado, as instituições democráticas não se manteriam se uma
boa parte dos cidadãos não discernisse o justo e o injusto a partir de uma perspectiva universalista, e não
egoísta ou particularista27.
Portanto, a conclusão deste primeiro capítulo é afirmar que nossas sociedades não estão mortas
nem irremediavelmente corrompidas, como gostam de apregoar os pessimistas; e que para reanimá-las, é
urgente destacar os bens internos de cada uma de nossas atividades, tomá-Ios como metas e desenvolver
                                                                                                               
24 J. Garcia Roca, Solidaridad y voluntariado, Sal Terrae, Santander, 1994.
25 K. O. Apel, La transformación de Ia filosofia, Taurus, Madri, vol. lI, 1985; Jürgen Habermas, Conciencia moral y accion
comunicativa, Peninsula, Barcelona, 1985, caps. 3 e 4.
26 L. Kohlberg, G. Levine, A. Hewer, Moral Stages: a Current Formulation and a Response to Critics, S. Karger, Basel AG.,
1983; L. Kohlberg, Essays on moral Development, Harper and Row Pubs., Nova Iorque e São Francisco, 1981 e 1984; Jürgen
Habermas, Para a reconstruçao do materialismo histórico, trad. brasileira de Carlos Nelson Coutinho, Ed. Brasiliense, São Paulo,
1983; A. Cortina, Ética mínima, Tecnos, Madri, 1986, capo 5.
27 J. Rawls, Political Liberalism, Columbia University Press, 1993.
as capacidades - ou "virtudes" - necessárias para alcançá-los, estabelecendo assim o marco de um sentido
de justiça, segundo o qual só consideraremos uma atividade ou instituição como suficientemente humana
quando ela levar em conta aqueles que são afetados por ela. ,
Aquele que se considera um autêntico cidadão numa sociedade assim, terá pelo menos contraído
para com ela um dever de civilidade, que consiste em recompor o sentido das atividades sociais e da vida
profissional a partir dos diferentes âmbitos da sociedade civil28. O individualismo insensível à solidariedade
não será superado com imprecações e lamentos, que não levam a nada, nem pela abominação de gregos
e troianos, mas, sim, conferindo à vida quotidiana o sentido e o valor que lhes são próprios. Para levar
adiante este empreendimento, estão convocados todos os cidadãos responsáveis, isto é, todos aqueles
que se sentem comprometidos com o mundo em que vivem. Por conseguinte, um crente nunca poderá ficar
de fora de um empreendimento tão urgente e tão fascinante.

Capítulo 2
A crise dos valores morais
In: Adela Cortina. Etica Civil e Religiao, Sao Paulo: Paulinas, 1996, pp. 34-50.

1. O CONCEITO DE CRISE
A palavra "crise" significa, segundo o dicionário, aquele momento em que se dá uma mudança
marcante em alguma coisa, por exemplo, numa enfermidade ou na natureza de uma pessoa". No caso da
enfermidade, a pessoa entra em crise quando chega ao ponto de tomar o caminho da recuperação ou o
caminho da morte. Quanto aos valores pessoais, eles entram em crise quando alguém começa a pôr em
questão suas convicções, a duvidar de que sejam verdadeiras, passando a viver uma situação de
inquietude ou de angústia por não saber se confirmará ou abandonará tais convicções. Estão neste caso as
crises de valor ou as crises de fé das pessoas.
O momento crítico é, portanto, aquele em que ocorre uma mudança marcante, cujo desenlace não
se deixa adivinhar. No caso da enfermidade, será a cura ou a morte. No caso das pessoas, a confirmação
das convicções ou o abandono delas. Em qualquer uma dessas opções pessoais pode ocorrer um
crescimento ou uma deterioração. Por isso, as crises pessoais podem nos levar a crescer ou a deteriorar. É
costume dizer em sociologia que o conceito médico de crise não se aplica às sociedades, já que estas não
podem morrer. As sociedades podem ter uma vida de alta ou baixa qualidade, mas não perecem como os
indivíduos. Receio, porém, que tenhamos chegado ao momento em que, graças aos avanços técnicos e à
nossa falta de juízo, se possa modificar esse tópico da sociologia: nossas sociedades podem morrer
porque estamos destruindo o ecossistema, e o final dessa história tanto pode ser, como dizia Bloch, um
optimum ou um pessimum. Temos a capacidade de destruir a terra e a vamos exercendo pouco a pouco,
na medida em que estamos aniquilando o ecossistema29.
Podemos também sobreviver, mas ficaríamos como se tivéssemos sido atingidos pela doença de
Alzheimer, isto é, com uma vida de baixa qualidade, pois haveria setores a morrer de fome, de guerra e de
solidão. A terceira possibilidade social consistiria em que, como no caso das pessoas, a crise servisse para
o crescimento e o amadurecimento. Mas será que estamos realmente numa crise social de valores, que só
pode levar-nos a uma destas três saídas: disfunção social, existência de baixa qualidade, crescimento e
amadurecimento?
Convém analisar melhor a situação dos valores, porque alguns deles talvez não tenham sido postos
em questão como se dá a entender. Há certo tempo, chegou entre as notícias de Ruanda a declaração de
uma religiosa que lá trabalhava, dizendo: "Nós não podemos sair daqui enquanto houver um só doente".
Diante de um testemunho de amor desse calibre, crentes e não crentes terão sentido um calafrio por
perceber que o amor a céu aberto não está posto em questão. Um amor assim continua produzindo
                                                                                                               
28 J. L. Fernandez, A. Hortal, Ética de Ias profesiones, Universidad Pontificia Comillas, Madri, 1994,
29 K. O. Apel, La transformación de la filosofia, Taurus, Madri, 1973, vaI. 11, pp. 341 e seguintes; Hans lonas, El principio
responsabilidad, Herder, Barcelona, 1994.
admiração, tanto é verdade que todos e cada um queremos ser amados.
Nota-se hoje em dia que há maior tolerância em face de formas de vida diferentes da nossa, e que
já não são tão apreciados como outrora valores tais como a moderação nos gastos, tanto da parte dos
homens como das mulheres, a docilidade dos filhos, a fidelidade das esposas -entendida aqui como não
dormir com outro homem -, os valores varonis, o patriotismo, a conservação fiel de uma mesma ideologia30.
Por outro lado, quando entramos no terreno das coisas às quais damos realmente valor, vê-se que o amor,
o reconhecimento, a lealdade, a ternura continuam sendo indiscutíveis; quanto ao dinheiro, prestígio e
poder, continuam sendo buscados, como sempre31.
Não se pode, portanto, falar pura e simplesmente de "crise de valores", pois continuamos
apreciando certas atitudes e ações como sendo mais valiosas do que outras. Tampouco se pode dizer que
todos os valores morais apreciados durante um tempo não interessam a mais ninguém. A meu ver,
estamos num momento crítico no sentido de que o modo de descobrir valores e o modo como se quer
encarná-los está mudando. Por isso, passo a comentar rapidamente cinco dimensões de nossa crise atual,
para ver se podemos enfocá-la como etapa de crescimento, e não como disfunção ou doença de
Alzheimer. É bom lembrar que o mundo humano nos abre um leque de possibilidades - com maiores ou
menores limitações - para que façamos nossa escolha, mas não nos impõe um destino implacável que só
leve à resignação32. Tentar fazer o melhor, não obstante todas as limitações, é a atitude própria das
pessoas de corpo inteiro.

2. A CRISE DO JUÍZO MORAL, OU A HORA DOS CIDADÃOS.


Com a expressão "crise de juízo moral" refiro-me ao fato segundo o qual nas sociedades pluralistas
não há juízos morais claros, dados de antemão, coisa a que não estão acostumados os que viveram numa
sociedade moralmente monista, como foi o caso da espanhola até 1978, ou dos países do Leste até 1989.
O meu livro Ética Mínima foi justamente dedicado à passagem do monismo ao pluralismo moral, e nele
referia-me sobretudo ao caso espanhol; por isso só farei agora um comentário rápido33.
Até 1978, a Espanha tinha um código moral único, o nacional-catolicismo, peculiar a um setor do
catolicismo hispânico34. Mas, naquele ano, a nova Constituição proclamou abertamente que nosso país não
é confessional e, por conseguinte, não tem de submeter-se ao código moral de uma determinada religião, e
menos ainda de um setor dos que professam essa religião35. Essa mudança causou intensa comoção
seguida de uma crise, de certa forma tão exagerada quanto a vivida por bom número de anglicanos quando
souberam que sua igreja ia permitir a ordenação de mulheres. Alguns anglicanos chegaram a afirmar que
se sua igreja desse sinal verde para isso, ela iria "transformar-se numa coisa qualquer", afirmação que me
parece um insulto a todas e a cada uma das mulheres. Será que essas pessoas não percebem que nós,
mulheres, somos capazes de organizar muito bem todas as atividades de uma paróquia, talvez até melhor
do que os homens? Afinal, temos séculos de experiência da "ordem", que se não é a sacerdotal, é a
doméstica36.
Ainda na Espanha, após 1978, houve outra sacudidela maior, que levou algumas pessoas a retomar
a afirmação de Dostoievski em Os irmãos Karamazov: "Se Deus não existe, tudo é permitido", e a aplicá-Ia
à realidade social espanhola, para tirar a seguinte conclusão: numa sociedade que, em seu conjunto, não
                                                                                                               
30 A. Llano pensa que em nosso tempo surgiu uma nueva sensibilidad, Espasa-Calpe, Madri, 1988.
31 Como é sabido, nos últimos tempos vem aparecendo uma série de pesquisas e estudos sobre o tipo de valor que o
povo aprecia e o modo como são hierarquizados.Exemplos disto são publicações como: S. Garcia Echevarria, M. T. deI VaI, F.
Cea, Sistema de valores de ias estudiantes de ciencias economicas y empresariales en Espana, Instituto de Direccion y
Organizacion de Empresas, Madri, 1994; P. González, A. deI Valle, J. Elzo, F. Andrés, Jóvenes espanoles 94, SM, Madri, 1994.
32 X. Zubiri, Sobre el hombre, Alianza, Madri, 1986
33 A. Cortina, Ética mínima, sobretudo a parte III.
34 R. Diaz Salazar, 19lesia, dictadura y democracia, HOAC, Madri, 1981.
35 O. Gonzalez de Cardedal, Espana por pensar, Universidad Pontificia de Salamanca, 1984, sobretudo pp. 83 e
seguintes.
36 A. Cortina, "Carta a Débora", em Igiesia Viva, número 121 (1986), pp. 77-88
acredita em Deus, tudo é moralmente permitido. Mas essa afirmação é totalmente errônea porque os
convites e as exigências morais se dirigem a todos, professem ou não uma fé, sejam ou não crentes.
Mas o que há de mais grave nessa situação é que as pessoas acostumadas ao monismo,
religioso no caso da Espanha, e laicista no caso dos países do Leste, acabaram adquirindo o hábito da
passividade em face das questões morais, que é muito difícil erradicar. Habituados a ouvir a voz de um
magistério, seja o eclesiástico, seja o de um partido, essas pessoas não conseguem assumir o fato de que
a moral é uma coisa sua, posto que não há nenhuma instância que possa dizer ao conjunto de uma
sociedade o que deve ser tido por bom e justo37.
Numa sociedade pluralista, quem está encarregado de proclamar a moral? Quem está legitimado
para dizer a todos os cidadãos o que é moralmente correto?
Não são os políticos, porque a eles compete buscar o bem comum e ser honrados, de resto como
qualquer outro cidadão, até porque os políticos não têm um juízo moral mais elevado do que o dos
cidadãos. Também não são as igrejas, porque mesmo que devam expressar livremente as suas convicções
morais, não usufruem de igual crédito por parte de todos os cidadãos. E tampouco cabe esperar que sejam
os intelectuais a pontificar sobre o que é moralmente adequado, sobretudo numa cultura da imagem, em
que a ideologia foi substituída pela imagologia.
Os meios de comunicação criam uma imagem que, ao ser apresentada, faz subir os índices de
audiência, levando as pessoas a prestar bem mais atenção na imagem do que na profundidade do que é
dito. Quem já apareceu alguma vez na vida na televisão, decerto já ouviu o seguinte comentário da boca de
algum conhecido: "Não sei o que você disse, mas a verdade é que você se saiu muito bem". O que dá uma
ideia aproximada da profundidade da reflexão.
Mas continuemos com nossas perguntas. Serão os mestres quem há de determinar o que é correto
ou incorreto? Se assim fosse, os pais não teriam nenhum direito de protestar quando o mestre inculca em
seus filhos valores morais que não compartilham. Serão os pais, ou os pais também podem equivocar-se
quanto às questões morais? Deveremos, então, dar-nos conta de que numa sociedade pluralista não há
instância única para dizer a moral?
Na política, é o parlamento que tem legitimidade para promulgar leis, mas no terreno da moral, ou
os cidadãos assumem a responsabilidade de formular juízos humanizadores, e não desumanizadores, ou
ninguém poderá fazê-lo por eles. Aqueles que estão acostumados a receber respostas prontas para todas
as possíveis perguntas vão se sentir incomodados. Pois terão de pensar, de informar-se, de estudar, de
fazer um juízo moral e comprometer-se com suas próprias decisões. E isso exige esforço e acarreta riscos.
Se quisermos tirar da breve análise dessa primeira crise alguma "indicação" capaz de propiciar o
crescimento e não a morte, que seja esta: a hora é a da "cidadania moral", e se nós, os cidadãos, não
assumirmos nossa responsabilidade, ninguém poderá fazê-lo em nosso lugar.

3. A CRISE SOCIOLÓGICA, OU, MUITO ALÉM DOS CAMALEÕES E DOS DINOSSAUROS.


É fato evidente que as sociedades se transformam, assim como é evidente que os valores hão de
modular-se para que possam continuar orientando as ações em sociedades inevitavelmente mutantes.
Nesse sentido, não é mistério para ninguém que as grandes ideologias, as grandes utopias, não estão
exatamente em moda após o fracasso dos países do Leste. Se ainda não chegamos ao fim da história, pois
haverá história enquanto houver capacidade de escolha, a verdade é que as ideologias utópicas perderam
o crédito, e a tal ponto que muita gente fez sua a frase de Groucho Marx: "Estes são os meus princípios,
mas, se por acaso não forem do seu agrado, tenho outros a apresentar".
A moral do pragmatismo triunfa nas ruas; é a moral do camaleão, que se adapta com habilidade às
situações de mudança para poder sobreviver. Ao crente, ao marxista ou a quantos foram educados na
moral do dever, isto parece francamente inaceitável, entre outras razões porque nos ensinaram que o
conteúdo dos deveres é eterno e vale para todas as culturas e raças, em qualquer tempo e lugar. O mesmo
se aplicava às virtudes, que deviam ser sempre as mesmas, quaisquer que fossem as circunstâncias
                                                                                                               
37 M. Vidal, " Paradigma de ética razonable para Ia empresa", em ICADE, numero 19 (1990), pp. 13-38; A. Cortina, Ética
de ia sociedad civil, Anaya, Madri, 1994.
históricas.
No entanto, temos de reconhecer que assim como o simples pragmatismo não é aceitável, também
não é aceitável agarrar-se a certos valores ou ao modo concreto de realizá-los.
Com efeito, quando publiquei o livro "A moral do camaleão ", no qual trato do pragmatismo, e me
refiro a quem muda de opinião como muda de roupa38, um amigo objetou que é preciso ter a flexibilidade
do camaleão para sobreviver, pois os dinossauros - dizia ele-, que são animais incapazes de adaptar-se a
novas situações, perecem irremediavelmente quando há uma mudança de clima. Levando-se em conta que
as mudanças climatológicas são inevitáveis, pode-se dizer que quem só tem mecanismos de defesa para
viver em uma determinada época, é incapaz de sobreviver na seguinte. Isto pode ser perfeitamente
aplicado às sociedades, que passam por mudanças frequentes, o que não quer dizer necessariamente que
estejam progredindo nem que estejam piorando. Aquele que permanece ancorado no passado é incapaz
de compreender o que pode haver de valioso numa nova situação.
Embora o filme de Spielberg, "O parque dos dinossauros", pareça mostrar que esses animais eram
mais ágeis do que pensamos, senti-me forçada a refletir sobre a objeção do amigo, visto que as objeções
existem para nos ajudar a pensar. No que me toca, cheguei à conclusão de que não podemos ser
dinossauros, porque não é próprio de pessoas íntegras aferrar-se a uma teoria e depois sair dizendo que
"se os fatos não correspondem à teoria, danem-se os fatos". Mas também cheguei à conclusão de que não
se deve pular para o extremo oposto, transformando-se em camaleão, e ir pegando pelas bordas os
valores e princípios que continuam sendo valiosos.
Entre os camaleões e os dinossauros estão as pessoas maduras, que procuram discernir em cada
momento quais são os valores e as convicções que ainda valem a pena, e tentam encarná-los da maneira
mais adequada à realidade social em constante mutação. Isto torna as coisas mais difíceis, é claro, pois
obriga a rever convicções e valores e a prestar atenção à realidade; para tomar decisões morais acertadas
é preciso estudar. Mas esse é um dos desafios do ser humano, com capacidade para compreender o
presente e tentar extrair dele o que há de melhor para encarnar no mundo valores a que não se pode
renunciar.
Continuando com nossas "indicações", gostaria de dizer, juntamente com Ignacio Ellacuria, que é
impossível desvencilhar-se da realidade, porque estamos implantados nela; e é por isso que é preciso
tentar fazer dela uma leitura correta e detectar suas possibilidades positivas sem se aferrar às construções
obsoletas. Mas sem esquecer que "ser realista" não significa pura e simplesmente ser pragmático, ou ser
egoísta, como em geral se pensa. É realista quem sabe colocar as questões éticas sobre o que podemos
fazer a partir da realidade tal como ela é39. Por exemplo, hoje em dia não é realista perguntar-se sobre "o
que fazer?" apenas do ponto de vista do Primeiro ou do Segundo Mundo, esquecendo-se do Terceiro: não
existe mais nenhum mundo que seja independente dos restantes. Pelo que demonstra a globalização dos
problemas econômicos ou ecológicos a interdependência de todos os lugares da terra é um fato e, para ser
realista, para agir com senso de realidade, temos de perguntar-nos o que fazer a partir do contexto da
humanidade total.
Como bem disse Ellacuria, quem quiser formular corretamente juízos morais tem de adotar um
"imperativo ético" que se articula em três momentos: assumir a realidade, arcar com ela e encarregar-se
dela para que ela seja como deve ser40. "Assuma" - é o que dizemos quando queremos que alguém
compreenda bem a situação antes de decidir, para que não tome uma decisão da qual poderia arrepender-
se depois. "Você arcará com as consequências" dizemos quando queremos mostrar a alguém que ele é
responsável pelo que suceder porque é quem deve tomar a decisão, por mais que queira tirar o corpo fora.
"Definitivamente, é você o encarregado" - é o que dizemos quando o responsável quer passar a bola para a
frente, para o superior, o subalterno ou para o sistema em seu conjunto.
Ao assumir essas três obrigações para com a realidade social na qual já estamos implantados,

                                                                                                               
38 A. Cortina, La moral dei camaleón, Espasa-Calpe, Madri, 1991.
39 Esta é uma das razões pelas quais o Plano de Estudos da DCA contém a rubrica "Realidade Nacional".
40 I. Ellacuría, Filosofia de Ia realidad histórica; el compromiso político de Ia filosofia en América Latina.
seremos levados a ver que existem pelo menos dois terços da humanidade que são "povos inteiros
crucificados", o que desde já significa que o ponto de partida é uma situação de "desumanidade ". Um
projeto ético não pode evitar esse ponto de partida, mas deve visar a que o processo evolutivo de
hominização - pelo qual o ser humano foi surgindo paulatinamente - possa completar-se em processo de
humanização.
É neste sentido que Jon Sobrino propõe que se vá além do "princípio esperança" de Ernst Bloch, e
talvez além penso eu - do "princípio responsabilidade" de Hans Jonas, para assumir o "princípio
misericórdia", que é uma necessidade imperiosa quando se convive com a injustiça que atinge os povos
crucificados. Não se trata de ficar dando voltas em torno das gerações passadas, mas de assumir o
sofrimento das gerações presentes41.

4. A CRISE FILOSÓFICA. JUNTOS, VAMOS CONSTRUIR O MUNDO.


A crise filosófica é sobretudo uma crise de fundamentos. Estávamos habituados a fundamentar a
moral na religião - nas sociedades confessionalmente cristãs ou muçulmanas -, ou no materialismo
histórico - nas sociedades confessionalmente comunistas. Mas a aparição do pluralismo pôs em cheque
esses modelos de fundamentação. Tivemos então de recorrer à filosofia moral, isto é, àética, para ver se
ela oferecia modelos racionais de fundamentação, válidos para qualquer pessoa, seja qual fosse sua fé
religiosa ou secular. A análise das diferentes propostas filosóficas sobre esse problema exigiria, por si só,
um livro inteiro.
Ademais, como ocupei-me do assunto em outros livros42, limitar-me-ei aqui a oferecer um pequeno
esboço das diferentes posições a respeito, indicando ao mesmo tempo uma bibliografia susceptível de
permitir ao leitor completar o quadro por sua conta e risco, se assim o desejar:
- Os "pós-modernos" consideram infrutíferas e obsoletas as tentativas de fundamentação da moral,
pois tal empreendimento seria impossível, além de ter sido este o empenho da superada modernidade da
época dos "grandes relatos"43.
- Os cientificistas continuam pensando que a moral é uma coisa muito subjetiva e pouco racional,
contrariamente à ciência, que é racional e intersubjetiva44.
- o movimento comunitário tenta não "fundamentar", no sentido forte da palavra, mas visa a
reconstruir a racionalidade da moral, afirmando, em face dos liberais, que é impossível levar a cabo essa
tarefa sem partir das comunidades concretas onde os indivíduos estão enraizados45.
- O chamado "liberalismo político" considera que a fundamentação é impossível e não necessária,
embora não se prive de oferecer um tipo de justificação racional dos valores das sociedades de democracia
liberal46.
- Os seguidores de X. Zubiri estimam que se pode fundamentar a moral na realidade da pessoa e na
tendência à felicidade47.
- A ética dialógica ou discursiva oferece uma minuciosa fundamentação racional da moral nas ações

                                                                                                               
41 Jon Sobrino, El principio misericordia, DCA, San Salvador, 1992, p. 8.
42 Os dois modelos de fundamentação que menciono a seguir foram examinados e criticados de forma detalhada em
meus Ética mínima, sobretudo na parte 11; Ética sin moral, Tecnos, Madri, 1990, no capítulo 3; e em Ética aplicada y democracia
radical, capítulos 2 e 3.
43 Jean François Lyotard, La condición postmoderna, Cátedra, Madri, 1984; G. Vattimo, Elfin de Ia modernidad, Gedisa,
Barcelona, 1986; J. ConilI, El enigma dei animalfantástico, Tecnos, Madri, 1991, capítulos 7 e 8.
44 A. J. Ayer, lenguaje, verdad y lógica, Martinez Roca, Barcelona, 1971, capítulo 6; A. Cortina, Ética mínima, parte II.
45 Alasdair MacIntyre, op. cit.; B. Barber, Strong Democracy, University ofCalifornia Press, 1984; M. Walzer, "The
Communitarian Critique of Liberalism", em Political Theory, volume 18, número 1 (1990), pp. 6-23.
46 J. Rawls, Teoria de Ia Justicia, Fondo de Cultura Economico, Madri, 1978; Political Liberalism.
47 Xavier Zubiri, Sobre el hombre, principalmente os capítulos 1 e 7; J. L. L. Aranguren, Ética, parte I, capítulo 7; D. Gracia,
Fundamentos de bioética, Eudema, Madri, 1988, pp. 366 e seguintes; A. Pintor Ramos, Verdad y sentido, Universidad Pontificia de
Salamanca, 1993; J. Conill, "La ética de Zubiri", em El Ciervo, números 507-509 (1993), pp. 10 e 11.
comunicativas e no fato da argumentação48.
Em outros de meus trabalhos, esforcei-me para mostrar que é possível estabelecer uma
fundamentação racional da moral, e que, para tanto, a contribuição dos zubirianos e da ética do discurso é
complementar49. Nesta perspectiva, e em contraposição aos que consideram as questões morais muito
"subjetivas", procuro mostrar que se pode argumentar sobre a moral e chegar a juízos compartilhados
sobre uma grande quantidade de problemas, tais como a eutanásia, o desemprego, o dinheiro sujo ou o
aborto, as desigualdades econômicas ou a engenharia genética. Podemos argumentar sobre tudo isto e
chegar a acordos que nos permitam, juntos, construir o mundo. Potencializar esse projeto de argumentação
e de busca de acordo é a "indicação" que extraio das considerações que acabam de ser feitas.
 
5. A CRISE DO SENTIDO. CRIAR E PARTILHAR SENTIDOS.
Em sociedades de democracia liberal como a nossa, é inegável a existência de uma crise de
sentido, mas, sobretudo, de sentido partilhado. Grupos diferentes continuam orientando suas vidas ou pelo
sentido religioso, ou pelo sentido que encontram numa ideologia política. No entanto, verifica-se que os
projetos partilhados pelo conjunto da sociedade estão em baixa. E chegamos a essa situação por causa da
perda de credibilidade das grandes utopias, do retrocesso do sentido religioso da vida e do
depauperamento do sentido patriótico, exceto no caso dos nacionalismos e dos Estados Unidos. Nem
todos os cidadãos partilham um projeto político, ou religioso, nem sentem que sua pátria possa realizar
alguma tarefa de singular transcendência.
A conjunção desses fatores, somados à depauperação das atividades sociais, que acaba por
despojá-las de seu sentido próprio, como já assinalamos, tem como resultado a crise generalizada de
sentido que hoje envolve as sociedades de democracia liberal. Ora, nós, seres humanos, necessitamos
muito mais de sentido do que de felicidade, pois esta é uma meta que vez por outra se pode experimentar,
ao passo que o sentido do que fazemos e vivemos é essencial para todos.
Por isso podemos dizer que a falta de sentidos partilhados, assim como a falta de projetos que nos
arrebatem, individual ou coletivamente, é uma das mais graves carências de nossas sociedades e um dos
maiores motivos de desmoralização. O que fazer para alcançar motivação e sentido?

6. A AMPLA SOMBRA DE DEUS.


O anúncio nietzschiano de que "Deus está morto" tornou-se célebre, apesar de a mensagem que
encerra nem sempre ter sido bem entendida. Segundo os especialistas, tal afirmação significa que quem
está morto é o Deus moral da tradição judaica e cristã, assim como, também e sobretudo, estão mortos os
valores morais que o acompanhavam: a defesa da igualdade dos homens, o valor da compaixão e o
discurso axiológico (teoria dos conceitos de valores morais), que impede o florescimento do super-homem.
Mas Nietzsche também dizia que "a sombra de Deus é ampla", o que significa que esses valores
continuam presentes em nossa cultura, ainda que Deus tenha morrido, porque estão encarnados nas
proclamações dos direitos humanos, da igualdade e da solidariedade. O super-homem pode florescer num
mundo aristocrático, mas não no mundo sobre o qual se estende a sombra de Deus, e com ela a proposta
de valores como igualdade e solidariedade50.
Este é o motivo pelo qual utilizei, para intitular esta parte, "a ampla sombra de Deus": tais valores
continuam vivos em nossa sociedade, e são eles que dão forma a uma ética cívica. Diante do que
Nietzsche acreditava e dizia, é urgente reavivá-los, procurando adaptá-los à nossa sociedade em mudança.

                                                                                                               
48 K.O. Apel, Transformación de lafilosofia; Estudios éticos, Alfa, Barcelona, 1986; Verdad y responsabilidad, Paidós,
Barcelona, 1992; J. Habermas, Conciencia moral y acción comunicativa; "Justicia y solidaridad", em K. O. Apel, A. Cortina, D.
Michelini, J. De Zan, Ética comunicativa y democracia, Crítica, Barcelona, 1991, pp. 175-205. Para a ética do discurso, tal como é
tratada entre nós, ver A. Cortina, Razón comunicativa y responsabilidad solidaria, Sígueme, Salamanca, 1985, Ética mínima; Ética
sin moral; Ética aplicada y democracia radical; J. Conill, El enigma dei animal fantástico; J. Muguerza, Desde Ia perplejidad, FCE.
Madri, 1991; V. Domingo García Marzá, Ética de Ia justicia, Tecnos, Madri, 1992.
49 A. Cortina, Ética sin moral, pp. 55 e seguintes.
50 J. Conill, El enigma dei animal fantástico, capítulo 8.
A reanimação de nossas sociedades - entendo "reanimação" como sinônimo de "moralização" -
exige, portanto, que tenhamos em mente os bens internos das diferentes atividades e adquiramos as
virtudes necessárias para alcançá-los, pois em caso contrário o tecido social se desfará e uma grande
quantidade de pessoas será deixada à margem. Essa reanimação só terá êxito se fortalecermos o sentido
do que é justo, o que implica em tomar decisões que levem em conta os que são afetados por elas,
recriando e encarnando a justiça social em nossas atividades e instituições51. Mas de que ponto podemos
fazê-lo?
O momento é de somar e não de subtrair; é o momento de assumir aquela perspectiva que já
partilhamos com outros nas sociedades democráticas. São aqueles valores em que há coincidência de
intenção, porque a democracia não é apenas uma forma de organização política, visto que obtém
legitimidade na defesa de certos valores morais concretizados nos direitos humanos da primeira, segunda
e terceira geração, e na defesa de valores como a liberdade, a igualdade e a solidariedade. Esses valores
constituem aquilo que me parece adequado chamar de ética dos mínimos, que já estão incorporados em
nossas instituições, mas que é preciso trazer de novo à luz.
A ética dos mínimos é uma ética cívica, de todos os cidadãos, e é ela que nos permite tomar
decisões morais partilhadas (por exemplo, nas comissões de ética dos hospitais ou das empresas), bem
como criticar os políticos e transmitir certos valores às gerações futuras, em centros não confessionais.
Mas é legítimo transmitir certos valores a crianças e jovens, ou será que isso é uma coisa ilícita na
sociedade pluralista? Tem sentido criticar ações de outros se não o fazemos a partir de certos valores
efetivamente partilhados?
A mesma humanidade que aprendeu através da história que a escravidão, o assassinato, a mentira
e a opressão são coisas perversas, não pode sair dizendo agora que não tem nada em comum, ou que
carece de uma perspectiva que lhe permita, com os cuidados necessários, tomar algumas decisões mais
humanizadoras do que outras. E é deste ponto, ou desta perspectiva, que temos de fazer o necessário
para que a nossa crise seja de crescimento, capaz de fortalecer os valores e sentidos partilhados, e de
propor, numa atitude de diálogo, valores que podem não ser aceitos por todos, mas que consideramos
valiosos.

Capítulo 3
Moral cívica e moral da crença religiosa
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 51-82.

1. E AS RELIGIÕES NASCERAM...
E as religiões nasceram, pelo que dizia Miguel de Unamuno, para saciar o desejo humano de
imortalidade52. Porque nós, seres humanos, somos nosso próprio sonho e o sonho uns dos outros,
necessitamos de um adormecido que eternamente sonhe conosco, ao qual mantemos dormindo com a
cadência de nossas liturgias, pois se ele acordar nossa morte será definitiva53. A esperança íntima que tem
iluminado as religiões é que o tempo pode ser linear ou circular, pois a vida não termina, mas se
transforma.
As religiões nasceram (como dizia um amigo meu, e se ele não acreditasse nisso, ter-se-ia
declarado ateu) para que os homens pudessem contar minuto por minuto, segundo por segundo, com um
testemunho fiel de sua existência. Pois o que seria de nossa vida se não fosse vivida diante do Outro,
minuto por minuto e segundo por segundo?
As religiões nasceram - como diz e repete o meu amigo Antonio Andrés - para dar às nossas vidas
                                                                                                               
51 D. Garcia Marzá, Ética de lajusticia; E. G. Martinez Navarro,"Justicia", em A. Cortina (ed.), Diezpalabras clave en ética,
pp. 155-202.
52 Este capítulo inspira-se no artigo "Morales racionales de mínimos, morales religiosas de máximos", em Iglesia Viva,
número 168 (1993), pp. 527-543. O número da revista dedicava-se a estudar a colaboração possível entre diferentes religiões com
vistas à construção de uma ética cívica, cada uma delas guardando, obviamente, sua especificidade.
53 Miguel de Unamuno, Niebla, em Obras selectas, Plenitud, Madri, 1965, pp. 579-585.
um sentido que ultrapassa os limites da morte e ilumina a cada dia nossos pequenos sentidos54.
As religiões nasceram, pelo que dizem os sábios e tantas pessoas humildes, para que a felicidade e
a plenitude sejam possíveis, bem como a misericórdia e a paz, a fidelidade e a compaixão. Para nos dar
um coração de carne e sepultar o coração de pedra.
As religiões nasceram... Sim, mas que terá havido desde seu nascimento para que ao longo dos
séculos despertem tantos receios e suspeitas, a ponto de que já se tenha dito que primeiro ternos de nos
libertar das religiões para poder alcançar a liberdade humana?
Há muitas hipóteses sobre o assunto disseminadas em textos, conversas e conferências. No que diz
respeito às religiões monoteístas, uma compreensão a-histórica de Deus e da verdade teria levado a
substancializar as mediações que a história requer e a impô-las como verdades absolutas, quando
logicamente elas estão marcadas pelo caráter provisório das coisas históricas. Ademais, se as instituições
religiosas correspondentes se instalam no centro da sociedade e tomam para si o poder político, ou
estabelecem com ele uma convivência estreita, a intolerância e a intransigência se tornarão os inevitáveis
companheiros de propostas que, na realidade, só podem ser feitas corretamente num clima de convite e de
diálogo.
Graças a Deus - é bem o caso de dizer -, graças a Deus que em muitas partes de nosso pequeno
mundo os acontecimentos históricos foram afastando as instituições religiosas do poder político e de seus
arredores, e levando-as para o lugar que deve ser o seu, ou seja, a sociedade civil, pois só a partir daí é
que as religiões podem continuar a fazer as propostas para as quais nasceram.
Ontem como hoje, continuamos necessitando de um sentido pleno e de plena misericórdia, de
imortalidade e felicidade, de fidelidade indefectível como também de graça, pois todos esses são bens que
somente Deus pode dar aos homens55. Mas será que tais bens podem ser considerados como fazendo
parte de uma ética universal ou mundial? Ou será que a ética, por mais universal que seja, tem de limitar-
se a oferecer certos bens mínimos, algo semelhante a um denominador comum às diferentes religiões, a
crentes e não crentes, bens alcançados ao longo da história e aos quais seria imoral renunciar56?

2. A QUESTÃO DOS "MÍNIMOS DECENTES"


Nos escritos sobre a economia da saúde apareceu, anos atrás, uma expressão humilde, mas muito
interessante: "o mínimo decente". Referia-se ela ao conjunto de serviços de saúde que um estado social de
direito - um estado de justiça - se vê obrigado a prestar, sob pena de perda de legitimidade por não garantir
aquele mínimo de assistência que permite que os cidadãos possam situar-se no nível da justa igualdade de
oportunidades57.
Considerando que a assistência à saúde é um dever social, a pergunta "até que ponto uma
sociedade está obrigada a custear as necessidades de saúde com os recursos públicos?" passa a ser de
suma pertinência. É a isto que corresponde a expressão "mínimo decente", ou seja, custear despesas de
saúde é obrigação de justiça, e não simples ato de beneficência.
Ajustiça seria vista, então, tal como ocorreu em certas tradições ilustres, como uma virtude que
exige a satisfação dos mínimos básicos, ao passo que a beneficência poderia visar àqueles máximos que,
por não serem universalmente exigíveis, podem permanecer nas mãos da gratuidade, isto é, podem ser
graciosamente outorgados, mas não peremptoriamente exigidos.
Os escritos sobre a economia da saúde a que me refiro são majoritariamente norte-americanos e,

                                                                                                               
54 F. Cubells, El mito del eterno retorno y algunas de sus derivaciones doctrinales en lafilosofia griega, Valencia, Anales
dei Seminario, 1967; V. Medo, "Dharma, conciencia i llibertat en I'hinduisme i el bhudisme", en Quaderns FundacióJoanMaragall,
número 13 (1993); Experiencia yóguica y antropología filosófica. Invitación a Ia lectura de Sri Aurobindo, Valencia, 1994.
55 J. L. Ruiz de Ia Pena, El don de Dios. Antropología teológica especial, Sal Terrae, Santander, 1991, principalmente a
parte 11.
56 O. González de Cardedal, El poder y Ia conciencia, Espasa-Calpe, Madri, 1984, pp. 57 e seguintes; Espana por pensar,
pp. 113 e seguintes.
57 N. Daniels, Just Health Care, Cambridge University Press, 1985; D. Gracia, Fundamentos de bioética, Eudema, Madri,
1988.
por conseguinte, pragmáticos, já que o pragmatismo anda tão arraigado nos norte-americanos quanto a
metafísica nos alemães. Qualquer pessoa pragmática sabe que a ação tem suas urgências, e por mais,
que um estado social de direito pareça conformista, se quiser atender a todos os cidadãos terá de decidir
se as cirurgias plásticas para fins estéticos serão pagas com dinheiro público, ou se é inevitável fixar, com
os riscos de erro que isso supõe, até que ponto a sociedade está obrigada por uma questão de justiça. Ou
seja, qual é o mínimo decente que tem de ser estabelecido em "condições de justiça".
O exercício necessário da virtude da justiça requer algumas condições, que são as seguintes: que
os recursos sejam escassos, que haja conflito de interesses e dúvida sobre a idoneidade das pessoas
encarregadas de tomar a decisão. Falamos quanto a isso de "condições de justiça" porque se os recursos
fossem abundantes, se os interesses fossem coincidentes e se as pessoas fossem idôneas, não seria
necessário exercer essa modesta virtude, cuja única aspiração é "dar a cada um o que é seu". Não de
fazê-lo ditoso e bem-aventurado, mas de dar-lhe o mínimo exigível - ou mínimo decente - para que trabalhe
como possa e queira por sua felicidade. Pois a sociedade não pode decidir em seu lugar acerca de seu
modo de ser feliz, e tampouco está obrigada a custear a satisfação de todos os seus desejos, sejam quais
forem.
Uma sociedade que queira empenhar-se em fazer felizes seus cidadãos, segundo um modelo
determinado de felicidade, é uma sociedade totalitária, mesmo que o modelo escolhido seja o da maioria,
posto que os ideais de felicidade são muito diversos e ninguém, nem mesmo a sociedade, tem o direito de
impor seu ideal aos demais. Por outro lado, a sociedade também não está obrigada a pagar aos seus
membros todos os caprichos que eles possam ter; afinal, isso só serviria para engendrar cidadãos passivos
e essencialmente exigentes, incapazes de distinguir entre uma necessidade que deve ser custeada e um
capricho cujo custo deve ser pago apenas pelo interessado.
Uma sociedade na qual todos os cidadãos não tenham uma "Mercedes", nem por isso é uma
sociedade injusta; mas uma sociedade na qual apenas um cidadão passa fome é uma sociedade injusta, E
quanto a isso, é bom ter juízo, pois pode acontecer que as "Mercedes", tão importantes para o 'bem-estar
de alguns tenham como contrapartida a fome que outros estão passando.
É por isso que os economistas da saúde, que se dão conta de que é preciso distribuir recursos
escassos e que isto deve ser feito com justiça, esforçam-se em fixar um mínimo decente, um mínimo
razoável; eles têm consciência da dificuldade que há em distinguir os gostos pessoais das necessidades
que é de justiça atender de acordo com a disponibilidade dos recursos. Mas fazem parte desse mínimo os
serviços odontológicos? E as lipoaspirações para as pessoas que vivem da Imagem de seus corpos, E os
tratamentos caríssimos 'para manter alguém em vida? O simples fato de formular tais questões pode Irritar
os maximalistas, que ademais recorreriam com razão ao argumento: acabem com a corrupção, diminuam
os gastos públicos, vivam mais sobriamente e verão como vai sobrar mais recursos para serem repartidos,
E eles tenham razão, No entanto, por mais que contássemos com governantes perfeitos e cidadãos não
menos perfeitos, os recursos continuariam sendo insuficientes para pagar os desejos de todas as pessoas,
e a pergunta continuaria sendo válida: o que se pode custear com os recursos públicos e a que ponto não
se deve chegar58?
Tal pergunta, explicitamente formulada pelos economistas da saúde, estende-se inevitavelmente a
outros setores da vida social59. O comitê de ética de um hospital tem de saber quais são os "mínimos
decentes" de moralidade a serem respeitados para se comportar com justiça numa sociedade plural60, Os
membros do comitê podem ser crentes ou não crentes e entender de modo muito diferente em que
                                                                                                               
58 A respeito da diferença entre as necessidades biológicas e os desejos psicológicos, ver D, Bell, Las contradicciones
culturales dei capitalismo, p, 34,
59 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, principalmente a parte III.
60 Na Espanha, desde que a Lei do Medicamento começou a vigorar, cada hospital passou a ter seu Comitê Ético de
Pesquisa Clínica, cuja função é analisar e aprovar ou recusar os projetos de pesquisa que se pretende levar a cabo, Ademais, um
número mais reduzido de hospitais começa a seguir o exemplo norte-americano e a criar Comitês Éticos, com a incumbência de
assessorar o pessoal médico e paramédico nos casos em que se deve tomar decisões moralmente conflitivas, e de organizar
cursos, seminários e conferências sobre questões de bioética, Tais comitês não pretendem prescrever o que deve ser feito, nem
controlar ou sancionar procedimentos, mas colaborar para a efetivação de uma cultura da área de saúde,
consiste o "bem" do paciente, Uns podem pensar que consiste em mantê-lo em vida a todo custo; outros,
que esse bem está em respeitar as decisões dele, desde que tenha conservado as capacidades suficientes
para decidir-se de modo racional por uma solução, E poderíamos alongar-nos mencionando um bom
número de possibilidades... Levando em conta o fato de que os membros do comitê podem ter diferentes
concepções, do bem, como é que esse comitê funcionara se a mesma diversidade de concepções existe
também entre os pacientes? Terão eles de fixar um "mínimo decente" de valores partilhados, a fim de que
as decisões sejam respeitosas da pluralidade?
Os educadores também têm de saber quais são os seus “mínimos decentes de moralidade na ora
de transmitir os valores sobretudo no que diz respeito a educação publica numa sociedade pluralista. Pois
é certo que, por serem educadores, não têm legitimidade para transmitir, sem mais, apenas os valores que
Ihes pareçam oportunos. Como se deu, por exemplo, no caso lapidar de um menino que chegou em casa,
comentando que o professor havia defendido, diante da classe, o racismo, a xenofobia e a "aporofobia",
isto é, a hostilidade contra o pobre. Nesse caso, deveriam os pais ficar muito entusiasmados e ir até a
escola para felicitar o diretor? Ou será que, alegando falta de tempo, um bom número de pais
simplesmente deixaria de ir até a escola para protestar e, ao mesmo tempo, exigir que tal professor deixe
de transmitir a seus filhos semelhantes "valores"? O exemplo citado não é capcioso, pois, como é sabido e
experimentado, fatos como esse e outros do mesmo jaez costumam ocorrer. Não seria urgente descobrir
quais são os valores que podemos partilhar e que vale a pena ensinar? É ou não é urgente descobrir um
"mínimo decente de valores" já partilhados?
Essa é certamente uma tarefa difícil, mas pelo fato de ser difícil não podemos deixar de realizá-la,
sobretudo se ela é necessária. Em nossas sociedades pluralistas, chegar a um acordo sobre esse mínimo
é, sem dúvida, uma tarefa difícil.
De igual modo, também as empresas61 e os órgãos de informação terão de explicitar esses
mínimos. Aquelas, quando organizam os seus projetos; estes quando programam as informações. Há todo
um universo de mínimos decentes de moral idade - e não apenas de legalidade - exigido para que se possa
operar com justiça nos diferentes setores da vida social. Porque o direito é inevitável numa sociedade em
que há interesses em conflito; mas o direito não basta para assegurar que uma sociedade seja justa: é
preciso também que haja hábitos, ou ethos, que vem a ser o húmus sobre o qual se desenvolve a vida dos
povos.
Assim sendo, todos os setores sociais, e não somente a comunidade política, necessitam
estabelecer padrões mínimos, pois são eles, com sua pretensão à universalidade, que ultrapassam os
limites de determinada sociedade para aceder à comunidade mundial e às obrigações morais que devemos
ter para com as gerações futuras. A esta altura podemos perguntar: como os leitores estarão acolhendo
este modesto discurso sobre os mínimos decentes?
Obviamente, desconheço a reação dos leitores estadunidenses ante a simples expressão "mínimo
decente". Mas acho que posso dizer que, em nossas latitudes, os setores pós-modernos a abominariam e a
veriam como uma imposição autoritária da razão moderna, mais interessada em ordenar o mundo, em si
mesmo caótico, por categorias. Por outro lado, os utópicos desprezariam o humilde conceito por considerá-
lo a expressão de um repugnante conformismo social-democrata.
"Há que pedir o impossível, para conseguir o viável; há que exigir o máximo, para receber o
mínimo". Mas começar pelo mínimo pode parecer que estamos renunciando, logo de entrada, a uma
transformação radical. Mas em geral, os pós-modernos e os utópicos não costumam ser gerentes de
hospitais, nem responsáveis pela legislação da saúde, e tais ofícios devem mesmo Ihes parecer abjetos.
Falar de mínimos pode soar como rebaixamento, ou como desistência, ou sucedâneo, principalmente em
tempos de crise, quando as pessoas, anêmicas, não andam muito motivadas e se contentam em ficar
tomando sol.
Entre os crentes, uma reação semelhante à dos pós-modernos e utópicos ante o mínimo decente
pode desencadear-se, também, quando se fala dos mínimos éticos próprios à moral cívica. Como esta se
pretende racional, aceita deixar em outras mãos - como as da religião - aquela parte do fenômeno moral a
                                                                                                               
61 A. Cortina, J. Conill, A. Domingo, D. Garcia Marzá, Ética de Ia empresa.
que chamamos "felicidade", desde que permaneçam sendo universalmente exigidos certos princípios
básicos, certos deveres inegociáveis, ou certos "mínimos decentes" que assegurem a convivência humana,
se não em condições de felicidade, pelo menos de justiça.

3. MORAIS RACIONAIS DE MÍNIMOS E MORAIS RELIGIOSAS DE MÁXIMOS


Esta é a razão pela qual, nos últimos tempos, muitos autores consideram conveniente distinguir, no
âmbito do fenômeno moral, entre o justo e o bom62, sem esquecer que "distinguir" dois aspectos de um
fenômeno para compreendê-lo melhor não significa supor que eles ocorram separadamente na realidade.
Sem dúvida, é quase impossível averiguar o que é justo se não tivermos uma ideia precedente dos ideais
de uma vida digna ou boa, assim como é impossível esboçar um ideal de felicidade sem levar em conta
exigências de justiça. Sem embargo, o justo e o bom podem e devem distinguir-se no sentido de que
falaremos a seguir63.
Quando considero que uma coisa é boa, não estou apenas expressando um sentimento meu, como
postulam certas correntes que só veem na linguagem moral a formulação de nossas emoções subjetivas.
Se assim fosse, não poderíamos esperar que os outros se pusessem de acordo conosco, a não ser por
acaso64. Tampouco estou simplesmente informando a alguém que o aprovo, e é aí que os subjetivistas se
equivocam, quando julgam que quem emprega a linguagem moral não pretende ir além da própria
subjetividade. Enfim, também não estou exigindo que meu grupo e minha cultura sejam tidos por justos; se
o fizesse, estaria caindo no relativismo de todas as afirmações acerca do que se considera justo. Ao
contrário, o que pretendo é que se considere justo qualquer ser racional que assuma condições de
imparcialidade. Ou seja, considero que deve ser tido por justo todo ser racional cuja conduta não seja
ditada por seus interesses individuais ou grupais, mas por interesses universalizáveis, porque creio ter
razões suficientes para convencê-lo de que a minha proposta satisfaz a tais interesses.
Se digo, por exemplo, que a atual distribuição da riqueza é injusta e por causa dela uma grande
parte da humanidade está morrendo de fome, não estou apenas expressando uma opinião, mas afirmando
que essa situação deveria mudar, e que qualquer ser racional que tenha em vista interesses
universalizáveis pensaria como eu.
A justiça tem a ver, portanto, com o que é exigível no fenômeno moral, e exigível de qualquer ser
racional que queira pensar moralmente. Donde podemos concluir que é moralmente justo aquilo que
satisfaz aos interesses universalizáveis65. Entretanto, quando considero que uma coisa é boa por causar
felicidade, não posso exigir dos outros seres racionais que eles também a considerem boa, pois esta é uma
opinião subjetiva. É neste sentido que hoje em dia está em voga a distinção entre éticas de mínimos e
éticas de máximos, entre "éticas da justiça" e "éticas da felicidade".
As éticas da justiça ou éticas de mínimos ocupam-se unicamente da dimensão universalizável do
fenômeno moral, isto é, daqueles deveres de justiça exigíveis de qualquer ser racional, e que,
efetivamente, só são constituídos de exigências mínimas. Ao contrário, as éticas da felicidade pretendem
oferecer ideais de uma vida digna e boa, ideais que se apresentam hierarquizadamente e englobam o
conjunto de bens que os homens usufruem como fonte da maior felicidade possível. São, pois, éticas de
máximos, que aconselham a seguir o modelo e convidam-nos a torná-lo como norma de conduta, mas não
podem exigir ser seguidos, visto que a felicidade é tema de aconselhamento e convite, e não de
exigêncial66.
                                                                                                               
62 J. Rawls, Teoria de Ia justicia; Political Liberalism; D. Garcia Marzá, Ética de Ia justicia; A. Cortina, Ética aplicada y
democracia radical, capítulo 12; E. G. Martinez Navarro, "Justicia", em A. Cortina (ed.), Diez palabras clave en ética, pp. 155-202.
63 A. Cortina, "Razón práctica", D. Garcia Marzá, "Deber", E. G. Martinez Navarro, "Justicia", em A. Cortina (ed.), Diez
palabras clave en ética.
64 A propósito, Alasdair MacIntyre faz uma crítica do emocionalismo en Tras Ia virtud, capítulo 2. Em meu livro La moral
dei camaleón, capítulos 2 e 3, há também uma crítica a este respeito.
65 De acordo com a ética do discurso, a averiguação dos interesses universalizáveis supõe o diálogo entre todos os
afetados pelas normas que devem entrar em vigor. Esse diálogo deve ocorrer em condições de simetria.
66 Os defensores das éticas deontológicas, tais como 1. Rawls, K. O. Apel, J. Habermas e L. Kohlberg, parecem estar de
Neste ponto, tomo a liberdade de fazer uma pequena digressão, pois quando se fala de felicidade é
importante esclarecer o que se quer dizer com essa palavra, frequentemente confundida com "prazer",
embora na realidade não seja bem assim67. Todos os homens tendem para a felicidade e ninguém deve
sentir-se envergonhado por isso. Todas as pessoas buscam a felicidade, ainda que seja no serviço aos
marginalizados da terra. A "felicidade"é uma palavra que designa a situação que procuramos alcançar
através das metas que estabelecemos, é quando obtemos os fins que nos propusemos, intencionalmente
ou não. Por isso, algumas correntes filosóficas entendem a felicidade como a "auto realização", para
distingui-la daquilo que os hedonistas, por exemplo, chamam de obtenção de prazer.
Por sua vez, "prazer" significa satisfação sensível causada pelo sucesso de uma meta ou pelo
exercício de uma atividade. Quem ouve uma sinfonia agradável ou come uma iguaria saborosa
experimenta um prazer; quem cuida de um leproso não sente prazer nenhum, mas pode muito bem ser
feliz desde que a preocupação com os excluídos de carne e osso faça parte de seu projeto de auto
realização.
Mas voltemos ao tema dos mínimos e dos máximos. A partir do momento em que distinguimos e
identificamos os mínimos de justiça com o racional, e os máximos de bem-aventurança com as ofertas
religiosas ou com as ofertas dos grupos que propõem uma concepção do que é bom, surge uma
necessária questão: será que isso quer dizer que as propostas religiosas não são racionais, ou que a razão
não tem nada a dizer acerca da felicidade? Religião e felicidade são coisas irracionais?

4. RACIONALIDADE DOS ARGUMENTOS, RAZOABILIDADE DAS NARRAÇÕES


A razão e o sentimento, ou o ethos e o pathos, têm muito a dizer tanto sobre o que é justo quanto
sobre o que causa felicidade, e a rigor é impossível destrinchar o complexo fenômeno da moralidade para
repartir papéis e responsabilidades entre dois lados mais ou menos estranhos. A ética de mínimos não se
ocupa somente de questões de justiça que possa defender racionalmente, sem o concurso dos
sentimentos, deixando para a religião os projetos de felicidade, de salvação e de sentido supostamente
engendrados a partir da irracionalidade. Na verdade, as coisas não são assim, porque a razão humana é
capaz de sentir e o sentimento é racional. Quando os seres humanos querem compreender alguma coisa,
precisam analisar, cunhar palavras e traçar mapas que sirvam de orientação no seio de uma realidade
sempre desbordante. A complexidade do real nos turva a visão; se estivéssemos dispostos a ser os super
homens de que falava Nietzsche - ou super varões e super mulheres, diríamos nós -, poderíamos
prescindir da fixidez dos conceitos, dos mapas que assinalam caminhos, e entregarmo-nos ao caos.
Quanto a mim, prefiro deixar o caos para os super homens que, pelo visto, dispõem de tempo
infinito para dedicar-se a ele, e entregar-me à modesta razão ordenadora - "cósmica" - que não sente
nenhuma repugnância em ter de analisar, separar, traçar rotas, impulsionada pelo desejo de orientar a
ação da melhor maneira possível68. É a partir dessa modéstia da razão que me disponho a falar de dois
tipos de racionalidade no terreno da moral: a racionalidade do que é universalmente exigível, e a
razoabilidade do que pode ser proposto com pleno sentido, sem que por isso seja exigível.
Ao falar da racionalidade do universalmente exigível estou me referindo aos conteúdos que podem
ser defendidos e apoiados em argumentos de tipo lógico; neste caso, quem desenvolve esses argumentos
tem legitimidade para pretender que qualquer homem dotado de racionalidade também possa entendê-los
e partilhá-los, mesmo que venham a ser expressos através de uma lógica informal, e não da lógica formal
propriamente dita.
De sua parte, o razoável é o que pode ser proposto com pleno sentido, mas não pode ser
universalmente exigido, pois os argumentos em que se apoia são mais narrativos do que silogísticos. Em
outras palavras, estão mais próximos do "argumento" de uma narração ou de um relato do que do
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
acordo com essas afirmações.
67 C. Díaz, Eudaimonía, Encuentro, Madri, 1987; A. Domingo, "Felicidad", em A. Cortina (ed.), Diezpalabras clave en ética,
pp. 101153.
68 J. Conill, em El enigma dei animal fantástico, procurou mostrar as pouco conhecidas raízes pragmáticas da razão pura.
raciocínio lógico. Por isso não pretendem convencer argumentando até que o interlocutor fique "derrotado"
e sem argumentos, mas buscar uma sintonia com o interlocutor, através do argumento, sempre biográfico,
de um relato.
É certo que o "racional", naquele sentido primeiro de referência aos mínimos de uma ética
universalizável, não deve ser visto como um frio instrumento cognitivo para uso de pessoas sem
sentimentos e paixões ou de poucas afeições, mas sim como algo que é susceptível de intersubjetividade,
no sentido de que pode ser aceito graças aos argumentos por qualquer homem, porque já faz parte de
nossos esquemas cognitivos morais. A este respeito, a teoria da evolução social de J. Habermas pode nos
ser de grande valia. De acordo com esse autor, assim como aprendemos tecnicamente, assim também
aprendemos moralmente. Nossos esquemas racionais práticos, ou esquemas de conhecimento, através
dos quais julgamos moralmente, evoluíram segundo uma lógica do desenvolvimento69 que nos levou a
considerar racionalmente justo aquilo que já está presente entre os haveres de uma moral cívica dos
mínimos.

5. O "MÍNIMO DECENTE" NA CONVIVÊNCIA CIDADÃ


Que a moral cívica seja uma moral de mínimos significa que os cidadãos de uma sociedade
moderna não compartilham determinados projetos de felicidade, visto que tais projetos englobam distintos
ideais de vida propostos por grupos também distintos, baseados numa concepção religiosa, agnóstica ou
ateia do mundo, que ninguém tem o direito de impor aos outros pela força. Tais concepções, que propõem,
cada qual a seu modo, um modelo de vida feliz constituem o que chamamos "ética de máximos", que,
numa sociedade verdadeiramente moderna, são plurais; por isso, podemos falar de pluralismo moral.
Uma sociedade pluralista é aquela em que convivem pessoas e grupos que têm diferentes
propostas de éticas de máximos, de tal forma que nenhum pode impor aos demais os seus ideais de
felicidade, mas apenas convidá-los a partilhar esses ideais mediante o diálogo e o testemunho pessoal. Por
outro lado, devemos considerar como sendo totalitária uma sociedade que permite a um grupo impor aos
outros sua ética de máximos, seu ideal de felicidade, seja ele ateu, agnóstico ou religioso, coagindo e
discriminando aqueles que não o partilham.
Obviamente, pluralismo não significa "politeísmo axiológico", ou seja, não significa que não haja
entre os cidadãos nada em comum. Pelo contrário: o pluralismo é possível numa sociedade porque os seus
membros, ainda que tenham ideais morais diferentes, têm também em comum os mínimos morais que não
são negociáveis, e aos quais acederam motu próprio e não por imposição70. Decerto que a satisfação
desses mínimos não seria atualmente uma pequena conquista, visto que ao longo do tempo a exigência de
justiça, que é "dar a cada um o que é seu", foi se consolidando nas seguintes obrigações:
I) Da parte da sociedade, garantir a todos o exercício dos direitos humanos de primeira geração, isto
é, as chamadas "liberdades civis" ou liberdade de (consciência, expressão, imprensa, iniciativa econômica,
associação, ir e vir...), e a "liberdade política" de participar do poder político da comunidade em que se vive,
diretamente ou através de representantes;
2) garantir os direitos de segunda geração, agrupados sob a expressão liberdades respeitantes a ou
libertação (libertação da fome, da necessidade, da ignorância, da enfermidade, que só podem ser
alcançados pela satisfação do direito à assistência à saúde, à educação, à vida digna, à seguridade em
face da doença, do desemprego e da velhice), e os de terceira geração que exigem, mais do que os
'restantes, a solidariedade internacional (o direito à paz e ao meio ambiente equilibrado).
São esses direitos que permitem a uma sociedade que os respeite encarnar os valores de liberdade,
igualdade e solidariedade que devem ser defendidos através de uma atitude de diálogo, e não autoritária,
quando se quer levá-los realmente a sério. Esses são justamente os direitos cujo reconhecimento converte
uma pessoa em cidadão de um país, ou em cidadão do mundo, quando são reconhecidos
internacionalmente, como ocorre em alguns casos.
A ideia de cidadania, muito em voga atualmente, supõe que sejam superadas pelo menos três
                                                                                                               
69 J. Habermas, La reconstrucción del materialismo histórico, Madri, Taurus, 1981; A. Cortina, Ética mínima, capítulo 5.
70 Este é o fio condutor de Ética mínima, assim como de boa parte de Ética aplicada y democracia radical.
situações de humilhação de um ser humano por outros:
- a vassalagem ao senhor, característica do sistema feudal mas também de tantas situações muito
quotidianas e lamentáveis em que seres humanos se submetem a outros em troca de favores e proteção;
- o fato de ser súdito de um soberano com relação ao qual se fica em estado de inferioridade, ainda
que um e outro devam submeter-se ao império da lei;
- enfim, a situação de exploração e dominação, na qual os direitos econômicos, sociais e culturais
das pessoas não são respeitados, de tal sorte que se lhes nega na prática a "cidadania social"71.
O verdadeiro cidadão é aquele que, do ponto de vista político, é o seu próprio senhor, não tendo de
inclinar-se diante de outros. Por isso, a comunidade política reconhece seus direitos e se obriga a garantir o
livre exercício desses direitos72. No entanto, se os que se sentem cidadãos não manifestam apreço pelos
valores de liberdade pessoal, igualdade e solidariedade, se não respeitam as diferenças de opinião, se não
estão dispostos a fazer seu O aforismo atribuído a Voltaire - "Não compartilho sua opinião, mas defenderei
até a morte o seu direito de expressá-la"73 -, se não se comprometem com o respeito total dos direitos de
segunda geração, e se não assumem enfim o ethos próprio do cidadão, não haverá reconhecimento legal,
nem qualquer força legal no mundo que seja suficiente para tornar possível a convivência respeitosa e
solidária.
São estes os haveres de uma moral cívica mínima, formulados na linguagem de direitos e deveres
peculiar à moral deontológica que pretende esclarecer, como primeira providência, que requisitos devem
ser universalmente cumpridos para que não se imponha a ninguém, pela força, um ideal de felicidade. Nós,
os humanos, aprendemos muito graças aos golpes que recebemos; entre outras coisas, aprendemos que
os ideais de máximos não se impõem nem se exigem: só se chega a eles pelo convite vital e dialogante74.
A propósito, terá sido através do convite vital e dialogante que as grandes religiões transmitiram
suas propostas de vida feliz? O diálogo e o exemplo de vida terão sido os métodos utilizados pelas morais
seculares dos máximos, tais como o marxismo e o laicismo, para indicar o caminho da libertação?
Ao longo da história, as religiões contribuíram decisivamente para dar configuração às morais
deontológicas que hoje nos são comuns, e seria portanto injusto nega-lhes essa valiosa participação. Mas,
infelizmente, a maior parte das pessoas que assumiram a responsabilidade de difundir universalmente uma
proposta de máximos de caráter religioso ou secular, agiam como se estivessem de posse de uma carta
patente de corsários para impô-la. Ora, é evidente que não se pode evangelizar o povo sem o
consentimento do povo, nem se pode converter as pessoas à lei de Moisés ou ao Corão sem a livre adesão
dos pretensos futuros convertidos. O ato de fé, um dos atos mais pessoais que mulheres e homens podem
realizar, requer a autonomia como uma condição necessária (embora não suficiente). Mas a descoberta de
uma coisa tão evidente custou muito sangue, e mesmo assim ainda há gente que não se deu conta dessa
evidência. É muito difícil perceber e aceitar que não se deve fazer tudo pelo povo, sem o povo, assim como
não se pode fazer tudo pelo convertido em potencial, sem o consentimento dele.
Daí o paradoxo da ética cívica - cujos conteúdos tanto devem à religião - ter nascido na Europa dos
séculos XVI e XVII, a partir de uma experiência que não foi fomentada pelas religiões. Uma experiência que
tornou possível a convivência de cidadãos que professam diferentes concepções religiosas, ateias ou
agnósticas, desde que compartilhem normas e valores mínimos. A experiência do pluralismo nasce e se
desenvolve juntamente com a incipiente ética cívica, sequiosa de tolerância e respeito, e cansada da
intolerância e seus atropelos. Desde o seu nascimento, e ao longo de seu desenvolvimento, a ética cívica
vem mostrando que é condição indispensável de convivência pacífica e justa, e da existência de uma
humanidade feliz. É somente a partir do reconhecimento da autonomia de cada homem que faz sentido
convidá-lo a ser feliz, de um modo concreto - convite que ele pode, obviamente, aceitar ou recusar com
liberdade.

                                                                                                               
71 M. Roche, Rethinking Citizenship. Welfare, ldeology and Chance in Modern Society, Polity Press, 1992.
72 Ver, por exemplo, D. Heater, Citizenship, Longman, London and New Y ork, 1990, capítulo 6.
73 lbid., p. 203.
74 A. Cortina, La moral dei camaleón, capítulo 10; Ética de la sociedad civil.
O materialismo histórico foi, até o momento, a última novidade na longa história dos empenhos em
salvar o povo, sem o consentimento do povo. Mas diante dele, está a ética cívica a lembrar que os homens
são autônomos e não heterônomos, cidadãos e não súditos. E quem se esquece disso acaba ficando
aquém dos mínimos decentes em matéria de compreensão do que é moral.
A vida moral tem um forte componente que ultrapassa as possibilidades exigentes do mínimo
decente de uma ética cívica, um componente que nossos esquemas cognitivos morais ainda não puseram
em circulação e que, por isso mesmo, ainda não é susceptível de intersubjetividade argumentativa. Mas já
o é de forma narrativa, ou biograficamente, se entendermos, como MacIntyre, que a vida humana é uma
unidade narrativa, inserida em tradições75.
A meu ver, é nesta ordem de coisas - apesar do "rabisco grosseiro" que caracteriza conceitos e
termos como "o justo" e "o bom", "os mínimos" e "os máximos", cujos perfis nunca serão nítidos por causa
da riqueza da realidade desbordante - é, digo, nesta ordem de coisas que entra também aquela distinção
do Evangelho de João: "A Lei veio por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo". Os
mínimos deontológicos já estavam claramente formulados na lei de Moisés, mas a verdade moral,
enquanto realização plena ou felicidade, advém de um dom, e não de prescrições legais.

6. A LEI VEIO POR MOISÉS


"A lei veio por Moisés": e com ela o decálogo exigível dos israelitas e de todas as gentes, formulado
com a redondez dos mandatos negativos, que não abrem portas a nenhuma exceção. Em vez do juízo de
avaliação meio acanhado de que "matar é mau", o decálogo apresenta-se com a contundência inegociável
do "não matarás!". Que razões apoiaram o mandato quando Moisés o formulou? Evidentemente, que
Yahvé é o senhor da vida.
Mas será que hoje em dia continua havendo razões que sustentem a racionalidade do "não
matarás"? É claro que sim, mas não somente a razão de que Deus é o senhor da vida, mas também esta
outra: as pessoas ostentam uma dignidade peculiar, em virtude da qual têm direitos dos quais ninguém as
pode privar.
Que Deus é o senhor da vida e que as pessoas foram feitas à imagem e semelhança de Deus, é
sem dúvida uma razão para reconhecer a dignidade das pessoas. Mas ao longo da história outras razões
surgiram (por exemplo, que os homens são fins em si mesmos e, portanto, não podem ser tratados como
meios; que são portadores de valores etc) para dar sustentação ao discurso da dignidade humana, o qual,
por sua vez, dá fundamento à exigência universal, de satisfação dos direitos ditos "humanos", proclamados
através de uma declaração universal num determinado momento histórico, porque havia então razões para
que fossem reconhecidos.
Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 é expressão desse
reconhecimento motivado de que falamos, que não é privativo dos crentes, mas sim haver de toda a
humanidade. Aliás, é uma questão de justiça reconhecer que outras éticas bem absorvidas pelo mundo
filosófico nos servem como instrumentos de fundamentações racionais aceitáveis, embora um e outro setor
das éticas contemporâneas considere desnecessário ou impossível formular uma fundamentação racional
do que é moral76.
Ainda no âmbito desta ordem de coisas, não é de estranhar que o Parlamento das Religiões
Mundiais, reunido em Chicago em 1993, tenha decidido publicar uma "Declaração em Prol de uma Ética
Mundial". A primeira assembleia desse parlamento foi realizada em 1893 e contou com a presença de
membros de 45 religiões. Cem anos depois, além de realizar uma nova assembleia, seus membros
julgaram oportuno firmar uma Declaração Ética, de forma semelhante à Declaração dos Direitos Humanos
de 1948. Com a diferença que, agora, já não se pensa em termos de direitos, mas sim em dar guarida e
destaque aos princípios e valores éticos que se encontram presentes em todas as religiões mundiais.
Logicamente, é quase impossível selecionar elementos religiosos comuns, posto que lhes é próprio
afirmar as diferenças. Os budistas, por exemplo, não falam de um Deus pessoal e os hindus propõem uma
                                                                                                               
75 Alasdair MacIntyre, Tras Ia virtud, capítulo 15.
76 Ver o capítulo 2, n. 4, deste livro.
visão cosmológica estranha às religiões monoteístas. Sem embargo, sejam quais forem as diferenças dos
fundamentos religiosos, deles se podem tirar algumas conclusões práticas para a vida, quanto às quais não
só as religiões estão de acordo, mas também uma ética secular como a que focalizamos neste livro. Assim,
ao dar guarida e destaque aos mínimos éticos em torno dos quais já existe um acordo universal, a
"Declaração em Prol de uma Ética Mundial" atesta, primeiramente, que a existência desse acordo é uma
grande conquista; em segundo lugar, que é preciso tomar consciência de que é possível, partindo dos
mínimos éticos, trabalhar juntos e efetuar paulatinamente acordos sobre pontos mais concretos77.
É por isso que a mencionada declaração se articula em torno de princípios muito gerais. O princípio
central tem a ver com uma exigência ética universalmente aceita ("todo ser humano há de ser tratado
humanamente, porque possui uma dignidade inviolável"), para desdobrar-se em seguida numa regra ética
comum às diferentes tradições religiosas, também conhecida como "regra de ouro" ("não faça aos outros o
que não quer que lhe façam"). O seguimento destas duas regras acarretaria, por sua vez, uma
transformação cultural marcada por quatro diretrizes, que também estão presentes em todas as religiões: a
não-violência e o respeito à vida ("não matarás !"), a solidariedade e a busca de uma ordem econômica
justa ("não furtarás!"), a tolerância e o compromisso de uma vida vivida na veracidade ("não mentirás!"), a
igualdade de direitos e a irmandade entre o homem e a mulher ("não incitarás à prostituição nem te
prostituirás!").
Falar de parlamentos religiosos pode não ser a linguagem mais adequada. No caso em foco, os
"parlamentares" se deixaram levar pela inércia de politizar toda organização humana ou, melhor dizendo,
de democratizá-la, entendendo que o órgão legislador supremo é sempre um parlamento, coisa que não é
verdade. Não há parlamentos religiosos, nem tampouco éticos: há pessoas, que são indivíduos em
comunidade, e há as associações em que se congregam. Não obstante, a melhor conquista de declarações
como estas é a de reforçar em nossa consciência a convicção segundo a qual as diferentes
fundamentações religiosas e filosóficas conduzem a alguns mínimos éticos compartilhados. Mínimos que
neste livro são caracterizados como próprios de uma ética civil comprometida com os direitos humanos das
três primeiras gerações ou, pelo menos, com os valores de liberdade, igualdade e solidariedade.
Por isso, está radicalmente equivocado o crente que anda convencido que "se Deus não existe, tudo
é permitido", que só ele, crente, tem razões para fundar a dignidade da pessoa e, por conseguinte, que
seus interlocutores não crentes são incapazes de fundamentar os argumentos morais no discurso da
dignidade humana. A tal crente não assiste nenhuma razão para começar um diálogo com o não crente em
termos tão conhecidos e infelizes como estes: "Eu estou a favor da dignidade humana e de uma cultura da
vida, enquanto você é a favor de uma cultura da morte". O não crente também é a favor da dignidade
humana, salvo se se alinhar entre os "skinheads" ou outra espécie estranha. Tanto para o crente quanto
para o não crente, a tarefa consiste em ir explicitando os compromissos que o reconhecimento da
dignidade humana suscita em nosso momento histórico, vale dizer, tudo aquilo de que nós, seres humanos
concretos, somos dignos. Para esta averiguação em concreto ninguém tem respostas a priori
porque é preciso desentranhá-las a posteriori.
Todos os que subscreveram a Declaração dos Direitos Humanos são a favor da vida, e esse ato
não é mera convenção. Através dele, não outorgamos direitos aos homens, não lhes concedemos
graciosamente tais direitos, mas os reconhecemos, e os reconhecemos porque temos razões de natureza
intersubjetiva para dizer que os homens já detêm esses direitos78. Donde se conclui que a defesa da
dignidade da vida humana não é privativa dos crentes, os quais, aliás, até há pouco não pareciam saber o
quanto a vida é sagrada, a julgar pelo sinal verde que deram ao braço secular para queimar bruxas e
hereges, seguindo-se um longo etcétera sobre o qual é melhor ficar calado. Pode-se dizer que essa defesa
da dignidade da vida e dos outros direitos já tinha "vindo por Moisés"; ela está enraizada no núcleo das
grandes religiões e na moral cívica. Ela é uma herança humana comum, que é urgente reforçar, ampliar e
                                                                                                               
77 Hans Küng e K. J. Kuschel (editores), Hacia una ética mundial, Trotta, Madri, 1994; Isegoría, número 10 (1994), pp. 7-
21.
78 Para uma visão panorâmica das fundamentações filosóficas dos direitos humanos, ver A. E. Pérez Lufio, Derechos
humanos. Estado de derecho y Constitución, Tecnos, Madri, 1989; A. Cortina, Ética sin moral, capítulo 8.
aprofundar. Mas como? É o caso de perguntar. Anunciando claramente o que nos distingue, mesmo que
ninguém o compartilhe e que fiquemos sós, já que nosso dever é anunciar o Evangelho que recebemos
sem componendas? Ou entrando nessas decaídas outonais da moral cívica e colocando água no vinho de
nossa fé, para que todos possam bebê-lo sem dor de estômago?

7. UMA ÉTICA DE LIQUIDAÇÃO?


Do mesmo modo que os pós-modernos e os utópicos se escandalizam quando se trata dos mínimos
da economia da saúde, também boa parte da população crente se escandaliza com essas pretensas
decaídas da ética cívica, que lhe dão a impressão de algo parecido com a substituição dos preços de alta
temporada pelos das liquidações. Para essa parte crente da população, as religiões não devem entrar no
jogo do mercado, mas continuar com suas propostas de máximos, mesmo em meio às crises, mesmo
correndo o risco de ficar com as mercadorias na prateleira. Para tanto, pensam eles, é preciso evitar uma
dupla tentação:
1) a de aceitar que a própria fé religiosa possa conter uma distinção entre o que pertence à esfera
dos máximos de felicidade e o que corresponde aos mínimos de justiça, como se se tratasse de um curso
no qual os alunos podem receber em três anos o título de graduados e em cinco, o de pós-graduados. A
Revelação, ao contrário, é indivisível e in-quantificável: ou é aceita no todo, ou dela nada se aceita. Por
isso um crente não pode rebaixar as exigências de sua moral religiosa ao mínimo denominador comum no
qual ela coincide com a de crentes de outras religiões e coma dos não crentes;
2) aceitar qualquer tentativa de substituir a religião pela moral cívica. Isto é inaceitável, dizem
nossos amigos crentes, porque a moral cívica não pode prometer a salvação, nem oferecer um fundamento
absoluto para as normas morais, nem responder às questões sobre o sentido da vida. Além do que, a
moral cívica parece deixar as questões morais nas mãos da maioria, como se a verdade moral pudesse ser
decidida por consenso, quando se sabe que a verdade não se pode decidir livremente. A moral cívica,
limitada pelos quatro pontos cardeais, não pode de forma nenhuma tomar o lugar da religião79. É bem
verdade que uma moral cívica que tenha a compreensão adequada de si mesma não pode ter a pretensão
de substituir as religiões, uma ética de mínimos nunca pode alçar-se ao papel de equivalente funcional da
religião. Ressaltemos que falar dos limites da ética civil (assim como dizemos das pessoas que elas não
têm asas, mas que isso é uma limitação, não um defeito), é uma maneira de render-lhe ajustiça devida. É o
que afirma, também, num de seus últimos trabalhos80. meu amigo Juan Luis Ruiz de Ia Pena, com quem
venho dialogando há algum tempo sobre este assunto.
Mas, como já foi proposto por esse autor, é preciso estabelecer distinções no conjunto das
presumidas limitações que acabamos de assinalar. As éticas de mínimos não prometem imortalidade, não
garantem a salvação, não respondem à pergunta sobre o sentido da vida, não consolam nem oferecem
refúgio, nem são capazes de perdoar as culpas. E isto é assim simplesmente porque não constituem uma
religião que nos encaminhe para um Deus pessoal ou sequer para o Todo Universal. Assim sendo, "não é
de sua competência" oferecer esses bens aos homens. Seu trabalho consiste muito mais em ir elucidando
o quejá pode ser universalmente exigível e a maneira pela qual nossas estruturas morais racionais podem
potencializar esses bens para o bem de todos.
Quanto às outras duas afirmações - a ética civil não nos aprovisiona em fundamentos absolutos, e
nela as decisões são tomadas por maioria ou por consenso - convém avançar com cuidado, pois os valores
últimos da ética civil (o valor da pessoa, liberdade, igualdade e solidariedade) não se decidem por maioria
ou consenso, como veremos no próximo capítulo. As obrigações morais, como também veremos, não são
o que são porque a maioria quis que assim o fossem. Logo voltaremos ao assunto.
No que diz respeito à fundamentação da ética civil, cuja chave é o reconhecimento do valor absoluto
das pessoas (que abordaremos também no próximo capítulo), Juan Luis Ruiz de Ia Pena estima que só
                                                                                                               
79 J.L. Ruiz de Ia Pena, "Sobre el contencioso Hombre-Dios y sus secuelas éticas", em A. Galindo (ed.), La pregunta por
la ética, Universidad Pontificia de Salamanca, 1993, pp. 19-41.
80 J.L. Ruiz de Ia Pena, "La verdad, el bien y el ser. Vn paseo por Ia ética de Ia mano de Ia Veritatis Splendor", em
Salmanticensis, volume XLI, fascículo 1 (1994), pp. 37-65, principalmente p. 63.
pode ser um absoluto ontológico, pois existe um vínculo indissolúvel entre o ser, a verdade e o bem. De tal
modo que um Ser absolutamente necessário (Deus) é o fundamento da verdade absoluta e, por
conseguinte, o fundamento da existência de seres absolutamente valiosos. A meu ver, no entanto, que um
ser seja absolutamente valioso significa que não há direito que permita que ele seja instrumentalizado; que
ele é valioso em si mesmo, ainda que sua existência seja ontologicamente contingente e não
ontologicamente necessária. O que não significa (e talvez aqui esteja o receio do autor, meu amigo) que as
orientações morais devam ser decididas pela maioria, como procurei demonstrar em outro trabalho81. Foi
por isso que na Introdução deste livro eu disse que a ética cívica não está competindo com a religião, visto
que não pretende oferecer uma concepção do homem e da história que possa iluminar a totalidade da vida.
Se a expressão tem algum sentido, a ética cívica é predominantemente uma "instância média" com a qual
muitas instâncias últimas podem coincidir, como de fato coincidem.
Mas, então, por que as religiões entram em competição com a ética cívica? Será que o problema
não está nas religiões, que adotam ocasionalmente uma forma deontológica que não lhes corresponde, e
passam a disputar com a ética cívica a propriedade dos mínimos deontológicos? Não se trataria, portanto,
de uma religião codificada, querendo absorver a ética deontológica e negar-lhe a autonomia?

8. UM COMBATE DESIGUAL
Neste final de século, pergunto-me o que há de moralmente exigível nas mensagens das grandes
religiões que possa causar incômodo a qualquer não crente que - para falar como L. Kohlberg - se encontre
na etapa pós-convencional do desenvolvimento de sua consciência moral. Ou seja, que tenha atingido essa
etapa na qual já sabe como distinguir entre as normas convencionais da sociedade em que vive e os
princípios morais universalistas, que tanto pode ser o princípio kantiano ("Aja de modo a tratar a
humanidade, tanto em tua pessoa como na de qualquer outro, sempre como fim e nunca como simples
meio"), os princípios supremos dos pragmáticos norte-americanos ("Todos os homens merecem igual
consideração e respeito"), ou o princípio da ética dialógica ("Uma norma só é correta se todos os afetados
por ela estão dispostos a dar-lhe o seu consentimento, após um diálogo celebrado em condições de
simetria"). O que pode dizer um crente a quem afirma que os homens são fins em si mesmos, que todos
merecem igual tratamento, e que ninguém pode decidir por eles sem consultá-los82, pois daí poderia
resultar um vinho que, de tão forte, seria intragável? Parece que todos já aceitaram, como uma grande e
gozos a conquista, o reconhecimento da dignidade dos homens, cada qual a seu modo propondo-se a
concretizá-la com suas formulações: pelo respeito de seus fins subjetivos, como se todos estivéssemos a
compor um Reino Universal dos Fins, para retomar Kant; postulando que todos devem ser tratados de
modo igual, para falar como os pragmáticos; e, enfim, exigindo que todos sejam consultados e ouvidos de
forma significativa quando se trata de tomar decisões que vão afetá-los, de acordo com os termos da ética
dialógica ou do discurso.
Mas, então, onde está o problema? É claro que em face desse respeito e apreço pela dignidade
humana, a atitude e a motivação do crente que aceita voluntariamente a tradição religiosa em que se
inscreve não têm que ser idênticas às do não crente, inclusive daquele que, tendo nascido no seio de uma
tradição religiosa, optou voluntariamente pela secularidade. Mas quando se trata dos conteúdos, não posso
deixar de perguntar-me o que há de especifico no moralmente exigível que o crente tem de manter, mesmo
correndo o risco de ficar sozinho, por considerar que é um imperativo da sua fé que os outros se negariam
a aceitar. Será que os crentes admitem a existência de valores absolutos, isto é, de coisas valiosas em si
mesmas, como a vida, por exemplo, e que para os não crentes tudo seria relativo, a ponto de sumirem no
relativismo? Tentar responder a essa pergunta é uma exigência da qual não se pode fugir, atualmente.
Supondo-se que a fé induza a defender certas coisas como absolutamente valiosas, e a ética civil não, não
poderia: o crente compartilhar uma ética cívica, para a qual tudo é relativo, enquanto para sua ética própria

                                                                                                               
81 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capítulo 13, n. 5; Ética de la sociedad civil, Anaya, Madri, 1994.
82 0 que supõe, obviamente, que não se pode privá-los da vida. Ver a respeito o capítulo 8 de Ética sin moral.
 
não o é? Mas será que as coisas são mesmo assim? A linha divisória entre a moral religiosa e a moral
cívica passa pela defesa de valores absolutos ou não?

Capítulo 4
O mundo complicado dos valores absolutos
In: Adela Cortina. Ética Civil e Religião, São Paulo: Paulinas, 1996, pp. 83-104.

1. AS PESSOAS SÃO ABSOLUTAMENTE VALIOSAS


Um dos grandes problemas da ética filosófica ao longo dos tempos consistiu inegavelmente em
indagar o por quê da existência de uma dimensão dos seres humanos que qualificamos de "moral"83.
Diferentes respostas foram dadas ao longo da história, mas há uma que nenhuma ética que pretenda dar
respaldo racional aos direitos humanos pode recusar. Há moral porque existe no universo um tipo de seres
que têm um valor absoluto e que por isso não podem ser tratados como instrumentos. Há moral porque
todo ser racional - o que, obviamente, inclui o sei- humano - é um fim em si mesmo, e não meio para
qualquer outra coisa84.
Como é sabido, foi Immanuel Kant quem, pela primeira vez, reconheceu que todo ser racional, isto
é, todo ser humano, possui um valor absoluto. Precisamente, foi em seus célebres Fundamentos da
metafísica dos costumes, escritos em 1785, que afirmou que os seres racionais, as pessoas, são seres
absolutamente valiosos, e que é justamente por possuírem esse tipo de valor que a moral existe85. Nesse
contexto, o que significa a expressão "valor absoluto" formulada por uma ética filosófica em referência às
pessoas, e qual a relação que ela tem com a existência de uma dimensão humana que chamamos
"moral"?
Absolutamente valioso significa neste contexto o contrário de relativamente valioso: significa que há
seres valiosos em si mesmos e outros que não são valiosos porque servem para outra coisa. Ou seja, que
o seu valor não procede do fato de que possam satisfazer necessidades e desejos tal como ocorre com os
instrumentos ou com as mercadorias, mas que esse valor está neles mesmos. E é precisamente porque há
seres em si mesmos valiosos, que existe a obrigação moral de respeitá-los; convenhamos que esta
afirmação parece assombrosa pelo fato de ter sido feita nos longínquos finais do século XVIII.
É nessa época, com efeito, que o capitalismo surge e começa a se desenvolver, e a troca de
mercadorias mediante um preço começa a ser uma forma de relação humana habitual. Os objetos de
intercâmbio, ou mercadorias, são relativamente valiosos, porque vêm satisfazer necessidades e desejos
humanos (valor de uso), e são intercambiáveis porque podemos estabelecer equivalências entre eles e
atribuir-lhes um preço (valor de troca). O gado e os produtos agrícolas, por exemplo, podem ser trocados
pois saciam a fome, fornecem roupa e respondem a outras necessidades humanas, o que permite
considerá-los equivalentes e fixa-lhes um preço. Será então o caso de dizer que tudo é 'trocável' por um
preço, e que no universo só existem meios para fins individuais e grupais?
Se tudo apenas servisse de meio para satisfazer necessidades e desejos, diz Kant, se para tudo
houvesse um equivalente a que se pudesse fixar um preço de troca, não haveria nenhuma obrigação moral
para com ninguém. Portanto, só se existirem seres valiosos em si, cujo valor não provém de que
satisfaçam necessidades, é que poderemos afirmar que eles não têm equivalentes e que não podemos
lhes fixar um preço. Por isso dizemos desses seres que eles não têm preço, mas sim dignidade e, por
conseguinte, merecem o respeito que engendra as obrigações morais.
A existência de pessoas é pois a razão para que haja obrigações morais; como são valiosas em si
mesmas, não há equivalente para cada uma delas, assim como não há possibilidade de fixar-lhes um

                                                                                                               
83 Este capítulo tem origem no artigo "Os valores morais absolutos existem?", publicado em Iglesia viva, número 171
(1994), pp. 235245.
84 A. Cortina, Ética mínima, principalmente a parte 11.
85 Immanuel Kant, Fundamentación de Ia metafísica de los costumbres, Real Sociedad Económica Matritense de Amigos
dei País (Cátedra "Garcia Morente"), Madri, 1992.
preço. Mas têm dignidade, e quem tem dignidade não é trocável, mas respeitável. Não resisto ao desejo de
transcrever o texto em que pela primeira vez uma ética filosófica postula que as pessoas não têm preço,
mas dignidade:
"No reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade. Aquilo que tem preço pode ser substituído
por algo equivalente; em compensação, o que está acima de qualquer preço e por conseguinte não admite
equivalente é o que tem dignidade.
As coisas relativas às inclinações e necessidades do homem têm um preço comercial; já aquelas
que, sem supor uma necessidade, conformam-se a certo gosto, isto é, a uma satisfação produzida por
simples diversão, sem nenhum dos fins de nossas faculdades, têm um preço de afeto; no entanto, aquilo
que constitui a condição para que algo seja fim em si mesmo não tem simplesmente valor relativo ou preço,
mas um valor interno, ou seja, dignidade. A moralidade é a condição através da qual um ser racional pode
ser fim em si mesmo, porque é somente por ela que é possível ser membro legislador no reino dos fins.
Assim sendo, a moralidade e a humanidade, esta última enquanto capaz de moralidade, é só o que possui
dignidade"86.
Naturalmente, um discurso como esse, das mãos de Kant, serve de fundamento para os direitos
humanos e para as obrigações morais, bem como de orientação moral para a conduta humana. Pois dele
se deduz com toda a clareza que quem deseja comportar-se racionalmente tem de evitar, a todo custo, a
instrumentalização das pessoas, visto que elas não são instrumentos. Tal é a afirmação central do
personalismo, que depois tomará formas diversas87, e que nos permite entrar em temas muito atuais.
Embora um ancião já não proporcione satisfações por não estar de posse de todas as suas faculdades e
do domínio do seu corpo, nem por isso temos permissão para eliminá-lo; seu valor não está em satisfazer
desejos, em ser "valioso para", mas em ser valioso "em si mesmo".
Podemos dizer a mesma coisa a respeito de temas delicados como o "direito ao filho" que, na
esteira das descobertas de técnicas de reprodução medicamente assistidas, diferentes setores reivindicam:
ora, o valor em si do futuro filho está à frente dos desejos - que não são direitos - dos pais presumidos, de
modo que é preciso pensar antes de tudo no bem da criança e não somente nos desejos dos pais88. E por
que falar na exploração do homem pelo homem, essa instrumentalização de que somos objetos
mutuamente e que percorre nossa história ao longo e ao largo, senão para reafirmar que, diante do valor
absoluto da pessoa, tal exploração é, sem nenhuma dúvida, imoral, por ser irracional.
Sem embargo, a orientação que aqui procuramos dar à ação é muito geral, e dificilmente pode
conduzir à tomada de decisão em casos concretos, dada a complexidade do real. Para que o
reconhecimento do valor absoluto da pessoa possa tornar-se diretriz da conduta, teria de expressar-se
através de um princípio ético, que é origem fundamentalmente de mandatos negativos.
O que significa que o princípio ético se formularia da seguinte maneira: "Trate cada pessoa como
algo absolutamente valioso e não como algo relativamente valioso, ou seja, não instrumentalize as
pessoas", e fundamentaria deveres negativos revestidos da forma de proibição, como "não farás tal
coisa...". Ora, esse tipo de deveres que formam um deontologismo absolutista não é de boa ajuda em
casos determinados. Ao dizer isto, estamos chegando à segunda acepção da palavra "absoluto", diferente
da que vimos tratando até agora: ela já não se refere aos seres absolutamente valiosos, mas ao tipo de
mandatos que devem ser cumpridos para que haja respeito aos seres absolutamente valiosos. Algumas
tradições éticas reconheceram mandatos desse tipo como "absolutos", no sentido que agora passaremos a
comentar.

2. A QUESTÃO DOS MANDATOS ABSOLUTOS (OU PERFEITOS)


Mandatos absolutos são aqueles que devem ser obedecidos sem nenhuma exceção porque
                                                                                                               
86 I. Kant, op. cit., capítulo 2.
87 F. Fontecha, "La ética dei personalismo", em Iglesia Viva, número 102 (1982); C. Díaz, Corriente arriba (manifesto
personalista y comunitario), Encuentro, Madri, 1985; A. Domingo, Un humanismo del sigla XX: el personalisma, Cicel, Madri, 1986.
88 J. Gafo, Diezpalabras clave en biaética, Verbo Divino, Estella, 1993; J. Gafo (ed.), Nuevas técnicas de reproducci6n
humana, Universidad Pontificia de Comillas, Madri, 1986; Ética y legislaci6n en enfermería, Universitas, Madri, 1994.
proíbem atentar contra um valor absoluto, o que seria concretamente uma ação má em si mesma. Neste
caso, absoluto significa livre de, desligado de qualquer situação ou consequência. Mandato absoluto é
aquele que proíbe realizar determinadas ações más, sem se deter nas circunstâncias do caso concreto
sobre o qual é preciso agir nem nas consequências que previsivelmente dele poderiam advir, pois
circunstâncias e consequências são incapazes de matizar ou modular a maldade intrínseca de tais ações89.
Com efeito, esse tipo de mandato apresenta-se com feições proibitivas, veiculando ordens
negativas, como é o caso dos mandamentos dados por Yahvé a Moisés, no Sinai, exceção feita ao quarto
mandamento, que é positivo. Como já dissemos, as Tábuas da Lei tratam das relações com os outros
homens, e expressa-se em termos de "não matarás", "não furtarás" etc.
Os mandatos negativos desfrutam, em diferentes tradições morais, de melhor acolhida do que os
mandatos positivos, visto que proíbem realizar determinadas ações consideradas absolutamente más, por
serem más em si mesmas, e não admitem exceções. Por isso são comumente denominados deveres
perfeitos, em contraposição aos mandatos positivos, que recebem o nome de deveres imperfeitos porque
admitem gradações e exceções90. Neste sentido, o chamado" paradoxo do calvo" é um exemplo bastante
esclarecedor de mandato positivo.
Imaginemos que a seguinte afirmação fosse um mandato moral: "deves dar cabelo a qualquer calvo
que o peça, pois dar cabelo a um calvo é uma ação boa em si mesma"91. Assim o cidadão desejoso de
cumprir os mandatos morais poderia ficar calvo por dar um fio de cabelo a quantos lho pedissem, resultado
que certamente não seria de seu agrado nem resolveria o problema dos calvos.
Donde se pode concluir que os deveres positivos não exigem que todo ser humano faça o bem de
modo absoluto, a ponto de prejudicar-se, pois isso redundaria em conflito com outros deveres positivos.
Assim sendo, cada sujeito tem de decidir com prudência o quanto está disposto a fazer, em conformidade
com suas possibilidades, sua generosidade, com as circunstâncias e com o seu direito de desfrutar do
mesmo bem. Por isso se diz que os deveres positivos são imperfeitos: porque obrigam num sentido muito
amplo, e permitem gradações e exceções. É nesse contexto que os deveres positivos também englobam
as chamadas "ações super rogatórias", isto é, que não podem ser exigi das de todas as pessoas por serem
ações heroicas.
As proibições, pelo contrário se referem a ações absolutamente más, intrinsecamente más, portanto
são deveres perfeitos, que não admitem gradações nem exceções. Daí decorre o primeiro princípio da
bioética, o chamado princípio de " não maleficência", segundo o qual o médico não deve aplicar ao
paciente nenhum tratamento que o prejudique ou que seja contra indicado; daí também decorre que o
primeiro dever do direito civil seja o de não fazer mal a ninguém92. Portanto, podemos dizer que é
terminantemente proibido realizar qualquer ação absolutamente má (má em si mesma) contra qualquer ser
absolutamente valioso (valioso em si mesmo), quaisquer que sejam as circunstâncias e as conseqüências
da ação concreta.
Este deontologismo absolutista, de tipo kantiano, está também na raiz da ética tradicional, inclusive
no que diz respeito às obrigações de uma comunidade política ante os direitos humanos de primeira e
segunda gerações. Os da primeira geração, que são os direitos civis e políticos - mas sobretudo os civis -
exigem que a sociedade não interfira na liberdade de cada um, o que significa que o respeito que lhes é
devido não admite nem gradação nem exceção. Ao contrário, os direitos econômicos, sociais e culturais,
que são os da segunda geração, parecem exigir uma satisfação gradual, pois a comunidade política
precisa saber de que recursos dispõe para avaliar até onde pode comprometer-se com os cidadãos no
terreno da educação gratuita, da saúde, do seguro-desemprego e da aposentadoria. Tudo o que implica
uma ação positiva - fazer o bem - parece portanto reclamar uma gradação e admitir exceções quando um
                                                                                                               
89 M. Weber, "Política como vocación", em El político y el centifico, Alianza, Madri, 1967, pp. 81-179.
90 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capítulo 10, n. 3.2 : "Límite de los deberes incondicionados : el
problema de Ia violencia legítima" .
91 D. Gracia, Fundamentos de bioética: Primum non nocere. El princípio de no-maleficencia como fundamento de la ética
médica, Instituto de Espafia, Real Academia de Medicina, Madri, 1990.
92 F. V. Kutschera, Fundamentos de ética, Cátedra, Madri, 1989, p.23
dever entra em conflito com outros. Já o que implica a omissão não fazer o mal - deve ser evitado em
qualquer situação.
A esse respeito, há questões que nos interpelam imediatamente: será que não há conflito entre os
deveres negativos? No decurso de uma ação, será necessário optar entre os deveres negativos em
conflito? E se acontecer de um mandato positivo impor exigência mais forte do que o negativo? Se fosse
assim, estaríamos diante de um dilema delicado. Ou teríamos de estabelecer a priori uma ordem entre os
mandatos, indicando claramente qual deles deve prevalecer em cada caso concreto; ou deveríamos
reconhecer que não é possível estabelecer uma ordem a priori, e que diante de um caso concreto cabe a
cada pessoa, e só a ela, escolher o mandato a ser cumprido, após sopesar as circunstâncias e
conseqüências a que deve atender como a um "mal menor".
Se aceitarmos a primeira opção, estaremos admitindo que existem mandatos incondicionados, ou
seja, absolutamente absolutos. Mandatos que, no caso de conflito com outros, devem merecer toda a
prioridade. Se fizermos a segunda opção, estaremos reconhecendo que há mandatos que devem ser
cumpridos, desde que não entrem em conflito com algum outro igualmente exigente, que venha a revelar-
se concretamente mais urgente em virtude das peculiaridades do caso.
A ação humana requer, portanto, que levemos sempre em conta as circunstâncias e as
consequências de cada situação determinada, o que nada tem a ver com a célebre moral de situação, mas
com algo mais corriqueiro. Isto é, quando se fala em moral, há princípios e mandatos gerais que orientam a
ação, e quando esses princípios entram em conflito numa situação concreta, a pessoa que age deve
assumir a responsabilidade intransferível de ponderar os elementos de sua ação. É neste sentido que há
algum tempo os mandatos absolutos vêm sendo entendidos: mais do que "absolutamente absolutos" ,mais
do que princípios incondicionados, eles são considerados princípios prima facie. Mas o que será que isto
quer dizer?

3. DOS MANDATOS "ABSOLUTOS" AOS MANDATOS "PRIMA FACIE"


Diz-se de um mandato que ele obriga prima facie quando proíbe que uma determinada ação seja
realizada, independentemente de circunstâncias especiais, precisamente porque a ação é má: não matar,
não mentir, não descumprir promessas são alguns dos exemplos de mandatos prima facie93. De fato,
poderíamos dizer que os mandamentos do Sinai, as máximas que Kant cita como exemplos de leis morais
ll, os princípios morais e gerais de todos âmbitos da ética aplicada94, inclusive o princípio da ética do
discurso95, ordenam prima facie.
No entanto, quando passamos ao terreno da aplicação dos princípios aos contextos concretos de
ação, e no caso de eles entrarem em conflito, torna-se impossível obedecer a mais de um. E então, quem é
que decide acerca do princípio pelo qual se deve optar? Dar uma única resposta seria simples. Além de
reconhecer o valor absoluto das pessoas (que valem em si e não valem para) e afirmar que há princípios
que obrigam prima facie, poderíamos também proclamar que existem valores absolutos, num sentido
diferente daquele que vimos dando até agora ao termo "absoluto". Ou seja, seria absoluto aquele valor que,
mesmo em conflito com outros numa situação concreta, deve sempre ser tido como prioritário em relação a
eles, deve ser considerado preferencial sejam quais forem as circunstâncias e as consequências
previsíveis. Mas podemos dizer que existem valores assim?

4. EXISTEM VALORES ABSOLUTOS?


Ao criticar o que chamava de "ética absolutista", ou ética dos mandatos absolutos, Max Weber dizia
não haver no mundo nenhuma ética que não tivesse de admitir que todo princípio moral, ao entrar em
conflito com outros em situações concretas, devia abrir exceções. Isto não significa, e é importante
                                                                                                               
93 As máximas "não suicidar-se, não mentir, não descumprir promessas etc". Ver Fundamentación de la Metafísica de las
Costumbres, capítulo 2.
94 Por exemplo, os quatro princípios da bioética: não-maleficência, beneficência, autonomia e justiça.
95 "São válidas apenas, as normas de ação com as quais possam estar de acordo todos os possivelmente afetados por
elas, como participantes de um discurso prático", J. Habermas, Faktizitiit und Geitung, Suhrkamp, Frankfurt, 1992, p. 138.
assinalar, que se deva considerar como boa a ação má à qual foi preciso recorrer para evitar um "mal
maior". O que traz à tona o exemplo bem claro da violência96.
Pode-se dizer que toda ética sensata admite que a violência é má em si mesma, pois tanto causa
dano a quem a pratica, como a quem a padece; e é de tal modo má que ninguém pensa em recorrer a ela
em situações normais, assim como não sonhamos, quando em juízo são, com um futuro de violência, mas
de paz. Mesmo assim, nem um texto tão pacifista como o Evangelho afasta a necessidade de recorrer, por
motivos morais, a um mínimo de violência97.
Em princípio, toda moral que reconhece a necessidade do direito e do Estado como meios de evitar
maiores males, aceita de fato um mínimo de violência pois, como se sabe, o Estado e o direito são fatores
coercitivos que visam a evitar uma violência maior. Mas as coisas ficam mais claras quando nos referimos
aos valores que dão sentido à proibição do recurso à violência, como, por exemplo, o valor da vida. E será
que a vida tem sido um valor absoluto para a mais ortodoxa tradição da ética cristã?
Se a vida tivesse sido sempre considerada um valor absoluto, certamente nunca teria sido preterida
quando posta em relação com outros valores. Mas foi preterida, inclusive pela ética cristã mais ortodoxa,
como se pode demonstrar através de quatro casos, pelo menos.
1) Segundo a doutrina tradicional dos doutores da Idade Média, nos casos em que há conflito de
vida, ou seja, em caso de legítima defesa pessoal, de guerra justa e da legitimidade de matar o tirano
quando ele violenta o povo, ao invés de protegê-lo conforme o encargo que recebeu de Deus.
É claro que não se trata de reconhecer bondade na violência, que continua sendo indesejável, mas
de justificar o recurso a ela em determinadas circunstâncias, para evitar a destruição de outros valores,
como a preservação da vida ameaçada e a integridade, dignidade e existência de um povo quando também
ameaçadas.
2) O caso da pena de morte é mais dificilmente justificável, se atribuirmos à vida um valor
absolutamente absoluto. Em geral, ela é justificada por motivos de justiça, de escarmento e por sua
capacidade de dissuasão, mas a eficácia desses motivos é bastante duvidosa para introduzir uma exceção
num dever perfeito, como o de não matar, dando-lhe ademais força moral jurídica. Donde se presume que
a vida nem sempre é tida como um valor absoluto, preferencial em face de outros valores.
Defender a pena de morte dizendo que se trata da vida de uma pessoa culpada não modifica em
nada o fato de que, neste caso, a vida não está sendo considerada como um valor absoluto. Significa, isto
sim, que a vida só é considerada absolutamente (incondicionadamente) valiosa desde que respeite uma
condição: ser inocente. Ora, o que se deixa determinar por uma condição não pode ser incondicionado e,
portanto, não é considerado absolutamente absoluto.
3) Outro caso impossível de justificar foi o sacrifício de bruxas e hereges em determinados períodos
históricos. Todos sabemos o quanto isto é constantemente citado, como se o número de pessoas
executadas pela Inquisição tivesse sido elevadíssimo e como se nenhum outro poder daquela época
houvesse cometido tais ações injustas. Não se trata agora de abundar em críticas à Inquisição, mas de
assinalar que uma ética que permitiu e justificou esse tipo de coisa não pode afirmar pura e simplesmente
que sempre considerou a vida como valor absoluto e preeminente a qualquer outro na hierarquia de
valores. Pois, pelo menos naquele período, a verdade religiosa antepôs-se à vida na classificação
axiológica. E isto nos obriga a matizar nosso discurso para não sair lançando afirmações como "sempre" e
"absolutamente", e nos obriga a relembrar, com o restante da humanidade, que se os grandes valores não
são relativos às distintas épocas e culturas, mas valem para todos os seres humanos, também é preciso
reconhecer que não podemos dizer de modo absoluto quais devem ser preferidos nos casos concretos.
4) O quarto caso refere-se enfim, embora num registro diferente, à proibição - que de minha parte
assumo totalmente - do que vem a ser a teimosia terapêutica. Como é sabido, a mais ortodoxa moral cristã
                                                                                                               
96 Sobre o tema da violência, ver, por exemplo, I. Ellacuría, "Violencia y Cruz", em Teologia política, San Salvador, 1973,
pp. 95127; "Trabajo no violento por Ia paz y violencia libertadora", em Concilium, número 215 (1988), pp. 85-94; Vários autores,
Semana de paz y reconciliación, DDB, Bilbao, 1993, e, mais particularmente no que diz respeito a este ponto, 1. Sobrino, "Apuntes
para una espiritualidad em tiempos de violencia", pp. 113-139; A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, pp. 185 e seguintes.
97 Max Weber, op. cit., pp. 165 e seguintes.
proíbe o procedimento terapêutico que consiste no prolongamento incondicional da vida biológica, inclusive
nos casos em que o paciente só é mantido vivo por ter sido conectado aos mais variados tipos de tubos e
sondas, por tratar-se "meios extraordinários" que ocasionam, ademais, gastos elevadíssimos para a
sociedade. Ora, é justamente por causa do respeito devido à qualidade e à dignidade da vida do paciente,
e em consideração ao custo elevado de uma iniciativa que acabará prejudicando a outros, por causa da
escassez de recursos, que é aconselhável proibir essa teimosia terapêutica98.
Tal posição é absolutamente sensata, mas mesmo assim ela demonstra novamente que a vida
biológica não é considerada como um valor absolutamente absoluto e preferencial em relação a outros.
Com efeito, a proibição da teimosia terapêutica põe em pauta outros valores referentes à vida, como a
qualidade, a dignidade e a justiça. Será que isto significa, ao final deste capítulo, demos com os costados
no relativismo moral?

5. ALÉM DO ABSOLUTISMO E DO RELATIVISMO

O relativismo moral
Quando se constata que os conteúdos morais mudam conforme as épocas, as culturas e os grupos,
a conclusão que parece mais evidente é a de que se chegou ao relativismo moral, isto é, que para decidir
sobre o que é justo e bom, temos de nos situar dentro de um grupo determinado e estar conscientes de
que os resultados a que chegarmos valem para tal grupo e não para os restantes. Como cada grupo tem
seus costumes e suas tradições, suas opções morais não podem ser comparadas com as de outros, pois
não há entre elas uma medida comum. Assim sendo, o justo e o injusto, o bom e o mau são sempre
relativos a algum grupo humano e dependem de suas formas de vida, donde a impossibilidade para os
diferentes grupos de estabelecer acordo e alçar-se ao plano da intersubjetividade99.
O relativismo surgiu na Grécia com os chamados "sofistas" (séc. V a.C.), quando os discursos
públicos manifestavam a diversidade dos pontos de vista e davam a entender que cada um deles poderia
ser defendido com argumentos aparentemente convincentes, sem que se pudesse encontrar um critério
que lhes fosse superior e capaz de dirimir as disputas. O relativismo é portanto uma das interpretações
possíveis do fato da diversidade cultural, embora não seja a interpretação mais acertada. Não obstante, ele
continua presente na atualidade sob a forma do "relativismo cultural", para o qual os critérios morais
dependem das diferentes culturas. Está também presente em outras duas posições: o "contextualismo",
que postula que só podemos saber se uma proposta moral é correta ou incorreta em função de cada
contexto de ação, e o "etnocentrismo", que considera impossível justificar a qualidade (boa ou má) de uma
opção quando não se tem um interlocutor definido. Para o etnocêntrico, só podemos justificar uma decisão
em face daqueles que já compartilham nossa forma de vida, pois só eles poderiam entender-nos100.
Frequentemente, o relativismo conduziu ao ceticismo, movimento filosófico iniciado por Pirron e sua
escola no século li a. C. Pensa o adepto do ceticismo que, como não podemos estabelecer nenhum critério
a partir do qual decidamos entre uma e outra opção, todas têm o mesmo valor, nenhuma é melhor do que a
outra e, portanto, é impossível distinguir o justo do injusto, e o bom do mau. Mesmo sendo obrigados a
tomar decisões, nunca encontraremos uma justificativa racional para elas.

O relativismo é inumano
Tais posições, bastante presentes no contexto filosófico e social de nossa época, são humanamente
indefensáveis. Eu mesma afirmei num artigo que a diferença entre "relativismo" e "pluralismo respeitoso"
está em que o segundo é humanamente necessário, enquanto o primeiro é humanamente insustentável,
                                                                                                               
98 Ver, por exemplo, J. Gato, "Eutanasia", em Diezpalabras clave en bioética; J. Gato (ed.), La eutanasia y el arte de mo
rir, Universidad Pontiticia de Comillas, 1990; Ética y legislación en enfermería.
99 Alasdair MacIntyre, Justicia y racionalidad, EIUNSA, Barcelona, 1994; J. Conill, "EI relativismo moral contemporáneo",
em Iglesia viva, número 171 (1994), pp. 223-233.
100 R. Rorty, "Solidarity or Objectivity?", em J. Racman, C. West (editores), Post-Analytic Philosophy, New Y ork, 1986, pp.
3-19; A. Cortina, Ética sin moral, pp. 105-115.
como se pode verificar em nossas sociedades, que só são relativistas da boca para fora101.
A nós, europeus, sufocados e envergonhados por nosso inveterado etnocentrismo, parece mal-
educado, autoritário e dogmático dizer que as diferentes opiniões não são igualmente respeitáveis; por isso
afirmamos que qualquer cultura é tão racional quanto a nossa, e talvez até mais. Mas, na realidade,
consideramos irracional que uma cultura condene à morte um cidadão por causa de um livro que escreveu,
por mais blasfemo que seja o livro; indignamo-nos com o tratamento que essa mesma cultura dá às
mulheres; desaprovamos o sistema de castas; afirmamos inclusive que os fundamentalistas do FIS (Frente
Islâmica da Salvação) "ainda" estão na Idade Média e "ainda" não chegaram à Modernidade, como se
todos tivessem de seguir o nosso próprio processo cultural.
Mas nas horas decisivas, ninguém parece crer no relativismo. Pois quem considera irracional tirar a
vida, causar danos físicos e morais, privar alguém de liberdade, e não assegurar às pessoas os mínimos
materiais e culturais para que elas possam viver dignamente, pensa que isso se aplica de igual modo a
todas as sociedades, e não apenas à sua. Quer o diga ou não, considera que uma cultura indiferente à
observância desses mínimos está abaixo dos níveis de racionalidade ou, o que vem a dar nà mesmo, de
m0ralidade. Porque quando alguém diz com sinceridade que "isto é justo", não está apenas formulando
uma opinião subjetiva ("eu aprovo x") ou restrita ao seu próprio grupo, mas uma exigência que todo e
qualquer homem também deve ter por justa. E quando argumenta para esclarecer porque considera que
algo é justo, está dando a entender que julga ter razões suficientes para convencer a qualquer interlocutor
racional, e não apenas tentando suscitar nos outros a mesma atitude.
De fato, é preciso distinguir entre: a) causar psicologicamente nos outros uma atitude, mediante a
propaganda, por exemplo; b) praticar o intercâmbio de razões a fim de que cada um possa, de maneira
autônoma, tomar uma decisão ponderada102. No primeiro caso, o que interessa não é dialogar com o
interlocutor, mas ganhá-lo para a nossa causa através de meios psicológicos: não nos interessamos por ele
em si mesmo como interlocutor válido, mas pretendemos utilizá-lo para nossos fins, o que é próprio da
manipulação e da propaganda103.
Se a linguagem moral, ou pelo menos parte dela, não nos remetesse a critérios intersubjetivos, não
haveria entre nós outros "diálogos" senão os estratégicos, que nos servem para utilizar nossos inter
locutores como meios de atingir nossos fins, e não para tratá-los como fins em si mesmos. Assim como
também não haveria lugar entre nós para uma autêntica comunicação, mas para a manipulação ou, na
melhor hipótese, para a negociação. No entanto, como uma parte de nossa linguagem moral tem
pretensões universais, nós a desvirtuaríamos se a usássemos para manipulações.
Como já lembrei, Jürgen Habermas tentou mostrar em sua teoria da evolução da consciência moral
das sociedades que estas tanto aprendem tecnicamente quanto moralmente. Aliás, nossas sociedades de
democracia liberal têm desenvolvido um processo de aprendizagem que já deixou marcas em nossos
esquemas cognitivo-morais104. Repetindo o que já foi dito, a teoria da evolução social refere-se à
aprendizagem que desenvolvemos quando formulamos julgamentos sobre o que é justo. Isto quer dizer
que durante esse processo de aprendizagem as sociedades hoje democráticas recorreram aos três níveis:
o pré-convencional, em que o egoísmo é a instância para julgar o que é justo; o convencional, em que são
tidas por justas as normas vigentes na comunidade concreta; e o pós-convencional, graças ao qual
aprendemos a distinguir entre as normas de nossa comunidade concreta e os princípios universais, que
levam em conta toda a humanidade, de tal sorte que a partir desses princípios podemos, também,
questionar as normas de nossas sociedades concretas.
Sob este aspecto podemos dizer que, embora uma grande parte dos cidadãos das sociedades de
democracia liberal ainda se situem no nível pré-convencional e convencional, os valores que dão
legitimidade às instituições democráticas dessas sociedades derivam do nível pós-convencional. Ou seja,

                                                                                                               
101 "Todas Ias opiniones son igualmente respetables?", em ABC Cultural, número 155 (1994), p. 63.
102 W. D. Hudson, Lafi/osofia moral contemporánea, Alianza, Madri, 1974, capo 4.
103 A. Cortina, La moral del camaleón, capítulos 2 e 3.
104 J. Habermas, La reconstrucción delo materialismo histórico; A. Cortina, Ética mínima, sobretudo o capítulo 5.
são valores universais, que ultrapassam os limites das comunidades concretas e nos dão força para criticar
inclusive as normas dessas comunidades concretas.

6. OS VALORES UNIVERSAIS
O universalismo moral, que surgiu no Ocidente com a filosofia grega e a religião cristã, tornou-se
irreversível, de tal forma que qualquer retorno ao particularismo moral é um retrocesso. Esse universalismo,
que brotou das cosmovisões grega e cristã na etapa das civilizações desenvolvidas, vem impregnando
paulatinamente a forma de racionalidade que se manifesta através de argumentos. É por isso que no nível
pós-convencional se postula o universalismo moral, que pode ser defendido com argumentos
intersubjetivamente aceitáveis, e não precisa limitar-se tão somente à fundamentação religiosa. Quais são
esses valores universais que constituem o universalismo moral nos dias de hoje?
A chave de todos esses valores continua sendo o valor absoluto das pessoas, e não é outro o
motivo pelo qual venho tentando esclarecer, desde o começo deste capítulo, ser este o valor absoluto no
sentido mais profundo da palavra. Reconhecer esse valor implica em que as pessoas não devem ser
tratadas como instrumentos, posto que possuem uma dignidade que as faz sujeitos de direitos. São direitos
referentes às duas gerações a que aludimos, sem esquecer os da terceira geração, que são os de viver em
paz na sociedade e desfrutar de um meio ambiente sadio. Os valores inscritos em tais direitos são, por sua
vez, universais: o valor da vida, a liberdade (positiva e negativa), a igualdade, a solidariedade, a paz e a
tolerância ativa105.
Mas será que se pode dizer, seriamente, que esses valores estão em vigor nos diferentes grupos e
países? Ou, ao contrário, será que se tem de reconhecer que não é bem assim, pois há sociedades que
vivem moralmente de mínimos, como aquelas em que as pessoas podem perder a vida pelas mãos de
outras (valor da vida), em que os cidadãos não desfrutam de independência (valor da liberdade negativa)
nem autonomia (valor da liberdade positiva), em que uns poucos possuem todos os bens sociais e
dominam o restante, a quem faltam condições materiais, econômicas e culturais dignas (valor da
igualdade)? Será que não temos de reconhecer que uma humanidade que permite a depredação de
grandes zonas da terra, que permite a fome e a guerra (valor de solidariedade), não é uma humanidade
que vive moralmente de mínimos?
De acordo com o que postulam diferentes teorias éticas da atualidade, e se quisermos falar
seriamente e não simplesmente dizer coisas "engenhosas", e por vezes estúpidas, então os valores que
mencionei são universais, e não precisam de nenhum tipo de imposição para que as diferentes culturas os
aceitem como seus. Afinal de contas, qualquer pessoa quer ser livre para decidir o tipo de vida que deseja
viver, mesmo que sua decisão venha a consistir na alienação de sua vida.
Esses valores engendram, obviamente, princípios morais universais que orientam a conduta em
vista de sua promoção e seu respeito, muito além do relativismo. São princípios que, ocasionalmente, nos
induzirão a criticar as normas das sociedades concretas, justamente por se tratar de princípios pós-
convencionais. Mas, por outro lado, sua aplicação em casos determinados exigirá de quem deve tomar as
decisões um conhecimento profundo da situação e um grande senso de responsabilidade, a fim de evitar
que o desconhecimento leve a uma decisão moralmente equivocada quando de um conflito de princípios. A
responsabilidade e o desejo de compreender-se são hoje em dia, a meu ver, duas atitudes essenciais para
que possamos encarnar os valores universais em nosso mundo.

Capítulo V
A graça veio por Jesus Cristo
In: Adela Cortina. Etica Civil e Religiao, Sao Paulo: Paulinas, 1996, pp. 105-116.

1. CRER NÃO DISPENSA DE PENSAR, APESAR DOS RISCOS DE EQUÍVOCO


Estamos acostumados a ouvir falar com afetação do "específico" que seria peculiar aos crentes, que
                                                                                                               
105 A. Cortina, Ética aplicada y democracia radical, capítulo 12, "Ética cívica".
em matéria de moral nos impediria de construir o mundo junto com os outros. Se há coisa triste nessa
história toda é o que resulta desse tipo de visão: para os muçulmanos, toda a lei e os profetas parecem
cristalizar-se na primazia da verdade religiosa sobre a vida, nos castigos corporais e no lugar atribuído às
mulheres; para os católicos, até parece que a primazia está nas considerações sobre o aborto, a eutanásia
e os problemas colocados pelas modernas técnicas de reprodução assistida.
Para tal viagem, quantos bornais. E para este fecho, quantas coisas: primeiro a história do povo
eleito; depois a graça que veio por Jesus Cristo; os Padres da Igreja; as heresias; as Cruzadas; mais tarde,
as fogueiras das bruxas e dos hereges e, assim, até nossos dias, até nossos desconcertantes dias, sobre
os quais, sabemos pela fé, sopra, ainda, a força do Espírito. Aquele de quem ninguém sabe de onde vem
nem aonde vai, excetuadas algumas pessoas que parecem ter tudo sob controle total.
Sem embargo, no que se refere ao cristianismo, a lei veio por Moisés e a graça e a verdade vieram
por Jesus Cristo. E se as religiões nada têm a oferecer aos humanos além do que pode ser concretizado
em leis exigíveis e argumentáveis, então foram elas que se "rebaixaram" às morais deontológicas de
mínimos, das quais necessitamos para que a nossa convivência seja justa. As religiões é que se
empenham em competir com a ética da sociedade civil, disputando com ela o monopólio dos mínimos
morais, em franca inferioridade de condições. Por quê em franca inferioridade?
Porque as religiões - pelo menos as monoteístas - estão acostumadas a informar o que se deve
fazer, mas não a dialogar sobre o que se deve fazer. Mas isto nem sempre funciona nas sociedades
pluralistas, nas quais quem pretende ter autoridade moral tem de conquistá-la por esforço próprio, de
maneira a um só tempo vital e dialogante. Se, por outro lado, o fundamento último da argumentação passa
a ser" Deus assim o quer", as cartas ficam a tal ponto embaralhadas que os interlocutores imaginam estar
jogando jogos diferentes.
Para as sociedades pluralistas, no terreno da moral não há instituições às quais se reconheça uma
legitimidade especial, análogas ao parlamento com sua legitimidade reconhecida para legislar106. A moral
está nas ruas, e é nas ruas que ela tem de ser potencializada, não pelo modo "informando sobre", mas por
uma maneira determinada de viver "dialogando com", isto é, tentando encontrar argumentos comuns para
defender a dignidade das pessoas, valor que já compartilhamos. As fundamentações religiosas influem na
motivação e na atitude, mas não lançam mais luz do que outras sobre o que se deve fazer num caso
concreto em que venha a surgir um conflito entre os princípios primafacie, obrigatórios em qualquer
fundamentação racional.
A questão seria diferente se começássemos a nos perguntar o que é uma vida em plenitude, auto
realizada ("a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo")107. Entretanto, se se trata da aplicação em
situações concretas de deveres universalmente exigíveis, o fato de que Deus seja Criador e Pai/Mãe não
traz para os conteúdos morais mais luzes do que o discurso da dignidade pessoal.
Como bem dizia Immanuel Kant, a religião responde à pergunta: "o que posso esperar?", e não à
questão "o que devo fazer?". Por isso mesmo, o empenho frequente das religiões, visando a
"deontologizar" a esperança não foi precisamente uma ideia brilhante.
Vejamos então aquilo que alguns consideram ser especificamente cristão, uma espécie de "depósito
da fé". De que iluminação especial desfruta um crente para determinar a partir de quando se pode começar
a falar de vida humana, tendo em conta que, comece quando começar, a vida deve ser sempre
considerada digna por crentes e não crentes? Não terão os crentes e os não crentes de recorrer ao auxílio
das pesquisas biológicas e antropológicas para averiguar a partir de que momento se pode falar de
"pessoa"?
Obviamente, poder-se-ia replicar que cientistas e filósofos ainda não chegaram a um acordo sobre o
assunto, mas isso não significa que os critérios necessários para essa averiguação devam ser
proporcionados pela fé, pois essa não é competência sua. A competência da fé consiste muito mais em
defender a vida humana como valor fundamental, que tem dignidade e não preço, e que deve ser protegida
                                                                                                               
106 M. Vidal, "Paradigma de uma ética razonable para Ia empresa", em ICADE, número 19 (1990), p. 20.
107 Neste sentido, Jesus Cristo é um modelo de vida em plenitude. Ver J. I. González Faus, La humanidad nueva, Sal
Terrae, Santander, sétima edição.
lá onde existe. Mas este é também o dever de qualquer pessoa que considere irrenunciáveis os direitos
humanos da primeira geração.
Ocorre algo semelhante quanto ao problema da eutanásia voluntária, quando se lança mão do
argumento - incontestável para quem o utiliza - de que a vida vem de Deus e, por conseguinte, não pode
subordinar-se à liberdade. Diante disso, fica difícil não dizer que de Deus, também, deve ter vindo a vida de
todos os que foram sacrificados contra vontade por serem tidos por hereges e infiéis. Naqueles tempos, o
argumento da superioridade da vida não parecia tão contundente, quando anteposto ao pensamento
segundo o qual a ortodoxia valia mais do que a vida. Pensamento que teve, como é sabido, consequências
práticas, a ponto de se atribuir à vontade indefesa de Deus - tão inerme, a pobrezinha, ante nossas
invenções - a eutanásia involuntária do herege, da bruxa e do infiel. Escandalizar-se agora pelo fato de que
algumas pessoas considerem a eutanásia voluntária como um problema moral é, na verdade, muito cínico.
Que me entendam bem, pois não estou de forma nenhuma falando de conteúdos, e sim do modo de
proceder, que não pode ser informativo mas, deve ser dialógico e argumentativo. A "informação", se assim
quisermos chamá-la, consiste em reconhecer que a vida vem de Deus e é um valor fundamental. No
entanto, esse argumento além de "só valer para os crentes", não resolve o problema nem para os crentes
conscientes de que tudo o que têm vem de Deus, como dom que devem administrar.
Sob esse ângulo, se se tentar ampliar a informação, poder-se-á acrescentar alguns dos problemas
que tornam desaconselhável a eutanásia, ou seja: que a privação da vida é um ato irreversível; que a
despenalização ou a legalização da eutanásia em alguns casos, transformaria a instituição da saúde
porque os profissionais da área não mais estariam comprometidos apenas com a defesa da vida, os
hospitais tornar-se-iam suspeitosos, os pacientes em potencial teriam prevenção acerca dos hospitais; os
idosos sentir-se-iam impelidos pela pressão social a pedir a morte, de forma, portanto, não voluntária, e
assim sucessivamente... Estamos oferecendo, graças a Deus, razões que crentes e não crentes tanto
podem aceitar quanto rechaçar com novos argumentos. São razões que, uns e outros, temos de nos
esforçar para descobrir e trazer ao debate, a fim de construirmos juntos a forma moral de nossa
convivência.
O que é, então, que faz com que a religião não seja uma moral deontológica de mínimos?

2. O CRISTIANISMO ILUMINA UMA ÉTICA DE MÁXIMOS


Indubitavelmente, os valores e direitos de nossa mínima moral cívica são perfeitamente defensáveis
pelos crentes, cuja fé, quando bem compreendida, ajudou e ajuda a configurá-los. O valor intocável de
cada pessoa como imagem e semelhança de Deus, a sagrada liberdade dos filhos de Deus e sua
igualdade enquanto tais, o chamado a viver a fraternidade que nos constitui, a promessa de um Reino de
justiça e paz, são raízes cristãs da ética cívica que compartilha as conclusões, secularizadas, embora não
compartilhe as premissas religiosas.
É por isso, a meu ver, que o crente está "em casa" quando se trata de uma ética cívica que defenda
a liberdade, a igualdade, a solidariedade, os direitos humanos das três gerações e uma atitude de diálogo
como a que descrevemos. Estes são os mínimos que o crente quer assegurar a partir dos máximos, isto é,
a partir de sua experiência religiosa, de sua vivência da paternidade de Deus e da fraternidade dos
homens. Mas será que isto significa que é apenas a partir dessa vivência que se pode manter os conteúdos
da ética cívica a que fomos chegando ao longo da história?
Tal como já dissemos, a existência de uma ética cívica compartilhada por não crentes e crentes de
diferentes confissões é hoje um fato, e um fato que causa alegria, porque é uma boa notícia saber que
compartilhamos uma linguagem moral comum a partir da qual podemos construir juntos uma ética
universal. Orgulhar-se da exclusividade de um modelo de roupa é capricho da moda. A nós, o que importa
é que todos os homens possam se vestir, coisa que infelizmente ainda está longe de ser verdade.
Por outro lado, há rio campo filosófico pensadores que se esforçam para encontrar fundamentos
racionais para a ética cívica e, não obstante a diversidade de escolas filosóficas, pode-se dizer que no
mercado do pensamento existem ofertas muito bem elaboradas.
Quer tudo isto dizer que o cristianismo está sobrando, visto que a partir da não crença é possível
assumir racionalmente uma ética cívica de facto e de jure? Ora, achar que o cristianismo possa ser
supérfluo ou irrelevante, simplesmente porque os conteúdos da ética cívica podem ser aceitos sem que
para isso tenhamos de ser cristãos, significa, a meu ver, não ter entendido o que é o cristianismo e o que é
a ética cívica.
Há tempos o cristianismo não é uma ética de mínimos de justiça, mas uma religião de máximos de
felicidade. Para o cristianismo, os mínimos de justiça são irrenunciáveis, e é motivo de profunda alegria
saber que eles fazem parte da consciência moral do nosso tempo; mas os mínimos não esgotam o
conteúdo da religião cristã com sua rica e viva proposta. O Deus de Jesus Cristo oferece seu amor e nos
convida a partilhá-lo; o Deus de Jesus Cristo é testemunha da própria vida, apoio e consolo. Ele revela um
sentido para a vida, em tempos em que o sentido é recurso tão escasso. Ele não anuncia que a paz
permanente seja uma ideia diretora pela qual valha a pena lutar, ainda que não saibamos se ela é possível,
como dizia Kant108; não anuncia que as leis marxianas da história nos conduzirão à paz; nem sequer que a
paz seja utópica. O que anuncia é que a paz duradoura entre os homens é uma promessa, que ela não
será apenas ausência de guerra, mas justiça e felicidade profundas, quando "toda a terra estiver plena do
conhecimento de Deus como as águas enchem o mar".
À justiça e felicidade profundas não chamamos "libertação", mas salvação; e a ética cívica não tem
a atribuição de oferecê-la, pois seu papel é apenas dar um sentido compartilhado à vida e às decisões
sociais, a fim de evitar o totalitarismo intolerante daqueles que são incapazes de pluralismo, o que a situa
além do laicismo e do confessionalismo.
Não há, portanto, nenhuma "competição" entre o cristianismo e a ética cívica, como pretendem
laicistas e fideístas no afã de compreender as relações humanas como jogos de, "soma zero", em que o
que um ganha o outro perde. Este é, ao contrário, um "jogo" em que todos podem cooperar,
potencializando os mínimos já compartilhados, para que nós, homens e mulheres, "ganhemos" no caminho
da justiça e da libertação. Isto não quer dizer que aqueles que têm propostas de máximos a fazer devam
calar-se. Muito pelo contrário: que continuem a apresentá-las, não através da imposição mas a partir do
lugar apropriado para oferecer o amor, que é o diálogo e a vivência pessoal109. Porque assim como a
universalidade dos mínimos de justiça é uma universalidade exigível, a universalidade dos máximos de
felicidade é uma universalidade de oferenda.
 
3. A GRAÇA E A VERDADE VIERAM POR JESUS CRISTO
Segundo o Evangelho de João, " a lei veio por Moisés e a graça e a verdade por Jesus Cristo". A lei,
diria eu, já aceita por uns e outros, pretende assegurar os "mínimos decentes"; a graça é dom, convite ao
amor - e não mandato - , promessa de felicidade e não apenas exigência de justiça. A lei modela-se em
códigos, concretiza-se em decálogos universalmente exigíveis e expressa-se em traços de fogo nos
princípios (que podem valer prima facie ou de modo concreto, visto que podem entrar em conflito na hora
da ação, como logo discutiremos). A lei é expressão de autonomia pessoal, vale dizer, capacidade de dar-
se a si mesmo suas próprias leis, contanto que nesta etapa pós-convencional "minhas" leis possam ser
universalizadas, dialogicamente universalizadas, por que são as que desejo, as que desejamos para
construir um possível Reino dos Fins e uma paz perpétua.
Contrariamente à lei, a mensagem da graça não chega até nós através de tábuas de pedra
esculpidas a fogo, nem de conclusões que exigem peremptoriamente premissas para ser racionais. A
mensagem da graça é contada em parábolas, em narrativas que têm a racionalidade de seu próprio
argumento entranhadas em si mesmas, e que, como tais, têm um sentido capaz de plenificar quem as ouve
e consente. Um sentido que pode, às vezes, desbordar nosso senso da justiça.
"O reino dos Céus é semelhante ao dono de uma vinha, que saiu para contratar trabalhadores, e
embora os tenha empregado em horários diferentes, ao cair da tarde pagou a todos de forma igual" (ver Mt.
20, 1-16). Que atentado da graça contra a justiça! Qual foi o critério utilizado pelo dono da vinha para pagar
o mesmo salário por uma ou dez horas de trabalho? Como universalizar tal procedimento sem que os
                                                                                                               
108 Immanuel Kant, La meta física de los costumbres, Tecnos, Madri, 1989.
109 Creio que neste ponto minhas posições coincidem com as de Carlos Díaz, malgrado certas diferenças: diálogo e
vivência pessoal são coisas irrenunciáveis. Ver C. Díaz. De Ia razón dialógica a Ia razón profética, Madre Tierra, Mósto!es, 1991.
sindicatos, com toda a razão, se exasperem? Mas não é lícito aprisionar a graça em códigos, assim como
não é lícito solidificar a brisa.
Foi uma simples mulher da comunidade de Chalatenango, segundo contou Jon Cortina, que lhe
"deu de bandeja" uma interpretação desta parábola, antes que ele empreendesse a árdua tarefa de
explicar ao seu pessoal que um bom patrão é o que faz com o seu dinheiro o que lhe dá vontade. Dizia
aquela mulher que se tratava de um só empregado chamado em diferentes horas do dia e que até a última
hora não havia comparecido, mas mesmo assim o Pai lhe pagou como se ele tivesse trabalhado desde a
primeira hora.
Compreender as parábolas não tem nada ver com a argumentação segundo o modo silogístico, pois
o segredo está em entrar em sintonia com elas, em fazer com que a mensagem da gratuidade se torne
carne da própria carne, vida da própria vida, a fim de estabelecer com ela uma corrente de cumplicidade.
Como ocorre entre amigos, quando basta um olhar para comunicar um mundo de coisas vedado aos
estranhos.
Como então atrever-se a traduzir as parábolas evangélicas para um código de normas
universalmente prescritível, a que não se pode transgredir sob pena de passar por desonesto? Como
conter o sopro do espírito em leis talhadas na pedra e universalmente exigíveis, quando a graça vai muito
além da lei universal, pois remete à intimidade inalienável da própria biografia?

4. A CHUVA QUE CAI SOBRE A ERVA ROÇADA, O CHUVISCO QUE IRRIGA A TERRA
Quem defende seriamente uma ética de mínimos não pode, de modo nenhum, estar sugerindo que
se acabe com as religiões. Não somente porque esta seria uma atitude intolerante, hostil ao pluralismo,
mas principalmente porque estamos vivendo um momento de crise das tradições de sentido, que situam a
pessoa no mundo e lhe permitem identificar-se e saber qual a direção em que caminha.
Essas tradições estão em crise, entre outras razões, porque houve épocas em que quiseram impor
seu sentido, e o sentido não pode ser imposto; porque quiseram impor o caminho que, segundo elas,
conduz à felicidade, mas a felicidade também não pode ser imposta. Mas quando uma religião não é nem
impositiva nem fundamentalista, ela tem uma capacidade libertadora e revitalizadora que seria um
verdadeiro crime tentar extirpar.
E disso a história das religiões nos dá boas provas. É uma história obscurecida por inegáveis
sombras, mas também, iluminada por luzes que é impossível ocultar atrás da má fé. Nosso presente é o
reflexo fiel desse duplo jogo de luzes e sombras, mas creio poder afirmar, pelo menos no que toca ao
cristianismo, que as luzes são bem mais intensas que as sombras.
Em nossas sociedades democráticas, é hora de ir amadurecendo os valores comuns para tentar
encarná-los, sabendo que cada qual os fundamentará depois, a partir de uma ética de máximos diferente.
Estas éticas são éticas de sentido e de felicidade, elas nos orientam sobre como ser feliz. Mas o sentido e
a felicidade não podem ser impostos; podem ser apresentados como um convite, ou um conselho feito a
partir da própria experiência, da própria carne e do próprio sangue.
As tradições religiosas não nasceram para fornecer normas e sim para anunciar que esta vida não
termina, mas se transforma; que Deus é Pai e que nós, os seres humanos, somos irmãos; para prometer
um mundo diferente e lembrar que Deus está conosco para tornar isso possível, inclusive muito além da
morte.
Se hoje, nós, os crentes, assumirmos a dupla iniciativa de tentar fortalecer os valores que temos em
comum com todos os membros da sociedade, e continuar convidando os demais, com o diálogo e pela
própria vida, para juntar-se a nós naquilo que cremos, estaremos realizando uma tarefa que é ao mesmo
tempo humana e cristã, pois me parece tratar-se da mesma coisa.
Como não estamos sozinhos na realização dessa tarefa, quero terminar com uma calorosa
lembrança da Bíblia: " A palavra de Deus é como chuva sobre a erva roçada, como chuvisco que irriga a
terra" (SI 72, 6). Não é estéril. Nem sem fruto. Assim o cremos e, por isso, sem complexos a mais ou a
menos, estamos juntos com todos os outros na tarefa de levantar o ânimo deste nosso mundo.
 

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