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DERMEVAL SAVIANI E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA:

CONSTRUÇÃO COLETIVA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA


ANAIS

UFES – Vitória / ES

LARISSA QUACHIO COSTA


LAURO CHAGAS E SÁ
PRISCILA DE SOUZA CHISTÉ
(organizadores)

ANAIS DO SEMINÁRIO
DERMEVAL SAVIANI E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA:
construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica

ISBN: 978-85-8263-186-7

Anais
Vitória – Espírito Santo
UFES – Campus de Vitória
2017

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira: construção coletiva da


Pedagogia Histórico-Crítica

Produção e revisão técnica: Larissa Quachio Costa


Coordenação: Larissa Quachio Costa
Lauro Chagas e Sá
Priscila de Souza Chisté
Capa: Larissa Quachio Costa
Editoração: Larissa Quachio Costa

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira:


construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
(1. : 2016 : Vitória, ES)

Anais [recurso eletrônico] do Seminário Dermeval


Saviani e a Educação Brasileira: construção coletiva da
Pedagogia Histórico-Crítica, no ano de 2016. -- Vitória:
Universidade Federal do Espírito Santo, 2016.

875 p.

Disponível em:
http://ocs.ifes.edu.br/index.php/seminario_demervalsaviani/
index/announcement/view/52

ISBN: 978-85-8263-186-7

SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................... 4
GT1 – FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ..... 5
GT2 – CURRÍCULO, DIDÁTICA E PRÁTICA PEDAGÓGICA HISTÓRICO –

CRÍTICA ......................................................................................................................... 187

GT 3 – INTERFACES ENTRE PSICOLOGIA E PEDAGOGIA ................................ 533

GT4 – EDUCAÇÃO INCLUSIVA ................................................................................ 620

GT5 – EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E MOVIMENTOS SOCIAIS .......................... 620

GT6 – EDUCAÇÃO, IDENTIDADES SOCIAS E LUTA DE CLASSES .................. 677

APRESENTAÇÃO

No ano de 2016, o educador brasileiro Dermeval Saviani completou 50 anos de


carreira e, por essa razão, o Núcleo de Educação Infantil (Nedi) e o grupo de pesquisa
“Pedagogia histórico-crítica e educação escolar” da Universidade Federal do Espírito Santo,
em parceria com o Instituto Federal do Espírito Santo, realizaram o Seminário “Dermeval
Saviani e a Educação Brasileira: construção coletiva da pedagogia histórico-crítica”.
O seminário ocorreu entre os dias 18 e 20 de outubro de 2016 e seu escopo foi o de
apresentar a trajetória acadêmica e as principais contribuições de Dermeval Saviani à
educação brasileira, projetando novos desafios teórico-práticos para o campo educacional.
Assim, acolheu trabalhos acadêmicos que dialogassem com a pedagogia histórico-crítica e o
materialismo histórico dialético e estivessem de acordo com a temática estabelecida em seis
Grupos de Trabalho (GT): 1) Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica; 2)
Currículo, didática e prática pedagógica histórico-crítica; 3) Interfaces entre psicologia e
pedagogia; 4) Educação inclusiva; 5) Educação não-formal e movimentos sociais; 6) Educação,
identidades sociais e luta de classes.
Considerando que a escola é uma das instituições que compõe a sociedade e que a
luta da pedagogia histórico-crítica pela socialização do conhecimento e pelo ensino que
promova a humanização dos indivíduos é fundamental para a ampla organização da classe
trabalhadora, conclamamos sindicatos e movimentos sociais a apoiarem essa iniciativa, dando
visibilidade a esse momento histórico comemorativo, mas também de reflexão sobre a
unificação da luta dos trabalhadores.
Perante o cenário que vivenciamos durante o ano de 2016 e que se projeta para os
próximos anos, a realização desse evento revela ainda mais a necessidade de nos organizarmos
coletivamente por meio da competência técnica e do compromisso político, como nos ensina
Dermeval Saviani, a fim de que a mobilização nesse processo de enfrentamento seja ainda
mais ampliada e, sobretudo, aprofundada.
Nesse sentido, os trabalhos publicados nesses anais representam acréscimos para o
processo de construção coletiva da pedagogia histórico-crítica e, portanto, uma das formas de
materialização do seu fortalecimento tanto na resistência à precarização da educação escolar
quanto na busca pela formação omnilateral dos indivíduos e superacão da luta de classes.
Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016


RENOIR, Pierre Auguste. A lição. 1900. Óleo sobre tela, 85 x 65 cm.


GT1 - FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

O GT “Fundamentos Teóricos da Pedagogia Histórico-Crítica” buscou reunir trabalhos que


apresentassem resultados de pesquisas parciais ou concluídas sobre a constituição histórica da
pedagogia histórico-crítica; a sistematização e discussão de conceitos e noções teóricas formulados por
diferentes pensadores identificados com a pedagogia histórico-crítica, em diversos contextos; e, enfim,
as implicações metodológicas da pedagogia histórico-crítica para a reflexão no campo da educação.



SUMÁRIO (GT1)

O ENSINO DA MATEMÁTICA A PARTIR DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-


METODOLÓGICA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA .................................... 7
FUNDAMENTOS MARXIANOS E MARXISTAS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA: UMA DISCUSSÃO SOBRE O TRABALHO, O CONHECIMENTO E A
PERSPECTIVA REVOLUCIONÁRIA............................................................................. 16
MOMENTOS PEDAGÓGICOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA .............. 31
CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL PARA O ENSINO
DA LEITURA EM CLASSES DE ALFABETIZAÇÃO .................................................... 45
REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO COMO “UMA ATIVIDADE MEDIADORA
NO SEIO DA PRÁTICA SOCIAL GLOBAL” ................................................................. 60
DERMEVAL SAVIANI: O PRECURSOR DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA
............................................................................................................................................. 73
A FILOSOFIA DA PRÁXIS COMO MEDIAÇÃO ENTRE O TRABALHO E A
FILOSOFIA NO CONTEXTO CAPITALISTA: DESAFIOS PARA UMA EDUCAÇÃO
EMANCIPADORA ............................................................................................................ 90
O CLÁSSICO E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES PARA
O ENSINO DE LITERATURA ...................................................................................... 105
A PEDAGOGIA HISTÓRICO CRÍTICA E O MOVIMENTO DE BUSCA POR UMA
EDUCAÇÃO INTEGRAL OMNILATERAL ................................................................ 114
A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA: DO SENSO COMUM À CONSCIÊNCIA
FILOSÓFICA ................................................................................................................... 122
EDUCAÇÃO FÍSICA E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UMA
ARTICULAÇÃO PARA A FORMAÇÃO HUMANA .................................................. 137
FUNDAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS PARA UMA PROPOSTA DE
TRABALHO EDUCATIVO A PARTIR DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA
NAS ESCOLAS PÚBLICAS .......................................................................................... 148
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: O LUGAR DA EDUCAÇÃO ESTÉTICA
PARA A EMANCIPAÇÃO ............................................................................................. 159
O PLANEJAMENTO NO TRABALHO DOCENTE: UMA PERSPECTIVA
ONTOLÓGICA ............................................................................................................... 172

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O ENSINO DA MATEMÁTICA A PARTIR DA FUNDAMENTAÇÃO


TEÓRICO-METODOLÓGICA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

José Roberto Boettger Giardinetto (UNESP – FC - Bauru) 1

Resumo: O objetivo desse artigo é buscar, a partir da fundamentação teórica-metodológica da


pedagogia histórico-crítica, elementos para elaboração e sistematização de uma proposta de
ensino de matemática. Nesse trabalho optou-se em desenvolver a reflexão sobre a relação
dialética do singular, do particular e do universal e as implicações para o ensino da matemática,
evidenciando uma crítica ao multiculturalismo na Educação Matemática.

Palavras-chave: Educação Matemática; Multiculturalismo; Pedagogia Histórico-crítica;


Singularidade, Particularidade e Universalidade.

Introdução

Em julho de 2015, realizou-se na UNESP, campus de Bauru, Estado de São


Paulo, o “Congresso Pedagogia Histórico-crítica: educação e desenvolvimento
humano”. Nesse Congresso foi apresentada uma Comunicação Científica, trabalho
completo em que procuramos evidenciar algumas questões relativas à Matemática e seu
ensino à luz dos fundamentos que norteiam a Pedagogia Histórico-crítica (PHC), a
saber, algumas reflexões relativas à universalidade, objetividade e a relação entre
abstrato e concreto. (GIARDINETTO, 2015).
Apontava-se, naquele momento, para o fato de que outras questões não seriam
contempladas como, por exemplo, a relação entre o lógico e o histórico e a dialética
entre universalidade, particularidade e singularidade no tratamento didático dos
conteúdos matemáticos, reservando a elas trabalhos acadêmicos futuros.
A relação dialética do lógico e do histórico já foi objeto de publicações
anteriores. A apropriação, pelo pensamento do aluno, do caráter universal de
determinado conceito, ocorre na relação entre a estrutura que compõe o conceito
constituído e o processo histórico de desenvolvimento do conceito em seus aspectos

1
José Roberto Boettger Giardinetto, UFSCar, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências,
Departamento de Educação, Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: jrbgiar@fc.unesp.br

históricos essenciais. . Compete à escola realizar a apropriação de sequências lógico-


históricas de ensino. (JARDINETTI, 1994; GIARDINETTO, 2012).
Pretendemos nesse trabalho tecer algumas reflexões sobre a relação entre a
singularidade, a particularidade e a universalidade do conhecimento com relação ao
indivíduo. No cômputo geral, considerando a somatória dos trabalhos apresentados em
congressos diversos, buscamos realizar um contínuo processo de elaboração e
sistematização de uma proposta de ensino de Matemática sob as diretrizes da PHC.

1 Singularidade, particularidade e universalidade na relação entre o indivíduo e o
conhecimento constituído

O trabalho de Marsiglia (2011,p. 28), referindo-se a Saviani (2003), afirma que


a universalidade do conhecimento constitui-se em “produto histórico da totalidade da
prática social humana”. Um conceito matemático caracteriza-se como universal porque
encarna sínteses de atividades similares em contextos sociais diversos. Um exemplo é a
gênese das medidas. Povos distintos, em épocas distintas, elegeram a dimensão corporal
como referência, consequentemente as atividades resultaram em conceitos similares de
palmos, braças etc. (GIARDINETTO,2014).
No processo contínuo de ascensão da realidade em realidade humanizada, cada
indivíduo encontra-se, na mediação com o conhecimento produzido, numa relação entre
sua singularidade, suas circunstâncias de vida possíveis, a saber, sua particularidade, e a
universalidade alcançada pelo gênero humano. Trata-se da dialética entre singularidade,
particularidade e universalidade.
O gênero humano, categoria que expressa “a história social humana”
(DUARTE,1993) tem se construído por um processo contraditório em que suas
objetivações não têm sido acessíveis de forma igualitária a todos. Consequentemente, a
relação indivíduo e genericidade não é percebida pelo indivíduo singular em toda suas
nuances, mas parcialmente nos limites possíveis, dadas as circunstâncias de vida, via
relação entre sua vida particular e a sociedade constituída. O indivíduo percebe sua
relação com a sociedade, mas não percebe esta sociedade como mediação particular da
universalidade na forma constituída de gênero humano.
A relação indivíduo-gênero humano é mediada pela relação indivíduo-sociedade
e, consequentemente, cada indivíduo singular não se percebe como parte da
universalidade do gênero humano em formação. Segundo Oliveira (2005, p.32):
9

Em conseqüência disso, esse obscurecimento leva o pensamento a


inúmeros erros. Dois deles referem-se, de imediato, ao tema de hoje.
O primeiro refere-se à delimitação do que seriam os pólos extremos da
relação singular-particular-universal. A categoria "sociedade" é, de
modo geral e sem grandes esforços mentais, concebida como sendo o
pólo que representa o coletivo, o mais amplo, o universal, já que essa
categoria ("sociedade") é algo mais imediatamente percebido do que a
categoria "gênero humano". Nessa seqüência de raciocínio baseada na
obviedade, na imediaticidade do que é perceptível, a relação
indivíduo-sociedade passa a ser a relação considerada nas análises
como se ela correspondesse à relação singular-universal. Obviamente,
como conseqüência imediata dessa escolha, a categoria de gênero
humano fica descartada. Como esse processo é impulsionado pelo
óbvio, esse descartar nem chega a ser percebido por muitos. O
segundo erro refere-se ao fato de que a realidade da categoria
"índívíduo" e "sociedade" é concebida como sendo aquilo que está
sendo manifestado, aquilo que se pode ver, medir, observar, de
imediato. Como estamos na sociedade de classes os pólos da relação
indivíduo-sociedade se mostram necessariamente antagônicos, já que
este antagonismo é um reflexo das relações sociais de produção que
servem à subordinação e domínio - a sociedade de classes. Nesse
modo em que o raciocínio fica restrito ao imediatamente dado, às
meras manifestações fenomênicas, a vida do homem singular é vista
como algo contraposto à totalidade social. E as mediações sociais que,
na sociedade de classes, são alienantes e alienadoras, são esquecidas
nessa luta lógico-formal do "ou ...ou", isto é, de um lado o indivíduo e
do outro lado a sociedade, como se esta (a sociedade) pudesse ser
afastada da vida do indivíduo, ou mesmo eliminada, para que aquele
(o indivíduo) pudesse concretizar sua individualidade, de forma plena
e livre.

O desafio para a constituição de uma individualidade para-si (DUARTE,1993)


está em fazer com que cada indivíduo entenda como “[...] a singularidade se constrói na
universalidade e, ao mesmo tempo e do mesmo modo, como a universalidade se
concretiza na singularidade, tendo a particularidade como mediação” (OLIVEIRA,
2005, p.26). A relação indivíduo–sociedade é parte de uma relação maior, a relação
indivíduo-genericidade (gênero humano).
Os equívocos apontados por Oliveira (2005) se revelam em pesquisas que se
limitam a retratar o imediatamente captado da realidade investigada por meio da
metodologia etnográfica. Ocorre que,

[...] ao conferir tamanha importância ao mundo empírico, os modelos


qualitativos de pesquisa acabam por preterir a análise da empiria
fetichizada que caracteriza a sociedade capitalista. Descentrando suas
análises das metanarrativas, os percursos qualitativos aprisionam-se ao
empírico, ao imediato, furtando- se ao entendimento essencial dos
fundamentos da realidade humana. (MARTINS, 2006, p.10).
10

E para a concepção marxista de conhecimento, indivíduo e realidade

[...] o mundo empírico representa apenas a manifestação fenomênica


da realidade em suas definibilidades exteriores. Os fenômenos
imediatamente perceptíveis, ou seja, as representações primárias
decorrentes de suas projeções na consciência dos homens,
desenvolvem-se à superfície da essência do próprio fenômeno. [...] A
construção do conhecimento demanda então, a apreensão do conteúdo
do fenômeno, prenhe de mediações históricas concretas que só podem
ser reconhecidas à luz das abstrações do pensamento, isto é, do
pensamento teórico. Não se trata de descartar a forma pela qual o dado
se manifesta, pelo contrário, trata- se de sabê- la como dimensão
parcial, superficial e periférica do mesmo. Portanto, o conhecimento
calcado na superação da aparência em direção à essência requer a
descoberta das tensões imanentes na intervinculação e
interdependência entre forma e conteúdo. (MARTINS, 2006, p.10).

Consequentemente,

[...] se queremos descobrir a essência oculta de um dado objeto, isto é,


superar sua apreensão como real empírico, não nos bastam descrições
acuradas ( escritas, filmadas, fotografadas etc !!! ) , não nos bastam
relações íntimas com o contexto da investigação, isto é, não nos basta
fazer a fenomenologia da realidade naturalizada e particularizada nas
significações individuais que lhes são atribuídas.
É preciso caminhar das representações primárias e das significações
consensuais em sua imediatez sensível em direção à descoberta das
múltiplas determinações ontológicas do real. Assim sendo, não pode
nos bastar apenas o que é visível aos olhos, pois o conhecimento da
realidade, em sua objetividade, requer a visibilidade da máxima
inteligência dos homens. (MARTINS, 2006, p.11).

Compreendemos que o autor dessa pesquisa na Educação Matemática, como se


verá no item a seguir, a Etnomatemática, apresenta os equívocos apontados por Oliveira
(2005), com consequências negativas quanto à defesa da apropriação da matemática
escolar.

2 A relação entre a matemática escolar e a matemática da vida cotidiana à luz da


dialética do singular, particular e universal: déficit teórico nas pesquisas
etnomatemáticas

A Etnomatemática, expressão do Multiculturalismo na Educação Matemática,


busca destacar e resgatar a matemática produzida em contextos sociais diversos, em
11

face ao que consideram ser uma imposição da Matemática universal, uma matemática
ocidental imposta para o mundo.
Por conta da metodologia etnográfica, com a realização de entrevistas
decorrentes da inserção do pesquisador ao contexto social investigado, as pesquisas
etnomatemáticas limitam-se às primeiras manifestações da realidade investigada, não se
atendo às relações não imediatamente perceptíveis entre a produção da matemática em
contextos sociais diversos e a matemática escolar, como resultado da universalidade
processada pelo gênero humano.
A Etnomatemática não adota, em seus pressupostos teóricos, um conceito
similar de gênero humano. Consequentemente, a investigação da realidade quanto à
produção da matemática restringe-se à sociedade local que se apresenta de imediato,
“esquecida”, “negada” pela sociedade “ocidental”. Dessa forma, as pesquisas
etnomatemáticas não percebem que a matemática emergida da singularidade dos
indivíduos pesquisados é, na verdade, a particularidade como a universalidade, que se
apresenta diante de circunstâncias próprias das desigualdades sociais.
E mais, práticas sociais em contextos sociais específicos evidenciam a
particularidade de um momento processual da historicidade formadora do gênero
humano. Saviani (1985, p.122) afirma que “[...] o que diferencia uma cultura de outra é
a direção seguida pelo processo cultural; é, em suma, o tipo, as características de que se
revestem os instrumentos, idéias e técnicas.” Portanto, cumpre entender a direção do
processo histórico realizada pela formação do gênero humano. Uma “matemática”
presente em uma determinada comunidade no Brasil, por exemplo, uma particular
medição, uma forma particular de cálculo, não trabalhada na escola, carrega na história
dos processos de imigração da comunidade investigada (como comunidades polonesas,
italianas, etc.) práticas matemáticas em seus países de origens em tempos passados.
Entendemos esse fato como similaridade na diversidade constituída e cumpre resgatar
essas particulares direções do processo histórico. Maiores considerações sobre essa
questão serão objeto de um outro trabalho científico.
Voltando à reflexão sobre a matemática emergida da singularidade dos
indivíduos pesquisados na particularidade como a universalidade se apresenta diante de
circunstâncias próprias oriundas das desigualdades sociais. Vamos considerar um
exemplo: a matemática de um pedreiro, em Cláudia G. Duarte (2004, p. 189). Trata-se
de uma pesquisa etnográfica em que a autora constata a utilização do Teorema de
Pitágoras por parte de um pedreiro de nome “Aristóteles”.
12

A análise dessa autora prima pela dicotomia entre a “matemática dos


engenheiros” e a “matemática dos pedreiros”. Para ela há um “[...] privilegiamento dos
conhecimentos adquiridos pelos engenheiros no curso superior, em relação àqueles que,
somente sendo fruto dos longos anos dedicados à atividade nos canteiros-de-obra,
pertenciam aos pedreiros e serventes.” (DUARTE, 2004, p.184). A autora ainda infere
que

Nos diálogos que presenciei, os saberes “deles” – engenheiros – eram


tidos como referência, ou seja, eram sempre nomeados em primeiro
lugar. Isto me levou a inferir que meus informantes davam primazia
aos saberes do “Outro”, os saberes diferentes dos seus, reforçando,
dessa forma, a desqualificação e conseqüente subordinação de sua
cultura. (DUARTE, 2004, p.184)

Podemos notar que a autora, ao centrar sua reflexão no âmbito da produção do


saber, não percebe que os pedreiros apontam para a impossibilidade de se apropriarem,
no nível da produção do saber, daquilo que deve ser apropriado no plano da
sistematização do saber. A “escola” que os pedreiros têm é a “escola da vida”,
proveniente da prática social por meio do exercício da profissão no dia-a-dia nos
canteiros de obras: um saber pragmático, transmitido de forma espontânea, pelas
relações entre os indivíduos. Reconhecer os limites desse saber é algo entendido pelos
pedreiros. Não é entendido, no entanto, pela autora. Assim, ela deduz ”[...] que aquilo
que nada mais é que o reconhecimento de esses limites” é, para ela, “[...] a
desqualificação e conseqüente subordinação de sua cultura”. (SAVIANI,2003, p.77).
A autora limita-se a defender a matemática “original” do indivíduo, nas suas
expressões matemáticas eivadas de pragmaticidade, pois não percebe que o pedreiro,
dada sua singularidade, determina, nas condições sociais de sua vida marginalizada, a
particularidade de apropriação da universalidade do saber matemático nos limites da
esfera cotidiana de realização de seu trabalho. O pedreiro domina parte do
conhecimento matemático universal (o Teorema de Pitágoras), parte apropriada na
atividade de realização de seu trabalho.
Situação similar se apresenta em Borba (1987), conforme analisado em
Giardinetto (1999, p. 92-101), cuja reflexão, em sua tese de doutorado, não adota como
referência teórica a dialética entre o singular, particular e universal; apresenta como
referência a dialética entre o cotidiano e o não-cotidiano, em que Heller (2002) era a
13

maior referência teórica. A ideia nesse texto é retornar à pesquisa realizada em 1999,
mas interpretando-a à luz da relação dialética entre o singular, o particular e o universal.
Borba (1987) estava preocupado em valorizar o saber cotidiano proveniente da
produção desse conhecimento de práticas de dois pedreiros de nomes “Pedro” e “seu
João”. Destacando a matemática pretensamente “original” de “seu Pedro” e “seu João”,
esse autor assim o fazia sem perceber a promoção da supervalorização do saber
cotidiano em detrimento da relação para com o saber não-cotidiano, secundarizando este
último, com prejuízos à tarefa de garantir aos trabalhadores o acesso aos conhecimentos
“clássicos” de Matemática. (SAVIANI, 2003; GIARDINETTO, 2010).
Interessante observar que os trabalhadores investigados por Borba (1987), sem
que esse autor percebesse, conclamavam, por conta de suas limitações (considerando
suas particularidades em face às dificuldades em suas vidas), a necessidade de terem
acesso à matemática universal, via escola, tanto que “seu Pedro” declara em um
momento da entrevista: “Pra mim já num conheço, sei que nem a gente vê como trabaio,
vô indo e faço, né! Só sabe porque aprendeu fazeno, né, e não estudano (grifos meus –
JRBG]”. O mesmo faz “seu João” como se percebe no trecho da entrevista abaixo
realizada pelo pesquisador (grifos meus – JRBG]:

Marcelo [Marcelo Borba –JRBG]: Eu posso fazer uma pergunta para


você, assim, você já falou muita coisa que eu achei bonita.
Eu quero fazer uma pergunta daquele negócio que o senhor falou da
gente aprender um com o outro.
Eu queria fazer uma pergunta prá você: O que é a Matemática prá
você?
S.João: Bom, a Matemática, prá mim, ela é uma coisa muito boa, mais
tarveiz eu num sei expricá, porque eu num sei ela, né, é isso aí,
agora tarveiz a pessoa sabe a Matemática, ela que vai expricá prá
mim o que significa ela, né, prá mim, tem que sê ensinada por
outra pessoa, porque se eu num tenho ela, então vô, pego de outra
pessoa que sabe mais que eu aí ela vai expricá como é que ela é
começada, como ela é criada, prá que que ela serve, né, tudo isso
aí tem que sê expricado.
Ela vem de lá prá cá prá mim, né e é aí que eu vô pegá ela, e sabê
como é que eu vô fazê com a Matemática.
Então a escola que eu tenho é curta prá isso aí, né, eu tenho a idéia,
né, mais num tenho a escola, o curso disso daí, né.

Somente via escola seria possível o acesso à matemática universal e, por conta
das consequências da vida alienada, os trabalhadores percebiam a necessidade dela,
pois, na particularidade de suas vidas, a forma como tal conhecimento universal foi
apropriado não era suficiente para eles .
14

Por não adotarem como referência uma categoria totalizadora da perspectiva


histórica tal como a concepção marxiana adota via categoria singular, particular e
universal, pesquisas etnomatemáticas, como a de Cláudia Duarte (2004) e Borba (1987),
identificam em suas análises o indivíduo sem a dimensão de particularidade na relação
com a universalidade existente no gênero humano e, com isso, não associam a
matemática universal do gênero humano se realizando, sob condições limitadas, na
efetiva inserção de cada indivíduo na sociedade.
Em decorrência da concepção teórica adotada, as interpretações acima
apresentadas em pesquisas com tais características têm na verdade ocasionado um
descompromisso pela defesa da apropriação do saber matemático escolar, expressão da
matemática universal.

Conclusão

O presente artigo procurou promover algumas reflexões sobre a especificidade


da relação entre singular, particular e universal. O indivíduo em sua singularidade
relaciona-se com a universalidade do gênero humano, relaciona-se com a genericidade.
A forma de se relacionar se dá pelas circunstâncias particulares de sua vida, pela sua
particularidade.
A dialética dessa dinâmica é muitas vezes não entendida em suas múltiplas
determinações, por conta dos instrumentos metodológicos de investigação norteados
por uma interpretação lógico formal no fenômeno, o que restringe essa dinâmica à
manifestação imediata empírica do fenômeno. A particularidade que alça a
compreensão de seu determinismo universal é negada. Dessa forma, verificamos no
multiculturalismo uma polarização formal entre indivíduo e realidade local, perdendo-se
de vista o gênero humano constituído e em constituição.
Quanto ao ensino, trata-se de defender uma educação que promova a
apropriação da matemática universal. Tal apropriação exige captar, nas diferentes
manifestações da matemática, o cerne, o núcleo constituidor da matemática universal, o
que impõe a valorização da matemática escolar.
15

Referências

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

FUNDAMENTOS MARXIANOS E MARXISTAS DA PEDAGOGIA


HISTÓRICO-CRÍTICA: UMA DISCUSSÃO SOBRE O TRABALHO, O
CONHECIMENTO E A PERSPECTIVA REVOLUCIONÁRIA

Robson Machado (UFLA)1

Resumo: Partindo das formulações do educador Dermeval Saviani, o texto aborda os


fundamentos teórico-filosóficos da pedagogia histórico-crítica com a finalidade de esclarecer o
posicionamento ideológico que a direciona para transformação da estrutura societária vigente,
isto é, a superação do capitalismo na intenção da promoção da sociedade comunista. Para tanto,
explicita a relação da pedagogia histórico-crítica com o materialismo histórico-diálético
enquanto teoria do conhecimento e evidencia a função desse ideário pedagógico na luta pelo
socialismo. Discute a centralidade da categoria trabalho, problematiza as expressões do trabalho
na sociedade do capital e na sociedade comunista e destaca a relação do trabalho educativo com
conhecimento sistematizado nessa teoria educacional de inspiração marxista. Finalmente
concatena-se, à guisa de conclusão, a concepção de práxis assumida por Saviani à de Sánchez
Vázquez, evidenciando-se a importância dessa categoria dialética na atividade revolucionária.

Palavras-chave: marxismo e educação; fundamentos da educação; pedagogia histórico-crítica.

Introdução

A PHC2 é uma teoria pedagógica ancorada na filosofia da práxis, portanto,


entende que a gênese das sociedades humanas e a construção ontológica do ser social se
deem numa perspectiva histórica, material e dialética, vinculando-se, assim, às
formulações teóricas de Marx, Engels e demais intelectuais situados no âmbito do
marxismo.
Saviani (apud OLIVEIRA, 1994, p. 109), ao considerar que “[...] os problemas
postos pelo marxismo são problemas fundamentais da sociedade capitalista [defende
que] enquanto estes problemas não forem resolvidos/superados não se pode falar que o
marxismo terá sido superado”. Diante de tal constatação, utiliza o método de


1
Robson Machado é professor de história na educação básica e mestrando em Educação pela
Universidade Federal de Lavras no estado de Minas Gerais. E-mail: robson_historia@yahoo.com.br
2
Ao longo do texto utilizaremos a sigla PHC para nos referirmos à pedagogia histórico-crítica.


17

investigação materialista histórico-dialético para compreender os problemas da


sociedade e da educação brasileira.
Esse pressuposto filosófico-epistemológico opera, portanto, como base e
orientação teórica de suas pesquisas que, tendo a educação como mediação no seio da
prática social, consideram as peculiaridades das questões imanentes ao meio social
brasileiro. Assim, suas formulações não se restringem ou se condicionam às produções
marxistas precedentes; sua ida a autores se dá na intenção de ampliar a fundamentação
teórica indispensável à reflexão e a elaboração de sua pedagogia de inspiração marxista.
Saviani compreende que as teorias apoiadas no marxismo não atendem
diretamente as necessidades da educação, mostrando-se insuficientes, mas devem ser
consideradas em sua validade e superadas por incorporação. Sobre os autores que o
influenciaram e a forma como o inspiraram na construção da PHC, o autor assevera:

Meu esforço em construir uma teoria pedagógica fundamentada no


marxismo decorreu da insatisfação com os textos que abordavam a
educação nessa perspectiva, já que uma teoria marxista da educação, e
principalmente uma pedagogia marxista, não chegava a emergir
dessas análises. Diante disso, em lugar de gastar papel criticando esses
autores por essa insuficiência, optei por me apoiar em seus elementos
incendiários e, principalmente, em seu percurso pelos clássicos do
marxismo, para procurar elaborar a teoria que sentia necessidade. [...]
Foi com esse espírito que levei em conta as contribuições de autores
como Suchodolski, Manacorda, Snyders, Pistrak, Makarenko.
(SAVIANI, 2012d, p. 145-146).

Isso posto, enfatizamos, na esteira da afirmação de Oliveira (1994, p. 110), que


esse educador “[...] não repete os autores que estuda, mas os incorpora criticamente
dentro do processo de elaboração de seu pensamento”. O que lhe interessa, em
conformidade com Marx, na tese 2 sobre Feuerbach3, é recorrer aos textos para melhor
compreender a realidade e enfrentar os problemas encontrados na educação brasileira.

1 Trabalho e conhecimento na pedagogia histórico-crítica

Tomemos agora a discussão sobre o fato de a PHC fundamentar-se no


materialismo histórico-dialético. Saviani, contrapondo-se ao ideário pós-modernista,


3
A questão de saber se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão teórica,
mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter
terreno de seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade do pensamento isolado da práxis
é uma questão puramente escolástica. (Marx, 2006, p. 112).
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advoga que Marx situa-se no ápice da filosofia moderna, pois supera a dialética idealista
de Hegel ao delinear uma concepção ontologicamente realista e gnosiologicamente
objetivista da realidade no processo de produção de conhecimento. (SAVIANI, 2012c,
p. 63).
Nesse sentido, a lógica dialética, que supera a lógica formal, empreende um
movimento que vai do empírico ao concreto mediado pelo abstrato, ou seja, o
movimento parte do objeto tal como se apresenta à contemplação imediata, desprovido
de sentido, sobre o qual se tem uma visão sincrética e desorganizada, e chega ao objeto
pensado, sintético, constituindo-se como “uma rica totalidade de determinações
numerosas”, por meio da análise e das conceituações. (MARX, 1973, p. 229).
Assim, cabe distinguirmos o “concreto real” do “concreto pensado”, uma vez
que o concreto real é aquele que se apresenta no ambiente conservando sua
independência fora do pensamento e o concreto pensado é a apropriação do mundo pelo
cérebro pensante, é a reprodução do concreto pela via do pensamento. De acordo com o
precursor da PHC ,essa lógica se assenta em duas premissas fundamentais:

1) As coisas existem independentemente do pensamento, com o


corolário: é a realidade que determina as idéias e não o contrário;
2) A realidade é cognoscível, com o corolário: o ato de conhecer é
criativo não enquanto produção do próprio objeto de
conhecimento, mas enquanto produção das categorias que
permitem a reprodução, em pensamento, do objeto que se busca
conhecer (SAVIANI, 2012c, p. 63).

Notamos que o empírico a que nos referimos é um dado concreto e está posto no
mundo materialmente, tornando-se cognoscível se submetido ao crivo do espírito, o que
implica sua reelaboração mental passando pela análise de algumas categorias dialéticas
(totalidade, a contradição, mediação, historicidade, etc.), que tornam viável o
aprimoramento do entendimento humano acerca do mundo em que está inserido.
Podemos observar, por exemplo, que o concreto se apresenta como ponto de partida e
ponto de chegada quando o submetemos à dialética materialista, pois a existência da
coisa (aqui a realidade social, o trabalho educativo, etc.) se dá independente de a
conhecermos ou não, isto é, é a apropriação que fazemos do real que nos possibilita, por
meio da mediação abstrata, compreendê-la e agir de modo crítico sobre ela, mas sua
existência real é um fato que independe do pensamento.
Dessa forma, também na metodologia proposta pela PHC, que é dialético-
histórica, tanto o ponto de partida como o ponto de chagada é a prática social. Assim, a
19

PHC entende a educação escolar como mediação no seio da prática social global, o que
implica dizer que a prática social já existia antes do processo de ensino-aprendizagem,
contudo, após o ato educativo - explicitado na problematização, instrumentalização e
catarse -, as condições para entendê-la se tornam outras, sendo também outro o modo
como sujeito se insere na prática social.
Por consequência, Saviani assegura que para superar a concepção hegemônica
burguesa é indispensável um domínio lógico-metodológico que seja capaz de captar a
realidade concreta em sua complexidade e contraditoriedade, como forma de competir
com força e coerência com a concepção de mundo dominante. Trata-se de compreender
a educação como um elemento inserido no movimento dialético de transformação da
realidade, pois se a educação não é capaz de por si só desencadear o processo
revolucionário socialista, sem ela a revolução não seria possível na atual conjuntura,
dada à necessidade de apropriação do saber produzido historicamente pela coletividade
dos homens. (OLIVEIRA, 1994, p. 122).
O professor Newton Duarte, em seu texto “Fundamentos da pedagogia histórico-
crítica: a formação do ser humano na sociedade comunista como referência para
educação contemporânea”, defende que a prática educativa inserida no ideário histórico-
crítico exige que o professor se posicione numa perspectiva de classe e assuma,
explicitamente, os interesses da classe trabalhadora como sua responsabilidade, lutando
em sua área de ação, o magistério, para revolução socialista na intenção da promoção de
uma estrutura societária comunista. Apoiando-se em Marx e Engels, Duarte compreende
que os pressupostos da sociedade comunista estão dados na sociedade do capital,
cabendo a classe despossuída apropriar-se da riqueza material e espiritual em sua
totalidade para superar o capitalismo. Desse modo, concebe o comunismo como
“movimento real que supera o estado das coisas atual”. (DUARTE, 2011, p. 8).
Verificamos que só é possível compreender como o comunismo pode se dar a
partir da realidade capitalista se lançamos mão do método dialético-histórico
anteriormente enunciado, pois é na dialética intrínseca a realidade que captamos o
movimento das contradições que permeiam a própria realidade. Contradição existente,
por exemplo, nas relações de produção do sistema capitalista, na qual a propriedade dos
meios e o lucro são privados e o trabalho produtivo é socializado. Essa contradição
manifesta-se no trabalho alienado, pois o trabalhador o empreende única e
exclusivamente para garantir suas condições materiais de existência, sendo levado a
vender sua atividade vital. É nesse sentido que o trabalho, que deve ser atividade
20

constitutiva da essência humana, na sociedade do capital é negativo, pois perde seu o


aspecto de realização e passa a se apresentar como fonte de sofrimento.
O trabalho, na obra de Marx e Engels, é entendido como categoria central no que
diz respeito ao vínculo de cada indivíduo ao gênero humano, pois é a análise do trabalho
numa dimensão histórico-ontológica que permite compreender o desenvolvimento e a
humanização dos sujeitos sociais. Marx e Engels afirmam que a realização do homem
no mundo se promove por meio do trabalho, uma vez que por meio desse os homens
agem sobre a natureza e a transformam melhorando suas condições de existência. Logo,
“[...] o trabalho instaura-se a partir do momento em que seu agente antecipa
mentalmente a finalidade da ação”, sendo o objeto do trabalho material a subjetivação
objetivada no produto final; é por meio do trabalho que o homem cria e expressa seu
potencial de inteligência possibilitado pela materialidade concreta do mundo.
(SAVIANI, 2012b, p. 11).
Assim, os homens se diferenciam sobremaneira dos animais, pois não se
adaptam ao que está posto; sua sobrevivência e realização, seu desenvolvimento, se dão
pela adaptação do mundo a si. Adequam a natureza a suas necessidades materiais,
transformando-a ininterruptamente e, ao modificá-la, transformam também a si
próprios, pois esse movimento dialético é um constructo histórico em que os homens
criam e recriam a realidade vivida determinando uma realidade histórica que, por sua
vez, passa a ser determinante na constituição das sociedades, condicionando seu modo
de pensar, agir e sentir. De acordo com Marx, “[...] o modo de produção da vida
material condiciona o processo de vida social, política e intelectual”, o que quer dizer
que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência”. (MARX, 2008, p. 47).
Ao transformarem a natureza pelo trabalho os homens produzem o mundo da
cultura, ou seja, ao transformarem a natureza, produzem seu próprio mundo. A
produção da cultura e a evolução dos homens indicam que o desenvolvimento do
trabalho é educativo. O labor, que se inicia com a elaboração e subjetivação da realidade
objetiva, é expressão de aprendizado e educação, logo a educação é imprescindível para
realização do trabalho, bem como ela própria é um processo de trabalho. A PHC,
portanto, compreende o trabalho como princípio educativo.
Ancorando-se nos escritos de Marx, principalmente no capítulo VI (inédito)
d’Capital, Saviani classifica o trabalho educativo diferenciando-o do trabalho material.
21

O trabalho não material divide-se, de acordo com Marx (1978, p.79), em duas
modalidades. A primeira é aquela em que a “[...] mercadoria pode circular isoladamente
em relação ao produtor, ou seja, que podem circular como mercadorias no intervalo
entre a produção e o consumo”. Já na segunda, o produto não é separável do ato de
produção; nessa modalidade se encaixa o trabalho educativo, pois “o ato de dar aula é
inseparável da produção desse ato e de seu consumo. A aula é, pois, produzida e
consumida ao mesmo tempo (produzida pelo professor e consumida pelos alunos)”.
(SAVIANI, 2012b, p. 12).
Para Marx, na sociedade comunista, o trabalho se constitui em uma necessidade
vital de realização dos homens, pois nessa fase do desenvolvimento histórico estaria
superado o trabalho como ação alienada, os indivíduos não se restringiriam a atividades
vazias de sentido para mera garantia de sua sobrevivência. A alienação seria suplantada,
pois haveria a “[...] elevação do trabalho a um nível no qual o ser humano possa
desenvolver-se de forma omnilateral”. Assim, será derrubada a divisão do trabalho e a
educação se transformará na essência do trabalho. (DUARTE, 2012b, p. 152).
Em outras palavras, o que faz dos indivíduos seres genéricos, portanto
representantes do gênero humano, é a atividade que possibilita as objetivações que
garantem a sobrevivência de sua espécie. Nesse sentido, a atividade vital dos homens é
o trabalho. Ocorre que o desenvolvimento da atividade se faz pela incorporação
histórica da natureza ao campo dos fenômenos sociais ampliando as necessidades
humanas para além da sobrevivência, surgindo necessidades propriamente sociais.
Portanto, é no processo produtivo que os homens se realizam enquanto homens
apresentando-se o trabalho como atividade vital de realização. No entanto, com a
divisão da sociedade em classes antagônicas, houve a apropriação das objetivações
produzidas pelo trabalho das classes dominadas pelas classes dominantes.
Na sociedade do capital tanto a apropriação da atividade humana objetivada no
mundo da cultura, quanto à objetivação da individualidade por meio da atividade são
deficientes. A primeira, porque o trabalhador não dispõe de condições de se apropriar
daquilo que ele próprio produz, pois quanto mais valiosa é a produção, tanto mais sem
valor o trabalhador se torna, quanto mais espiritualmente elaborado se mostra o
trabalho, tanto mais desespiritualizado é o trabalhador e quanto maior é a quantidade
que se produz, tanto menos o trabalhador tem para consumir; a segunda, em função de o
trabalhador estar condicionado à divisão do trabalho e não usufruir de liberdade para
22

realizar sua individualidade, ficando sua atividade produtiva a cargo da classe que o
explora. (MARX, 2008b).
Tal fato implica dizer que há na análise marxiana a acusação da exteriorização
do objeto de trabalho ao trabalhador, que com ele deixa de se identificar e, ao invés de
se realizar com o processo de produção, desrealiza-se, pois o objeto não pertence a
quem produziu, posto que se torna mercadoria e, portanto, de propriedade do capital. O
objeto assume, agora, forma de capital e subjuga o homem que o produziu, deixando o
processo de trabalho de ser fonte de realização, porque se converte em processo de
valoração do próprio capital. Assim, “[...] a objetivação, que é a única forma do ser
humano efetivar-se, desenvolver-se, torna-se uma objetivação alienante”. (SAVIANI;
DUARTE, 2012, p. 24).
Para que na sociedade comunista a relação do homem com seu trabalho mude
radicalmente é preciso superar a atividade produtiva alienada em que a realização do
trabalhador só pode se dar fora do trabalho. Isso porque o trabalhador se encontra em si
quando está fora do trabalho e quando está no trabalho não se encontra; sua realização e
seu prazer só são possíveis fora da atividade produtiva, que o explora e o denigre.
Nessa sociedade, a atividade produtiva alienada converte-se em autoatividade,
pois o trabalho agora não é um meio para realização, mas a própria expressão da
realização do gênero humano, o trabalho não é um meio que os indivíduos têm para
sobreviver, mas o sentido da própria vida, o trabalho apresenta-se, na sociedade
comunista, reconhecidamente como atividade vital do sujeito genérico.
Destacamos que a sociedade em questão não nega as riquezas produzidas pela
sociedade do capital, bem como não abomina o trabalho dos homens, ela não representa,
portanto, a destruição dos elementos da sociedade que a precede, mas sua superação, já
que socializa as riquezas e torna o processo produtivo expressão de autorrealização. A
autoatividade, que suplanta a divisão do trabalho, não aprisiona o trabalhador,
possibilitando que seu desenvolvimento seja omnilateral, assim como também se torna
omnilateral sua apropriação das objetivações humanas que deixam de ser privadas e
passam a ser coletivas, pois as objetivações da individualidade de cada homem tornam-
se objeto social.
Ocorre que a abolição do trabalho alienado e a emersão da autoatividade,
implicam em mudanças determinantes que possibilitam o desenvolvimento livre e
universal. Essas mudanças dizem respeito à transformação de quatro aspectos da
atividade humana: “[...] a relação do sujeito com os resultados da atividade humana, a
23

relação do sujeito com sua própria atividade, a relação do sujeito consigo mesmo como
ser genérico, isto é, representante do gênero humano, e a relação do sujeito com os
outros sujeitos”. (SAVIANI; DUARTE, 2012, p. 23).
Essas transformações são a expressão da humanização possível para além da
sociedade do capital; provas da inteligência humana que não se permite viver em estado
de selvageria, numa guerra de todos contra todos. É a manifestação, como salienta
Duarte, de uma sociedade que produz o homem verdadeiramente rico.
Apoiando-se em Marx, Saviani e Duarte nos falam da relação dos homens e do
modo como a pobreza e a riqueza se apresentam na sociedade comunista (a qual a PHC
tenciona) de forma totalmente diversa da sociedade do capital. Nessa sociedade, têm a
riqueza e a pobreza significado humano, o que implica dizer que inclusive a pobreza
mostra-se na perspectiva de superação e desenvolvimento para o indivíduo:

Na sociedade comunista a relação com o outro deixa de ser meio para


satisfação externa à relação e passa ela mesma a ser uma necessidade
das individualidades dos sujeitos que se relacionam. Dessa forma,
para o indivíduo, torna-se uma necessidade relacionar-se com o outro
indivíduo pelo que nele há de humano. A humanidade do outro se
torna uma necessidade da humanidade de cada um.
A perspectiva marxiana da sociedade comunista é a de uma sociedade
na qual a formação humana produz o homem rico: “o homem rico é,
ao mesmo tempo, o homem necessitado de uma totalidade de
exteriorização vital humana. O homem como sua própria realização
existe como necessidade interna, como urgência. Não somente a
riqueza, também a pobreza do homem, recebe igualmente numa
perspectiva socialista um significado humano e, por isso, social. A
pobreza é o vinculo passivo que faz sentir ao homem como
necessidade a maior riqueza, o outro homem. A dominação em mim
do ser objetivo, a exploração sensível de minha atividade essencial, é
a paixão que, com isso, se converte aqui na atividade de meu ser.
(SAVIANI; DUARTE, 2012, pp. 28-29).

Mas qual então o papel da educação escolar para uma teoria pedagógica de
inspiração marxista na sociedade do capital? O papel da educação escolar, na PHC, “[...]
define-se pela importância do conhecimento na luta contra o capital e na busca pela
formação plena do ser humano”. (DUARTE, 2012b, p.153).
É nesse sentido que Saviani (2012b, p. 13) afirma que “[...] o trabalho educativo
é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”, uma
24

vez que “[...] lutar pelo socialismo é lutar pela socialização da propriedade dos meios de
produção” (DUARTE, 2012b, p. 153) e os conhecimentos científicos produzidos
historicamente pela humanidade não podem ser dissociados dos meios de produção,
pois é o conhecimento que permite sua existência.
Se reconhecemos que o processo de trabalho humano, bem como o de produção
dos meios de produção, exigem um antecipação da ação pelo pensamento, não podemos
negar que os meios de produção contém conhecimentos científicos objetivados. Isso
implica dizer que ao socializar o conhecimento produzido historicamente pela
coletividade dos homens com a classe trabalhadora estaremos socializando os meios de
produção. O ideário histórico-crítico reconhece que a socialização plena dos meios de
produção não pode ocorrer na estrutura societária capitalista, mas evidencia que a
contradição imanente a essa realidade permite se iniciar o processo em direção ao
comunismo. (DUARTE, 2011).
Tomemos agora os escritos de Saviani para melhor compreendermos como se dá
a relação do trabalho educativo com os conhecimentos científicos sistematicamente
elaborados. De acordo com Saviani, os conhecimentos científicos se produzem e
aprimoram-se tendo finalidade neles próprios. Portanto, os que se ocupam das ciências
matemáticas produzem o conhecimento matemático para o desenvolvimento da
sociedade; mas, primeiramente, sua atenção se volta ao estudo da matemática aplicada
como ciência, isso significa que não dispõe de relação imediata com os homens. O
mesmo ocorre com outras áreas do conhecimento como a Física, Química, História,
Filosofia e assim por diante. É nesse aspecto que a educação e o trabalho educativo se
distância das outras ciências. O ideário histórico-crítico compreende a educação como
uma ciência que enxerga o conhecimento científico como algo que não lhe interessa em
si mesmo, não é exterior aos homens; desse modo, o cientista tem uma perspectiva
diferente do professor. (SAVIANI, 2012b, p. 65).
Do ponto de vista da pedagogia, o conhecimento científico interessa quando é
assimilado pelos homens, constituindo-se em sua segunda natureza4. O objeto da
educação diz respeito aos elementos culturais - que precisam ser assimilados pelo
conjunto dos homens, para que se tornem homens - e as formas que possibilitem da
maneira mais adequada à transmissão da cultura em seu modo mais desenvolvido.


4
A categoria segunda natureza que a PHC lança mão é retirada da obra do marxista sardo Antônio
Gramsci.
25

Quanto à escolha dos elementos culturais, Saviani (2012b, p. 17) chama a


atenção para o que é imprescindível para o desenvolvimento do indivíduo em sociedade,
isto é, o que foi produzido historicamente e constitui a cultura humana e que não se
pode abrir mão para integração e promoção do sujeito na coletividade. Disso resulta a
triagem do que deve ser primordial e o que é secundário. Como primordial, encontram-
se os conhecimentos clássicos, que são, na perspectiva curricular, os conteúdos que
resistiram ao tempo e são indispensáveis para a compreensão da sociedade5. O precursor
da PHC adverte que:

O clássico não se confunde com o tradicional e também não se opõe,


necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O clássico é
aquilo que se firmou como fundamental, como essencial [...] aquilo
que tem caráter permanente, isto é, que resistiu aos embates do tempo.
Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. (SAVIANI, 2012b,
pp.13-17).

O clássico se expressa nas produções que conseguiram traduzir de forma mais


bem elaborada os problemas de determinadas etapas do desenvolvimento humano, isto
é, que se tornaram “[...] via de acesso privilegiada à compreensão da problemática
humana” e por isso mesmo têm valor educativo inestimável. (SAVIANI; DUARTE,
2012).
Na obra Escola e Democracia, Saviani (2012a) utiliza o conceito de clássico
para enfatizar a necessidade da emergência de uma pedagogia concreta e, portanto
dialética, apoiando-se na crítica de Gramsci a Escola Nova.

Ainda se está na fase romântica da escola ativa, na qual os elementos


da luta contra a escola mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente
por causa do contraste e da polêmica: é necessário entrar na fase
“clássica”, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para
elaborar os métodos e as formas. (GRAMSCI apud SAVIANI, 2012a).

Posto isso, acreditamos que o clássico também se faça presente na proposta


histórico-crítica como elemento que possibilita ultrapassar os modismos e polêmicas
conjunturais que tanto agradam as abordagens pós-modernistas, permitindo recuperar o

5
Atestamos que o fato de o clássico persistir na proposta histórico-crítica se deve a sua abordagem
dialética. Hegel desenvolve o conceito de “superação dialética” (aufheben) sobrelevado por incorporação
pelo materialismo histórico dialético. A palavra alemã aufheben é um verbo que significa suspender.
“Para ele, a superação dialética é simultaneamente a negação de uma determinada realidade, a
conservação de algo de essencial que existe nessa realidade negada e a elevação dela a um nível
superior”. Pensamos que a presença dos clássicos se relacione ao segundo sentido indicado, embora no
contexto da totalidade da situação real um sentido não possa ser compreendido sem o outro.
(KONDER,1984, p.24).
26

que é de caráter permanente e de interesse dos sujeitos concretos. O clássico permite ir


além da visão estreita e imediatista que valoriza única e exclusivamente o cotidiano e o
senso comum em nome do respeito da cultura popular e da diversidade cultural. De fato,
o clássico contribui para que, à luz da razão, se supere o relativismo cultural que não é
compatível com a superação da fragmentação da humanidade.
Quanto à forma, a atenção deve voltar-se para o desenvolvimento do trabalho
pedagógico em suas possibilidades, tratando-se da organização dos conteúdos, espaço,
tempo e procedimentos necessários para o ensino-aprendizagem. Deve ater-se a
“transformação do saber elaborado no saber escolar”, de modo a tornar esse saber
acessível aos educandos, proporcionando sua apreensão. De acordo com Saviani, o
problema da pedagogia é um problema da forma, da preocupação de como incorporar
conhecimento científico à segunda natureza dos homens, garantindo o domínio da
natureza e a transformação da sociedade. (SAVIANI, 2012b, p. 65).
A transformação revolucionária da sociedade capitalista, implica, como já
evidenciamos, na apropriação da totalidade do conhecimento socialmente existente pela
classe trabalhadora, portanto, o ideário histórico-crítico deve formar nos alunos a
consciência da necessidade de apropriação da riqueza espiritual universal e
multifacetada, reconhecendo que a apropriação do saber e a conscientização dos
trabalhadores não se dão de modo desassociado. (DUARTE, 2011, p. 11).
Vejamos agora como a PHC pensa a relação da transformação estrutural da
sociedade com o comprometimento/capacidade técnica e política dos professores no ato
educativo. Para a teoria pedagógica em questão, a transformação só é possível a partir
da dinâmica entre a capacidade e competência técnica e política, já que a competência
técnica possibilita o aprimoramento do comprometimento político e das ações políticas,
bem como a competência política compreende a importância do comprometimento
técnico para elevação das classes subalternas. É o que nos lembra Saviani (2012b, p. 46)
ao afirmar que: “[...] não se faz política sem competência e não existe técnica sem
compromisso; além disso, a política é também uma questão técnica e o compromisso
sem competência é descompromisso”.
Enquanto competência técnica compreende-se todos os domínios teóricos e
práticos que regem a educação e, portanto, dizem respeito aos conteúdos que se dispõe a
ensinar, ao modo como pretende transmitir o conhecimento, a organização estrutural das
instituições educacionais – e nesse caso não se limita a escola, apensar de compreender
que a escola é o espaço mais desenvolvido e apropriado para transmissão do
27

conhecimento –, o modo como estão organizadas as atividades educativas, as condições


imediatas a qual se está inserido como educador, e por fim, dar conta de entender a
complexidade da relação entre escola e sociedade, conseguir vislumbrá-la de forma
mediata para o entendimento da totalidade.
A competência técnica tem caráter político, pois não podemos elidir que o
domínio da técnica encontra sentido num horizonte político. E se, para a PHC, esse
horizonte é o da transformação das condições estruturais, implica-se na possibilidade de
uma revolução social e popular que modifique radicalmente o modo de produção, então
“[...] a função política da educação se cumpre também, embora não somente, pela
mediação da competência técnica”, que se expressa na instrumentalização dos
educadores e dos alunos com conhecimento científico que não dispõem e sem o qual
não teriam condições de superar a exploração de classe. (SAVIANI, 2012b, p. 44).
A socialização do conhecimento e a identificação dos problemas sociais
possibilitam o movimento na direção de superação da alienação, permitindo a
socialização ainda maior dos saberes que, até então, estão concentrados em uma
pequena parcela da sociedade. A concentração do conhecimento, assim como dos bens
de produção impossibilita a justiça social. A PHC caminha para socialização do
conhecimento, pois “[...] a proposta de socialização do saber elaborado é a tradução
pedagógica do princípio mais geral da socialização dos meios de produção”.
(SAVIANI, 2012b, p. 72).
Cabe ressaltar que ao mesmo tempo em que a competência técnica tem função
política para classe trabalhadora, também o tem para classe opressora. Reside aí a
importância de instrumentalizar as classes subalternas para que possam agir para
superação da sua condição de existência, já que o poder hegemônico tem garantido a
competência técnica à burguesia e excluído os trabalhadores.
Chamamos atenção para o fato de que a educação tem sentido político em si e
para si. O trabalho do professor tem sempre sentido político, queira os envolvidos no
processo educacional, ou não. A educação tem sentido político, mas talvez o professor
não o reconheça e nesse caso tem sentido político em si, por isso em uma prática
alienante,. Já um professor que reconheça o potencial político de seu trabalho e
posicione-se, seja em favor dos interesses dos trabalhadores, seja em corroboração com
a burguesia, promove a educação em sentido político para si. (SAVIANI, 2012b, p. 32).
Para PHC, competência técnica em si não basta, assim como o compromisso
político assumido exclusivamente na forma de discurso não é suficiente, pois se corre o
28

risco de cair no politicismo pedagógico. É preciso utilizar a técnica em favor da vontade


política a partir do comprometimento com as classes subalternas. É preciso, por
conseguinte, que o professor se movimente e ultrapasse o que lhe é apresentado como
possibilidade de ação e caminhe de especialista (aquele que dispõe de competência
técnica) a dirigente (que tem competência técnica e comprometimento político com os
oprimidos). (SAVIANI, 2012a, 2012b, p. 33, p. 84).
Não raramente, a PHC é alvo de críticas que lhe atribuem uma prática que
valoriza o saber e os conteúdos e acaba por negligenciar a consciência crítica.
Advertimos que a pedagogia em questão não pensa o saber e a consciência
segregadamente, já que fazê-lo seria supor a possibilidade de desenvolvimento da
consciência a margem do saber ou que o acesso ao saber, ao conhecimento científico,
pudesse ser realizado sem consciência. “[...] o nível de consciência dos trabalhadores
aproxima-se de uma forma elaborada à medida que eles dominam os instrumentos de
elaboração do saber”. (SAVIANI, 2012b, p. 68).

Conclusão

São pelas questões apresentadas anteriormente que Saviani (2012b, p. 120)


procura elaborar o significado de práxis a partir das contribuições de Sánchez Vázquez
(1990), entendendo-a “[...] como um conceito sintético que articula a teoria e a prática”,
isto é, a prática orientada teoricamente.
O educador adverte que a PHC, sendo inspirada no marxismo, postando-se como
uma teoria pedagógica revolucionária, deve superar as limitações do idealismo, que
adota o primado da teoria sobre a prática, e o pragmatismo, que, ao contrário, estabelece
o primado da prática sobre a teoria. A filosofia da práxis

[...] é justamente a teoria que está empenhada em articular a teoria e a


prática, unificando-as na práxis. É um movimento prioritariamente
prático, mas que se fundamenta teoricamente, alimenta-se da teoria
para esclarecer o sentido, para dar direção à prática. Então, a prática
tem primado sobre a teoria, na medida em que é originante. A teoria é
derivada. Isso significa que a prática é, ao mesmo tempo, fundamento,
critério de verdade e finalidade da teoria. (SAVIANI, 2012b, p. 120).

Podemos afirmar que Saviani segue a mesma linha de raciocínio de Sánchez


Vázquez (1990) que desenvolve teoricamente o conceito de atividade humana. Para esse
autor, a atividade humana se relaciona com a práxis quando a ação propriamente
29

humana tem motivação material; mas é norteada, apesar das determinações da realidade
objetiva, por um resultado ideal, uma finalidade que possibilita um produto efetivo.
Nesse caso, “[...] os atos não só são determinados casualmente por um estado anterior
que se verificou efetivamente, como também por algo que ainda não tem uma existência
efetiva e que, não obstante, determina e regula os diferentes atos antes de culminar num
resultado real”. (VÁZQUEZ, 1990, p. 187).
A práxis se depara, contudo, com a inadequação entre a intenção e o resultado,
pois a elaboração mental da atividade dos indivíduos para sua ação prática, que busca a
produção ou transformação das condições objetivas, tem de lidar com a objetividade
que não obedece aos seus anseios. Isso porque a ações dos homens também produzem
situações que não estão em conformidade com suas intenções. “As relações de
produção, por exemplo, são relações que os homens contraem independente de sua
vontade e de sua consciência”. (VÁZQUEZ, 1990, p. 188).
Nesse sentido, conforme Saviani (2012b, p. 121), as novas gerações estão
determinadas pelas gerações anteriores e dependem delas. “Mas é uma determinação
que não anula sua iniciativa histórica, que se expressa justamente pelo desenvolvimento
e pelas transformações que ela opera sobre as bases de produção anterior”, pois “[...] o
progresso histórico se caracteriza, entre outras coisas, por uma superação dessa
inintencionalidade, [promovendo] conscientemente, a destruição das relações
capitalistas de produção e a instauração do socialismo”. (VÁZQUEZ, 1990, p. 188).
A atividade da antecipação mental do que se pretende transformar, isto é, a
produção dos objetivos que prefiguram idealmente o resultado real que se pretende
obter, manifesta-se também na produção do conhecimento em forma de conceitos,
hipóteses e teorias mediante as quais os homens conhecem a realidade. Temos nisso
uma questão cara a práxis no que diz respeito à relação do conhecimento com a
transformação social, haja vista que entre a atividade cognoscitiva e a teleológica há
diferenças importantes, “[...] pois enquanto a primeira se refere a uma realidade presente
que se pretende conhecer, a segunda diz respeito a uma realidade futura, portanto ainda
inexistente”. (VÁZQUEZ, 1990, p. 191).
Isso nos arremete para questão do conhecimento e da consciência, bem como da
competência técnica e do comprometimento político antes enunciado, pois de nada
adianta a atividade cognoscitiva sem atividade teleológica, uma vez que “[...] a
atividade cognoscitiva não implica numa exigência de ação efetiva, [já] a atividade
teleológica traz implícita uma exigência de realização, em virtude da qual se tende a
30

fazer da finalidade uma causa de ação real”, mas sem atividade cognoscitiva a
finalidade nunca poderia se realizar. (VÁZQUEZ, 1990, p. 191).
Nesse sentido, advertimos que a práxis na PHC se relaciona, como prioridade, ao
humano, quer se trate da sociedade quer se trate de indivíduos concretos, por isso
encontra seu ponto de partida e de chegada na própria prática social e tenciona a
revolução.

Referências

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sociedade comunista como referência para a educação contemporânea. In: MARSIGLIA, Ana
Carolina Galvão (org.). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas: Autores Associados,
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(Org.). Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas: Autores
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__________. Capítulo VI (inédito). In: MARX, K. O Capital. São Paulo, Ciências Humanas,
Livro I, 1978.

_________. Teses sobre Feurbach. In: MARX, Karl & ENGELS,


Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2006.

__________. Contribuição a critica da economia política. Tradução e introdução Florestan


Fernandes. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008a.

__________. Manuscritos econômico-filosóficos. 2. Reimpr. São Paulo, Boitempo, 2008b.


OLIVEIRA, Betty A. de. Fundamentação marxista do pensamento de Dermeval Saviani. In
SILVA JÚNIOR, Celestino Alves da. .(org.) Dermeval Saviani e a educação brasileira. O
Simpósio de Marília. São Paulo: Cortez, 1994. p. 105-128.

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo. Filosofia da práxis. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

SAVIANI, Dermeval. História das idéias pedagógicas no Brasil. 2 ed. Campinas: Autores
Associados, 2008.

_________________. Escola e democracia. 42 ed. Campinas: Autores Associados, 2012a.

_________________. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11 ed.


Campinas: Autores Associados, 2012b.

SAVIANI, D.; DUARTE, N. (Org.). Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na


educação escolar. Campinas: Autores Associados, 2012c. p. 59-87.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

MOMENTOS PEDAGÓGICOS DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Priscila de Souza Chisté (IFES)1

Resumo: O texto em tela pretende apresentar aspectos metodológicos relacionados à Pedagogia


Histórico-Crítica com ênfase nos cinco momentos pedagógicos propostos por Dermeval
Saviani, a saber: prática social inicial; problematização; instrumentalização; catarse e a prática
social final. Por meio de pesquisa bibliográfica, analisa tais momentos e pondera que assim
estão divididos somente para fins didáticos, pois cada momento contém outros em sua
realização, ou seja, eles são articulados entre si. Alerta que a utilização de tais momentos para
sistematização da prática educativa requer atenção pois, se forem convertidos em simples
procedimentos de ensino, podem provocar uma leitura reducionista distanciada das proposições
de Saviani.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica; Momentos Pedagógicos; Metodologia de Ensino.



1 A Pedagogia Histórico-Crítica

A pedagogia histórico-crítica foi desenvolvida por Dermeval Saviani e localiza-


se teoricamente no corpus das pedagogias contra-hegemônicas de orientação socialista,
organizadas no Brasil a partir da década de 1980. Ela inclui a educação no processo
social e histórico de humanização no qual os homens produzem a sua existência por
intermédio do trabalho. Nesse sentido, a educação também é considerada como uma
forma de trabalho, ou seja, um trabalho não material, produtor de ideias, conceitos,
valores, símbolos e princípios.
Saviani (2003) aponta que a educação inicia-se com a origem do próprio ser
humano, constituído como animal diferenciado, na medida em que, no lugar de se
adaptar à natureza, precisou adaptar a natureza a si. Para agir sobre o mundo natural e
modificá-lo, o ser humano necessitou aprender a fazer isso por meio das relações
sociais. Nas comunidades primitivas, a educação coincidia com a própria vida. Era
vivendo, produzindo a sua existência e agindo sobre o ambiente que homens e mulheres


1
Priscila de Souza Chisté, doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Espírito Santo, Brasil.
E-mail: pchiste@ifes.edu.br


32

aprendiam a atuar sobre ele, transformando-o. Nesse processo, as experiências que


tinham bons resultados eram conservadas, ensinadas e foram compondo o acervo da
cultura humana.
Homens e mulheres viviam em conjunto. Na sua relação com os outros e com o
mundo, desenvolveram-se em meio a uma comunidade primitiva, em que tudo era
comum. Portanto, o caráter social do homem está na própria origem da sua existência. A
partir do momento em que ocorreu a apropriação privada da terra, os homens dividiram-
se em proprietários e não proprietários. Aquilo que era comum passou a ser cindido.
Isso se refletirá na educação, que também passará por uma cisão: a formação dos que
tinham terra e a dos que não a possuíam. O comunismo primitivo cedeu lugar para uma
sociedade dividida em classes. A instrução dos que careciam trabalhar para sobreviver e
a educação daqueles que dispunham de tempo livre. A etimologia da palavra escola
reforça esse aspecto dicotômico da educação. Em grego, “σχολή” (scholē) significa
“lazer” e também “aquele em que o lazer é empregado”, ou seja, a escola como um
espaço diferenciado: o lugar do tempo livre, fato que reforça a dualidade apontada.
A partir da sociedade moderna, com o desenvolvimento da indústria, das cidades
e do contrato social que leva a generalização da escrita, a forma escolar se torna o meio
principal e dominante de educação. A sociedade industrial demandava que a escola
fosse generalizada para todos. Assim, a relação da educação com a sociedade foi
assumindo a forma escolar, primeiro exclusiva dos grupos dominantes e, depois, como
uma forma generalizada para toda a sociedade.
Para Saviani (2003), o Brasil constituiu-se como produto da expansão do
comércio europeu que levou às conquistas marítimas. Na fase colonial, o país era
dominantemente agrícola, por isso não demandou a expansão da escola. Contudo, a
partir da década de 1930, quando se desenvolveram a urbanização e a industrialização
brasileira, ocorreu um impulso maior na expansão escolar, com finalidades específicas
relacionadas à formação dos trabalhadores para atender às demandas do mercado e, de
modo contrário, ficou reforçada a necessidade de uma formação que contemplasse a
elite dirigente.
Diante da necessidade de educar os sujeitos para atender às novas e diferentes
demandas sociais, várias teorias buscaram sua afirmação na história da educação
brasileira. De modo geral, Saviani (1984) divide-as em dois grupos: as teorias que
entendem a educação como instrumento de equalização social, portanto de superação da
marginalidade e correção das distorções sociais (teorias não-críticas); e as que
33

concebem a educação como instrumento de discriminação social, como um fator de


marginalização, compreendendo a estrutura socioeconômica como condicionante do
fenômeno educativo (teorias crítico-reprodutivistas).
Em oposição a essas teorias, contudo, a pedagogia histórico-crítica - concebida
como teoria crítica da educação - constitui-se como uma pedagogia revolucionária
centrada na igualdade entre os homens que busca converter-se em instrumento de
instauração de uma sociedade sem desigualdade social. Desse modo, compreende a
educação como ação transformadora, de emancipação dos sujeitos sociais e de
politização do fazer pedagógico. (SAVIANI, 1984).
Como apontado, considera que a relação do homem com o real é sempre
mediada pelo outro e pelos signos e, nessas relações sociais, os indivíduos produzem,
transformam e se apropriam das diferentes atividades práticas e simbólicas, as
internalizam como modos de ação/elaboração próprios, constituindo-se como sujeitos.
Assim, para o indivíduo tornar-se humano, é preciso que internalize produções que
foram sistematizadas na trajetória da humanidade. Além disso, para se conhecer tais
produções é importante revelar sua estrutura social, apresentar o mundo das mediações,
dos processos sociais (econômicos, políticos, científicos etc.) em que o objeto de
conhecimento está inserido. Portanto, o conceito de mediação indica que nada é isolado,
implica uma conexão dialética entre tudo o que existe e destaca as relações entre teoria
e prática.
Para Cury (2000) as mediações concretizam e encarnam as ideias ao mesmo
tempo que iluminam e significam as ações. No caso da educação, essa categoria torna-
se básica porque a educação, como organizadora e transmissora de ideias, medeia as
ações executadas na prática social.

Assim, a educação pode servir de mediação entre duas ações sociais


em que a segunda supera, em qualidade, a primeira. Mas também pode
representar, como prática pedagógica, uma mediação entre duas
ideias, pois a prática pedagógica revela a posse de uma ideia anterior
que move a ação. Finda esta última, novas ideias surgem como
possibilidades de iluminar a prática pedagógica seguinte. Esse duplo
movimento permite entender como, sem essa categoria, a educação
acaba formando um universo a parte, existente independentemente da
ação. Esta categoria permite superar aparente fosso existente entre as
ideias a ação. (CURY, 2000, p. 28).

Cabe colocar que o significado marxiano de prática não se identifica com a ação
concreta e imediata de um indivíduo particular (ao cotidiano); mas, com a prática social
34

e histórica do conjunto dos homens, disponibilizada aos seres singulares como base de
suas realizações como seres sociais, ou seja, com a forma como estão sintetizadas as
relações sociais em um determinado momento histórico.
Nesse contexto, a educação é entendida como o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Como a melhor forma já criada pelos seres
humanos de produção, nos indivíduos, dos atributos que definem os níveis mais
desenvolvidos que o gênero humano já alcançou em sua história até aqui percorrida.
(SAVIANI, 2003).

2 Pedagogia Histórico-Crítica e Psicologia Histórico-Cultural

A pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural embasam-se no


pensamento marxiano. Segundo Saviani (2015, p. 28), “[...] Marx desenvolveu a [sua]
dialética em bases materiais tendo, no ponto de partida, indivíduos reais produzindo os
seus meios de vida e desencadeando a história como obra dos próprios homens”, por
isso sua concepção é chamada de materialismo histórico-dialético. É materialista porque
parte da ideia de que a realidade objetiva (matéria) existe antes de existir na
consciência.
A matéria (realidade objetiva) se encontra em movimento porque é constituída
por contradições, do mesmo modo que a consciência é dinâmica e se encontra em
movimento pelas mesmas contradições. O conhecimento, saber acumulado constituído
por um certo número de proposições que refletem as relações objetivas, estimula atos
reflexíveis (pensamentos) de natureza lógico-racional que terminam por orientar uma
nova ação do sujeito sobre a realidade. Esse processo dialético (a partir da análise de
fatos que se contradizem ou se complementam) se dá em cada indivíduo, mas também
nos grupos humanos e sociedades, respeitando o desenvolvimento da própria espécie
humana.
O materialismo histórico-dialético considera que pensamento e ação não são
duas coisas que se excluem, pois ambos constituem os polos essenciais do processo de
conhecimento. Nesse sentido, cabe analisar as determinações (relações) dos fenômenos
sociais para compreender o social como uma totalidade dialética em movimento que
ocorre ao longo da história. Assim, o real concreto só terá sentido quando a análise
identificar suas múltiplas determinações.
35

A partir dessa base epistemológica, a pedagogia histórico-crítica, no que se


refere às suas bases psicológicas, dialoga com a psicologia histórico-cultural
desenvolvida pela “Escola de Vigotski”. Ambas as teorias consideram essencial a
transmissão dos conteúdos clássicos, elementos culturais fundamentais ao processo de
humanização e a adequação do ensino às melhores formas de se efetuar esse processo.
A sua essencialidade está, portanto, na instrumentalização e, por conseguinte, na
apropriação desses conteúdos por parte do aluno. Assim, os conteúdos transmitidos pela
escola, o grau de complexidade que requerem das ações do sujeito e a qualidade das
mediações para sua realização, são decisivos no desenvolvimento do psiquismo.
Conforme postulado pela Escola de Vigotski, o bom ensino é aquele que
favorece o salto qualitativo das funções chamadas elementares para funções
psicológicas superiores. Essas referem-se a processos voluntários, ações
conscientemente controladas, mecanismos intencionais, como a consciência, a vontade e
a intenção que pertencem à esfera da subjetividade. Não se relacionam apenas com o
desenvolvimento das funções como memória, atenção, percepção da realidade, mas
também com o desenvolvimento da personalidade e da concepção de mundo. As
funções psicológicas superiores envolvem o domínio de meios externos de
desenvolvimento da cultura e do pensamento, como a linguagem, a escrita, o cálculo e o
desenho. Também exigem a utilização significativa de mediadores e se vinculam
diretamente ao processo de escolarização.

3 A prática pedagógica e o saber escolar

Para Saviani (2004), existe a necessidade de conversão do saber objetivo em


saber escolar de modo a torná-lo assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares.
A prática pedagógica, portanto, precisa se organizar adequadamente para se traduzir em
resultados de efetiva aprendizagem dos educandos, ou seja, é preciso compreender o
que (conteúdo), para quem (alunos), para que (objetivos) e como ensinar (recursos).
Além disso, necessitamos observar os determinantes sociais do trabalho educativo. Para
compreender melhor esses pontos, Marsíglia (2011, p. 30) nos ajuda ao explicar que:

Em relação ao conteúdo, é preciso questionar: por que é relevante


ensinar determinado conteúdo? A resposta a essa questão guia-se
dialeticamente pela objetividade e pela subjetividade. Do ponto de
vista da realidade objetiva é preciso que o conteúdo escolar seja
36

constituído por conhecimentos que permitam uma compreensão da


realidade natural e social em seus aspectos essenciais. Do ponto de
vista da subjetividade, é preciso analisar a contribuição dos conteúdos
escolares à formação e ao desenvolvimento da personalidade e das
funções psicológicas.

Além de compreender por que é relevante ensinar, outro ponto fundamental


refere-se a “para quem ensinar”. Nesse sentido é importante conhecer os processos de
desenvolvimento do educando, e identificar qual é a atividade-guia, ou seja, qual
atividade promoverá o maior desenvolvimento daquela etapa do indivíduo.

Uma atividade-guia não é a que mais tempo ocupa a criança, mas a


atividade que carrega fatores valiosos e que contém elementos
estruturais que impulsionam o desenvolvimento, ou seja, guia o
desenvolvimento psíquico infantil. O que não é o caso dos termos
principal ou predominante, pois os dois têm muito mais a ver com a
ideia de atividade que a criança tem que realizar obrigatoriamente ou
que ocupa mais tempo em suas atividades diárias. (PRESTES, 2012,
p. 163).

Durante o desenvolvimento humano, pode-se elencar algumas atividades-guia.


Elkonin (1987) apresenta uma caracterização detalhada das épocas e períodos do
desenvolvimento infantil desde o nascimento até a juventude: 1) a época da primeira
infância, constituída pelo período da comunicação emocional direta com os adultos,
seguido da atividade objetal manipulatória; 2) a época da infância caracterizada pelo
jogo de papéis (na idade pré-escolar) e pela atividade de estudo (na idade escolar) e 3) a
adolescência, constituída pelo período da comunicação íntima pessoal, seguida pela
atividade profissional e de estudo. Nesse sentido, compreendemos que seja fundamental
que o professor conheça e se aproprie dessa teoria para entender como o seu aluno
desenvolve-se e aprende.
Outro ponto mister da prática pedagógica relaciona-se ao “para que ensinar
algo”, ou seja, ao objetivo que se deseja atingir. O que vamos ensinar atende às
necessidades imediatas do aluno? Contribui com o processo de humanização? Cabe
ponderar que atender ao aluno não é suprir suas necessidades imediatas, mas sim,
propiciar a compreensão das múltiplas determinações de um fenômeno. O educando é
síntese das relações sociais que caracterizam a sociedade em que vive, expressas não só
em sua situação imediata. Assim, o aluno precisa apropriar-se das objetivações
humanas, ainda que empiricamente não tenha consciência dessa necessidade, sendo este
justamente o dever de ofício do professor. (SAVIANI, 2004).
37

Em relação ao “como” ensinar, ou seja, aos recursos utilizados para atingir os


objetivos traçados é importante refletir sobre a questão: de que maneiras podemos
ensinar para conseguir nos aproximar dos objetivos traçados? Muitos são os métodos
que podem ser utilizados e vários são os autores que se debruçaram sobre esse tema.
Vejamos, a seguir, como Saviani abordou tal assunto e de que modo sistematizou sua
proposta metodológica.

4 Momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-Crítica

No livro Escola e democracia, Saviani (1984) apresenta pela primeira vez os


cinco momentos do método histórico-crítico em contraponto aos esquemas propostos
por Herbart (Pedagogia Tradicional) e Dewey (Pedagogia Nova). Ele propõe um
método pedagógico apresentado na forma de momentos que são interdependentes:
prática social inicial; problematização; instrumentalização; catarse e a prática social
final. São, portanto, etapas que se associam toda vez que se quer ensinar algo.
O autor sugere essa nomenclatura em detrimento da utilização do termo passos,
por considerar que os últimos se articulam numa sequência cronológica. Portanto,
considera mais apropriado falar de momentos articulados num mesmo movimento,
único e orgânico (SAVIANI, 2015). Cabe destacar que a metodologia da Pedagogia
Histórico-Crítica está dividida em momentos somente para fins didáticos. Cada
momento do método contém outros em sua realização, pois são articulados e se
relacionam. Desse modo, a capacidade de problematizar, por exemplo, vai depender da
apropriação de certos conhecimentos, assim como, o peso e a duração de cada momento
deverão variar de acordo com situações específicas da prática pedagógica.
Contudo, conforme alerta Martins (2011), os momentos pedagógicos
sistematizados por Saviani não podem ser considerados como procedimentos
relacionados diretamente com a prática educativa.

Com vista à sistematização do método de ensino próprio à pedagogia


histórico-crítica, Saviani [...] propõe cinco passos que, na qualidade de
momentos articulados e interdependentes, possam pautar o trabalho
pedagógico. Assim, consideramos que tais momentos ultrapassam o
âmbito da didática, não havendo uma correspondência linear entre eles
e a organização dos tempos e conteúdos constitutivos da aula em si,
ou seja, consideramos que a conversão dos referidos passos em
procedimentos de ensino encerra o risco de culminar numa leitura
reducionista em relação às proposições do autor. (MARTINS, 2011,
38

226).

A autora pontua que a metodologia proposta por Saviani possui cunho filosófico
e não procedimental. Em consonância com Marsíglia, Martins (2011) coloca em
discussão o trabalho pedagógico como uma das formas de expressão da prática social,
na base da qual residem as relações sociais de produção que geram, para além de
“coisas”, a própria subjetividade humana como intersubjetividade. Como tal, tanto os
professores quanto os alunos são partícipes da prática social e expressam nela
objetivamente diferentes formas de participação.

Em suma, consideramos que os referidos passos superam em muito


uma sequenciação didática, balizando metodologicamente a análise
das funções sociais da educação escolar, da formação de professores,
da proposição de projetos político-pedagógicos e, também, dos
aspectos didáticos da prática docente. (MARTINS, 2011, p. 230).

Marsíglia (2011), ao analisar os momentos pedagógicos, coloca que o ponto de


partida da prática educativa é a prática social. Nesse primeiro momento, o professor
tem uma “síntese precária” em relação ao que irá ensinar, pois, por um lado, ele domina
os conteúdos de ensino e tem experiências em relação à prática social; mas, por outro,
seu conhecimento é limitado, tendo em vista que ele ainda não tem claro o nível de
compreensão dos seus alunos.
Saviani (2015) chama atenção para o fato de que, nesse ponto de partida,
também é preciso considerar a compreensão sincrética dos alunos em relação à prática
social. Os alunos têm domínios fragmentados, sem visão das relações que formam a
totalidade. Essa relação dialética entre os saberes de professores e de alunos define o
ponto de partida da prática educativa, como uma modalidade de prática social.
O primeiro momento do método articula-se ao nível de desenvolvimento efetivo
do aluno (tendo em vista a adequação do ensino aos conhecimentos já apropriados) e ao
desenvolvimento iminente, no qual o ensino deve atuar. Sobre o ponto de atuação da
prática educativa, Marsíglia coloca que é preciso atuar no que o aluno ainda não sabe e
não buscar reforçar o já aprendido.

[...] entendemos que o ponto de partida do trabalho educativo não é


aquilo que o aluno já consegue fazer por si mesmo, mas aquilo que ele
só consegue fazer na relação com o professor, ou seja, aquilo que está
na zona de desenvolvimento iminente. Ao trabalhar com a zona de
desenvolvimento iminente já está considerando-se o nível de
39

desenvolvimento atual (ou efetivo). Em outras palavras, quando o


trabalho educativo põe em movimento as funções inter-psicológicas,
está também movimentando as funções intra-psicológicas. A síntese
precária da qual parte o professor implica suposições sobre o que os
alunos serão capazes de fazer com sua ajuda, isto é, suposições sobre a
zona de desenvolvimento imediato dos alunos. Se o ponto de partida
fosse apenas o conhecimento do nível de desenvolvimento efetivo, as
possibilidades de planejamento do trabalho educativo seriam muito
escassas. (MARSÍGLIA, 2011, p. 33).

Martins (2011), do mesmo modo que Marsíglia, é contrária `a ideia de que o


ponto de partida refere-se somente ao que os alunos já sabem, ou seja, o seu nível de
desenvolvimento real. Alerta que para além disso está a necessidade se reconhecer tanto
o professor quanto o aluno em sua concretude como sínteses de múltiplas determinações
e a prática pedagógica como um tipo de relação que pressupõe o homem unido a outro
homem, em um processo mediado pelas apropriações e objetivações que lhes são
disponibilizadas.
Assim, é possível considerar que esse momento deve, com base nas demandas
da prática social, selecionar os conhecimentos historicamente construídos que devam
ser traduzidos em saber escolar. O ponto de partida da prática educativa é a busca pela
apropriação, por parte dos alunos, das objetivações humanas.
O segundo momento é a problematização, quando são identificados os
“principais problemas postos pela prática social”. São levantadas as questões que
precisam ser resolvidas, bem como o conhecimento necessário a fim de respondê-las
para além de uma compreensão caótica e superficial da realidade. Na problematização,
o professor necessita apresentar aos seus alunos as razões pelas quais esse ou aquele
conteúdo estão inseridos no planejamento. A problematização, portanto, deve conduzir
o aluno do conhecimento advindo das relações do cotidiano (conhecimento sincrético,
fragmentado, parcial sobre o fenômeno) para o conhecimento científico, que deve ser
oferecido na escola, reestruturando qualitativamente o domínio sobre as questões da
prática social. (SAVIANI, 2015, p. 35).

É o momento em que “[...] se torna evidente a relação escola-


sociedade com as questões da prática social (que precisam ser
resolvidas) e os conhecimentos científicos e tecnológicos (que devem
ser acionados)” (VALE, 1994, p. 220). Trata-se de colocar em xeque a
forma e o conteúdo das respostas dadas à prática social, questionando
essas respostas, assinalando suas insuficiências e incompletudes;
demonstrar que a realidade é composta por diversos elementos
interligados, que envolvem uma série de procedimentos e ações que
precisam ser discutidas. No momento da problematização, o professor
40

precisa ter claro como orientará o desenvolvimento da aprendizagem,


baseando-se naquilo que já tem como material da etapa anterior e seus
objetivos de ensino. Além disso, seu planejamento deve abordar as
diversas dimensões do tema e evidenciar a importância daquele
conhecimento, fazendo-o ter sentido para o aluno. (MARSÍGLIA,
2011, p. 33).

Martins (2011), contudo, alerta que é preciso considerar o aspecto filosófico da


problematização, visto que essa também tem um caráter bastante amplo e não guarda
correspondência direta com procedimentos que instiguem ou problematizem aquilo que
venha a ser ensinado pelo professor aos seus alunos. Trata-se, outrossim, da
identificação dos problemas impostos à prática educativa, ao trabalho do professor, à
vista dos encaminhamentos de suas possíveis resoluções, ou seja, o problema em seu
sentido filosófico não se identifica com o significado usual e do senso comum que lhe é
atribuído. O problema, filosoficamente, compreende as demandas necessárias à
existência de determinado fenômeno e que impulsionam à ação tendo em vista o seu
atendimento. Sob o ponto de vista da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia
Histórico-Cultural o problema que se impõe a educação escolar diz respeito a um ensino
que promova, de fato, o desenvolvimento.

Esse problema, por sua vez, emerge da prática social como fenômeno
histórico, tanto naquilo que se refere aos seus condicionantes objetivos
quanto às possibilidades para sua superação. Portanto, sob nosso
entendimento, o segundo momento aponta na direção das condições
requeridas ao trabalho pedagógico, à prática social docente. Aspectos
infraestruturais, salariais, domínios teórico-técnicos, estrutura
organizativa da escola e, sobretudo, a qualidade da formação docente,
são algumas questões a serem problematizadas. Da mesma forma deve
se impor à problematização as razões das conquistas e também dos
fracassos que permeiam a aprendizagem dos alunos – dado
umbilicalmente relacionado à qualidade do ensino, quiçá o verdadeiro
e maior problema enfrentado pela educação escolar – especialmente, a
pública. (MARTINS, 2011, p. 229).

Diante dessa colocação, é possível pensar que existem diversos pensamentos


sobre os momentos pedagógicos propostos por Saviani. Marsíglia (2011) remete, com
mais ênfase, os momentos ao trabalho educativo; já Martins (2011) eleva os momentos
a uma perspectiva filosófica. No entanto, ambas as visões, apesar de se posicionarem
em alguns pontos em esferas diferentes, contribuem para o entendimento dos momentos
pedagógicos na medida em que são propostas de articular a teoria de Saviani à prática
escolar.
41

Para Saviani (1984), a terceira etapa, a instrumentalização2, deve garantir às


camadas populares a apropriação das ferramentas culturais necessárias à luta social de
modo a se libertarem das condições de exploração em que vivem. A instrumentalização,
portanto, em consonância com a problematização, deve oferecer os instrumentos
necessários aos educandos para ascenderem em seus níveis de compreensão em relação
à totalidade dos fenômenos. Ela deve oferecer subsídios para compreender a prática
social em suas implicações complexas. Nessa etapa, os alunos necessitam apropriar-se
dos instrumentos culturais produzidos pela humanidade que garantem aos indivíduos
participarem da sociedade de forma qualitativamente superior. A apropriação das
ferramentas físicas e psicológicas permite a objetivação dos indivíduos, tornando
“órgãos da sua individualidade”, o que foi construído socialmente ao longo da história
humana.
Para Martins (2011), o terceiro momento diz respeito à apropriação dos
instrumentos teóricos e práticos requeridos aos encaminhamentos dos problemas
identificados. Trata-se do momento no qual se destaca, por um lado, a seleção dos
conteúdos, dos procedimentos de ensino, dos recursos didáticos que utilizará e, por
outro, trata-se das apropriações a serem realizadas pelos alunos do acervo cultural
indispensável à sua formação escolar. A autora aponta que não se trata de um momento
de cunho tecnicista, mas sim visa à transmitir às novas gerações o saber historicamente
sistematizado. Segundo Martins (2011) esse momento refere-se à relação interpessoal
professor-aluno mediada pelos conhecimentos a serem apropriados que possibilitem à
educação escolar desempenhar efetivamente sua função social.
O quarto momento é a catarse que, segundo Marsíglia (2011), refere-se à
expressão elaborada da nova forma de entendimento da prática social a que se ascendeu.
É a passagem da síncrese à síntese, que permite aos alunos a manifestação de sua
compreensão em termos elaborados. A catarse é etapa culminante do processo
educativo, pois é quando o aluno apreende o fenômeno de forma mais complexa. Há
uma transformação e a aprendizagem efetiva acontece. A catarse produz uma

2
Em notas de aula, o professor Robson Loureiro sugeriu a utilização do termo “apropriação” no lugar de
“instrumentalização” por acreditar que esse remete à racionalidade instrumental cujo princípio refere-se mais aos fins
do que os meios, ou seja, sua elaboração dos meios para obtenção dos fins se hipertrofia em sua função de
tratamentos dos meios e não na reflexão objetiva dos fins. Na medida em que a razão se torna instrumental, a ciência
vai deixando de ser uma forma de acesso aos conhecimentos verdadeiros para tornar-se um instrumento de
dominação, poder e exploração, sendo sustentada pela ideologia cientifista, que, através da escola e dos meios de
comunicação de massa, engendra uma mitologia – a Religião da Ciência - contrária ao espírito iluminista e à
emancipação da Humanidade. Nesse sentido, ele acredita ser necessário renomear o termo, pois instrumentalização
parece não corresponder à totalidade do processo de apropriação do saber sistematizado e ao mesmo tempo fica
atrelado à ideia de racionalidade instrumental.
42

compreensão, por parte do aluno, qualitativamente superior em relação às apropriações


do patrimônio humano, presentes nos conteúdos escolares trabalhados pelo professor.
De acordo com Saviani (1984, p. 75), o momento da catarse representa o cume
dos passos anteriores caracterizando-se pela “[...] efetiva incorporação dos instrumentos
culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social”. A catarse
corresponde aos resultados que tornam possíveis afirmar que houve aprendizagem. Ela
produz, como diria Vigotski, “rearranjos” dos processos psíquicos na base dos quais se
instituem os comportamentos complexos, culturalmente formados. Trata-se, então, da
efetivação da intencionalidade educativa condensada na conquista por parte de cada
aluno singular da humanidade produzida pelo conjunto dos homens.
O último momento refere-se à prática social final que, após as vivências,
relacionam-se à prática social modificada. É quando o educando, tendo adquirido e
sintetizado o conhecimento, tem entendimento e senso crítico para agir de maneira
transformadora. Ele problematiza a prática social e evolui da síncrese para a síntese,
estando no caminho da compreensão do fenômeno em sua totalidade. O primeiro e o
quinto momentos são a prática social, mas diferem no sentido de que ao final do
processo essa prática se modifica em função da aprendizagem resultante da prática
educativa, e produz alterações na qualidade e no tipo de pensamento (do empírico ao
teórico). Segundo Saviani (1984, p. 76):

[...] a prática social referida no ponto de partida (primeiro passo) e no


ponto de chegada (quinto passo) é e não é a mesma. É a mesma, uma
vez que é ela própria que constitui ao mesmo tempo o suporte e o
contexto, o pressuposto e o alvo, o fundamento e a finalidade da
prática pedagógica. E não é a mesma, se considerarmos que o modo
de nos situarmos em seu interior se alterou qualitativamente pela ação
pedagógica; e já que somos, enquanto agentes sociais, elementos
objetivamente constitutivos da prática social é lícito concluir que a
própria prática se alterou qualitativamente.

Entende-se, a partir dessa reflexão, que na catarse verifica-se uma mudança


intelectual. Destarte, ela ocorrerá a partir do momento em que essa reconstrução mental
causar um novo posicionamento diante da prática social, revelado por uma leitura mais
crítica, ampla e sintética da realidade. Além disso, podemos inferir que:

Compreender a teoria e utilizá-la coerentemente com seus postulados


exige que o professor observe os resultados advindos de suas ações. É
importante que a proposta metodológica da pedagogia histórico-crítica
não seja incorporada como um receituário, desvencilhada de seus
43

fundamentos teóricos, pois seu embasamento, [...] visa a garantir aos


dominados aquilo que os dominantes dominam, de forma a contribuir
para a luta pela superação de sua condição de exploração
(MARSÍGLIA, 2011, p. 35).

Assim, diante do exposto é possível considerar que o maior contributo da


educação escolar à transformação social reside na formação de indivíduos capazes de,
por suas ações práticas, intencionalmente projetadas e por meio de sua organização
coletiva, modificar a realidade.

Conclusão

Para o diálogo com a pedagogia histórico-crítica, mais especificamente quanto


aos seus momentos pedagógicos, é importante ter em mente que essa teoria não pode ser
concebida como um receituário, desvencilhada de seus fundamentos teóricos. Cabe
considerar que não se trata de algo que possa ser tratado como um “pacote pedagógico”,
pois conforme sinalizam Martins (2011) e Marsíglia (2011) é uma teoria que possui
alicerces claros de sustentação. Caso tais pilares sejam distorcidos ou distanciados de
suas fundamentações, o método perde a sua validade científica.
Além disso, ao se apropriar dos momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-
Crítica, o professor necessita ter em mente que eles referem-se, inicialmente, a
momentos filosóficos amplos. Desse modo, a utilização de tais momentos no trabalho
educativo necessita de atenção para não reduzir tal abordagem teórica a procedimentos
vazios de sentido, ou seja, a conversão dos referidos momentos em procedimentos de
ensino que podem culminar numa leitura reducionista em relação às proposições
originais de Saviani.
Outro ponto importante diz respeito à inter-relação entre os momentos. A
metodologia da pedagogia histórico-crítica está dividida em momentos somente para
fins didáticos, pois cada momento contém outros momentos do método em sua
realização. Desse modo, o embasamento nos momentos pedagógicos da pedagogia
histórico-crítica poderá contribuir com a transformação social, tendo em vista que parte
processualmente da prática social sincrética e propõe, por meio da apropriação do
conhecimento sistematizado, a promoção da prática social transformada.
44

Referências


CURY, Carlos Roberto Jamil. Educação e contradição: elementos metodológicos para uma
teoria crítica do fenômeno educativo. São Paulo: Cortez, 2000.

ELKONIN, D. B. Sobre el problema de la periodización del desarrollo psíquico en la infancia.


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contribuições à luz da psicologia histórico cultural e da pedagogia histórico-crítica. 2011. Tese
de Livre-docência em Psicologia da Educação. Departamento de Psicologia da Faculdade de
Ciências da Universidade Estadual Paulista, campus de Bauru. 2011.

MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. Um quarto de século de construtivismo como discurso


pedagógico oficial na rede estadual de ensino paulista: análise de programas e documentos
da Secretaria de Estado da Educação no período de 1983 a 2008. 2011. Tese (Doutorado em
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PRESTES, Zoia. Quando não é quase a mesma coisa: traduções de Lev Semionovitch
Vigotski no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.

SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. 3. ed. Campinas-SP: Autores


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________. Escola e democracia. São Paulo: Cortez; Campinas: Autores Associados, 1984.

________. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas: Autores


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________. Perspectiva marxiana do problema subjetividade-intersubjetividade. In: DUARTE,


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________. O conceito dialético de mediação na pedagogia histórico-crítica em intermediacão


com a psicologia histórico-cultural. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v.
7, n. 1, p. 26-43, jun. 2015. Disponível
em: http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/viewFile/12463/9500.
Acesso em 10 de abr. 2016.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

CONTRIBUIÇÕES DA PERSPECTIVA HISTÓRICO-CULTURAL PARA O


ENSINO DA LEITURA EM CLASSES DE ALFABETIZAÇÃO

Fernanda Zanetti Becalli


Cleonara Maria Schwartz

Resumo: Este trabalho tem por objetivo analisar os pressupostos teóricos que balizaram o
modelo de ensino da leitura do PROFA. Neste texto, analisaremos a concepção de alfabetização
que orienta o programa de formação e, também, a concepção de leitura. Metodologicamente o
estudo se configura como uma análise documental, pautada pela perspectiva dialógica, e,
teoricamente se embasa na pedagogia histórico-crítica e no referencial bakhtiniano de
linguagem. Os documentos analisados permitiram observar a necessidade de um
redimensionamento das concepções de língua, de sujeitos e de interações que subjazem ao
processo de ensino aprendizagem e, também, uma proposta de trabalho com a leitura que seja
pensada de forma intencional, organizada e sistemática a partir da mediação qualificada do
professor alfabetizador para que se possam operar mudanças no ensino da leitura na escola.

Palavras-chave: Alfabetização; Leitura; Ensino da leitura.

Introdução

Esse trabalho tem por objetivo apresentar reflexões advindas de uma pesquisa
que se prendeu a analisar os pressupostos teóricos que balizaram o modelo de ensino da
leitura do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA), o qual foi
considerado, pela Secretaria de Educação Fundamental (SEF) do Ministério da
Educação e Cultura (MEC), adequado para orientar a prática dos professores, no que se
refere à organização do trabalho com a leitura nas classes de alfabetização.
Para compreender se os fundamentos teóricos que sustentaram essa abordagem
contribuíram para promover práticas de ensino da leitura consideradas pela produção de
conhecimento como favorecedoras da formação do leitor crítico, tomamos por base as
contribuições da pedagogia histórico-crítica e da perspectiva bakhtiniana de linguagem.
Considerando a abordagem metodológica de caráter qualitativo, adotamos a
pesquisa documental, pautada numa perspectiva dialógica do discurso, tendo em vista o
diálogo que tecemos com um conjunto de documentos que compõem uma das ações


46

políticas de formação de professores alfabetizadores da SEF/MEC e materializam


discursos sobre a leitura – o kit de materiais escritos do PROFA. Tais documentos
foram compreendidos como textos, isto é, unidades de significação, portanto, produtos
de criação ideológica, devendo ser entendidos em relação com o contexto histórico,
cultural, social, político, econômico, etc. em que foi produzido.
Tendo em vista o objetivo deste artigo, consideramos de extrema importância
uma reflexão sobre o próprio significado dos processos formativos de professores
alfabetizadores enquanto trabalho educativo, na sua relação com o processo mais amplo
de constituição e desenvolvimento histórico e social do sujeito.

1 Pontos de ancoragem

Tomando como pressuposto os fundamentos teóricos da pedagogia histórico-


crítica, que tem como principal representante o professor Dermeval Saviani,
compreendemos o trabalho educativo como “[...] o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”. (SAVIANI, 2008, p. 13).
Assim sendo, para que o homem se objetive como ser genérico, é necessária a
sua inserção na história da humanidade que, por sua vez, se realiza pelas apropriações
das objetivações resultantes das atividades das gerações precedentes, tendo em vista que
“[...] essa atividade humana objetivada passa a ser ela também objeto de apropriação
pelo homem, isto é, ele deve se apropriar daquilo que de humano ele criou”. Isso se
deve ao fato de que a sociedade com a qual o homem se relaciona, por mediação das
outras pessoas, já sofreu ação humana e é constituída pelo próprio homem numa
atividade real e concreta em que, ao transformar a realidade para satisfazer suas próprias
necessidades, modifica a si mesmo como parte dessa sociedade e também ao outro,
portanto, é nessa dinâmica histórica, social e cultural que os homens se constituem
mutuamente. (DUARTE, 1999, p. 31-32).
Como se pode compreender, o fato de o gênero humano ser externo ao indivíduo
confere a ele a necessidade de apropriação do desenvolvimento histórico da sociedade
humana para que possa objetivar sua própria existência como membro de um grupo
sociocultural específico, isto é, sua formação humana se realiza por meio do processo de
apropriação e objetivação que caracteriza a atividade vital humana e se efetiva pela
produção de instrumentos, pela linguagem e pelas relações entre os homens. É nesse
47

sentido que Duarte (1999, p. 36-37) esclarece que “[...] a análise da relação entre
objetivação e apropriação, enquanto dinâmica própria da atividade vital humana e
geradora do processo histórico, não pode ser reduzida ao processo de produção e
utilização de instrumentos, de objetos”.
Esse processo de caráter ativo que se produz na dinamicidade das práticas
sociais, como atividade real dos homens, capaz de proporcionar a conversão das funções
que foram construídas no plano social (interpsíquico) para o plano individual
(intrapsíquico) foi denominado por Vigotski de internalização. Para esse autor, toda
função aparece em cena duas vezes, em dois planos: “[...] primeiro no plano social e
depois no psicológico, no princípio entre os homens como categoria interpsíquica e logo
no interior da criança como categoria intrapsíquica”. (VIGOTSKI, 2000, p. 150,
tradução nossa).
Desse modo, dizer que toda função aparece primeiro como função interpsíquica,
equivale a dizer que ela foi, inicialmente, social, uma vez que se formou com base nas
relações interpessoais, para depois aparecer como função intrapsíquica, ou seja,
interiorizada no indivíduo. No entanto, conforme ressaltam Pino (1992) e Gontijo
(2003), o termo internalização tem produzido polêmicas entre os autores da perspectiva
histórico-cultural sobre a sua inadequação, devido à corrente filosófica em Marx que
fundamenta os estudos de Vigotski. Assim, concordamos que o termo apropriação,
utilizado por Leontiev (1978), para designar a conversão das funções que são
constituídas na atividade social em atividade individual, seja mais coerente.
Segundo Leontiev (1978, p. 268), para o homem se apropriar das funções que
são constituídas no plano social, ou seja, “[...] dos objetos ou dos fenômenos que são o
produto do seu desenvolvimento, é necessário desenvolver em relação a eles uma
atividade que reproduza pela sua forma, os traços essenciais da atividade encarnada,
acumulada no objeto”.
A reprodução dos traços essenciais da atividade humana acumulada não
pressupõe, nessa perspectiva, a repetição das características da espécie (raça, sexo) nem
a adequação natural e imediata do indivíduo às exigências do meio, mas a apropriação
do significado de um produto da história humana que não é transmitido pela
hereditariedade, isso porque “[...] o processo de apropriação é aquele no qual o
indivíduo se apropria das características do gênero e não da espécie”. (DUARTE, 1999,
p. 42).
48

Assim, pensar nos processos de formação continuada de professores


alfabetizadores, tomando como fundamento a perspectiva histórico-cultural, pressupõe
compreendê-los como trabalho educativo. Isso significa dizer que são processos
deliberados, sistematizados e intencionais que possibilitam apropriações, pelos
docentes, dos conhecimentos acumulados ao longo do processo histórico social de
desenvolvimento do gênero humano, particularmente, dos conhecimentos científicos e
das formas artísticas de apreender a realidade.
Nessa perspectiva, cabe aos processos formativos propiciar a apropriação das
objetivações para-si, isto é, daquelas que são constituídas “[...] pela ciência, pela arte,
pela filosofia, pela moral e pela política”, pois são essas apropriações que conduzirão os
professores a alcançarem o não cotidiano e retornarem ao cotidiano, refletindo filosófica
e criticamente sobre a sua própria condição e a de seus alunos, enquanto seres
particulares e genéricos, nas relações sociais e históricas que envolvem a prática
educativa escolar e sobre as possibilidades oferecidas por essa condição existente para
promover conscientemente as transformações sociais. (DUARTE, 1999, p. 33).
Especificamente, ao se tratar da formação continuada de professores
alfabetizadores, compreendemos que os processos formativos devem promover estudos
sobre as teorias e os métodos que vêm, historicamente, fundamentando as práticas de
ensino da linguagem escrita que se efetivam nas classes de alfabetização. Ao possibilitar
que os professores se apropriem de teorizações sobre como as crianças se apropriam da
linguagem escrita, sobre o processo de produção de textos orais e escritos, sobre a
leitura e sobre o complexo funcionamento do sistema de escrita da língua portuguesa
(incluindo as relações entre sons e letras e letras e sons), os processos formativos
estarão permitindo que o professor alfabetizador tenha condições de refletir e atuar
sobre esses conhecimentos científicos. Nesse sentido, o professor terá a possibilidade de
oferecer as palavras dos autores as suas contra-palavras e, numa relação dialógica,
produzir novos sentidos a partir dos já existentes para os processos de formação pelos
quais se submete, para a sua prática educativa escolar e de se constituir como o sujeito
principal de sua formação, na medida em que for autônomo para tomar sua própria
prática como objeto de reflexão crítica.
É por essa razão que, alicerçados na perspectiva histórico-cultural, não
coadunamos com a compreensão da formação continuada de professores alfabetizadores
enquanto “[...] processos de socialização de experiências e de construção de
conhecimentos pelos professores nos contextos de formação” (MAZZEU, 2007, p.14),
49

pois nesse tipo de processo formativo os docentes têm a possibilidade de se apropriarem


apenas de objetivações do gênero em-si, que formam a base dos âmbitos cotidianos da
atividade social e são constituídos “[...] pelos objetos, pela linguagem, pelos usos e
costumes”. (DUARTE, 1999, p. 33).
É necessário esclarecer que não é o fato de os professores alfabetizadores se
apropriarem de objetivações do gênero em-si que os tornam alienados da humanidade,
mas sim o fato de se submeterem a processos formativos que atendem aos interesses da
sociedade capitalista contemporânea de formar professores para agirem somente em
nível da sua existência particular e não ultrapassarem as finalidades de satisfação das
necessidades imediatas impostas pelo cotidiano da sala de aula, pois a alienação decorre
de um “[...] processo onde as relações sociais cerceiam ou impedem que a vida dos
indivíduos realize as possibilidades de vida humana” (DUARTE, 1999, p. 61).
Essas reflexões nos instigam a assumir que para o professor, na sua prática
educativa escolar, conseguir que os alunos se apropriem dos conhecimentos acumulados
historicamente pela humanidade, de modo a se tornarem autônomos e críticos,
conhecedores da realidade concreta que determina sua existência na sociedade
capitalista, bem como das possibilidades de transformação consciente dessa realidade,
precisa participar de processos formativos que possibilitem a apropriação da cultura
humana e, ainda, dominar o saber acumulado no que tange ao conteúdo escolar e às
formas de organização do trabalho educativo, dos métodos de ensino e dos processos
que tornam possível a socialização e a apropriação desse saber objetivo.
É importante observar que, nessa perspectiva, a prática educativa escolar não se
identifica com a prática cotidiana de cada professor, isto é, a primeira não é sinônimo de
dia-a-dia, daquilo que ocorre diariamente na sala de aula para satisfazer as necessidades
particulares dos indivíduos, nem das atividades cotidianas “[...] diretamente voltadas
para a reprodução do indivíduo, através da qual, indiretamente, contribuem para a
reprodução da sociedade” (HELLER, apud DUARTE, 1993, p. 71), porque estamos
conferindo à prática educativa escolar o papel de formar o sujeito para esferas não
cotidianas da realidade, aquelas que são “[...] diretamente voltadas para a reprodução da
sociedade, ainda que indiretamente contribuam para a reprodução do indivíduo”
(HELLER, apud DUARTE, 1993, p. 71) e, assim, podem contribuir para o processo
mais amplo de transformação das relações sociais. Isso nos leva a afirmar que a prática
educativa escolar tem como eixo o papel mediador entre o cotidiano (as objetivações do
50

gênero em-si) e o não cotidiano (as objetivações do gênero para-si), no desenvolvimento


do indivíduo.
Sabemos, porém, que a prática cotidiana do professor é comumente guiada pelo
senso comum pedagógico. Na verdade, a expressão “senso comum pedagógico” é
conhecida de todos os docentes. Entretanto, qual é o seu significado? Conforme afirma
Saviani (2007), o senso comum se constitui de elementos fragmentários, incoerentes,
desarticulados, implícitos, degradados, mecânicos, passivos e simplistas.
A partir dessa definição, compreendemos que o senso comum pedagógico se
constitui de fragmentos de teorias que são acolhidos pelos professores sem uma reflexão
crítica e consciente. Entendemos, ainda, que o senso comum pedagógico cria nos
professores a ilusão de domínio das teorias, o que os leva a abdicar de estudos e
reflexões filosóficas acerca das teorias e dos métodos que historicamente vem sendo
usados nas escolas e a requerer modelos prontos e acabados de atividades para serem
utilizados mecanicamente nas salas de aula. Essa ilusão impede-os de perceber a
necessidade de romper com essa relação direta e imediata entre pensamento e ação
próprios do cotidiano. Por tais razões, o conceito que vem sustentando a nossa
compreensão de prática educativa escolar é o de práxis como

[...] atividade concreta pela qual os sujeitos humanos se afirmam no


mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la,
transformando-se a si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de
maneira mais consequente, precisa da reflexão, do
autoquestionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que
enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os
com a prática. (KONDER, 1992, p. 115).

Considerando que a práxis compreende tanto a atividade objetiva pela qual o ser
humano se relaciona com o mundo natural e social, por meio dos instrumentos,
transformando-o em um mundo humano, quanto à atividade intersubjetiva que
possibilita aos homens transformarem a si mesmos e aos outros, ou seja, se constituírem
como seres genéricos, cabe entender que não existe uma oposição, nem uma separação
rígida entre a atividade teórica e a atividade prática.
Desse modo, estamos afirmando que a prática educativa escolar, como práxis,
abarca tanto a atividade teórica quanto a atividade prática, porque não existe a menor
possibilidade de realizarmos uma classificação das atividades humanas em atividades
teóricas, de um lado, e atividades práticas, de outro.
51

2 Pressupostos teóricos do ensino da leitura no PROFA

A análise dos discursos materializados no “Documento de Apresentação”, no


Guia do Formador (Módulos 1, 2 e 3) e na Coletânea de Textos (Módulos 1, 2 e 3)
sobre os pressupostos teóricos que sustentaram o modelo de ensino da leitura difundido
pelo PROFA, permite-nos confirmar que a proposta do programa se assenta em
pressupostos construtivistas.
Essa enunciação torna clara a predileção do discurso político-educacional do
PROFA por um dos principais trabalhos de Ferreiro e Teberosky (1999), tido como uma
“revolução conceitual” no campo da alfabetização. Tal é o caso do livro Los sistemas de
escritura en el desarollo del niño que, na Língua Portuguesa, foi publicado em 1985,
sob o título de Psicogênese da língua escrita.
O referido trabalho de Ferreiro e Teberosky (1999) foi apresentado aos
professores alfabetizadores no Documento de Apresentação (2001a), especificamente,
no texto O direito de se alfabetizar na escola. Esse texto justifica a implementação do
PROFA no cenário educacional brasileiro, apresentando, em breves parágrafos
generalistas, o surgimento do modelo escolar de alfabetização na França (1 §); a
discussão acerca da ineficiência dos métodos de alfabetização, particularmente, o
método global e o fonético, nos países da Europa, da América do Norte e do Sul,
durante a primeira metade do século XX (1 §); a discussão em torno do fracasso escolar
em alfabetização das crianças negras nos Estados Unidos, na década de 1960 (1 §); as
teorias do déficit justificando a incapacidade das famílias das crianças mais pobres em
proporcionar os estímulos adequados para a aprendizagem da leitura e da escrita (1 §); a
propagação dos Testes ABC de Lourenço Filho no Brasil, nos anos de 1970 (1 §); e,
acima de todas essas discussões, apresenta o construtivismo de Ferreiro e Teberosky (1
§), como o que se tem de mais “novo” e avançado para provocar “novas” práticas na
alfabetização de crianças. De acordo com o discurso da SEF/MEC, um

[...] trabalho de investigação que desencadeou intensas mudanças na


maneira de os educadores brasileiros compreenderem a alfabetização
foi o coordenado por Emilia Ferreiro e Ana Teberosky, publicado no
Brasil com o título Psicogênese da língua escrita, em 1985. A partir
dessa investigação, foi necessário rever as concepções nas quais se
apoiava a alfabetização. E isso tem demandado uma transformação
radical nas práticas de ensino da leitura e da escrita no início da
escolarização, ou seja, na didática da alfabetização. Já não é mais
possível conceber a escrita exclusivamente como um código de
52

transcrição gráfica de sons, já não é mais possível desconsiderar os


saberes que as crianças constroem antes de aprender formalmente a
ler, já não é mais possível fechar os olhos para as conseqüências
provocadas pela diferença de oportunidades que marca as crianças de
diferentes classes sociais. Portanto, já não se pode mais ensinar como
antes. (BRASIL/PROFA, 2001a, p. 8).

Como podemos perceber, o modelo de ensino da leitura preconizado pelo


PROFA contrapõe-se à abordagem associacionista de aprendizagem, em que se discutia
qual era o método apropriado para o ensino da leitura e ensinava-se o processo de
decodificação do código lingüístico, que permitia aos alunos captar o significante e
entender o significado instaurado no texto pelo autor; e considera como “adequado” o
modelo de ensino da leitura que se fundamenta nos discursos construtivistas.
Apesar de a equipe pedagógica do programa se fundamentar no construtivismo
para propor um modelo de ensino da leitura para as classes de alfabetização, os
pressupostos filosóficos e epistemológicos da teoria de Piaget não são discutidos nos
materiais escritos e videográficos do PROFA. È possível, todavia, visualizar, de modo
implícito, os discursos da concepção construtivista interacionista piagetiana sobre o
papel do ensino escolar, por exemplo, no seguinte enunciado do PROFA: “Potencializar
progressivamente a autonomia dos alunos na definição de objetivos, no planejamento
das ações que os conduzirão a eles e em sua realização e controle, possibilitando que
aprendam a aprender”. (BRASIL/PROFA, 2002, p. 111, grifo do autor).
Trata-se, nitidamente, do lema “aprender a aprender”, postulado pelo próprio
Piaget: “O ideal da educação [...] é antes de tudo aprender a aprender [...]”.No entanto, a
perspectiva dialógica da qual partimos nos instiga a questionar: por que, diante da
proposta de um modelo de ensino da leitura que se afirma construtivista interacionista
de base piagetiana, os discursos materializados nos textos do PROFA não apontam e
nem discutem, ao menos, a categoria basilar piagetiana – o interacionismo? Quais são
os discursos que subjazem à origem desse conceito e que foram abafados? Ao defender
uma proposta construtivista interacionista, o PROFA não estaria, mesmo
implicitamente, apontando uma secundarização do trabalho de ensino na instituição
escolar? (PIAGET, 1983, p. 225, grifo do autor).
Quando Piaget trata da questão do interacionismo, ele está se referindo a uma
categoria de análise fundamentalmente biológica e naturalizante das relações
estabelecidas entre sujeito e objeto. Dessa forma, a base epistemológica da interação nos
permite entender que as relações efetivadas entre sujeito e objeto ocorrem da mesma
53

maneira durante todo o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, possibilitando o


alcance de níveis conceituais diferentes caracterizados por etapas que necessariamente
evoluem das mais elementares às mais complexas.
Pelo fato de assentar-se nos aspectos biológicos e maturacionais do
desenvolvimento psicológico do indivíduo, o referido autor compreende que o
conhecimento não é construído nem pelo sujeito nem pelo objeto, mas nas “[...]
interações entre sujeito e objeto, e de interações inicialmente provocadas pelas
atividades espontâneas do organismo tanto quanto pelos estímulos externos”. (PIAGET,
1973, p. 40).
O conhecimento, portanto, se desenvolve num processo espontâneo de auto-
regulação, em que o indivíduo se apropria progressivamente das características próprias
do objeto, de tal modo que a assimilação deste às estruturas daquele está
intrinsecamente relacionada com a acomodação das estruturas do indivíduo às
propriedades do objeto, sendo ambos resultados de um processo permanente de
construção, pois “[...] a relação entre o sujeito e o objeto material modifica o sujeito e o
objeto ao mesmo tempo pela assimilação deste àquele, e pela acomodação do sujeito ao
objeto”. (PIAGET, 1973a, p. 35).
Pelo fato de os mecanismos de interação serem determinados fundamentalmente
pelos fatores orgânicos do indivíduo, que são tidos como de caráter universal, eles
independem do contexto sócio-histórico e cultural em que o sujeito está inserido e,
assim, naturaliza as relações entre os indivíduos e a sociedade.
Duarte (2004, p. 114) afirma que essa naturalização se constitui num processo
ideológico que, estrategicamente, vem sendo utilizado no campo educacional com a
finalidade de propagar “[...] que a formação dos seres humanos é um processo também
espontâneo e natural, cabendo à escola apenas a tarefa de fornecer às condições para
que se estabeleçam os mais variados tipos de interação”. Assim, o PROFA enuncia que,

[...] na boa lógica construtivista, parece mais adequado pensar numa


organização [do ensino da leitura] que favoreça as interações em
diferentes níveis: em relação ao grupo-classe, quando de uma
exposição; em relação aos grupos de alunos, quando a tarefa o
requeira ou o permita; interações individuais, que permitam ajudar os
alunos de forma mais específica; etc. (BRASIL/PROFA, 2002, p.
109).

Assim sendo, podemos inferir que o PROFA, ao referendar o construtivismo


interacionista piagetiano como princípio constitutivo do seu modelo de ensino da
54

leitura, assumiu a interação como o núcleo organizador da proposta de trabalho com o


ensino da leitura nas classes de alfabetização. Para se manter coerente com os
pressupostos da abordagem construtivista, o modelo de ensino da leitura precisa ser
naturalizado, já que transforma o conhecimento em uma construção do sujeito como ser
individual e nega a existência de um conhecimento universal e objetivo. Partindo desse
princípio, a SEF/MEC enuncia que é “[...] interagindo com textos reais, mesmo que não
se saiba ler convencionalmente, que se aprende a ler diferentes tipos de texto e sua
respectiva linguagem”. (BRASIL/PROFA, 2001b, p. 216).
Dessa maneira, o modelo de ensino da leitura prioriza a interação das crianças
com o objeto de conhecimento (no caso, o texto), pois se acredita que elas “[...]
aprendem a ler através da leitura” (BRASIL/PROFA, M1U9T13, 2001c, p. 1) e que a

[...] simples prática dará [...] a oportunidade de adquirir insights, de


gerar idéias e testar hipóteses sobre leitura enquanto permanecem
livres para selecionar e controlar aquilo que elas têm mais
probabilidade de aprender sempre que fizer um maior sentido para
elas. (BRASIL/PROFA, M1U9T13, 2001c, p. 7, grifo do autor).

Nesse cenário, cabe ressaltar que também consideramos importante a relação dos
alunos com diferentes textos no trabalho com a leitura nas classes de alfabetização. A
mediação, por parte do professor, entretanto, no processo de ensino aprendizagem da
leitura é fundamental, uma vez que as crianças não se apropriam de características
específicas do sistema de escrita, necessárias para a aprendizagem da leitura, sem a
mediação do outro e tampouco de modo espontâneo.
Partimos do princípio de que, para a criança, na fase inicial de alfabetização,
aprender a ler, faz-se necessário que o professor realize um trabalho de ensino que lhe
possibilite se apropriar da linguagem escrita e se relacionar com ela nas suas diversas
formas de existência na sociedade, de maneira crítica.
Não estamos querendo dizer que a escola deva primeiro ensinar a escrever e só
depois ensinar a ler, pois reconhecemos a alfabetização como “[...] uma prática social
em que se desenvolve a formação da consciência crítica, as capacidades de produção de
textos orais e escritos, de leitura e de compreensão das relações entre sons e letras”. Isso
significa dizer que o ensino da leitura, na alfabetização, deve se efetuar de forma
integrada, articulando aprendizagem da linguagem escrita com a inserção do indivíduo
em práticas de leitura e de produção de texto. (GONTIJO, 2006, p. 8).
Nessa perspectiva, o ensino da leitura deve ser encarado como uma atividade
55

sistematizada em que o professor se coloque como o mediador entre as crianças e a


linguagem escrita. Assim, cabe ao professor ensinar a criança a ler a partir de diferentes
gêneros textuais que circulam na sociedade e, nesse processo de ensino, além das
características do sistema de escrita e do seu funcionamento, ele também deve ensiná-
las a comparar informações de mais de um texto e relacioná-las com suas vivências, a
indagar os textos, a compreender o que está explícito e também o que está subentendido
no texto, a construir inferências, a antecipar conteúdos, a identificar informações, a
reconstruir as idéias do texto, a compreender as funções dos textos bem como as
situações em que são usados pelos sujeitos e com que intenções, a fim de que as
crianças aprendam a apresentar suas contrapalavras ao texto.
Contudo, os discursos do PROFA legitimam que a interação do aluno, em fase
de alfabetização, com o texto proporciona, por si só, a aprendizagem da leitura. Isso se
justifica pela crença de que o ensino deve levar os alunos a atuarem “[...] de forma
autônoma não apenas na compreensão, no domínio ou na interiorização dos conteúdos,
procedimentais ou atitudinais, como também na definição de objetivos, no planejamento
das ações que lhe permitam alcançá-los e em sua realização e controle”.
(BRASIL/PROFA, 2002, p. 119).
Ao enfatizar que as aprendizagens que o indivíduo realiza sozinho são
qualitativamente superiores e mais desejáveis àquelas que ele realiza pela transmissão
de conteúdos por outrem, podemos afirmar que o modelo construtivista interacionista de
ensino da leitura defendido pelo PROFA assume uma concepção negativa sobre o ato
de ensinar, pois dicotomiza a conquista da autonomia intelectual pelo aluno e a
transmissão de conhecimentos pelo professor. Para Duarte (2004, p. 34-35), tal
predileção é justificada sob o argumento de que a aprendizagem que o indivíduo realiza
por si mesmo “[...] seria algo que contribuiria para o aumento da autonomia do
indivíduo, ao passo que aprender algo como resultado de um processo de transmissão
por outra pessoa seria algo que não produziria autonomia […]”.
Segundo Facci (2004, p. 127), temos assistido, com a perspectiva construtivista,
a uma descaracterização do papel do ensino escolar e também do professor como
mediador no processo de ensino aprendizagem. Nesse sentido, a autora atesta:

Como o aluno pode apropriar-se da produção humana? Ele vai ter que
‘recriar’ o mundo? E, também, como poderá humanizar-se? [...] o
processo de humanização se dá por meio da apropriação das
objetivações humanas, entretanto, como se apropriar dessas
objetivações, se o que interessa não é o conteúdo, mas sim a forma de
56

aprender, como propõe o construtivismo? Além disso, se não nos


apropriarmos da produção histórica da humanidade, como poderemos
provocar mudanças nessa situação de opressão em que vivemos? Ou
devemos, usando uma terminologia da escola piagetiana, nos
‘adaptar’ à realidade?

Os questionamentos de Facci (2004) reforçam, em muito, que a abordagem


construtivista se coaduna com uma política educacional excludente que está a serviço
dos interesses da classe dominante, tendo em vista que vem promovendo um
esvaziamento do trabalho de ensino do professor. Entretanto, pensar o ensino da leitura
numa perspectiva dialógica de linguagem significa compreender o professor como o elo
mediador no processo de ensino aprendizagem da leitura, uma vez que ele deve
organizar intencional e sistematicamente um trabalho que possibilite as crianças se
apropriarem da linguagem escrita e compreenderem o seu funcionamento.
A apropriação da linguagem escrita, nessa abordagem, envolve um processo de
ensino aprendizagem que permite aos indivíduos reconhecerem a linguagem como
produto da interação entre sujeitos, que se atualiza na enunciação dialógica, num
contexto de produção concreto, contraditório e de natureza sócio-histórica ideológica.
Assim, a leitura se coloca como uma prática social que promove a interação entre os
sujeitos que, com alguma finalidade, dialogam com outros sujeitos por meio dos textos
que circulam na sociedade. Portanto, a atividade da leitura exige dos sujeitos o exercício
do diálogo, ou seja, da produção de sentidos e, para que as crianças aprendam a dialogar
com o texto, faz-se necessário que o ensino da leitura se efetive em um contexto em que
o professor alfabetizador assuma o papel de ensinar as crianças a se relacionar com os
escritos de forma a construírem diálogos com diferentes gêneros textuais.
Tomando o aluno como um sujeito ativo que aprende a ler a partir da interação
com o texto, sem necessitar da mediação do professor no processo ensino aprendizagem
da leitura, o PROFA afirma que, para esse aluno ler textos, quando ainda não se sabe ler
convencionalmente, é preciso “[...] utilizar simultaneamente estratégias de leitura que
implicam decodificação, seleção, antecipação, inferência e verificação”
(BRASIL/PROFA, 2001a, p. 17) e que não cabe ao professor alfabetizador “[...] ensinar
aos alunos as estratégias de leitura [porque eles] aprenderão essas estratégias e farão uso
delas à medida que interagirem com a leitura [...]”. (BRASIL/PROFA, 2001b, p. 17).
Nessas enunciações, é possível depreender que o programa em pauta
compreende a leitura como uma simples atividade de construção de significado e, desse
modo, ela não precisa ser ensinada na escola, porque as crianças desenvolvem a
57

capacidade de compreender textos mobilizando as estratégias necessárias, de forma


natural e espontânea, numa relação direta com o objeto de conhecimento.
De modo inverso, compreendemos que essas estratégias também precisam ser
ensinadas pelo professor no processo de ensino aprendizagem da leitura, porque, sendo
o texto uma unidade altamente complexa de significação, o simples contato da criança,
em fase de alfabetização, com esse material não permite que ela decodifique o código
escrito, compare as informações de mais de um texto, indague o texto, entenda o que
está explícito e o que está subentendido no texto, construa inferências, antecipe
conteúdos, reconstrua as idéias do texto e as relacione com o vivido.
Em função disso, tais estratégias precisam ser ensinadas em situações
contextualizadas que permitam ao aluno-leitor oferecer ao texto as suas contra-palavras,
porque são as palavras que carregamos que multiplicam as possibilidades de
compreensão do que está explícito e do que está subentendido no texto e a partir das
relações dialógicas estabelecidas entre autor-texto-leitor aquelas se constituem em
novas contrapalavras num processo contínuo de produção de sentidos.
Como pôde ser visto, o caráter pretensamente “novo” do construtivismo, que foi
apresentado pelo PROFA “[...] como o único caminho para pensar-se a educação de
uma forma que considerasse o aluno e sua atividade mental” (DUARTE, 2004, p. 59),
acaba mostrando sua face conservadora que raramente é problematizada.

Considerações finais

Ao analisar os materiais escritos e videográficos do PROFA, pudemos


compreender que o modelo de ensino da leitura proposto pelo Governo Federal como
adequado para o trabalho com a leitura nas classes de alfabetização se assenta no
construtivismo interacionista. Essa abordagem enfatiza a dimensão psicolinguística da
aprendizagem da leitura e preconiza que o aluno é um sujeito ativo que aprende a ler a
partir da interação com os diferentes materiais escritos que circulam na sociedade.
Assim, o PROFA preconiza a necessidade de os professores propiciarem às
crianças a leitura de diferentes gêneros textuais desde o início do processo de
alfabetização, porém secundariza o papel do professor como mediador do processo de
ensino aprendizagem da leitura. Nesse caso, vale destacar, a partir das reflexões de
Geraldi (1997), que não basta a entrada do texto na sala de aula, faz-se necessário
também um redimensionamento da concepção de língua, de sujeito e de interação que
58

estão subjacentes ao trabalho educativo do professor para que se possam operar


mudanças no ensino da língua materna na escola.
No entanto, pelo fato de os processos de interação da criança com o objeto
estarem balizados no construtivismo que os entende como processos determinados
fundamentalmente pelos fatores orgânicos, cuja natureza é universal e independe do
contexto sócio-histórico e cultural em que o sujeito está inserido, o PROFA postula que
o simples contato da criança com a linguagem escrita, numa relação direta, natural e
espontânea, possibilita, por si só, a aprendizagem da leitura.
Desse modo, podemos inferir que a concepção de leitura e de texto que respalda
o PROFA prejudica a formação da consciência crítica das crianças e, em decorrência,
não contribui para a formação de leitores que se relacionem criticamente com a
linguagem escrita nas suas diferentes formas de existência na sociedade. Para tal,
acreditamos que o trabalho com a leitura, nas classes de alfabetização, deve se
desenvolver mediante uma organização intencional e sistematizada por parte do
professor, de forma que possibilite aos alunos compreender a leitura como uma
atividade discursiva que se realiza numa relação essencialmente dialógica entre sujeitos
por meio do texto e que considere o texto como o lugar da interação de sujeitos e,
portanto, das muitas vozes que atravessam o texto com as implicações de cada uma
dessas vozes no momento da leitura.
Assim, se pretendemos formar leitores críticos, é fundamental repensar a
formação do professor alfabetizador a partir de uma perspectiva dialógica de linguagem
que compreenda a leitura como uma prática social que possibilita aos sujeitos
dialogarem com outros sujeitos por meio do texto e produzirem sentidos determinados
ideologicamente para o que leem, assumindo uma posição responsiva de oferecimento
de contra-palavras diante dos textos. Também se faz necessária a adoção de uma
política pública de alfabetização que invista numa abordagem de ensino da leitura que
se sustente na concepção de leitura já citada que, por sua vez, considera os alunos como
sujeitos sócio-históricos que, ao dialogarem com os textos, produzem discursos e se
constituem como sujeitos de seus próprios discursos.

Referências

BRASIL. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores: Documento de


Apresentação. Brasília: MEC/SEF, 2001a.
59

______. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores: Guia do Formador, Módulo


1: MEC/SEF, 2001b.

______. Programa de Formação de Professores Alfabetizadores: Guia do Formador, Módulo


2: MEC/SEF, 2002.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

REFLEXÕES SOBRE A EDUCAÇÃO COMO “UMA ATIVIDADE


MEDIADORA NO SEIO DA PRÁTICA SOCIAL GLOBAL”


César Augusto Rodrigues (UNIMEP)1

Resumo: O artigo parte do pressuposto da dependência ontológica da dimensão educativa em


relação à dimensão do trabalho e, em seguida, problematiza a contradição da escolarização na
sociedade burguesa que se dá entre a universalização plena dos conteúdos escolares e as
relações de produção capitalistas, isto é, de um lado, como meio de reprodução da ordem social
e da visão de mundo burguesa e, de outro, como instituição que universaliza a socialização do
conhecimento sistematizado para a classe trabalhadora. Assim, pretende-se refletir sobre a
atividade mediadora da educação no seio da prática social global, conforme defende Dermeval
Saviani, como papel efetivo da escola e como parte da luta dos trabalhadores na educação
escolar, que só se concretiza com a socialização dos conteúdos escolares de interesse da classe
trabalhadora.

Palavras-chave: Educação escolar; atividade; mediação; Pedagogia histórico-crítica.


Introdução

O presente artigo tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre um dos
fundamentos cruciais da Pedagogia histórico-crítica: a educação como “uma atividade
mediadora no seio da prática social global”. Entendemos que educação escolar é por
excelência socialização do conhecimento. No entanto, qual o significado dessa
socialização? (SAVIANI, 1996, p. 131).
Para responder a essa questão, veremos, no primeiro momento, o caráter da
dependência ontológica da educação em relação ao trabalho e, em seguida, a forma
como ocorre a cisão na unidade entre trabalho e educação a partir do surgimento e
desenvolvimento das sociedades divididas em classes e suas contradições decorrentes.
Partindo do pressuposto de que as relações sociais que compõem a prática social
sob a ordem da sociedade capitalista estão permeadas por interesses de classes, o artigo

1
Doutorando em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, São Paulo, Brasil. E-mail:
augrogues@gmail.com


61

busca pôr em evidência a contradição que ocorre a partir do advento da sociedade


burguesa: a escolarização projeta-se como instituição socialmente dominante de
educação que, ao mesmo tempo em que se torna meio de reprodução da ordem social e
da visão de mundo burguesa de produção social e apropriação privada da riqueza
material, contraditoriamente se projeta como instituição que universaliza a socialização
do conhecimento sistematizado que antes só estava disponível entre a classe dominante.
O acesso ao saber em suas formas mais desenvolvidas, entretanto, não é plenamente
garantido de forma democrática nessa sociedade.
Assim, analisamos as categorias de atividade, mediação e educação como
fundamentos para a educação escolar, defendendo como sua ação política a socialização
do conhecimento, isto é, socialização do saber sistematizado, erudito, científico.
Embora consideremos que nessa sociedade não haja possibilidade ontológica de garantir
que o resultado esperado da atividade educativa se cumpra integralmente, consideramos
que a ação no campo da educação é parte da luta de classes. Isso significa que a luta dos
trabalhadores na educação escolar é pela efetivação do papel da escola, que só se
concretiza com a socialização dos conteúdos escolares de interesse da classe
trabalhadora, que não são outros senão os conhecimentos mais desenvolvidos
historicamente pela humanidade. (SAVIANI; DUARTE, 2012a).

1 Algumas considerações sobre a atividade educativa e seus pressupostos


ontológicos

A dimensão educativa, do ponto de vista ontológico, põe-se na dependência da


dimensão do trabalho, ou seja, como atividade que surge a partir da atividade
fundamental do trabalho. Nesse sentido, há uma identidade entre educação e trabalho
que é fundamental no processo de desenvolvimento das forças produtivas, conforme a
conhecida formulação marxiana de que os indivíduos, a partir de uma necessidade
concreta, ao produzirem seus meios de vida, produzem a si mesmos, o que indica que os
homens precisam aprender a produzir os seus meios de existência, num processo de
inter-relação entre forças produtivas e consciência humana. Em relação articulada, a
atividade forma a consciência que se desenvolve e regula a atividade. É um processo
que demanda a mediação da atividade educativa, atividade que está imbricada com o
trabalho, não necessariamente de maneira direta, mantendo-se em relativa autonomia no
processo.
62

Isso estava posto integralmente nas comunidades primitivas. Conforme Saviani


(2007, p. 154), os indivíduos “[...] aprendiam a trabalhar trabalhando [...]. Os homens
apropriavam-se coletivamente dos meios de produção da existência e nesse processo
educavam-se e educavam as novas gerações”.
Com o surgimento e desenvolvimento das sociedades divididas em classes, essa
condição se altera. Segundo Saviani (2007, p. 155), “[...] introduz-se, assim, uma cisão
na unidade da educação, antes identificada plenamente com o próprio processo de
trabalho”, e que irá se consumar nas formas de trabalho escravista e feudal. O resultado
desta separação entre trabalho e educação foi a separação entre trabalho manual e
trabalho intelectual, processada ao longo da história. A escola durante as sociedades
antiga e feudal era uma instituição destinada

[...] para a classe que não se dedicava à atividade de produção das


condições materiais de existência social. Mas a educação escolar nas
sociedades antiga e feudal não se constitui em uma atividade da qual
dependa a produção e reprodução material dos seres humanos
(DUARTE, 2012a, p. 42).

Não trataremos pormenorizadamente da questão histórica da educação escolar,


mas é preciso que levemos em consideração que ela se reestrutura com o advento da
sociedade burguesa, na modernidade, erigindo a escola como

[...] grande instrumento para converter os súditos em cidadãos [...]. A


escola surge como antídoto à ignorância, logo, um instrumento para
equacionar o problema da marginalidade. Seu papel é difundir a
instrução, transmitir os conhecimentos acumulados pela humanidade e
sistematizados logicamente. (SAVIANI, 2009b, p. 5-6).

Esse fato é significativo para sinalizar aquilo que consideramos ser o


fundamento da educação escolar, isto é, um instrumento de socialização do
conhecimento. A burguesia da época, enquanto revolucionária, precisou da escola para
atingir seus objetivos revolucionários de consolidação da sociedade liberal.
É com o advento da sociedade capitalista que, segundo Duarte (2012, p. 43),
ocorre a implicação de “[...] profundas alterações nas relações entre produção material,
produção do saber e apropriação do saber. Isso teve como consequência que a educação
escolar tenha passado à condição de forma socialmente dominante de educação”.
Em síntese, de acordo com Saviani (2007) e Duarte (2012a), a característica
principal dessa nova forma de escola na sociedade burguesa é a organização sistemática
63

e deliberada da educação, como exigência da própria sociabilidade burguesa. Portanto,


não é a educação em si, mas a forma de organizá-la que se caracteriza a essência de sua
institucionalização na sociedade burguesa. Porém, conforme Duarte (2012a), apesar de
todas as contradições que disso tenham decorrido, a escolarização surgida na sociedade
capitalista se caracteriza como um avanço para a classe trabalhadora. Ela agora está
incluída no processo de universalização da educação, embora haja o conflito entre a
universalização plena e as relações de produção capitalistas, pois

Se, por um lado, o capitalismo inaugura a era onde a educação escolar


passa a ser a forma dominante de formação dos seres humanos, ao
mesmo tempo isso se dá num processo histórico concreto onde as
relações sociais de dominação não permitem a plena democratização
do acesso ao saber produzido pela humanidade. (DUARTE, 2012a, p.
44).

Desse modo, como o resgate da essência ontológica do trabalho exige a


superação do capital, por dependência, o mesmo deve ocorrer para o pleno resgate da
essência ontológica da educação. Os meios de produção tiveram um enorme
desenvolvimento a partir do capitalismo, mas ao mesmo tempo em que ocorreu a
privatização desses meios. Assim como a socialização dos meios de produção só se dará
plenamente após a superação da sociedade capitalista, do mesmo modo ocorrerá com a
socialização do conhecimento. Essa é a posição da pedagogia histórico-crítica.
Contudo, o que significa, para a Pedagogia histórico-crítica, a socialização do
conhecimento? Em primeiro lugar, é preciso dizer que os pressupostos teóricos da
Pedagogia histórico-crítica se constituem não só como antagônicos ao complexo
valorativo do capital, mas principalmente como estratégicos na defesa da educação
escolar como o principal meio de garantir a socialização do conhecimento aos filhos da
classe trabalhadora. Por isso que, para essa abordagem, a escola se apresenta como
lócus privilegiado para a socialização do saber, porque é nela onde o conhecimento está
disponibilizado de modo sistematizado. Vejamos, a seguir, alguns dos elementos
fundamentais da abordagem histórico-crítica para a socialização do conhecimento, isto
é, para a socialização dos verdadeiros conceitos capazes de instrumentalizar a classe
trabalhadora.
Começamos, assim, indicando o que é processo de educação. Não por acaso,
conforme descreve Leontiev (2004, p. 288), processo de educação é um processo de
comunicação, isto é, um processo que tem nas relações sociais a mediação necessária
64

para a transmissão e apropriação dos fenômenos objetivos da cultura, “[...] das


propriedades e aptidões historicamente formadas na espécie humana”. A realidade
humana, pois, é apropriada pelo homem na sua relação social com o mundo (MARX,
2004). Por isso que “[...] o homem nasce nos ombros da cultura. O homem nasce nos
ombros de seu grupo social”. (PADILHA, 2011, p. 2).
Nesse sentido, não estamos tratando aqui de qualquer formação escolar. Nessa
premissa reside a sustentação de que a socialização é o processo mediado pelas relações
sociais, por meio do qual o indivíduo transforma-se em ser cultural, pois a “[...] relação
entre indivíduo e o gênero humano sempre se realiza no interior das relações sociais
concretas e históricas, nas quais cada homem se insere. A genericidade dos indivíduos
não é uma substância exterior à sua socialidade”. (DUARTE, 1993, p. 111).
Dessa forma, é esvaziada de sentido a alegação de que o indivíduo é um
“produtor de cultura” se na alegação não subentender a mediação das relações sociais
concretas e históricas entre os homens, pois esta produção só é possível pelo gênero e
não pela espécie humana, levando a concluir que antes do homem ser “produtor
cultural”, nele precisa ser produzido o gênero humano, pois o homem é “[...] um ser que
a princípio não dispõe de propriedades que lhe assegurem, por si mesmas, a conquista
daquilo que o caracteriza como ser humano”. (MARTINS, 2013, p. 271).
No entanto, sabemos que na sociedade capitalista a forma hegemônica de
educação escolar é aquela que reproduz e atende aos interesses do empreendimento da
ordem do capital, cuja máxima valorativa de que “não existe almoço grátis”2 se expressa
ideologicamente pela postura individualista, competitiva, empreendedora, meritocrática
e defensora da propriedade privada. Não é por acaso que a educação escolar é
submetida a práticas pedagógicas como o “ensino por competências”, o “aprender a
aprender”, o “professor reflexivo”, a “pedagogia dos projetos”, cada uma delas
analisadas por Duarte (2012), no livro Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às
apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana.
Essas práticas pedagógicas estão na contramão da educação escolar
verdadeiramente de interesse da classe trabalhadora, ou seja, da educação como “uma
atividade mediadora no seio da prática social global”, da qual trataremos a partir de
agora começando pelas categorias de atividade, de mediação e de educação, porque são


2
Título de um dos livros do intelectual liberal Milton Friedman.
65

categorias intimamente imbricadas na globalidade do processo envolvendo educação e


sociedade. (SAVIANI, 1996, p. 131).
A primeira, a atividade, é uma importante categoria da psicologia histórico-
cultural e, como não poderia ser diferente, está marcada pela articulação entre indivíduo
e sociedade. A articulação interdependente entre a dimensão individual e a social
obedece a um processo essencial no desenvolvimento humano que é o processo de
internalização. O desenvolvimento das formas superiores de comportamento depende da
evolução da cultura e muda de acordo com as transformações histórico-sociais (FACCI,
2006), o que marca esse desenvolvimento e caracteriza fundamentalmente o homem é o
trabalho, que é “[...] desde a origem mediatizado simultaneamente pelo instrumento (em
sentido lato) e pela sociedade”. (LEONTIEV, 2004, p. 80).
Os homens, por meio do trabalho, ao satisfazerem suas necessidades básicas, são
conduzidos, por meio do ato e do instrumento de satisfação, a novas necessidades,
formando novas faculdades humanas ao longo da história. Aqui reside a importância
dos instrumentos culturais como meios e não como fins. É nesse sentido que a
socialização é um processo fundamental para o desenvolvimento das funções
psicológicas superiores (FPS).
Leontiev (2004), ao analisar a diferença entre os seres humanos e os demais
animais quanto ao uso de instrumentos, observa que há um importante fator de distinção
entre a atividade humana, orientada para a satisfação de necessidades, e a atividade,
orientada para os mesmos fins, dos demais animais. Não será preciso aqui nos determos
nos dados dessa diferenciação, pois basta-nos saber que o que caracteriza a atividade
humana de satisfação de suas necessidades é o fato de que há a separação entre o objeto
da atividade e o seu motivo. Se nos animais esse processo é imediato, ou seja, o objeto e
o motivo se confundem, nos seres humanos esse processo é mediatizado, ou seja, o
objeto (resultado) da atividade não está imediatamente ligado ao seu motivo
(satisfação). Portanto, há nessa caracterização da atividade humana o nascimento
daquilo que o autor russo chama de ação.

Geneticamente (isto é, pela sua origem), a separação entre o motivo e


o objeto da atividade individual é o resultado do parcelamento em
diferentes operações de uma atividade complexa, imediatamente
“polifásica”, mas única. Essas diversas operações, absorvendo
doravante todo o conteúdo de uma dada atividade do indivíduo,
transforma-se para ele em ações independentes, continuando bem
entendido a não ser senão um só dos numerosos elos do processo
global do trabalho coletivo. (LEONTIEV, 2004, p. 83).
66

Compreendemos, então, que a atividade humana abarca um conjunto de


operações (ações) que não estão ligadas imediatamente, mas mediadas pelas relações
sociais envolvidas no processo do trabalho coletivo e orientadas para um resultado
esperado. Poderíamos dizer, assim, como exemplo, que a educação é a atividade
(complexa) do professor e que lecionar é a sua ação. Contudo, o objeto de sua atividade
(ensino) não está imediatamente ligado ao seu motivo (satisfação de necessidades).
Embora a ação pedagógica do professor em sala de aula deva estar orientada para a
satisfação de uma necessidade, ela não está ligada de forma imediata ao resultado final
de sua atividade, mas somente é religada graças à

[...] relação do indivíduo aos outros membros da coletividade [...] Isso


significa que é precisamente a atividade dos outros homens que
constitui a base material objetiva da estrutura específica da atividade
do indivíduo humano; historicamente, pelo seu modo de aparição, a
ligação entre o motivo e o objeto de uma ação não reflete relações e
ligações naturais, mas ligações e relações objetivas sociais.
Assim, a atividade complexa dos animais superiores, submetida a
relações naturais entre coisas, transforma-se, no homem, numa
atividade submetida a relações sociais desde a sua origem. Esta é a
causa imediata que dá origem à forma especificamente humana do
reflexo da realidade, a consciência humana. (LEONTIEV, 2004, p. 84-
85).

Podemos afirmar, então, baseado nos preceitos acima, que a consciência não está
na relação imediata. As ações de outros conferem sentido à ação do indivíduo e a ação
do indivíduo justifica as ações dos demais. De outro modo, as ações individuais só
tomam significado nas ações coletivas. A consciência, portanto, é a reflexão que
permite estabelecer a relação entre o motivo objetivo da relação entre os indivíduos e o
seu objeto. Por essa razão, não por acaso, tomamos a figura do professor – qualquer
outro profissional caberia como exemplo – para exemplificar a questão da atividade
humana, por ele se constituir como um trabalhador cujo trabalho, segundo Saviani
(2000), está inserido na categoria de “trabalho não-material” e o produto de sua
atividade não se separa do ato de produção.
Aqui entra a importância da categoria mediação, pois é um conceito-chave para
entender a educação escolar como processo para a apropriação das propriedades
culturais desenvolvidas historicamente pela humanidade. Antes, vale ressaltar que a
Pedagogia histórico-crítica concebe a escola como
67

[...] uma instituição cujo papel consiste na socialização do saber


sistematizado. Vejam bem: eu disse saber sistematizado; não se trata,
pois, de qualquer tipo de saber. Portanto, a escola diz respeito ao
conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber
sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à
cultura popular. Em suma, a escola tem a ver com o problema da
ciência. Com efeito, ciência é exatamente o saber metódico,
sistematizado. [...] A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos
instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência),
bem como o próprio acesso aos rudimentos desse saber (SAVIANI,
2000, p. 18-19).

Quanto ao objeto da educação, segundo o mesmo autor, diz respeito a,

[...] de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam


ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta
das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI,
2000 p. 11).

Nisso requer pensar que educação, para a abordagem histórico-crítica, é sempre


mediação. Sendo desse modo, é conveniente que a concepção de mediação seja tratada
conjuntamente com a de educação. Segundo Duarte (1993, p. 119),

A prática pedagógica tem um papel fundamental na formação do


indivíduo, qual seja, o de ser mediadora entre a vivência em-si,
espontânea, da genericidade e a condução consciente da vida pela
relação também consciente com o processo histórico de objetivação
universal e livre do gênero humano. Em outras palavras, concebo a
prática pedagógica como uma prática direcionada para elevação da
consciência do indivíduo ao nível da genericidade para-si, ou seja,
para a formação, pelo indivíduo, de uma relação consciente entre sua
vida concreta, histórica e socialmente determinada, e as possibilidades
de sua objetivação ao nível da universalidade do gênero humano.

Do que decorre ser inconsistente, na perspectiva dos estudos da pedagogia


histórico-crítica, o desenvolvimento das FPS por meio das relações entre pares, pois o
psiquismo humano necessita ser estimulado para que se desenvolva, o que não ocorre ao
nível dos conhecimentos espontâneos das relações entre pares. Como afirma Martins
(2013, p. 284):

O ensino dos conceitos científicos, diferindo radicalmente do ensino


calcado em conceitos espontâneos, engendra transformações nas
atitudes do sujeito em face do objeto, posto que, em última instância,
os conceitos científicos são mediados por outros conceitos em um
sistema de conexões internas, apresentando o objeto ao pensamento de
forma multilateral e profunda. A tomada de consciência dos conceitos
68

científicos pressupõe, necessariamente, o processo de generalização e


abstração.

É por isso que esse relacionar, no caso da educação escolar, sob o ponto de vista
da pedagogia histórico-crítica é processo pedagógico, ou seja, encontro entre desiguais.
O outro não pode ser um igual do ponto de vista do conhecimento, pois não se discute
aqui conhecimento espontâneo. Segundo Saviani (2013, p. 69), “[...] a educação supõe a
desigualdade no ponto de partida e a igualdade no ponto de chegada” e, nesse caso, o
professor é fundamental no processo de formação de conceitos – fator também
primordial para o desenvolvimento das FPS –, pois é impossível ao ser humano atingir a
consciência sem o pensamento em conceitos. Isso não significa que a pedagogia
histórico-crítica conceba a criança como um ser passivo nesse processo, nem muito
menos como tábula rasa; pois, ao contrário, por seu método prever a vinculação entre
educação e sociedade, “[...] professor e alunos são tomados como agentes sociais”.
(SAVIANI, 2012, p. 63).
E qual é a razão para afirmar a necessidade desse “encontro entre desiguais” na
educação escolar? A resposta está na base teórica que sustenta a pedagogia histórico-
crítica. Facci (2006, p. 129-130) explica que para a psicologia histórico-cultural, a raiz
do desenvolvimento dos processos que possivelmente darão lugar à formação dos
conceitos está na primeira infância e, conforme se desenvolve, a criança se apropria dos
instrumentos e dos mediadores culturais, desenvolvendo-se plenamente na adolescência,
sendo que este desenvolvimento ocorre sob a influência dos adultos e da participação da
linguagem reorganizando a estrutura das funções psicológicas necessária para a
formação de conceitos. A mediação da palavra e dos signos é fundamental no processo
de formação de conceitos que “[...] pressupõe a aprendizagem do domínio do curso dos
processos psíquicos próprios”. Nesse caso, segundo a autora, o contexto cultural é
fornecedor dos significados das palavras e ao adquirir conceitos, vários significados se
relacionam. Assim, todo conceito é resultado de uma generalização, pois parte de
generalizações elementares, é substituído por generalizações mais complexas e culmina
em conceitos verdadeiros.
Essas estruturas de generalizações determinam a equivalência dos conceitos.
Facci (2006, p. 132) sustenta, com base na abordagem histórico-cultural, que a
organização dessas estruturas conduz o indivíduo a reorganizar e a transformar a
estrutura de todos os conceitos anteriores e, a partir da internalização de novos
conceitos, mobiliza-se a reelaboração de vários conhecimentos uma vez apropriados,
69

cujo nível de complexidade exige do indivíduo muita sistematização. Primeiramente, ele


faz “agrupamentos sincréticos” para então formar complexos e finalmente conceitos,
passando do caótico e do aparente para a compreensão ampla dos fenômenos da
realidade social, das pessoas e dele mesmo. O conceito “é o resultado de um
conhecimento duradouro e profundo do objeto, construído a partir de relações sócio-
históricas”.
Vigotski (1982) identifica como conceitos cotidianos ou espontâneos aqueles
apropriados a partir do contato e das interações sociais imediatas e como científicos ou
não cotidianos ele identifica aqueles apropriados no processo escolar e que exigem um
nível de tomada de consciência mais elevado, embora reconheça a íntima interligação
entre os processos destes dois tipos de conceitos. A apropriação de um conceito
científico passa pela aproximação de um conceito espontâneo já apropriado e
internalizado, sendo este a base para os conceitos científicos que assimilados
possibilitam a formação de novos conceitos espontâneos.
Assim, espera-se que na escola a criança tenha o desenvolvimento dos conceitos
científicos por meio da aprendizagem de forma orientada e ensinada pelo professor, pois
a realização de tarefas mais difíceis torna-se muito mais possível quando acompanhada
do que quando realizada sozinha. Esse é, portanto, um quadro sintético das concepções
de atividade, de mediação e de educação. Estas categorias fazem parte da especificidade
da educação escolar que, conforme Saviani (2000), tem como objetivo a socialização do
saber sistematizado.
Desse modo, a socialização do conhecimento nas suas formas mais
desenvolvidas torna-se também a função política da educação escolar. No entanto,
segundo Saviani (2000), não basta que esses conhecimentos estejam sistematizados na
escola. É preciso viabilizá-los aos alunos a fim de que possam, por meio de um método,
apropriarem-se do conhecimento. Se o aluno age conscientemente em seu cotidiano e o
transforma, significa que houve a superação do conhecimento espontâneo e a inserção
de necessidades não-cotidianas através da apropriação do conhecimento científico.
Portanto, a finalidade da prática pedagógica para a Pedagogia Histórico-crítica é, pois, o
que determina os métodos e os processos de instrução e não o contrário. Voltamos,
assim, a Leontiev (2004). De acordo com os preceitos do autor russo, significa dizer que
os métodos e os processos de instrução são procedimentos da ação pedagógica do
professor porque requisitam consciência política capaz de estabelecer a relação entre o
objeto e o motivo da atividade pedagógica para concebê-los.
70

Conclusão

Levando em consideração a categoria da contradição, é preciso ter claro,


portanto, que é nesse sistema de ensino burguês que os indivíduos precisam agir,
procurando extrair todos os meios possíveis para a socialização dos conhecimentos
científicos, artísticos e filosóficos, capazes de instrumentalizar a classe trabalhadora,
mas sem perder de vista que esse objetivo é meio e não fim. A ideologia da “educação
empreendedora” é parte do processo de acumulação flexível que só pode ser apreendido
por meio da “constituição de uma nova sintaxe de cariz dialético, dominada pela
contradição” e que se apresenta no movimento que o capital realiza para impor suas
estratégias fundamentais. (ALVES, 1999, p. 16).
A ação no campo da educação, assim como nos demais campos sociais, é parte
do processo de luta de classes. Não se trata de reformar a escola, mas de lutar no âmbito
da educação escolar. Isso significa lutar para que os conteúdos escolares de interesse da
classe trabalhadora sejam disponibilizados ao máximo para ela. Essa é, sobremaneira,
parte importante da ampla luta dos trabalhadores.
Tendo em vista esse motivo, faz sentido defender a importância da educação
escolar na formação da consciência política dos indivíduos, uma vez que esse motivo
extrapola o âmbito da educação. Não se impõe a esse motivo uma visão romântica e
idealista de educação. Conforme foi apresentado, diferentemente dos demais animais, a
relação entre o objeto da atividade humana e seu motivo ocorre de maneira mediada. E
ainda, de acordo com essa premissa, a atividade humana abarca um conjunto de
operações (ações) que não estão ligadas imediatamente, mas mediadas pelas relações
sociais envolvidas no processo do trabalho coletivo e orientadas para um resultado
esperado. Essa é a base em que a nossa pesquisa de doutorado tem se apoiado para
defender a educação como meio fundamental para a formação da consciência, apesar de
todas as limitações que a instituição escolar carrega, impostas pela sociedade de classes
do modo capitalista de produção.
Sem dúvida, não há possibilidade ontológica de garantir que o resultado
esperado da atividade educativa se efetive plenamente nesta sociedade, mas é possível
projetar os resultados como meios necessários para a luta que a classe trabalhadora
empreende contra o capital. Por isso, o sentido da mediação dos conhecimentos
escolares está para além da escola, mas nem por isso seu papel é ignorado. Mesmo
porque a educação não se restringe a esse modelo societal. Assim, como parte da luta
71

pela socialização dos meios de produção, a classe trabalhadora deve lutar pela
socialização dos conhecimentos; pois, embora não seja garantida pela história a
afirmação de que o conhecimento é imprescindível para a tomada de consciência
revolucionária, não parece razoável abdicar-se dele. Até porque nenhuma teoria
revolucionária se abstém desses conhecimentos, pelo contrário. E se é essa teoria que
interessa ao conjunto dos trabalhadores, ela só pode ser apropriada e produzida por
indivíduos que se apropriaram de conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos,
conforme defende a pedagogia histórico-crítica.
Por fim, o que evidenciamos nessa investigação como ponto de chegada e, ao
mesmo tempo, como ponto de partida é a seguinte consideração: se a tomada de
consciência dos indivíduos é indispensável para a transformação social, a consciência
precisa ser formada sobre uma base que objetivamente tenha condições de recepcionar
uma teoria social da transformação. Essa base objetiva é justamente a apropriação do
patrimônio genérico do ser social produzido por homens e mulheres ao longo da história
humana e que está contido, de certa forma, nos conteúdos escolares, independentemente
da forma social vigente.
Nesse caso, há que se levar em conta a contradição. O surgimento dos partidos
de massa dos trabalhadores no século XIX, por exemplo, é uma contradição da própria
democracia burguesa. Os partidos não eram e não são fins em si mesmos, mas foram e
ainda são meios importantes na luta do proletariado. A educação escolar, por sua vez,
também se constitui como um meio importante nesta luta, ademais, a educação escolar
possui contradições que emanam do seu próprio sistema de ensino. A revolução
certamente não é papel da escola. Essa é uma competência ontológica da classe
trabalhadora; contudo, por mais que a escola seja uma instituição essencialmente
burguesa, isso não impossibilita a ação transformadora dentro da escola; se não para
transformá-la, ao menos para transformar as pessoas dentro dela, contanto que a pauta
coletiva seja conhecer para transformar.
Isso denota restabelecer conexões entre as diversas lutas. Não se contentar
apenas com a particularidade das questões mais imediatas dos ambientes diários ou,
ainda, limitar-se a pautas pragmáticas e imediatistas de cada grupo ou dimensão da vida
social, por meio de lutas isoladas por mais reconhecimento, por mais direitos ou por
mais inclusão social. Conhecer para transformar significa ter no horizonte a
emancipação humana, consequente da superação da ordem do capital, isto é, das classes
72

sociais, do trabalho assalariado, da divisão social do trabalho e da exploração do homem


pelo homem.

Referências

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DUARTE, N. A individualidade para-si. Campinas: Autores Associados, 1993.

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modernas da teoria vigotskiana. 5ª ed. Revisada. Campinas, SP: Autores Associados, 2012b.

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escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.

VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Tomo I. Madrid: Visor, 1982.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

DERMEVAL SAVIANI:
O PRECURSOR DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Sandra Tonidandel (UNIOESTE)1

Resumo: Nesse artigo abordamos brevemente a trajetória acadêmica de Dermeval Saviani,


principal expoente da Pedagogia Histórico-Crítica (PHC). Da sua vida pregressa, recuperamos
fatos que estão mais diretamente ligados às origens, ao processo de emergência e a constituição
desta teoria educacional pensada para a formação omnilateral do homem brasileiro. Saviani é
um dos mais coerentes intelectuais orgânicos da classe trabalhadora, desde 1966 vêm se
ocupando, contribuindo efetivamente com a educação do país. Implícito no registro do seu
percurso acadêmico, constatamos uma alerta à sociedade, quando esta conforma-se com a oferta
de uma educação pseudocientífica às jovens gerações. Nisso está o aborto de possibilidades de
formação de quadros, nas diferentes áreas do conhecimento, para responder aos problemas desta
mesma sociedade. Inicialmente explicitamos a biografia desse autor, para, na sequência,
tratarmos das origens e da constituição da PHC na década de 1980.

Palavras-chave: Dermeval Saviani; Biografia; Pedagogia Histórico-Crítica; PUC.

Introdução

A década de 1980 compreendeu a síntese brasileira da elaboração de uma teoria


superadora das pedagogias burguesas, contestadas pelos representantes científicos da
classe trabalhadora, aglutinados no Movimento dos Educadores (ME). Nesse período de
esgotamento do regime militar, no qual se deu a abertura democrática, a pós-graduação
brasileira se consolidou e se expandiu. No referido cenário, o grupo em torno dos
estudos da “Teoria da Educação”, no Programa de doutorado da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC), sob a coordenação de Dermeval Saviani, com a
contribuição de seus pares, sistematizou a PHC. Passamos ao exame daquele contexto e
deste feito, a começar por situar o precursor desta teoria pedagógica contra hegemônicas
às teorias burguesas da educação.


1
Pedagoga, mestre em educação, integrante do Grupo Estudos e Pesquisas História, Sociedade e
Educação no Brasil – GT da Região Oeste do Paraná (HISTEDOPR), da Universidade Estadual do Oeste
do Paraná (UNIOESTE), campus de Cascavel, Paraná, Brasil. E-mail: sandratonidandel312@gmail.com.


74

1 Dermeval Saviani e o caráter coletivo da pedagogia histórico-crítica

O professor e pesquisador Dermeval Saviani, há 50 anos, dedica-se aos estudos


sobre a educação. Desde meados da década de 1960, vem contribuindo com a formação
dos quadros de intelectuais ligados a esta área. Percorrer sua trajetória acadêmica é,
conforme Vidal (2011, p.17), “[...] acompanhar a própria constituição do campo da
história da educação no Brasil”, visto que suas pesquisas, análises e proposições têm
sido significativas. Constitui-se educador crítico da tarefa histórica que as condições
objetivas no âmbito educacional têm lhe apresentado nessas 5 décadas. A ele cabe o
mérito de inserir no campo educacional brasileiro, as categorias do materialismo
histórico dialético, até o início dos anos 1980, restritas aos debates das ciências sociais,
políticas e econômicas.
Saviani é pesquisador emérito do Centro Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), professor emérito da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), onde se aposentou, mas continua ativo, desenvolvendo
pesquisas. Nessa instituição ingressou em 1980, atuando no curso de Pedagogia e na
Pós-Graduação em Educação. Criador e coordenador geral do Grupo Nacional de
Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil (HISTEDBR) em 1986,
coordenou 20 projetos de pesquisas. Na PUC, iniciou a docência, fez graduação (1966),
doutoramento em Filosofia (1971) e conduziu o estudo que deu origem à PHC.
Saviani faz parte do corpo editorial de 21 periódicos. Ao todo, seus escritos
somam mais de 400 textos (426). Orientou, supervisionou, avaliou mais de 200
pesquisas (232), proferiu igualmente centenas de conferências. Em 2012, foi
reconhecido, dentre tantas outras premiações (14), pela Estatueta Paulo Freire, na 35ª
Reunião Anual da ANPEd, em Porto de Galinhas, Pernambuco2. Nesse ano (2016), de
18 a 20 de outubro, em alusão aos 50 anos do autor na educação, o Núcleo de Educação
Infantil e o Grupo de Pesquisa Pedagogia Histórico-Crítica e Educação Escolar da
Universidade Federal do Espírito Santo realizará o Seminário “Dermeval Saviani e a
Educação Brasileira: construção coletiva da pedagogia histórico-crítica” 3, com o fito de


2
Dados conforme currículo lattes do autor. Cf.: SAVIANI, D. Currículo Lattes. In: PLATAFORMA
LATTES. Disponível em: <http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4780404P8>.
Com acesso em maio 2016.
3
Cf.: SEMINÁRIO DERMEVAL SAVIANI E A EDUCAÇÃO BRASILEIRA: CONSTRUÇÃO
COLETIVA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA. Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, Espírito Santo. 18 a 20 out. 2016. Disponível em:<
http://ocs.ifes.edu.br/index.php/seminario_demervalsaviani/50anos>. Com acesso em: jun. 2016.
75

apresentar a trajetória e as contribuições do autor à educação brasileira, “projetando


novos deafios teórico-práticos no campo educacional".
Dermeval Saviani é filho de lavradores, descendentes de imigrantes italianos
que aportaram em solo brasileiro no final do século XIX para substituir o trabalho
escravo nas plantações de café do oeste paulista. Nasceu em 25 de dezembro de 1943,
na fazenda Santo Antonio, comarca de Mogi Mirim, atual município de Santo Antonio
de Posse, São Paulo (SP). Porém, sua Certidão de Nascimento foi registrada em 03 de
fevereiro de 1944.
Os pais do autor não frequentaram a escola, contudo alfabetizaram-se num
misto das línguas italiana e portuguesa, com auxílio de seu avô. Suas memórias
revelam: “[...] no horizonte de minha família não se colocava a perspectiva de se
ascender nos estudos e desempenhar funções intelectuais”. Entretanto, a mudança da
família do campo para a periferia de SP (1948)4 dera condições para que Saviani,
diferente de seus irmãos mais velhos, ingressasse e concluísse as séries iniciais da
Educação Básica. “Não fui um aluno brilhante” declara, entretanto teve êxito na
aprovação em todas as séries. (SAVIANI, 1992, 2011a, p. 32).
Em um contexto que a burguesia no comando das políticas educacionais
cerceava sobremaneira o acesso e a permanência da maioria da população à escola
pública, a progressão nos estudos do filho de camponeses convertidos em operários
fabris, garantiu-se pelo seu ingresso no Seminário em 19555. Para o autor, a coerência
religiosa de sua mãe permitiu que, com 11 anos, saísse de casa para estudar fora de SP.
“O grande drama da minha mãe era esse. Ela era muito católica e achava que se não
permitisse minha ida ela estaria contrariando a vontade de Deus”, recordou. (SAVIANI,
2012).
Saviani (2011a, p. 33), seminarista, usufruiu daquelas condições objetivas,
avançou na sua formação até tornar-se um baluarte da educação brasileira e concluiu o
equivalente à Educação Básica (1959), o antigo 2º Grau (1962), equivalente hoje ao o
Ensino Médio. Em 1963, no Seminário Central de Aparecida do Norte, SP, ingressou no
curso de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Lorena. No

4
O alto grau de exploração na fazenda de café acirrou as dificuldades da família e forçou-os a transferir-
se para capital. Na periferia, o pai e irmãos mais velhos engrossam o número de operários fabris da inicial
industrialização brasileira. Nestas condições, somaram nos movimentos grevistas das fábricas na
conturbada década de 1960.
5
A admissão de Saviani ao Ginásio, atual séries finais da Educação Básica, deu-se em 1955, na Paróquia
de São Pio X e Santa Luzia, Vila Leme, SP, onde a família morava. Em 27 de setembro desse mesmo ano,
em companhia do vigário da paróquia, transferiu-se para Cuiabá, Mato Grosso do Sul, onde estudou no
Liceu Salesiano São Gonçalo. (SAVIANI, 1992).
76

Seminário, a rigorosidade disciplinar e a atenta supervisão dos padres no que tange ao


comprimento do trabalho intelectual, contribuíram para que ele, aluno mediano, se
transformasse. Aquela disciplina “[...] contribuiu instrumentalmente para a valorização
da educação e para o meu progresso nos estudos”, constatou.
Final de 1963, Saviani necessitou de respostas objetivas às circunstâncias que o
levaram à vida religiosa, bem como um tratamento de saúde. Não lhe ocorria dar
continuidade aos estudos, sua perspectiva era o trabalho fabril. Prevalecia a ideia de que
“[...] estudo, de modo especial os de nível superior, não era coisa para pobres”, todavia,
consciente da decisão de deixar a carreira religiosa, estabeleceu: “[...] eu vou ficar só
com a filosofia, vou fazê-la o melhor possível e vou procurar me situar
profissionalmente nesse campo”. Impôs-se, portanto, superar o desafio de que “pobre
podia ter êxito na universidade”, quando então a perspectiva do “trabalho intelectual”
manifestou-se. (SAVIANI, 1992, 2002a, 2011a, 2012, p. 280).
Em 1964 transferiu seus estudos para a PUC, período que voltou morar com a
família em São Paulo. Para custear os estudos, trabalhou no setor bancário. Na
universidade, integrou o Movimento Estudantil, “[...] onde já se punha de forma
explícita a questão do Socialismo e já se manifestava alguma influência do marxismo”.
Conquanto aquela graduação fosse tomista, marcada pela influência da fenomenologia
existencial, “[...] propiciou uma visão de conjunto do pensamento filosófico em seu
desenvolvimento histórico, fertilizado por algum contato com obras clássicas”, analisou
Saviani. Ao longo do curso, uniu a militância estudantil com o estudo sistemático das
disciplinas, cujo período avalia ter apresentado “alguma densidade de reflexão própria”
.(SAVIANI, 1992).
Ainda acadêmico do 4º ano do curso de Filosofia, Saviani ingressou no
magistério do Ensino Superior em julho de 1966, em um contexto que a Pós-Graduação
no Brasil experimentava sua organização. Após a promulgação do Parecer do Conselho
Federal de Educação (CFE) nº 977/65, fez parte do “processo espontâneo” de formação
interna dos quadros docentes pucquiano a convite do professor Joel Martins. Fora
monitor regente desse, na cadeira Filosofia da Educação, do curso de Pedagogia (REIS
FILHO; SAVIANI, 1984; 1992, 2002b, 2003a). Em 1967, integrou formalmente o
colegiado de Pedagogia da PUC, onde permaneceu até 1988, quando saiu para dedicar-
se integralmente ao ensino e a pesquisa na instituição pública UNICAMP. Acerca do
trabalho docente, na sua acepção,
77

[...] o professor não poderia ser apenas um repetidor, um transmissor


de conhecimentos já compendiados; ele deveria ser também e,
sobretudo, um pesquisador, um criador, alguém que se posicionasse
ativamente em relação à sua área, tendo condições de contribuir para o
seu desenvolvimento. (SAVIANI, 2011b, p. 206).

Convicto de que a autocensura não cabia ao professor, empenhou-se em


apreender criticamente as questões educacionais que emergiam na vigência do regime
ditatorial (1964-1985). Quando em 1968 a censura do AI-5 retirou de todos os níveis de
ensino escritos e autores que pudessem contestar à ordem ditatorial, deu início à sua
produção bibliográfica. Burlou a censura com os chamados “textos de apoio”6, uma vez
que tivera a “sensação” de não haver “uma reflexão sistematizada e explícita de caráter
dialético” sobre educação, fora preciso criá-la. Recorreu a esse recurso didático para
abordar os problemas políticos e sociais da época, estimulando o trabalho intelectual e a
reflexão crítica na formação de professor. (SAVIANI, 1991, 2010, p. 73).
Concomitante à docência no Ensino Superior privado, em 1967, Saviani atuou
no Ensino Médio público. Ministrou a disciplina Filosofia para os cursos clássico e
científico no Colégio Estadual de São João Clímaco7, na periferia de São Paulo. E a
partir do segundo semestre, trabalhou a disciplina História e Filosofia da Educação no
Curso Normal do Colégio Sion, instituição destinada às jovens burguesas da capital
paulista. O trabalho docente em realidades distintas “funcionava como uma espécie de
laboratório” para as elaborações que Saviani desenvolvia no curso de Pedagogia,
afirmou. (2011a, p. 36).
A experiência dera-lhe oportunidade de comparar as diferentes reações à sua
proposta pedagógica. Nessa análise da práxis, advertia para necessidade de superar a
função social da escola como organizadora de experiências cotidianas do aluno.
Tratava-se, pois, de propiciar a apreensão das relações sociais para além do aparente, do
que extraiu:
[...] concluí que o papel da escola não é mostrar a face visível da lua,
isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar
os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os
fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata. (SAVIANI,
2011b, p. 201).


6
Exemplos desses “textos de apoio” figuram nas referências: SAVIANI, D. O fundamento da atividade
sistematizadora. In:______.Educação brasileira: estrutura e sistema. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 1973, p.
30-65;______. A filosofia na formação do educador. Didata. n. 1, jan. 1975; ______ Valores e objetivos
na educação. Didata, São Paulo: Arlete D´Antola, n. 6, p. 44-49, 1977.
7
Posteriormente denominado Colégio Estadual Professor Ataliba de Oliveira.
78

Essa análise contestatória dera-se no cenário de forte influência da Pedagogia


Nova no ensino brasileiro. Os intelectuais, em torno da pedagogia da existência,
criticavam a, denominada por eles, Pedagogia Tradicional por não dar sua contrapartida
à dinâmica da sociedade capitalista. Seus métodos de ensino foram considerados
obsoletos. Diferentemente, a Pedagogia Nova proclamava a inserção da ciência na
atividade educativa. Por meio de um método “pseudocientífico”, propunha “colocar a
educação à altura do século”, criticou anos depois o autor. (SAVIANI, 1981, p. 26).
Contraditoriamente, na PUC, uma instituição confessional privada, produziu-se
as condições objetivas para que Saviani transformasse sua concepção metafísica de
mundo por uma concepção dialética8. Essa superação, aliada ao compromisso político
do autor com sua classe social, culminou nas elaborações seminais de uma teoria
educacional contra hegemônica às Pedagogias Tradicional, Nova e Tecnicista, a PHC,
do que, depois, se somou e somam inúmeros intelectuais a defendê-la, outros a refutá-la.
A PUC ocupou papel importante nesse processo e na história do ensino superior
brasileiro naquele contexto de ditadura civil militar. O gérmen do que viria a ser a teoria
educacional mais desenvolvida até nossos dias, gestou-se nessa instituição. “Enquanto a
massa estudantil se expunha no setor público à cretinice do civismo imposto”, o setor
privado da educação, nas escolas confessionais, “treinava-se uma elite mais culta e
crítica. E não por acaso as melhores universidades tornaram-se, depois, focos da
resistência ao autoritarismo”, lembrou Fernando Henrique Cardoso (1985, p. 8).
Casemiro dos Reis Filho, docente desta instituição, situa-nos.

[A] [...] reforma universitária que implicava na implantação da lei


federal 5540 à qual as universidades particulares tinham que se
adaptar para receber subvenções [...] a intenção, como educadores, foi
aproveitar a exigência legal para montar um projeto que atendesse às
necessidades da universidade brasileira. (1984, p. 39).

Essa implementação do projeto interno de reforma da PUC e de reforma das


instituições de ensino superior como um todo, demandou por pesquisa, pesquisadores e
professores. O clima de repressão civil militar não permitia manifestações, assim,
conforme Joel Martins (apud BUFFA; NOSELLA, 1991, p. 21), como “[…] não
podemos falar, então vamos trabalhar, vamos começar uma pós-graduação”, lembrou.
Apresentou-se, portanto, à coordenação da reforma universitária o problema estrutural,

8
Inicialmente sua formação orientou-se pelo tomismo e pela fenomenologia. Depois, apoiou-se em
autores fenomenólogos que elaboravam um certo diálogo com o marxismo, como Marcuse, Sartre,
Merleau-Ponty. (SAVIANI, 1988).
79

bem como a carência dos profissionais que materializariam o projeto de formação


humanística crítica pucquiano. Frente àquelas condições históricas, em 1968, Reis filho
e Saviani prosseguiram com o “processo espontâneo” de formação de quadros, isto é, a
“formação em serviço associado”.

[...] Iniciamos um processo de trabalho em equipe, como forma de


preparar novos professores e pesquisadores, ao incorporar alunos
como monitores que, uma vez formados, eram contratados como
auxiliares e prosseguiam sua formação no mestrado e, depois, no
doutorado. (SAVIANI, 2003a, p.12).

De acordo com Reis Filho (1984), a educação comprometida com o


conhecimento científico sistematizado requeria reunir docentes sem os vícios da
universidade arcaica e burocrática. Por isso fazia-se necessário compor um grupo numa
mesma perspectiva. Compreender criticamente aquela realidade colocou para Saviani a
necessidade de debruçar-se com afinco no referencial teórico marxista. Por conseguinte,
estudou sistematicamente as obras de Karl Marx, por sugestão de Reis Filho, com quem
divida reflexões sobre educação e filosofia (SAVIANI, 2003a, 2011a). Principiar de
1980, por solicitação dos seus alunos do doutorado, debruçou-se em um estudo
completo de Gramsci, quando refez as leituras de Marx. Despido de autocensura,
Saviani buscava articular a teoria com prática. Segundo ele,

[...] sempre encarei meu trabalho na universidade como integrado à


luta política mais ampla pela transformação da sociedade, pela defesa
dos interesses dos trabalhadores a partir do entendimento científico do
desenvolvimento do modo de produção da existência humana no
processo histórico, entendimento esse que se explicita nas análises
elaboradas por Marx que vêm tendo continuidade nas contribuições
dos demais teóricos do marxismo. (2010, p. 3).

Em tal conjuntura, Saviani cumpria o papel de colaborar com a formação


docente e dar continuidade à sua própria formação para além do trabalho intelectual
individual. Em 1968, valendo-se da estrutura organizacional da Pós-Graduação da
época, ingressou no doutorado da PUC sem passar pelo mestrado, no Programa de
Ciências Sociais, com ênfase em Filosofia da Educação. Em 1971, o autor defendeu a
tese “O conceito de sistema na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”9. Na
defesa desta tese havia outra. “Trata-se da tese de que era possível produzir


9
Em 1973, pela Editora Saraiva, a tese foi publicada em livro com o título Educação brasileira: estrutura
e sistema, cujo livro encontra-se atualmente na 11ª edição, publicado em 2012.
80

academicamente nas condições precárias da situação brasileira em que vivíamos”.


(SAVIANI, 1992).
No dia 15 de outubro de 2002, data em que foi outorgado ao autor o título de
professor emérito da UNICAMP, no discurso proferido justificou o registro de seu
percurso acadêmico. “Penso que essa trajetória, como a de muitos outros filhos de
origem camponesa ou operária, mostra a importância da escola e o verdadeiro crime de
lesa-pátria que é a sua falta”. Saviani não nega que as condições que lhe foram dadas,
permitiu superar as mesmas dificuldades que milhões de jovens da classe trabalhadora
enfrentam na progressão dos estudos, quando o conseguem; mas, ciente da relevância
do seu trabalho, registra sua vida pregressa para advertir as perdas da sociedade, quando
esta mesma organização social despreza a exigência de se ofertar uma formação humana
efetivamente crítica às gerações futuras. (SAVIANI, 2002a, p. 285).
A partir de 1972, Saviani começou atuar na Pós-Graduação em Filosofia da
Educação da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP)10 e em 1973 também na
da PUC. Como coordenador do programa de Pós-Graduação pucquiano, usufruindo do
mencionado contexto de reforma interna da instituição e do espaço de liberdade que as
universidades privadas gozavam, buscou imprimir-lhe maior ordenação e organicidade
no programa de mestrado e do doutorado trabalhou para consolidação. Debruçou-se nas
atividades da Pós-Graduação, cuja atuação não permitiu-lhe desvencilhar de coordenar,
organizar, propor e implantar programas de Pós-Graduação pelo país11. (SAVIANI,
1992, 2002a).
No quadro acima inventariado, o regime ditatorial fora se desgastando. As
condições objetivas desnudaram as contradições do modo de produção capitalista. Na
esteira da crise político estrutural do capital, sobretudo a partir da segunda metade da
década de 1970, a sociedade civil organizada levantou-se em um forte movimento de
oposição, momento que diferentes setores sociais exigiram o retorno imediato e
substancial da democracia. Gradativamente, os escassos e vigiados espaços de


10
Antigo Instituto Educacional Piracicabano de São Paulo.
11
Na PUC, Joel Martins coordenou o Programa de Estudos Pós-Graduados em Filosofia da Educação,
cuja equipe promoveu a organização da Pós-Graduação desta instituição. Figuraram neste grupo, além de
Saviani, Newton Aquiles Von Zuben, Geraldo Tonaco e Antônio Joaquim Severino. Segundo Saviani
(2002a, 2005), além da influência dos professores formados na PUC que passaram a atuar em diferentes
Universidades, aquela equipe passou a atuar diretamente na organização da Pós-Graduação em outras
instituições.
81

contestação foram se ampliando e o fortalecimento desse movimento de oposição


ampliou-se sobremaneira12.
O movimento sindical avançou na compreensão de que o Estado era o principal
entrave para a mediação entre a classe trabalhadora e os burgueses no plano das lutas
econômicas, recuperou Manfredi (1986). Frente à privação da liberdade, das condições
de miséria material e espiritual da população, diferentes categorias das forças produtivas
aderiram às greves e manifestações, espalhando-se rapidamente pelo país. Os
professores se organizaram no ME. Inicialmente na forma de associações para
reivindicar direitos trabalhistas. Depois incorporaram às críticas à política educacional,
as discussões políticas, econômicas, sociais organizando-se em sindicatos.
Espíndola e Auras (2012, p. 180) recordaram que o movimento sindical desafiou
os educadores à participação. O descrédito do regime deu o “[...] estímulo necessário e a
relativa segurança para o seu engajamento”. Surgiu, do envolvimento do ME com o
Partido dos Trabalhadores (PT), o conceito de “trabalhador da educação”. Isso deu o
“[...] tiro de misericórdia na percepção da educação como sacerdócio”. Logo, os
professores, na busca da “autogestão” das questões que envolviam o trabalho educativo,
passaram a requerer sua autoridade nisso.
Nasceu nesses anos a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Educação (ANPED), em 1977; o Centro de Estudos Educação & Sociedade (CEDES),
organizado em 1978; a Associação Nacional da Educação (ANDE), fundada em 1979 e,
também em 1979, o Centro de Estudos da Cultura Contemporânea (CEDEC). Entre
outras, essas entidades se tornaram representativas de debates, intervenção e
disseminação de análises e críticas sobre os diferentes níveis da educação brasileira.
A partir de 1980, o trio ANDE, ANPED e CEDES inauguraram um ciclo bianual
de eventos de grande alcance nacional, a I Conferência Brasileira de Educação (CBE),
realizada nas dependências da PUC, de 31 de março a 3 da abril. A organização desse
evento buscou retomar, “em novas bases o processo de discussão da problemática
educacional”, cerceada pelo governo militar, conforme consta no Jornal da Educação
(1984, p. 164). Para a Comissão Coordenadora da I CBE, o evento teve por objetivo


12
As minúcias e contradições deste contexto social, quando o ME constatam a insuficiência da política
educacional do regime militar, refutaram as Pedagogias vigentes, impuseram sua autoridade na direção
dos problemas educacionais, do que desembocou na sistematização da PHC ao longo da década de 1980,
podem ser consultadas em: TONIDANDEL, S. Pedagogia Histórico-Crítica: o processo de construção e o
perfil do “Currículo Básico para a Escola Pública do Estado do Paraná” (1980-1994). 223 f. 2014.
Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Cascavel, 2014.
Disponível em: <http://www.unioeste.br/pos/educacao/>. Com acesso em jun. 2016.
82

promover o encontro de pessoas, de grupos e de entidades ligadas à educação. Nisto,


efetuar um balanço crítico da política para esta área nos últimos 10 anos. (MELLO;
VELLOSO; CUNHA, 1981).
Encaminhou-se ampla discussão a respeito da problemática educacional, suas
contradições e resultados, assim como fora objeto deste trabalho discutir a participação
dos professores no delineamento das possibilidades de solução, como aludido. O
agravamento das condições de ensino, fruto de uma política educacional autoritária, fora
objeto de crítica de diversos encontros, congressos e reuniões dos educadores. Nesse
trabalho, as Revistas Educação & Sociedade, publicada inicialmente pela Editora da
UNICAMP em convênio com a Cortez & Mores, a Revista Ande, organizada pela
ANDE tornaram-se, estrategicamente, instrumentos de divulgação das discussões dos
trabalhadores da educação.
Em 1979, mais de 7 milhões de jovens de 7 a 14 anos estavam fora da escola.
Poppovic (1981, p. 20) enfatizou que o Brasil chegara à “espantosa realidade” de
conviver por quase 40 anos com 60% de suas crianças repetindo a 1ª série.
Universalizar a educação urgia ações concretas que possibilitasse condições de acesso,
permanência, qualidade e garantias trabalhistas aos professores. Em suma, o ME
constatou que a política educacional vigente era incapaz de medidas concretas para
resolver os problemas da área. O estado de exceção produziu sua negação. A sociedade
dominada insurgiu sobre a burguesia, classe que historicamente violenta direitos
inalienáveis. Da reflexão sobre si mesma, impôs-se aos intelectuais da educação a
emergência de organizar um novo tipo de formação humana que respondesse aos
anseios daquele momento histórico, com vistas a somar na luta política pela superação
daquele estado de privações de toda ordem no Brasil.
No bojo dessa agitação social, em 1978, ante a exigência supra e as
inquietações e questionamentos dos doutorandos do já mencionado programa de Pós-
Graduação da PUC, sob coordenação de Saviani, sistematizou-se estudos acerca da
especificidade da escola, do trabalho docente, do aluno concreto; das contradições nos
ditos limites do Estado democratizar a educação, assim como dos limites das
pedagogias burguesas: Tradicional, Nova e Tecnicista. O Brasil era “importador” de
teorias educacionais.
O estudo dessas teorias educacionais fora registrada por Guiomar Namo de
Mello (1982, p. 9-10) como objeto de estudo do programa. O exercício de refletir a
respeito da “verdadeira” pedagogia, que tivera “acionado o movimento de
83

transformação da escola ao longo de sua existência”, é o que se acreditava possibilitar ir


além do tomar partido. A análise crítica permitiria transformar “[...] este ato de vontade
política em alternativas de ações práticas materialmente viáveis, em cada momento
histórico”.
No primeiro programa de doutorado em Filosofia da Educação da PUC, o que
Saviani buscava desenvolver individualmente assumiu um caráter coletivo, dentro e fora
da instituição. Os alunos14 desse programa acrescentaram ao aporte teórico marxista de
estudos, as contribuições de Antonio Gramsci. Conforme Saviani (apud SIMIONATTO,
1995, p. 117), esses alunos, “[...] de certo modo, representavam um setor de ponta na
produção intelectual na área da educação; eram mestres e alguns com experiência em
pós-graduação”. A proposição desse grupo que era extrair do pensamento de Gramsci
contribuições para, então, compreender a educação brasileira, criou a disciplina “Teoria
da Educação”, ministrada por Saviani, a convite daqueles alunos.
O objetivo do grupo foi detectar elementos que apontasse na direção da
construção de uma teoria da educação brasileira, lembrou Paolo Nosella (2010, 1982, p.
16). Nas palavras de Mello, debruçou-se sobre o “[...] processo de revisão crítica das
soluções propostas pelas pedagogias dominantes”, tendo no aporte teórico marxiano e
gramsciano, subsídios ao estudo dos determinantes concretos das teorias educacionais e
condição de planejar e executar “ações efetivas”.
Na direção supra, aqueles estudos aclararam que as Pedagogias Tradicional,
Nova e Tecnicista ou o que Saviani (1982a, 1982b) denominou de teorias “não-críticas”
sintetizam a compreensão da educação como autônoma. São concepções “ingênuas” que
se colocam superiores à realidade concreta, desarticuladas dos condicionantes histórico-
sociais que condicionam o fenômeno educativo. A educação é explicada a partir dela
mesma, por isto se coloca como meio de determinar e de alterar, por si mesma, a

14
Junto de Mello, os primeiro alunos do programa de doutorado da PUC, que podem ser considerados
“clássicos” para o estudo da PHC, são: Betty Antunes de Oliveira, Neidson Rodrigues, Carlos Roberto
Jamil Cury, Luiz Antonio Constant Rodrigues da Cunha, Paolo Nosella, Mirian Jorge Warde, Osmar
Fávero, Bruno Pucci, Antônio Chizotti e Fernando José de Almeida. Junto desses, Ezequiel Theodoro da
Silva, Lilian Anna Wachowicz e José Alberto Pedra, participavam das aulas e desenvolviam atividades
programadas com os orientandos de Saviani, os 8 primeiros. Esses 3 últimos ingressaram no programa
pouco tempo depois. Na sequência, nomes expressivos da educação brasileira e paranaense compuseram
as próximas turmas de pós-graduação desta instituição, como: Maria Luísa Santos Ribeiro, Gaudêncio
Frigotto, Lucília Regina de Souza Machado, Selma Garrido Pimenta, Maria Elizabete Sampaio Prado
Xavier, Paulo Ghiraldelli Júnior, José Carlos Libâneo, Gilberto Luiz Alves, Ester Buffa, Odilon Carlos
Nunes, Sonia Kramer, Acácia Zeneida Kuenzer, Lízia Helena Nagel, Naura Syria Carapeto Ferreira,
Olinda Evangelista.
84

realidade. A exemplo disso, as teorias não-críticas propõem superar a “marginalidade,


tendo nos processos educativos os instrumentos para equalização social. Dessa forma, a
educação assumiria um papel decisivo na conformação dos conflitos de classes.
Embora diferente na forma, na sua essência, as Pedagogias Tradicional, Nova e
Tecnicista e suas variações extraem dos currículos escolares o conteúdo historicamente
produzido que constitui um dos elementos de mediação da formação humana. Essas
teorias são burguesas porque relegam os processos educativos à formação ao nível do
senso comum, pragmática, com vistas a atender às necessidades dos processos
produtivos. Reduzem a formação do homem, no âmbito escolar, à educação para o
trabalho. Os processos educativos, à luz dessas teorias, impedem a classe trabalhadora
das possibilidades objetivas de apropriação do conhecimento científico e corrobora para
se tornar um dos elementos de negação da constituição da essência humana,
empobrecendo-a.
Por outro lado, as teorias, denominadas por Saviani de crítico-reprodutivistas15,
a saber, “Escola enquanto Aparelho Ideológico do Estado”, de Louis Althusser (1970),
“Escola Dualista”, elaborada por Christian Baudelot e Roger Establet (1971), “Sistema
de Ensino enquanto Violência Simbólica”, de Pieerre Félix Bourdieu e Jean-Claude
Passeron (1975), faziam a denúncia da situação existente e mostravam o papel
reprodutor que a escola cumpria na sociedade capitalista, promoviam a denúncia
sistemática da educação vigente e minavam a crença da autonomia da educação e, em
face das relações sociais, não ofereciam alternativas. Disseminaram um clima de
pessimismo e de desânimo entre os docentes. A questão que se colocava era identificar
o tipo de proposta pedagógica que deveria orientar o trabalho educativo nas instituições
de ensino; tratava-se, pois, da busca de “saídas teóricas”. (1982a, 1983a, 1983b, 1989).
Os escritos de Karl Marx, Antonio Gramsci e seus intérpretes na área
educacional, como Vladimir Ilitch Lenin, Bogdan Suchodolski,
Anton Semyonovich Makarenko, George Snyders, Moisey Mikhaylovich Pistrak,
Mario Alighiero Manacorda, Angelo Broccoli, G. Betti, foram sendo compreendidos
pelos intelectuais da educação como os estudos que forneceriam os elementos para
sistematizar uma teoria da educação com vistas à transformação social. Contudo, na
avaliação de Saviani (2011c), as “[...] análises educacionais efetuadas pelos teóricos

15
Teorias crítico-reprodutivistas, assim denominadas por Saviani, por não se tratar de Pedagogias.
Pedagogia está ligada à orientação da ação na prática educativa. Uma vez que estas teorias não contêm
uma proposta pedagógica, não são compreendidas como Pedagogia (SAVIANI, 1982a).
85

marxistas, e, especificamente, por aqueles que procuravam extrair das pesquisas de


Marx e Engels, de Lenin, de Gramsci, os elementos para uma teoria educativa”,
causavam-lhe “um sentimento de insatisfação”, uma vez que “[...] não se chegava a
sistematizar uma teoria da educação”, a via encontrada foi:

[...] em lugar de gastar papel e tinta criticando esses autores, por essas
supostas insuficiências, eu optei por me apoiar em seus elementos
indiciários, apoiar naquelas pistas que eles davam com os estudos dos
clássicos do marxismo e principalmente no seu percurso por esses
clássicos para procurar elaborar a teoria de que sentia necessidade.
(SAVIANI, 2011d).

Ao passo que os estudos e reflexões desembocavam na ausência de alternativa


para a educação, cujo interesse de transformação social da classe trabalhadora não se
colocava, acentuou-se “[...] compreender a questão educacional a partir do
desenvolvimento histórico objetivo”. (SAVIANI, 1989, p. 23). Para tanto, defendeu o
autor, não há outra forma de apreensão do desenvolvimento objetivo da sociedade
capitalista que não aquela apoiada no materialismo histórico. Tomar partido desta
concepção,

[...] implica não somente assumir seu caráter científico, seu poder
esclarecedor da realidade, implica também assumir uma concepção
geral da vida, do homem e do mundo. A ciência do marxismo não é
somente reveladora da realidade, é também uma ciência que busca –
expressamente – a transformação da realidade (SAVIANI, 1988, p.
131).

Munido desse princípio de estudo da vida social, o autor e outros intelectuais


da classe trabalhadora, chegaram à seguinte síntese. Na sociedade de classes, com
interesses antagônicos, a formação do homem – a relação entre objetivação e
apropriação da segunda natureza humana, objetivada nas gerações que antecedem as
jovens gerações – sob orientação das pedagogias burguesas, se dá ao nível do senso
comum, ou seja, a-historicamente. O trabalho educativo, ao negar os conteúdos
históricos, falseia a realidade com vistas à perpetuação do status quo. A formação
humana, nesta perspectiva, nega a essência humana e promove a apreensão fenomênica
da realidade. À medida que priva o aprendiz da apropriação do saber científico, impede
que este se reconheça na sua produção, nas suas objetivações e nas relações
estabelecidas na prática social. (SAVIANI, 1984).
86

Contrário e superior a isso, o conhecimento, do ponto de vista da classe


trabalhadora, visa à transformação revolucionária da realidade social. A apropriação dos
conteúdos, necessários ao reconhecimento da condição de classe, importante à ação
revolucionária, só será viável pelo domínio do conhecimento científico, cuja teoria da
educação contribui, na medida em que se situa nesta mesma perspectiva. Assim, os
ideólogos, comprometidos com a luta de classes, empenharam-se em criar uma teoria
crítica da educação. Para, no âmbito escolar, colocar “[...] nas mãos dos educadores um
arma de luta capaz de permitir-lhes o exercício de um poder real, ainda que limitado”.
Disso resultou a PHC. (SAVIANI, 1982a, p. 16).
Saviani, ao reportar esse momento, ressaltou, entre as pesquisas orientadas por
ele, que a “Educação e contradição: elementos metodológicos para uma teoria crítica do
fenômeno educativo”16, desenvolvida por Carlos Roberto Jamil Cury, na conclusão do
doutoramento, com defesa pública no ano de 1979, que esta pesquisa representou “um
marco da configuração mais clara da concepção histórico-crítica”. No trabalho de Cury
“[...] se fez um primeiro esforço de sistematizar pela via das categorias lógicas, uma
teoria crítica não reprodutivista da educação”. Em 1982, no texto “Escola e Democracia
II: para além da teoria da curvatura da vara”, publicado na Revista ANDE, encontra-se a
primeira formulação “propriamente pedagógico-metodológica” da PHC. (SAVIANI,
1986, 2011b, p. 17).
Das reflexões realizadas com os alunos do doutorado da PUC, produziram-se as
formulações teóricas seminais que originaram a PHC e das discussões empreendidas no
mestrado desta mesma instituição criou-se a nomenclatura. Após as eleições diretas para
governadores, Saviani foi guindado pelos alunos do mestrado (1984), a ofertar uma
disciplina que aprofundasse o estudo da “Pedagogia Revolucionária”. Surgiu a
disciplina “Pedagogia histórico-crítica” que, a partir desse ano, conservou o mencionado
nome. A partir de 1986, a PHC passa ser historicizada, figurando no quadro das
tendências pedagógicas brasileiras. Desde sua denominação, e, próprio de uma teoria
em desenvolvimento, sofreu inúmeras alterações, frisou Duarte. “Está em andamento,
tanto no que diz respeito à elaboração teórica, quanto no que diz respeito ao
enfrentamento dos problemas postos pela prática no campo educacional”. (SAVIANI,
1994, p. 130).


16
Com o título “Educação e contradição”, foi publicada em 1985, pelas Editoras Cortez e Autores
Associados.

87

Sintetizar adequadamente, em um nome, a teoria educacional que se colocava


dentro do processo de transformação da sociedade, teve na expressão “histórico-crítica”
a “terminologia adequada”, revelou Saviani. Termo este que reteve o “[...] enraizamento
histórico, isto é, a apreensão do movimento histórico que se desenvolve dialeticamente
em suas contradições”, que escapa às teorias crítico-reprodutivistas. Ademais, o termo
não corrente cria a “[...] oportunidade de se explicitar as intenções contidas no tema”.
(1989, 2003b, p. 23, p. 140-141).

Conclusão

À vista do exposto, a partir do final da década de 1970, os estudos acerca do


fenômeno educativo que Saviani desenvolvia individualmente assumiu um caráter
coletivo na PUC. Em pleno estado de exceção, o quadro docente dessa instituição,
comprometido politicamente com a Ciência, não se acovardou de exercer a função
social da universidade. Face às privações e as insuficiências das políticas educacionais
do regime militar, responderam criticamente, do que depois se somou outros intelectuais
e instituições. Sob coordenação de Saviani, nos programas de mestrado e doutorado,
professores e alunos teceram críticas e abalaram as certezas sobre as pedagogias
burguesas, o que, consequentemente, na busca de saídas às constatações, produziu a
PHC, teoria, cujo autor é o precursor.
A formação humana, defendida pela PHC, buscou oferecer o domínio dos
conteúdos históricos que a burguesia sempre negou no controle da organização escolar.
Ao conceber o homem historicamente, o trabalho, como princípio educativo, constituiu-
se o cerne da organização curricular histórico-crítica. No âmbito escolar, a PHC visa
contribuir para recuperar a unidade entre os homens. Logo, coloca-se na luta pelo fim da
apropriação privada das realizações do trabalho, isto é, na luta pela superação do modo
de produção capitalista. Em síntese, criou-se a PHC para lembrar a sociedade que em
primeiro lugar deve vir o homem e não a produção. Em tempos de defesa da “escola
sem partido” eis, pois, sua política.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A FILOSOFIA DA PRÁXIS COMO MEDIAÇÃO ENTRE O TRABALHO E A


FILOSOFIA NO CONTEXTO CAPITALISTA: DESAFIOS PARA
UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA

Douglas Christian Ferrari de Melo (UFES) 1


Eliesér Toretta Zen (UFES) 2

Resumo: O artigo objetiva refletir sobre a mediação do trabalho e da filosofia por meio das
contribuições da filosofia da práxis para a formação humana e para filosofia. Nesse sentido,
buscamos embasamento, princiapalmente, em Karl Marx (1818-1883), Antônio Gramsci (1891-
1937) e Paulo Freire (1921-1997), situando a filosofia da práxis como atividade prático-teórica
formadora do ser social. Filosofia que entendemos ser meio de transformação e superação da
dimensão alienante do trabalho imposta pela sociedade capitalista. Por isso, é necessário
conhecer a realidade e agir de tal forma que a realidade social e pessoal seja transformada na
perspectiva de uma sociedade emancipada e de um ser humano humanizado. A relação entre
práxis, trabalho e filosofia não permite que esta se perca em abstrações metafísicas ou no
intimismo.

Palavras-chave: Filosofia da Práxis; Mediação; Trabalho; Filosofia.

Introdução

O artigo tem como objetivo refletir sobre a mediação do trabalho e da filosofia,


por meio das contribuições da filosofia da práxis para a formação humana e para
filosofia. Nesse sentido, buscamos embasamento, princiapalmente em Karl Marx (1818-
1883), Antônio Gramsci (1891-1937) e Paulo Freire (1921-1997), situando a filosofia
da práxis como atividade prático-teórica formadora do ser social.
A ação educativa, segundo Duarte (1993), está direcionada à formação humana
de um ser singular e efetiva-se sempre em condições materiais e imateriais singulares.
Essa relação ocorre no contexto histórico-social. Dessa forma, podemos afirmar que a


1 1
Douglas Christian Ferrari de Melo. Doutor em educação no Programa de Pós-graduação em Educação pela Ufes.
Possui graduação (2003), especialização (2004) e mestrado (2007) em História pela mesma universidade.
Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: dochris.ferrari@gmail.com
2
Eliesér Toretta Zen. Licenciado em filosofia pela PUC/MG. Mestre e doutorando em educação pelo Programa de
Pós-graduação em Educação pela Ufes. Professor efetivo de filosofia do instituto federal do espírito santo (Ifes).
Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: elieserzen@hotmail.com


91

formação do ser humano é sempre um movimento processual que sintetiza todo o


conjunto dos elementos produzidos pela história humana.
O indivíduo concreto é um sujeito concreto, síntese de múltiplas determinações e
de inúmeras relações sociais, ou seja, o conjunto das relações sociais. Assim, o processo
de transformação humana sobre a natureza e sua objetivação e apropriação tem o poder
de possibilitar tanto a alienação (desumanização) como a realização de sua vocação
ontológica e histórica de ser mais (humanização). A alienação acontece na sociedade
capitalista e lutar pelo seu contrário, ou seja, a humanização é o sentido da nova
filosofia proposta por Marx e seus seguidores, a filosofia da práxis.
Dessa forma, a sistematização desse artigo se dará da seguinte maneira. Além
da introdução e das considerações finais, o artigo está divido em duas partes. Na
primeira, será apresentada a categoria trabalho e suas possibilidades, tanto de alienação
quanto de humanização. Em seguida, tratará da filosofia da práxis como possbilidade
de mediação entre o trabalho e a filosofia na transformação do mundo.

1 Trabalho e suas possibilidades: alienação ou humanização

O desafio da formação humana na perspectiva da filosofia da práxis consiste em


possibilitar a realização da vocação ontológica e histórica do ser humano em processo
de humanização. Nessa perspectiva, Freire (1987) nos desafia a pensar que a tarefa
educativa deve partir do conhecimento da realidade concreta do estudante, de sua
situação histórica, existencial e social, porém não se limitar ao conhecimento dessa
realidade, mas necessariamente ao conhecimento do que ele pode vir-a-ser nesse
contexto, ou seja, de suas possibilidades e potencialidades de humanização. De ser
mais, enquanto um ser que está sendo, um ser em devir. Assim,

Na verdade, diferentemente dos outros animais, que são apenas


inacabados, mas não são históricos, os homens se sabem inacabados.
Tem a consciência de sua inconclusão. Aí se encontram as raízes da
educação mesma, como manifestação exclusivamente humana. Isto é,
na inconclusão dos homens e na consciência que dela têm. (FREIRE,
1987, p.73).

Para Freire (1987), a formação humana do ser individual precisa estar situada
dentro do vir-a-ser histórico-social, pois é somente nessa tessitura histórica e social que
o ser do oprimido pode desenvolver-se enquanto um ser social. Portanto, para Duarte
92

(1993) e Freire (1987), o caráter contraditório das relações sociais capitalistas tem
gerado tanto a possibilidade histórica de humanização como o seu oposto, a
desumanização. Desse modo, um processo educativo que possibilite o pensar crítico
frente aos problemas vivenciados em nossa realidade social, econômica e política verá
que:

O trabalho de milhões de seres humanos tem possibilitado que


objetivações humanas como a ciência e a produção material gerassem,
neste século, possibilidades de existência livre e universal sem
precedentes na história humana, mas isso tem se realizado de forma
contraditória, pois essas possibilidades tem sido geradas às custas da
miséria, da fome, da ignorância, da dominação e mesmo da morte de
milhões de seres humanos. Nunca o homem conheceu tão
profundamente a natureza e nunca a utilizou tão universalmente, mas
também nunca esteve tão próximo da destruição total da natureza e de
si próprio, seja pela guerra, seja pela destruição ambiental. (DUARTE,
1993, p.16-17).

Decerto, o indivíduo para se realizar, ou seja, para tse ornar propriamente ser
humano, superando e não suprimindo sua dimensão animal, precisa se objetivar na
natureza, transformando-a por meio do trabalho, adequando-a às suas necessidades
vitais, tanto as materiais como as imateriais. Desse modo, o ser humano não pode se
desenvolver, se humanizar sem se objetivar e se apropriar da natureza, transformando-a
e adequando-a às suas necessidades vitais. No entanto, nas relações sociais regidas pelo
sistema do capital, em que as objetivações humanas (Estado, cultura, arte, filosofia,
ciência, escola) estão privatizadas e não coletivizadas, ocorre concretamente o processo
de alienação (dominação) e a negação de sua vocação ontológica de ser mais, de fazer-
se humano.
Destarte, para a filosofia da práxis a formação do indivíduo (ser animal) em ser
humano se dá por um duplo processo. Em um primeiro momento pela relação com o
coletivo, isto é, a apropriação das características humanas objetivadas pela humanidade
em seu percurso histórico-social e ao mesmo tempo, pela apropriação individual que
cada um de forma singular faz das objetivações produzidas coletivamente pelo gênero
humano. Duarte (1993) faz uma distinção entre espécie humana e gênero humano que é
fundamental para pensarmos sobre o processo contraditório de formação humana no
interior das relações sociais capitalistas. Assim diz:

O mecanismo biológico da hereditariedade não transmite aos


indivíduos as características que permitirão considerá-lo efetivamente
93

um ser humano. Isso significa que não é a espécie que contém essas
características, não é na espécie que as características humanas
possuem uma existência objetiva. A objetividade das características
humanas historicamente formadas constitui o gênero humano. A
categoria gênero humano não se reduz àquilo que é comum a todos os
seres humanos, não é uma mera generalização de características
empiricamente verificáveis em todo e qualquer ser humano. Gênero
humano é uma categoria que expressa a síntese, em cada momento
histórico, de toda a objetivação humana, uma objetivação genérica.
(DUARTE, 1993, p.18).

Dessa forma, podemos afirmar que para se formar enquanto ser genérico, um ser
natural-humano, o indivíduo tem se objetivar e apropriar-se enquanto ser social, mas
essa sociabilidade, sendo formada no interior das relações sociais capitalistas, não
possibilita o seu processo de humanização e sim sua alienação enquanto indivíduo e
enquanto gênero humano. Em O Capital (vol.1), Marx desenvolve uma compreensão
ontológica que nos ajuda a distinguir o ser humano dos demais animais por meio do
trabalho:

O trabalho é, antes de tudo, um processo entre o homem e a natureza,


processo este em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e
controla seu metabolismo com a natureza. Ele se confronta com a
matéria natural como uma potência natural [Naturmacht]. A fim de se
apropriar da matéria natural de uma forma útil para a sua própria vida,
ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua
corporeidade: seus braços e pernas, cabeça e mãos. Agindo sobre a
natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. (MARX, 2013,
p.255).

Assim, o trabalho como atividade vital consiste na transformação consciente do


homem sobre a natureza com o objetivo de produzir de forma ampliada os meios
necessários à vida. Dessa forma, o trabalho mobiliza todo o ser do homem, não sendo
possível separar a atividade física da atividade intelectual, quando se trabalha é a
totalidade humana quem trabalha, não apenas uma parte de seu ser, mas seu ser por
inteiro. Portanto, o trabalho é a base a partir da qual cada membro de uma espécie
reproduz a si próprio enquanto ser singular e ao mesmo tempo reproduz-se enquanto
espécie. No entanto, de acordo com Duarte (1993), no caso específico do ser humano, a
mera sobrevivência física e biológica não significa a sua reprodução enquanto gênero
humano, com suas características especificamente humanas historicamente
desenvolvidas.
94

Assim, entender o trabalho como atividade vital humana significa que para
realizar o seu ser os seres humanos não podem prescindir dele, sendo ele (trabalho),
portanto, uma dimensão fundamental no processo de formação humana do ser genérico.
Nessa perspectiva, vejamos o que nos diz Marx (2002, p.116-117):

Certamente, o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva, aparece


agora para o homem como o único meio que satisfaz uma necessidade,
a de manter a existência física. A vida produtiva, entretanto, é vida
genérica. É a vida criando vida. No tipo de atividade vital está todo o
caráter de uma espécie, ou seu caráter genérico; e a atividade livre,
consciente, constitui o caráter genérico do homem. A vida revela-se
simplesmente como meio de vida. É exatamente na atuação sobre o
mundo objetivo que o homem se manifesta como verdadeiro ser
genérico. Esta produção é a sua vida genérica ativa. Por meio dela a
natureza nasce como a sua obra e a sua realidade. Em conseqüência, o
elemento do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem; ao
não se reproduzir somente intelectualmente, como na consciência, mas
ativamente, ele se duplica de modo real e percebe a sua própria
imagem num mundo por ele criado.

Dessa forma, o trabalho, segundo Marx, tem a função de realizar a passagem do


ser em si (natureza) para o ser para-si (ser genérico, cultura) na medida em que
possibilita a satisfação das necessidades materiais e imateriais dos seres humanos. O ser
humano, ao produzir sua existência por meio do trabalho, atividade mediadora entre o
animal humano e a natureza, não transforma apenas a natureza externa a ela, mas a si
próprio. O trabalho é mediação entre o homem e a natureza e enquanto tal tem em si
uma dupla dimensão, objetiva e subjetiva. Desse modo, o ser humano, para se manter
vivo e se reproduzir como gênero humano transforma a natureza, atua sobre ela por
meio de todos seus sentidos (corpo, cérebro, mãos) objetivando-se nela e criando os
objetos e artefatos necessários à reprodução de sua vida singular (pessoal) e genérica
(social).
Contudo, como visto anteriormente, não basta ao ser humano se objetivar na
natureza, ou seja, transformando-a por meio do trabalho, é preciso que ele se aproprie
dos objetos (produtos da atividade humana) criados pelo trabalho coletivo de todos para
que possa realizar o seu ser singular e genérico. Por meio dessa relação dialética entre
objetivação e apropriação humanas é que se torna possível a formação humana, ou seja,
a humanização dos sentidos humanos. Assim, os instrumentos, objetos, artefatos criados
pelos seres humanos possuem uma dupla dimensão: natural e sócio-cultural. A
dimensão natural é constituída pelas qualidades físico-químicas dos objetos; já a
95

dimensão sócio-cultural pelo lugar e utilidade que os mesmos ocupam ou ocuparão nas
relações e práticas sociais. Mas ao longo da história humana e mais especificamente
com o surgimento da propriedade privada e da divisão social do trabalho os produtos da
atividade vital humana, passaram a ser propriedade de uma única classe,
impossibilitando a socialização e apropriação universal dos bens produzidos pelo ser
humano. Desse modo, o trabalho se transmutou em meio de alienação humana. A
compreensão dessa questão nos remete novamente a Marx (2002, p.113):

A alienação do trabalhador no objeto revela-se assim nas leis da


economia política: quanto mais o trabalhador produz, menos tem de
consumir; quanto mais valores cria, mais sem valor e mais desprezível
se torna; quanto mais refinado o seu produto, mais desfigurado se
torna; quanto mais civilizado o produto, mais desumano o trabalhador;
quanto mais poderoso o trabalho, mas impotente se torna o
trabalhador; quanto mais magnífico e pleno de inteligência o trabalho,
mais o trabalhador diminui em inteligência e se torna escravo da
natureza. É evidente, o trabalho produz coisas boas para os ricos, mas
produz a escassez para o trabalhador.

Para Marx, o homem necessita objetivar-se como uma necessidade de seu


próprio ser. No entanto, não é a objetivação em si mesma que aliena o ser humano, mas
a forma que as objetivações humanas assumem em uma determinada formação social e
histórica, no caso específico da sociedade burguesa, que produz um ser humano
alienado. Conforme Duarte (1993), os seres humanos, ao objetivarem-se na natureza,
não podem por uma força que lhe é estranha apropriar-se dos objetos de seu próprio
trabalho, ou seja, estão alienados de sua própria atividade vital, dos produtos de seu
trabalho, da natureza, de si próprios e dos seus semelhantes.
Para Marx a superação da alienação do trabalho humano se daria somente
quando for suprimida a propriedade privada. A superação positiva da propriedade
privada conduziria a coletivização de todos os bens produzidos pelos seres humanos, o
que para Marx só seria possível em uma sociedade comunista. Na sociedade comunista,
superadas as relações sociais nas quais impera o capital, o mundo produzido pelo ser
humano resultante de sua atividade vital seria apropriado por todos, possibilitando o
desenvolvimento singular e ao mesmo tempo do gênero humano. Na sociedade
comunista a forma de apropriação da atividade humana se modifica fundamentalmente
em comparação com a sociedade capitalista, na qual as relações dos seres humanos com
o mundo por eles produzido são reduzidas a uma única forma de apropriação, ao ter, à
96

posse imediata. Nesse sentido, Marx (2002, p. 138) afirma: “O comunismo é a


eliminação positiva da propriedade privada como auto-alienação humana e, desta forma,
a real apropriação da essência humana pelo e para o homem”.
Desse modo, superadas as relações sociais de produção capitalistas, os seres
humanos teriam possibilidades de objetivarem-se e apropriarem-se autenticamente dos
produtos de sua atividade vital e por sua vez de realizarem sua vocação ontológica e
histórica de ser mais, de humanizarem a si e ao mundo. A objetivação que o ser singular
realiza por meio de seu trabalho passa a ser um processo no qual a sua individualidade
se transforma em objeto social. Nesse sentido:

A supressão da propriedade privada constitui deste modo, a


emancipação total de todos os sentidos e qualidade humanas. Mas só é
esta emancipação porque os referidos sentidos e propriedades se
tornaram humanos, tanto do ponto de vista subjetivo como objetivo. O
olho tornou-se um olho humano, no momento em que o seu objeto se
transformou em objeto humano, social, criado pelo homem e para o
homem. Consequentemente os sentidos do homem social são
diferentes do homem não social. Só por meio da riqueza
objetivamente desenvolvida do ser humano é que em parte se cultiva e
em parte se cria a riqueza da sensibilidade subjetiva humana (o ouvido
musical, o olho para a beleza das formas, em resumo, os sentidos
capazes de satisfação humana e que se confirmam como capacidades
humanas). (MARX, 2002, p. 142-143).

Assim, compreende-se a formação do humano como totalidade social, que se


apropria de sua humanidade enquanto sua individualidade, integrando em seu ser, seus
sentidos materiais e imateriais (espirituais). O caráter social do homem se manifesta nas
relações que estabelece com a natureza e com os demais seres humanos. O que o
homem é só pode sê-lo em relação a outros homens e, portanto, em sociedade. Desse
modo, compreendemos a formação humana na perspectiva da filosofia da práxis como
sendo dialeticamente o conjunto das relações sociais das quais o ser humano faz parte,
síntese entre individualidade e generecidade; particularidade e universalidade, natureza
e cultura.
Assim sendo, tendo presente essa compreensão, indagamos se a formação
humana é capaz de se realizar no seio das relações sociais regidas pela lógica do ter, do
lucro e das relações mercantis? Considerando o contexto contraditório e antagônico das
relações sociais capitalistas como tornar efetiva essa concepção de formação humana?
Como vimos anteriormente, nas relações sociais onde há propriedade privada dos meios
de produção e a divisão social do trabalho, os sentidos materiais e imateriais do ser
97

humano estão alienados, embrutecidos pelo modo ter de existência. A alienação dos
sentidos humanos não possibilita o desenvolvimento do ser humano em sua totalidade e
sua humanização enquanto ser particular e genérico.
Assim, ao analisar a questão da alienação como constitutiva das relações sociais
capitalistas, Gramsci (1978) afirma que essas relações ao mesmo tempo dificultam e
potencializam o desenvolvimento dos sentidos materiais e imateriais do ser humano em
sua plenitude. Desse modo, se por um lado a sociabilidade do capital, por meio da
apropriação privada unilateral da riqueza produzida coletivamente, exclui imensa
parcela dos seres humanos do acesso aos bens que são indispensáveis à reprodução
biológica e cultural do gênero humano; contraditoriamente, as classes trabalhadoras, por
meio de uma vontade coletiva podem organizar-se para conquistar a hegemonia
enquanto classe dirigente dispondo as relações sociais a serviço da formação
omnilateral do ser humano. Dessa forma, a possibilidade:

Não é a realidade, mas é também ela, uma realidade: que o homem


possa ou não fazer determinada coisa, isto tem importância na
valorização daquilo que realmente se faz. Possibilidade quer dizer
liberdade. A medida da liberdade entra na definição de homem. [...]
Mas a existência das condições objetivas ou possibilidades, ou
liberdade - ainda não é suficiente: é necessário conhecê-las e saber
utilizá-las. Querer utilizá-las. O homem, nesse sentido, é vontade
concreta: isto é, aplicação efetiva do querer abstrato ou do impulso
vital aos meios concretos que realizam essa vontade. (GRAMSCI,
1978, p.47).

Portanto, Gramsci (1978), ao relacionar possibilidade e liberdade, e Marx (2002,


2013), necessidade e liberdade, nos dizem que a formação humana compreendida como
humanização do ser humano é um processo histórico e como tal exige o questionamento
e a luta para a superação da sociabilidade burguesa por outro modo de produção, o
comunismo. No comunismo todos os bens produzidos pelo trabalho humano serão
coletivizados e estarão a serviço da realização de todos os seres humanos. Desse modo,
o comunismo é, para Marx (2002, 2013), a reapropriação do homem pelo homem, ou
seja, a possibilidade de superação da alienação humana e a realização da verdadeira
essência do homem enquanto ser genérico.
No entanto, na sociedade em que impera as relações sociais mercantis, a
concentração da riqueza nas mãos de uma pequena parcela da classe dominante é de tal
magnitude que segundo o Relatório do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD) intitulado "Humanidad dividida: como hacer frente a la
98

desigualdad em los países em desarollho" (2012) apenas um (1%) dos ricos detém 40%
por cento de toda a riqueza produzida no mundo; enquanto que os 40% mais pobres tem
apenas 1% do total da riqueza produzida pela humanidade.
Na perspectiva crítica das relações sociais geridas pelo capital, Fromm
(1977) observa que a sociedade industrial, capitalista, busca desenvolver nas pessoas o
modo ter de existência. Esse modo caracteriza-se pela ganância, pelo acúmulo de
riquezas, pelo consumismo, pela competição e pela supremacia do poder do dinheiro em
escala planetária sobre a vida humana e a natureza. A sociedade aquisitiva tem como
direitos intransferíveis do indivíduo adquirir, possuir e obter lucro. Dessa forma, pode-
se caracterizar o modo ter de existência como o modo de vida do próprio metabolismo
do capital. Com efeito,

Adquirir, possuir e obter lucro são os direitos sagrados e inalienáveis


do indivíduo na sociedade industrial. O que sejam as fontes da
propriedade não importa. A orientação no sentido do ter é
característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por
dinheiro, fama e poder tornou-se o tema dominante da vida. O homem
moderno é incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que
não esteja centrada na propriedade e na avidez (FROMM, 1977, p.
39).

Nesse sentido, para Fromm (1977), a totalidade da vida social encontra-


se reificada e alienada pela lógica do ter. De acordo com Freire (1987), o sistema global
do capital está configurado da seguinte forma: o capital é o opressor, os trabalhadores
são os oprimidos; a dominação e a submissão são as formas dominantes de relação; a
desumanização é a finalidade do opressor, a libertação a busca permanente do
oprimido. A história, portanto, é o horizonte aberto e dialético de possibilidades e
limites da formação humana, uma vez que

Pensar a História como possibilidade é reconhecer a educação também


como possibilidade. É reconhecer que se ela, a educação, não pode
tudo, pode alguma coisa. Sua força, como costumo dizer, reside em
sua fraqueza. Uma de nossas tarefas, como educadores e educadoras, é
descobrir o que historicamente pode ser feito no sentido de contribuir
para a transformação do mundo, de que resulte um mundo mais
“redondo”, menos arestoso, mais humano, e em que se prepare a
materialização da grande Utopia: Unidade na Diversidade. (FREIRE,
1993, p.35-36).

Dessa forma, em sua concepção original de história, Freire (1993) nos ajuda a
pensar os limites e possibilidades da prática educativa dentro das relações sociais
99

capitalistas de contribuir para a formação humana em vista ao ser mais dos educandos.
Assim, faz a crítica à concepção de História como algo já dado, como fatalidade, na
qual o ser humano não tem nada a fazer a não ser aceitar o “destino”. Essa concepção de
História anula a possibilidade do ser humano de por meio de sua ação-reflexão ser
sujeito transformando-o em objeto. Também rejeita a concepção de história como se a
mesma caminhasse de forma mecânica e determinista para uma finalidade portando em
si mesma um sentido. A história é o horizonte aberto e fecundo de possibilidades do
fazer-se humano. A radicalidade e originalidade da concepção de História de Freire
contribuem para a compreensão dialética da formação humana e do ser humano como
ser de possibilidades de humanização/desumanização. Em síntese, o ser humano é a
unidade na diversidade das dimensões que o constitui como ser de busca de ser mais, de
humanizar-se a si, aos outros e ao mundo; e a educação, como um processo de formação
humana comprometido com o desenvolvimento e a integração dessas dimensões do
humano.

2 A filosofia da práxis: mediação entre o trabalho e a filosofia na transformação do


mundo.

Como visto anteriormente o homem é um ser natural e enquanto tal não pode
viver sem a natureza. Também, é um ser de carecimento, pois necessita constantemente
manter um intercâmbio com a natureza externa (corpo inorgânico do homem) para
manter-se vivo. É por meio de sua atividade vital (o trabalho) que o homem transforma
a natureza exterior adequando-a à sua natureza. Nesse processo, tanto a natureza externa
se modifica pela ação consciente do homem, quanto a própria natureza humana se
humaniza. Essa relação do homem com a natureza é insuprimível, pois que:

A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza na


medida em que não é o próprio corpo do homem. O homem vive da
natureza, ou também, a natureza é o seu próprio corpo humano. O
homem vive da natureza, ou também, a natureza é o seu corpo, com o
qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer.
Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são
interdependentes significa apenas que a natureza se inter-relaciona
consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza. (MARX,
2002, p.116).
100

Destarte, essa passagem dos Manuscritos Econômico-Filosóficos mostra como


Marx concebia a relação do homem com a natureza de forma materialista-dialética. O
homem é natureza dentro da natureza. E como ser natural necessita transformar e se
apropriar dos elementos da natureza (terra, água, ar, alimentos) para manter-se vivo. Seu
corpo orgânico não vive sem o corpo inorgânico que é a própria natureza. Dessa forma,
ao transformar a natureza por meio do trabalho, o homem modifica seu próprio corpo,
como parte constitutiva da natureza. Para se realizar enquanto ser propriamente humano
necessita se objetivar e se apropriar da natureza que lhe é exterior, realizando assim suas
forças essencialmente humanas, ou seja, seus sentidos materiais e imateriais.
Assim, a produção da vida material pelo próprio homem é o que o distingue dos demais
seres da natureza. O homem, diferentemente do animal, age de forma consciente sobre a
natureza para agindo, elaborar por meio de sua atividade consciente os produtos
necessários à sua existência. Marx e Engels (2009) situam a própria atividade material
do homem como cerne de sua filosofia, ou seja, é por meio do trabalho que o homem
produz as condições necessárias à reprodução de sua vida material, funda dessa forma
uma filosofia da práxis em contraposição a uma filosofia especulativa e abstrata.
Segundo Semeraro (2006), tanto Marx como Gramsci compreenderam que o
pensamento é parte constitutiva da realidade e existe um nexo inseparável entre o agir e
o conhecer. A leitura da realidade e a compreensão dos fenômenos não se dão de forma
abstrata, mas derivam das relações sociais em que os seres humanos estão situados
historicamente. Por isso,

A filosofia da práxis [...] não é "ato puro", puro pensamento, esquema


gnosiológico abstrato que "cria" idealisticamente as coisas e os fatos,
mas "ato impuro", atividade concreta, histórica, fundada em relações
abertas, dinâmicas, dialéticas do homem com a natureza, da vontade
humana com as estruturas econômicas, dos projetos políticos com as
cristalizações culturais. (SEMERARO, 2006, p.33).

Destarte, a filosofia da práxis parte do princípio de que há uma reciprocidade


dialética entre objetividade e subjetividade, entre natureza e cultura. Nesse sentido,
Gramsci destaca que a tarefa fundamental da filosofia da práxis consiste na formação de
seres humanos críticos, formando sujeitos sociais capazes de reagirem praticamente
frente às diversas formas de dominação econômica, política ou cultural. Por certo, a
formação humana como resultado da prática social nos diz que, inicialmente, ela
prescindia da escola. A necessidade de produzir os meios necessários à reprodução da
101

própria vida material é que possibilitou que por meio do trabalho os seres humanos
transformassem a natureza adequando-a às suas necessidades e foi nesse intercâmbio
com a natureza que homens e mulheres inicialmente desenvolviam os saberes
fundamentais necessários a manutenção da vida individual e coletiva. (SAVIANI,
2012).
Em A ideologia alemã, Marx e Engels (2009) afirmam que podemos distinguir os
homens dos animais pela consciência, religião ou por qualquer outro atributo, educação,
por exemplo; mas os seres humanos se distinguem fundamentalmente dos animais à
medida que produzem seus meios de vida por meio do trabalho. Assim, Marx e Engels
(2009) resgatam a centralidade do trabalho como atividade ontológica formadora do
mundo humano e social. Desse modo, do ponto de vista da filosofia da práxis significa o
reconhecimento dessa relação prática do homem com o mundo e no conhecimento que o
homem tem do mundo e de si mesmo se dá por meio dessa relação prática.
Em consonância com a tese defendida por Marx de que a tarefa fundamental dos
filósofos consiste em transformar o mundo, podemos afirmar que o conhecimento é
parte constitutiva do processo de transformação prática, ou seja, para transformar a
realidade necessitamos conhecê-la. Desse modo, a teoria cumpre uma função prática
não por si mesma, pois as ideias por si só não operam nenhuma transformação, mas
tampouco a realidade pode ser transformada sem um arcabouço teórico. Dessa forma,

Ao entrar na filosofia, o ponto de vista da prática produz uma


mudança ou corte radical, ou seja, a passagem da filosofia como
interpretação à filosofia como filosofia da práxis ou da transformação
do mundo... Quando falamos deste duplo movimento – do pensamento
ao real, o que se acha em jogo é o essencial, seja no objeto como todo
concreto, seja no objeto como objeto pensado ou objeto do
pensamento. (VÁZQUEZ, 2002, p. 153-156).

Decerto, podemos compreender que a filosofia da práxis, ao não dicotomizar


prática-teoria, objetivo-subjetivo, potencializa a compreensão da formação humana em
sua totalidade como síntese de muitas relações que vai do concreto ao concreto pensado.
Nesse sentido, compreendemos ser o trabalho a categoria fundamental da filosofia da
práxis, pois é por meio dele que os seres humanos em sua ação sobre o mundo integram
a dimensão teórica e prática com vistas à sua transformação e humanização. A filosofia
da práxis considera impossível separar o ser humano concreto do projeto de
emancipação, da crítica da sociedade capitalista burguesa e do conhecimento e
superação dessa realidade. O problema filosófico fundamental para a filosofia da práxis
102

é a transformação do ser humano e da sociedade capitalista. Desse modo, Gramsci


entende que:

A afirmação de que a “natureza humana é o conjunto das relações


sociais” é a resposta mais satisfatória porque inclui a ideia do devenir:
o homem “devém”, transformar-se continuamente com as
transformações das relações sociais; e, também, porque nega o
“homem em geral”: de fato, as relações sociais são expressas por
diversos grupos de homens que se pressupõem uns aos outros, cuja
unidade é dialética e não formal. [...] Desta forma, chega-se também à
igualdade ou equação entre “filosofia e política”, entre pensamento e
ação: em suma, a uma filosofia da práxis. Tudo é político, inclusive a
filosofia ou as filosofias, e a única “filosofia” é a história em ato, ou
seja, a própria vida. (GRAMSCI, 1978, p.43, 44).

Nesse sentido, os princípios da filosofia da práxis como a unidade entre


objetivo-subjetivo, prática-teoria, filosofia e política, podem ser encontrados nos
pensamentos de Marx (2002, 2013), Freire (1987, 1993) e Gramsci (1978). Como
vimos, esses autores inauguram uma concepção original de filosofia, compreendendo-a
não como mera especulação do mundo, mas fundamentalmente como ação
transformadora do mundo natural, social e humano. Assim, a partir do pensamento
desses autores compreendemos a formação humana como síntese dialética entre as
dimensões objetivas e subjetivas, unidade na diversidade das dimensões que o constitui
como ser de busca de ser mais, de humanizar-se a si, aos outros e ao mundo; e a
educação, como um processo de formação humana comprometido com o
desenvolvimento e a integração dessas dimensões do humano.
Por certo, pode-se dizer que a compreensão da formação humana como síntese
entre objetividade (natureza) e subjetividade (cultura) é central para a filosofia da
práxis, uma vez que a matéria, a natureza e seu desenvolvimento sem o homem são
epistemologicamente incognoscíveis e sem sentido axiológico. Em um de seus escritos
nos Cadernos, cujo subtítulo “Que é o homem?”, pode-se ter clareza dessa compreensão
de formação humana para Gramsci. Assim, ele diz:

O homem deve ser concebido como um bloco histórico de elementos


puramente subjetivos e individuais e de elementos de massa –
objetivos ou materiais – com os quais o indivíduo está em relação
ativa. Transformar o mundo exterior, as relações gerais, significa
fortalecer a si mesmo, desenvolver a si mesmo. É uma ilusão, e um
erro, supor que o “melhoramento” ético seja puramente individual: a
síntese dos elementos constitutivos da individualidade é “individual”,
mas ela não se realiza e desenvolve sem uma atividade para o exterior,
103

atividade transformadora das relações externas, desde a com a


natureza e com os outros homens – em vários níveis, nos diversos
círculos em que se vive – até à relação máxima, que abraça todo o
gênero humano. Por isso, é possível dizer o homem é essencialmente
“político”, já que a atividade de transformar e dirigir conscientemente
os homens realiza a sua “humanidade”, a sua “natureza humana”.
(GRAMSCI, 1978, p.47-48).

Dessa forma, a filosofia da práxis procura superar a concepção de formação


humana abstrata que perdurou por séculos na história da filosofia ocidental. Assim a
formação do humano se dá sempre a partir de um contexto histórico-social, sendo o ser
humano um ser aberto, por fazer-se na história e pela história. Em outras palavras: para
a filosofia da práxis o homem é um ser incompleto, que se forma e transforma-se pelo
trabalho, atividade ontocriadora dos seres humanos e do mundo. Assim, na filosofia da
práxis, o mundo humano e social se constitui por meio do trabalho, ação intencional e
consciente do homem sobre a natureza com objetivo de adequá-la às suas necessidades
vitais materiais e imateriais. Portanto, o trabalho em sua dimensão ontológica é uma
categoria fundamental para a formação humana.

Considerações finais

No decorrer desse artigo, trouxemos a compreensão de que ao transformar a


natureza por meio de sua atividade vital, o ser humano produz as condições objetivas e
subjetivas que são necessárias ao duplo processo de formação humana. Portanto, o
trabalho tem ontologicamente uma dimensão formadora do humano. Porém, no modo
de produção capitalista, em que reina a divisão social do trabalho e a propriedade
privada das forças produtivas, o trabalho converte-se em meio de alienação e
degradação da vida humana, da sociedade e da natureza.
Além disso, para superação dessa dimensão alienante imposta pela sociedade
capitalista, acreditamos na filosofia da práxis como meio de transformação. Por isso, é
necessário conhecer a realidade e agir de tal forma que a realidade social e pessoal seja
transformada na perspectiva de uma sociedade emancipada e de um ser humano
humanizado. A relação indissociável entre práxis, trabalho e filosofia não permite que
esta última se perca em abstrações metafísicas ou no intimismo. Dessa forma, a filosofia
da práxis operou uma revolução no cerne da própria concepção de formação humana e
de filosofia.
104

Referências

DUARTE, Newton. A individualidade para-si. Campinas, SP: Editora Autores Associados,


1993. (Coleção educação contemporânea)

MARX, Karl. Os Manuscritos Econômico-Filosóficos. Martin Claret, 2002. Tradução: Alex


Martins.

______. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. O processo de produção do capital.


Tradução de Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Álvaro Pina, 1ª edição.
São Paulo: Expressão Popular, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.


______. Política e educação: ensaios. São Paulo: Cortez, 1993. (Coleção questões de nossa
época).
FROMM, Erich. Ter ou Ser. Editora LTC, 1977.

GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. 2ª ed. Civilização Brasileira, Tradução


de Carlos Nelson Coutinho, 1978.

______. Os intelectuais e a organização da cultura. 4ª ed. Civilização Brasileira, 1982.


Tradução: Carlos Nelson Coutinho.

SEMERARO, Giovanni. Gramsci e os novos embates da filosofia da práxis. São Paulo:


Aparecida. Idéias & Letras, 2006.

SAVIANI, Dermeval & DUARTE, Newton (orgs.). Pedagogia histórico-crítica e luta de


classes na educação escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. (Coleção polêmicas do
nosso tempo).

UNESCO. Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).


Título: "Humanidad dividida: como hacer frente a la desigualdad em los países em desarollho",
2012.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O CLÁSSICO E A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: CONTRIBUIÇÕES


PARA O ENSINO DE LITERATURA

Juliana Pereira Rageteles Gomes (UFES)1


Ana Carolina Galvão Marsiglia (UFES)2

Resumo: Com o objetivo de compreender o papel da arte na formação humana, o presente


trabalho tem a finalidade de apresentar as principais contribuições da pedagogia histórico-crítica
no que tange o ensino de literatura nas salas de aula. Busca destacar a importância dos clássicos
para a produção da catarse estética nos indivíduos, para isso, levanta a necessidade de se utilizar
materiais literários de qualidade reconhecida. Também ressalta a importância do papel exercido
pelo professor no processo de ensino-aprendizagem e da escola como lugar privilegiado para a
socialização do conhecimento sistematizado. Esta pesquisa caracteriza-se como estudo teórico-
conceitual cuja bibliografia é composta especialmente pelas obras dos professores Dermeval
Saviani e Newton Duarte, contando também com as produções de outros colaboradores que
coletivamente constroem esta proposição teórica.

Palavras-chave: Pedagogia histórico-crítica; literatura; Catarse estética.

Introdução

Tomar os pressupostos teóricos da pedagogia histórico-crítica como norteadores


do trabalho docente implica em conceber a escola como um espaço privilegiado para a
socialização das conquistas obtidas pela humanidade e, assim, para a transmissão de
conhecimentos científicos. Nesse sentido, concordamos com Saviani (2011a, p. 13)
quando afirma que “[...] o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”.
Assim, defendemos que a educação escolar deve exercer um papel fundamental
no processo de formação humana dos indivíduos, não se furtando de sua função
primordial que é a transmissão dos conhecimentos científicos, os quais vão além dos
conhecimentos que nos são apresentados pelo senso comum ou pela cultura popular.

1
Juliana Pereira Rageteles Gomes, Mestranda em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, ES,
Brasil. E-mail: julianaragetelesgomes@outlook.com
2
Ana Carolina Galvão Marsiglia, Doutora em Educação Escolar, Universidade Federal do Espírito Santo,
ES, Brasil. E-mail: galvão.marsiglia@gmail.com


106

Dessa forma, buscamos como objetivo principal nesse trabalho explicitar as


contribuições da pedagogia histórico-crítica para o ensino de literatura, tomando os
clássicos infantis como referência de uma literatura de qualidade, adequada a ser
utilizada na sala de aula, pois defendemos que a literatura é capaz de desenvolver no
indivíduo sua maior parcela de humanidade. Para alcançar tal objetivo, analisamos os
fundamentos teórico-metodológicos da pedagogia histórico-crítica; apresentamos a
gênesis dessa teoria, seus principais colaboradores e seu propósito para a educação
escolar brasileira e destacamos a importância da literatura para a formação dos
indivíduos, ressaltando o papel dos clássicos na produção da catarse estética.

1 A pedagogia histórico-crítica entre as correntes pedagógicas

A elaboração da teoria que hoje conhecemos como pedagogia histórico-crítica


está diretamente ligada à história de vida de seu principal elaborador, o professor
Dermeval Saviani. Logo no início de sua carreira docente, Saviani compreendeu que o
professor não pode ser um mero repetidor, um transmissor de conhecimentos já
compendiados; ele deve ser um pesquisador, um criador, que se posicione ativamente
em relação ao conhecimento produzido em sua área de atuação, tendo condições de
contribuir para seu desenvolvimento.
Sobre a finalidade da escola, o autor conclui que “o papel da escola não é
mostrar a face visível da lua, isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou
seja, revelar os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os
fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata”. A pedagogia histórico-crítica
origina-se na busca de alternativas ao escolanovismo, pedagogia prevalecente da época,
na necessidade de se elaborar uma teoria pedagógica que fosse crítica, e esse ideal
começa a tomar forma na década de 1970. (SAVIANI, 2011b, p. 201).
Segundo Saviani (2011b), a partir de 1977, avoluma-se a exigência de uma
análise do problema educacional que desse conta de seu caráter contraditório, resultando
em orientações pedagógicas, alterando-a e possibilitando sua articulação com os
interesses populares em transformar a sociedade. O autor destaca o ano de 1979 como
um marco da configuração mais clara da concepção histórico-crítica, pois, a partir desse
ano, o problema de abordar dialeticamente a educação começou a ser discutido de forma
mais ampla e coletiva, deixando de ser um esforço individual e isolado.
107

De acordo com Saviani (2011a), a expressão pedagogia histórico-crítica é o


empenho em compreender a questão educacional baseando-se no desenvolvimento
histórico objetivo; portanto, a concepção pressuposta na visão da pedagogia histórico-
crítica é o materialismo histórico.
Ferreira (2013) assegura que a pedagogia histórico-crítica é uma pedagogia
comunista, não apenas por ter sua base firmada nos pensamentos de Karl Marx, mas
também por sua própria confecção, sendo tecida por muitas mãos, pela coletividade dos
homens, sendo esse o seu diferencial, fazendo dela um bem comum e público. Tomar tal
pedagogia como meta exige que sejamos intolerantes em relação às mais diversas
formas de empobrecimento da existência humana no sentido mais amplo possível.
Segundo essa perspectiva pedagógica, a escola tem o papel de proporcionar aos
alunos o acesso ao saber elaborado. Duarte (2012, p. 155) defende que o papel da escola
é ir além do cotidiano das pessoas e que a única forma de alcançar esse objetivo é por
meio da transmissão das formas mais desenvolvidas e ricas do conhecimento até hoje
produzido pela humanidade. De acordo com a pedagogia histórico-crítica, a escola
exerce papel fundamental na sociedade, pois trata-se de um ambiente privilegiado para a
socialização dos saberes científicos.
Duarte (2012) afirma que a função da escola é transmitir as formas mais
desenvolvidas e ricas do conhecimento já produzido pela humanidade. Ao professor
cabe a função de transmitir o conhecimento às novas gerações, mediando e
sistematizando o ensino, propondo conteúdos que ultrapassem o senso comum, a fim de
aproximar seus alunos do conhecimento elaborado. O autor compreende que o trabalho
pedagógico deve se realizar levando em conta a organização dos meios pelos quais cada
indivíduo singular realizará a humanidade produzida historicamente.

2 Pedagogia histórico-crítica, clássicos e catarse

A pedagogia histórico-crítica defende que a escola configura-se como um


ambiente privilegiado para a socialização do conhecimento historicamente acumulado,
um conhecimento sistematizado. Logo, Saviani (2011a, p. 14) afirma que “[...] a escola
diz respeito ao conhecimento elaborado e não ao conhecimento espontâneo; ao saber
sistematizado e não ao saber fragmentado; à cultura erudita e não à cultura popular”3.

3
Saviani (2011a) explicita que a escola existe para transmitir aquilo que não temos acesso em nossa vida
cotidiana. O autor afirma que o ensino do conhecimento baseado no senso comum, da sabedoria adquirida
108

Assim sendo, é preciso, para além da organização das formas, identificar os


elementos mais humanizadores que serão sistematizados, constituindo o conjunto de
conhecimentos a ser transmitido. Por isso, há a necessidade de distinguir entre o que é
fundamental e o que é secundário, surgindo então a importância do “clássico”.
Saviani e Duarte (2012, p. 30) esclarecem que o termo “clássico” deriva da
palavra “classe”, significando “aquilo que é de primeira linha”. Declaram que, no século
II, Aulo Gélio, famoso gramático latino, passou a designar como clássico todo escritor
que “[...] pela correção da linguagem se constituía um autor de primeira ordem
(classicus scriptor)”. A partir desse momento “clássico” passou a denominar aquilo que
é referência para os demais, “[...] que se aproxima da perfeição [...]”.
Segundo esses autores, o clássico é aquilo que resistiu ao tempo, que vai para
muito além do momento em que foi formulado e que serve de referência para as
gerações futuras. Saviani (2011a, p. 13) ainda afirma que “o clássico é aquilo que se
firmou como fundamental, como essencial.” Gomes e Marsiglia (2012b) apontam que
os conteúdos clássicos são os mais humanizadores, firmando-se como elementos
fundamentais para a objetivação de cada indivíduo.
A concepção de clássicos perpassa por todas as áreas de conhecimento e, dentre
inúmeros conteúdos que necessitam serem trabalhados, esta pesquisa se atém ao ensino
de literatura, defendendo, portanto, que é preciso oportunizar aos alunos, desde a mais
tenra idade, a apropriação de obras de arte clássicas, utilizando-se das mais diferentes
formas de organização de sua apresentação.
Para melhor compreensão da importância dos clássicos literários para a
formação humana, Ferreira (2012) destaca a importância de entendermos a arte como
necessidade humana ontologicamente condicionada. Para isso, cita a ideia de “homem
rico”, que, para Marx (apud FERREIRA, 2012, p. 48), “[...] é simultaneamente o
homem necessitado de uma totalidade da manifestação humana da vida. O homem no
qual a sua própria realização efetiva existe como necessidade, como carência”.
Portanto, o homem rico é o ser provido de todos os sentidos em profundidade.
Ainda seguindo as afirmações de Marx, a autora conclui que na sociedade capitalista a
necessidade estética dos indivíduos se faz muito rara e rasa e a maioria da população
aliena-se dessa necessidade, já que sua maior ocupação e preocupação é a luta para

pela experiência de vida não justifica a existência da escola, pois tais conhecimentos não dependem dela
para serem socializados. Entretanto, o autor não tem a intenção de desvalorizar a cultura popular e nem
promover juízo de valor.
109

satisfazer suas necessidades físicas imediatas e nessa luta quase não há ou não há
nenhum espaço para a formação estética.
Diante dessa situação, Ferreira (2012) defende que a arte é uma necessidade
ontológica que está diretamente ligada ao processo histórico de autoformação da
humanidade e que nos termos de uma estética marxista não pode ser vista como
contemplação imparcial, desconectada do todo social, nem como apenas entretenimento.
Duarte (2009, p. 470) defende que: “Se a arte propiciar aos indivíduos uma
vivência subjetiva intensificada de conflitos que impulsionem a autoconsciência a níveis
cada vez mais elevados, ela desempenhará uma função formadora, isto é, educativa”.
Portanto, segundo o autor, a arte possui a função social4 de produzir a desfetichização
da realidade social e de fazer o receptor da obra artística deparar-se com o
questionamento acerca do próprio núcleo humano de sua individualidade. Segundo
Lukács (apud DUARTE, 2009, p. 471), a realidade expressa na obra de arte é sempre a
realidade humana, é sempre o mundo dos homens. O autor afirma que toda arte e
literatura de qualidade são humanistas, não por apenas estudarem o homem, mas
também por defenderem apaixonadamente a integridade humana do homem.
Ao afirmar que a literatura pode promover a catarse5 nos indivíduos que dela se
apropriam. Ferreira (2012) explicita que o termo catarse foi vastamente utilizado por
Aristóteles, em um sentido médico que significava purificação, purgação. Ele também
foi o primeiro a usar o termo para designar o fenômeno estético, no sentido de
libertação, serenidade que a poesia provocaria no homem. A autora esclarece que a
catarse é um momento de superação radical e sem retorno da visão de mundo que o
sujeito antes possuía, com consequências tanto para sua subjetividade como para suas
ações concretas, em suma, é a chegada a um estágio de plena consciência, a
antialienação. Também destaca, em consonância com a pedagogia histórico-crítica, que
a catarse é a expressão da ascensão da consciência a um nível superior de compreensão
da prática social. Sobre a arte, Duarte (2009, p. 473) afirma que esta pode provocar a
catarse estética no indivíduo. Nesse sentido, o autor explica que a arte:


4
Abrantes (2013) aponta três níveis de arte: Arte elitista, arte para as massas e arte social. A arte social é
a que estamos considerando, assim como o autor, como aquela que tem função desfetichizadora da
realidade.
5
O conceito de catarse vem sendo utilizado no platonismo, aristotelismo, na psicanálise e em outras áreas
de conhecimento, não sendo um conceito restrito ao campo da estética. Neste texto, tomaremos a catarse a
partir de seu entendimento estético e fundamentado no materialismo histórico-dialético. Para um
detalhamento sobre a origem e desenvolvimento mais amplo do conceito de catarse, confira Ferreira
(2012).
110

[...] opera uma mudança momentânea na relação entre a consciência


individual e o mundo, fazendo com que o indivíduo veja o mundo de
uma maneira diferente daquela própria ao pragmatismo e ao
imediatismo da vida cotidiana. Por meio dessa momentânea suspensão
da vida cotidiana, a arte exerce um efeito formativo sobre o indivíduo,
mas tais repercussões não ocorrem de maneira direta e imediata,
havendo entre elas e a catarse estética uma complexa trama de
mediações que torna impossível definir a priori as consequências para
a vida de um determinado indivíduo, do processo de recepção de uma
determinada obra de arte.

Assim, referindo-se à catarse que pode ser produzida pela literatura, Ferreira
(2012, p. 16) assinala que “[...] inserida no patrimônio histórico humano-genérico está a
literatura e que, como valioso legado cultural necessita ser socializada pelas vias da
educação escolar”. Segundo Ferreira (2012), a vivência estética e a atividade educativa
se assemelham; porém, como alerta Duarte (2008), nenhuma delas transforma
diretamente a sociedade nem diretamente a vida do indivíduo, mas podem exercer
influência direta tanto na transformação da sociedade como na vida dos seres humanos.
Ao defender a importância do ensino de literatura, Ferreira (2012) esclarece que
não é qualquer tipo de leitura que produz a catarse estética, pois nem toda leitura será
capaz de produzir o efeito de elevação acima da vida cotidiana. Segundo ela, esse
objetivo só pode ser alcançado pelo trabalho com os clássicos, pois estes não dizem
respeito a tempo ou território. Nesse sentido, Calvino (1993) advoga que um livro
clássico exerce influência particular, impondo-se como inesquecível; é aquele que
persiste no tempo, “nas dobras da memória”, sempre precisando ser relido.
A compreensão de clássico literário é de extrema importância para a seleção de
materiais que sejam adequados e de qualidade, que possam ser trabalhados na sala de
aula e que proporcionem aos alunos a possibilidade de produzir esse salto cognitivo
para além de sua vida cotidiana. Eleger tais materiais não é uma tarefa fácil e nem deve
ser feita individualmente; pois, segundo Ferreira (2013) a alienação e a emancipação
estão contidas no conteúdo escolar, já que esses conteúdos surgem da história. Ter
consciência disso é um grande passo na luta contra as pedagogias hegemônicas.
Conforme Abrantes (2011), a literatura cumpre papel formativo na existência
individual, pois representa o mundo, coloca problemas, revela injustiças, explicita a
atividade humana e suas principais contradições. Desse modo, o autor afirma que a
literatura apresenta-se como força que interfere na vida, na medida em que atua
111

comunicando dificuldades e possíveis soluções, permitindo assim, que os indivíduos se


defrontem com problemas humanos e se tornem conscientes.
Concordando com Lukács, Ferreira (2013) defende que ao escolhermos um
conteúdo literário, é necessário utilizar uma obra de arte que esteja para além do
cotidiano alienado, que tenha o poder de tirar o indivíduo, mesmo que
momentaneamente, da vida cotidiana para lançá-lo a um mundo representado de outra
maneira, estranha à sua cotidianidade.
De acordo com Abrantes (2011, p. 171), “[...] a literatura infantil caracteriza-se
como forma artística vinculada aos gêneros secundários ou mesmo com atividades não
cotidianas [...]”. No entanto, o autor reconhece que nem todo livro infantil apresenta
esse alcance, pois existem materiais de qualidades distintas e, muitos deles, pouco se
diferem do linguajar usado cotidianamente. Segundo o autor:

A definição dos livros infantis mediadores das atividades organizadas


na educação infantil6 devem levar em consideração, em um primeiro
momento, sua forma literária, visto que as atividades educativas
devem ser mediadas por objetivações humanas que despertem a
curiosidade e ampliem as esferas de significação, considerando a
apropriação do patrimônio produzido pelos seres humanos nos níveis
máximos de elaboração. (ABRANTES, 2011. p.176).

Abrantes (2011) advoga que a literatura infantil utilizada na escola pode


articular-se com a realização de práticas de resistência ao processo de dominação dos
indivíduos que perpassam as relações sociais de uma sociedade de classes, pois
possibilita acesso a conhecimentos e à cultura letrada, contribuindo, assim, para o
desenvolvimento das capacidades de avaliar situações próprias às relações sociais.
Mesmo que de forma modificada pela imaginação dos autores, as crianças se deparam
com problemas humanos e também com o encaminhamento de soluções para tais
situações conflituosas.
O autor indica que a sala de aula configura-se como espaço privilegiado para se
produzir o gosto pela leitura e sua prática, propiciando o intercâmbio da cultura literária,
contribuindo para o desenvolvimento do leitor mirim. De acordo com Ferreira (2013), é
uma demanda da educação escolar abarcar também a arte como forma de conhecimento.
É sua função socializar os conteúdos estéticos, pois, segundo a autora, a arte é uma
necessidade ontológica, porém, muitos indivíduos não carecem dela, pois esta


6
Ainda que o autor esteja se referindo especificamente sobre a educação infantil, podemos tomar suas
observações para além desse segmento.
112

necessidade não lhes foi motivada em seu interior. Diante disso, entende-se que é papel
da escola criar a necessidade da arte na vida dos indivíduos.
Abrantes (2011) ressalta ainda que a literatura infantil é uma arte literária e
como tal deve apresentar textos de valor literário às crianças, pois o fato de ser um
material destinado ao público infantil não justifica a aceitação de produtos de menor
qualidade.

Considerações finais

O estudo dos clássicos é de extrema importância, já que esses trazem aquilo que
se estabeleceu como primordial para a formação do intelecto humano e que cabe à
escola o papel de transmitir esses saberes que vão para além do senso comum. No que
diz respeito à literatura, entende-se que ela é um legado artístico humano, capaz de
promover a catarse estética nos indivíduos, fazendo-os avançar em conhecimento, desde
que os materiais utilizados sejam selecionados de forma criteriosa para que sejam
utilizados materiais de qualidade reconhecida.
Apontamos com essa pesquisa que a pedagogia histórico-crítica, como
fundamento teórico para a prática docente, contribui diretamente no trabalho do
professor, conscientizando-o e auxiliando-o em seu papel de transmissor de
conhecimento. Tal corrente teórica valoriza o trabalho docente, destacando a escola
como espaço privilegiado para a socialização dos saberes já alcançados pela
humanidade, dentre os quais se encontra a literatura, que como forma artística humana é
capaz de produzir no sujeito avanços intelectuais que não seriam possíveis por outros
meios.
Em suma, esse trabalho nos permitiu a aproximação com a importância de se
trabalhar com textos clássicos e de qualidade reconhecida, para que os alunos tenham
contato com materiais que fujam à sua rotina, podendo, enfim, humanizar-se pela
aquisição desses conhecimentos.

Referências

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contexto da Educação Infantil. In: MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão (Org.). Infância e
pedagogia histórico-crítica. Campinas, SP: Autores Associados, 2013, p. 145-195.

______. A educação escolar e a promoção do desenvolvimento do pensamento: a mediação


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113

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FERREIRA, Nathalia Botura de Paula. Catarse e literatura: uma análise com base na pedagogia
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______. A catarse estética e a pedagogia histórico-crítica: contribuições para o ensino de


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SP, 2012. Disponível em: <http://boletimef.org/biblioteca/2907/A-catarse-estetica-e-a-
pedagogia-historico-critica>. Acesso em: 20 abril 2015.

GOMES, Juliana Pereira Rageteles; MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. Monteiro Lobato na
sala de aula: a pedagogia histórico-crítica e o ensino de leitura dos clássicos. In: CONGRESSO
INTERNACIONAL SOBRE A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL. Jornada do Núcleo de
Ensino de Marília, 11., 2012, Marília, SP. Anais... Marília, SP: UNESP, 2012b.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas,


SP: Autores Associados, 2011a.

______. Antecedentes, origem e desenvolvimento da pedagogia histórico-crítica. In:


MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão (Org.). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas,
SP: Autores Associados, 2011b.

SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton. A formação humana na perspectiva histórico-


ontológica. In: SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton (Orgs.). Pedagogia histórico-crítica e
luta de classes na educação escolar. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. p. 13-35.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PEDAGOGIA HISTÓRICO CRÍTICA E O MOVIMENTO DE BUSCA POR


UMA EDUCAÇÃO INTEGRAL OMNILATERAL

Elaine Cristina Melo Duarte (Unicamp) 1


Mara Regina Martins Jacomeli (Unicamp) 2

Resumo: O presente trabalho é fruto de uma pesquisa em fase inicial, voltada à elaboração de
dissertação de mestrado em educação. Apresentamos aqui uma reflexão inicial sobre a
perspectiva marxista de formação omnilateral e suas implicações para uma educação
verdadeiramente integral, que não se identifica automaticamente com educação em tempo
integral. A educação integral, ou omnilateral, refere-se à produção, nos alunos, de necessidades
relacionadas às mais ricas formas de objetivação do gênero humano, como a ciência, a arte e a
filosofia. Trata-se, portanto, da superação dos limites do pragmatismo cotidiano. Já a educação
em tempo integral refere-se à duração da jornada escolar diária que, no contexto educacional
brasileiro atual, tem caminhado na direção oposta a uma formação omnilateral, desfocando a
educação escolar da tarefa de socialização do saber sistematizado e ocupando o tempo de
permanência na escola com atividades limitadas às demandas do cotidiano capitalista alienado.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico Crítica; Educação integral; Formação Omnilateral;


Educação em tempo integral.

Introdução

A necessidade de apropriação de conhecimentos clássicos na sociedade atual é


urgente. Vivemos em uma sociedade em que o avanço da burguesia ultrapassa todos os
limites. Fica cada vez mais evidente o quanto a sociedade capitalista de um modo geral
contribui para que nos tornemos seres unilaterais, alienados e pobres, não apenas no
sentido econômico, mas também pobres de conhecimento e de formação como seres
humanos. De certa forma, acabamos contribuindo para a riqueza capitalista e para a
manutenção desse modo de produção. Sabemos que a educação por si só não é capaz de
romper com as relações capitalistas de produção, mas a luta pela formação humana


1
Elaine Cristina Melo Duarte, Mestranda em educação, Universidade Estadual de Campinas, SP, Brasil.
E-mail: elainecmduarte@outlook.com.br
2
Mara Regina Martins Jacomeli, Professora, Universidade Estadual de Campinas,. SP, Brasil. E-mail:
mararmj@unicamp.br


115

integral, omnilateral, pode ser uma parte importante da organização da classe


trabalhadora com vistas à transformação da sociedade.

1 A necessidade de apropriação do conhecimento

É nítida a necessidade que o capital possui de estruturar a sociedade e a


educação conforme seus próprios interesses. A sociedade capitalista produz cada vez
mais necessidades alienadas de consumo, mas não produz o processo de humanização,
não produz a necessidade de apropriação dos conhecimentos mais elevados, não produz
necessidades enriquecedoras.
A educação pode enriquecer os indivíduos fazendo com que eles se apropriem
de determinados conhecimentos, fazendo com que essa apropriação gere necessidades
de novos conhecimentos, que os aproximem das obras mais elevadas produzidas pelo
pensamento humano. (DUARTE 2013).
Nesse sentido, cabe à escola transmitir os conhecimentos produzidos
historicamente, produzindo assim nos alunos a necessidade de apropriação cada vez
maior desses conhecimentos em seus níveis mais elevados. Pois assim como o trabalho
é alienado e fragmentado, a educação nessa sociedade também é cada vez mais
unilateral e subordinada ao cotidiano alienado.
A pedagogia histórico-crítica entende que a educação escolar não deve se limitar
às necessidades da vida cotidiana, mas sim produzir necessidades em níveis mais
elevados (DUARTE, 2013), contribuindo, dessa maneira, para a formação de um ser
humano rico e desenvolvido. Segundo Marx (2004, p. 112-113):

O homem rico é simultaneamente o homem carente de uma totalidade


da manifestação humana de vida. O homem, no qual a sua efetivação
própria existe como necessidade interior, como falta. Não só a
riqueza, também a pobreza do homem consegue na mesma medida –
sob o pressuposto do socialismo – uma significação humana e,
portanto, social. Ela é o elo passivo que deixa sentir ao homem a
maior riqueza, o outro homem como necessidade. A dominação da
essência objetiva em mim, a irrupção sensível da atividade essencial é
a paixão, que com isto se torna a atividade da minha essência.

Segundo essa concepção de Marx, o ser humano, o homem rico é alguém que
tem a necessidade de se apropriar das objetivações do gênero humano nas suas formas
mais desenvolvidas. É nesse sentido que a escola deve produzir essa riqueza nos alunos,
116

não riqueza no sentido econômico tão idolatrada na sociedade capitalista, mas sim
riqueza plena de conteúdo.
A escola destinada às crianças da classe trabalhadora, na maioria das vezes,
limita-se a reproduzir necessidades imediatas da vida cotidiana, ao passo que a
pedagogia histórico-crítica defende a produção de necessidades que ultrapassem os
limites do pragmatismo cotidiano, fazendo com que haja a apropriação das objetivações
humanas como a arte, a ciência, a filosofia, levando o indivíduo uma formação integral,
omnilateral. Esclarece, porém, Duarte (2013, p. 215) que se faz necessário trabalhar
com uma contradição:

A educação escolar na sociedade capitalista não poderá formar


plenamente esse ser humano rico, pois isso só poderá ser alcançado
com a superação dessa sociedade. Mas já é possível, nas condições
atuais, fazer com que os conhecimentos científicos, artísticos e
filosóficos se tornem necessários para os indivíduos, produzindo o
movimento de superação dos limites da vida cotidiana e da
individualidade centradas na satisfação das necessidades particulares.
Para isso, porém, o trabalho educativo escolar precisa ter como
referência, do ponto de vista da formação dos alunos, o movimento de
superação da individualidade em si, por sua incorporação à
individualidade para si; e precisa ter como referência, para a definição
dos conteúdos e métodos de ensino, as objetivações mais
desenvolvidas do gênero humano. (DUARTE, 2013, p. 215)

2 Pedagogia histórico crítica e educação integral omnilateral

Para Duarte (2015), a formação ominilateral não se identifica com a educação de


tempo integral, pois a defesa da educação de tempo integral pode se limitar à questão do
tempo diário de permanência da criança na escola, sem uma proposta pedagógica que
verdadeiramente assuma o compromisso com a superação do caráter unilateral da
formação e da vida humana na sociedade burguesa. Isso de fato frequentemente
acontece na educação de tempo integral, pois a proposta pedagógica está a serviço da
burguesia, sendo assim contribui para formação unilateral, formando pessoas para
atender às demandas do capitalismo. Segundo Frigotto e Ciavatta:

A tarefa do desenvolvimento humano omnilateral e dos processos


educativos que a ele se articulam direciona-se num sentido antagônico
ao ideário neoliberal. O desafio é, pois, a partir das desigualdades que
são dadas pela realidade social, desenvolver processos pedagógicos
que garantam, ao final do processo educativo, o acesso efetivamente
democrático ao conhecimento na sua mais elevada universalidade.
117

Não se trata de tarefa fácil e nem que se realize plenamente no interior


das relações sociais capitalistas. Esta, todavia, é a tarefa para todos
aqueles que buscam abolir estas relações sociais. (FRIGOTTO,
CIAVATTA, 2012, p. 270-271).

Ainda segundo esses autores:

Omnilateral é um termo que vem do latim e cuja tradução literal


significa ‘todos os lados ou dimensões’. Educação omnilateral
significa, assim, a concepção de educa- ção ou formação humana que
busca levar em conta todas as dimensões que constituem a
especificidade do ser humano e as condições objetivas e subjetivas
reais para o seu pleno desenvolvimento histórico. Essas dimensões
envolvem sua vida corpórea material e seu desenvolvimento
intelectual, cultural, educacional, psicossocial, afetivo, estético e
lúdico. Em síntese, educação omnilateral abrange a educação e a
emancipação de todos os sentidos humanos, pois os mesmos não são
simplesmente dados pela natureza. (FRIGOTTO, CIAVATTA, 2012,
p. 265).

Nessa perspectiva, a educação omnilateral tem compromisso com o


desenvolvimento pleno do ser humano, levando-se em conta todas as dimensões,
contribuindo assim para o processo de desenvolvimento das diversas dimensões
constituintes do gênero humano. A educação escolar é imprescindível para a formação
omnilateral, mas não é suficiente, pois a formação humana omnilateral envolve a
totalidade da vida humana. Para Marx e Engels

A indústria praticada em comum, segundo um plano estabelecido em


função do conjunto da sociedade, implica homens completos, cujas
faculdades são desenvolvidas em todos os sentidos e que estão à altura
de possuir uma clara visão de todo o sistema de produção. (MARX;
ENGELS, 1978, p. 109).

Ao contrario da formação humana unilateral, fragmentada e alienada, a


formação omnilateral desenvolve o ser humano em todos os sentidos e aptidões. A
dimensão subjetiva da existência humana precisa superar a alienação, como é enfatizado
na seguinte citação do Marx:

Pressupondo o homem como homem e seu comportamento com o


mundo enquanto um [comportamento] humano, tu só podes trocar
amor por amor, confiança por confiança etc. Se tu quiseres fluir da
arte, tens de ser uma pessoa artisticamente cultivada; se queres
influência sobre outros seres humanos, tu tens de ser um ser homem
que atue efetivamente sobre os outros de modo estimulante e
encorajador. Cada uma das tuas relações com o homem e com a
natureza tem de ser uma externação (Äusserung) determinada da vida
118

individual efetiva correspondente ao objeto da tua vontade. Se tu amas


sem despertar amor recíproco, isto é, se teu amor, enquanto amor, não
produz amor recíproco, se mediante tua externação de vida
(Lebensäusserung) como homem amante não te tornas homem amado,
então teu amor é impotente, é uma infelicidade. (MARX, 2004, p.161)
.
Marx deixa bem claro na citação acima como deve ser o ser humano
ominilateral, ou seja completo. Esse é um ideal de educação integral, voltada para a
formação completa, das aptidões fisicas e psiquicas.
Não é recente a discussão, na educação brasileira, sobre a escola de tempo
integral. Não será possível, nesse trabalho, analisar toda a história dessa temática, suas
origens, suas principais referências etc. O ponto específico que aqui trazemos para
discussão é a contradição que muitas vezes se estabelece entre as propostas de educação
de tempo integral e aquilo que seria necessário para uma formação verdadeiramente
integral, omnilateral. Em outras palavras, a depender da maneira como sejam
implementadas propostas de educação de tempo integral, ao invés delas contribuírem
para uma educação verdadeiramente integral, acabam por acentuar a precariedade da
educação escolar no que se refere ao domínio do conhecimento em suas formas mais
ricas e desenvolvidas.
Há um discurso de formação integral por meio de atividades socioeducativas no
contraturno escolar. Parte-se da constatação de que os resultados da educação deixam a
desejar e que é necessário mais tempo para a realização de ações que revertam esse
quadro. Mas as causas dessa situação são identificadas como externas ao âmbito
propriamente pedagógico e então o aumento do tempo escolar, ao invés de ser
empregado em atividades que melhorem a aprendizagem dos conteúdos escolares
clássicos, acaba sendo destinado a atividades que supostamente atacariam os problemas
que estariam impedindo o sucesso escolar como violência, “família desestruturada”,
falta de interesse, ausência de perspectiva de vida etc. São atribuídas à escola
responsabilidades que extrapolam seus limites e, dessa maneira, desvia-se a atenção do
fato de que o trabalho educativo não está realizando aquilo que estaria ao seu alcance,
ou seja, a socialização do conhecimento cientifico, artístico, filosófico em suas formas
mais desenvolvidas.
A discussão sobre escola de tempo integral não pode deixar de abordar a questão
do currículo, há necessidade de se diferenciar as atividades curriculares nucleares das
secundárias; mas a secundarização dos conhecimentos clássicos nos currículos escolares
encontra respaldo nas orientações oficiais, como explica Jacomelli:
119

A visão dos conhecimentos que devem ser ministrados na escola,


tendo como fonte de orientação os PCNs e seus Temas Transversais,
tem por pressuposto que o modelo de ciência até então vigente na
sociedade precisa ser superado. Em função das grandes
transformações econômicas, tecnológicas, culturais e outras, adeptos
desse entendimento afirmam que as ciências e o conhecimento delas
decorrentes precisam passar por um processo de superação. A
sociedade capitalista, agora sob a égide da globalização do mundo, da
economia, da cultura, dos valores, dos homens, bem como do grande
desenvolvimento tecnológico, evidencia que o conhecimento
especializado não serve mais como referencial para a aprendizagem. O
mundo é “complexo” e a complexidade dos conhecimentos deve ser
abarcada pelos novos currículos escolares. (JACOMELI, 2004, p. 3).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) não deixam dúvidas que seu


objetivo é atender às exigências da sociedade capitalista. Percebe-se uma grande
desvalorização da escola, ao menos da escola voltada à transmissão do saber
sistematizado. Para Saviani (2012), essa desvalorização tem como objetivo reduzir o
impacto da escola em relação às exigências de transformação da própria sociedade.
Segundo Jacomeli (2004), o papel da escola reduziu-se praticamente a transmitir
conhecimentos de pouca relevância e muitas vezes questionáveis. A escola destinada às
crianças da classe trabalhadora não tem transmitido os clássicos, os conhecimentos mais
ricos e desenvolvidos, ou seja, a escola não tem cumprido o papel de socializadora do
saber sistematizado. É nesse contexto que é importante a incorporação da pedagogia
histórico-crítica ao campo dos debates e políticas da educação de tempo integral,
buscando-se romper com as posições hegemônicas e articular-se a educação integral à
luta pela socialização do saber sistematizado, ou seja, à luta por uma educação
verdadeiramente integral.

Considerando o aluno como um ser global, a perspectiva histórico-crítica


concebe a sistematização e a socialização do conhecimento a partir das
relações entre a teoria e a prática, em um modelo educacional que chama para
si a concepção de educação integral, ressaltando “a especificidade da escola e
a importância do trabalho escolar como elementos necessários ao
desenvolvimento cultural, que concorrem para o desenvolvimento humano
em geral”. (SAVIANI, 2008, p. 103).

A educação integral deve gerar no aluno uma necessidade de apropriação de


conhecimentos e fazer com que essa necessidade aumente cada vez mais, deve-se
formar numa perspectiva omnilateral, rompendo com o caráter unilateral. É necessário
caminharmos em uma direção oposta à formação humana unilateral provocada pelo
capitalismo, é necessário caminharmos em direção à formação omnilateral superando o
120

individualismo, a mesquinhez e os preconceitos da sociedade atual, capitalista. Faz-se


necessário um processo de desprivatização do conhecimento, desprivatização da riqueza
material e intelectual da humanidade.
As escolas de tempo integral comumente realizam, no chamado contraturno,
atividades desconectadas do ensino dos conteúdos escolares, com um caráter
predominantemente recreativo e que, de certo modo, acabam prejudicando o estudo da
criança, pois ela chega em casa cansada e não faz as tarefas escolares. Esse tipo de
educação em tempo integral não faz sentido, pois amplia o tempo de permanência da
criança na escola, mas não garante aprendizagem, não garante apropriação dos
conhecimentos clássicos. De acordo com Saviani e Duarte, clássico é:

(...) é aquilo que resistiu ao tempo, tendo uma validade que extrapola
o momento em que foi formulado. Define-se, pois, pelas noções de
permanência e referência. Uma vez que, mesmo nascendo em
determinadas conjunturas históricas, capta questões nucleares que
dizem respeito à própria identidade do homem como um ser que se
desenvolve historicamente, o clássico permanece como referência para
as gerações seguintes que se empenham em se apropriar das
objetivações humanas produzidas ao longo do tempo. (SAVIANI;
DUARTE, 2012, p. 31)

Os clássicos precisam ser incorporados à escola de período integral, de forma
rica e sistematizada. A arte, a filosofia, a ciência têm grande riqueza e valor na história
humana, precisam ser transmitidas para as novas gerações por meio da educação
escolar. A educação integral deve articular uma formação completa em todas as
dimensões, contribuindo para o desenvolvimento físico e psíquico dos educandos.

Considerações Finais

A educação integral, para tornar-se efetiva e não ser mera ampliação do tempo
de permanência na escola, necessita ser articulada à pedagogia histórico-crítica e ao
marxismo, superando-se o risco da ampliação do tempo ocorrer de uma forma
desestruturada, sem foco na aquisição de conhecimento. Sabendo-se que a educação
participa na vida e no crescimento da sociedade, a escola tem por obrigação ensinar o
conhecimento humano na sua forma mais elevada.
A educação integral, a escola integral, portanto deve formar seres integrais de
modo pleno, ela precisa assumir uma proposta pedagógica que verdadeiramente
121

comprometa-se com a superação do caráter unilateral da formação e da vida humana na


sociedade burguesa, deve contribuir para edificação do ser humano, para sua formação
verdadeiramente humana, omnilateral. A emancipação humana só constituirá na
perspectiva do homem omnilateral, completo em todos os sentidos. Almejamos esse
desenvolvimento completo do ser humano na escola integral, mas para que isso
aconteça é necessário uma reflexão sobre como tem sido priorizada a formação do ser
humano e consequentemente sobre o papel da educação nessa formação. Os indivíduos,
de um modo geral, independentemente da classe social, devem apropriar-se tanto da
riqueza material como imaterial humana, ou seja, tanto dos bens de consumo, quando
dos conhecimentos produzidos historicamente pela humanidade.

Referências

DUARTE, Newton. A Individualidade Para Si: contribuição a uma teoria histórico-crítica


da formação do indivíduo. Campinas, Autores Associados, 3ª ed. 2013.

DUARTE, Newton. Pedagogia histórico-crítica, revolução socialista e formação humana


ominilateral. (Texto inédito, encaminhado para publicação), 2015.

FRIGOTTO; CIAVATTA, Maria. Trabalho como princípio educativo. In: SALETE, R.;
PEREIRA, I.B.; ALENTEJANO, P.; FRIGOTTO, G. (Org.). Dicionário da educação do campo.
Rio de Janeiro:Escola Politécnica Joaquim Venâncio; São Paulo: Expressão Popular, p. 748-
759, 2012.

JACOMELI, Mara Regina Martins. Dos Estudos Sociais aos Temas transversais: uma
abordagem histórica dos fundamentos teóricos das políticas educacionais brasileiras
(1971-2000). Tese de doutorado defendida na Faculdade de Educação da Universidade Estadual
de Campinas. Campinas:SP, 2004.

MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo. Boitempo editorial, 2004.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Crítica da educação e do ensino. Introdução e notas de


Roger Dangeville. Lisboa, Portugal: Moraes, 1978.

SAVIANI, D. e DUARTE, N. Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação


escolar. Campinas, Autores Associados, 2012.

SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2008


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA:


DO SENSO COMUM À CONSCIÊNCIA FILOSÓFICA

Bruna Carvalho (UNESP/Araraquara) 1


Lígia Márcia Martins (UNESP/Araraquara) 2

Resumo: A função social da escola foi se modificando conforme o contexto político, social e
econômico de cada época. Na contemporaneidade muitas funções são atribuídas à escola, e nem
sempre elas têm relação com os processos de ensino e aprendizagem ou com o ato de ensinar –
função precípua da escola. Vivenciamos a secundarização da importância da escola e do ato de
ensinar, e a escola não tem desempenhado sua função precípua, que na perspectiva da
Pedagogia Histórico-Crítica é garantir processos de ensino e aprendizagem humanizadores, ou
seja, a efetiva apropriação das objetivações humanas mais elaboradas. Neste sentido,
objetivamos apresentar a função social da escola em sua concretude e totalidade. Para tanto,
apresentaremos como a função da escola é entendida do comunismo primitivo ao
neoliberalismo. Em seguida, defenderemos a função social da escola a partir dos fundamentos
da Pedagogia Histórico-Crítica.

Palavras-chave: Escola; Função Social; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

Pensar a função social da escola requer reconhecê-la como síntese de múltiplas


determinações; e que ela “[...] só pode ser compreendida no interior do contexto mais
amplo das relações entre Estado e escola no capitalismo, uma vez que a realidade não
pode ser compreendida fora de sua totalidade”. (COSTA, 2013, p. 13).
Apoiadas na perspectiva teórica e metodológica do materialismo histórico-
dialético, neste artigo, objetivamos apresentar a função social da escola,
compreendendo-a em sua totalidade. Para tanto, traçamos o percurso de análise da
seguinte maneira: inicialmente apresentaremos como o homem se educava no
comunismo primitivo e como ele passou a se educar com o surgimento da propriedade
privada e após a Revolução Industrial, sinalizando o nascimento da escola e de sua

1
Bruna Carvalho, Pedagoga, Mestre e doutoranda em Educação Escolar, Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, SP, Brasil. E-mail:
brucarvalho.unesp@yahoo.com.br
2
Lígia Márcia Martins, Psicóloga, Doutora em Educação, Livre-Docente em Psicologia da Educação,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara, SP, Brasil. E-mail: ligiamar@fc.unesp.br


123

função social na educação da burguesia e da classe trabalhadora; em seguida,


explanaremos qual é a função social da escola contemporânea no sistema capitalista de
produção, demonstrando sua relação com o neoliberalismo, com o lema aprender a
aprender e a produtividade da escola improdutiva. (FRIGOTTO, 1999).
Posteriormente, trataremos do caráter contraditório da escola, mostrando-a como
uma instituição que, ao mesmo tempo em que pode ser utilizada para a manutenção da
ideologia dominante e do status quo, deve ser utilizada para exercer a função contra
hegemônica atendendo aos interesses da classe trabalhadora; a partir disto, apoiadas na
psicologia histórico-cultural e na pedagogia histórico-crítica, advogaremos a função
social precípua da escola, que certamente não se traduz ao mero preparo técnico para a
inserção dos indivíduos no mercado de trabalho, adaptando-os, perversamente, à
ideologia dominante e ao sistema capitalista de produção.

1 Adaptação ou humanização? A função social da escola do comunismo primitivo


ao neoliberalismo

A compreensão da função social da escola deve passar do senso comum à


consciência filosófica, momento superior e que se apresenta ao indivíduo a realidade
sob forma de uma síntese organizada, desse modo,

[...] passar do senso comum à consciência filosófica significa passar


de uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita,
degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária,
coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada.
(SAVIANI, 2007, p. 2).

Além disso, o autor afirma “que a passagem do empírico ao concreto


corresponde, em termos de concepção de mundo, à passagem do senso comum à
consciência filosófica”. Na lógica dialética “[...] a construção do pensamento se daria,
pois, da seguinte forma: parte-se do empírico, passa-se pelo abstrato e chega-se ao
concreto”. (SAVIANI, 2007, p. 4-6).
Diante disso, Saviani (2007, p. 5) conclui que o empírico e o abstrato são apenas
momentos do processo de conhecimento, ou seja, da apropriação da realidade concreta
no pensamento. Sendo assim, “o concreto não é o dado (o empírico), mas uma
totalidade articulada, construída e em construção. O concreto é, pois, histórico; ele dá-se
e revela-se na e pela práxis”. Isso nos leva à reflexão sobre no que consistiria um
124

processo de ensino e aprendizagem aprisionado ao universo da realidade empírica ou


ampliado que oportunize aos alunos o conhecimento da realidade concreta.
Perante o exposto, esperamos elucidar questões relevantes para que possamos
compreender a função social da escola em sua concretude e totalidade, passando do
senso comum (que reduz a função social da escola em adaptar os indivíduos à ideologia
hegemônica e prepará-los para o ingresso no mercado de trabalho) à consciência
filosófica a respeito da função social da escola (que defende o desenvolvimento humano
para além dos limites impostos pelo sistema capitalista de produção e a socialização
universal das objetivações genéricas materiais e imateriais já produzidas pelo gênero
humano).
A compreensão de senso comum da função social da escola pode se dar por
diversos motivos, um deles é a compreensão assistemática da origem da escola e de seus
condicionantes históricos, políticos e econômicos, bem como de seus fundamentos
teóricos: história da educação, sociologia da educação, filosofia da educação e
psicologia da educação. Entretanto, não podemos nos olvidar que o que chamamos de
senso comum sobre a função social da escola, ou seja, reduzi-la a preparar e adaptar os
indivíduos ao sistema hegemônico, não se deve apenas a compreensões assistemáticas
ou inconscientes; mas também a ações intencionais, portanto, conscientes, da classe
hegemônica, que utiliza a instituição escolar como instrumento de perpetuação de sua
ideologia e de dominação da classe trabalhadora.
No comunismo primitivo, a produção da existência da vida dos homens se dava
de forma coletiva, sendo os meios de produção de uso de comum. Entretanto, com o
surgimento da propriedade privada surgiu a classe de proprietários que, por deterem a
posse da terra, colocavam os indivíduos, donos apenas de força de trabalho, para
trabalhar. Assim, constitui-se o modo de produção antigo ou escravista. Nele, os
escravos trabalhavam para prover seu próprio meio de existência e o de seus senhores.
(SAVIANI, 2012b).
A propriedade privada, tanto no modo de produção escravista, quanto no
medieval ou feudal, produziu uma classe ociosa, que não necessitava trabalhar para
viver, pois havia outros que trabalhavam para garantir sua existência. É nesse ponto que
o autor localiza a origem da escola e define: “escola, em grego, significa ‘o lugar do
ócio’. O tempo destinado ao ócio. Aqueles que dispunham de lazer, que não precisavam
trabalhar para sobreviver, tinham que ocupar o tempo livre, e essa ocupação do ócio era
traduzida pela expressão escola”. (SAVIANI, 2012b, p. 81, grifos do autor).
125

Podemos perceber na origem da palavra, o caráter sectário da escola,


expressando-a como um lugar exclusivo da classe dominante, daqueles que vivem do
trabalho da classe dominada. Nessa época, a escola era uma forma de educação
complementar e secundária, já que a forma de educação primária era o trabalho, “a
maioria não se educava através da escola, mas através da vida, ou seja, do processo de
trabalho” (Idem, p. 82). Assim, no feudalismo, caracterizado por ser um

Tipo de sociedade – hierárquica e estática –, o problema educativo


coloca-se de forma radicalmente dualista, com uma nítida distinção de
modelos, de processos de formação, de locais e de práticas de
formação, entre as classes inferiores e a nobreza, delineando formas e
percursos radicalmente separados [...] (CAMBI, 1999, p. 157).

Quando do surgimento do sistema capitalista de produção, da sociedade


burguesa, a terra não era mais o único modo de produção, os meios de produção
assumiram a forma de capital, e incluem-se os mais variados instrumentos de trabalho,
deslocando o eixo do processo de produção do campo para a cidade, da agricultura para
a indústria; com o advento do conhecimento científico convertido em potência espiritual
e material por meio da indústria a sociedade se transformou, e as relações entre os
homens também. Passa-se do direito natural ao social, e o “direito natural sucede o
direito positivo. E é nesse quadro que a exigência de conhecimento intelectual se torna
necessidade geral”. (SAVIANI, 2012b, p. 82-83).
É com o aparecimento da sociedade burguesa, portanto, que a escola surge como
uma necessidade a este novo modo de produção e se torna a forma dominante da
educação dos indivíduos. Entretanto, a exigência da universalização da escola, ou seja,
do acesso ao conhecimento pela classe trabalhadora, ocorreu de forma distinta da
educação escolar que era (e ainda é) destinada à classe burguesa. A primeira recebia
educação para inserção no processo produtivo, a segunda era educada para dirigir a
sociedade. Saviani (2012b) argumenta que os economistas eram cientes da necessidade
da generalização da educação escolar para o processo produtivo e geração de mais-
valia, contudo, a educação ofertada à classe trabalhadora deveria ser limitada,

[...] quer dizer, os trabalhadores têm que ter instrução, mas apenas
aquele mínimo necessário para participarem dessa sociedade, isto é,
da sociedade moderna baseada na indústria e na cidade, a fim de se
inserirem no processo de produção, concorrendo para seu
desenvolvimento. (SAVIANI, 2012b, p. 85).
126

Com isso, instalou-se na escola a prerrogativa afirmada por Adam Smith


educação em doses homeopáticas à classe trabalhadora, ou seja, a escola para o
proletariado deve formá-lo minimamente para ingressar no mercado de trabalho e
produzir lucros, gerar mais-valia.
O surgimento da escola para todos, mesmo que para formá-los com
conhecimentos restritos para atuarem no mercado de trabalho, representa um avanço em
relação à sociedade feudal em que os indivíduos eram educados pela vida, pelo trabalho
e não tinham acesso à cultura letrada, todavia, há que se reconhecer que a escola, para
atender às demandas da Revolução Industrial, não teve como consequência apenas a
oferta de conhecimentos em doses homeopáticas, mas também a articulação do todo o
processo educativo da classe trabalhadora à alienação, à exploração pela classe burguesa
e pouco importava o sexo e a faixa etária do explorado.
Além de formar mão-de-obra para o sistema produtivo, a escola surgiu como
uma instituição de controle e de elaboração de consensos, sendo que nas diferentes
sociedades e momentos históricos a escola teve diferentes formatos: aulas magnas,
avulsas, nas igrejas, por preceptores, etc. Enfim, até o século XX era impensável um
processo de ensino escolar sistematizado sem a presença física de professores, alunos e
recursos didáticos.
Com o surgimento da sociedade moderna, do sistema capitalista de produção e
da ascensão da burguesia, a função social da escola passou a ser dicotômica, já que para
a classe dominante a educação era uma e para a classe dominada era outra. À classe
dominante a escola tinha como função a formação de dirigentes da sociedade, por meio
da transmissão do conhecimento científico, da razão e da lógica. À classe dominada a
escola deveria cumprir a função social de controle, adaptação e instrução mínima aos
indivíduos para a inserção no mercado de trabalho aceitando passivamente a ideologia
hegemônica.
Gentili (1998), ao analisar as relações entre Estado e escola no neoliberalismo,
defende que, atualmente, a função social da escola não é mais integrar os indivíduos ao
mercado de trabalho, já que mediante as altas taxas de desemprego não há garantias de
empregos para todos, desta forma, se imprime uma nova lógica à função social da
escola, cabendo a ela formar indivíduos empregáveis, flexíveis para que possam
competir e se adaptar às rápidas mudanças da sociedade capitalista. Assim,
127

[...] mais recentemente, no contexto neoliberal, assistiu-se à


desintegração da promessa de a escola integrar os indivíduos ao
trabalho mediante a escolarização, possibilitar a ascensão social. Hoje,
a escola não pode mais prometer a integração no trabalho, uma vez
que a questão social são os altos níveis de desemprego. A escola passa
a ter a função de tornar o indivíduo empregável, apto para competir
por uma vaga no mercado de trabalho. (GENTILI, 1998, p. 76).

Deste modo, os indivíduos seduzidos pela Teoria do Capital Humano e pela


lógica da empregabilidade, buscam investir em si mesmos, tornando-se empregáveis,
capazes, competentes e eficazes para disputarem uma vaga no mercado de trabalho.
Nesta perspectiva,

O trabalhador faz inúmeros cursos e mais cursos, com a ilusão de que


ainda não está suficientemente preparado para o mercado de trabalho
e, quando alcançar certo número de cursos, as chances de encontrar o
emprego aumentarão, quando na verdade, os objetivos do PNQ são
outros: o autoemprego, a justificativa pelo desemprego fundamentada
na “empregabilidade” do trabalhador, a geração de renda a partir de
outras atividades remuneradas, que não o emprego. Assim como
Tântalo permanecia sedento à beira de um poço que secava mediante
sua aproximação, o trabalhador, em especial o não qualificado, com
baixo nível de escolaridade e em vulnerabilidade social também vive a
“sede” de um emprego, de uma ocupação remunerada e que lhe
garanta os direitos decorrentes dessa situação e quando se aproxima
do mercado de trabalho, o que encontra é uma realidade de restrição
de empregos cada vez mais profunda. (COSTA, 2009, p. 335).

Para formar esse tipo de trabalhador, teorias pedagógicas foram adotadas no


âmbito escolar, da Educação Infantil ao Ensino Superior. Duarte (2001) alega que elas
se articulam perfeitamente aos preceitos neoliberais e pós-modernos e denomina tais
teorias como pedagogias do aprender a aprender. Nelas, o autor inclui as teorias
pedagógicas, dos assim chamados métodos ativos da Escola Nova, como o
Construtivismo, a Pedagogia dos Projetos, a Pedagogia do Profissional Reflexivo, a
Pedagogia das Competências e a Pedagogia Multiculturalista. Estas teorias são
hegemônicas na educação escolar brasileira. Ao investigar as interfaces entre o
Construtivismo e outros modismos educacionais, o autor defende que nas aparências
tais teorias pedagógicas podem ser distintas, contudo, na essência elas apresentam
grandes semelhanças.
Nas pedagogias do aprender a aprender, percebemos que todas negam a
existência de conhecimentos científicos e universais e a importância da transmissão dos
mesmos pela escola; enfatizam a construção do conhecimento pelo próprio indivíduo;
128

consideram o aluno como protagonista no processo de ensino e aprendizagem;


entendem que a formação de todo e qualquer indivíduo deve ter como pressupostos
básicos a flexibilidade, eficiência, criatividade e capacidade de se adaptar às mudanças
inesperadas.
Na crítica feita por Duarte (2006) sobre o lema aprender a aprender, o autor
defende que tais pedagogias acarretam empobrecimento do conhecimento científico;
reduzem e limitam os conteúdos à vida cotidiana dos indivíduos; destituem a escola e o
professor de sua tarefa histórica: ensinar e transmitir conhecimentos científicos. Assim,
a formação é utilitária e pragmática, numa perspectiva de enriquecimento apenas de
informações e não de conhecimentos, esvaziando “o trabalho educativo escolar,
transformando-o num processo sem conteúdo”. (DUARTE, 2006, p. 09).
Corroboramos com Frigotto (1999) quando assevera existir a produtividade da
escola improdutiva. A escola, tendo como função social seguir a lógica de atender os
preceitos neoliberais e do lema aprender a aprender, é produtiva para a classe burguesa,
afinal ela controla e forma indivíduos para aceitarem passivamente o sistema produtivo
hegemônico. No entanto, a escola é improdutiva para a classe trabalhadora, pois não
atua em função da promoção do homem e sim do capital; não produz a humanidade
produzida historicamente em cada indivíduo singular; não proporciona o
desenvolvimento de cada um em suas máximas capacidades por meio da apropriação de
conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos; enfim, a escola é improdutiva e
perversa à classe proletária a partir do momento em que não produz humanização, mas a
ignorância; quando proporciona a mínima formação do indivíduo e o desenvolvimento
em-si de suas funções psíquicas que consequentemente tem por carecimentos apenas a
satisfação de suas necessidades vitais. Tal fato comparava-se com a experiência em sala
de aula ao ver alunos inquietos, logo após o almoço, porque têm fome; e ao dizerem que
se sempre tivessem determinados alimentos de merenda nunca faltariam à aula.
Notamos que o sentido que a instituição escolar tem na vida de alguns
indivíduos não se refere ao real sentido e função da escola: lócus de apropriação de
conhecimento, de formação e de desenvolvimento humano. Os indivíduos se interessam
pela escola não por ela possibilitar a apropriação dos conteúdos escolares, mas sim, por
proporcionar a construção de laços de amizades, de sociabilidade e até mesmo a
satisfação de necessidades vitais, como a fome.
Além disso, argumenta Saviani (2012b, p. 83), vivemos um paradoxo: por um
lado temos uma hipertrofia da escola vertical e horizontalmente. Verticalmente, pois há
129

a intencionalidade de ampliar o tempo de escolarização “do ensino médio para a


universidade, da graduação para a pós-graduação e assim por diante, como também a
ampliá-la, antecipando seu início”. O sentido horizontal refere-se à ampliação da
jornada escolar, a partir da reivindicação da escola de tempo integral.
Por outro lado, temos uma secundarização da escola ao afirmar que não é só
através da escola que se educa, mas sobre diversas formas e em variadas instituições, e
até sua desvalorização, afirmando-a como uma instituição nociva aos indivíduos, e o
que nos resta é eliminar esta instituição, já que se constitui em um peso inútil à
sociedade.
Ivan Illich foi o principal mentor desta proposta de desescolarização. Saviani
(2012b) expõe que criticou esta proposta “desde o seu surgimento, considerando que ela
provém dos já escolarizados, os quais já se beneficiaram daquilo que a escola poderia
oferecer e, portanto, não serão atingidos pela desescolarização” (Idem, p. 85).
Há correntes (consideradas esquerdistas) que proferem o discurso de
desqualificação da escola afirmando-a como uma instituição defensora dos interesses e
conhecimentos burgueses, contudo, não reconhecem que os conhecimentos foram
dominados pela burguesia e que a apropriação do conhecimento sistematizado é vital
para o processo de superação da sociedade capitalista. Além do mais, este discurso nada
mais é do que a reedição das Teorias Crítico-Reprodutivistas por autores que recolocam
a discussão sobre a ideia de que no capitalismo a escola não tem nenhum potencial
revolucionário. Dessa forma,

Se o saber escolar, em nossa sociedade, é dominado pela burguesia,


nem por isso cabe concluir que ele é intrinsecamente burguês. Daí a
conclusão: esse saber, que, de si, não é burguês, serve, no entanto, aos
interesses burgueses, uma vez que a burguesia dele se apropria,
colocando-o a seu serviço e o sonega das classes trabalhadoras.
Portanto, é fundamental a luta contra essa sonegação, uma vez que é
pela apropriação do saber escolar por parte dos trabalhadores que
serão retirados desse saber seus caracteres burgueses e se lhes
imprimirão os caracteres proletários. (SAVIANI, 2012b, p. 48).

Além da secundarização e da desqualificação da escola, estamos diante de uma


apropriação do espaço escolar que abre portas para interesses profissionais de dentistas,
de psicólogos, de nutricionistas, de fonoaudiólogos, etc., que muitas vezes atendem os
alunos na própria escola. A partir disso, a escola é colocada no processo de
democratização de serviços que deveriam ser oferecidos em outras instituições, como
130

hospitais e postos de saúde, ficando sua função realmente democrática – socialização de


conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos – secundarizada. (SAVIANI, 2012b).
Podemos observar também a apropriação do espaço escolar para a realização de
outras atividades, também não ligadas diretamente aos processos de ensino e
aprendizagem. Costa (2013, p. 11) assevera que

[...] a instituição escolar tem sido apropriada pelo Estado, na atual


conjuntura, com vistas a maximizar e a diversificar sua atuação na
sociedade, porém, sob a ótica utilitarista, objetivando o lazer, a
diversão, o controle da violência, a educação informal e outras
atividades não ligadas diretamente à socialização do saber
sistematizado, referente à ciência, à tecnologia, ao pensamento e à
arte.

Frente a essa constatação a autora questiona se tal apropriação pelo Estado da


escola se constitui num enriquecimento do espaço escolar, “que não afeta – ou até
mesmo maximiza – a concretização de sua finalidade precípua de proporcionar a
educação escolar formal, ou se é possível considerar que, pelo contrário, ocorreria um
desvio da função da escola relacionado à educação formal”. (COSTA, 2013, p. 11).
Para responder tal questionamento, Costa (2013) estuda as relações entre o
Estado e a escola no neoliberalismo, e aponta que as políticas públicas educacionais no
contexto neoliberal seguem uma lógica privatizante e de desvirtuamento do uso do
espaço escolar e de sua função precípua – transmissão de conhecimentos científicos,
artísticos e filosóficos –, acarretando no esvaziamento da educação escolar.
Na verdade, a apropriação da escola para outros fins é apenas mais um dos
mecanismos para a não efetivação da socialização do saber sistematizado. Vivemos
numa sociedade de classes, com interesses antagônicos: de um lado, temos a burguesia
dominadora dos meios de produção material e ideal; de outro, temos o proletariado
como classe destituída destes meios. A burguesia, para manter sua hegemonia, cria
mecanismos para que os meios de produção não sejam socializados, pois “socializar os
meios de produção significa instaurar uma sociedade socialista, com a consequente
superação da divisão em classes”. (SAVIANI, 2012b, p. 85).
Com isso, temos a produção de ideologias mantenedoras da ordem vigente, que
fazem com que a maioria da população tenha uma visão natural e espontânea das
relações sociais. Desta maneira, nos mecanismos de manutenção da ideologia
dominante inclui-se a alienação das riquezas materiais e imateriais da humanidade. Em
131

suma, para manter a hegemonia a burguesia não pode socializar os meios de produção,
como o saber sistematizado pelo proletariado, por isso, temos uma educação escolar
pobre para pobres.

Ora, considerando-se que o saber, que é objeto específico do trabalho


escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado por essa
contradição. Consequentemente, a expansão da oferta de escolas
consistentes que atendam a toda a população significa que o saber
deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Daí a tendência
a secundarizar a escola, esvaziando-a de sua função específica, que se
liga a socialização do saber elaborado, convertendo-a numa agência de
assistência social, destinada a atenuar as contradições da sociedade
capitalista. (SAVIANI, 2012b, p. 85).

Desse modo, não preterimos que a escola possa ser considerada um aparelho
ideológico do Estado. Ela, ao assumir a função de reproduzir as relações materiais e
sociais de produção, além de atuar a serviço do mercado, transforma-se em uma fábrica
de mão-de-obra, exercendo a função de um expressivo aparelho ideológico. Existe todo
um processo para que o indivíduo se submeta às regras previamente estabelecidas e esse
processo ocorre por meio da transmissão de valores e comportamentos condizentes com
a ideologia dominante, e quem executa este papel é a escola, que não cria a divisão de
classes, entretanto, contribui para sua reprodução hegemônica (ALTHUSSER, 1998). O
indivíduo, consequentemente, aceita passivamente sua condição de classe, já que foi
educado para agir dessa maneira. Foi educado para não questionar, para não pensar e
não agir criticamente. Ele foi educado para ser útil, empregável, eficiente, se adaptando
e competindo a uma vaga no mercado de trabalho. “Porém, se a escola tem a sua
participação no processo de reprodução social, ela não é a única instituição responsável
por tal reprodução. A começar pelas questões macroeconômicas da qual fazem parte
outros fatores de ordem política, social e cultural”. (MOTTA, 2001, p. 84).
No entanto, não podemos nos restringir à análise unilateral dos crítico-
reprodutivistas, que acreditam que não há alternativas para a escola, sendo ela um braço
do Estado, e que, portanto, só lhe resta reproduzir as relações sociais dominantes. Ora,
se a escola pode exercer a função de reproduzir as relações hegemônicas do sistema
capitalista de produção, ela também pode e deve exercer a função contra-hegemônica,
formando os indivíduos para que apreendam as relações sociais em que estão inseridos,
de forma concreta, com vistas a transformar a sociedade:
132

Se existe uma ideologia dominante, também pode existir uma contra-


ideologia que venha combater e servir para a libertação das classes
subjugadas. Se a escola reproduz uma educação que se identifica e
justifica uma certa relação de dominação, ela também pode criar
condições de libertação ou ao menos estabelecer a crítica, livrando o
indivíduo dos descaminhos do senso-comum e da fragmentação que
deformam o desenvolvimento cognitivo, afetivo, social e cultural dos
alunos. (MOTTA, 2001, p. 84-85).

A escola pode ser muito mais do que uma mera reprodutora das relações
hegemônicas da sociedade capitalista. Ela deve ser um meio, mesmo que inicial, de
libertação das relações de desigualdade do sistema vigente. A escola exercerá sua
função contra-hegemônica socializando, transmitindo os conteúdos do saber
sistematizado, instrumentalizando os indivíduos para que possam compreender os
fenômenos naturais e sociais a partir da consciência filosófica e não do senso comum.
Entretanto, isto não ocorrerá se os processos de ensino e aprendizagem se derem
pautados em conteúdos da vida cotidiana, sincréticos e de senso comum, sem ter como
núcleo do trabalho educativo os conteúdos que expressam os conceitos científicos, pois

O domínio da cultura constitui instrumento indispensável para a


participação política das massas. Se os membros das camadas
populares não dominam os conteúdos culturais, eles não podem fazer
valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os
dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais
para legitimar e consolidar sua dominação. Eu costumo, às vezes,
enunciar isso da seguinte forma: o dominado não se liberta se ele não
vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o
que os dominantes dominam é condição de libertação. (SAVIANI,
2009, p. 51, grifos nossos).

A peculiaridade da proposta educacional da burguesia ao proletariado é abolir


qualquer tipo de escola que não esteja vinculada aos interesses do capital,
disponibilizando um ensino utilitarista, pragmático e em doses homeopáticas. Em
oposição a este tipo de escola que não liberta, defendemos a educação escolar
desinteressada que traduz a necessidade do trabalhador: “escola única inicial de cultura
geral, humanista, formativa, que equilibre equanimemente o desenvolvimento da
capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o
desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual”. (GRAMSCI, 1995, p. 118).
133

Destarte, nosso foco na função social precípua da escola consiste

[...] naquilo que consideramos serem as possibilidades mais


humanizadoras que existem no interior das forças contraditórias que
tem atuado sobre a realidade escolar. Isso não significa que
desconsideremos as forças que impulsionam a realidade escolar na
direção contrária à humanização dos indivíduos, isto é, na direção da
reprodução das relações sociais de dominação, das relações sociais
alienadas e alienantes. (DUARTE, 2007, p. 4-5).

Ao afirmar o papel humanizador das objetivações para-si, não estamos


secundarizando ou mesmo desconsiderando a existência de alienação nestas
objetivações, pois elas também são perpassadas pelas contradições existentes no sistema
capitalista de produção, assim sendo, da mesma forma como podem ser humanizadoras,
elas podem ser alienantes. Duarte (2007) analisa a contradição – humanização e
alienação – nas objetivações para-si e, apesar da contradição analisada, reafirma a
importância da apropriação das objetivações para-si na humanização do indivíduo.

Na história humana até aqui vivida, a ciência, a arte, a filosofia, a


moral e a política, dependendo da natureza concreta que assumem em
cada momento histórico, têm servido tanto à humanização quanto à
alienação dos indivíduos humanos. O mesmo pode ser dito em relação
ao processo de ensino-aprendizagem dos conteúdos concretos dessas
objetivações do gênero humano. Mas, por exemplo, a constatação da
existência da alienação da ciência e do ensino da ciência não pode
assumir uma unilateralidade tal que nos impeça de refletirmos sobre o
papel humanizador que o ensino da ciência pode e deve ter na
formação dos indivíduos. (DUARTE, 2007, p. 7).

Portanto, para analisar as contradições exige-se o pensamento dialético, sem ele


não captaremos as contradições que permeiam as relações sociais e corremos o risco de
adotar posturas unilaterais que impeçam a escola de exercer sua função social precípua:
transmitir o saber sistematizado objetivando a plena humanização dos indivíduos. Entre
elas, citamos: a posição de que transmitir conhecimento é algo mecânico e que tal
prática jamais deve estar presente na escola, principalmente na educação infantil; que os
conhecimentos devem ser construídos pelos alunos e precisam estar em total
consonância com a realidade cotidiana e os interesses dos mesmos. Os exemplos
mencionados anteriormente estão em total consonância com o lema aprender a
aprender.
Na contramão dos preceitos do aprender a aprender, defendemos a escola
pública de qualidade para todos, concebendo a educação escolar formal “como direito
134

social e condição inalienável da efetiva humanização dos indivíduos”. Corroboramos


com a autora na denúncia e rejeição da desvalorização, do esvaziamento e da negação
do ensino escolar de qualidade e da transmissão de conceitos científicos à classe
proletária. Não aceitamos uma escola que se paute em conceitos espontâneos, atrelados
e limitados à vida cotidiana de cada indivíduo, pois é ela o lócus privilegiado e talvez
único meio, de muitos indivíduos, para que se efetive a plena humanização de cada um.
(MARTINS, 2012, p. 241).
Isso confirma o especial destaque conferido à educação escolar pela psicologia
histórico-cultural e pela pedagogia histórico-crítica, afirmando-a como principal esteio
para o desenvolvimento do psiquismo humano, para a formação de comportamentos
complexos culturalmente instituídos e para o desenvolvimento das funções psíquicas
superiores. Todavia, não é qualquer metodologia nem qualquer conteúdo que devem ser
utilizados nos processos de ensino e aprendizagem, mas sim, conceitos científicos e não
cotidianos. (MARTINS, 2012).
Concordamos com Saviani (2011, p. 201), ao concluir que a função social
precípua “[...] da escola não é mostrar a face visível da lua, isto é, reiterar o cotidiano,
mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar os aspectos essenciais das relações sociais
que se ocultam sob os fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata”, ou seja,
a função social da escola não deve ser reduzida a conformação dos indivíduos,
tornando-os aptos para disputarem uma vaga no mercado de trabalho, limitando sua
formação a conteúdos restritos às vivências imediatas e cotidianas de cada um.
Dessa forma, “[...] o fundamental do ensino é justamente o fato de que a criança
aprende o novo. [...] A pedagogia deve orientar-se não no ontem, mas no amanhã do
desenvolvimento infantil. [...] O ensino só é válido quando precede o desenvolvimento”.
(VIGOTSKY, 2001, p. 241).

Considerações Finais

Enfim, cabe à educação escolar “promover a socialização dos conhecimentos


representativos das máximas conquistas científicas e culturais da humanidade, por meio
da prática pedagógica, tornando a realidade inteligível”. (MARTINS, 2011, p. 54).
Urge a superação do caráter utilitarista e pragmático da função social da escola
que objetiva suprir apenas os interesses do capital e da burguesia, lutando por uma
escola que tenha como função social: a transmissão e o ensino do saber elaborado; o
135

desenvolvimento dos indivíduos objetivando a formação da individualidade para-si;


enfim, a socialização das riquezas materiais e imateriais produzidas pelo gênero
humano. Contudo, tal fato não se concretizará sem ter ciência que cabe à escola e ao
professor:

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições
de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações,
bem como as tendências atuais de transformação.
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne
assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares.
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o
processo de produção, bem como as tendências de sua transformação.
(SAVIANI, 2012a, p. 9).

O que devemos compreender é a função social da escola e como ela pode ser bem
desempenhada por meio de diversos recursos materiais e imateriais, como livros,
jogos, métodos, técnicas e recursos humanos (direção, coordenação e professores). O
professor exerce função imprescindível nos processos de ensino e aprendizagem, é o
seu trabalho que dá vivacidade e materialidade à ação pedagógica.
Questionamo-nos se seria suficiente ter os melhores recursos materiais (livros,
jogos, equipamentos tecnológicos e etc.) e a melhor infraestrutura (salas amplas,
número reduzido de alunos, entre outros) sem ter professores com formação
qualificada e com fundamentos teóricos e práticos para atuação docente.
O que devemos ter em mente que uma das condições para que a função social da
escola seja realmente efetivada é a superação das visões dicotômicas, unilaterais por
uma visão dialética dos processos de ensino e aprendizaem e que compreenda que na
educação escolar a tríade professor – aluno – conhecimento é indissolúvel.

Referências

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Autores Associados.

VIGOTSKY, L. S. (2001). Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 2001.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

EDUCAÇÃO FÍSICA E PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: UMA


ARTICULAÇÃO PARA A FORMAÇÃO HUMANA

Camila Castello Branco de Almeida Porto (IFPR) 1

Resumo: O objetivo deste trabalho é refletir sobre como a Educação Física e a pedagogia
histórico-crítica podem se articular para formar sujeitos que compreendam a realidade e possam
intervir na sociedade para transformá-la. Nesse sentido, far-se-á uma breve aproximação teórica
entre a pedagogia histórico-crítica e a teoria histórico-cultural, articulando com a Educação
Física e a abordagem crítico-superadora, para que possamos contribuir qualitativamente no
debate de uma Educação Física que vislumbre a formação humana.

Palavras-chave: pedagogia histórico-crítica; educação física; formação humana.

Propor uma formação humana é tornar o homem humano, ou seja, é conseguir


materializar neste indivíduo as objetivações humanas produzidas historicamente através
do trabalho em resposta às suas necessidades objetivas e subjetivas. Dessa forma, se
entendemos formação humana como esse conjunto de conhecimentos produzidos no
âmbito das relações sociais ao longo da história da Humanidade, o mais correto a pensar
seria que todos os indivíduos deveriam ter acesso a esses saberes, já que eles foram
produzidos socialmente.
No entanto, na sociedade capitalista essa formação é negada à classe
trabalhadora, porque os conhecimentos científicos foram incorporados no processo
produtivo, transformando-se em meios privados de produção. E, portanto, para manter a
condição de exploração de uma classe sobre a outra, é preciso privá-la do acesso aos
meios de produção, fazendo com que a venda da sua força de trabalho seja a única
opção para a outra classe. Nesse sentido, a luta por uma educação que almeje a
formação humana é a luta pela emancipação humana, é a luta pela superação da
sociedade de classes.
Dessa maneira, entendemos que uma proposta de educação que visa promover
a formação humana tem pressupostos que são fundamentados no materialismo histórico,


1
Camila Castello Branco de Almeida Porto, Mestrado em Educação - UFF, Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná, PR, Brasil. E-mail: camila.porto@ifpr.edu.br


138

a saber: a história da Humanidade é determinada pelas condições materiais da sua


existência; o homem é um ser social e histórico, que promove sua existência através do
trabalho; a realidade é cognoscível, ou seja, ela existe e, portanto, pode-se conhecê-la,
mas também é inteligível, isto é, sua compreensão só pode acontecer para além da
aparência, através da apropriação de múltiplas determinações sintetizadas no
pensamento.
Com base nesses fundamentos e assumindo o desafio de propor uma educação
para a classe trabalhadora é que surge a pedagogia histórico-crítica. Essa teoria,
elaborada inicialmente por Dermeval Saviani e construída coletivamente desde a
divulgação de suas ideias em 1983, no livro Escola e democracia, tem inspiração nos
escritos de Marx, Engels, Gramsci e outros autores do campo marxista. Destarte, apoiar-
nos-emos nas suas ideias para pensar a Educação Física Escolar.
A PHC entende que a escola é um espaço de luta de classes, que é disputada
por interesses antagônicos, na qual, sob a perspectiva da classe trabalhadora, ela tem um
papel fundamental na formação de sujeitos que consigam compreender as contradições
do modo de produção capitalista para se tornarem agentes sociais que lutam pela
transformação social. Diante disso, Saviani (2003) entende que o trabalho educativo é
produzir a humanidade historicamente acumulada em cada indivíduo, de maneira
intencional e direta, a fim de lhe proporcionar elementos para compreender e agir
criticamente na sociedade. Põe-se em evidência, portanto, a questão da escola ser um
espaço para a socialização do saber, pois sabemos que

A produção do saber é social, ocorre no interior das relações sociais.


A elaboração do saber implica expressar de forma elaborada o saber
que surge da prática social. Essa expressão elaborada supõe o domínio
dos instrumentos de elaboração e sistematização. Daí a importância da
escola: se a escola não permite o acesso a esses instrumentos, os
trabalhadores ficam bloqueados e impedidos de ascender ao nível da
elaboração do saber, embora continuem, pela sua atividade prática
real, a contribuir para a produção do saber. O saber sistematizado
continua a ser propriedade privada a serviço do grupo dominante.
(SAVIANI, 2008, p. 77).

Logo, segundo a PHC, atuar na transmissão dos saberes sistematizados é a


tarefa primordial da educação escolar, contrapondo-se às teorias que secundarizam essa
função em detrimento do treinamento de habilidades e competências e daquelas que
pautam suas atividades pedagógicas na solução de problemas cotidianos dos alunos.
139

Cabe ressaltar que os saberes que devem ser transmitidos aos alunos têm base
científica, ou seja, aqueles que não podem ser apropriados na vida cotidiana e que
servem de alicerce para compreensão da realidade. Nesse sentido,

Para a pedagogia histórico-crítica, seria ilógico ou irracional pensar


que é função da escola transmitir um conhecimento popular,
fragmentado, assistemático e totalmente baseado na opinião, nos
sentidos. Não que esse conhecimento deva ser desprezado, mas não se
justifica a existência da instituição escolar simplesmente para
transmissão de um conhecimento que já se propaga
independentemente da escola. (LOUREIRO, 1996, p. 121).

É importante observar que não se trata de negar os saberes populares, mas de


compreendê-los como ponto de partida para a apropriação dos saberes sistematizados no
ponto de chegada, a fim de incorporar o popular e expressar de forma elaborada os
elementos da cultura popular de acordo com seus interesses. (SAVIANI, 2008).
Para a teoria histórico-cultural, elaborada inicialmente por Vigotski e depois
com a contribuição de Leontiev, Luria, Davydov, entre outros, também são os saberes
sistematizados que proporcionam um desenvolvimento nas funções psíquicas
superiores, pois exigem elaborações mais complexas do psiquismo humano. Dessa
forma,

[...] a educação na idade escolar induz e orienta o desenvolvimento de


funções psicológicas superiores que ainda não amadureceram e que só
chegarão a níveis mais desenvolvidos se tiverem contato com a
instrução, com o aprendizado de conceitos científicos provenientes
das disciplinas escolares – gramática, matemática, ciências sociais, as
artes, a educação física, etc. (SAMPAIO, 2013, p. 66).

De forma mais clara,

Quando observamos o curso de desenvolvimento da criança na idade


escolar e o processo de sua aprendizagem, vemos efetivamente que
toda matéria de ensino sempre exige da criança mais do que ela pode
dar hoje, ou seja, na escola a criança desenvolve uma atividade que a
obriga a colocar-se acima de si mesma. Isto sempre se refere a um
sadio ensino escolar. A criança começa a aprender a escrever quando
ainda não possui todas as funções que lhe assegurem a linguagem
escrita. É precisamente por isso que a aprendizagem da escrita
desencadeia e conduz o desenvolvimento dessas funções. Esse real
estado de coisas sempre ocorre quando a aprendizagem é fecunda.
(VIGOTSKI, 2000, p. 336 apud SAMPAIO, 2013, p. 67).
140

Dessa forma, entendemos que a Educação Física deve escolher trabalhar com
os saberes sistematizados e acumulados historicamente no que tange a cultura corporal,
portanto, cabe a ela desenvolver na escola

[...] o acervo de formas de representação do mundo que o homem tem


produzido no decorrer da história, exteriorizadas pela expressão
corporal: jogos, danças, lutas, exercícios ginásticos, esporte,
malabarismo, contorcionismo, mímica e outros, que podem ser
identificados como formas de representação simbólica de realidades
vividas pelo homem, historicamente criadas e culturalmente
desenvolvidas. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 38).

É preciso compreender estes elementos da cultura corporal como produtos das


objetivações humanas, ou seja, como práticas corporais desenvolvidas e transmitidas
culturalmente em resposta às necessidades humanas objetivas e subjetivas. Nesse
sentido,

As atividades ou práticas corporais designadas como jogos ou esportes


– como futebol, natação, handebol, ginástica, mímica, malabarismo,
equilibrismo, atletismo, tênis e milhares de outras – não são uma
simples conseqüência da capacidade do homem se mover,
determinada e organizada por uma estrutura sensório-motora. O
homem e suas condições de vida se transformaram no decorrer da
história e todas as suas aquisições, acumuladas ao longo da sua
evolução foram transmitidas de geração em geração assegurando
desse modo a continuidade do progresso histórico. Essas aquisições
não foram fixadas pela ação da herança biológica, senão por uma
forma que aparece pela primeira vez com a sociedade humana, a
forma dos fenômenos externos da cultura material e espiritual que
resultam da vida e da atividade principal do homem, o trabalho
(LEONTIEV, 1977). Cada geração assimila todo o conhecimento
criado pelas gerações anteriores e desenvolve as aptidões,
especificamente humanas, que estão cristalizadas nesse mundo de
objetos e fenômenos criados pelas gerações precedentes. Assim se
explica que as propriedades e aptidões que caracterizam o homem não
são transmitidas como herança biológica, senão que são formadas, ao
longo da vida, pela assimilação da cultura criada pelos seus
antecessores. [...] A criação das atividades da cultura corporal e
esportiva se relaciona ao caráter dos processos de produção, por
exemplo, os temas que inspiravam os jogos lúdicos na antiguidade
grega eram a caça, a guerra, a vida, os hábitos dos animais, o trabalho
de semear, cultivar e colher. Também os jogos expressivos, nos quais
se originou a arte cênica, a mímica e a pantomima, se modelavam nos
atos da vida cotidiana cuja execução era necessária na luta pela
existência. A infinita variedade de jogos, entre os quais os de cunho
competitivo que mais freqüentemente recebem o nome de esportes,
nasceram das imagens lúdicas, estéticas, artísticas, combativas,
competitivas e de outros âmbitos de ação, provocadas na consciência
do homem pelas relações ideológicas, políticas e filosóficas originadas
141

nos processos de produção da sua existência (TAFFAREL;


ESCOBAR, 2004, p. 15-16 apud LAVOURA, 2013, p. 250-251).

E diante disso,

[...] é possível afirmar que o ser humano vem construindo, ao longo do


tempo, a sua materialidade corpórea. No processo de trabalho, o ser
humano transforma a natureza e a si próprio. Da construção histórica
da corporeidade resulta toda cultura corporal. Essa compreensão
ratifica a importância do entendimento do trabalho como princípio
educativo numa perspectiva de formação omnilateral
(desenvolvimento das múltiplas capacidades e potencialidades
humanas) e politécnica, na qual os trabalhadores, de posse dos
conhecimentos científicos e tecnológicos estariam em condições de
organizar, dividir, regular, controlar o trabalho segundo as suas
necessidades e interesses (e não segundo os imperativos de máxima
produtividade do ponto de vista do capitalismo). Portanto, a
construção da corporeidade relaciona-se estritamente ao processo de
trabalho no qual o ser humano põe em movimento as forças materiais
de seu corpo, braços e pernas, cabeça e mãos, a fim de apropriar-se
dos recursos da natureza, imprimindo-lhe forma útil à vida humana.
Atuando sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo
modifica sua própria natureza. (LOUREIRO, 1996, p. 175).

É importante ressaltar que na educação escolar não é possível transmitir todos


os conhecimentos científicos elaborados na história da Humanidade; portanto, é tarefa
da comunidade escolar escolher criteriosamente os saberes que serão indispensáveis
para que a escola cumpra seu objetivo de tornar a realidade inteligível e promover o
desenvolvimento dos alunos. Assim sendo, depois de escolher os conteúdos, é preciso
organizá-los e sistematizá-los para transmitir aos alunos da melhor maneira possível ao
longo da sua vida escolar.
A PHC vai afirmar que o melhor critério para a escolha dos conteúdos é avaliá-
lo quanto a sua importância para compreender o real, ou seja, aquilo que, não
importando sua temporalidade, permanece essencial e fundamental para explicar a
realidade. Saviani (2008) vai chamar esses conhecimentos de clássicos. A metodologia
crítico-superadora propõe outros critérios além desse da PHC, que aparece como a
contemporaneidade do conteúdo, a saber: a relevância social dos conteúdos, que
significa que eles devem “estar vinculados à explicação da realidade social concreta e
oferecer subsídios para a compreensão dos determinantes sócio-históricos do aluno,
particularmente a sua condição de classe social” e a adequação às possibilidades
sociocognoscitivas do aluno, que deve levar em consideração “[...] a capacidade
142

cognitiva e à prática social do aluno, ao seu próprio conhecimento e às suas


possibilidades enquanto sujeito histórico”. (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 31).
Sobre esse último critério, a teoria histórico-cultural aborda a relação entre o
nível de desenvolvimento real da criança, na qual expressa o que ela já sabe fazer, ou
seja, o que ela já desenvolveu enquanto função psíquica, com a área de
desenvolvimento iminente/proximal, na qual é o desenvolvimento que está perto de
acontecer, mas que ainda precisa ser exposto a atividades que façam essas novas
funções psíquicas se desenvolverem, de maneira que a melhor forma de ensinar é atuar
onde a criança ainda não é capaz de fazer.

Assim Vigotski considerou que as finalidades do reconhecimento


desse “nível” [de desenvolvimento real] no trabalho pedagógico não
se limitam à mera constatação daquilo que a criança é capaz de
realizar por si mesma, mas no fornecimento de elementos que
orientem o trabalho na área de desenvolvimento iminente, isto é, na
direção de outras e mais complexas relações interfuncionais.
Referindo-se a essa “área” [de desenvolvimento iminente], Vigotski
destacou primeiramente sua relação direta com a dinâmica da
evolução intelectual da criança, ou seja, com o estabelecimento e a
ampliação das conexões internas, interfuncionais, ainda não
estabelecidas pelo aprendiz. Se tais conexões ainda não estão
asseguradas, se ainda fogem ao seu domínio, eis o “espaço” de
atuação do ensino. É nesse sentido que essa área se institui como
iminência de desenvolvimento, como algo que está pendente,
inacabado, mas em vias de acontecer por meio do ensino (MARTINS,
2013, p. 287).

E Martins (2013) complementa,

Por isso, a proposição de Vigotski segundo a qual o bom ensino se


adianta ao desenvolvimento para poder promovê-lo não significa
“ensinar” à criança aquilo que ela ainda não é capaz de aprender, mas
inserir o ato de ensino nas relações mútuas entre as possibilidades e
limites que se põem de manifesto no desempenho da criança, limites
que, uma vez superados, avançam em forma de novas possibilidades.
Há, portanto, um vínculo entre o nível de desenvolvimento real e a
área de desenvolvimento iminente representado pela complexificação
das funções psíquicas que pautam as tarefas do ensino, no qual a
referida área se apresenta como superação do nível de
desenvolvimento real na direção da formação de conceitos. Por isso,
Vigotski afirmou recorrentemente que, ao nível do desenvolvimento
real, a formação de conceitos está sempre “começando”. (MARTINS,
2013, p. 287).
143

Diante da escolha dos conteúdos, é preciso, pois, questionarmos a forma pela


qual eles serão transmitidos aos alunos. Nesse sentido, os métodos e as formas de
ensinar também são alvos da atenção da PHC e da metodologia crítico-superadora.
Dessa forma, com base nos pressupostos que apresentamos anteriormente, é
que se estrutura metodologicamente a prática pedagógica histórico-crítica, na qual
podem ser identificados cinco passos que representam dialeticamente o movimento de
apropriação do conhecimento. São eles: prática social inicial, problematização,
instrumentalização, catarse e prática social final. Nesse sentido, cabe ressaltar que

[...] ela não é uma prescrição técnica, um conjunto de regras


operacionais e superficiais. Ao contrário, toma o método dialético
como referência para organização da prática pedagógica e almeja
estruturar o trabalho educativo como aquele que pode oferecer a cada
ser humano as condições de apropriação do mundo da cultura já
produzido pelos outros indivíduos que o antecederam (SAVIANI,
2011 apud MARSIGLIA, 2013, p. 222).

Sendo assim, o ponto de partida da PHC não poderia ser outro senão a prática
social, que se apresenta como as objetivações humanas enquanto resultado das relações
sociais em condições historicamente dadas.

Tendo como pressuposto o ser humano como agente social, a


pedagogia histórico-crítica compreende que a referência necessária
para o trabalho educativo é a ação humana inserida nas relações
sociais em uma dada sociedade, ou seja, é a prática social
(LOUREIRO, 1996, p. 123).

No nosso entendimento, as práticas sociais relacionadas com os conteúdos da


Educação Física estão dentro da perspectiva da cultura corporal, pois representam os
saberes que foram desenvolvidos e acumulados historicamente nas práticas humanas, ou
seja, os jogos, as ginásticas, os esportes, as danças, as atividades circenses são os pontos
de partida para compreender a corporeidade na história da Humanidade.

À luz do materialismo histórico-dialético, portanto, não é possível


tomar o corpo como objeto abstrato e independente das condições
objetivas da produção da vida, como se este pudesse ser
compreendido como algo abstrato e isolado da realidade histórica e
concreta dos homens. (LAVOURA, 2013, p. 249).

Depois de determinar a prática social, é o momento de problematizá-la com


questões de caráter abrangente e geral da sociedade, isto é, reconhecer quais pontos
144

precisam ser compreendidos e alterados da prática social, assim como identificar quais
conteúdos são essenciais para conhecê-la e alterá-la.
Por exemplo, no caso da Educação Física, as práticas sociais que estariam
ligadas à cultura corporal teriam as problematizações relacionadas ao modo como estas
práticas estão inseridas na sociedade atualmente e como o capital as tem incorporado e
influenciado, revelando o caráter contraditório de suas práticas.

Sob a égide do capital, não é necessário muito esforço para


constatarmos que a cultura corporal passa a estar subsumida aos
interesses deste modo de produção de gerar mais-valia e lucros. É
evidente o processo de mercantilização e exploração – pelo capital –
de grande parte do conjunto das práticas da cultura corporal as quais
potencializam e comprovam a incapacidade de desenvolvimento pleno
dos indivíduos nesta forma de metabolismo social. (LAVOURA,
2013, p. 248).

Nesse sentido, estamos afirmando que, ao desenvolver um conteúdo da cultura


corporal com os alunos, a prática pedagógica deve incluir dimensões para além do
conhecimento técnico das habilidades envolvidas em determinada atividade. A
compreensão das múltiplas determinações que envolvem a prática social requer um
olhar sob diversos aspectos. Com efeito,

O conteúdo da Educação Física escolar não se reduz ao


desenvolvimento da coordenação motora, da flexibilidade, da
agilidade, enfim, de habilidades e capacidades físicas em si mesmas.
Essas habilidades e capacidades fazem parte da competência técnica
do professor, mas só interessam à Educação Física escolar quando
relacionadas ao universo da cultura corporal. Não nos interessa tê-los
[os alunos] mais ou menos velozes, ágeis ou fortes. Desenvolver
flexibilidade, agilidade, etc. é opção de cada aluno dentro de
limitações determinadas socialmente às atividades corporais [...]
Desejamos que os alunos aprendam a ginástica em todas as suas
formas historicamente determinadas e culturalmente construídas; o
fantástico acervo de jogos que eles conhecem confrontados com os
que não conhecem; a dança enquanto uma linguagem social que
permite a transmissão de sentimentos e emoções da afetividade
vividas na esfera da religiosidade, do trabalho, dos costumes etc [...]
Assim, a Educação Física deixa de ser vazia de conteúdo.
(LOUREIRO, 1996, p. 176).

Reforçamos esta preocupação, reafirmando que,

O conceito de cultura corporal engendra uma síntese de múltiplas


determinações – sociais, históricas, econômicas e políticas etc. Essa
síntese só se faz possível à luz da possibilidade que temos de
145

conhecermos a realidade em sua totalidade e, além disso, da


possibilidade de intervir sobre ela e de modificá-la.
Levando-se em conta essa perspectiva, podemos ter acesso à
compreensão da realidade por meio da interpretação e análise das
reproduções dos condicionantes sociais que acompanham as
manifestações da cultura corporal. O jogo, o esporte, a dança, entre
outros componentes da expressão corporal, reproduzem, em suas
práticas, valores que sustentam a continuidade e fortalecimento da
sociedade capitalista, quais sejam: o individualismo, a competição, a
discriminação, a depreciação dos mais fracos em situações de disputa,
a seletividade, a reprodução das desigualdades sociais manifestada
pelas distintas possibilidades econômicas dos seres humanos de se
apropriarem dessas práticas corporais. Se o resultado da apropriação
do conhecimento é o desenvolvimento das funções intelectivas – das
funções psicológicas superiores, percebe-se que, na sociedade dividida
em classes, há uma visível inadequação do indivíduo às suas
possibilidades de desenvolvimento. (SAMPAIO, 2013, p. 124).

A instrumentalização é o terceiro momento da prática pedagógica histórico-


crítica, na qual os professores transmitem aos alunos os saberes necessários para a
resolução dos problemas da prática social, ou seja, para sua transformação.
No exemplo da Educação Física, a instrumentalização poderia ser realizada a
partir das práticas desses elementos da cultura corporal de modo que fosse possível
vivenciar os gestos, as emoções, as técnicas envolvidas em cada um deles, mas também
com o auxílio de materiais audiovisuais, livros, debates etc., perceber os aspectos
sociais, econômicos, culturais, estéticos, políticos envolvidos em suas práticas.
Contudo, não se pode esquecer que o aluno aprende quando está em atividade, ou seja,
quando tem uma relação ativa com o objeto de estudo.

Segundo Leontiev (1985, p. 390), o conceito como formação


psicológica é fruto da atividade. É necessário, portanto, que no
processo ensino-aprendizagem sejam organizadas situações adequadas
ao conceito em sua relação com a realidade. Assim, para o referido
autor, a atividade conceitual na criança não surge porque ela aprende a
agir conceitualmente, mas pelo contrário, domina o conceito porque
aprende a agir conceitualmente, ou seja, a prática é conceitual
(NUÑEZ, 2009, p. 69).

Após a instrumentalização, acontece a catarse, que é o momento de efetiva


apropriação do conhecimento historicamente acumulado pelos alunos. É a superação da
compreensão confusa e caótica inicial pela visão sintética das múltiplas determinações
que incidem sobre a prática social inicial. Dessa maneira, alcança-se o ponto de chegada
desta proposta pedagógica, que é esta nova maneira de perceber a prática social, de
compreender a realidade. Com efeito,
146

Se há uma diferença qualitativa das compreensões sobre um


determinado conhecimento, se o processo está contribuindo para o
desenvolvimento do psiquismo dos alunos e, portanto, colabora na
relação dos indivíduos com a realidade como seres genéricos, então
podemos assegurar que o ponto de chegada se alterou em função do
ensino. (MARSIGLIA, 2013, p. 239).

Mas esse ponto de chegada não garante que a realidade irá se alterar, pois quem
altera a realidade são os próprios homens em condições historicamente dadas. Ou seja, o
que este ponto de chegada quer dizer é que os sujeitos já percebem a realidade em suas
múltiplas determinações e, que, portanto, está mais preparado para a luta pela superação
do modo de produção capitalista. Dessa forma,

A importância do acesso ao que de mais avançado a humanidade já


construiu, em termos de conhecimento científico, artístico e filosófico,
inclusive da cultura corporal, se constata quando se considera a
necessidade e a possibilidade de ruptura com sociedade de classes
organizada pelo capital e, se visualiza a construção de uma sociedade
sem classes com indivíduos autodeterminados, plenamente
desenvolvidos no âmbito de suas capacidades produtivas, de consumo,
de gozo e de prazer – homens omnilaterais. (LAVOURA, 2013, p.
248).

Nesse sentido, é imprescindível perceber a importância da corporeidade para o


processo de escolarização e, consequentemente, para a compreensão da realidade, pois o
corpo é a própria materialidade do Homem. O modo como nos movimentamos e como
nos constituímos fisicamente é resultado das objetivações produzidas e transmitidas
historicamente entre as gerações.

Por isso se afirma que a materialidade corpórea foi historicamente


construída e, portanto, existe uma cultura corporal, resultado de
conhecimentos socialmente produzidos e historicamente acumulados
pela humanidade que necessitam ser retraçados e transmitidos para os
alunos na escola (COLETIVO DE AUTORES, 1992, p. 39).

Por fim, diante do que foi apresentado, esperamos ter contribuído para a defesa
da educação escolar como um lugar fundamental para a formação da classe trabalhadora
e, especificamente, da Educação Física enquanto uma disciplina cujo objetivo é
colaborar na compreensão e reflexão sobre a realidade, através da cultura corporal em
toda a sua multiplicidade de determinações históricas.
147

Referências

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez,


1992.

LAVOURA, Tiago N. Cultura corporal e tempo livre em áreas de Reforma agrária: notas
acerca da educação escolar e da emancipação humana. 2013. 352f. Tese (Doutorado em
Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte/MG, 2013. Disponível em:
<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/BUOS-
97HHPT/tese_texto_final_tiago_nicola_lavoura.pdf?sequence=1>. Acesso em: 17 jul. 2014

LOUREIRO, Robson. Pedagogia histórico-crítica e educação física: a relação teoria e prática.


1996. 284f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Metodista de Piracicaba,
Piracicaba/SP, 1996.

MARSIGLIA, Ana C. G. Contribuições para os fundamentos teóricos da prática pedagógica


histórico-crítica. In: MARSIGLIA, Ana Carolina G. (org.) Infância e Pedagogia Histórico-
Crítica. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

MARTINS, Lígia. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à


luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores
Associados, 2013.

NUÑEZ, Isauro B. Vygotsky, Leontiev, Galperin: Formação de conceitos e princípios


didáticos. Brasília: Líber livro, 2009.

SAMPAIO, Juarez O. A educação física e a perspectiva histórico-cultural: as apropriações


de Vigotski pela produção acadêmica da área. 2013. 148f. Dissertação (Mestrado em
Educação Fìsica) – Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2013.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 10. ed.


Campinas: Autores associados, 2008.

______. O choque teórico da politecnia. Revista Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro:
Fundação Oswaldo Cruz/Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, v. 1, n. 1, p. 131-152,
2003.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

FUNDAMENTOS HISTÓRICO-FILOSÓFICOS PARA UMA


PROPOSTA DE TRABALHO EDUCATIVO A PARTIR DA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA NAS ESCOLAS PÚBLICAS

Denise Camargo Gomide 1


Mara Regina Martins Jacomeli 2

Resumo: Este artigo tem por objetivo delinear os fundamentos histórico-filosóficos da


pedagogia histórico-crítica, enfatizando sua necessária implementação nas escolas públicas que
é o lócus de formação da classe trabalhadora. As diretrizes educacionais atuais têm buscado
introduzir na rede pública um ethos contrário à educação pública omnilateral, formativa,
conformando uma estratégia educativa que reproduz um modelo de educação comprometida
com o capital. Em especial, o desafio da formação docente e do currículo nas escolas públicas
nos permitiu refletir sobre a necessidade de buscar um caminho contra-hegemônico que defenda
um ensino de qualidade aos trabalhadores e que garanta a apropriação dos conhecimentos e da
ciência como força produtiva, com vistas à superação da sociedade de classes.

Palavras-chave: pedagogia histórico-crítica – materialismo histórico-dialético – escola pública

Nas condições históricas atuais cabe-nos, enquanto educadores, o enfrentamento


dos desafios postos à educação pública pelas concepções hegemônicas de educação que
transvestem a educação com a mesma natureza do capital.
Nesse sentido, a pedagogia histórico-crítica (PHC) veio responder à necessidade
de encontrar alternativas às pedagogias hegemônicas justamente por apresentar-se como
uma proposta pedagógica atenta aos determinantes sociais da educação. Embora uma
pedagogia contra-hegemônica seja uma construção coletiva, o intelectual que sintetizou
a PHC foi o Prof. Dr. Dermeval Saviani.
Considerando a proposta de refletir sobre os fundamentos histórico-filosóficos
para um trabalho educativo pautado na PHC para a escola pública, é importante
relembrar como Saviani evidencia a concepção de escola pública a partir de três
acepções históricas distintas:


1
Doutoranda – FE UNICAMP
2
Faculdade de Educação - UNICAMP


149

De modo geral, podemos identificar pelo menos três acepções


distintas em que pode ser utilizada a expressão “escola pública”. Na
primeira acepção, a escola pública é identificada como aquela que
ministra o ensino coletivo por meio do método simultâneo, por
oposição ao ensino ministrado por preceptores privados. Essa noção
de escola pública pode ser encontrada até o final do século XVIII. A
segunda acepção corresponde à escola pública como escola de massa,
destinada à educação de toda a população. É com esse significado que
no século XIX se difundiu a noção de instrução pública vinculada à
iniciativa de ser organizarem os sistemas nacionais de ensino, tendo
como objetivo permitir o acesso de toda a população de cada país à
escola elementar. Finalmente, temos o entendimento da escola pública
como estatal. Nesse caso trata-se da escola organizada e mantida pelo
Estado e abrangendo todos os graus e ramos de ensino. É este último
significado que prevalece atualmente. (SAVIANI, 2013, p.119).

Na história da educação, a constituição da escola pública se deu, portanto, a


partir da organização do ensino em espaços coletivos destinado à educação das massas.
No entanto, a educação pública estatal, criada, organizada e mantida pelo poder público,
iniciou-se somente com a implantação dos grupos escolares e a criação das escolas
primárias nos estados (1890-1931). Avançou com a Reforma Francisco Campos que
regulamentou, em âmbito nacional, as escolas superiores, secundárias e primárias e
incorporou o ideário pedagógico renovador (1931-1961); todavia, a sua consolidação se
deu com a unificação da regulamentação da educação nacional abrangendo as redes
públicas e privadas (1961-1996), moldando assim uma concepção produtivista de
escola.
No tocante às lutas recentes em defesa da educação pública no Brasil, alguns
equívocos estão evidenciados na proposta apresentada em 1980, na I Conferência
Brasileira de Educação, a saber: encarar os ensinos privado e público como duas
modalidades, separadamente; colocar a tônica da questão da escola pública no ensino
superior e defender a sujeição da educação à tutela do Estado.
Considerando que esse último equívoco representa a raiz do dilema da educação
pública no Brasil, para retirar a educação da tutela do Estado, ou seja, do governo,
Saviani (2015, p. 52) apresenta uma estratégia para superação desses equívocos,
contrapondo-se a eles:

a) Em vez de centrar a defesa da escola pública na oposição entre


ensino público e privado, cabe centrá-la na oposição entre ensino
de elite e educação popular.
150

b) Em lugar de colocar a tônica da questão da escola pública no


ensino superior, cumpre lutar pela popularização do saber e
combater energicamente todo e qualquer tipo de privilégio.
c) Longe de defender a sujeição da educação à tutela do Estado,
trata-se, ao contrário, de libertá-la da referida tutela.

Essas reflexões sobre a escola pública são importantes pois, considerando a


concepção contra-hegemônica da PHC, como se operacionaliza na escola pública uma
proposta que vai de encontro aos interesses dos trabalhadores, se a própria escola é
mantida por um Estado que é controlado pela classe dominante?
Por defender uma educação de qualidade à população de um modo geral e à
classe trabalhadora, em particular, a PHC necessita ocupar os espaços da escola pública,
organizando o conjunto das atividades de ensino em seus diferentes componentes
curriculares; isto porque a educação oferecida por esse Estado, comprometido com os
interesses da classe dominante, sofre essa determinação. No entanto, a apropriação da
educação burguesa (entendida como as importantes conquistas de produção do
conhecimento no interior da sociedade capitalista) pela classe trabalhadora na escola
pública, mantida pelo Estado, se faz necessária para garantir a cultura proletária.

É preciso ter isso em conta quando falamos, por exemplo, da cultura


proletária. Sem compreender com clareza que esta cultura proletária
só pode ser criada conhecendo com precisão a cultura que criou a
humanidade em todo o seu desenvolvimento e transformando-a, sem
compreender isso, não poderemos cumprir tal tarefa. A cultura
proletária não surge do nada, não é uma invenção dos que se chamam
especialistas em cultura proletária. Isso é pura tolice. A cultura
proletária tem que ser o desenvolvimento lógico do acervo de
conhecimentos conquistados pela humanidade sob o jugo da sociedade
capitalista, da sociedade latifundiária, da sociedade burocrática. Todos
esses caminhos e atalhos conduziram e conduzem à cultura proletária
do mesmo modo que a economia política, transformada por Marx, nos
mostrou aonde deve chegar à sociedade humana, nos indicou a
passagem à luta de classes, ao começo da revolução proletária.
(LENIN apud LOMBARDI; SAVIANI, 2008, p. 253).

A organização das atividades de ensino e a operacionalização dos componentes


curriculares de forma eficaz dependem, estrategicamente, da ação coletiva, efetiva e
intencional, que na perspectiva da PHC, consiste em que cada um dos membros tenha
uma contribuição diferenciada no conjunto do trabalho coletivo, com plena clareza dos
fins a atingir e do significado e importância dos conteúdos desenvolvidos pelos demais
integrantes.
151

Diante dessas considerações, ficam evidentes os desafios a enfrentar. A proposta


de trabalho educativo a partir da perspectiva da PHC nas escolas públicas das diferentes
redes de ensino depara-se, inevitavelmente, com professores formados precariamente,
com condições de trabalho precárias e salários precários. Assim, o desafio se torna
maximizado e faz-se necessário buscar formas de enfrentá-los e superá-los.
(FERNANDES; ORSO, 2010; RODRIGUES, 2015).
Isso implica, necessariamente, no conhecimento dos fundamentos histórico-
filosóficos da PHC. Tais fundamentos carregam um posicionamento político e
ideológico que envolve a sociedade atual e a educação no interior desta sociedade,
situando estas questões na história do gênero humano e, portanto, nas questões relativas
à luta de classe e à superação da sociedade capitalista.
É importante frisar que o posicionamento da PHC no tocante à superação da
sociedade capitalista tem por objetivo o socialismo como sociedade de transição ao
comunismo. A referência de comunismo para a PHC não diz respeito às tentativas
frustradas do século XX, como é o caso da União Soviética. A sociedade comunista, na
perspectiva histórico-crítica, refere-se a uma possibilidade concreta e realmente
existente para a humanidade no futuro a partir de um processo revolucionário, gerado
pelas próprias contradições da luta de classes, constituindo-se assim num processo de
transformação radical, profunda e total da atual sociedade.
Essa possibilidade de transformação se realizará a partir da apropriação do mais
alto desenvolvimento alcançado pela humanidade em meio às contradições da sociedade
capitalista, sendo, portanto, representativo das conquistas do gênero humano. A
apropriação dessas conquistas garantirá que tanto a riqueza material como a riqueza não
material esteja a serviço do desenvolvimento da vida humana, e não mais das forças
econômicas e da lógica da reprodução do capital como é o caso da atual sociedade.
A ideologia burguesa obteve êxito na disseminação da ideia de que o capitalismo
é a única forma possível e desejável de existência humana e que não é possível
transformar de forma coletiva e consciente a realidade social. A aceitação deste
determinismo se expressa, por exemplo, na concepção equivocada de que pensar a
transformação radical da sociedade é algo delirante ou mesmo um sonho que não tem a
mínima possibilidade de concretização.
No entanto, não podemos ignorar que a lógica de reprodução do capital tem
gerado conquistas materiais e de produção do conhecimento importantes para a
humanidade. O problema é que na sociedade capitalista, toda essa riqueza está a serviço
152

da lógica econômica e da reprodução do capital. Impõe-se, portanto, à classe


trabalhadora o desafio de colocar todas as forças produtivas materiais e não materiais a
serviço da emancipação humana.
É precisamente com esse significado de comunismo, como uma possibilidade
para o futuro da humanidade que se concretizará através da luta coletiva organizada pela
classe trabalhadora para a transformação da sociedade, que se situa o posicionamento da
PHC em relação à sociedade contemporânea. Nessa perspectiva, o trabalho educativo é

[...] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo


singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um
lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta
das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI,
2003, p.13).

A educação, portanto, produz de maneira intencional, sistemática e deliberada,


em cada ser humano individualmente, a humanidade que é produzida e reproduzida
historicamente pela prática social no seu todo, ou seja, pelo conjunto das lutas, das
conquistas, das derrotas, dos avanços e dos retrocessos.
Segundo o marxismo, a humanidade é produzida ao longo da história através da
atividade do trabalho. O trabalho é a atividade por meio da qual o ser humano
diferencia-se em relação ao restante da natureza. É uma atividade de transformação
intencional e deliberada da natureza com o objetivo de satisfazer necessidades humanas,
caracterizando-se como uma atividade teleológica (atividade dirigida por finalidades
conscientemente estabelecidas), isto é, o ser humano antecipa mentalmente o resultado a
ser alcançado pela sua atividade:

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha


envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos
de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de
construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um
resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador,
e portanto idealmente. (MARX, 1996, p. 298).

O trabalho caracteriza-se como uma atividade que se realiza pelo emprego de


meios, como a produção e o uso de ferramentas e instrumentos, os quais são resultado
da transformação de objetos da natureza, fazendo com que se tornem objetos culturais e
153

humanizados. Define-se ainda como uma atividade fundamentalmente social. Nos


primórdios, os seres humanos, para satisfazer as suas necessidades, uniam-se e agiam
sobre a natureza coletivamente. Essa ação, para ser bem sucedida, era organizada e
planejada a partir de formas de comunicação, constituindo-se não mais em meios para
agir diretamente sobre a natureza como uma lança ou como um machado de pedra, mas
meios empregados para agir sobre a mente humana, os quais Vigotski definiu como
signos.
Assim, como as ferramentas materiais foram desenvolvidas pelos homens
formando complexos sistemas de meios materiais transformadores da realidade, também
os meios não-materiais foram se transformando e se desenvolvendo como complexos
sistemas de signos, como é o caso da linguagem falada, da linguagem escrita, da
produção artística, dos conhecimentos científicos, enfim, sistemas que os seres humanos
foram desenvolvendo e que se constituíram em complexas mediações entre o ser
humano e a realidade.
Essas mediações, de início, tinham por objetivo satisfazer as necessidades
humanas. No entanto, ao produzir meios para a satisfação das suas necessidades, o
homem dialeticamente também produz novas necessidades. No tocante à educação, esta
questão aponta para o fato de que as necessidades humanas não se constituem num
conjunto definitivo, estático e determinado de maneira puramente natural.
Nesse sentido, o conceito de cultura para a PHC diz respeito a tudo aquilo que é
produzido pelo ser humano e que não é dado de forma espontânea e imediata pela
natureza, tanto no que se refere à produção material quanto à produção não material. As
necessidades humanas são produzidas e transformadas ao mesmo tempo em que o ser
humano vai produzindo meios de satisfação das suas necessidades.
A dialética entre produção de meios para satisfazer as necessidades humanas e
produção de novas necessidades desdobrou-se em outras formas de atividade humana,
como é o caso da produção do conhecimento cientifico que, inicialmente, tinha por
finalidade a satisfação de necessidades utilitárias. Aos poucos esse conhecimento
tornou-se mais complexo e foi constituindo-se em um encadeamento mais complexo de
mediações teórico-conceituais, diferenciando-se das formas cotidianas de pensamento e
de conhecimento da realidade.
Todo esse universo das mediações produzidas pelos seres humanos (meios
materiais e não materiais produzidos pelo homem) incorporou a cultura por meio do
processo de objetivação, traduzido na apropriação e condensação da atividade humana e
154

da herança cultural que é transmitida pelo processo educativo. Por esse motivo, a
categoria de objetivação é decisiva para a compreensão do desenvolvimento histórico e
cultural do ser humano na PHC.
Desse modo, os seres humanos, como produtos da cultura e da sociedade,
produzem também a cultura e a sociedade pela atividade humana. O trabalho educativo
significa exatamente defender que o ser humano pode formar as novas gerações e isto
implica em assumir um projeto que é político-ideológico-pedagógico-filosófico de
produzir nos indivíduos a humanidade produzida historicamente. E é nesse sentido que
precisamos analisar a educação escolar, situando-a no posicionamento em relação à
sociedade capitalista e, portanto, em relação à luta de classes, o que significa que não
podemos desconsiderar o fenômeno social da alienação que, no tocante à educação das
novas gerações, tem assumido na atualidade atitudes e posicionamentos ingênuos,
idealistas e acríticos em relação à herança cultural da humanidade.
O capitalismo foi fundamental para o desenvolvimento da humanidade, pois
possibilitou aos homens estabelecerem relações mundiais e superarem os limites da vida
local, porém pela via da universalização das relações de mercado, ou seja,
universalização da alienação, da produção da mercadoria e do valor de troca; fazendo do
dinheiro o representante universal da riqueza humana. Parafraseando Marx, nos
Grundrisse (2011): numa sociedade capitalista, o indivíduo é o que ele carrega no
bolso, ou seja, o seu dinheiro.
A PHC, por ser uma pedagogia contra-hegemônica, situa a educação escolar no
processo de transformação e superação da sociedade capitalista geradora de alienação.
A escola é o espaço de socialização do saber sistematizado. Não se trata de apropriação
privilegiada do saber sistematizado, ou seja, apropriação por poucos, como também não
se trata da socialização de qualquer tipo de saber, é a socialização das formas mais
desenvolvidas dos conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos que a humanidade
já produziu.
A visão negativista da escola como uma instituição essencialmente burguesa e,
por isso, fundamentalmente alienante, precisa ser combatida, pois essa postura tende a
desdobra-se na atitude negativa em relação à socialização do conhecimento e em relação
à importância do conhecimento acumulado para a prática social. Reforça ainda a noção
utilitarista do conhecimento com a mesma lógica da produção de mercadorias no
capitalismo contemporâneo. (DUARTE, 2011).
155

A lógica da obsolescência programada da mercadoria, isto é, a produção de


mercadoria com prazo para tornar-se obsoleta, é também adotada pelas PAA em relação
ao conhecimento, que passa a ter sua validade definidade a partir da sua utilidade
prática e imediata. Nessa perspectiva, se o conhecimento está fadado à obsolescência,
não faz sentido que a escola se preocupe com a transmissão dos conhecimentos
clássicos e com a socialização do saber sistematizado. Esse tipo de conhecimento
pautado nas teorias e nas abstrações é, para essas pedagogias, inútil e desnecessário do
ponto de vista prático e, portanto, deve ceder espaço às demandas da vida cotidiana que
lidam com o conhecimento de uma forma pragmática, imediatista e utilitarista para a
resolução de problemas do cotidiano. Nesse sentido, a educação na atualidade tem
impedido aos indivíduos o pleno desenvolvimento intelectual.
A apropriação das objetivações mais elevadas do gênero humano sistematizadas
nos clássicos das ciências, das artes e da filosofia, é indispensável para que os
indivíduos possam realizar o salto qualitativo que vai além do imediatismo da vida
cotidiana. Dominar esse conhecimento faz parte de um processo mais amplo de domínio
pela classe trabalhadora das forças produtivas que se desenvolveram ao longo da
história da humanidade e de maneira gigantesca na sociedade capitalista. Dar um salto
em direção à uma sociedade que supere o capitalismo, no sentido dialético de ir além,
implica em incorporar as conquistas anteriores, alcançando níveis mais elevados de vida
humana.
Todas estas questões passam também pela discussão sobre currículo e sobre a
definição de qual conteúdo do patrimônio histórico deve constituir o saber escolar, sem
ignorar, no entanto, as questões sobre formas de ensinar e a concepção de mundo que
permeará todo esse processo.
A concepção de mundo na qual se apoia a PHC é o materialismo histórico-
dialético e a socialização do conhecimento às novas gerações tem por objetivo produzir
transformações e desenvolvimento na concepção de mundo dos alunos. Tem-se,
portanto, como horizonte do processo educativo a difusão do materialismo histórico-
dialético, isto é, a realidade da relação entre o ser humano e a natureza, como o ser
humano se transforma no processo histórico de transformação da natureza e como o ser
humano produz a si mesmo, e esses fundamentos históricos e filosóficos da PHC
precisam estar presentes no currículo escolar.
Trabalhar com os conteúdos na perspectiva da PHC é situar-se na visão de luta
ideológica em direção ao avanço da humanidade e esse avanço não pode pautar-se no
156

relativismo cultural, mas na busca da verdade expressa nas produções humanas no


campo das artes, da ciência e da filosofia. Portanto, na transmissão dos conteúdos
escolares não poderá haver atitude de neutralidade. Por isso, cabe ao professor se
posicionar afirmativamente quanto ao ensino dos clássicos do conhecimento,
entendendo que essa apropriação é importante para o avanço, desenvolvimento e
transformação da concepção de mundo dos alunos.
Assim, fica clara a concepção de escola para a PHC: ela é o lócus privilegiado
para a transmissão dos conhecimentos historicamente sistematizados e o espaço
institucionalizado para a promoção da socialização dos conhecimentos, entendidos
como o acervo produzido pelo trabalho intelectual da humanidade.
O processo de apropriação do conhecimento implica, portanto, a conquista por
cada indivíduo das propriedades históricas de desenvolvimento e formação que
caracterizam os seres humanos, oportunizando a cada indivíduo particular as condições
e possibilidades para que ele se aproprie e desenvolva aquilo que o gênero humano já se
apropriou e desenvolveu. Apropriar-se apenas daquilo que a natureza nos
disponibilizou, não nos torna tipicamente humanos. O humano só é constituído a partir
da apropriação dos conhecimentos socialmente construídos e esse processo de
apropriação requer o outro, na medida em que o outro seja portador dos signos da
cultura.
A seriedade do trabalho do professor está, portanto, na amplitude de sua
dimensão: não há campo científico que atinja a vida das pessoas de um modo tão
intenso como a ciência da educação. A educação é contingência da sobrevivência do
sujeito, condição primária da sua sobrevivência, pois o instrumental fundamental do ser
humano é o universo das significações e os signos representativos da nossa ciência.
Por isso, o objetivo principal da PHC é qualificar a formação humana, elevando o
padrão cultural e combatendo os objetivos nefastos da escola capitalista que se limita a
formação de contingente necessário ao mercado de trabalho. Este deve ser o papel da
escola pública nestes tempos de transição e a PHC é a melhor formulação para a
transição, constituindo-se na teoria pedagógica que tem servido de referência para este
momento histórico. E nas condições atuais da nossa sociedade, os professores precisam
assumir o papel de militantes culturais comprometidos com a formação humana e
cultural dos indivíduos, em especial da classe trabalhadora, contribuindo para mudanças
significativas no padrão cultural atual.
157

Para alcançarmos este patamar, são necessárias ações de caráter imediato, como
a valorização do magistério; e ações de caráter mediato, como, por exemplo, a
promoção de debates nas instituições de organização coletiva, como grêmios,
sindicatos, partidos, possibilitando assim uma reorganização da transição, entendida
como a superação do capitalismo com vistas à sociedade socialista rumo ao comunismo.
A PHC não pode ser apenas contra-hegemônica, mas também deve buscar sua
hegemonia, constituindo-se em força política capaz de transformar a sociedade.
Ao advogar o desenvolvimento das múltiplas capacidades humanas em busca de
sua emancipação, a PHC está, na realidade, defendendo o desenvolvimento pleno das
capacidades humanas, ou seja, a cognoscibilidade (inteligência), a sensibilidade
(música, dança, teatro, artes visuais e plásticas), a habilidade (esporte e formação
profissionalizante) e a sociabilidade (exercício político). A escola da atualidade tem
desenvolvido, de forma precária e sucateada, apenas uma faculdade humana (cognitivo),
com o objetivo restrito de inserção no mercado de trabalho em condições subalternas.
A partir dessas considerações, podemos concluir que, na perspectiva histórico-crítica, a
luta pela educação pública coincide com a luta pelo socialismo, pois socializando os
meios de produção, socializa-se o saber aos trabalhadores, o qual deixará de ser
propriedade privada para tornar-se propriedade coletiva, propriedade socializada. Isto
não é possível na sociedade capitalista e, portanto, é preciso superá-la.
Assim, quanto às possibilidades de implementação da PHC na educação pública,
é importante que tenhamos clareza que elas existem, porém estão condicionadas pela
situação objetiva, dependendo, fundamentalmente, da consciência dessa necessidade de
implementação assumida coletivamente e da decisão de efetivar esta intervenção.
Quanto às perspectivas de êxito, ainda que tenazmente buscadas; subjetivamente estarão
determinadas objetivamente pela correlação de forças na dura luta de classes que
compõem o cenário nacional e internacional da atualidade.
No entanto, não podemos perder o horizonte de que é pela militância na luta de
classes e luta contra o capital que devemos nos posicionar, tendo a PHC e o marxismo
como fundamento científico no processo de formação de professores. Parafraseando
Marx (1977), que as forças teóricas ganhem força material para a transformação!

Referências

- DUARTE, Newton (2011). Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações


neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 5ª ed. Campinas, Autores Associados.
158

- FERNANDES, Hélio Clemente; ORSO, Paulino José (2010). O trabalho docente:


pauperização, precarização e proletarização in ROSÁRIO, Maria José A.; MELO, Clarice
Nascimento; LOMBARDI, José Claudinei. O nacional e o local na História da Educação.
Campinas, SP: HISTEDBR- FE/UNICAMP, 2010.

- LOMBARDI, Jose Claudinei; SAVIANI, Dermeval (orgs) (2008). Marxismo e Educação:


debates contemporâneos. 2ªed. Campinas, Autores Associados.

-MARX, Karl. (1977). Introdução à critica a filosofia do direito de Hegel. Temas de Ciências
Humanas Vol. 2. São Paulo: Editorial Grijalbo.

- ______ (1996) O Capital: Crítica da Economia Política. Volume 1. Livro Primeiro. São
Paulo: Editora Nova Cultural.

- ______ (2011). Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da


economia política. São Paulo, SP.Ed. Boitempo.

- RODRIGUES, Melânia Mendonça (2015). Neoprodutivismo e amesquinhamento da formação


docente. Revista HISTEDBR On-line, [S.l.], v. 15, n. 65. ISSN 1676-2584. Disponível em:
<http://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/histedbr/article/view/8642701.

- SAVIANI, Dermeval (2003). Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações.


Campinas: Autores Associados.

- SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton (2012). Pedagogia histórico-crítica e luta de


classes na educação escolar. Campinas. Autores Associados.

- SAVIANI, Dermeval (2013). Aberturas para a história da educação: do debate teórico-


metodológico no campo da história ao debate sobre a construção do sistema nacional de
educação no Brasil. Campinas, Autores Associados.

- ______ (2015). História do tempo e tempo da história: estudos de historiografia e história


da educação. Campinas, Autores Associados.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA: O LUGAR DA EDUCAÇÃO ESTÉTICA


PARA A EMANCIPAÇÃO

Rosana Soares

Resumo: O artigo é um recorte da tese de doutorado defendida em 2015 no Programa de Pós-


Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia que investigou a produção e os
fundamentos de Educação Estética no ensino da Arte. O estudo tomou com base a análise de 36
artigos da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP – Comitê
Educação em Artes Visuais) e de 15 artigos da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Educação (ANPEd – Grupo de Trabalho 24) totalizando 51 artigos. O mapeamento
da produção dos artigos visou o questionamento das concepções de arte, estética e educação
revelando os limites e as possibilidades da Educação Estética para a emancipação. O conflito
epistemológico entre as concepções estéticas suscitou a ausência de elementos de uma educação
emancipadora necessitando assim de um diálogo constante com os pressupostos da Pedagogia
Histórico-Crítica

Palavras-chave: Estética; Arte-Educação; Emancipação; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

Para discutir a Arte na educação é preciso considerar as implicações do encontro


de duas áreas de conhecimento – arte e educação - que atuam na formação dos sujeitos
no espaço formal de educação. Um dos objetivos da pesquisa sintetizada nesse artigo foi
identificar as questões que pulsavam na prática social (que educação estética temos?)
discutindo limites e possibilidades, (que educação estética queremos?) para que,
instrumentalizados, possamos atuar na escola conscientes de nossas escolhas
pedagógicas.
No que se refere ao diferentes saberes que adquirimos ao longo da vida, Saviani
(2004) aponta que existem diversos tipos de saberes e conhecimentos como: o sensível,
o conhecimento intelectual, o conhecimento artístico e estético, conhecimento religioso,
etc. No entanto, alerta que o saber que diretamente interessa à educação está vinculado
ao trabalho educativo e resulta a aprendizagem. Portanto, a obra de arte, ao se
“deslocar” do atelier, dos museus e das galerias e adentrar no universo da educação,
compartilha com esta área de conhecimento os desafios do trabalho educativo. Por isso,


160

a reflexão constante do professor é fundamental para compreender o lugar da Arte na


educação e os significados deste encontro; o que acontece com os sujeitos em período
escolar nas aulas de Arte diante de seu objeto artístico.
O trabalho artístico no atelier, a produção do artista, as exposições e eventos de
arte não devem ser confundidas com papel da Arte na educação, pois se nestes espaços
específicos, a relação com a obra é fortemente subjetiva, na educação o trabalho
pedagógico é pautado na objetividade. Como conciliar essas duas formas de
conhecimento é um desafio constante frente aos desafios da educação no contexto
contemporâneo.
O mundo tecnológico faz parte da arte e está presente em inúmeras obras de
artistas contemporâneos, além do que, o aluno que vai à escola é também fortemente
influenciado por todas essas questões. Sentidos afetados, alterados constantemente, cabe
pensar de que forma, a sensibilidade tão cara a arte, sobrevive.

O que é alarmante no mundo capitalista não é o formalismo,


não são os quadros abstratos, os poemas herméticos, não é a
serial music nem o anti-romance: o perigo real e terrível reside
nas produções – produções muito concretas, terra-a-terra,
“realistas”, se quiserem – de filmes imbecilizantes, estórias em
quadrinhos idiotizadoras, mercadorias voltadas para a promoção
da brutalidade, o vício e o crime. (FISCHER, 2002, p.235)

As produções que o autor aponta são parte do cenário cotidiano e afeta quem os
consome, incluindo os alunos que estão em nossa sala de aula e por isso, o lugar da Arte
na educação como parte desta realidade precisa ser problematizado. Tendo nossos
sentidos alterados, nossas relações sociais se tornam ainda mais conflituosas, e esses
conflitos se expandem para o espaço dimensionado da sala de aula afetando o processo
ensino/aprendizagem. É nessa espacialidade-temporal que ocorre na relação aluno e
Arte a mediação do professor no estudo da pintura, da escultura, do teatro, da música e
das demais manifestações artísticas. Há de se entender que construir uma educação
emancipadora em sala de aula significa derrubar barreiras múltiplas, questionar
ideologias e enfrentar desafios em todas as áreas de conhecimento.
Acredita-se que a aprendizagem que a Arte proporciona é um ganho existencial,
pois não tem a necessidade da materialização em forma de produto para o consumo.
Através do acesso aos códigos culturais, mas principalmente em seu conteúdo material
humano as obras de arte são as possibilidades concretas de resistência a sociedade de
consumo. Concorda-se com Fischer (2002) que, ao analisar o mundo capitalista na
161

relação entre arte e as massas, aponta que existe uma produção de narcóticos lucrativos
que modificam de forma perversa o conto de fadas e atinge nossa imaginação,
depravando-a. Somos vistos pelo capital como trogloditas, que devem ser saciados em
seus instintos bárbaros e até as imagens dos sonhos são comercializadas. O professor
como agente transformador assume as discussões em torno do papel da arte na
sociedade e da Arte na educação.

No mundo alienado em que vivemos, a realidade social precisa


ser mostrada no seu mecanismo de aprisionamento, posta sob
uma luz que devasse a “alienação” do tema e dos personagens.
A obra de arte deve apoderar-se da plateia não através da
identificação passiva, mas através de um apelo a razão que
requeira ação e decisão. (FISCHER, 2002, p. 15).

Essa consciência crítica deveria ser desenvolvida na formação dos professores e


dos alunos. Não podemos deixar de buscar momentos significativos de
vivenciar/experienciar nas aulas de arte; e transformá-las em um aprendizado
significativo. É este aprendizado que vai possibilitar aos envolvidos compreender a
plenitude da arte e suas possibilidades de vivências complexas, unindo corpo,
sentimentos, pensamento e ação. A educação estética para a emancipação1 peregrina na
fronteira da arte, da estética e da educação.

A educação revelava-se impossível na medida em que fossem


considerados apenas os elementos que caracterizam a estrutura
do homem em seu aspecto empírico. Ou seja: enquanto ser
situado, determinado pelas condições do meio natural e cultural,
a educação resultava impossível. No entanto, a análise do
aspecto pessoal, isto é, da liberdade, mostrava o homem como
um ser que, embora situado, se revelava capaz de intervir
pessoalmente na situação para aceitar, rejeitar ou transformar.
Enquanto ser livre, ele mostrava-se capaz de optar e tomar
decisões. Esse aspecto já permitia responder positivamente à
questão da possibilidade da educação. (SAVIANI; DUARTE,
2012. p. 422).

Para os autores, o homem como ser de ação é também um sujeito que se


comunica com os outros homens; é capaz de analisar criticamente as condições em que
se encontra e buscar modificações, e esse processo pode ser potencializado pela
educação. A constituição do seu aspecto pessoal passa pela discussão da subjetividade,

1
Em Mészáros a educação como processo de produção e reprodução da vida social é caminho para a
emancipação da humanidade.
162

do sentir humano, do ser individual e fundamentalmente pela sua condição existencial


na sociedade da qual é parte.

A formação dos cincos sentidos representa o trabalho de toda a


história do mundo até hoje. O sentido do sujeito as necessidades
práticas vulgares não passa de um sentido limitado. Para o homem que
morre de fome não existe a forma humana dos alimentos, mas
unicamente a sua existência abstracta de alimentos. (MARX e
ENGELS, 1971, p. 49-50).

Superadas as necessidades primárias humanas, os autores apontam que o


desenvolvimento dos sentidos humanos coabitou o nascimento das artes. As
considerações dos autores envolvem o reconhecimento da importância do
desenvolvimento destes sentidos sem no entanto, distanciar a concretude do homem
social e histórico.
Olhando a sociedade contemporânea a partir desta reflexão identificou-se o
capitalismo esvaziado do sentir libertário, como um retrocesso no desenvolvimento dos
sentidos. Resultando assim os paradoxos existentes onde enquanto alguns sujeitos se
alienam no consumo exacerbado; outros lutam para aliviar suas mazelas sociais e suas
necessidades primárias. Em ambos os casos, se tornam indiferentes, centrados em suas
necessidades urgentes (sentido limitado).

O homem apropria-se do seu ser universal de uma maneira universal,


portanto, como homem total. Todas as suas relações humanas com o
mundo, isto é, ver ouvir, cheirar, ter paladar, tacto, pensar, olhar,
sentir, querer, agir, amar, em suma, todos os órgãos da sua
individualidade, que são imediatos na sua forma enquanto órgãos
comuns são, na sua relação objetiva, ou no seu comportamento face ao
objeto. A apropriação da realidade humana, o modo como esses
órgãos se comportam perante o objeto, constitui a manifestação da
realidade humana. (MARX e ENGELS, 1971, p. 47-48).

A relação dos sentidos humanos com a realidade objetiva revela a força livre do
homem criador e a obra de arte ligada a esta premissa. Mesmo sob a influência das
estruturas sociais, ele conserva a sua autonomia ainda que muitas vezes alienado de sua
potencialidade de lutar pelas transformações sociais.
Em seu livro Convite a Estética, Sánchez Vásquez (1999) defende uma estética
da vida e estuda a relação do sujeito e os objetos, sejam eles obras de arte ou ainda
objetos comuns que possuem elementos estéticos. Sem ignorar o caráter universal desta
relação, para o autor é em suas individualidades que os sujeitos mantêm uma relação
163

estética particular. Na tarefa de elencar a importância da estética na formação do


homem, podemos iniciar apontando a necessidade desta para a formação de sujeitos
críticos e que através deste processo, que é também o refinamento dos sentidos,
adquirem a consciência de seu papel como um ser coletivo. Para o autor, é fundamental
na arte aplicar o princípio histórico sobre o conceito do Belo:

Ao aplicar o princípio histórico, fica claro que o belo, tornado


absoluto pela Estética tradicional, é apenas uma de suas formas
históricas, concretas: que a arte como imitação ou reprodução do real
é um modo (realista), entre outros, de produzir arte e que a função
estética – privilegiada desde o renascimento – nem sempre foi
considerada dominante, e menos ainda exclusiva, na arte. Assim, não
se pode ignorar a natureza histórica do estético e do artístico sem
escamotear seu conhecimento como objeto real. (SÁNCHEZ
VÁSQUEZ, 1999, p.66)

Todo esse processo histórico presente na complexidade de se entender o


fenômeno artístico, decorre do comportamento estético do homem com o mundo. Esse
comportamento revela a pré-existência ideal do produto a ser criado; consciência em
torno da forma e função; considerando o domínio do homem sobre a matéria, avaliando
a eficácia da utilidade dos objetos criados e reconhecendo o prazer da criação.
Essas considerações não significam que a educação estética deva ser pensada
como algo espontâneo e imprevisível, ao contrário, a educação estética é parte da
formação dos homens para o mundo da arte. Assim sendo, a convivência com a arte é
fundamental para a educação estética e inicia já na primeira infância. No período de
formação educacional, para que essa convivência seja significativa, as aulas de Arte,
bem como a obra de arte necessitam priorizar o seu papel educativo gerando assim, a
apreensão dos saberes específicos deste campo de conhecimento.
A arte reflete a realidade, mas de um modo próprio. Com os seus recursos, ela
apresenta uma reprodução fiel da realidade, mais rica do que aquela vivida e sentida
pelo homem imerso na vida cotidiana. A partir desta diferenciação, Lukács insiste no
papel educativo da arte, sua capacidade de enriquecer a visão da realidade que se
encontra fragmentada na cotidianidade.
O papel educativo da arte se concretiza nesta potencialidade expansiva de sua
qualidade estética que transforma o sujeito para a competência reflexiva e crítica – seria
assim entendida – a experiência estética. Como atividade complexa (Sánchez Vásquez,
1999), a percepção estética no seu estágio final é ação do sujeito frente ao objeto.
164

Significa que essa percepção foi além da sua aparência ao buscar o sentido dessa
experiência a partir de sua história pessoal, mas não se resumindo a ela, antes
identificando as marcas do sujeito histórico. As situações vividas na experiência estética
são revividas perante o objeto estético sensível em sua forma; ocorre uma identificação
do sujeito com o objeto estético em seu conteúdo.
Para os autores, a arte verdadeira está comprometida com a humanidade, e sua
estética revela essa legitimidade. É possível identificar na estética da obra de arte o
homem concreto e a sua vida em um contexto amplo de compreensões da condição
humana. A universalidade da obra de arte se revela neste potencial unificador dos
sujeitos. “A arte verdadeira, portanto, promove uma ruptura na fetichização por conta
do seu caráter humanizador: ao refletir de forma sensível o destino dos homens [...]”.
(FREDERICO, 2013, p.91).
A partir dessas considerações, funda-se a necessidade de desenvolver nossa
percepção para compreensão da obra de arte. No agitado e atarefado cotidiano, a
educação estética nas aulas de Arte que ignoram estas premissas, corre o risco constante
de se tornar dogmática ou ainda se fragmentar, diluir, tornar-se estéril “no
comportamento cotidiano com as coisas que nos rodeiam e que utilizamos, a redução
dos dados sensíveis é tão grande – dada a automatização perceptiva – que quase
desaparecem”. (SÁNCHEZ VÁSQUEZ, 1999, p. 143).
Do homem para o homem, se organiza o que se constitui a estética. A educação
e a arte fazem parte da sociedade, lugar do desenvolvimento humano, por isso é nossa
responsabilidade como educadores buscar responder as necessidades de uma educação
estética que promova a emancipação dos sujeitos. Para isso, temos a arte e seus objetos
dotados de qualidades estéticas; temos os sujeitos capazes para a relação estética; nos
resta como professores o cuidado para que situações estéticas permeiem os encontros de
Arte na educação gerando competências através dos saberes adquiridos. Defender uma
educação estética emancipadora, a partir dessa compreensão, é acreditar que ela faz
parte do processo de formação humana.
Tal afirmação movimentou a pesquisa de doutorado defendida em agosto de
2015 intitulada “A Educação Estética como possibilidade de Emancipação dos Sujeitos
no Ensino da Arte: desdobramentos e implicações”. Neste artigo apresento um pequeno
fragmento da tese onde aponto os pressupostos sobre educação estética revelando
limites e possibilidades existentes hoje ao se ensinar arte objetivando a emancipação
dos sujeitos.
165

1 Arte-educação em busca da emancipação

Gosto de pensar a obra de arte e os artistas como representantes do desvio da


norma2. Esse conceito tem uma sonoridade que me agrada desde a primeira vez que
ouvi3. Tem cheiro de liberdade criativa, de rompimento, de possibilidade, de rebelião e
de consciência da normatividade que a sociedade impõe e a sua transgressão objetiva.
Longe do conceito jurídico4, a criação da obra de arte no desvio da norma é a
infidelidade necessárias do aprisionamento do sentir criativo. Mas esse rasgar do que
aprisiona traz uma dor necessária, fraturas de todo embate. Não é processo rotineiro e
sim uma tomada de posição frente ao mundo. Uma consciência da complexidade da
obra de arte frente a seu destino: transformar o mundo capitalista que nos arrasa,
formata, desumaniza, prioriza a mercadoria e o consumo desenfreado. O desvio da
norma é resistência.
A educação estética necessita estar comprometida com a emancipação dos
sujeitos, e que isso é possível a partir da estética marxista, onde os estudos humanísticos
de Lukács são de suma importância. Para tanto, entende-se como fundamental que a
formação dos professores e dos alunos tenha também essa direção teórica. Por
assumirmos a estética marxista em nossos escritos, fica claro para nós a importância da
obra de arte no processo dialógico da construção do conhecimento e que a obra de arte é
verdadeira quando fundada por princípios como o equilíbrio ente subjetividade e
objetividade, comprometida com o sujeito concreto e que o Realismo é o lugar dessa
obra de arte. A estética, por sua vez, como parte da obra de arte congrega conceitos
fundamentais para a emancipação como a sua relação conteúdo e forma e que a
Particularidade, síntese do Singular com o Universal confere a obra de arte verdadeira
uma identidade humana que é social e histórica.
No que se refere ao lugar da educação estética, para nós, seu campo real é a
escola e a universidade com um currículo organizado a partir da Pedagogia Histórico-
Crítica. Um currículo e um trabalho pedagógico orientado pelos fundamentos da

2
Etimologicamente, a palavra "norma" está muito próxima de "regra". Em latim, "norma" era o nome que
se dava ao esquadro usado pelos carpinteiros para demarcar os ângulos retos. Disponível em:
http://filosofia.uol.com.br/filosofia/ideologia-sabedoria/39/artigo273473-1.asp
3
Na fala da professora Maria Jose Justino no curso de Especialização “Fundamentos estéticos e
Metodológicos do Ensino da Arte” - FURB.
4
A norma jurídica é responsável por regular a conduta do indivíduo, e fixar enunciados sobre a
organização da sociedade e do Estado, impondo aos que a ela infringem, as penalidades previstas, e isso
se dá em prol da busca do bem maior do Direito, que é a Justiça. Disponível em:
http://www.jurisway.org.br/v2/pergunta.asp?idmodelo=6335
166

Pedagogia Histórico- Crítica são as condições dadas ao desenvolvimento da educação


estética para a emancipação. Vamos então compreender as similaridades da Pedagogia
Histórico- Crítica e da educação estética para a emancipação no desenvolvimento dos
sujeitos.
O materialismo histórico dialético tem forte influência na concepção pedagógica
denominada histórico-crítica. A educação é entendida como um ato intencional, que
objetiva mediar as relações sociais tendo como preocupação central a compreensão da
humanidade produzida historicamente. Uma prática social educativa é como a que a
pedagogia histórica crítica entende a educação; lugar onde professores e alunos dividem
tarefas diferenciadas no processo de desenvolvimento do coletivo; buscando soluções
dos problemas que surgem neste movimento da prática social, visando as
transformações necessárias. É possível agregar a cultura popular aos saberes escolares,
as particularidades dos sujeitos envolvidos, que no processo dialógico promove a
ampliação da sua compreensão de mundo, sua consciência como humanidade, gerando
o salto qualitativo que o processo educacional pode oferecer aos sujeitos. É a partir dos
saberes escolares e de sua condição de sujeito empírico, que os educandos entendem o
contexto das problemáticas discutidas, instrumentalizando-se com o que lhe é de direito
para a sua emancipação.
Demerval Saviani (1994) escreve que a pedagogia histórico-crítica tem como
objetivo compreender o campo educacional com base no desenvolvimento histórico
objetivo. A pedagogia histórico-crítica nos permite, segundo o autor, compreender a
educação escolar que temos hoje, identificando os resquícios históricos das
transformações que lhe são próprias. Nascida das necessidades oriundas das práticas
escolares, é a realidade escolar o lugar de discussão e atuação da Pedagogia Histórico-
Crítica e a formação estética emancipadora.
As reflexões sobre a escola, a importância dos saberes historicamente
construídos, o papel do professor no processo de aprendizagem encontra na Pedagogia
Histórico-Crítica campo importante de discussão. Ela se configura portanto, como uma
consciência de mundo e do papel do homem nas transformações sociais, elencando suas
potencialidades e reconhecendo as influências sociais que está exposto. Revela também
que o sistema capitalista tem no trabalho, seja ele pedagógico ou não, um importante
ponto de tensão; possibilidade de superação
Quando assumimos em nossa pesquisa a defesa de uma educação estética para a
emancipação, caminhamos junto com os pressupostos do materialismo histórico
167

dialético; com o pensamento de Georg Lukács e sua defesa da particularidade da


categoria estética, que tem no Realismo a materialização da obra de arte e seu
compromisso com a humanidade. Por entendermos que a obra de arte adentra o campo
específico da educação, e, reconhecendo a escola e a universidade como importante
espaço para se aprender Arte, defendemos que o saber específico da produção artística
da humanidade é parte do compromisso social de emancipação humana e por isso,
precisa estar alinhada com os pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica. Eis porque
no título apontou-se a Pedagogia Histórico-Crítica como o lugar da educação estética
para a emancipação, pois, ainda que por meios diferentes, ambas buscam o mesmo
objetivo: o reconhecimento da importância e da valorização da educação dos sujeitos.
Portanto, como a pedagogia histórico-crítica nasce das angústias dos professores
frente às práticas pedagógicas que estavam a serviço de manter a desumanização dos
sujeitos, a educação estética para a emancipação nasce da mesma dor; e a constatação
de que a Arte na escola hoje, diluída de seu potencial formativo, nega o sujeito
histórico. Desse modo, buscou-se o diálogo com as teorias que orientam a educação
estética nas aulas de Arte, apontando o pressuposto dos autores em torno da obra de
arte, da criação artística, do papel do espectador, do professor, do aluno.

2 Lacunas existenciais para a educação estética emancipadora

Assinalar tanto a presença quanto a ausência dos fundamentos da educação


estética para a emancipação nos artigos da ANPAP e da ANPEd foi um dos desafios da
pesquisa. Outro desafio foi identificar os conceitos de educação estética presente nos 51
artigos analisados, que por sua vez, confirmou nossa hipótese revelando a educação
estética que temos hoje para o ensino da Arte5: ajustada com os conceitos da
fenomenologia e das teorias pós- modernas.
Utilizou-se o termo ajustada porque, no caso dos artigos fundamentados nos
escritos de João Francisco Duarte Júnior, sua citação a fenomenologia é direta, o
próprio autor enfatiza tal concepção: “Educação estética talvez tenha a ver com um


5
Usaremos no texto o termo Arte em maiúsculo por se tratar da área curricular e estar de acordo com os
Parâmetros Curriculares Nacionais. Quando no texto utilizarmos arte em letra minúscula, entende-se
como uma referência a obra de arte em suas múltiplas linguagens sem estar diretamente ligada a área
curricular, que compreende a ação pedagógica. Importante frisar que nos artigos analisados não existe tal
diferenciação
168

antigo mote da fenomenologia: voltar às coisas mesmas6”. No entanto, não é possível


assegurar que os conceitos de educação estética, identificada nos artigos, seja baseada
na fenomenologia, com exceção destes textos, que representam uma parcela
significativa, mas não a totalidade. O que é possível afirmar é que muitos artigos
apresentam proximidade com os pressupostos fenomenológicos.
Devido as particularidades dos artigos, priorizou-se o uso do termo concepção7 e
não fundamento, já que a maioria dos textos acercar-se de correntes filosóficas sem
fundamentá-las ou assumi-las de forma direta, e por essa peculiaridade, não foi possível
registrar fundamentos explícitos.
Se considerarmos o longo período que o ensino da Arte foi permeado pelos
fundamentos da Pedagogia Tecnicista8, onde as habilidades técnicas do desenho – o
desenho geométrico eram o objetivo maior da disciplina e o valor dessa educação era
formar sujeitos aptos a desenvolver tarefas para a indústria, a educação das
sensibilidades é uma etapa importante; surge da necessidade de se fazer uma crítica a
essa forma mecanicista de ensinar Arte; pois, de fato, como nos lembra Vázquez (1999,
p. 143), “[...] no comportamento cotidiano com as coisas que nos rodeiam e que
utilizamos, a redução dos dados sensíveis é tão grande – dada a automatização
perceptiva – que quase desaparecem”.
Foi possível identificar que não interessa aos artigos que priorizam a educação
estética baseada na fenomenologia capacitar os indivíduos para desenvolver seus papéis
de atores sociais produtivos, o que significa um ganho significativo; mas esse é um
limite da educação estética, ser pensada pelos pressupostos fenomenológicos não
buscam desenvolver a devida formação crítica que poderia dar aos sujeitos mecanismos
necessários (como a compreensão e o engajamento político) às mudanças sociais.
Os artigos baseados nos escritos da fenomenologia, utilizam de forma recorrente
as expressões perceber, interpretar e compreender. Tais posturas estão direcionadas aos
conteúdos, aos contextos, as pessoas e as culturas. Essa percepção depende da postura


6
Em uma entrevista para a revista Contrapontos da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI).
7
Apenas 07 artigos apresentam de forma objetiva seus fundamentos filosóficos.
8
A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência
e produtividade, a Pedagogia Tecnicista advogou a reordenação do processo educativo de maneira a
torná-lo objetivo e operacional. Disponível em:
<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/glossario/verb_c_pedagogia_tecnicista.htm >
Acesso em 20 de abril de 2015, as 0946h. Destacou-se a influência do tecnicismo, mas também o ensino
da Arte sofreu influências da Pedagogia Tradicional e Escola Nova
169

do sujeito que a interpreta, e por isso a sensibilidade é um valor a ser cultivado. Sobre
fenomenologia e educação:

Concebe o real como fenômenos “contextualizados”, preocupa-se com a


capacidade humana de produzir símbolos para comunicar significados;
por isto o processo cognitivo se realiza por meio de métodos
interpretativos. Os fenômenos não são isolados ou analisados, são
compreendidos através de um processo de recuperação de contextos e
significados. (GAMBOA, 2008, p. 8).

Ao se referirem à formação de professores, os artigos também se situam na


esfera das compreensões e como acontecem essas compreensões, elencando, no caso da
educação estética, as experiências artísticas como centrais. Esse nível de apreensão,
segundo os artigos, eleva os sujeitos de seu estado inicial delegando a eles outra forma
de perceber e sentir o mundo, pois lhes é apresenta algo original, novos estímulos que
geram novas compreensões, e no caso específico de nossa investigação, novas
possibilidades de se apreender a Arte.
De uma maneira geral é possível afirmar que educar sensibilidades é hoje a
preocupação da maioria dos artigos, e que para isso priorizam o Fazer e o Ver obras de
arte. Este contato com o objeto artístico acontece, segundo os textos, na escola ou os
alunos podem ser levados ao encontro delas – nos espaços urbanos, exposições ou
museus – e esses encontros são entendidos como experiências. No que se refere aos
valores educativos cultivados pelos artigos, que priorizam a educação das
sensibilidades, exige considerar que, para estes, “[...] o conhecimento não está
centralizado no objeto e sim no sujeito (a priori), a verdade é relativa a cada sujeito que,
em relação com o objeto (adequatio res ad intecllectu), interpreta-o e explica-o ao seu
modo” (GAMBOA, 2008, p. 05).
Assim, é possível compreender porque os artigos deixam de problematizar o
objeto, no caso, a obra de arte e as influências ideológicas que a influenciam. Não está
nela (a obra de arte) o ponto de interlocução dialógica sujeito e objeto, e sim no sujeito
que confere significação a essa experiência. Da mesma forma, é reelaborado o papel do
professor, pois os processos subjetivos estão priorizados
No que se refere a problemática da pesquisa que indagou acerca das
compreensões da educação estética no ensino da Arte foi nos deparamos como uma
170

tessitura de entendimentos da educação estética, com ênfase9 nos pressupostos de João


Francisco Duarte Júnior e John Dewey, na ANPAP; e dos pressupostos teóricos de
Gilles Deleuze e Feliz Guatarri, seguidos por Michel Foucault na ANPEd. Entre essas
correntes teóricas, encontrou-se de forma tímida (apenas 06 textos do total de 51),
artigos com os pressupostos da educação estética para a emancipação (representado
pelos teóricos Adolfo Sánchez Vázquez - ANPAP e L.S. Vygotsky - ANPEd).
Entende-se que a educação estética para a emancipação não pode ser pautada
apenas na valorização dos sentimentos e das emoções, ou ainda, considerar que as
subjetividades e as experiências são suficientes para o movimento necessário dos
sujeitos para alcançarem sua autonomia. Ultrapassar os idealismos existentes requer
pensar que a educação compõe a formação dos indivíduos, e com isso, considerar a
realidade existente também na arte como parte dessa formação, que por sua vez, não
pode ser desprendida de sua função social. Pensar sobre os fenômenos considerando as
contradições é um processo a ser desenvolvido, no qual a educação estética para a
emancipação está comprometida.
Reafirmando a necessidade de consciência do real do mundo concreto, nos diz
Lukács (1968, p. 86): “[...] mas é tão fácil produzir, a partir de frutas reais, a ideia
abstrata ‘a fruta’, quando é difícil produzir, partindo da ideia abstrata ‘a fruta’, frutas
reais”. Assim, o homem e seu cotidiano incluindo a sua produção artística, impulsionam
os processos de emancipação, na qual a educação estética participa.
Sabe-se que estamos vivendo tempos onde a tecnologia nos impõe formas
diferenciadas de relações sociais, que a perda da sensibilidade é algo preocupante, e
que, trabalhar a favor do resgate das sensibilidades é fundamental, mas não é possível
aceitar que o ensino da Arte se isente de sua função educacional.
A Arte na educação assume a tarefa de oportunizar aos alunos o acesso ao
conhecimento além de cultivar a convivência com a arte. Na escola porém, essa relação
de educação estética se diferencia nos espaços de convivência social (museus,
exposições, galerias, ateliês). Considerando que a obra de arte educa, nos redutos
artísticos não precisamos de alongadas explicações sobre as mesmas. No entanto,
depende da nossa educação o hábito de incluir em nossos passeios, a visita aos espaços
destinados as exposições artísticas. “O objeto de arte – como qualquer outro produto –
cria um público capaz de compreender a arte e de fruir sua beleza. Portanto, a produção

9
Insistimos em lembrar que de uma maneira geral os artigos apresentam diversos conceitos de inúmeros autores e
esta foi a unidade formada diante a variedade.
171

não produz somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”
(MARX e ENGELS, 2010, p. 137).
A escola se propõe a educar o homem e o educa. Educa para que? É preciso ter
respostas claras, saber os caminhos escolhidos e onde queremos chegar com nossa
prática pedagógica. A Arte adentra na escola e quer também educar o homem e o educa.
Educa pra que? É preciso ter consciência das intenções e dos valores do ato educacional
que operam na formação cultural que responde hoje, o ensino da Arte. Sobre a
legitimidade pedagógica da educação estética para a emancipação que as considerações
em torno da obra de arte como imanente ao homem social e histórico a partir de Lukács,
e, a escolha da pedagogia histórico-crítica representada por Saviani concebe um
caminho possível para a construção da educação estética para a emancipação. Os
desdobramentos e as implicações já estão aqui (parcialmente) revelados, espera-se que
possam atingir o maior número de professoras e professores para o profícuo diálogo
transformador.

Referências

FISCHER, Ernst, 1899 1972. A necessidade da arte.9. ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 2002.

FREDERICO, Celso. A arte no mundo dos homens: o itinerário de Lukács. 1.ed. São Paulo:
Expressão Popular, 2013

GAMBOA, Silvio Ancízar Sanchez . Pesquisa em Educação: Métodos e epistemologias.


Chapecó SC: Argos, 2008.

LUKÁCS, Gyorgy. Introdução a uma Estética Marxista. Sobre a categoria da


particularidade. Tradução de Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder. Rio de Janeiro:
civilização Brasileira, 1968.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Cultura, arte e literatura: textos escolhidos. Tradução de
Jose Paulo e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2010.

______. Sobre a literatura e a arte. Coleçao Teoria n 7. Traduçao de Albano Lima. Lisboa:
Estampa, 1971. 239 p

SÁNCHEZ VÁZQUEZ, Adolfo . Convite à Estética. Tradução de Gilson Baptista soares. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 4. ed. Campinas:


Autores Associados, 1994. 139p

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O PLANEJAMENTO NO TRABALHO DOCENTE:


UMA PERSPECTIVA ONTOLÓGICA

Carol Farias Silva (UFES)1


Sandra Soares Della Fonte (UFES)2

Resumo: Este texto tem como objetivo apresentar elementos para a discussão do planejamento
no trabalho docente. Para tanto, toma-se como base o conceito de trabalho em Marx, a discussão
sobre a teleologia do trabalho engendrada por Lukács e a concepção de trabalho educativo
defendida por Saviani. A partir da análise desses teóricos foi possível entender o planejamento
como uma parte essencial da atividade docente. Compreende-se o ensino como a razão de ser do
trabalho educativo. O pôr-teleológico da atividade vital humana faz do planejamento um
momento crucial que atua diretamente na qualidade da atividade de ensino. Entendendo que a
capacidade do ser humano de antecipação mental de sua ação tem, no trabalho docente, um
caráter não-cotidiano. Isso significa que o planejar docente tem uma complexidade muito maior
que de outras ações na esfera cotidiana da vida.

Palavras-chave: Trabalho docente; Planejamento; Educação escolar.

1 Trabalho e sua faceta teleológica

Karl Marx (1818-1883), nos Manuscritos econômico-filosóficos, diferencia os


seres humanos dos outros animais a partir da distinção entre a atividade vital humana e
a atividade vital do animal. Todos os seres dependem da atividade vital, por ser essa
“[...] a base a partir da qual cada membro de uma espécie reproduz a si próprio como ser
singular e, em consequência, reproduz a própria espécie”. (DUARTE, 2013, p. 22).
Entretanto, a atividade vital humana, denominada por Marx de trabalho, não tem
como função exclusivas a sobrevivência do indivíduo e dos imediatamente próximos a
ele, – funções da atividade vital animal –, complementa-se a essa a função de garantir a
existência da sociedade.
Outro aspecto para diferenciar a atividade vital humana é a atividade vital
animal, que consiste na forma de satisfação das necessidades básicas. O animal faz uso

1
Carol Farias Silva, Mestre em Educação Física, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo,
Brasil. E-mail: caroluesc04@gmail.com
2
Sandra Soares Della Fonte, Doutora em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito
Santo, Brasil. E-mail: sdellafonte@uol.com.br


173

da natureza como ela se encontra a fim de satisfazer-se; já o homem cria condições,


produz os meios de satisfação, ou seja, produz uma realidade humana, transformando a
natureza e a si próprio em prol de satisfazer-se. Nesse aspecto, Leontiev (1978, p. 283)
afirma que

Pela sua atividade, os homens não fazem senão adaptar-se à natureza.


Eles modificam-na em função do desenvolvimento de suas
necessidades, criam objetos que devem satisfazer suas necessidades e
igualmente meios de produção desses objetos, dos instrumentos às
máquinas mais complexas. Constroem habitações, produzem as suas
roupas e outros bens materiais. Os progressos realizados na produção
de bens materiais são acompanhados pelo desenvolvimento da cultura
dos homens; o seu conhecimento do mundo circundante e deles
mesmos enriquece-se, desenvolvem-se a ciência e a arte.

A diferença entre a atividade vital humana e a atividade vital animal constrói-se


a partir daquilo que motiva a atividade de cada espécie (humana e animal). Para o
animal, a busca é pela perpetuação da espécie em sentido biológico, já que este não
transforma, se adapta. O ser humano, além desse aspecto biológico, ao criar uma
natureza própria – humanizada –, tem como intuito a perpetuação também dessa
natureza. Ou seja, “[...] o homem (tal qual o animal) vive da natureza inorgânica, e
quanto mais universal o homem [é] do que o animal, tanto mais universal é o domínio
da natureza inorgânica da qual ele vive”. (MARX, 2004, p. 84).
O ser humano é, ao mesmo tempo, natureza e não natureza, pois se distancia
dela a partir do trabalho quando cria uma natureza própria, a natureza humana. O
mundo social é, senão, o resultado do processo de máxima aproximação humana da
natureza, para somente assim, poder se distanciar dela, isto é, se humanizar.
O trabalho não acontece de forma instintiva. Ele é movido por uma intenção,
porque o ser humano é o único ser da natureza que tem a capacidade de projetar
mentalmente sua ação, ou seja, tem consciência. Isso não significa que tudo aquilo que é
projetado seja executado como tal; porém essa capacidade permite ao humano esperar
algo daquilo que faz, ter uma ideia do resultado de sua atividade, podendo, por vezes,
modificar modos de agir antes mesmo da ação. Ao contrário disso, a atividade vital
animal é caracterizada por um processo de adaptação à natureza, motivada por respostas
imediatas a problemas imediatos, isto é, não consciente.
Nesse sentido, Duarte (2013, p. 31) reflete a partir de Marx, asseverando que
trabalho “[...] é uma atividade dirigida e controlada conscientemente pelo objetivo
174

previamente estabelecido na consciência”. O que corrobora com a afirmação de Lukács


(1978, p. 8) citado por Vaismann (2010, p. 47): “[...] o trabalho pressupõe um
conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito de determinadas finalidades e
determinados meios”.
A esse aspecto, Lukács avança refletindo sobre o conceito de prévia-ideação, o
pôr teleológico do trabalho. Como dito anteriormente, o ser humano é o único ser na
natureza capaz de projetar idealmente o resultado de sua ação. A produção de
instrumentos não é a única forma de atividade vital humana, sendo apenas uma das
maneiras de o homem se relacionar com a natureza e gerar os processos de objetivação
e apropriação. Para Lukács, não só na produção de instrumentos, mas toda ação humana
é mediada por posições teleológicas, ou seja, “decisão entre alternativas”. Segundo este
autor, o ser humano reage à alternativa construindo respostas às situações que vivencia.

Em outras palavras, o homem é um ser que responde ao seu ambiente


e, ao fazê-lo, ele próprio elabora os problemas a serem respondidos e
lhes dá as respostas possíveis naquele momento. Essas respostas
podem, no momento subsequente, transformar-se em novas perguntas,
e assim sucessivamente, de tal modo que tanto o conjunto de
perguntas quanto o conjunto de respostas vão formando
gradativamente os vários níveis de mediações que aprimoram e
complexificam a atividade do homem, bem como enriquecem e
transformam sua existência. (VAISMAN, 2010, p. 46).

Isso não significa a perenidade e efemeridade da atividade humana. A decisão


entre alternativas é mediada por necessidades particulares, mas também
indissociavelmente pela genericidade da existência humana. O momento subsequente
mencionado por Vaisman (2010) na citação anterior não significa o momento imediato.
Ademais, não se deve perder de vista o caráter histórico da análise do trabalho.
A complexidade do trabalho está na sua intencionalidade. O ser humano age
segundo uma motivação que não está unicamente ligada a uma resposta natural; ela é
teleologicamente guiada. Isto é, exceto o suprimento de carências básicas – biológicas,
como respirar e se alimentar – toda a vida humana é resultado de posições teleológicas.
Porém, para se obter a existência efetiva do previamente-idealizado, faz-se necessária a
transformação em certo grau da realidade que cerca o indivíduo. Essas transformações
acontecem em duas instâncias.
As primárias, que são aquelas atividades direcionadas à transformação da
natureza, ou seja, proporcionam um “intercâmbio orgânico entre a sociedade e a
175

natureza”, por exemplo, a produção de instrumentos. As posições teleológicas que não


orbitam em torno desse intercâmbio, as secundárias, são aquelas que buscam a formação
da consciência de outras pessoas, tem por objetivo “o agir futuro, desejado de outros
homens”. De acordo com Vaisman (2010, p. 48),

A diferença básica entre os dois tipos de posições teleológicas é, pois,


que, enquanto a primeira desencadeia cadeias causais, a segunda tem
por objetivo o comportamento dos outros homens, isto é, provocar a
mudança para uma nova posição teleológica. Essa diferença
qualitativa tem como consequência: primeiro, a ampliação do círculo
do desconhecido; segundo, a problemática da intencionalidade da ação
é muito mais complexa.

A prévia-ideação permeia o processo de apropriação e objetivação e torna a vida


humana mais complexa a cada geração, assim a vida humana tem a chance de evoluir.
Como há a necessidade de conhecer para se objetivar, cada ser humano que nasce, ao se
apropriar das objetivações existentes, tem a possibilidade de superá-las, caso contrário
não haverá uma produção efetiva do indivíduo particular, assim como da humanidade.
A atividade vital humana é provida de prévia-ideação por ser, como afirma Marx
(2004), atividade consciente. A partir do trabalho, o ser humano confirma sua liberdade.
Apesar da intrínseca relação com a natureza – sendo, o ser humano, parte dela – a
atividade consciente permite ao ser humano ir além dos ditames naturais. E é por isso,
que tem a capacidade de criar uma natureza própria, a natureza humana, o mundo
social.

2 Trabalho educativo

De acordo com Leontiev (1978, p. 301), “[...] o homem não nasce dotado das
aquisições históricas da humanidade”. Mesmo diante da realidade do trabalho
estranhado descrito anteriormente, os processos de apropriação e objetivação não
deixam de acontecer. Nesse sentido, ainda que de forma estranhada, há produção e
reprodução da vida humana e, justamente por não nascer dotado das aquisições
históricas, o ser humano depende diretamente dos pares mais experientes para lhes
transmitir os conhecimentos produzidos pela humanidade.
A apropriação e objetivação da história humana dependem diretamente das
relações entre os seres. Em sentido lato, isso é o que perfaz o processo educativo. Sobre
isso, Leontiev (1978, p. 291) afirma que, “[...] o movimento da história só é, portanto,
176

possível com a transmissão, às novas gerações, das aquisições da cultura humana, isto é,
com educação”. Portanto, a educação é o trabalho cujo objetivo é proporcionar às
gerações mais novas, o contato com o patrimônio cultural produzido pela humanidade
até aquele momento histórico. Logo, a educação como trabalho é fundamento
ontológico para a existência da humanidade.
O modo de produção capitalista, independente de seus equívocos e nuanças
duvidosas, é o modo de produção da vida mais evoluído que a humanidade já
desenvolveu. A forma de transmissão dos saberes produzidos também se desenvolveu.
E a educação escolar legitimou-se como forma dominante de educação.
Saviani (1992) explica que o processo educativo presente desde a origem do ser
humano coincidia com o próprio ato de viver e foram as mudanças na organização
social que proporcionaram as progressivas diferenciações na educação até que o caráter
institucionalizado passasse a predominar. A escola

[...] aparece inicialmente como manifestação secundária e derivada


dos processos educativos mais gerais, mas vai transformando
lentamente ao longo da História até erigir-se na forma principal e
dominante de educação. (...) Em consequência, o saber metódico,
sistemático, científico, elaborado passa a predominar sobre o saber
espontâneo, “natural”, assistemático, resultando daí que a
especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar
.(SAVIANI, 1992, p. 15).

Ainda sim, não é possível deixar de considerar que as relações sociais e o ato de
viver produzam processos educativos. O trabalho educativo nesse sentido está imbuído
de cotidianidade. A vida cotidiana, segundo Agnes Heller (1992), é a vida de todos nós.
Todo indivíduo vive na cotidianidade desde seu nascimento. A vida cotidiana refere-se
àquelas ações espontâneas que realizamos a todo instante como, por exemplo, atravessar
a rua, regular a temperatura do ar condicionado, dirigir um carro, fazer compras, que
podem ou não acontecer diariamente. São momentos de nossa vida que não exigem uma
reflexão mais apurada, busca de teorizações para resolver tais questões, tomar tais
atitudes.
O caráter metódico e sistemático do saber do qual fala Saviani não está presente
na vida cotidiana; pois, para chegar ao patamar de saber elaborado, é preciso uma
relação diferenciada do ser humano com e na produção do saber. Com isso, o saber
apontado por Saviani como de responsabilidade da escola em socializá-lo não é
produzido na esfera cotidiana da vida, mas nas esferas não-cotidianas.
177

Nesse âmbito da vida, o indivíduo precisa elevar-se de sua cotidianidade e


colocar-se inteiramente na realização de uma atividade. As ações não são espontâneas.
Há um esforço de suspensão e empregamos nossa inteira individualidade humana nessa
tarefa, somos nesse instante chamados à homogeneidade, isto é, “[...] a concentrarmos
toda a atenção sobre uma única questão [...]” deixando de lado qualquer outra atividade.
São ações conscientes e autônomas e que trazem consequências para a vida do
indivíduo, seja na sua particularidade (ele enquanto ser individual), seja na
genericidade (gênero humano)3. (HELLER, 1992, p. 27).
Os elementos da vida cotidiana não são negados nesse instante. Quando Heller
fala em suspensão, elevação da cotidianidade, é no intuito de mostrar que, para agirmos
nas esferas não-cotidianas, é necessário escolhermos esse esforço, ou seja, nos
colocarmos diante de uma situação e refletir acerca dela antes de uma atitude. Um
artista ao produzir uma obra, não faz de forma desconectada com seu tempo, com suas
emoções, ele põe naquele instante, habilidades particulares para a execução da tarefa.
Rossler (2006, p. 35) considera que o ser humano,

No âmbito não-cotidiano de sua vida realiza, assim, as atividades


diretamente voltadas para a reprodução da sociedade, ainda que estas
indiretamente contribuam para produção e reprodução dos próprios
indivíduos. Nas esferas não-cotidianas da vida humana, a apropriação
das objetivações genéricas para-si, bem como as objetivações no
âmbito da genericidade para-si, exigem por parte do indivíduo a
superação, ainda que parcial e momentânea, da estrutura da vida
cotidiana.

As objetivações genéricas para-si, ou seja, as produções humanas “duradouras”


são a ciência, a moral e ética, a filosofia, a arte e a política. Estas objetivações revelam

[...] o máximo de desenvolvimento já alcançado pela sociedade


humana, num dado espaço-tempo, ou seja, o que há de mais
desenvolvido na história da humanidade, em termos de suas produções
socioculturais. Portanto, constituem-se naquilo que define o grau
máximo de humanização possível de ser alcançado, num dado
momento histórico, pelos indivíduos que delas se apropriarem.
(ROSSLER, 2006, p. 26).

A educação escolar é a mediadora da prática social do indivíduo entre a esfera


cotidiana e as esferas não-cotidianas (DUARTE, 1996). Já que a vida cotidiana lhe é

3
Para melhor entender o conceito de particularidade e genericidade, consultar obras citadas: Heller
(1992) e Rossler (2006) e ainda Duarte (2013).
178

apresentada logo ao nascimento e mediada de forma espontânea pelos indivíduos que


estão próximos, o trabalho educativo escolar tem uma conotação não-cotidiana e leva o
sujeito do saber comum ao saber elaborado com o intuito de desenvolver sua
humanidade. À educação escolar compete a tarefa de “[...] promover a socialização dos
conhecimentos representativos das máximas conquistas científicas e culturais da
humanidade, por meio da prática pedagógica, tornando o real inteligível”. (MARTINS,
2011, p. 54).
De acordo com Saviani (1992, p. 21), trabalho educativo é o “[...] ato de
produzir direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. A densidade desse
conceito corrobora com a afirmação de Leontiev (1978, p. 291) quando ele aponta que
“[...] quanto mais progride a humanidade, mais rica é a prática sócio-histórica
acumulada por ela, mais cresce o papel específico da educação e mais complexa é a sua
tarefa”.
Saviani (1992, p. 17) sinaliza que o objetivo da educação é, ao mesmo tempo,
identificar os elementos culturais que precisam ser assimilados pelos homens e produzir
as melhores formas de alcançar esse objetivo. Nesse sentido, aponta que a tarefa da
educação, sob a visão da Pedagogia Histórico-crítica, é

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições
de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações
bem como as tendências atuais de transformação;
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar de modo a torná-lo
assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares;
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o
processo de sua produção bem como as tendências de sua
transformação.

3 Planejamento no trabalho docente

O processo ensino-aprendizagem é um processo dialético. Dessa forma, há a


necessidade de compreensão tanto de ambos em relação quanto na sua particularidade.
Parafraseando Martins (2011, p. 11), esse aspecto pode ser melhor explicado: ensino é
ensino e aprendizagem é aprendizagem. Entretanto, o ensino é meio para a
aprendizagem e essa, por sua vez, seu condicionante. Assim, aprendizagem é
aprendizagem e também ensino (e vice-versa), dado que nos permite afirmar que tudo é
179

e não é ao mesmo tempo. Logo, tratá-los em separado – assim como o entendimento da


dinâmica que se institui entre eles em detrimento de suas propriedades particulares – é
impossível.
Entretanto, apontar o aspecto relacional entre ensino e aprendizagem não
significa diluir suas especificidades. Posto isso, no processo ensino-aprendizagem cabe
ao aluno a atividade de aprendizagem que, de acordo com Bernardes (2009) citando
Davidov (1998), envolve tarefas de estudo, ações de estudo, ações de controle e
avaliação.
Ao professor é reservada a tarefa de organizar as ações que possibilitem aos
alunos o acesso aos conhecimentos elaborados sócio-historicamente, isto é, o trabalho
do professor se materializa na atividade de ensino. Através da atividade de ensino o
professor identifica o saber objetivo, transforma-o em saber escolar e promove os meios
necessários para a aprendizagem do aluno. Dessa forma, fica claro que o trabalho
docente é alicerçado por um fim. De acordo com Bernardes (2009, p. 238), “[...] a
consciência dos fins da educação escolar determina os meios pelos quais a ação
pedagógica é realizada [...]”, isto é, determina a atividade de ensino a ser realizada pelo
professor.
Em termos metafóricos, podemos, assim, explicar: visualizando uma órbita, a
tarefa escolar de contribuir para a formação de novos seres humanos pela mediação
entre saber espontâneo e saber elaborado tem no seu centro a relação ensino-
aprendizagem. Ao redor desse centro, gravitam atividades satélites não-docentes e
docentes. Por si só, essas atividades não marcam a identidade da instituição, contudo
sem essas atividades satélites o processo ensino-aprendizagem pode ficar comprometido
e até descaracterizado. Nesse sentido, a tarefa dessas atividades é oferecer suporte e
potencializar a atividade vital da escola.
A transformação do sujeito que aprende é o primeiro objeto da atividade de
ensino. Sabendo que tal transformação ocorre pela apropriação consciente dos
conhecimentos históricos, isto é, pala aprendizagem significativa dos conceitos,

A seleção e a identificação do conhecimento teórico-científico a ser


ensinado na escola e a definição das condições adequadas para a
materialização da organização das ações de ensino na atividade
pedagógica requerem que o educador materialize o segundo objeto da
atividade de ensino. O produto desta atuação profissional é a
elaboração de um instrumento que se objetiva e se materializa na
organização das ações de ensino. (BERNADES, 2009 p. 237).
180

Ao seguir a indicação de Bernardes, podemos situar a relevância do


planejamento. Atividade satélite estreitamente vinculada ao ensino, o planejamento tem
uma tripla objetivação: primeiro enquanto atividade estruturante, organizacional da
atividade de ensino; segundo enquanto tempo, momento da jornada de trabalho
direcionado para essa atividade estruturante, isto é, momento no qual o professor se
dedica à organização das ações de ensino; terceiro, como documento, no qual se
registram as ações de ensino projetadas.
É nesse sentido que corroboramos com Bernardes (2009, p. 239), ao dizer que o
professor “[...] também se educa durante a atividade pedagógica”. Em geral, pensa-se
que isso ocorre apenas quando ele é interpelado e desafiado nas situações de ensino
pelos seus alunos. Com certeza, esses momentos existem. Contudo, a autoformação do
professor vem da natureza e demandas não apenas do encontro com o aluno e outros
sujeitos escolares, mas também de suas “[...] funções de organizar o ensino, definir
conteúdos e criar situações desencadeadoras da atividade de aprendizagem a serem
realizadas pelos estudantes”. (BERNARDES, 2009, p. 239).
Concordando com essa perspectiva do que seja a tarefa da educação escolar, é
que consideramos importante analisar de que maneira deve ser encarado o momento do
planejamento dentro do trabalho docente; pois a realização de uma tarefa tão complexa
quanto essa exige de quem a realiza muito mais do que o cumprimento de passos, metas
e busca por resultados previamente estabelecidos. Ainda que assim o seja, a qualidade
do previamente estabelecido tem implicações que vão muito além do [que] fazer. Por
que planejamos? De onde vem essa necessidade, ou seria, capacidade humana? É
possível trabalho docente sem planejamento, ou onde este ocupe um lugar
irrisório/burocrático/pragmático no tempo de trabalho?
O caráter teleológico do trabalho, a prévia ideação, torna possível ao ser humano
perceber a realidade como um conjunto de possibilidades, de alternativas, de escolhas.
Nesse sentido, o por teleológico do trabalho, que se manifesta inicialmente no campo
das ideias – mas que está diretamente ligado às situações concretas que a vida coloca
aos indivíduos e às formações sociais como um todo –, constrói uma série de
alternativas.
O ato de ensino é o momento em que o professor intervém direta e
intencionalmente no processo de humanização de seus alunos. Porém, essa, como todas
as outras ações humanas, tem um por teleológico, ou seja, uma projeção mental que
antecipa a ação, por isso é intencional. No caso do trabalho docente, a complexidade
181

que permeia essa ação, prescinde de igual complexidade na organização mental da


mesma. Isso significa que a centralidade do ensino é sustentada por outras ações de
igual importância, uma delas é o planejamento.
O que diferencia o processo educativo em geral do trabalho docente é que, antes
de ensinar, o professor constrói um caminho, um percurso, isto é, um planejamento de
forma que o resultado almejado (construído mentalmente) possa ser alcançado. Para
tanto, o professor precisa ter plena consciência do que pode alcançar ao final do
processo de trabalho. Não basta saber que ensina algo, precisa saber por que, a quem, o
quê, para quê, de modo que a intenção do ato educativo se torne consciente.
Ao manter uma relação consciente com o seu trabalho, o professor é
impulsionado a explicitar sua intencionalidade pedagógica. Em outras palavras,

[…] não basta formar indivíduos, é preciso saber para que tipo de
sociedade, para que tipo de prática social o educador está formando os
indivíduos. [...] [a prática pedagógica] precisa ser intencionalmente
dirigida pelo educador desde o início do processo educativo.
(DUARTE, 1996, p. 51-52).

Diante dessa reflexão, concordamos com Della Fonte e Loureiro (2013, p. 117),
quando sinalizam que

[...] o planejamento educacional será sempre uma permanente tomada


de decisões que se nutre da relação tensa e complementar entre teoria
e prática (longe de se apresentar como diluição ou identificação); entre
realidade e possibilidade; entre causalidade e casualidade”. Nosso
esforço neste momento é detalhar essa indicação.

Nesse sentido, o trabalho docente envolve essa relação, que não pode ser
desarticulada, pois a prioridade ontológica da prática sobre a teoria não deve ser
entendida com o abandono desta. A intenção da atividade docente, como é possível
perceber na articulação entre teoria e prática, está em constante relação com a realidade.
Não existe por teleológico, não há pensamento que não seja a partir da realidade
concreta. Entretanto, a capacidade de transformação a partir do trabalho cria a
possibilidade, o por vir, tanto da natureza quanto do ser humano. Como afirma Gramsci
(1987, p. 38), “[...] digamos, portanto, que o homem é um processo, precisamente o
processo de seus atos”.
Diante disso, o planejamento docente está constante e diretamente ligado à
realidade – o que é o ser humano – e à possibilidade – o vir a ser do humano. Assim,
182

retomamos mais uma vez a necessidade de conhecer a realidade para que possamos
efetivar sua transformação.
E o trabalho docente, como uma posição teleológica secundária, tem a
transformação da consciência de outros seres humanos como objetivo. Para tanto, ao
planejar o ato de ensino, o professor precisa ter consciência dessa possibilidade/
potencialidade de seu trabalho. Por seu turno, isso só é possível conhecendo bem a
realidade em que se encontra, para se reconhecer nela os germens de sua transformação.
Nesse sentido, o planejar docente se alimenta da tensão entre a realidade tal como é e o
horizonte de uma realidade transformada.

Considerações finais

Como já dito, o trabalho docente é uma atividade que se dá no âmbito não-


cotidiano da vida. Ainda sim, como qualquer outra atividade humana não-cotidiana, o
trabalho docente existe na cotidianidade e é por ela também interferida4. Existe na vida
humana uma tênue tensão entre causalidade (o que existe de regular e é passível de ser
previsto) e a casualidade (contingências/fatos acidentais, exemplo: questões climáticas,
greve de ônibus, manifestações, doenças etc.).
O trabalho docente não pode ser guiado pelas casualidades. Podemos pensar nas
casualidades como uma característica da vida cotidiana. De acordo com Heller (1992, p.
30), “[...] jamais é possível, na vida cotidiana, calcular com segurança científica a
consequência possível de uma ação”. Isso porque outra característica da cotidianidade é
o fato de o ser humano atuar sobre a base da probabilidade. Isto significa que, a partir
do pensamento empírico, consideramos determinadas possibilidades em nossas ações. O
fracasso dessas determinações probabilísticas é chamado por Heller de “catástrofes da
vida cotidiana”. A autora exemplifica ações na quais utilizamos tais considerações:

[...], por exemplo, ao cruzar a rua: jamais calculamos com exatidão


nossa velocidade e aquela dos veículos. Até agora nunca fomos parar
debaixo de um carro, embora isso possa ocorrer; mas se, antes de
atravessarmos, resolvêssemos realizar cálculos cientificamente
suficientes, jamais chegaríamos a nos mover (HELLER, 1992, p. 31,
grifo da autora).


4
A medida da interferência da cotidianidade no trabalho docente implica da relação pensamento empírico
e pensamento teórico discutido anteriormente.
183

O trabalho docente, sendo atividade humana que acontece no âmbito não-


cotidiano da vida, não carrega tais considerações probabilísticas. Aquilo que objetiva a
atividade docente não pode ser orientado “[...] por avaliações probabilísticas suficientes
para que se alcance o objetivo visado”. Isso porque “o pensamento cotidiano orienta-se
para a realização de atividades cotidianas e, nessa medida, é possível falar de unidade
imediata de pensamento e ação na cotidianidade. As ideias necessárias à cotidianidade
jamais se elevam ao plano da teoria, [...]”. (HELLER, 1992, p. 31 – grifos da autora).
Nesse sentido, o planejamento da atividade docente é muito mais do que lidar
probabilisticamente com as “catástrofes”, assim como com as causalidades naturais.
Sendo o trabalho docente responsável pela socialização das objetivações genéricas
para-si, o planejamento de tal atividade se ancora em causalidades postas, construídas a
partir da mais complexa teleologia.
A partir disso, é possível compreender as duas relações implícitas ao planejar
docente: ato individual e coletivo. O planejamento de ensino-aprendizagem é o ato
estritamente de um professor. Todavia, há uma coletividade que o sustenta (ele não é
isolado). Isso pode ser compreendido, pelo menos, a partir de dois horizontes. O
primeiro, sugerido por Marx, diz respeito ao caráter social mesmo de atividades
realizadas por uma única pessoa. Podemos, assim, pensar que o ato de planejar é
realizado por um professor individual, mas nessa ação, estão presentes a herança de
teorias e práticas educativas, crenças e hábitos, que foram construídos anteriormente a
ele e se fazem presentes em sua ação individual de formas diversas. Porém, para além
da referência à genericidade humana, o planejamento no contexto escolar precisa
também ser coletivo.
A tarefa individual de planejar precisa estar articulada com ações e projetos
coletivos da instituição. Caso contrário, não é possível construir uma unidade e coesão
do trabalho educativo e a função da escola se esvazia na pulverização de
intencionalidades individuais e desarticuladas de seus profissionais. O caráter coletivo
do planejamento escolar se expressa em vários momentos como reuniões entre
professores responsáveis pela mesma matéria de ensino, de professores da mesma área
de conhecimento, encontros de todos os professores e profissionais que atuam na escola,
por exemplo.
O planejamento é um processo permanente de tomada de decisões; ressalta-se,
no entanto, que essas decisões não são necessariamente exclusividade do professor;
podem integrar os vários membros da comunidade escolar, como estudantes e as
184

famílias. Assim, o planejamento participativo aparece como um desafio para a escola ao


incluir novos modelos de pensar, decidir, agir entre os diferentes sujeitos que a
constituem. Nesse sentido, a experiência de democracia atravessa a plenitude do
trabalho educativo escolar. Afinal, ao incluir e, ao mesmo tempo, transcender ações
individuais de diferentes sujeitos, o espaço escolar evoca o exercício da participação,
diálogo, cooperação e construção coletiva.
Contudo, no contexto de um trabalho alienado e alienante, a riqueza do planejar
no trabalho do professor se esvai. As responsabilidades atribuídas à escola tornam o
trabalho do professor um emaranhado de tarefas. A participação mais ativa do professor
em aspectos além dos pedagógicos é, de certo modo, positiva. A quimera dessa história
se revela no tempo de trabalho do professor e em como esse tempo está organizado.
Insuflado de aulas, o tempo que resta para atividades extraclasse é insuficiente,
acarretando, assim, uma sobrecarga de trabalho. Tal cenário caracteriza o processo de
intensificação do trabalho docente. De acordo com Duarte (2010, p. 4),

[...] a intensificação do trabalho docente está registrada como


tendência do trabalho docente da atualidade, em várias pesquisas, não
importando o nível ou as etapas, ou seja, está presente no trabalho dos
professores da educação superior (graduação e pós-graduação) e na
educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino
médio).

Além do número exagerado de aulas, a quantidade de funções assumidas pela


escola pública leva o professor a ter que desempenhar papéis que fogem à sua formação:
agentes públicos, assistentes sociais, psicólogos etc. Junto a isso, a imposição e
sobrecarga de atividades e tarefas, imposição de projetos impostos pela Secretaria de
Educação, cobrança e pressão por resultados, mecanismo de controle do trabalhador (de
forma individual: aquele professor que faltar menos recebe bônus, e também,
institucional: a escola recebe verba se não apresentar retidos ou evadidos), baixo salário
dos professores e perda do poder aquisitivo, falta de tempo que acarreta em deficiência
de investimentos em qualificação e que implica em insuficiência de tempo para
planejamento e organização do trabalho pedagógico, ausência de trabalho coletivo na
escola, são elementos apontados por Lourencetti (2006) como responsáveis pela
intensificação do trabalho do professor.
Situado na esfera do trabalho imaterial e improdutivo, o trabalho do professor
tem seu processo de intensificação conduzido por caminhos diferentes daquilo que
185

acontece com o trabalho fabril. Barbosa (2009) cita dois elementos que compõem essa
diferença: o trabalho do professor tem certa autonomia e não produz diretamente mais-
valia; enquanto o trabalho fabril é totalmente mecânico e a produção de mais-valia é
direta. Nesse sentido, a partir de Basso (1998), Barbosa (2009, p. 51) afirma “[...] que o
controle do trabalho do professor se dá pela falta de qualificação profissional” e não
pela falta de autonomia na execução do seu trabalho. E ainda podemos pensar que a
autonomia na execução do trabalho do professor é exaurida pela falta de qualificação
em sua formação.
O fenômeno de intensificação do trabalho docente repercute no planejamento de
ensino-aprendizagem. Como um ato que aglutina a tensão e complementaridade entre
teoria e prática, causalidade e casualidade, realidade e possibilidade, esse planejamento
é esvaziado pela inflação de tarefas a serem cumpridas pelo docente, torna-se
pragmático e tem arrancado o seu caráter mediador entre teoria e prática, rende-se aos
improvisos e casualidades de ações individuais, não projeta a possibilidade de mudança,
apenas afirma o que já existe. Com isso, a complexidade do trabalho docente é
rebaixada ao nível de uma ação eminentemente cotidiana, espontânea, de reações
imediatas, não conscientes e fragmentadas.
Em tempos de neoliberalismo nos quais a flexibilidade, o “multifuncionalismo”
ou a “polivalência” são características indispensáveis ao trabalhador, “o artifício da
multivariedade de funções impostos ao professor que trabalhe com diferentes temas,
métodos e perspectivas, ou seja, uma ‘diversificação de habilidades’ impinge-lhe uma
desqualificação intelectual por meio da dependência cada vez maior do planejamento de
experts”. (BARBOSA, 2009, p. 49).

Referências

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DELLA FONTE, Sandra Soares; LOUREIRO, Robson. Planejamento educacional: de sua


centralidade ao seu esvaziamento. In: Política e planejamento educacional no Brasil do
século 21. Eliza Bartolozzi Ferreira e Marília Fonseco (organizadores). Brasília: Liber Libro,
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186

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GRAMSCI, Antônio. Concepção dialética da história. 7. ed. Rio de Janeiro:


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HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1992.

LEONTIEV, Alexis. O desenvolvimento do psiquismo. 2. ed. Trad. Rubens Eduardo


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LOURENCETTI, Gisela do Carmo. O processo de intensificação no trabalho


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http://www.anped.org.br/reunioes/29ra/trabalhos/trabalho/GT04-1708--int.pdf Acesso
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MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosófico. São Paulo: Boitempo, 2004.

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ROSSLER, João Henrique. Sedução e alienação no discurso construtivista. Campinas, SP:


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SILVA, Paula Abreu. O pedagogo e o professor de Educação Física na cultura escolar.


2015. 115 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de pós-graduação m Educação Física,
Universidade Federal do Espírito Santo, Centro de Educação Física, Vitória, Espírito Santo,
2015.

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

BOUGUEREAU, W. A. A difícil lição. 1884.


Óleo sobre tela, 97,8 x 66 cm.

GT2 - CURRÍCULO, DIDÁTICA E PRÁTICA PEDAGÓGICA HISTÓRICO-


CRÍTICA

O GT “Currículo, Didática e Prática Pedagógica Histórico-Crítica” pretendeu reunir


trabalhos que apresentassem resultados de pesquisas parciais ou concluídas atinentes à prática
pedagógica na perspectiva histórico-crítica, com especial atenção às dimensões curriculares e/ou
didáticas do trabalho em contextos de educação formal.

SUMÁRIO (GT2)

O LEMA “APRENDER A APRENDER” NO ENSINO DE LITERATURA E O


CONTEXTO IDEOLÓGICO DA ATUAL SOCIEDADE CAPITALISTA ................. 190
A ABORDAGEM HISTÓRICA E A QUESTÃO RELIGIOSA NO ENSINO DE
EVOLUÇÃO BIOLÓGICA: CONSIDERAÇÕES À LUZ DA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA .................................................................................................. 205
PARA UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA HISTÓRICO-CRÍTICA: APONTAMENTOS
SOBRE O PLANEJAMENTO DE ENSINO ................................................................. 219
BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A EDUCAÇÃO ESCOLAR: CENAS
DE UMA RELAÇÃO (IN) FELIZ ................................................................................... 234
DA FORMAÇÃO À ATUAÇÃO DO PROFESSOR DE ARTES VISUAIS:
CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PRÁTICA HISTÓRICO-CRÍTICA ....................... 248
EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CIENTÍFICA MEDIADA PELAS OBRAS DE ARTE DO
ACERVO DO IFES: APROXIMAÇÕES COM A PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA .......................................................................................................................... 263
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
CONTRIBUIÇÕES A LUZ DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ................... 277
FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO INSTITUTO POLITÉCNICO DA UFRJ .... 292
PNLD, LIVRO DIDÁTICO E FORMAÇÃO HISTÓRICO CRÍTICA: UM DIÁLOGO
COM SAVIANI ............................................................................................................... 308
LINGUAGEM, ENUNCIAÇÃO E GÊNERO DISCURSIVO: APROXIMAÇÕES
ENTRE BAKHTIN E LEONTIEV E CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO DE
LÍNGUA PORTUGUESA ............................................................................................ .321
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O TRATO COM O CONHECIMENTO
ESPORTE NA ESCOLA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES ......................................... 335
A APROPRIAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ............................... 351
PRÁTICA PEDAGÓGICA À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO E
DIALÉTICO, DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA .................................................................................................. 365

ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCOLAR A PARTIR DOS EIXOS


FILOSÓFICOS DO PPP ................................................................................................. 376
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DAS
DIRETRIZES CURRICULARES PARA A REDE PUBLICA MUNICIPAL DE
EDUCAÇÃO DE APARECIDA DE GOIÂNIA-GO .................................................... 387
APROXIMAÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA À EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS ................................................................................................... 397
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA COMO FUNDAMENTO DA
CONSTRUÇÃO CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA
INTEGRADA AO ENSINO MÉDIO ............................................................................ 406
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA O TRATO
COM O CONHECIMENTO REFERENTE AO TRABALHO CIENTÍFICO NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA ................................... 418
A EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERSPECTIVA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA CONTRA HEGEMÔNICA ................ 434
DOM QUIXOTE NA SALA DE AULA: A LEITURA DE UM CLÁSSICO À LUZ DA
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA ......................................................................... 446
HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO UNIVERSO MANACUDO: UM CAMINHO
PARA A FORMAÇÃO DE LEITORES CRÍTICOS......................................................457
ATIVIDADES DIDÁTICAS CONTEXTUALIZADAS PARA AULAS DE ECOLOGIA
NO ENSINO MÉDIO: UMA PROPOSTA FUNDAMENTADA NA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA....................................................................................................474
A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E A PRÁTICA DIDÁTICO-PEDAGÓGICA
NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL MÉDIO: PERCEPÇÕES
DISCENTES.....................................................................................................................486
O PAPEL DO ENSINO DE CIÊNCIAS PARA A PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA.......................................................................................................................... 503
AS PEDAGOGIAS DO "APRENDER A APRENDER" E OS DOCUMENTOS
OFICIAIS: UMA ANÁLISE DO TRABALHO EDUCATIVO NO
BERÇÁRIO.......................................................................................................................517

Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira


Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O LEMA “APRENDER A APRENDER” NO ENSINO DE LITERATURA


E O CONTEXTO IDEOLÓGICO DA ATUAL SOCIEDADE CAPITALISTA

Larissa Quachio Costa (UNESP) 1

Resumo: O trabalho que ora se apresenta presta-se a traçar algumas reflexões acerca da
influência do lema “Aprender a aprender” no campo do ensino da Língua Portuguesa e,
portanto, de Literatura, e suas implicações para o processo de desenvolvimento humano. O
artigo concentra-se na tese segundo a qual tal influência é um dos aspectos característicos das
concepções pós-modernas, cuja origem deve ser averiguada nas primeiras manifestações do
processo de decadência ideológica da burguesia, no século XIX.

Palavras-chave: Decadência ideológica. Pensamento pós-moderno. Arte Literária. Pedagogia


histórico-crítica. Ensino de Literatura.

Introdução

Procuramos expor aqui os aspectos gerais da análise de Lukács sobre as


consequências das Revoluções de 1848 para a sociedade, ou seja, o declínio da
burguesia como classe revolucionária e o consequente perecimento de sua ideologia – a
“decadência ideológica”.
Estabelecemos uma relação entre as primeiras manifestações desse processo em
meados do século XIX e a chamada pós-modernidade. Defendemos que, no âmbito
educacional, essa relação se encontra no movimento das pedagogias hegemônicas
contemporâneas articuladas ao lema “aprender a aprender”, cujas bases se encontram no
movimento da Escola Nova.
A partir dessa breve análise sobre origem do pensamento pós-moderno e suas
implicações para a sociedade contemporânea e considerando que a escola não pode ser
compreendida deslocada da sua relação com a sociedade, objetivamos refletir como a
produção intelectual do período da decadência e, agora, influenciada fortemente pela
ideologia do pensamento pós-moderno, interfere ainda na educação escolar e, por
conseguinte, no ensino de Língua Portuguesa.

1
Larissa Quachio Costa, doutoranda em Educação Escolar, UNESP – Universidade Estadual Paulista, SP,
Brasil. E-mail: lalaquachio@yahoo.com.br


191

1 As Revoluções de 1848 e a reação burguesa

Paris, 24 de fevereiro de 1848, pela manhã, está em plena revolução. Ao


anoitecer, um governo provisório é estabelecido. A monarquia francesa havia sido
derrubada por uma insurreição e a república proclamada.
Segundo Eric J. Hobsbawm (2015, p. 43-46), historiador marxista, os eventos de
1848 ficaram conhecidos como “A primavera dos povos” e, como a primavera, não
durou, pois as revoluções foram vitoriosas e derrotadas rapidamente.
Segundo György Lukács (2011) filósofo húngaro, foi nas jornadas de junho de
1848 que o proletariado se afirmou como classe revolucionária independente da
burguesia. Os trabalhadores reivindicavam a continuidade, no plano social, dos avanços
que a burguesia havia alcançado, no plano jurídico, com a Revolução Francesa, isto é, a
igualdade de fato, a garantia de acesso à propriedade.
Podemos dizer que as jornadas de 1848 trouxeram à consciência social a
oposição entre capital e trabalho. Como atesta Hobsbawn (2015), a burguesia, perante a
ameaça à propriedade privada, percebeu que preferia a ordem à oportunidade de pôr em
prática o projeto teórico que havia proferido durante o Século das Luzes.
De acordo com Lukács (2010, p. 51), as insurreições de 1848 se configuram
como o marco do declínio da burguesia como classe revolucionária e do consequente
perecimento de sua ideologia. O pensador húngaro afirma que quando a burguesia “[...]
já domina o poder político e a luta de classes entre ela e o proletariado se coloca no
centro do cenário histórico [...]” tem início a sua decadência ideológica, tendência de
vulgarização e capitulação da filosofia burguesa.

2 Decadência ideológica: vulgarização e capitulação da filosofia burguesa

Segundo Lukács (2010, p. 51), a decadência ideológica burguesa principia-se


quando a burguesia domina o poder político e a luta de classe entre ela e o proletariado
se coloca no centro do cenário histórico. Podemos dizer que o pensamento social pós-
1848, com poucas exceções, foi se adequando às circunstâncias históricas do modo de
produção capitalista e, dessa forma, a vocação apologética de negação das contradições
da vida real surge como imperativo da burguesia para assegurar seu poder material e
espiritual.
No processo de consolidação do poder burguês, o saber, cujo objetivo era
192

desvendar as reais contradições da sociedade, começa a ser substituído pelo saber


compromissado com as instituições oficiais do sistema capitalista. A razão, “conceito de
que o real é racional e pode ser objetivamente conhecido”, converte-se em ferramenta
ideológica de justificação do existente – a realidade alienada do capitalismo – e a
intuição - que se baseia na mera vivência subjetiva imediata - torna-se o único
instrumento válido do conhecimento: “o irracional subjetivo e arbitrário destrona a
razão objetiva”. (COUTINHO, 1967, p. 10-12).
Segundo Coutinho (1967; 2010, p. 51), o fato de a razão servir a objetivos
globais irracionais, em vez de elaborar as categorias a partir de sua essência econômica,
fornece ao indivíduo - desligado do processo histórico global devido à intensa divisão
do trabalho - uma visão irracionalizada da realidade, o que lhe priva de condições para
compreender as razões reais do caos aparente.
Essa conversão da burguesia como classe, conforme assevera Coutinho (2010),
transforma o pensamento burguês em fonte do aumento da alienação humana e essa
alienação se faz necessária porque tem a finalidade de reduzir as possibilidades de ações
revolucionárias.
Enfim, a decadência ideológica e cultural da burguesia, logo, caracteriza-se pela
contradição entre o avanço material e uma espécie de estagnação cultural, cujas
consequências se desdobraram em diversos níveis da atividade humana, inclusive na
ciência, na filosofia e na arte.
Além disso, como afirma José Paulo Netto (2010, p. 255), a decadência
ideológica não possui fronteiras nacionais e abarca o conjunto do mundo ocidental, o
que nos permite refletir acerca da possibilidade de haver aí o germe do ambiente
ideológico do capitalismo contemporâneo – o universo neoliberal e pós-moderno –;
pois, por meio deste, a classe dominante consegue, ainda, controlar a produção do
conhecimento e quanto ele possa e deva ser difundido à grande parte da população, a
fim de mantê-la em níveis de consciência que possibilitem sua manipulação ideológica.

3 Pensamento pós-moderno: consequência da decadência ideológica

Newton Duarte (2004, p. 219-221) afirma que o pós-modernismo leva às últimas


consequências as tendências irracionalistas já presentes no pensamento burguês desde o
século XIX e que se acentuaram fortemente durante o século XX. Podemos afirmar que
193

o pensamento pós-moderno postula a impossibilidade ou a indeterminação do


conhecimento, a inacessibilidade da realidade objetiva.
Conforme afirma Duarte (2006), relativismo, irracionalismo e fragmentação são
aspectos característicos das concepções pós-modernas, cuja origem deve ser buscada na
realidade do capitalismo contemporâneo, na ideologia do modelo neoliberal. Para o
autor, assim, há uma indesatável relação entre as variadas formas de manifestação do
pensamento pós-moderno e a realidade social do capitalismo contemporâneo, do qual o
pensamento neoliberal apresenta-se como explícito defensor.
Diante da exposição das características da decadência ideológica do pensamento
burguês, no século XIX, e dos aspectos das concepções pós-modernas, podemos afirmar
que se Lukács estivesse vivo diria que a decadência perdura; pois, assim como a
tendência de vulgarização e capitulação da filosofia burguesa, o pensamento pós-
moderno contemporâneo também afirma a impotência do ser humano, ou seja, a sua
incapacidade de conhecer a realidade e, consequentemente, a incapacidade humana de
transformar a sociedade.
Considerando essas análises sobre uma breve caracterização da origem do
pensamento pós-moderno e suas implicações para a sociedade contemporânea e
partindo do pressuposto de que a escola não pode ser entendida deslocada da sua relação
com a sociedade, ressaltamos aqui o fato de o irracionalismo ser forte componente do
pensamento pós-moderno, com sérias consequências para os campos da educação.
A escola situa-se predominantemente no campo da difusão do conhecimento, no
qual refletem as contradições que se agudizam no campo da produção e da
sistematização do conhecimento na época da decadência ideológica e, nas últimas
décadas, na sociedade considerada pós-moderna. Dessa forma, precisamos refletir como
a produção intelectual do período da decadência e, agora, influenciada fortemente pela
ideologia do pensamento pós-moderno, interfere na educação escolar.

4 O lema “Aprender a aprender”: expressão da decadência ideológica

Em relação ao plano pedagógico, Duarte (2009) considera a emergência e ampla


difusão da pedagogia escolanovista e todas as suas variantes – entre estas o lema
“Aprender a aprender” –, ao longo do século XX, a expressão, no campo educacional,
do fenômeno mais amplo caracterizado por Lukács: a decadência ideológica do
194

pensamento burguês após as revoluções de 1848.


O autor afirma que o lema “Aprender a aprender” é um dos instrumentos
ideológicos da classe dominante, cujo propósito é esvaziar a educação escolar destinada
à maioria da população enquanto são buscadas formas de aprimoramento da educação
das elites. Esse esvaziamento do trabalho educativo escolar, essa negação da tarefa da
escola de possibilitar o acesso à verdade é a expressão, para Duarte (2006, p. 09), no
âmbito educacional, da atual crise cultural gerada por um dos pilares centrais do
universo ideológico da sociedade capitalista contemporânea, o ideário pós-moderno.
Duarte (2006) discute também os princípios do lema “Aprender a aprender” e
atesta que o eixo caracterizador deste se encontra na desvalorização da transmissão do
saber objetivo, na diluição do papel da escola em transmitir esse saber, portanto, na
dissolução da função da escola de proporcionar ao educando o acesso à verdade.
O autor afirma ainda que esse lema desempenha uma relevante função na
adequação do discurso pedagógico contemporâneo às necessidades do processo de
mundialização do capitalismo, devido à sua interna vinculação à categoria de adaptação
que ocupa posição de destaque tanto no discurso político-econômico neoliberal como
nas teorias epistemológicas, psicológicas e pedagógicas de cunho construtivista.
Tanto o lema “Aprender a aprender” quanto o ideário pós-moderno contribuem
para o “esvaziamento completo” (MARX apud DUARTE, 2006, p. 54) do ser humano
no capitalismo na medida em que não visam à formação plena do indivíduo e sim à sua
“adaptação incessante aos ventos do mercado” (DUARTE, 2006, p. 54), à sua
permanência na profunda alienação que caracteriza a vida cotidiana na sociedade
capitalista.
Diante do exposto, podemos afirmar que o lema “Aprender a aprender”,
fortemente presente no cenário educacional brasileiro, trata-se de um símbolo das
posições pedagógicas sintonizadas com o processo de mundialização do capitalismo e,
logo, com o projeto político e econômico neoliberal e com o universo ideológico pós-
moderno, originário da referida decadência ideológica. Dessa forma, concluímos que o
lema “Aprender a aprender” correponde, no atual plano educacional, a um traço de
continuidade dos instrumentos de manipulação ideológica da burguesia francesa de
1848.
O poder da ideologia dominante contemporânea é imenso, ainda mais aliado
ao arsenal político-cultural à disposição da classe dominante e, diante desse contexto,
faz-se necessário refletir acerca de formas que, por meio da educação escolar, possam
195

contribuir para a plena humanização do indivíduo. Acreditamos que uma dessas formas
seja o ensino de Literatura que, privilegiando o conhecimento clássico possa colaborar
de modo significativo para o desenvolvimento plenamente livre e universal do homem.

5 A presença da decadência ideológica no ensino de Literatura

De acordo com Saviani (2008a), a Revolução de 1964, que culminou no


internacionalismo autoritário em sua vertente militarista, ajustou a ideologia política do
nacionalismo desenvolvimentista ao modelo-econômico de caráter desnacionalizante -
contradição esteve na base da crise dos anos iniciais da década de 1960.
Saviani (2008a) explica que tal fato refletiu na legislação, a qual instituiu as
reformas de ensino baixadas pela ditadura militar e, assim, as bases organizacionais
foram modificadas a fim de adequar a educação brasileira às exigências do modelo
econômico do capitalismo de mercado associado dependente. O aprofundamento das
relações capitalistas, no Brasil, levou à defesa da organização do sistema de ensino em
estreita vinculação com o desenvolvimento econômico do país.
Para o educador brasileiro (2008a), o emprego do modelo econômico associado-
dependente, o ingresso de empresas estrangeiras, a demanda de preparação de mão de
obra para estas acarretou a importação do modelo organizacional que as presidia no
campo da educação. Propagaram-se, então, ideias ligadas à organização racional do
trabalho, ao enfoque sistêmico e ao controle do comportamento que, no âmbito da
educação, caracterizaram uma orientação pedagógica chamada de pedagogia tecnicista.
De acordo com Saviani (2008a), é sob o esteio do governo ditatorial, que se dá a
elaboração e a aprovação do projeto da Lei 5.692, que instituiu as diretrizes e bases do
ensino de primeiro e segundo graus, convertendo a pedagogia tecnicista em pedagogia
oficial do país.
Em relação ao ensino de Língua Portuguesa nesse contexto ideológico, a língua
passa a ser considerada como instrumento a serviço do desenvolvimento. Essa lei
determinava que se devia dar relevo especial à língua nacional, compreendida como
instrumento de comunicação e expressão da cultura brasileira. O ensino de Literatura
não é especificado no documento da lei, mas pode ser incluído na referência à cultura
brasileira, o que nos faz concluir que se trata apenas da literatura brasileira.
Aproximadamente até o final de 1960, a escola brasileira sugeria a literatura como
196

o padrão de norma lingüística a ser seguido, de modo que os livros didáticos daquela
época conservavam textos e fragmentos de autores considerados clássicos. A gramática
normativa apresentava suas regras e, para exemplificá-las, utilizavam-se também dos
clássicos. A relação entre a norma culta da língua e a linguagem literária clássica era
evidente, mas com promulgação da referida lei o ensino de gramática é questionado e
passa a ser minimizado. Dessa forma, o ensino da Língua Portuguesa vai se
desvencilhando da influência da literatura clássica e, consequentemente, o conteúdo
passa a ser esvaziado, fato que se agrava no decorrer das próximas décadas.
No referido documento, a alusão feita à Língua Portuguesa e à Literatura
Brasileira revela uma separação entre o ensino de gramática e o de literatura e a
exclusão do ensino de Literatura Portuguesa. Essa separação acentuou a tendência
marcada pelo espírito tecnicista de dividir conteúdos e professores de uma mesma
disciplina para especializar e, consequentemente, fragmentar o ensino.
A ditadura militar chega ao fim com o processo de redemocratização do país nos
anos de 1980, mas esse movimento de reabertura política vem acompanhado de
imposições mundiais, caracterizadas pela globalização da economia na perspectiva
neoliberal. Nessa mesma década, desponta com força a busca de teorias que não apenas
se apresentassem como alternativas à pedagogia oficial, mas que a ela se
contrapusessem. A despeito do clima propício à emergência das pedagogias contra-
hegemônicas na década de 1980, os resultados não foram animadores, pois as tentativas
de implantar políticas educativas de esquerda por parte de governos estaduais e
municipais foram frustrantes.
Segundo Saviani (SAVIANI, 2008a), na década de 1990, há a ascensão de
governos ditos neoliberais, são promovidas em diversos países reformas educativas
caracterizadas pelo neoconservadorismo e, dessa forma, o discurso e a prática
governamentais brasileiros reconstituem a aliança entre educação e desenvolvimento
econômico. Reformas educacionais são efetuadas conforme diretrizes de organismos
internacionais e com isso se dá a atualização do lema “Aprender a aprender”, o qual
influenciará sobremaneira o ensino de Língua Portuguesa e, logo, o de Literatura.
A lei 9394/96, publicada durante a ascensão dos governos neoliberais no Brasil,
faz referência também ao ensino de Português; mas, conforme atesta Cereja (2005), o
faz de modo muito vago e o lema “aprender a aprender” é expresso em seus artigos.
Para Cereja (2005), nesse documento, a ênfase quanto ao papel social das linguagens
recai na concepção segundo a qual a linguagem é um “meio de expressão, informação e
197

comunicação”. De acordo com o autor, no novo ensino preconizado por tal documento,
a história da literatura se desloca para segundo plano e o ensino de literatura se integra à
leitura de texto.
Tais documentos preconizam que o aluno deva ser o protagonista do processo de
aprendizagem e, assim, revelam sua relação com o lema “aprender a aprender” que, de
acordo com Duarte (2006), é a expressão da descaracterização do papel do professor
como alguém que detém um saber a ser transmitido aos alunos.
Outras características dos documentos mencionados que revelam seu
comprometimento com o lema “aprender a aprender” são a exclusão do ensino de
Literatura Portuguesa e o deslocamento da história da literatura para segundo plano,
relacionando o ensino de Literatura apenas à leitura de textos literários. Essas
características denotam o núcleo definidor do lema “aprender a aprender”: a negação do
ato de ensinar, o rebaixamento da transmissão do saber objetivo.
Em relação ao ensino de história de literatura, podemos dizer, como atesta
Saviani (2008b), que os conteúdos históricos sempre serão relevantes e determinantes,
porque é por meio deles que se apreende a perspectiva histórica, o modo de situar-se
historicamente. O conteúdo histórico no ensino de literatura pode contribuir
efetivamente para que o aluno tenha uma visão totalizadora do que antes era visto de
modo fragmentado.
Diante do exposto, acreditamos que os documentos abordados proclamam um
ensino de Língua Portuguesa e, portanto, de Literatura, cujo comprometimento não é
com a plena formação dos indivíduos e sim com a ideologia da classe dominante para
esvaziar a educação escolar destinada à maioria da população; pois tais documentos
estão pautados no lema “Aprender a aprender”.
Dessa forma, podemos atestar que, se o lema “Aprende a aprender” pauta as
atuais concepções de ensino de Língua Portuguesa, tal ensino vem carregando nas
últimas décadas a influência do ideário pós-moderno, sombra da decadência ideológica
burguesa do século XIX, marcadamente presente nos atuais parâmetros curriculares
nacionais.
É perante esse contexto que defendemos a necessidade de se pensar em um
ensino de Língua Portuguesa e, no caso do foco desse artigo, em um ensino de
Literatura que vá de encontro à ampla difusão das teorias epistemológicas, psicológicas
e pedagógicas de cunho construtivista, expressões, no campo educacional, da
decadência ideológica do pensamento burguês. É diante desse panorama que
198

preconizamos um ensino de literatura comprometido com a socialização da literatura


clássica, com o domínio do saber objetivo nas suas formas mais desenvolvidas e com a
ampliação dos horizontes culturais dos alunos. Enfim, há a necessidade de se refletir
acerca de um ensino de literatura compromissado com um conhecimento que possibilite
ao aluno vivenciar esteticamente uma obra literária e, pela recepção estético-literária,
transformar sua concepção de mundo em uma visão desfetichizada da realidade, enfim,
humanizar-se.

6 A literatura clássica à luz da estética marxista

Para elucidarmos como o ensino de literatura pode contribuir para a formação


humana, recorremos à estética marxista, portanto, apoiamo-nos na concepção filosófica
de realismo crítico de Lukács para discorrermos sobre as principais características da
literatura clássica e para realizarmos demais análises relacionadas ao tema. Importante
esclarecermos que a nossa concepção de literatura clássica equivale ao que, para o autor
marxista (2010), trata-se das grandes obras-primas da literatura mundial, isto é, da
literatura que se pronuncia realista.
Para Lukács (apud FREDERICO, 2005), a grande arte realista é aquela que
sobrevive nas malhas da história e que possui elevado patamar estético. A arte aplicada
ao realismo, de acordo com Lukács (2011), não diz respeito a um estilo artístico, mas
sim à reprodução artística da realidade, à fidelidade ao real. “O realismo é, então,
entendido como um método para figurar a realidade, uma atitude do escritor presente
em toda a história, dos gregos aos dias de hoje, e não uma escola literária”.
(FREDERICO, 2015, P. 108).
Com base na concepção lukacsiana, podemos dizer que a literatura clássica é
aquela que habilita os homens a perceberem o mundo como ele efetivamente é ao
projetar uma realização da realidade como totalidade, isto é, ao desvelar as antinomias
do real. A literatura clássica busca compreender do modo mais fiel possível a realidade
em sua totalidade dinâmica e contraditória e, por isso, objetiva realizar as mediações
entre o destino de seus personagens singulares e os grandes conflitos sociais nos quais
eles estão inseridos.
A obra literária clássica trata-se de uma arte que move a subjetividade individual
rumo às formas mais ricas de subjetividade já desenvolvidas pelo gênero humano, ou
199

seja, apresenta ao sujeito receptor situações nas quais decisivas experiências humanas
despontam intensificadas e configuradas de modo que consigam impelir o leitor a
compreender-se na totalidade do mundo, subjugar seu modo habitual de contemplar o
mundo, impor-lhe - por meio do efeito catártico - uma nova concepção de mundo que
lhe fortaleça a consciência de si e a sua responsabilidade em relação aos problemas da
esfera pública.
Lukács (1966) encara a catarse como um momento durante o qual o sujeito se vê
perante a necessidade de questionar sua visão da vida e de si mesmo e tal efeito se dá
pela obra de arte porque esta, pela sua universalidade, aproxima o homem do gênero
humano. A catarse, assim, é analisada como um processo de desenvolvimento do
indivíduo em direção a uma relação cada vez mais consciente com o gênero humano.
Dessa forma, podemos dizer que a literatura clássica é capaz de suscitar o efeito
catártico porque pode despertar nos sujeitos a consciência sensível de que a vida
individual e a vida do gênero são interdependentes, porque se dirige à condição do ser
humano, porque realiza uma crítica à vida e, portanto, porque é capaz de convocar o
leitor a descobrir os laços que unem sua vida à do gênero humano.
A literatura, forma de expressão artística, pode exercer um papel desfetichizador
na formação humana, portanto, pode contribuir de modo significativo para a construção
de uma pedagogia marxista que vise à humanização dos indivíduos. Defendemos,
portanto, que, no ensino de Literatura, deva estar presente a literatura clássica, pois
acreditamos que tal literatura seja capaz de provocar o efeito catártico no aluno, isto é,
capaz de mover a sua subjetividade individual rumo às formas mais ricas de
subjetividade já desenvolvidas pelo gênero humano.

7 O ensino de Literatura: possível contribuição para a humanização do indivíduo

De acordo com Saviani (2000, p. 17), “[...] o trabalho educativo é o ato de


produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. Dessa forma, segundo
o autor, o objeto da educação se refere tanto à identificação dos elementos culturais que
devem ser assimilados pelos homens para que se humanizem quanto à descoberta das
formas mais adequadas para atingir esse objetivo.
Saviani (2008b) também discorre sobre a importância da noção de clássico para
a educação escolar e atesta que este, na escola, é a transmissão-assimilação do saber
200

sistematizado que precisa ser dosado e sequenciado de uma forma que o educando passe
gradativamente do seu não-domínio para o seu domínio.
A pedagogia histórico-crítica tem, entre outros objetivos, o propósito de lutar
pela valorização da transmissão do saber objetivo - as formas mais desenvolvidas e ricas
do conhecimento até aqui produzido pela humanidade - pela escola, pelo fortalecimento
da função da escola de proporcionar ao educando o acesso à verdade.
Apoiar-nos-emos, assim, na pedagogia histórico-crítica para pensarmos em um
ensino de literatura capaz de transmitir aos alunos o conhecimento artístico-literário em
suas formas mais desenvolvidas; para refletirmos sobre um ensino que proporcione ao
aluno momentos catárticos e elementos culturais necessários à sua formação como ser
humano.
Conforme afirmam Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (2010), um dos
aspectos mais importantes do estudo da literatura é a análise de como os escritores
empregam a língua para sua criação artística; e, para efetivar tal estudo, podemos
focalizar as escolhas específicas (lexicais ou sintáticas, por exemplo) que caracterizam o
texto de um determinado autor ou de uma dada estética. Esse olhar evidenciará
relevantes aspectos do texto literário, mas propomos ainda ir além desse processo
analítico, ou seja, uma vez identificados os usos particulares da língua que definem um
movimento estético determinado (ou a obra de um autor específico), indagar que relação
os fatores extralinguísticos presentes naquele momento têm com tais escolhas.
Levantar informações sobre o público a que se destinam as obras produzidas em
um determinado momento histórico e reconhecer as características do contexto no qual
estavam inseridos os escritores faz com que sejam destacadas as forças que determinam
a eleição de algumas características estéticas que explicam determinados usos da
linguagem, que revelam as intenções dos diferentes projetos literários. Reconhecer
como a literatura descortina o passado e como nos permite identificar a visão de mundo
e o sistema de valores em distintos momentos dá significado ao ensino de literatura.
Devido ao fato de observarmos, frequentemente, no ensino de literatura, uma
grande preocupação em enfatizar o trabalho com a linguagem ou a discussão dos
valores estéticos dos textos literários, sem que o aluno seja convidado a reconhecer ou
analisar de que modo tais textos nos falam sobre seres humanos ou nos revelam a
humanidade de seus autores, apontamos a necessidade de enfatizar a importância do
ensino da história da literatura; pois é por meio desse conhecimento que o aluno
201

compreenderá determinados textos, autores e épocas e apreenderá o modo de situar-se


historicamente.
A perspectiva que defendemos para um ensino de literatura humanizador não
procura supervalorizar nem os elementos internos nem os elementos externos da obra
literária. Busca apontar a relação existente entre eles a fim de que a historicidade do
texto literário seja preservada sem perder sua especificidade estética, para que o aluno
tenha, nas aulas de literatura, a noção de conjunto sem perder a de particularidade,
pense o nacional sem deixar de notar suas relações com o universal.
Dessa forma, discordamos de uma metodologia que secundarize o ensino de
história de literatura e, consequentemente, elimine o ensino de literatura portuguesa que
constitui uma das bases para que se possa compreender a literatura brasileira. Há que se
fazer uso desse conhecimento histórico de modo que ele elucide ao aluno as pegadas
humanas dos antepassados numa obra literária e, assim, este possa entrever outros
homens inseridos em outras civilizações, reconhecer-se humano e compreender que faz
parte da história da humanidade.
Compreendida a importância da relação entre a obra literária e a história da
literatura, o professor não pode perder de vista o poder humanizador de uma obra
literária, a relevância do ensino da recepção estético-literária; ou seja, não pode, durante
o ensino de literatura, deixar prevalecer o conhecimento histórico em detrimento da
riqueza da vivência estética do aluno.
Segundo Duarte (2012), a recepção estético-literária é a atividade mental de
apropriação, pelos indivíduos, de obras produzidas no âmbito da arte e da literatura.
Com base nos estudos de Duarte, podemos dizer que o professor deve, no ensino de
literatura, exercer uma interferência deliberada e sistematicamente direcionada a fim de
fazer com que a apropriação desses bens culturais exerça uma influência positiva sobre
o desenvolvimento do indivíduo. Para Duarte, o fato de a apropriação reproduzir a
essência da atividade sintetizada no objeto cultural aponta a direção do ensino da
recepção estético-literária, o qual deve ter como objetivo mover o aluno em um
processo que reviva toda a riqueza da atividade presente na obra literária.
É importante enfatizarmos que, conforme atesta Duarte (2012), o ensino não
substitui a leitura de um romance, conto, peça de teatro ou poema; mas prepara a
recepção da obra literária, orienta essa recepção, oferece-lhe todo o suporte necessário e
dialoga criticamente consigo. Para o autor, o propósito do ensino não deve ser o de
202

simplificar o percurso da recepção, mas sim o de formar no aluno as atitudes e ações


que colocam o processo da recepção à altura da riqueza contida na obra literária.
Dessa forma, defendemos um ensino de literatura que, com a mediação de
determinados conhecimentos transmitidos pelo docente, proporcione o encontro do
aluno com grandes personagens que experimentam um crescimento pessoal e
psicológico. Tais personagens, à medida que elevam elementos pessoais e acidentais do
próprio destino a certo nível de universalidade, vivem perante os leitores os problemas
de seu tempo como individualmente seus e, assim, dotados de virtudes, possibilitam ao
educando absorver tais virtudes.
O professor, ao sistematizar o ensino da história da Literatura Portuguesa e
Brasileira, ao estabelecer com os alunos uma relação entre as características de certa
arte literária e seu contexto histórico, estará direcionando, de modo instrutivo, a
apropriação de uma obra literária pelo aluno para que o mundo refigurado por esse bem
cultural sirva de orientação para sua vivência estética receptiva e imponha-lhe, pelo
efeito catártico, uma nova concepção de mundo, a qual lhe fortalecerá a consciência de
si e a sua responsabilidade em relação aos problemas da esfera pública.
É importante esclarecermos que, com base nos pressupostos da pedagogia
histórico-crítica, defendemos, para o ensino de literatura, a seleção de obras literárias
clássicas, ou seja, aquelas capazes de provocar o efeito catártico no aluno, capazes de
mover a sua subjetividade individual rumo às formas mais ricas de subjetividade já
desenvolvidas pelo gênero humano.
Perante o atual contexto educacional - sintonizado com o processo de
mundialização do capitalismo, faz-se necessário lutar, entre tantas outras formas de
emancipação humana, por um ensino de Literatura que proporciona ao educando a
catarse, que dê vazão à verdade, possibilite ao leitor o reconhecimento de seu
pertencimento ao gênero humano e vise à sua humanização e combata a classe
dominante sintonizada com o universo ideológico pós-moderno, originário da referida
decadência ideológica.

Consideracões finais

Nossa reflexão aqui desenvolvida considerou como ponto de partida a tese


segundo a qual há um processo de decadência ideológica na sociedade capitalista que se
estende desde a crise espiritual da burguesia e a sua degeneração como classe
203

revolucionária após 1848 até hoje, momento de ápice da difusão do pensamento pós-
moderno, a expressão do plano teórico do processo de mundialização do capitalismo.
Analisamos a influêcnia da decadência ideológica e, portanto, do ideário pós-
moderno no pensamento pedagógico e educacional e concluímos que a emergência e a
difusão da pedagogia escolanovista e todas as suas variantes, ao longo do século XX,
são reflexos, no campo educacional, da decadência ideológica do pensamento burguês.
Argumentamos que as atuais concepções de ensino de Literatura são pautadas nos
princípios do pensamento pós-moderno, cuja origem, como já dissemos, deve ser
averiguada nas primeiras manifestações do processo de decadência ideológica da
burguesia, no século XVIII.
Dessa forma, concluímos que o atual ensino de Língua Portuguesa, pautado pelo
lema “Aprender a aprender”, reflete os instrumentos ideológicos da classe dominante
cujo propósito é esvaziar a educação escolar destinada à maioria da população e está
sintonizado com o universo ideológico pós-moderno, originário da referida decadência
ideológica.

Referências

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A ABORDAGEM HISTÓRICA E A QUESTÃO RELIGIOSA


NO ENSINO DE EVOLUÇÃO BIOLÓGICA:
CONSIDERAÇÕES À LUZ DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Lucas Monteiro Pereira (UNESP) 1


Luciana Maria Lunardi Campos (UNESP) 2

Resumo: Este estudo assume a pedagogia histórico-crítica para fundamentar o ensino de
biologia em um de seus conhecimentos clássicos, a teoria da evolução das espécies. Nosso
objetivo foi analisar, à luz do referencial assumido, algumas questões relativas a duas
abordagens indicadas para este conteúdo: a inserção de elementos de história e filosofia da
ciência no ensino e o posicionamento do professor sobre a relação entre ciência e religião.
Apontamos, primeiramente, alguns princípios para o emprego da abordagem histórico-filosófica
dos conteúdos com base na pedagogia histórico-crítica. Em seguida, defendemos um
compromisso ontológico e crítico do ensino de biologia que privilegie a apropriação do
conhecimento científico sobre o processo evolutivo, contribuindo para a humanização dos
indivíduos.

Palavras-chave: Ensino de biologia; Ensino de evolução biológica; Ciência e religião; História


e filosofia da ciência.

Introdução

Constata-se, primeiramente, que a pesquisa em ensino de Ciências e de Biologia


encontra-se distanciada das perspectivas críticas de educação em geral (CAMPOS et al,
2013) e da pedagogia histórico-crítica especificamente (ZILLI et al, 2015), o que deve
ser problematizado no sentido de se discutir e elaborar bases para que este ensino se
referencie em teorias que visem a transformação das relações sociais capitalistas.
Assim, esse estudo assume a perspectiva da pedagogia histórico-crítica
(SAVIANI, 2013) para fundamentar o ensino de biologia, concebido como parte da
formação humana que se realiza na educação escolar. Essa concepção se baseia na ideia
de que a biologia, como ciência, é uma objetivação genérica para-si, sendo sua


1
Lucas Monteiro Pereira, Mestrando em Educação para Ciência, Universidade Estadual Paulista, campus
Bauru, São Paulo, Brasil. E-mail: lucasmontp@gmail.com
2
Luciana Maria Lunardi Campos, Professora Assistente Doutora, Departamento de Educação,
Universidade Estadual Paulista, campus Botucatu, São Paulo, Brasil. E-mail: camposml@ibb.unesp.br


206

apropriação necessária ao processo de humanização dos indivíduos, ao estabelecer uma


relação consciente com estes e o patrimônio do gênero humano. (DUARTE, 2001).
Portanto, a partir de Duarte et al (2012, 2015), compreende-se que a biologia
deve ser ensinada com o potencial de desfetichizar o cotidiano e ir além da aparência
das coisas. As objetivações genéricas, por serem produções históricas da humanidade,
estão necessariamente marcadas pelas contradições da luta de classes, que é
acompanhada por uma luta ideológica entre concepções de mundo conflitantes. Desse
modo, a definição dos conteúdos é um posicionamento nesse embate ao se privilegiar
conhecimentos atrelados a determinadas concepções de mundo. Essas caracterizações se
tornam mais claras quando se destaca que uma das tarefas da pedagogia histórico-crítica
para a educação escolar é a

[...] identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições
de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações,
bem como suas tendências atuais de transformação. (SAVIANI, 2013,
p. 8)

Essas formas mais desenvolvidas do saber objetivo se definem como


conhecimentos clássicos, aqueles que se firmaram como fundamentais e essenciais. No
que se refere ao ensino de biologia, reconhecemos como um de seus conhecimentos
clássicos a teoria da evolução das espécies, em especial a darwinista3. Isso se justifica
por sua formulação ter aberto maiores possibilidades de um projeto de unificação das
ciências da vida, o que só pode ocorrer ao concebermos os seres vivos em relações de
descendência comum e de parentesco. (MAYR, 1988; MEYER; EL-HANI, 2005).
Além disso, o princípio de que a evolução ocorre por meio da seleção natural – a
essência do pensamento darwinista – encerra a ideia de uma força natural que promove
diferenciação das espécies em sua descendência e rejeita uma teleologia no porvir dos
seres vivos. O pensamento evolutivo constitui-se, enfim, como um eixo organizador e
unificador das ciências biológicas. (LEVINS; LEWONTIN, 2009; MEYER; EL-HANI,
2005).


3
Com esse recorte, não pretendemos ignorar que a biologia evolutiva se desenvolveu para além da teoria
da seleção natural, em especial com as formulações do neodarwinismo, apenas apontamos a contribuição
fundamental da teoria darwinista para estruturação do pensamento evolutivo e, portanto, das ciências
biológicas. Carvalho, Nunes-Neto e El-Hani (2011, p. 81-86) detalham alguns dos conceitos que
permitiram essa contribuição, como o pensamento populacional e variacional, a ancestralidade comum e a
própria seleção natural.


207

A pesquisa educacional já identificou que no ensino de evolução biológica, de


modo geral, podem ser encontradas concepções alternativas sobre esse conteúdo em
materiais didáticos, em alunos, em professores em formação inicial e em serviço, e
dificuldades quanto à natureza controversa do tema e sua relação com as crenças
religiosas dos indivíduos. (AMORIM; LEYSER, 2009; TIDON; LEWONTIN, 2004).
Com o fim de superar estas concepções e dificuldades, duas abordagens são
comumente indicadas nas pesquisas: a inserção de elementos de história e filosofia da
biologia no ensino (tanto como conteúdo em si quanto como estratégia didática) e o
posicionamento do professor na discussão da relação entre ciência e religião.
(CASTRO; LEYSER, 2007; LUCAS; BATISTA, 2011).
Desse modo, esse estudo possui o objetivo de analisar algumas questões
relativas a essas abordagens à luz do referencial da pedagogia histórico-crítica,
indicando suas aproximações e distanciamentos.

1 História e filosofia da ciência e o ensino de evolução biológica

A defesa de uma abordagem histórica e filosófica dos conteúdos científicos


predomina como um consenso entre pesquisadores do Ensino de Ciências, alegando-se
que ela pode demonstrar a construção histórica, social e coletiva dos conceitos e teorias,
as relações entre ciência, tecnologia e sociedade e a subjetividade e a complexidade das
práticas científicas. Costuma-se defender, também, que é uma abordagem que permite a
aprendizagem sobre aspectos próprios da natureza da atividade científica, de modo a
superar concepções ingênuas apresentadas por estudantes e pelos próprios professores.
(MARTINS, 2006; MOURA, 2014).
Apontamos, porém, que, de modo geral, esta abordagem dos conteúdos não
converge necessariamente para uma concepção histórico-crítica de educação, visto o
que já indicamos a respeito da pesquisa em ensino de Ciências e Biologia. A título de
exemplo, o trabalho de Lucas e Batista (2011), embora com um significativo aporte
histórico e epistemológico para a construção de uma proposta didática de ensino de
evolução biológica, se ancora também em perspectivas interacionistas, no caso, a de
Zabala e a da aprendizagem significativa. Aqui, apontaremos algumas especificidades
da abordagem histórico-filosófica, com base na pedagogia histórico-crítica.
Primeiramente, ela se apoia em uma concepção externalista de ciência, que
entende os elos entre as condições materiais e superestruturais da sociedade e o


208

direcionamento das práticas científicas. Não se deve valer, no entanto, de quaisquer


aspectos sociais presentes na construção das ciências, mas sim da compreensão destes
aspectos como constitutivos da sociabilidade capitalista. Compreende-se, desse modo, a
ciência não só como fator de desenvolvimento das forças produtivas, mas como uma
mercadoria, um bem intelectual que foi mercantilizado no decurso do neoliberalismo.
(OLIVEIRA, 2005). Por outro lado, a abordagem histórico-filosófica, no ensino de
evolução biológica, concebe a ciência como um saber totalizante, capaz de levar ao
conhecimento das relações fundamentais que estruturam o universo. (SANTOS, 2005;
OLIVEIRA, 2005).
Duarte et al (2012) argumentam que mostrar que o conhecimento é perpassado
pelas contradições da luta de classes não significa que ele não se desenvolve como uma
objetivação genérica. A ciência busca refletir a realidade com o máximo de
objetividade, eliminando de si o subjetivismo e o antropomorfismo para interpretar os
fenômenos naturais; ressaltamos, no entanto, que isso não implica em um
posicionamento neutro em relação às questões sociais, mas permite, por exemplo,
entender que a natureza possui uma dinâmica de funcionamento imanente e não
teleológica. Como afirma Saviani (2013, p. 8), a perspectiva histórico-crítica pode
desmontar o raciocínio positivista que vincula objetividade com neutralidade:

A neutralidade é impossível porque não existe conhecimento


desinteressado. Não obstante [...], a objetividade é possível porque não
é todo interesse que impede o conhecimento objetivo. Há interesses
que não só impedem como exigem a objetividade. Mas como
diferenciá-los? [...]. Para se saber quais são os interesses que impedem
e quais aqueles que exigem a objetividade, não há outra maneira senão
abordar o problema em termos históricos.

Não existe, portanto, nenhuma dicotomia entre situar o conhecimento


historicamente, inclusive como parte das determinações do modo de produção, e
conceber a ciência como atividade objetiva, pois não há porque promover uma ruptura
entre a essência da atividade científica e sua historicidade intrínseca. A esse respeito,
Duarte (2015, p. 18) elucida que:

Tanto a definição do que sejam os conteúdos clássicos a serem


ensinados na educação escolar como das formas pelas quais eles serão
trabalhados, se não tomar como referência a concepção de mundo
materialista, histórica e dialética, acaba por se enredar na antinomia
entre relativismo e dogmatismo. No caso do relativismo os clássicos
são negados inteiramente, como mera expressão de concepções


209

etnocêntricas e colonialistas, ou são considerados como significativos


apenas para uma cultura em particular, perdendo total ou parcialmente
seu valor em outras referências culturais. No caso do dogmatismo, os
clássicos são definidos a partir de hierarquias de valor
idealisticamente tomadas como existentes em si mesmas,
independentemente das circunstâncias históricas. A pedagogia
histórico-crítica situa-se na perspectiva de superação tanto do
relativismo quanto do dogmatismo e toma a luta histórica pela
emancipação do gênero humano como referência para postular que a
escola trabalhe com conteúdos clássicos no campo científico, no
artístico e no filosófico.

Também retomamos aqui a consideração de Saviani (2012) de que o movimento


dialético de pensamento que vai da síncrese à síntese pela mediação da análise constitui-
se uma orientação segura para a transmissão-apropriação de conhecimentos. Nessa
perspectiva, Duarte (2000, p. 106) argumenta que, na análise, o pensamento parte

[...] da lógica da fase mais desenvolvida do objeto e vai à história para


compreender a gênese desse objeto e compreender as fases anteriores
do processo histórico. Essa análise histórica, por sua vez, aprofunda a
compreensão da fase mais desenvolvida, tornando ainda mais rica a
reprodução do concreto pelo pensamento.

Para a abordagem histórico-crítica, portanto, a história dos conceitos científicos


deve ser ensinada de modo articulado à própria lógica interna destes conceitos,
depurando “na história aquilo que é fundamental para reproduzir a essência da lógica
das relações do conhecimento na sua forma atual”. (GIARDINETTO, 2012, p. 38).
Com base nessa dialética entre o lógico e o histórico, indicamos, a princípio, que
a apropriação do conhecimento das teorias evolutivas deve se balizar pela distinção
essencial entre a formulação darwinista e as interpretações anteriores do processo
evolutivo, isto é, pela “oposição entre pensamento populacional e variacional, na
primeira, e o pensamento transformacional, nestas últimas”. Compreender esta diferença
permitirá melhor apropriação do clássico em si, ressaltando a objetividade do princípio
da seleção natural e denotando a construção histórica das teorias evolutivas.
(CARVALHO; NUNES-NETO; EL-HANI, 2011, p. 82).
Em uma primeira aproximação de recontar a construção histórica da teoria
evolutiva a partir do materialismo dialético, Silva (2001) destaca que algumas das
dicotomias que se formaram nesta construção (como entre darwinismo e mendelismo e
a questão da existência de variação genética em populações naturais) são contradições
relativas às disputas entre diferentes visões e ideais de sociedade. Além disso, ele sugere
que se entendam as mudanças de paradigmas da teoria evolutiva como um processo


210

dialético de salto qualitativo com base em mudanças quantitativas de interpretação da


realidade natural. Como ele coloca:

Os problemas da reconstrução lógica e do avanço da ciência também


podem ser melhor compreendidos sob a interpretação materialista
dialética da história, que revela que os critérios para avaliar o
progresso só podem ser historicamente reconstruídos. Uma vez que a
ontologia e a epistemologia são unidas na práxis desta dialética
materialista idiossincrática, essa práxis provavelmente também
poderia constituir uma melhor metodologia para compreender e
transformar a atividade científica. (SILVA, 2001, p. 682, tradução
nossa).

Ainda há uma lacuna no que se refere a trabalhos com uma visão externalista de
ciência, porém, esta é outra questão ainda a ser analisada. O que podemos sintetizar
preliminarmente é que esta abordagem histórico-filosófica leva em conta a relação da
lógica das teorias evolutivas com o desenvolvimento histórico do gênero humano.
Ainda que tenha dificuldades para se consubstanciar em uma proposta didática por
conta da lacuna supracitada, esta abordagem permitirá entender a biologia evolutiva
como objetivação capaz de compreender concreta e racionalmente a natureza, os seres
vivos e suas mudanças ao longo do tempo. Em última instância, esta abordagem
representa um posicionamento mais claro no embate, bastante presente em relação a
este conteúdo, entre as concepções científica e religiosa sobre a realidade objetiva.
SANTOS, 2005).

2 Ciência, religião e o compromisso do ensino de evolução biológica

O ensino de evolução biológica lida necessariamente com a questão religiosa


derivada das crenças – e suas visões próprias sobre a natureza, a origem e a evolução
dos seres vivos – que tanto os alunos quanto os professores de biologia podem carregar
para o espaço escolar.
Essa constatação leva à reflexão sobre dilemas éticos quanto à consideração
dessas visões trazidas pelos alunos e que se conflitam com a aceitação ou ao menos a
compreensão de determinados conceitos da teoria evolutiva (AMORIM; LEYSER,
2009), conflito este que se dá de modo que quanto maior a filiação religiosa, menor a
atitude de aceitação da teoria evolutiva. (OLIVEIRA; BIZZO, 2011).
Também deve ser levado em conta a relação que professores de fé religiosa
cristã estabelecem com o ensino de evolução biológica. Sobre essa questão, Teixeira e


211

Andrade (2014, p. 309) identificaram que esses professores “relatam uma série de
arranjos nos quais evitam ou contornam a suposta contradição entre criacionismo e
evolução”. Quanto ao respeito às crenças manifestadas em sala de aula, eles se dividem:
enquanto um grupo ensina exclusivamente a teoria evolutiva e não expõe suas crenças
pessoais, o outro aborda “o criacionismo com a intenção de oferecer diferentes pontos
de vista sobre o surgimento da vida e do universo”. OLIVEIRA; BIZZO, 2011).
Então, essa dicotomia pode assim ser expressa: ensinar somente a teoria
evolutiva ignorando outras alternativas de explicações do fenômeno ou ensinar as duas
ideias e deixar que os alunos escolham a que julgarem mais adequada. Para resolvê-la,
Castro e Leyser (2007) propõe a utilização do princípio ético-metodológico dos
Nonoverlapping Magisteria ou Magistérios Não-Interferentes (NOMA ou MNI),
cunhado por Stephen Jay Gould (1997), o qual será objeto de análise crítica a seguir.
Quanto à primeira possibilidade da dicotomia, os autores respondem
negativamente, afirmando que ignorar não só é pouco ético como dificulta a
aprendizagem de conceitos conflitantes com as concepções prévias dos alunos.
Consideramos, igualmente, esta alternativa impraticável, visto que o trabalho educativo
deve atuar justamente na superação dos conceitos cotidianos próprios da prática social
sincrética dos alunos que, no caso, estão associadas a crenças religiosas. Quanto à
segunda possibilidade, Castro e Leyser (2007, p. 10) fazem ressalvas. Eles não
acreditam que o professor de biologia deve ensinar como as religiões interpretam a
natureza, mas advogam que

[...] tanto a religião quanto a ciência possuem seus magistérios; ou


seja, possuem sua autoridade de ensino. E que se deve respeitar estes
magistérios e, sempre que possível, evitar que ambos se sobreponham
em questões que não lhes dizem respeito concomitantemente. Tanto
ciência quanto religião, seja ela qual for, são instituições socialmente
estabelecidas que, entre outras atividades, desenvolvem o ensino. E
ambas obtiveram a autoridade para ensinar (seus magistérios), embora
de formas um tanto diferentes, de maneira legítima e socialmente
aceita.

Na realidade, o princípio de Gould (1997) se inspira na encíclica Humani


Generis do Papa Pio XII e nas considerações feitas pelo Papa João Paulo, que afirmam
não haver dissonância entre aceitação de fatos estabelecidos cientificamente e a fé
cristã. Seu fundamento, então, é o de que os assuntos aos quais ciência e religião se
dedicam são basicamente distintos, o que faz com que não se conflitem de fato.
Enquanto a ciência cobriria o universo empírico, seus fatos e teorias, a religião se


212

estenderia a questões de significado e valor moral, de modo que o princípio valeria para
ambas as esferas:

Se a religião não pode mais ditar a natureza das conclusões factuais


corretamente sob o magistério da ciência, então os cientistas não
podem reivindicar maior discernimento sobre a verdade moral a partir
de qualquer conhecimento superior da constituição empírica do
mundo. (GOULD, 1997, s/p, tradução nossa)

É notável que, em um momento posterior, o autor afirma que sua posição moral
se baseia no “banho frio” dado pela ideia de que a natureza pode ser “cruel” e
“indiferente” e indica que essa posição é “[...] libertadora, não deprimente, porque nós
então nos tornamos livres para conduzir o discurso moral em nossos próprios termos”,
ou seja, para ele, uma posição moral tomada a partir das concepções científicas de
natureza pode ser libertadora, mas é aceitável que a religião dite questões morais para
quem se assusta por tais concepções. Nesse aspecto, mesmo que defenda o
conhecimento científico, o princípio NOMA pode conter certa inclinação ao relativismo
moral. (GOULD, 1997, s/p).
Nesse sentido, Dawkins (2007) critica, primeiramente, o pressuposto de que
existam conhecimentos que a religião e os teólogos podem realmente fornecer sobre um
assunto que a ciência não tenha possíveis respostas melhores. Segundo ele, isso não
significa que não existam perguntas que estejam fora do alcance da ciência ou que ela
tenha o direito de nos dar conselhos de valores morais, mas sim de que as contribuições
da religião a esses assuntos (a ela relegados por Gould) sejam ainda menores. Em
seguida, Dawkins (2007, p. 70-73) argumenta que a religião, por definição, se interpõe
em assuntos de natureza empírica e factual. A própria hipótese que Deus existe

[...] sugere que a realidade em que vivemos também contém um


agente sobrenatural que projetou o universo e — pelo menos em
muitas versões da hipótese — o mantém, e até intervém nele com
milagres, que são violações temporárias de suas leis grandiosas
normalmente imutáveis. [...] A Igreja Católica Apostólica Romana,
por um lado, às vezes parece aspirar ao MNI, mas por outro lado
determina que a realização de milagres é uma exigência essencial para
a elevação à santidade [...]. Se confrontado com histórias de milagres,
Gould provavelmente replicaria na linha da explicação que se segue.
O grande ponto do MNI é que ele é uma barganha de duas vias. No
momento em que a religião pisa no terreno da ciência e começa a
bagunçar o mundo real com milagres, ela deixa de ser religião no
sentido que Gould defende [...]. Perceba, porém, que a religião sem
milagres defendida por Gould não seria reconhecida pela maioria dos


213

teístas praticantes nos bancos de igreja ou nos tapetes de oração. Seria,


na verdade, uma grande decepção para eles.

Portanto, mesmo que não haja como ignorar as concepções prévias associadas a
crenças religiosas, não há como conciliar estas com o conhecimento científico a ser
transmitido em uma aula de biologia, porque ciência e religião possuem distintas
concepções sobre a natureza, a realidade e o mundo. Não é à toa que a história das
teorias evolutivas mostre uma série de conflitos com as instituições religiosas, o que
sugere que simplesmente uma outra conceituação de religião – tal como Gould (1997)
faz – não resolva esses conflitos.
Reconhecemos que Castro e Leyser (2007) defendem, ao fim do texto, que o
professor deve evidenciar que a ciência não somente possui uma explicação mais
poderosa sobre os fenômenos naturais, como dispõe da única forma possível de
explicação. Porém, apesar dessa conclusão com um posicionamento afirmativo quanto
ao conhecimento científico, indicamos que uma pedagogia de base marxista deve ir
além, deve responder negativamente às duas possibilidades da dicotomia com
argumentos fundamentalmente diferentes. Defendemos que não se justifica a adoção ou
aceitação do criacionismo (ou quaisquer outras interpretações da natureza derivadas ou
associadas às religiões) como um conhecimento escolar no ensino de biologia ou,
especificamente, no ensino de evolução biológica, com base em argumentos extraídos
do referencial assumido.
Essa defesa parte da tese de Duarte (2001, p. 2) de que o trabalho educativo deve
mediar a relação entre cotidiano e não-cotidiano na formação do indivíduo de modo a
promover necessidades que “ultrapassam a esfera da vida cotidiana (a esfera das
objetivações genéricas em-si) e situam-se nas esferas não-cotidianas da prática social
(as esferas das objetivações genéricas para-si)”, como a arte, a filosofia e a ciência. Para
o autor, entende-se que a apropriação de determinados conhecimentos pode estabelecer
uma relação consciente do indivíduo com as objetivações genéricas para-si.
Ressalta-se aqui que são determinados conhecimentos, porque não são todos que
podem estabelecer essa relação de modo que o aluno supere sua esfera da vida
cotidiana. Este é um atributo dos conhecimentos clássicos, por estes serem as formas
mais desenvolvidas do saber objetivo produzido historicamente, ou seja, pelo gênero
humano. (DUARTE, 2001; SAVIANI, 2013).
Sendo a religião um aspecto particular da esfera da vida cotidiana do indivíduo,
a apropriação de sua visão da natureza não estabelece uma relação consciente do aluno


214

com as objetivações genéricas para-si, na verdade pelo contrário, ensinar as duas


concepções de modo a deixar que ele escolha a que julgar mais adequada pode mantê-lo
na relação alienada com uma objetivação em-si. Segundo Duarte (2001, p. 58),

[...] cabe ao educador assumir sim uma posição consciente quanto aos
rumos da prática social do educando [...]. Isso não significa pretender
anular o cotidiano do aluno, o que seria, por si só, impossível. O que
se pretende é que o aluno possa se relacionar conscientemente com
esse cotidiano, mediado pela apropriação dos conhecimentos
científicos.

Prosseguindo, como delimitado na fundamentação deste estudo, a biologia deve


ser ensinada como um conhecimento desfetichizador, isto é, um conhecimento que, se
apropriado, desmascara a falsidade das aparências e recupera o papel dos seres humanos
na história. Por essa linha, entende-se que a religião é uma esfera da prática social que,
ao inverso do que ocorre com a ciência, é subjetivista e tende a antropomorfizar a
relação do humano com a natureza, o que nos permite distinguir as contribuições de sua
apropriação para a formação dos indivíduos das contribuições da apropriação do
conhecimento científico. (DUARTE et al, 2012).
Sobre o conflito específico entre criacionismo e evolução, Meyer e El-Hani
(2013) argumentam que, além de este não se constituir verdadeiramente em um debate,
os ataques por parte da perspectiva criacionista à teoria evolutiva possuem implicações
negativas para toda a ciência, pois recaem no próprio modo da ciência de entender
fenômenos e formular previsões e modelos teóricos. Isto quer dizer que assumir as
crenças religiosas como parte dos conteúdos do ensino de biologia é prejudicial para a
própria visão de ciência que se pretende transmitir para os alunos, relevando-se a
importância fundamental da apropriação de seus conteúdos para a formação de uma
concepção materialista, histórica e dialética de mundo.
Por fim, o posicionamento de uma pedagogia marxista nessa dicotomia é
também um posicionamento ético no que se refere à formação humana situada na
educação escolar. Segundo Bueno (2011), a ética marxista é uma afirmação do caráter
histórico das relações sociais e de suas possibilidades de transformação, isto é, do seu
dever-ser que se projeta a partir do ser como tal.
A autora afirma ainda que a organização de uma luta pela emancipação humana
só pode se constituir por indivíduos conscientes de sua situação de alienação e
exploração; por sua vez, esta consciência, enquanto atributo social e histórico do


215

humano, só se forma a partir da apropriação dos elementos culturais produzidos pela


humanidade. Essa ideia converge para o conceito de trabalho educativo postulado por
Saviani (2013, p. 13), que fundamenta uma pedagogia que objetive justamente a
formação do vir-a-ser de cada indivíduo do gênero humano, ou como ele coloca, “a
constituição de algo como uma segunda natureza”.
Consideramos que ensinar a teoria da evolução das espécies de forma a denotar
sua distinção em relação às concepções derivadas das crenças religiosas se constitui em
um posicionamento ético sobre o vir-a-ser de cada aluno, contribuindo para a superação
de sua condição cotidiana alienada ao se apropriar de conceitos científicos sobre a
realidade objetiva. Tomar essa posição explícita quanto ao que se deve considerar como
conhecimento científico no ensino de biologia implica em, ao contrário da indicação de
Castro e Leyser (2007), o professor não reconhecer na religião nenhuma autoridade de
ensino e assumir um compromisso ontológico crítico na formação de seus alunos.
Sendo a educação “[...] uma atividade mediadora no seio da prática social
global” (SAVIANI, 2012, p. 74), entendemos que o ensino de biologia se relaciona com
a prática social por uma dimensão mediata, influindo na relação entre a consciência
subjetiva do aluno e o conhecimento científico sobre a natureza. (PEREIRA; CAMPOS,
2016).
Dado o exposto, podemos especificar que essa mediação, no caso do ensino de
evolução biológica, se daria ao permitir a compreensão do poder de explicação racional
e imanente da natureza próprio da teoria evolutiva, superando-se concepções cotidianas
sobre o processo evolutivo, como a de que este consista em progresso ou seja algo
fundado ou dirigido por uma entidade metafísica. Este posicionamento valorativo por
parte do aluno requer tomada de consciência, o que, aqui, equivale à catarse, um
momento caracterizado pelo salto qualitativo da consciência do indivíduo em sua
relação com as objetivações genéricas .(DUARTE, 2001)
Não queremos, com estes argumentos, simplificar as condições concretas
em que ocorre o trabalho educativo. Temos noção de que as crenças religiosas podem
ser verdadeiros obstáculos para a apropriação dos conceitos de evolução, afinal, como
coloca Duarte (2015), algumas ideias podem ser incorporadas à consciência individual
sem grandes impactos no núcleo de sua concepção de mundo. Todavia, acreditamos que
a apropriação de conceitos da teoria evolutiva pode diminuir consistente e
gradativamente o papel das explicações religiosas na concepção de mundo de cada
indivíduo, até culminar no posicionamento valorativo acima indicado. Esse processo


216

não será simples nem espontâneo, porém requer a apropriação de conceitos científicos
para estabelecer uma relação consciente com o conhecimento biológico.

Considerações finais

Esse estudo teve intenção de analisar, à luz da pedagogia histórico-crítica, duas


abordagens indicadas ao ensino de evolução biológica, contribuindo para esclarecer
como esta teoria pedagógica pode fundamentar e influir em questões próprias da prática
pedagógica escolar, no caso, do ensino de biologia.
Trata-se de um estudo preliminar, que pode permitir o aprofundamento de outras
análises, tais como: o modo que as pesquisas da área concebem a ciência e seu
desenvolvimento histórico ao propor sua inserção no ensino, o processo de apropriação
de conceitos científicos da teoria evolutiva, a relação da apropriação destes conceitos
com as concepções cotidianas dos alunos, entre outras. Entendemos também que as
dificuldades encontradas no ensino de evolução biológica não se delimitam apenas a
questões relativas a essas duas abordagens, por isso outras análises devem se somar às
deste trabalho.
Julgamos que as considerações aqui realizadas podem subsidiar proposições e
princípios didáticos para o ensino deste conteúdo. Para tanto, se faz necessário uma
sistematização destes fundamentos em vista a articula-los a um método dialético de
ensino, tal como concebido por Saviani (2012). Ou seja, é preciso identificar os
conceitos clássicos deste conteúdo, sua base lógico-histórica e organiza-los,
dialeticamente, de modo a permitir sua apropriação por parte dos alunos.
Como importante elemento do ensino de biologia, também acreditamos que o
ensino de evolução biológica possui seu papel específico na formação da concepção de
mundo dos alunos, o que pôde ser preliminarmente evidenciado pela presente análise,
denotando, por exemplo, a concepção de ciência, de seu desenvolvimento histórico e de
sua relação com a prática social e a distinção entre os alcances do conhecimento
científico e da religião na formação dos indivíduos. Dessa forma, ainda que em uma
dimensão mediata, o ensino deste conteúdo pode contribuir para a transformação das
relações sociais capitalistas pela transformação dos sujeitos da prática social.


217

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

PARA UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA HISTÓRICO-CRÍTICA:


APONTAMENTOS SOBRE O PLANEJAMENTO DE ENSINO

Milena dos Santos Queiróz Candido – UFES


Ana Carolina Galvão Marsiglia – UFES

RESUMO: Trata-se de uma pesquisa em desenvolvimento que tem como objetivo estudar o
planejamento de ensino de 1980-2010. O mesmo sustenta-se na pedagogia histórico-crítica e em
seus fundamentos para justificar a importância desta prática no contexto da educação escolar
como atividade indispensável de uma docência que se compromete com uma educação contra a
sociedade capitalista e seus desdobramentos, e defenda uma prática humanizadora e
desalienante. Para isso, realizamos alguns apontamentos que a teoria apresenta neste sentido,
assim como um levantamento das pesquisas recentes em alguns portais de pesquisa em
educação, a fim de perceber em que medida a perspectiva e a temática do presente estudo tem
sido considerado relevante na educação brasileira contemporânea.

PALAVRAS-CHAVE: Planejamento de ensino; Pedagogia histórico-crítica; Educação escolar.

Introdução

Esse trabalho é um recorte de uma pesquisa em desenvolvimento que tem como


objeto o estudo do planejamento de ensino de 1980-2010, a partir da análise de manuais
didáticos publicados neste período. Nesse texto, pretendemos contribuir com este
campo de pesquisa, apresentando algumas fundamentações realizadas pela pedagogia
histórico-crítica que balizam o planejamento de ensino para contribuir com os
profissionais da educação, de modo a defender seu direito e dever de ensinar.
A problematização do tema se apresentou a partir da análise do contexto
educacional atual, caracterizada como uma época em que se questiona a necessidade e
função do professor e da escola, ao mesmo tempo em que essas instâncias são
convocadas pelo Estado e pela Sociedade Civil a não só permanecer no quadro social,
mas principalmente promover transformações significativas nesse contexto. Essa
dualidade faz com que o cenário educativo em toda a sua dimensão enfrente crises
constantes e preocupantes, principalmente devido a fatores integrantes da proposta
desociedade em que estamos inseridos, como a desigualdade social, a precarização do
mundo do trabalho que desaguam na desvalorização da escola e dos saberes


220

historicamente acumulados pela humanidade e a redução do valor humano ao capital.


(FRIGOTTO, 2014).
Assim, a escola é considerada, no discurso hegemônico, uma instituição que não
pode mais, em seu formato e função clássica, atender à demanda atual, e, por isso deve,
segundo essa ideologia, ceder a essas pressões e alterar sua razão de existir, qual seja,
prezar pelo ensino dos conhecimentos historicamente construídos pela humanidade.
Dessa forma, ela se coloca como um mecanismo que vai preparar o indivíduo para se
adaptar às exigências mercadológicas, revelando uma maior instabilidade da prática
docente na educação escolar, comprometendo a formação humana dos alunos e a luta
contra o modo de produção vigente. Se o ensino já não é mais relevante neste contexto,
ainda menos importante é o planejamento do ensino, o que enfatiza um esvaziamento do
trabalho docente.
A fim de reiterar o posicionamento da contra hegemonia, este trabalho busca
apresentar a necessidade do planejamento de ensino, fundamentando-se na pedagogia
histórico-crítica, utilizando estudos de Marx (2008), Saviani (2009), Frigotto (2014),
Duarte (2014), entre outros. Iniciaremos nossa exposição ressaltando alguns elementos
centrais do método marxista para a pesquisa em educação, a fim de promover a
compreensão sobre a escolha deste caminho para a elucidação da referida temática.
Posteriormente, apresentaremos considerações que fundamentam o planejamento de
ensino e, por fim indicaremos como este se compõe como objeto de pesquisa na
atualidade.
A partir destes apontamos destacamos a necessidade do estudo do planejamento
de ensino como atividade intrínseca ao trabalho docente, primeiro por esta enriquecer
sobremodo a ação do professor e também pela escassez de trabalhos sobre a temática.
Além disso, constatamos que na contemporaneidade esta se constitui como a defesa do
ato de ensinar e da necessidade da legitimação da função e especificidade da escola.

1 Elementos em Marx para a pesquisa em educação

Compreender e defender a educação e principalmente a educação pública,


gratuita, laica e de qualidade é um desafio grande e intenso para aqueles que se propõem
a fazê-lo. Isso não só porque o fenômeno educativo é complexo e repleto de
contradições, especificidades e condições básicas para se efetivar, mas por se


221

encontrarem todas as relações sociais contemporâneas submetidas à lógica capitalista,


que se apresenta cada vez mais desumana, alienada e alienante.
Sob a égide do capitalismo, produz-se o mundo material e imaterial, resultante
do trabalho humano que, como tal, é transformável. Como explica Marx (2008, p. 47),
“[...] na produção social da própria existência, os homens entram em relações
determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção
correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas
materiais”.
A totalidade dessas relações de produção correspondem a um grau determinado
de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva
uma superestrutura jurídica/ e política e à qual correspondem formas sociais
determinadas da consciência. O modo de produção da vida material condiciona o
processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.
Dessa maneira, pautando-nos nas contribuições marxianas e marxistas para o
conhecimento e a compreensão do mundo, partimos da premissa de que para conhecer
qualquer fenômeno social é preciso situá-lo historicamente. Assim, em Marx não
haveria outro encaminhamento senão ter como ponto de partida para o entendimento da
realidade, a própria realidade, para então compreendê-la como concreto pensado.
Assim, tudo o que existe é resultado da realidade concreta, é materialidade, base para a
produção das ideias, que não é pura, neutra, nem passiva. Contudo, temos em Marx
sinalizações para uma aproximação do real o mais fiel possível, a partir do próprio real.
Sobre isso, Torriglia e Ortigara (2014, p. 184) afirmam que

[...] o método está constituído sobre as bases da atividade dos próprios


sujeitos, sujeitos singulares que ao colocar e satisfazer suas
necessidades fixam na história suas produções e conhecimentos sobre
as propriedades e nexos da realidade objetiva, regularidades,
funcionamento e desenvolvimento do próprio conhecimento.

Dessa forma, é inviável buscar clareza de determinado objeto sem ter a visão de
sua totalidade, isto é, ter a maior quantidade e qualidade de facetas do objeto para
alcançar a superação de sua aparência e atingir a sua essência, conforme se pode
observar com base no conjunto dos estudos de Marx. Uma visualização e um estudo da
totalidade não é uma dissecação de tudo ou sobre tudo, mas do todo do fenômeno, ou


222

seja, daquilo que historicamente o determina, o delimita, o caracteriza e como este se


relaciona com outros “objetos” no percurso da história. (CIAVATTA, 2014).
Por essas colocações, entende-se que a totalidade não é uma categoria
autossuficiente, pelo contrário, é perpassada e emaranhada por muitas outras categorias,
como as mediações e a historicidade. Nesse sentido, Marx sublinha a concepção do ser
humano como sujeito de sua história, por quem e para quem se produz o mundo social,
mesmo que esse direito lhe seja negado na sociedade do capital.
O ser humano é a razão e o produtor de sua história. Assim, para entender a
história como método científico para conhecimento do mundo social e para construção
ideal dele mesmo, ou seja, para fazer a abstração desse conhecimento e desse
movimento dialético, é necessário reconhecer a humanidade como “[...] sujeito e objeto
na produção do conhecimento”, todavia não como “[...] um indivíduo isolado, mas
como um sujeito social que realiza a história e nela se realiza” (CIAVATTA, 2014, p.
199).
Vale destacar ainda, que apesar de haver uma confusão a respeito disso, pois
muitos se equivocam defendendo que a historicidade como método ofusca questões
atuais e é antiquada ao tempo presente, este método não ignora questões da
contemporaneidade, pois enfatizar a relevância da historicidade das coisas não é
abandonar as problemáticas da atualidade. Pelo contrário, historicizar os fatos é
procurar compreender a relação existente entre estes e as pontuações anteriores e
posteriores sobre determinada questão.
Dessa maneira, todo problema surge da própria realidade e da relação
estabelecida pelo homem com ela. No entanto, considera-se que utilizar a herança
cultural já existente do gênero humano é o mecanismo racional mais viável para isso.
Como explicam Torriglia e Ortigara (2014, p. 186): “Os problemas são imediatos à
nossa contemporaneidade, mas isso não significa que fiquem nos limites de seu próprio
tempo, por isso a história que registra o passado, o post festum, e as tendências [...]
carregam as possibilidades de um futuro aberto”.
A pesquisa, nessa perspectiva, deve contemplar o movimento da realidade, a
superação da aparência perceptível “a olho nu”, para a imersão na essência do
fenômeno, que não está em um único lugar ou é transcendente à humanidade, mas
refere-se às relações estabelecidas pelos homens com o mundo natural e entre si, o qual
está em intensa transformação nessas relações, e na construção do mundo social,
cultural, no mundo humano. Nesse sentido, Marx (2008, p. 26) esclarece que “[...]


223

assim, pode-se substituir uma visão caótica da realidade constituída de abstrações por
um sistema de conceitos e de determinações logicamente sistematizados”.
Nesse estudo, intenta-se essa clareza sobre o planejamento do ensino. Portanto,
apresentaremos a seguir algumas ideias sobre o tema com base na pedagogia histórico-
crítica, buscando dessa forma, esclarecer os principais apontamentos teóricos a respeito
desta temática.

2 O planejamento como parte fundamental da ontologia humana

Tomamos de Saviani (2010) a afirmativa de que a educação é uma característica


ontológica do ser humano, pois está presente em sua constituição. Para ele, o ser
existente apenas na constituição fisiológica, não está totalmente constituído, não é
plenamente humano, pois a humanidade não é dada por uma essência nata, espontânea
ou somente biológica.
O ser humano se constitui quando se apropria da produção que o gênero humano
construiu historicamente a partir dos processos de objetivação e apropriação, ou seja, de
apreensão do legado humano e de sua materialização. Isto quer dizer que sem a
apropriação das conquistas do gênero não é possível conhecer e nem constituir a si
mesmo. Somente a partir dessa relação de superação histórica entre natureza e cultura é
possível se humanizar.
Segundo Saviani (2010), o trabalho humano é a transformação que o ser humano
exerce sobre a natureza, é a apreensão da forma de dominá-la. Desse modo, o humano,
assim como outros animais, transformam a matéria. Entretanto, o ser humano os supera,
produzindo a cultura ao planejar a sua ação, prever seu início e fim, as formas de
alcançá-lo, caracterizando-se como atividade consciente do homem.
Assim, para o ser humano é possível criar algo inexistente ou criar algo que só
existe idealmente para ele. Pode também transformar o que já está disponível e tornar a
ideia em matéria, não pelo pensamento, pela força de vontade ou por desejo, mas de
acordo com as condições objetivas que estão disponíveis, por via do planejamento, da
ação sobre a matéria, isto é, do trabalho humano propriamente dito.

[...] o que diferencia o homem dos outros animais é o trabalho. E o


trabalho se instaura a partir do momento em que seu agente antecipa
mentalmente a finalidade da ação. Consequentemente, o trabalho não


224

é qualquer tipo de atividade, mas uma ação adequada a finalidades. É,


pois, uma ação intencional. (SAVIANI, 1992, p. 19).

Assim, é válido destacar que o planejamento é uma parte fundamental da


formação humana. Nesse sentido, parte-se do pressuposto de que sendo a educação
princípio ontológico humano e o planejamento da ação – que se desdobra no trabalho –
a atribuição que o caracteriza, diferenciando-o de outros animais, não é por acaso que
exista uma relação direta entre esses princípios. Saviani (2007) alerta que ao mesmo
tempo em que o indivíduo produz, ele também se constitui, se forma e, por isso,
educação e trabalho são instâncias indissociáveis.
A educação, portanto, nasce da necessidade de transmissão dos conhecimentos
acumulados historicamente para a humanização dos indivíduos e também justifica a sua
importância nela. Dessa maneira, “[...] dizer, pois, que a educação é um fenômeno
próprio dos seres humanos significa afirmar que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência
do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho”,
portanto, é um processo intencional. Apesar de ser trabalho, isto é, fruto e resultado da
produção humana, a educação é caracterizada por Saviani (2007) como trabalho não-
material. Para ele,

[...] a natureza não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre a
base biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de
produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto
dos homens. (SAVIANI, 1992, p. 14, grifo nosso).

Nessa discussão, o autor afirma que a escola, desde a modernidade, é então


privilegiada, pois concentra em suas atividades as formas mais avançadas de cultura,
isto é, de produção humana, sendo assim a referência para as outras formas de
educação, em face de sua intencionalidade. Este é o mesmo princípio apontado por
Duarte (2008), com base em Marx, de que as formas mais simples de conhecimento e de
produção estão postas na essência das formas mais complexas, mesmo que não saltem
aos olhos na aparência fenomênica do objeto.
Sendo assim, o presente estudo não só vai ao encontro da defesa da escola e do
trabalho docente, mas, sem dúvida alguma, corrobora com a defesa do aluno como
“herdeiro” do legado humano e, por conseguinte, também da escola pública como uma
escola com condições de humanização para todos.


225

3 O planejamento de ensino e sua relevância para a pesquisa em educação e para o


cenário educacional atual

Partindo da existência, função e importância da escola para a formação humana


e para incorporação do indivíduo ao gênero humano, o estudo destes princípios é
fundamental para iniciar a compreensão de sua definição e mapear a discussão a seu
respeito no campo pedagógico.
Reiterando as colocações sobre o trabalho educativo pretendemos aprofundar
alguns aspectos relativos ao direcionamento e o desenvolvimento do trabalho educativo
na educação escolar, isto é, como ele se constitui historicamente. Que procedimentos,
instrumentos, características e objetivos ele carrega? Quais os seus pressupostos e
meios? Enfim, objetiva-se introduzir a compreensão da didática e a forma de processar a
educação escolar, localizando nesses parâmetros o planejamento do ensino, de acordo
com a pedagogia histórico-crítica.
Sendo o trabalho educativo, o ato de produzir singularmente o que foi e está
sendo produzido coletivamente pelo gênero humano (DUARTE, 2008), é necessário
problematizar o que está sendo produzido pela coletividade dos indivíduos e o que pode
ser considerado como cultura. Neste sentido, vale questionar: o que a escola deve,
portanto, ensinar?
Segundo Duarte (2008), dialogando com as contribuições de Saviani (2010), a
escola deve ser balizada pelo conceito de clássico. Para o autor, clássico não é o
tradicional, o antigo, o que já foi refutado. Ao contrário, é aquilo que resistiu ao tempo e
se mantém atual, imprescindível à formação humana, tendo validade para a mesma. Por
isso, a escola não tem o compromisso de reiterar o saber cotidiano, mas sim, efetivar a
apropriação dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos, que possam produzir
no indivíduo singular o que já foi produzido por toda a humanidade ao longo de sua
história. A escola, portanto, existe para garantir a apropriação desses conhecimentos.
Desse modo, preocupar-se com a transmissão da cultura e se dedicar à essa
especificidade não quer dizer que a escola não deva se importar com o indivíduo e sua
condição de vida, ou ser conivente com uma situação degradante de sobrevivência, ou
ainda negar os conhecimentos da prática. Pelo contrário, a educação escolar deve lutar
pela humanização plena dos sujeitos e, portanto, reagir contra as condições desumanas
que estão disponibilizadas na forma da sociedade capitalista, buscando problematizar
suas práticas imediatas e torná-las então mediadas pelo gênero humano.


226

Por isso, para Saviani (2009), o trabalho docente na educação escolar não pode
ser secundarizado, uma vez que efetiva pedagogicamente a função da escola e deve ter
clareza dos pilares da mesma, considerando que esses dados foram constituídos
historicamente e não se estruturam a partir da realidade existente hoje, que privilegia um
e descarta o outro. O que precisa realmente ser feito é instrumentalizar todos os alunos
para que transformem sua prática social em práticas não alienadas, que lutem em favor
de toda a humanidade, assumindo uma pedagogia “[...] que se pretende a serviço dos
interesses populares”. (SAVIANI, 2009, p. 68).
Concordando com a pedagogia histórico-crítica, que reafirma o ensino
fundamentado nas características humanas de planejamento da ação, defendemos que a
escola deve ter uma finalidade, uma intencionalidade, um planejamento que possa de
fato organizar e sistematizar esse processo, encaminhando-se, assim, na contramão da
educação espontaneísta. Isso significa que deve existir no ato de planejar o ensino uma
preocupação não apenas com a seleção dos conteúdos, mas com as formas mais
adequadas de traduzir este conhecimento em saber escolar. Isto é, com a maneira de
desenvolver todo o processo educativo, como planejar o ensino de forma coerente com
o objetivo da escola (SAVIANI, 2009).
Nessa perspectiva, a educação escolar deve se preocupar com duas instâncias
que a compõe: o conteúdo a ser ministrado e sua forma (SAVIANI, 2009). Delas,
decorre uma terceira dimensão: a quem o ensino se destina. Considera-se então a faixa
etária, a prática social do destinatário, não para se deter nela, mas para transformá-la,
enriquecê-la. Para isso, é importante delimitar os objetivos a serem alcançados, os
conhecimentos e os meios para atingir tal finalidade, questionando o quê ensinar? Por
que ensinar? A quem ensinar? Como fazê-lo?
Considerando que os conhecimentos científicos estão presentes nos
conhecimentos empíricos, embora não aparentemente, e que a educação é uma
modalidade contida na prática social, mas que supera sua forma cotidiana e imediata
(sem mediação), Saviani sinaliza que o primeiro momento da prática educativa é a
identificação da prática social, comum a professores e alunos, porém com
posicionamentos diferentes (SAVIANI, 2009). O professor é, nesse contexto, o detentor
do conhecimento pedagógico e da forma de efetivá-lo para o aluno.
Para identificar a prática social é preciso problematizá-la, identificando a
instância da prática social que não se satisfaz em si mesma e que precisa da seleção de
determinados conhecimentos para ser compreendida. Ao reconhecer os problemas da


227

prática social, para resolvê-los, é necessário instrumentalizar os indivíduos,


possibilitando a apropriação dos conhecimentos previamente selecionados pela
transmissão do professor para tornar a prática social plena.
O resultado da prática pedagógica é a catarse, que Saviani (2009, p. 64) traduz
como “[...] efetiva incorporação dos instrumentos culturais”, ou seja, a composição da
relação entre as esferas da prática e os conhecimentos apropriados, transformando e
retornando à prática social de forma qualitativamente superior. O planejamento de
ensino deve, nesse sentido, considerar essas questões. Entretanto, para realizá-lo, é
preciso destacar que as condições de realização da história exigem,
Nesse sentido, apresentaremos a seguir, um levantamento de pesquisas sobre o
planejamento de ensino nas pesquisas em educação da atualidade, no esforço de
compreender a relevância da temática, assim como a necessidade de novas pesquisas
que abordem o assunto. Nossa intenção, nesse levantamento, foi verificar se os
trabalhos acadêmicos realizados na atualidade, tem utilizado a pedagogia histórico-
crítica ou o materialismo histórico-dialético como referencial e que uso fazem dela para
tal discussão.

4 O estudo do planejamento de ensino: levantamento das produções acerca da


temática

Realizamos uma revisão de literatura sobre o estudo do planejamento a partir da


perspectiva do materialismo histórico-dialético nos principais portais de produção
acadêmica brasileira. Dessa forma, objetivamos listar e pontuar alguns aspectos centrais
das produções da temática “planejamento de ensino” na educação escolar que tenham
como referencial teórico o materialismo histórico-dialético, a pedagogia histórico-crítica
e a psicologia histórico-cultural.
Para tanto, foram realizadas pesquisas nos portais da Biblioteca Digital
Brasileira de Dissertações e Teses (BDTD), da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisas em Educação (ANPED) – Grupo de trabalho: Didática no período de 2009 a
2014, a fim de verificar o que se tem produzido na atualidade sobre a temática. Não foi
realizada a pesquisa no portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior (CAPES) por este não ter sido atualizado recentemente1.

1
Conforme o sítio eletrônico do Banco de Teses da Capes, “[...] como forma de garantir a consistência
das informações, a equipe responsável está realizando uma análise dos dados informados e identificando


228

Primeiramente foi consultado o portal da BDTD com os seguintes filtros: 1.


Planejamento de ensino; 2. Planejamento de ensino e Pedagogia histórico-crítica; 3.
Planejamento de ensino e materialismo histórico-dialético e 4. Planejamento de ensino e
Psicologia histórico-cultural. Esses filtros também foram utilizados nas pesquisas
realizadas nos demais portais.
Sendo assim, na primeira descrição, denominada “planejamento de ensino”
encontramos 1.322 trabalhos sem a utilização dos filtros por agrupamentos possíveis no
sistema (ao notar a grande quantidade de trabalhos relacionados percebemos a
necessidade de refazer a busca com o filtro do BDTD pelo agrupamento “assunto”, além
do período e descritor mencionado anteriormente). Nele, encontramos 62 trabalhos,
sendo 51 dissertações de mestrado e 11 teses de doutorado. Entretanto, nesta relação
encontramos trabalhos de algumas temáticas diferenciadas que perpassavam a temática
do planejamento de ensino, mas não tratavam dele diretamente. A partir da listagem das
mesmas concentramos as que se aproximavam em grupos temáticos, conforme é
possível perceber no quadro a seguir.

ASSUNTOS DOS QUANTIDADE DE


TESES DISSERTAÇÕES
TRABALHOS TRABALHOS
Planejamento 33 4 29
curricular/ensino
Organização educacional 21 5 16
Saúde 2 0 2
Outros assuntos 6 2 4
TOTAL 62 11 51
Quadro 1 – Relação dos trabalhos encontrados de acordo com assuntos em voga
Fonte: Portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações.

Apesar de percebermos que a maioria dos trabalhos tratava de assuntos relativos


à educação escolar e atendiam à temática de nosso interesse, isto é, o planejamento do
ensino realizado pelo professor, atingindo um total de 33 trabalhos (sendo 29


registros que por algum motivo não foram informados de forma completa à época de coleta dos dados.
Assim, em um primeiro momento, apenas os trabalhos defendidos em 2012 e 2011 estão disponíveis. Os
trabalhos defendidos em anos anteriores serão incluídos aos poucos”. Essa informação foi publicada em
25 de fevereiro de 2014. Disponível em: http://bancodeteses.capes.gov.br/noticia/view/id/1. Acesso em
14/03/2016.


229

dissertações e 4 teses) notamos que muitos deles buscavam discutir o assunto em


determinada disciplina ou modalidade do ensino.
Mesmo com tais evidências, a partir desta listagem, analisamos os resumos do
primeiro grupo temático de trabalhos (Planejamento curricular/ensino) a fim de destacar
os que poderiam contribuir com esta pesquisa apresentando esclarecimentos conceituais
ou circunstanciais desta temática nas pesquisas atuais, conforme podemos notar na
exposição a seguir.

QUANTIDADE
GRUPO ASSUNTOS MAIS
DE DISSERTAÇÃO TESE
TEMÁTICO CITADOS
TRABALHOS
Disciplinas
15 16 0
específicas
Alfabetização e
7 5 0
ensino fundamental
Planejamento
Prática docente /
curricular/ensino
formação de 4 3 1
professores
Ensino Superior 2 2 1
Outros 5 3 2
TOTAL 33 29 4
Quadro 2 – Relação de trabalhos de acordo com o grupo temático Planejamento curricular ou
de ensino Fonte: Portal da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações.

Ao realizar a leitura dos resumos apenas quatro não tratavam de alguma


disciplina ou experiência isolada e se aproximam da proposta que temos para o
desenvolvimento de nossa pesquisa.
O primeiro deles é uma dissertação de mestrado, intitulada “Planejamento no
ensino de ciências: prospecções e reflexões”. (PINHEIRO, 2012). O autor realizou um
estudo exploratório junto a professores de uma escola municipal de Belo Horizonte,
com a intenção de apreender os elementos que constituem o planejamento de ensino
destes docentes. Segundo o autor, o objetivo central era promover uma escuta dos
professores a respeito do ato de planejar e não apresentar julgamento sobre eles.
Pinheiro (2012) demonstra que apesar dos professores considerarem o ato de
planejar importante muitos fatores influenciam e comprometem o mesmo, como as


230

condições precárias de trabalho (falta tempo, materiais e formação continuada), a


predominância de uma didática centrada na utilização do livro didático, além de fatores
externos, como o contexto em que o professor e a escola estão inseridos, as proposições
curriculares que chegam à escola sem discussão com os docentes, dentre outros. Os
entrevistados também sinalizaram que defendem uma concepção de planejamento de
ensino que leve em consideração a realidade dos alunos, a fim de aproximá-los dos
conteúdos que chamam de “formais”.
Já os trabalhos de Rigon (2011), Santana (2013) e Vaccas (2012), apesar das
dimensões distintas das pesquisas, alinham-se ao referencial teórico materialista
histórico-dialético e trazem considerações a respeito da importância do planejamento de
ensino para a educação escolar e para a humanização dos sujeitos e como sua ausência
pode acarretar prejuízos ao processo de ensinoaprendizagem. As pesquisas enfatizam
que o planejamento de ensino é parte constituinte da ação docente e por isso, deve ser
discutido, entendido e priorizado na ação pedagógica2.
Na segunda classificação denominada “Planejamento de ensino e pedagogia
histórico-crítica” foram encontradas nove produções; entretanto estas não estão voltadas
à temática do planejamento de ensino especificamente, delineando-se algumas vezes
para áreas específicas como experiências e propostas didáticas para a educação física,
discussão do currículo do curso de pedagogia e experiências realizadas por professores.
Apenas o trabalho de Faria (2011) despertou maior atenção a partir da leitura dos
resumos e se encaixou como contribuição, apesar de seu trabalho não se tratar
especificamente do planejamento de ensino, situando-se no campo da didática, mas
aponta questões importantes para a presente pesquisa.
Faria (2011) realiza um apanhado geral das teorias educacionais do período de
1980 e 1990, buscando analisar se há um deslocamento das pedagogias críticas desse
período para os enfoques da pós- modernidade, com base em estudos bibliográficos dos
principais estudiosos da didática neste período e com base na análise das entrevistas
realizadas com alguns deles: Vera M. Candau, José C. Libâneo, Maria Rita N. S.
Oliveira e Selma G. Pimenta. Procura também mapear as produções bibliográficas deste
período e identificar seus fundamentos, localizar e problematizar os debates recentes
sobre a didática e, por fim, propor possíveis saídas para uma didática emancipadora a
partir de uma concepção histórico-crítica de educação.

2
Possivelmente esses trabalhos serão utilizados nas análises e considerações que pretendemos realizar em nossa
pesquisa futuramente.


231

Evidenciamos, dessa forma, a presença da didática nas produções alinhadas com


essas pedagogias na década de 1980 e demonstra a emergência do ideário pós-moderno
nos estudos pedagógicos a partir de 1990, expondo suas filosofias e tendências sociais, a
partir da reorganização da ordem do capital com a hegemonia do neoliberalismo.
Segundo Faria (2011), o resultado da pesquisa mostra que não há um
deslocamento total das orientações educativas analisadas que se denominavam críticas
em 1980 para as orientações pós-modernas. Entretanto, a presença das concepções pós-
modernas na didática na atualidade é efetiva e acaba por alcançar o pensamento
pedagógico dos autores entrevistados. Para justificar sua afirmativa, a autora apresenta e
analisa as falas dos próprios pesquisados destacados por meio das entrevistas. Estes
destaques são apresentados no corpo do trabalho quando assumem a relevância das
pedagogias com base marxista para as questões da atualidade.
Por fim, a autora conclui a existência de formas diferentes de lidar com a teoria
marxista por parte destes autores e não só destes, mas enfatiza as diversas leituras de
Marx presentes em toda a constituição do que se denominou didática crítica neste
período, o que faz com que haja muitas entonações de uma possível concepção de
pedagogia crítica e até uma confusão a respeito da mesma, e enfatiza a necessidade de
estudos a respeito.
Também consultamos o portal da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisas em Educação (ANPED)3 no referido período, no grupo de trabalho: Didática
(GT4). No entanto, também não muito sucesso nos foi consolidado. Todos os trabalhos
do GT4 que selecionamos para leitura inicial, pertencem ao campo da didática, mas não
se delineiam especificamente para a temática do planejamento de ensino, razão pela
qual, não extraímos nenhum trabalho desta base.
A intenção da realização de um levantamento em portais de pesquisas e
bibliotecas de estudos acadêmicos altamente relevantes para os estudos em educação foi
identificar como o planejamento de ensino tem se colocado nas pesquisas entre 2009 e


3
Portal da 32ª reunião da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisas em Educação. Disponível em
<http://32reuniao.anped.org.br/>.
Portal da 33ª reunião da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisas em Educação. Disponível em
<http://33reuniao.anped.org.br/ 35 ANPED>
Portal da 34ª reunião da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisas em Educação. Disponível em
<http://34reuniao.anped.org.br/ 35 ANPED>
Portal da 35ª reunião da Associação Nacional de Pós- Graduação e Pesquisas em Educação. Disponível em
<http://35reuniao.anped.org.br/ 35 ANPED>
Portal da 36ª reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Disponível em
<http://36reuniao.anped.org.br/ < Acesso em: 07 maio. 2015.


232

2014 e quais avanços são necessários, buscando subsidiar as possíveis contribuições do


presente estudo. Além disso, nossa finalidade foi também identificar se há e em que
medida existe, a presença do materialismo histórico-dialético nas pesquisas desta
temática.
Com isso, foi possível perceber que a discussão sobre planejamento de ensino
especificamente e sob a perspectiva da pedagogia histórico-crítica não está presente no
cenário hegemônico de forma significativa, considerando a quantidade de pesquisas
encontradas a respeito neste período. Apesar da validade dos trabalhos encontrados,
poucos encaminham e aprofundam a temática do planejamento de ensino diretamente.

Conclusões preliminares

Ao longo das considerações realizadas durante este trabalho, foi possível notar
que o planejamento de ensino é também uma atividade de constituição humana, pois em
sua realização obtemos uma característica humana específica, a prévia ideação dos
resultados de nossas ações.
Sendo assim, sua necessidade e especificidade na educação escolar são
fundamentais para o desenvolvimento ideal do processo ensinoaprendizagem; isto
porque, nos certificamos a partir dos fundamentos da pedagogia histórico-crítica, que o
planejamento enriquece sobremaneira a atividade docente por pontuar e reafirmar a
função, especificidade e intencionalidade da escola e também, porque no contexto
educacional contemporâneo, combate propostas e ações neoliberais que ao invés de
fortalecer a formação e humanização de todos os sujeitos em suas máximas
possibilidades, reitera a consolidação da sociedade capitalista e, consequentemente,
dialoga com a precarização da produção da vida humana.
Pudemos tomar como evidência ainda que as práticas pedagógicas efetivadas na
contemporaneidade reiteram a hegemonia dos referenciais teóricos pós-modernos e seus
desdobramentos, qual seja o fortalecimento e permanência do capitalismo. Em
contrapartida, as poucas referências encontradas sobre o planejamento de ensino no
campo da pedagogia histórico-crítica evidenciam a necessidade de reflexões que por um
lado, denunciem as circunstâncias da educação atual e por outro, avigorem os estudos
das pedagogias contra-hegemônicas, que sejam aliançadas com uma proposta de
sociedade que preze por uma educação com formação plena dos indivíduos, tornando-os
parte do gênero humano, por ter tido o direito de continuar escrevendo esta história.


233

Referências

CIAVATTA, Maria. O conhecimento histórico e o problema teórico-metodológico das


mediações. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (org). Teoria e educação no
labirinto do capital. 2 ed. São Paulo: Ed. Expressão Popular, 2014.

DUARTE, Newton. A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco: A dialética em


Vygotsky e em Marx e a questão do saber objetivo na educação escolar. Revista Educação &
Sociedade. Ano XXI. Nº 71. p. 79 – 115. 2000. Disponível em
>http://www.scielo.br/pdf/es/v21n71/a04v2171.pdf<. Acesso em 20 Jun 2015.

DUARTE, Newton. Sociedade do conhecimento ou sociedade das ilusões?: Quatro ensaios


críticos dialéticos em filosofia da educação. Campinas: Autores Associados, 2008.

FARIA, Lenilda Rego Albuquerque de. “As orientações educativas contra hegemônicas de
1980 e 1990 e os rebatimentos pós-modernos”. Tese (Doutorado em Educação) Universidade
de São Paulo, 2011. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/48/48134/tde-
30082011-134451/pt-br.php>. Acesso em: 01 jun. 2016.

FRIGOTTO, Gaudêncio. As novas e velhas faces da crise do capital e o labirinto dos


referenciais teóricos. In: FRIGOTTO, Gaudêncio; CIAVATTA, Maria (org.). Teoria e
educação no labirinto do capital. 2ed. São Paulo. Ed. Expressão Popular, 2014.

MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2ed. São Paulo: Ed. Expressão
Popular, 2008.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 3 ed. SP: Autores


Associados, 1992.
SAVIANI, Dermeval. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. In: Revista
Brasileira de Educação - v. 12 n. 34 jan./abr. p. 152 -165. 2007. Disponível em
<http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v12n34/a12v1234.pdf>. Acesso em: 23 dez 2015.

SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia. 41 ed. Campinas: Autores Associados, 2009.

SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton. A formação humana na perspectiva histórico-


ontológica. Revista Brasileira de Educação - v. 15. n. 45 set./dez. 2010. p. 422 – 433.
Disponível em >http://www.scielo.br/pdf/rbedu/v15n45/02<

TORRIGLIA, Patrícia Laura; ORTIGARA, Vidalcir. O campo das mediações: primeiras


aproximações para a pesquisa em políticas educacionais. In: CUNHA, Célio da; SOUSA, José
Vieira; SILVA, Maria Abadia. O método dialético na pesquisa em educação. São Paulo:
Autores Associados; Brasília: Universidade Federal de Brasília, 2014.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A EDUCAÇÃO ESCOLAR:


CENAS DE UMA RELAÇÃO (IN) FELIZ

Paulo Vinícius Santos Sulli Luduvice (SEMED)1

Resumo: O objetivo central deste trabalho é evidenciar o conceito de clássico como


imprescindível para à construção da Base Nacional Comum Curricular. Todavia perpassaremos
pela conjuntura da política educacional brasileira que no último período tem se identificado
mais do que nunca com os interesses nefastos da responsabilização, meritocracia e da
privatização. Entendendo e agindo sobre uma conjuntura política desfavorável, para que
possamos ir completamente de encontro à proposta de uma base nacional comum é que
defendemos a necessidade de explorarmos as contradições subjacentes a problemática,
apontando os fundamentos da Pedagogia Histórico-Crítica e conceito de clássico como
indispensável para o trabalho educativo, pois provavelmente só assim a classe trabalhadora
brasileira se apropriará dos conhecimentos que possam elevar seu nível de compreensão e
intervenção na sociedade com o intuito de transformá-la.

Palavras-chave: Base Nacional Comum Curricular; Educação escolar; Pedagogia Histórico-


Crítica.
.
Introdução

O avanço das péssimas condições da educação escolar brasileira no último


período tem se agravado de forma absurda, tanto no que diz respeito ao não
cumprimento dos fundamentos mais básicos, como por exemplo, o financiamento
público para as escolas públicas, cumprimento do piso nacional do magistério, como
também, o recuo teórico que caminha para o pensamento pós-moderno e privatista.
(DELLA FONTE apud DERISSO, 2010; FREITAS 2012).
Para evidenciarmos toda essa sanha privatista, não podemos deixar de tratar aqui
do documento vexatório nomeado de “Pátria Educadora” apresentado pela Secretaria de
Assuntos Estratégicos da Presidência da República para orientar as políticas
educacionais em todo o Brasil. O referido documento além de apresentar sérias
limitações de cunho teóricos, ao que nos parece não teve a participação efetiva do
Ministério da Educação (MEC), pois no próprio documento consta que referido

1
Paulo Vinícius Santos Sulli Luduvice, Formado em Licenciatura Plena em Educação Física e especialista em
Educação Física Escolar, Secretaria Municipal da Educação de Palmas, Tocantins, Brasil. E-mail:
viniedfisica@hotmail.com


235

ministério é apenas executor, Associação Nacional de Política e Administração da


Educação. (ANPAE, 2015).
Segundo a ANPAE (2015), o documento “Pátria Educadora” é de extrema
fragilidade, pois nem mesmo cita as referências utilizadas para diagnosticar os
problemas da educação escolar brasileira. Além disso, o conteúdo é elitista,
discriminatório, privatista, meritocrático e antidemocrático.
A tentativa privatista é tão afrontadora que chega a “propor” alterações na
legislação para que possa ser aprovado, contradizendo completamente os avanços
conquistados pelos/as profissionais da educação tanto na legislação atual como no Plano
Nacional de Educação. (PNE, 2014-2024; ANPAE, 2015).
Toda essa situação engendrada pelo documento “Pátria Educadora” é
acompanhada por um corte de verbas absurdo de 12 bilhões de reais para educação
escolar brasileira em 2015, afetando diversos programas e modalidades como é o caso
dos atrasos nos pagamentos de bolsas no programa “Mais Educação” que é voltado às
escolas de tempo integral, nos custeios das universidades federais e nas pesquisas2.
A persistência da não superação do analfabetismo e do analfabetismo funcional
na educação escolar brasileira é apenas uma das consequências do descaso e da
ingerência do sistema político brasileiro que desde sempre provoca o cerceamento das
classes populares aos conhecimentos científicos mais avançados que a humanidade
produziu. “[...] as pressões sobre a área da educação partem agora de entidades
organizadas pelos empresários com esta finalidade, como indicamos antes, e também de
ações organizadas por estas junto aos governos e junto ao Congresso Nacional”.
(FREITAS, 2014, p. 51).
Na atual conjuntura da educação brasileira, quem além do governo é capaz de
defender a situação pela qual passamos no “chão” das escolas e universidades públicas?
Ou nos detemos a pensar - um projeto popular para educação brasileira - para além das
avaliações institucionais, da BNCC, do Programa Universidade para Todos (PROUNI),
Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), Fundo de
Financiamento Estudantil (FIES) ou ficaremos a mercê das políticas de governo
influenciadas principalmente pelos reformadores educacionais, Freitas (2014).


2
Vide http://grevenasfederais.andes.org.br/2015/07/31/governo-anuncia-novo-corte-na-educacao-federal-
e-libera-mais-r-5-bi-para-o-fies/; http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2015/05/1632333-prioridade-de-
dilma-educacao-deve-responder-por-13-do-corte-de-r-70-bi.shtml;
http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/01/02/educacao-perde-r-105-bi-em-
2015.htm; http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150108_corte_contas_ms_lgb


236

1 Desenvolvimento:

Apesar de estar tendo apenas neste momento uma visibilidade significativa, a proposta
de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a Educação Escolar Brasileira, esta
proposta existe desde a promulgação da Constituição Federal (CF) em 1988, mais
especificamente no seu Artigo 210, Brasil (1988).
Vejamos que não é só a CF que cita a BNCC, mas também na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDBN) Lei Federal 9394/1996, que conservou o “[...]
legado do regime militar consubstanciou-se na institucionalização da visão produtivista
de educação. Esta resistiu às críticas de que foi alvo nos anos de 1980 [...]”. (SAVIANI,
2008a, p. 298).
Consta também nas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) as quais,
diga-se de passem tem “[...] ênfase excessiva na flexibilização, autonomia e
descentralização do currículo, subordinando a educação às demandas do mundo do
trabalho [...]” e mais atualmente no Plano Nacional de Educação Lei Federal
13.005/2014. (MOEHLECKE,2012, p. 39).
Mas a primeira tentativa de implementar um currículo nacional foi durante o
processo de implementação e ratificação do neoliberalismo da década de 1990
encabeçado pelo (des)governo FHC e suas reformas de Estado; mas com isso “[...] não é
recomendável que acreditemos que ‘a história está se repetindo’. Tal linearidade de
análise nos desarmaria para o enfrentamento local das contradições que estão postas por
esta nova escalada do capital sobre a educação”. (FREITAS, 2014, p.49).
Sendo assim vamos tentar entender os nexos e relações entre a escalada do
capitalismo sobre a educação a os documentos oficiais. Segundo Saviani (2008b) a
produção da legislação oficial na década de 1990 sobre da educação, estiveram
decisivamente atreladas ao “relatório Jacques Delors” que tem como premissa basilar o
lema “aprender a aprender”.
Com isso, para efetivar o “modus operandi” neoliberal, tiveram que implementar
os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que apesar de revindicar “neutralidade”,
carrega os quatro posicionamentos valorativos do lema “aprende a aprender”, ou
melhor, segundo Saviani (2008b) nos PCN constam as mesmas justificativas para a
defesa do “aprender a aprender” que estão no “Relatório Jacques Delors”.
Os referidos posicionamentos valorativos segundo Duarte (2008a) vão produzir
cinco ilusões, que em suma podem ser tratadas da seguinte forma: o conhecimento na


237

atual sociedade é plenamente acessível a todas as pessoas independe da classe e que


esse acesso se deu principalmente pelos meios de comunicação, internet, informática
etc.; a capacidade de mobilizar conhecimentos é muito mais importante do que obtenção
de conhecimentos teóricos, pois estariam superadas as elaborações sobre a história, a
sociedade e o ser humano; o conhecimento é uma construção subjetiva, onde
negociamos significados, conhecimento é a conveniência cultural; não existem
diferenças entre os conhecimentos, cada um tem seu poder explicativo da realidade
devendo apenas ser respeitado; o apelo explícito a consciência dos indivíduos, pois só
dependemos de boas atitudes para mudar a realidade.

O caráter adaptativo dessa pedagogia está bem evidente. Trata-se de


preparar os indivíduos, formando neles as competências necessárias à
condição de desempregado, deficiente, mãe solteira etc. Aos
educadores caberia conhecer a realidade social não para fazer a crítica
a essa realidade e construir uma educação comprometida com as lutas
por uma transformação social radical, mas sim para saber melhor
quais competências a realidade social está exigindo dos indivíduos.
(DUARTE, 2008a, p. 12).

Todavia essas relações contextualizadas anteriormente, ainda não nos revelam


todas as semelhanças e intencionalidades que existem por trás da formulação de uma
BNCC para educação escolar brasileira e a escalada do capitalismo sobre a privatização
da educação pública brasileira. Por isso buscamos o documento oficial disponibilizado
no site da BNCC3 que já em sua apresentação trás como serão os rumos mais
importantes condicionados pela BNCC.

[...] primeiro, a formação tanto inicial quando continuada dos nossos


professores mudará de figura; segundo, o material didático deverá
passar por mudanças significativas, tanto pela incorporação de
elementos audiovisuais (e também apenas áudio, ou apenas visuais)
quanto pela presença dos conteúdos específicos que suas redes
autônomas de educação agregarão. (BASE NACIONAL COMUM
CURRICULAR, s/d, p. 1).

No mesmo documento, mas onde trata dos “Princípios orientadores da Base


Nacional Comum Curricular” percebemos ao analisar, que existe uma visível
discrepância entre os rumos e o objetivo da BNCC.

O objetivo da BNC é sinalizar percursos de aprendizagem e


desenvolvimento dos estudantes ao longo da Educação Básica,
compreendida pela Educação Infantil, Ensino Fundamental, ano

3
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/biblioteca


238

iniciais e finais, e Ensino Médio, capazes de garantir, aos sujeitos da


educação básica, como parte de seu direito à educação [...]. (BASE
NACIONAL COMUM CURRICULAR, S/D, p. 07)4.

É compreensível que os objetivos devessem conduzir, dar rumos a uma proposta


de BNCC que tivesse como cerne uma educação escolar pública e de boa qualidade.
Mas pelo contrário, o que é tido como rumo da BNCC só em uma relação forçosa pode
manter reciprocidade com o objetivo destacado.

O grande problema, aqui, não é ter ou não ter uma base nacional,
como se quer fazer parecer, mas é a própria concepção de base
nacional que se está usando e seu isolamento da discussão da opção
por uma política educacional nacional que deveria assegurar seu
cumprimento. O processo está invertido. (FREITAS, 2015a, p. 1).

Apesar de não ser tão evidente no referido documento o conceito do que é a


BNCC, utilizaremos a conceituação formulada pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação (CNTE) para mantermos nossa sucessiva aproximação com
o objeto em análise e, por conseguinte explorarmos mais ainda as contradições que
estão implícitas a proposta de BNCC.

A Base Nacional Comum Curricular apresenta os conteúdos comuns a


serem vistos em sala de aula para as áreas de linguagem, matemática,
ciências da natureza e ciências humanas em cada etapa escolar do
estudante. Tendo o currículo 60% de conteúdos comuns para a
educação básica, obrigatórios às redes públicas e privadas. Os 40%
restantes serão determinados regionalmente, considerando as escolhas
de cada sistema educacional. (2015, p. 5).

Nos parece suspeito o aligeiramento na formulação de uma BNCC sendo que já


existe os PCN – temos todos os desacordos possíveis com os PCN como já expomos em
outro momento – e que hipoteticamente cumpre a mesma função da BNCC. O intuito
real não é ter apenas parâmetros, mas sim ter uma BNCC obrigatória que permita
avaliações censitárias para que possam combinar responsabilização a meritocracia e a
privatização, Freitas (2012).
Como nos diz Freitas (2015a), o que nunca fica explicitado pelos reformadores
educacionais é que junto à “importação” de um “modelo” de BNCC está subjacente
uma determinada concepção de educação e de política pública.


4
Grifos do original.


239

Vai-se direto para a discussão de quais são os conteúdos de ensino e


pula-se a conceituação, por exemplo, do que entendemos por garantir
uma boa educação para a juventude. Com isso, deixamos que os
reformadores empresariais firmem a concepção de que nota alta nos
testes é boa educação e garantia de aprendizagem dos conhecimentos
básicos nas várias disciplinas. Podemos dormir tranquilos: os direitos
de aprendizagem foram garantidos. Falso, com isso, apenas deixamos
a porta aberta para a segregação escolar embutida nos processos de
medição e classificação. (FREITAS, 2015a, p.02).

Entendemos que todo o processo de produção, discussão e implementação da


BNCC deveria minimamente ter iniciado a partir de uma política educacional que
levasse em consideração elaborações produzidas na Conferência Nacional de Educação
(CONAE 2014-2024), que apesar das limitações é o que temos de mais próximo de uma
política pública participativa Freitas (2015b). Mas pelo contrário, estamos reféns dos
interesses dos reformadores empresariais e a mercê dos achismos e crenças por parte do
MEC/Governo determinando a construção da BNCC.

Ter uma base nacional comum é possível e desejável, na dependência


do que queiramos fazer com ela. Se é para se ter uma referência que
dê parâmetros para as escolas (combinando conteúdos e níveis de
complexidade de desempenho), tudo bem. Se é para responsabilizar
escolas, impor uma cultura padrão sobre outras culturas, punir ou
premiar professores, trocar diretores, pagar bônus, credenciar
professores, orientar grandes conglomerados empresariais a produzir
material didático, privatizar, engessar a formação de professores e
outras ideias já testadas em outros lugares e que destruíram por lá o
sistema público de educação, então a resposta é não. (FREITAS,
2015c, p. 1).

Se não rompermos com esta postura de senso comum que tem se tornado a
política educacional brasileira, encabeçada pelo MEC/Governo Federal e pelas
Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, continuaremos enfrentando sérios
problemas educacionais, pois as incompetências técnicas e políticas caminham juntas ao
entreguismo privatista – com poucas exceções – na educação publica brasileira. Essa
postura carrega diferenças abissais com relação aos profissionais da educação que
atuam nas escolas e universidades públicas, entidades nacionais de estudos e pesquisa
em educação, entidades acadêmico-científicas da sociedade civil e nas entidades
representativas da classe.
Segundo Freitas (2014), a política educacional mundial tem uma nova matriz de
controle nos dias atuais sob a guarda da Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), que assumiu essa condição “substituindo”


240

estruturas como Banco Mundial (BM), Banco Internacional para Reconstrução e


Desenvolvimento (BIRD), sendo a OCDE responsável por fazer a avaliação da
educação mundialmente nas disciplinas de matemática, ciências e leitura a partir do
exame denominado “Programme for International Student Assessment” (PISA).
Para explicitar todas as possibilidades de ação e controle quando se impõem
mudanças no sistema educacional a partir de reformadores empresariais precisaremos
utilizar uma citação bastante extensa, mas extremamente elucidativa:

Sua ação de controle passa por várias formulações que podem ser
utilizadas em conjunto ou separadamente: conscientes da importância
do professor o foco de controle dos reformadores empresariais é o
professor. Centram sua ação na pessoa do professor propondo que
deixem de ter estabilidade no emprego, tenham salário variável cujo
componente está ligado aos resultados dos testes dos alunos; procuram
estabelecer processos de avaliação personalizados dos professores e,
com isso, controlar as ênfases de formação que desejam, além de
controlar igualmente as agências formadoras; querem controlar a
formação do professor difundindo que ela é muito teórica e precisa ser
mais prática colocando a formação numa perspectiva pragmatista;
apostilam as redes de forma a controlar o conteúdo que é passado para
os estudantes, bem como a sua forma; enfatizam a formação do gestor
de forma a torná-lo um controlador dos profissionais da educação no
interior da escola responsabilizando-o pelos resultados esperados nos
testes; favorecem processos de privatização de forma a abrir mercado
e a colocar a educação diretamente sob controle do empresariado que
atua no mercado educacional (gestão por concessão e vouchers);
provocam o sentimento de que a educação está em crise e que o
direito à aprendizagem está em jogo como forma de sensibilizar a
população, através da mídia, para suas soluções miraculosas; centram
a concepção da qualidade da educação nas notas altas, estabelecendo
uma identidade entre notas altas (às vezes em uma ou duas disciplinas
que mais lhe interessam) e qualidade da educação; reduzem a
formação da juventude à ideia de direito à aprendizagem, estreitando a
concepção de educação e reduzindo-a à aprendizagem no interior da
escola; fortalecem os processos de aprendizagem que isolam a criança
da vida e, portanto, das contradições sociais existentes na vida,
difundindo a meritocracia como base explicativa do funcionamento
social; exercitam processos meritocráticos com alunos, professores e
gestores que ajudam a fixar a meritocracia como forma de progredir
na vida via empreendedorismo; desmoralizam o magistério como
forma de fragilizar a sua articulação política e apresentam os
sindicatos como responsáveis pelo atraso da educação, defensores dos
direitos dos professores e não defensores do direito de aprender do
aluno; desenvolvem processos de avaliação em larga escala censitários
com a finalidade de alavancar processos de responsabilização da
escola ignorando os fatores sociais que dificultam a ação da escola;
propõem e influenciam a elaboração de leis que responsabilizem as
escolas e os gestores; financiam fortemente as suas ideias via
fundações e iniciativa privada; ampliam o tempo escolar destinado a


241

ensino à distância on line nas escolas como forma de melhor


estabelecer controle sobre o ensino. (FREITAS, 2014, p. 53, 54).

Percebe-se com o pouco que foi exposto que existe uma coalizão dentro do
sistema político brasileiro que envolve políticos, empresários, mídia, institutos,
empresas educacionais5, pesquisadores e fundações privadas que gerenciam todo o
processo de implementação da BNCC.
Segundo Saviani (2008b) e Freitas (2012) podemos chamar este processo de
neotecnicismo, pois se sustenta nos pressupostos “psicologia behaviorista, fortalecida
pela econometria, ciências da informação e de sistemas, elevadas a condição de pilares
da educação contemporânea”. (FREITAS apud FREITAS, 2012, p. 383).
Em suma motivos não nos faltam para irmos contra a implementação da BNCC,
no entanto precisamos analisar as condições objetivas de barrar uma proposta que se
configura como tantas outras implementadas por esse governo de conciliação de classe
que se sustenta por uma Frente Neodesenvolvimentista que desconsidera habitualmente
– principalmente de 2014 até aqui - os interesses da classe trabalhadora em prol dos
interesses da burguesia interna, Boito e Berringer (2013).
Desse modo, entendendo e tentando agir sobre uma conjuntura política
desfavorável - principalmente no que diz respeito à organização dos trabalhadores e
trabalhadoras da educação - para que possamos impedir a promulgação da BNCC, é que
defendemos a necessidade de explorarmos as contradições subjacentes à problemática,
apontando os fundamentos da Pedagogia Histórico-Crítica e conceito de clássico como
indispensáveis para embasarmos a proposta da BNCC.

Considerações finais

A primeira questão que nos aparece deve ser: mas afinal, o que a educação
escolar tem haver com isso? Partindo da compreensão que a educação é uma prática
social tipicamente humana, pois apenas os seres humanos educam, podemos definir
“[...] a educação, enquanto comunicação entre pessoas livres em graus diferentes de
maturação humana, é promoção do homem, de parte a parte”. (SAVIANI, DUARTE,
2012, p. 14).
Sendo assim podemos dizer que [...] educação é um fenômeno próprio dos seres
humanos, significa dizer que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência de e para o

5
http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2016/03/1750673-ex-diretor-de-grupo-privado-assume-inep-responsavel-
pelo-enem.shtml


242

processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho. (SAVIANI,


2008c, p. 12).
Para nós seres humanos apenas a sobrevivência física e a reprodução biológica
por meio do nascimento de outros seres humanos só garante a nossa existência como
espécie biológica, mas não garante a reprodução do gênero humano – objetivação e
apropriação - com suas características historicamente construídas.

[...] o processo de apropriação é aquele no qual o indivíduo se


apropria das características do gênero humano e não da espécie. As
características do gênero humano resultam do processo histórico de
objetivação e não são transmitidas biologicamente aos membros do
gênero humano, razão pela qual eles têm que delas se apropriar. Já as
características da espécie humana são transmitidas aos seres humanos
através do mecanismo biológico da hereditariedade. [...] Tais
características constituem-se apenas em condições prévias do
desenvolvimento do indivíduo, mas não estabelecem o conteúdo, os
limites e a direção desse desenvolvimento. (DUARTE, 1999, p. 42).

É por estas assertivas que afirmamos que a escola é imprescindível para o


processo de torna-se humano dos seres humanos. Decorre assim nosso segundo
questionamento: o que é a escola e do que a mesma deve tratar para que o processo de
humanização possa se materializar?

[...] a escola é uma instituição cujo papel consiste na socialização do


saber sistematizado. [...] eu disse sistematizado; não se trata, pois, de
qualquer tipo de saber. Portanto, escola diz respeito ao conhecimento
elaborado e não ao conhecimento espontâneo ao saber sistematizado e
não ao saber fragmentado, diz respeito a cultura erudita e não a cultura
popular. (SAVIANI, 2008c, p.14).

Consequentemente a educação carrega assim uma natureza diferente das outras


categorias da produção a qual Saviani (2012c) denomina de “trabalho não-material” que
diz respeito a produção de valores, habilidades, produção de conhecimentos, ideias,
atitudes, símbolos, conceitos.

Podemos, pois, afirmar que a natureza da educação se esclarece a


partir daí. Exemplificando: se a educação não se reduz ao ensino, é
certo, entretanto, que ensino é educação e, como tal, participa da
natureza própria do fenômeno educativo. Assim, a atividade de
ensino, a aula, por exemplo, é alguma coisa que supõe, ao mesmo
tempo, a presença do professor e a presença do aluno. (idem, ibidem,
p. 12,13).


243

Decorre daí a especificidade da educação escolar “[...] trata-se do entendimento


de que a função da escola é transmitir os conhecimentos mais avançados produzidos e
acumulados pela humanidade [...]” (Scalcon, 2002, p. 04). Essa especificidade vai se
diferenciar das formas espontâneas de educação que ocorrem em outras instituições e
em outras atividades que apesar de ser dirigidas por fins, mas que não são de produzir
nos indivíduos humanidade.
Por isso o trabalho educativo constitui-se como o ato de produzir de forma direta
e intencional em cada indivíduo singular, a humanidade que é socialmente produzida,
culturalmente desenvolvida e historicamente acumulada pelo conjunto dos seres
humanos, sendo que o objetivo da educação diz respeito por um lado identificar os
elementos culturais que precisam ser apropriados pelos indivíduos da espécie humana
para que façam parte do gênero humano e por outro lado simultaneamente descubram os
meios mais adequados para atingir esse objetivo. (SAVIANI, 2008c).
Logo adentramos a partir da especificidade da educação em um dos pontos mais
polêmicos e importantes para educação escolar, que é a seleção dos conteúdos a qual
chamamos de currículo.

[...] currículo é o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela


escola. E por que isto? Porque, se tudo o que acontece na escola é
currículo, se se apaga a diferença entre curricular e extracurricular,
então tudo acaba adquirindo o mesmo peso; e abre-se o caminho para
toda sorte de tergiversações, inversões e confusões que terminam por
descaracterizar o trabalho escolar. Com isso, facilmente, o secundário
pode tomar o lugar daquilo que é principal, deslocando-se, em
consequência, para o âmbito do acessório aquelas atividades que
constituem a razão de ser da escola. (SAVIANI, 2008c, p. 16).

Malanchen, Muller e Santos (2012), afirmam que no Brasil os atuais debates na


área do currículo estão quase que totalmente centrados na perspectiva do pensamento
pós-moderno com ênfase em uma de suas variantes, o multiculturalismo.
O pensamento pós-moderno segundo Derisso (2010), efetivamente só representa
uma decadência da ideologia que no campo educacional tem comprometido a função
social da educação escolar. E todo esse ideário tem o intuito de esvaziamento da
educação escolar, um casuísmo que nega a possibilidade de conhecer a realidade
pulverizando o conceito de cultura.
Esses são os riscos encontrados para a formulação da BNCC, pois se não
definiRmos critérios para implementação da BNCC estaremos a mercê de todo tipo de


244

tergiversações como, por exemplo, a “galinha pintadinha” na educação infantil, a


“educação no transito” no ensino fundamental, as “gincanas” no ensino médio, como se
a educação escolar fosse o espaço para reprodução do senso comum, reprodução da
obviedade alienada do cotidiano.
Sendo assim entendemos que o conceito de clássico é imprescindível, pois o
conhecimento clássico é aquele que resistiu ao tempo. E se tratando de educação escolar
clássico é a transmissão/assimilação do saber sistematizado, se torna “[...] um clássico
para a humanidade se for um produto da prática social cujo valor ultrapassa as
singularidades das circunstâncias de sua origem.” (DUARTE, 2015, p.16).

[...] os clássicos não são lidos por dever ou por respeito mas só por
amor. Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça
bem ou mal um certo número de clássicos dentre os quais (ou em
relação aos quais) você poderá depois reconhecer os ‘seus clássicos’.
A escola é obrigada a dar-lhe instrumentos para efetuar essa opção
[...]. (CALVINO, 2007, p. 12-13).

Estes conhecimentos nos interessam, uma vez que todas as coisas não são
garantidas aos seres humanos pela natureza, devem ser produzidos historicamente pelos
próprios seres humanos inclusive os próprios seres humanos, pois o gênero humano não
é uma herança que vem no código genético, mas o gênero é produzido no processo
ininterrupto de “vir a ser” por meio da objetivação e apropriação. (DUARTE, 1999;
SAVIANI, 2008c).

No caso do relativismo os clássicos são negados inteiramente, como


mera expressão de concepções etnocêntricas e colonialistas, ou são
considerados como significativos apenas para uma cultura em
particular, perdendo total ou parcialmente seu valor em outras
referências culturais. No caso do dogmatismo, os clássicos são
definidos a partir de hierarquias de valor idealisticamente tomadas
como existentes em si mesmas, independentemente das circunstâncias
históricas. A pedagogia histórico-crítica situa-se na perspectiva de
superação tanto do relativismo quanto do dogmatismo e toma a luta
histórica pela emancipação do gênero humano como referência para
postular que a escola trabalhe com conteúdos clássicos no campo
científico, no artístico e no filosófico. (DUARTE, 2015, p. 18).

Sobre essa questão Lenin ainda em 1920 vivendo a primeira experiência de


transição ao socialismo foi categórico ao dizer que precisamos sim fazer críticas ao
formato da escola capitalista,


245

Mas, concluir que a partir disso, que é possível ser comunista sem ter
assimilado os conhecimentos acumulados pela humanidade, seria
cometer um erro grosseiro. Estaríamos equivocados se pensássemos
que basta saber as palavras de ordem comunistas, as conclusões da
ciência comunista, sem ter assimilado a soma de conhecimentos dos
quais o comunismo é consequência. O marxismo é um exemplo de
como o comunismo resultou da soma de conhecimentos adquiridos
pela humanidade. (LENIN, 2015, p. 17).

Por isso, entendemos que o Projeto Popular para Educação é a defesa de que a
escola pública brasileira esteja organizada para transmitir os conhecimentos mais
avançados produzidos e acumulados pela humanidade, sem, no entanto desconsiderar
sua capacidade criativa, lutando para construir uma força social que garanta ao povo
brasileiro um ensino de boa qualidade nas condições históricas atuais. Uma vez que o
domínio da cultura – rudimentos da ciência - é imprescindível para a participação
popular, ou melhor, para o exercício do poder, pois o povo brasileiro efetivamente só
terá dignidade e se libertará da exploração e da opressão cotidiana quanto mais dominar
aquilo que seus exploradores e opressores dominam.

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CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. – 1° ed. – São Paulo : Companhia das Letras, 2007.

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<http://books.scielo.org>.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

DA FORMAÇÃO À ATUAÇÃO DO PROFESSOR DE ARTES VISUAIS:


CONTRIBUIÇÕES PARA UMA PRÁTICA HISTÓRICO-CRÍTICA

Consuelo Alcioni Borba Duarte Schlichta (UFPR)1


Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva (UDESC)2

Resumo: As investigações do “Observatório da Formação de Professores de Artes Visuais”


norteiam as reflexões que se propõem neste trabalho sobre a práxis pedagógica nesta área,
circunscrita à pedagogia histórico-crítica. Nesse sentido, destaca-se o papel ativo do professor
de Arte na produção da humanidade no homem, como abordado por Saviani (2012). Para atingir
o objetivo aqui pretendido, apresentam-se: 1) dados extraídos das pesquisas realizadas pelo
observatório, de 2011 a 2015, expondo seus resultados na forma de crítica à formação alienada
de professores, ainda presente na concepção idealista de arte e seu ensino; 2) as contribuições
dessas investigações à superação da percepção ingênua em direção ao senso artístico; 3) e
sistematizam-se princípios inerentes à práxis do professor de Arte no projeto de educação
estética ou de emancipação dos sentidos humanos, em especial o da sensibilidade requerida na
produção-consumo da arte.

Palavras-chave: percepção ingênua; senso-artístico; humanização dos sentidos; subjetividade-


objetividade; observatório.

Introdução

A construção do “Observatório da Formação de Professores”, no âmbito do


ensino de Artes, iniciou-se em 2011 reunindo-se uma rede de pesquisadores
interessados no estudo das licenciaturas da área de Artes Visuais, estudo necessário,
naquele momento, em razão da inexistência de dados agrupados e publicados acerca das
licenciaturas em Artes Visuais no Brasil. No ano de 2012, com o último levantamento
do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixiera (INEP,
2014), os dados do senso apontavam 132 cursos responsáveis pela formação de
professores de Artes Visuais no Brasil. Registra-se que a criação dos cursos de
Educação Artística originou-se da reforma da Lei de Diretrizes e Bases da Educação


1
Universidade Federal do Paraná – UFPR, doutora, Paraná, Pr, Brasil. consuelo.ufpr@gmail.com
2
Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, doutora, Santa Catarina, SC. cristinaudesc@gmail.com


249

Nacional (LDBEN), de número 4.024, de 20 de dezembro de 1961 (BRASIL, 1961),


que ficou conhecida como a Lei n. 5.692, de 11 de agosto de 1971 (BRASIL, 1971).
Cabe frisar que, primeiro, criou-se a disciplina na rede escolar e, somente
depois, em 1973, é que se criou o primeiro curso para formar professores. Assim, a
partir de uma história recente, essa área vem lutando ao longo dos anos pelo
reconhecimento equivalente às outras áreas do conhecimento e de suas contribuições na
produção da humanidade no homem, por força de sua participação e resistência nas
lutas próprias da educação na concretude histórica em que se insere. Nesse cenário de
mudanças, de criação de cursos de licenciatura em todo Brasil, cujos modelos
apresentam grande variação, é que se reflete acerca das contribuições da pedagogia
histórico-crítica para a área de ensino de Arte. SAVIANI, 2009).
Os primeiros estudos realizados pelo observatório mapearam teses e dissertações
sobre o tema da formação de professores de Artes Visuais (HILLESHEIM, 2013),
eventos da área (FONSECA DA SILVA, 2015; FONSECA DA SILVA et al, 2014) e
periódicos (FRADE; ALVARENGA, 2015). Após delinear esse mapa amplo da
produção bibliográfica, identificaram-se cursos de graduação e pós-graduação,
presenciais e a distância, passando-se ao levantamento por estados, num longo e
extenuante movimento de pequenas passadas. Muitos desses estudos estão ainda em
andamento, outros tantos foram concluídos. Destacam-se, aqui, como aponta o relatório
de pesquisa, estudos recentes que analisam diferentes enfoques dos cursos de
licenciatura em Artes Visuais no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, na Região
Norte e na Região Nordeste.
Todos esses estudos, na forma de dissertações, teses e relatórios de pós-
doutorado, buscam pensar sobre as contribuições da pedagogia histórico-crítica, pois o
observatório compartilha da compreensão de que a formação, enquanto emancipação
humano-social, é dimensão sem a qual não se avança no projeto de educação socialista,
em geral, de educação em Arte, em particular, e de sua construção, perpassada pelas
lutas capital-trabalho. Saviani (2012, p. 80) aponta a necessidade da formação científica,
argumentando que, em seu “[...] modo de entender, tal compreensão será tanto mais
eficaz quanto mais o professor for capaz de compreender os vínculos de sua prática com
a prática social global”. Nessa abordagem, o autor defende a intrínseca articulação entre
os saberes de cada área, entre aquilo que o professor deve dominar e os conhecimentos
sociais que ele precisa encontrar, assim, aproximando-o – enquanto sujeito inserido no
movimento coletivo, pois social e histórico – da transformação das condições de sua


250

própria marginalidade, na forma de exclusão ou não-acesso aos bens materiais e


simbólicos produzidos por toda a humanidade.
Busca-se, aqui, uma incursão por sobre a obra de Demerval Saviani,
aproximando-a do campo da Arte e colocando-se uma pergunta inicial: é possível
extrair reflexões sobre a práxis do professor de Artes Visuais à luz da pedagogia
histórico crítica, concebida por seu autor no seio dos pressupostos teórico-
metodológicos do materialismo histórico-dialético?
Para responder a essa questão, destacam-se dois gestos do autor, carregados de
rigor conceitual e com boa dose de espírito inventivo, o que permite ainda deslindarem-
se as relações da sua obra com a esfera da produção artística e poética: o primeiro gesto
está representado pela escolha da pintura “Dois eruditos a conversar”, de Rembrandt
(1606-1669), para a nova capa do seu livro “Educação: do senso comum à consciência
filosófica”, em 2009, na sua 18ª edição revisada; o segundo está implícito na dedicatória
que abre o livro “A pedagogia no Brasil”, de 2012. Ambos constituem as bases sobre as
quais aqui se objetiva pensar acerca da contribuição desse autor na fundação das linhas
teórico-metodológicas de um projeto de ensino de Arte, com raízes no materialismo
histórico-dialético, que vem desenhando-se desde a década de 1980, no Brasil.
É importante salientar, ainda, dois pontos de referência: o alcance da obra de
Demerval Saviani e o lugar das autoras deste artigo na pesquisa, na produção e no
ensino da Arte. Demerval Saviani alcançou quatro décadas da educação no Brasil.
Aliás, as sucessivas edições de “Educação: do senso comum à consciência filosófica”
refutam qualquer dúvida sobre a acolhida dele pelo conjunto dos professores de ponta a
ponta do Brasil, incluindo-se, nesse rol, um significativo grupo de artistas,
pesquisadores e professores de Arte, tanto da educação básica quanto das universidades.
Em relação ao objetivo deste artigo, tomando-se a conexão entre a concepção histórico-
crítica e o materialismo histórico-dialético, implícita no ver-saber de Saviani como
produção de toda a história da humanidade, e, ainda, a reflexão filosófica como
necessária ao professor de Arte, pretende-se, aqui, tratar sobre a dupla finalidade da
Arte, quais sejam: 1) a satisfação da necessidade de expressão de alguém, seu criador; e
2) a satisfação daquele que se apropria da criação artística, na forma de produção
qualificada de consumo ou de produção de novos significados. De acordo com Vázquez
(1978, p. 264), “[...] o artista expressa por necessidade e, também por necessidade, sua
expressão, uma vez objetivada, deve ser compartilhada”.


251

Saviani (2009) se apropria dos significados do quadro de Rembrandt, revifica-os


ao (re)vesti-los na concepção de educação materializada no livro, conforme esclarece na
sua introdução. Ora, a pintura “Dois eruditos a conversar” evidencia o ver-saber dele,
construído 1) no interior da concepção de história como um guia para o exame, desde a
gênese até o desenvolvimento das condições sociais que engendram a sociedade
burguesa, e 2) no seu interior, com “[...] as ideias políticas, jurídicas, estéticas,
filosóficas, religiosas etc. que lhes correspondem”. (MARX; ENGELS, 2010, p. 107).
Entende-se que Saviani (2009) tenha recorrido ao quadro de Rembrandt para
fazer com que se veja que ele cultiva a erudição, porém, subordina-a “[...] ao objetivo de
dar conta das questões concretas postas pela prática histórica.” E considera-se que isso
ele o faça de forma notável. (SAVIANI, 2009, p. xvii).
No entanto, Saviani (2012) vai além, como comprova sua dedicatória em “A
Pedagogia no Brasil” àqueles que se entregam ao projeto de educação no Brasil: “Aos
pedagogos e estudantes de pedagogia que, contra a maré montante de tantas profissões
glamorosas, não perderam o fascínio por este que é o mais apaixonante de todos os
ofícios: produzir a humanidade no homem”. Embora não acrescente nada ao sólido
conteúdo do livro e, aos menos avisados, pareça apenas uma dedicatória, nada em sua
postura, por que filosófica, é casual.
Saviani (2012) vale-se de um gesto sensível para chamar a atenção daqueles que
se dirigem a uma de suas principais teses: a da superação do senso comum em direção à
consciência filosófica, que está na origem da concepção histórico-crítica e de seu
objetivo principal, qual seja, a realização da humanidade no homem, na prática.

1 A arte como trabalho criador e a dimensão artística no currículo escolar


Saviani (2009, p. 4) leva seu leitor à lógica dialética (lógica concreta), como
“[...] processo de construção do concreto de pensamento [...]”, elaborada a partir da
crítica à lógica formal (lógica abstrata): “[...] processo de construção da forma de
pensamento”. A tese central dele, fundada em Marx (1973) e no método explicitado na
obra “Contribuição para a crítica da economia política”, é a de que “[...] não se elabora
uma concepção sem método; e não se atinge a coerência sem lógica [...]”. (SAVIANI,
2009, p. 4).
O concreto real é o ponto de partida, enquanto que o concreto pensado é o ponto
de chegada. “Assim, o verdadeiro ponto de partida, bem como o verdadeiro ponto de


252

chegada, é o concreto real [...]”. Isso significa que o positivismo ou o empirismo


confundem o concreto com o empírico. Por isso, a crítica realizada por Saviani (2009) à
indistinção entre concreto empírico, concreto real e concreto pensado contribui,
sobremaneira, para a compreensão do processo ensino-aprendizagem da Arte sob a
perspectiva do materialismo histórico-dialético. (SAVIANI, 2009, p. 5).
Dos seus esclarecimentos sobre o processo de conhecimento na lógica dialética,
pode-se extrair uma concepção de conhecimento como práxis, ato, oposta à
compreensão idealista de conhecimento como fato. Nessa linha, a partir de uma
determinada concepção de trabalho, enquanto fonte de riqueza e miséria humanas,
Saviani (2009) contribui para uma compreensão crítica sobre a dimensão artística no
currículo escolar, entendendo-a como exercício exclusivamente humano de trabalho
criador. Na esteira da perspectiva do materialismo histórico-dialético, trata-se, aqui, da
distinção entre trabalho criador e trabalho alienado.
Só assim pode-se evidenciar os porquês da hostilidade do capital à arte e as
restrições impostas ao seu acesso, que se materializam no reduzido número de horas-
aula de arte na escola e na ênfase dada à Arte como forma de expressão, portanto, como
linguagem, embora haja sabidamente desconsideração das especificidades que
envolvem as Artes Visuais, como a Dança, a Música e o Teatro. Inclusive, sob o
pretexto de garantirem-se os direitos de aprendizagem dos alunos, quase sempre se
exige que um único professor trabalhe com as quatro linguagens, independente de sua
formação. Também se podem evidenciar as particularidades da Arte e do conhecimento
artístico, o que leva aos objetivos da Arte na escola, consequentemente, ao que se valora
conforme a concretude histórica de lugar e tempo. Em outras palavras, à sociedade de
hoje: o modelo capitalista, “[...] uma totalidade articulada, construída e em construção
[...]”. (SAVIANI, 2009, p. 5).
Entender, pois, na lógica dialética, a Arte como forma exclusivamente humana
de trabalho criador é o primeiro passo para a desconstrução da crítica restrita ao
professor ou à escola, na crença de que as mudanças nascem na consciência do
professor e que ele tudo pode, e de que a crise é apenas da escola ou, ainda, de que as
dificuldades dos alunos têm origem na distância entre o currículo e as necessidades e
interesses do aluno. Muitas vezes, como presas fáceis desse tipo de discurso,
simplesmente arrolam-se os direitos de aprendizagem, esquecendo-se dos deveres do
Estado e de que o projeto político-pedagógico de ensino de Arte “[...] não se esgota no
interior da sala de aula e na relação interindividual [...]”. (SAVIANI, 2009, p. xviii).


253

Por conseguinte, assumindo uma postura dialética, isto é, sem negar seus
determinantes ou o movimento histórico que lhe é inerente, volta-se à compreensão das
contradições vívidas inerentes à sala de aula e à escola. Nesse sentido, a escuta das
críticas dos professores é vital. Situando suas falas, é preciso esclarecer que essas
entrevistas foram realizadas ao longo de 2014 e início de 2015 como atividade de
pesquisa do “Observatório da Formação de Professores no âmbito do ensino de Arte:
estudos comparados entre Brasil e Argentina”.
Um conjunto de professores, egressos de uma licenciatura em Artes Visuais foi
entrevistado e acompanhado em seu dia a dia com o objetivo de compreender-se como o
aluno, egresso do curso de licenciatura das universidades pesquisadas, vem se
constituindo enquanto professor de Arte e quais problemas esse aluno ressaltaria. Ao
extrair a concepção de Arte recorrente no seu discurso, problematizou-se a seguinte
questão: essa compreensão da Arte que se espraia na prática é a base teórico-
metodológica do processo ensino-aprendizagem?
O materialismo histórico-dialético, como base epistemólogica das pesquisas do
observatório, indicou o caminho da compreensão relativamente à formação-atuação, tal
como propõe Kosik (1976); sobretudo, evidenciou que o concreto histórico é prenhe de
contradições. Após a análise das entrevistas, chamou a atenção, em primeiro lugar e
especialmente, a divisão arte-ciência, fundada na visão de que a primeira pertence ao
campo do mistério, do prazer, da emoção e da criação, enquanto que a segunda pertence
ao campo da razão, do rigor, do pensar e do lugar do trabalho. Segundo, após a análise,
apreendeu-se uma evidente confusão entre objetivos da educação em geral e da Arte em
particular, ou seja, o objetivo (desenvolver a criatividade) cede lugar ao
desenvolvimento da consciência crítica, como tarefa principal da Arte, que se estende ao
seu ensino. Terceiro, após a análise das entrevistas, é cabal a indefinição da
especificidade do conhecimento artístico-científico, a subordinação dos conteúdos às
técnicas, ao como fazer, aos materiais e instrumentos da Arte. Em quarto lugar, a
dicotomia subjetividade-objetividade explicita-se, sobretudo, na oposição pensar e agir.
Nesse caso, é exemplar uma dúvida que foi colocada por uma das professoras
entrevistadas: aceitar ou resistir à exigência de que o professor de Arte tenha que
trabalhar com todas as linguagens? Ela diz: “[...] as quatro linguagens não são um
cabresto, mas se eu não dispuser todos estes conteúdos aos alunos, quem mostrará?”.
Embora as vicissitudes, sua fala demonstra que, imbuída de toda boa vontade – por
vezes, colocada acima de seu conhecimento das quatro linguagens –, sente-se a única


254

responsável pelo compromisso com o processo ensino-aprendizagem de sua turma.


Evidencia-se, aqui, que o discurso, que tudo aposta nos direitos de aprendizagem, está
sendo assimilado, bem como utilizado como pretexto de qualificação do professor.
Sensíveis ao problema, os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2001)
já apontavam para as dificuldades enfrentadas pelo professor de Arte, defendendo sua
qualificação, como se verifica no seguinte argumento:

Sem uma consciência clara de sua função e sem uma fundamentação


consistente de arte como área de conhecimento com conteúdos
específicos, os professores não conseguem formular um quadro de
referências conceituais e metodológicas para alicerçar sua ação
pedagógica [...]. (BRASIL, 2001, p. 32, grifo nosso).

Daí, extraem-se quatro eixos que orientam o projeto de qualificação do


professor, desenhado na primeira década do século XX, quais sejam: 1)
desenvolvimento da consciência clara do professor; 2) fundamentação consistente de
Arte; 3) compreensão da Arte como área de conhecimento com conteúdos específicos; e
4) fundamentação teórico-metodológica basilar à ação pedagógica. Veja-se, pois, em
primeiro lugar, que modelo de formação nas licenciaturas foi predominante. Depois, a
partir da análise crítica sobre esse modelo proposto, de fato, naquela época, deve-se
então problematizar: o que mudou?

2 A formação nas licenciaturas de Artes: um modelo predominante de


esvaziamento da formação

A expansão das licencianturas em Artes Visuais no Brasil, como já apontado


anteriormente, chamada de Educação Artística, disciplina criada no final de década de
1970, contexto do governo militar, no primeiro momento, pretendeu formar professores
a partir de um viés interessado na inserção da manualidade no contexto escolar, que
remete a uma concepção de Arte como ofício ou como técnica, em que se exaltava seu
“[...] aspecto executivo, manual (PAREYSON, 1984, p. 29). Essa concepção de trabalho
como “[...] atividade prática humana no sentido estritamenrte utilitário e pejorativo [...]”
(VÁZQUEZ, 1977, p. 4) mantém vestígos na compreensão de Arte e seu entendimento
ainda hoje. Nessa linha, a reforma proposta na Lei n. 5.692/71 (BRASIL, 1971) também


255

traz elementos da concepção de Arte como expressão, extraída das teorias que a
concebem como linguagem.
Assim, a Educação Artística, como lugar da livre expressão, filiou-se, de um
lado, à ideia de que a Arte “[...] obedece a leis misteriosas e quase sagradas, baseadas no
dom gratuito, inato, fortuito [...] [e, de outro, consequentemente, de que a Arte é um]
[...] mundo hermeticamente fechado[...]”, só aberto àqueles que têm tempo livre,
obviamente, não distribuído por igual no contexto da sociedade capitalista. (PORCHER,
1982, p. 14).
Assim, o ensino da Arte configurou-se como o espaço do espontâneo, da
sensibilidade imediata, como um momento em que o aluno poderia relaxar, desligar-se
da seriedade das disciplinas da matriz curricular, que exigem aprendizado, disciplina e
trabalho. Analisando a Lei n. 5.692/71 observou-se que “[…] também instituiu a
polivalência sob o princípio de que o professor de artes deveria ser um generalista e não
um especialista em cada linguagem artística [...]”, conforme dados do Relatório de
Pesquisa do Observatório, de 2014.
Como consequência do modelo descrito, a área de artes evidencia um conjunto
de fragilidades na formação de professores, sendo que algumas delas não foram
rompidas até os dias de hoje: a polivalência na formação e na atuação, bem como uma
inserção igualitária no currículo escolar, a última, uma bandeira defendida pela
Federação de Arte Educadores desde sua criação, em 19873. Nessa linha, a falta de
professores específicos de artes nas escolas para ensinar, assim como uma carga horária
pequena na matriz escolar, colaborou para a implementação de duas tendências: uma
que pendeu para a perspectiva do ensino tecnicista, com ênfase no aprendizado e no
exercício das técnicas; e outra pendendo para o ensino escolanovista, fundado na
atividade da livre expressão.
A fragilidade da formação dispensada nas licenciaturas, pois não havia ainda
formação de formadores, a carência de pós-graduação na área e de estudos mais
específicos da realidade brasileira e suas relações com o ensino de Arte deixaram
brechas para uma formação especialmente fragmentada na licenciatura em Educação
Artística, alvo fácil de um discurso pedagógico carente de maior cientificidade e

3
A Federação dos Arte-Educadores do Brasil (FAEB), em diferentes momentos da história do ensino de
Arte, foi fundamental na defesa da manutenção da disciplina na escola e também na ampliação de uma
formação de qualidade.


256

baseado na tendência generalizada de dicotomizar a crise. Assim, vê-se a crise da


escola, da formação etc., apartadas da crise que é social.
Os debates sobre os problemas que perpassam a formação docente,
compreendidos sob a pespectiva do materialismo histórico-dialético, também se põem
vigorosos no interior da pós-graduação e no movimento sistemático dos arte-educadores
a partir de 1990 através da Federação dos Arte-Educadores do Brasil (FAEB). Com
atenção voltada à formação, no concreto histórico em que estava inserida, um conjuto
de professores-perquisadores em Arte e seu ensino, ao qual os pesquisadores do
observatório se filiaram, estabeleceu um forte combate à polivalência pari passu à
construção de seus fundamentos teórico-metodológicos, conforme concepção histórico-
crítica e sua matriz: o materialismo histórico-dialético.
Nos anos atuais, o retrato da formação em Artes evidencia diferenças: conta-se
com mais de 40 cursos de pós-graduação específicos e, em relação aos cursos de
graduação, o quadro ampliou-se e a distribuição de cursos, hoje, concentra-se mais na
área urbana, principalmente com cursos em universidades públicas. Buscando dar
melhor visibilidade à questão, detalham-se os dados numéricos da distribuição dos
cursos e suas diferentes nomenclaraturas, totalizando 132 cursos, segundo Fonseca da
Silva, Alvarenga e Pera (2014), participantes do projeto “Observatório”.
Dados do observatório, coletados em Santa Catarina, apontam que, em quatro
dos questionários desenvolvidos com coordenadores de cursos de licenciaturas,
evidencia-se que as principais reformulações no currículo dos cursos catarinenses
aconteceram com a mudança da nomenclatura dos cursos para Licenciatura em Artes
Visuais no lugar da Educação Artística. Outras reformas aconteceram motivadas pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de graduação criadas em 2009, da mesma
forma que se observou reminiscências da polivalência no ensino catarinense, conforme
dados do relatório de pesquisa de 2014. Embora essas características não sejam
privilégio de Santa Catarina, observa-se que a existência de um único curso público de
formação de professores de Artes Visuais faz com que a opção dos estudantes seja a
rede fundacional (universidades públicas, criadas pelo município e que cobram
mensalidades) e também instituições privadas. A pequena oferta de cursos públicos e
gratuitos é uma problemática bastante preocupante, pois o modelo fundacional tem
fechado a oferta de cursos a cada ano tendo em vista a drástica redução do número de
interessados. A consequência (se as mensalidades concorrerem com a oferta na
modalidade a distância – EAD – e se a profissão já não é tão atrativa) é a seguinte: se


257

for para pagar mensalidades, é melhor buscar cursos que prometam um retorno
profissional maior.
Nas primeiras décadas do século XXI encontram-se as licenciaturas em Artes
lutando por um lugar na escola, mas é somente nos dias atuais que a polivalência na
formação, pelo menos na forma da lei, é derrotada, com a aprovação da Lei n. 13.278,
de 2 de maio de 2016 (BRASIL, 2016), que reformula a LDB n. 9.394/96 e determina,
em seu parágrafo sexto, que “As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as
linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2o deste artigo”.
Ainda, ressalta a referida lei que os Estados têm cinco anos para contratarem
professores suficientes para adequarem-se ao novo contexto. Evidentemente, a lei se
refere às instituições formadoras, enfatizando-se a necessidade da formação específica
do aluno da licenciatura, o que já ocorre na maioria das instituições formadoras. O que
ainda não ocorre é concurso específico nos estados e municípios. Além disso, as novas
políticas públicas, de modo geral e crescente, ainda mantêm a formação de modo
emergencial e com ênfase na modalidade EAD.
Saviani (2014), ao analisar a ampliação da oferta de ensino, praticamente
universalizado no decorrer do século XX, faz uma ressalva: as universidades são
responsabilizadas pela falta de qualidade na formação de professores. Essa visão
simplista que o autor denuncia minimiza o papel do Estado como o provedor das
condições necessárias para a oferta do ensino de qualidade na rede pública. Afinal, a
expansão requer financiamento sistemático para a manutenção, assim como para a
necessária ampliação da demanda no aspecto estrutural das redes de ensino (prédios,
equipamentos, materiais), como também da demanda salarial, intrínseca à qualificação,
especialmente na ampliação do acesso dos professores à pós-graduação.
Mas a questão extrapola a oferta de ampliação de vagas, trazendo à luz outras
questões pertinentes, como: que modelos de formação de professores consolidaram-se?;
quais são seus limites e como superá-los? Saviani (2014), nesse caso, esclarece que dois
modelos históricos de formação consolidaram-se, respondendo às necessidade de
formação de professores, neste caso, às demandas dos cursos de licenciatura em Artes
Visuais. No primeiro modelo, o autor aponta que a formação se esgota no domínio dos
conteúdos específicos da área de conhecimento que, neste caso, são extraídos dos
conhecimentos relativos à produção, circulação e consumo das Artes. Dessa abordagem,
deriva a concepção de que o modelo pedagógico de ensino da Arte deriva do campo da
produção artística ou que uma formação em serviço possibilitará a aprendizagem do


258

fazer pedagógico. Este modelo o autor denomina de “[...] modelo dos conteúdos
culturais-cognitivos de formação de professores”. (SAVIANI, 2014, p. 64).
No segundo modelo, a formação de professores se conclui com a formação
pedagógica. Assim, além dos conteúdos de formação geral, os específicos da área de
conhecimento fazem-se necessários à formação didático-pedagógica. A este modelo,
denomina-se “[...] modelo pedagógico-didático de formação de professores”
.(SAVIANI, 2014, p. 65).
Na continuidade de sua análise, o autor aponta que, desde a década de 1930,
progressivamente, há uma inserção da formação pedagógica, mas que, até o momento,
essa formação também não se consolidou. Seguindo sua linha de raciocínio, o autor
aponta um conjunto de legislações responsáveis por organizar a formação de educadores
no Brasil e sistematiza quatro dilemas em que os documentos encontram-se enredados.
O primeiro, diz respeito ao diagnóstico “relativamente adequado” sobre a realidade
educacional brasileira, mas que se desdobra em situações pouco satisfatórias para a
resolução do problema. Já o segundo dilema, no dizer do autor, aponta que “Os textos
dos pareceres mostram-se excessivos no acessório e muito restritos no essencial [...]”.
(SAVIANI, 2014, p. 67).
Na correlação de forças que aparecem no processo de disputa pelos documentos,
como diz o autor, evidencia-se “[...] o espírito dos chamados novos paradigmas que vêm
prevalecendo na cultura contemporânea, em geral, e na educação, em particular [...]”.
Ele conclui sua análise acerca desse segundo dilema argumentando que a legislação se
dedica muito ao acessório e pouco ao essencial, ou seja, a distribuição dos saberes
socialmente construídos é relegada a segundo plano. (SAVIANI, 2014, p. 68).
Como terceiro dilema, ele coloca o professor em relação à noção de competência
versus incompetência, de superação de sua condição de incapacidade formativa.
Ressalta o modelo de competências e suas relações com a psicologia behaviorista,
focada nos objetivos operacionais. Observa-se que o discurso das competências, trazido
à atualidade através da legislação, é uma herança do modelo de gestão administrativa,
presente na abordagem tecnicista.
Saviani (2014) insere nesse terceiro dilema a intervenção do construtivismo
piagetiano para superar o condutivismo da pedagogia das competências, bem como seus
desdobramentos para o neoconstrutivismo. Em relação ao construtivimo piagetiano,
Ramos (2003, p. 94) explica que a perspectiva que unifica o neoconstrutivismo com o
neopragmatismo substitui o conhecimento ontológico pelo conhecimento experiencial.


259

Abrindo mão de uma visão dialética de abordagem da práxis educativa, substituem-se as


competência cognitivas por competências afetivo-emocionais.
Segundo Saviani (2014, p. 69), “[...] essa redução da competência aos
mecanismos adaptativos restritos à cotidianidade redunda numa extrema incompetência
dos novos docentes para lidar com a complexidade da tarefa pedagógica [...]”. O
esvaziamento dos conteúdos das licenciaturas e sua ênfase nos aspectos afetivo-
cognitivos em detrimentos dos cognitivos e dissociados da realidade social produzem
um olhar compartimentado do todo social, jogando-se sobre o sujeito a responsabilidade
pelo processo pedagógico.
Um quarto dilema, proposto por Saviani (2014), diz respeito à relação entre
formação técnica e formação do professor culto, outra dicotomia intrínseca à concepção
neoliberal de educação. O viés econômico, conforme argumenta, é o fator
potencializador de uma formação técnica mais econômica, ou seja, abrindo-se mão de
uma formação do professor alicerçada na positividade da erudição.
Formar para a prática imediata é um viés presente nos cursos de licenciatura e na
literatura pós-moderna que cerca o ensino da Arte. Nesse sentido, ao analisar as
bibliografias de determinados cursos de licenciatura em Artes Visuais, Soares (2009)
destaca o viés pragmático que direciona a formação para a atuação imediata. Saviani
(2014, p. 69) descreve esse cenário da seguinte forma: “[...] o professor técnico é aquele
capaz de entrar numa sala de aula e, aplicando regras relativas à conduta e aos
conhecimentos a serem transmitidos, se desempenhar a contento diante dos alunos.” Por
outro lado, ao descrever o professor culto, apresenta-o como aquele que domina, para
além de sua prática imediata, os fundamentos histórico-filosóficos e que é capaz de
compreender as relações sociais que envolvem o seu tempo e o papel que desempenha
nessa realidade.
Finalmente, o quinto dilema diz respeito à dicotomia entre os dois modelos de
formação: o cultural-cognitivo e o pedagógico-didático. Voltando sua análise para os
pareceres que propõem os documentos para a formação, Saviani (2014) evidencia que
estes reconhecem a dicotomia instaurada, mas que os encaminhamentos para a
superação colocam-se ineficazes. O conjunto de dilemas apontados por Saviani (2014)
auxiliam na reflexão sobre a grandeza da tarefa destinada àqueles que se filiam às ideias
da pedagogia histórico-crítica, buscando formas de garantir a distribuição de
conhecimentos numa abordagem crítica, tendo em vista seu fim: ampliar as formas
contra-hegemônicas de dominação no âmbito da educação.


260

Considerações finais

Uma análise histórica sobre o ensino da Arte – e os dados de pesquisa do


observatório – revela um discurso que tudo aposta na necessidade da consciência clara
do professor, que acredita que o professor tudo pode, que a vontade e o querer do
professor são superiores aos fatos ou que ele seja capaz de alterá-los independentemente
das condições históricas de sua existência. Ora, ninguém, incluindo-se aí o professor de
Arte, existe à margem das relações sociais de produção da existência. Na verdade, a
consciência e a subjetividade do professor, desde o processo de sua formação até a sua
atuação no ensino-aprendizagem da Arte, são afetadas pelos efeitos da degradação das
relações sociais e humanas. A divisão do trabalho tem consequências drásticas na vida
de todos, pois leva, também, à divisão do homem, o que significa dizer que todas as
suas potencialidades intelectuais e físicas são sacrificadas, cabendo aos trabalhadores
em geral a realização de uma única atividade: a venda de sua força de trabalho. É o que
se entende como alienação do ser humano genérico, segundo Mészáros (2006, p. 20), de
“[...] seu ser como membro de espécie humana [...]” e em relação aos outros homens.
A escola se insere nesse quadro geral de contradições, portanto, contrariando os
discursos que culpam o professor ou que explicam a causa dos males que afligem a
educação em Arte pela sua falta de consciência. Cabe lembrar que, por mais bem
intencionados que sejam os discursos, nada se resolverá no nível das boas intenções ou
da consciência ingênua.
Acrescente-se ainda a necessidade de esclarecer: afinal, de que consciência
crítica se está falando? No campo do ensino da Arte, trata-se da “[...] percepção
propriamente estética [...]”, um sentido que se tornou historicamente mais humano e que
“[...] distingue-se da percepção ingênua e, portanto, não-específica da obra de arte [...]”
(BOURDIEU, 1999, p. 283). Para este autor, enquanto a percepção ingênua vê, no
quadro de Rembrandt, apenas dois velhos a conversarem, a percepção propriamente
estética guia-se pela maneira particular ou pelo estilo de Rembrandt, como modo de
representação, ou seja, “[...] modo de percepção, de pensamento e de captação próprio
de uma época, de uma classe, de uma fração de classe ou de um agrupamento artístico
[...]” (BOURDIEU, 1999, p. 283).
Na sua visão, a percepção é uma “[...] aptidão para receber e decifrar as
características propriamente estilísticas [...]” (BOURDIEU, 1999, p. 283), uma
competência artística adquirida por meio de conhecimento resultante da familiarização


261

artística e cultural. Nesse sentido, voltando aos princípios inerentes a práxis do


professor de Arte, no projeto de educação estética ou de emancipação dos sentidos
humanos, em especial a sensibilidade requerida na produção-consumo da Arte, conclui-
se que, ao professor, é fundamental: 1) ocupar-se da Arte, quer em seu processo de
formação, quer no processo ensino-aprendizagem dela; 2) apropriar-se da Arte como
atividade humana específica, situada num determinado contexto histórico e artístico, e o
processo de formação dos sentidos humanos, inseparável do processo de criação de
objetos humanos; 3) participar do projeto político-pedagógico de produção da
humanidade no homem, em particular de emancipação de todos os sentidos e atributos
humanos, que é, sobretudo, “[...] uma reabilitação dos sentidos e seu resgate da posição
inferior atribuída a eles pela distorção idealista. Isso pode ser feito porque eles não são
apenas sentidos, mas sentidos humanos [...]” (MÉZSÁROS, 2006, p. 182).
Pode-se deduzir, nesse sentido, que a educação estética exige também um
profundo conhecimento do humano, fundamental à compreensão da Arte e seu ensino
no projeto de realização do ser humano na imensa variedade e riqueza de seus sentidos e
de superação da satisfação limitada e unilateral inerente à sociedade capitalista. Filia-se,
consequentemente, ao projeto histórico e social socialista de produção da humanidade
no homem, incluindo-se aí a humanização e refinamento de todos os seus sentidos,
requeridos na posse da produção artística e cultural da humanidade, que pertence a
todos e a todos deve voltar.

Referências

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262

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______; BUJÁN, Federico; RIZZI, M. C. S. L.; FRADE, I. Observatório da formação de


professores de Artes: diálogos entre Brasil e Argentina. In: XXII Congresso da Federação dos
Arte Educadores do Brasil: Arte/Educação: corpos em trânsito. São Paulo – SP, 2012. Anais ...
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DADALTO, Maria Gorete; REBOUÇAS, Moema Martins (Org.). Educação em Arte na
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SAVIANI, D. O Lunar de Sepé: paixão, dilemas e perspectivas na educação. Campinas:
Autores Associados, 2014.

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______. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 18. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, 2009.

VÁZQUEZ, A. S. Filosofia da práxis. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

EDUCAÇÃO ESTÉTICA E CIENTÍFICA MEDIADA PELAS OBRAS DE ARTE


DO ACERVO DO IFES: APROXIMAÇÕES COM A
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Thiago Zanotti Pancieri (IFES)


Priscila de Souza Chisté (IFES)

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar parte da pesquisa de mestrado que visa analisar
obras de arte do acervo do Instituto Federal do Espírito Santo como modo de favorecer a
Educação Estética e Científica de alunos. Para tanto, aproxima-se dos aspectos metodológicos
da Pedagogia Histórico-Crítica como forma de propor práticas pedagógicas realizadas durante a
pesquisa. Para sistematizar essas aproximações, aponta as convergências entre o pensamento de
Dermeval Saviani com a Educação Estética em Marx e Vigotski, a partir dos estudos de Chisté
(2013); com a Educação Científica nos estudos de Vale (2005); e com a leitura de imagens nas
pesquisas de Foerste (2004) e Schlichta (2006). Conclui que o contato com as obras de arte
apresentadas durante essa intervenção e as reflexões sobre suas leituras, mediadas pelo
professor, possibilitam a apropriação do conhecimento artístico e científico em suas formas
mais elaboradas e contribuem para a formação omnilateral dos alunos.

Palavras-chave: Educação Estética; Educação Científica; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

Nesse artigo apresentaremos recorte de uma pesquisa de Mestrado no Programa


de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Estado do Espírito Santo (IFES) que visa analisar
possíveis relações das obras de arte do acervo dessa instituição com o conhecimento
científico, de modo a favorecer a Educação Estética e Científica de alunos. Nesse
contexto, pretendemos analisar práticas de ensino que discutem relações entre Arte e
Ciência e, de modo mais especifico, discorreremos sobre o primeiro dia da intervenção1
pedagógica que precede outros que terão como objetivo o conhecimento científico e
artístico de tal acervo. Isso se justifica, pois consideramos necessário promover


1
A intervenção, na perspectiva deste trabalho, é concebida como mudança no processo, transformação,
ressignificação dos pesquisados e do pesquisador, ação mediada e compreensão ativa. Dessa maneira,
pesquisador e pesquisado constituem-se como sujeitos em interação que participam ativamente da
pesquisa, convertida em espaço dialógico, no qual todos têm voz e vez. (FREITAS, 2009).


264

discussões sobre essas duas áreas do conhecimento humano antes de entender de forma
mais específica o objeto da pesquisa.
Tendo em vista a necessidade de se compreender aspectos relacionados à
metodologia de ensino, pretendemos sistematizar essas relações a partir dos
pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica, desenvolvidos nos estudos de Dermeval
Saviani, aproximando as propostas de Educação Estética e Científica a esses
pressupostos, mediadas pela ação do professor por meio da leitura de imagens.
Para isso, apresentaremos a Educação Estética relacionando-a a Pedagogia
Histórico-Crítica, a partir dos estudos que oportunizam a reflexão crítica e a
transformação social por meio da Experiência Estética (CHISTÉ, 2013), bem como as
pesquisas sobre Educação Científica que colocam as práticas sociais como
direcionadoras do ensino. (VALE, 2005).
Quanto à leitura de imagens, conduziremos a reflexão com o foco na superação e
transformação da visão alienante por meio das obras de arte analisadas de forma crítica
e sensível (FOERSTE, 2004; SCHLICHTA, 2006). Recorreremos também à proposta
de leitura lenta apresentada por Vigotski, ampliando a leitura da imagem por meio do
conhecimento do contexto histórico, do universo do artista (o contexto de produção da
obra, as referências e influências do artista, seus gostos e histórias) e dos intertextos
relacionados à imagem lida. (CHISTÉ, 2013).
De modo a organizar o artigo, na primeira seção “Educação Estética e Científica
na perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica”, explicitaremos possibilidades de
favorecer a Educação Estética e Científica por meio da leitura de imagens, a partir das
aproximações com os pressupostos da Pedagogia Histórico-Crítica. Em seguida, na
seção “Relato da intervenção realizada” exemplificaremos parte de nossa intervenção
pedagógica, a partir dos momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-Crítica.
Esperamos que este texto contribua com as discussões relacionadas com a
interface Ciência e Arte sob a luz da Pedagogia Histórico-Crítica, fato que
consideramos, após realizarmos revisão de literatura, pouco recorrente nas pesquisas
brasileiras.

1 Educação Estética e Científica na perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica

A Pedagogia Histórico-Crítica, sistematizada e desenvolvida pelo professor


Dermeval Saviani e seus seguidores, tem como fundamento o materialismo histórico-


265

dialético, ao compreender “a questão educacional a partir do desenvolvimento histórico


objetivo”, pressupondo que a atividade e o desenvolvimento humano estejam
vinculados às bases históricas e sociais. Nessa abordagem, “a educação também
interfere sobre a sociedade, podendo inclusive, contribuir para a sua própria
transformação” (SAVIANI, 1989, p. 23-26).
Desse modo, a educação é incluída na prática social e histórica como integrante
do processo de humanização. É a prática social, entendida como a forma como estão
sintetizadas as relações sociais em um determinado momento histórico, que direciona os
processos pedagógicos, possibilitando aos alunos, pela mediação do professor e dos
signos, se apropriarem dos conhecimentos científicos e artísticos em suas formas mais
elaboradas, com o objetivo de transformação e superação de uma estrutura social
alienante.
Seguindo os mesmos pressupostos, consideramos que a Educação Estética seja
um modo especial de formação dos sentidos e dos gostos que possibilite o princípio
criador em todas as atividades humanas e que contribua com a formação crítica de
identidades, subjetividades e alteridades, ampliando, por meio da leitura de imagens, o
olhar do sujeito sobre o mundo, a natureza e a cultura, e diversificando suas vivências
sensíveis.

Uma Educação Estética que possa estimular outras necessidades


e interesses, que promova outras buscas no sentido de
transformação daquilo que é oferecido pelas mídias, por
exemplo, por meio do estranhamento e da inversão do olhar que
permita e que busque intensamente a ação criadora. (CHISTÉ,
2013, p. 299-300).

Dialogando com essas perspectivas, a Educação Científica, da forma como a


concebemos, também coloca as práticas sociais e a reflexão crítica como direcionadoras
do ensino. Nessa proposta, apresentada por Vale (2005), o ensino da ciência considera a
realidade social como inspiradora dos conteúdos científicos. As ideias do autor são
apoiadas, principalmente, nos pressupostos de Dermeval Saviani ao considerar a
Educação Científica inserida no contexto da educação pública e como forma de
estimular a curiosidade e o espírito científico, por meio de atividades operativas e
construtivas de experimentação, investigação e observação dos fenômenos científicos e
as suas possíveis relações com a sociedade e o com mundo, sempre de forma crítica e
questionadora.


266

Consideramos a interação entre Educação Estética e Científica a partir da


perspectiva discutida por Rosenthal (1989), direcionada para uma abordagem de ensino
da ciência de natureza humanística. Nessa proposta são discutidos os “aspectos
estéticos, criativos e culturais da atividade científica, os efeitos do desenvolvimento
científico sobre a literatura e as artes, e a influência das humanidades na ciência e
tecnologia”. (SANTOS; MORTIMER, 2000, p. 116).
Nesse contexto, as práticas educativas tendo como mediadora a arte, aliada à
proposta de leitura de imagens, apresentam-se como novas possibilidades para a
Educação Estética e Científica. Guiados pelo entendimento marxiano, as possibilidades
de conexão entre Arte e Ciência se aprofundam, já que as percepções sensíveis
potencializadas pela Educação Estética devem ser a base para a Ciência, bem como para
todas as outras áreas de conhecimento. A experiência estética oportuniza a reflexão
crítica e "[...] é fundamental para colaborar com a transformação das estruturas
alienantes, proporcionando uma nova atitude diante dos acontecimentos cotidianos".
(CHISTÉ, 2015, p. 58).
O entendimento da arte como mediação reforça as aproximações com o
conhecimento científico. Por meio das mediações é possível entender as obras de arte
inseridas nos processos econômicos, políticos e, especificamente, científicos. A
mediação, nessa perspectiva, orienta-se pela proposta de Vigotski sendo “interposição
que provoca transformações, encerra intencionalidade socialmente construída e
promove desenvolvimento”, tornando-se ação essencial do professor. (CHISTÉ, 2013;
MARTINS, 2012, p. 3).
Uma das mediações que envolve ação docente refere-se à leitura de imagens
capaz de promover análise crítica da obra de arte indo além de seus aspectos formais,
propondo que as redes de significações sejam tecidas entre textos e contextos que
compõem o universo do artista e os desdobramentos para uma Educação Científica.
Esses aspectos são melhores compreendidos, conforme preconizado por
Vigotski, por meio de uma leitura lenta dessas imagens. Ampliadas pela “pesquisa sobre
o contexto histórico em que o artista está envolvido, pelo estudo do percurso de sua
produção artística e pela criação de possíveis intertextos”, essas relações e os intertextos
com o conhecimento científico podem contribuir com o desenvolvimento científico e
estético do aluno. (CHISTÉ, 2013, p. 160).
Dialogando com a leitura de imagens em uma perspectiva educativa, recorremos
à proposta de Foerste (2004). O primeiro princípio a ser observado pela autora é o


267

entendimento da imagem em um contexto amplo, superando um olhar alienante e


submisso que pode estar contido nos textos visuais, por meio de uma visão crítica e
questionadora. Portanto, a leitura de imagem não se restringe ao aparato técnico de
produção da obra, mas reflete um contexto amplo de leitura dos fatos associados àquela
realidade contribuindo para a formação do sujeito questionador em direção à
compreensão e transformação da realidade.
Dessa forma, nos processos educativos é relevante tratar a leitura de imagens de
forma crítica, para não reproduzirmos e disseminarmos valores alienantes ou de
dominação, simplificando ou inferiorizando as leituras que podem ser desprendidas
daquela imagem. Assim, é necessário compreender uma obra de arte não apenas como
um conjunto de linhas, formas ou cores, mas como um “instrumento de humanização”
com o qual o artista “representa uma visão da realidade de acordo com certa intenção”.
(SCHLICHTA, 2006, p. 360).
Na perspectiva de compreensão dos processos educativos pretendemos
sistematizar as ações educativas da pesquisa em questão a partir dos momentos
pedagógicos propostos pela Pedagogia Histórico-Crítica. Os momentos são
apresentados por Saviani em cinco passos: prática social inicial; problematização;
instrumentalização; catarse e prática social final. Essas etapas explicitam o movimento
articulado de “passagem da síncrese à síntese, pela mediação da análise”. (SAVIANI,
2008, p. 142).
Cabe alertar que os processos pedagógicos, mediados pelo professor, devem ser
transpostos para prática educativa de forma interdependente e não procedimental. Desse
modo, os momentos pedagógicos não são considerados procedimentais, mas sim
articulados entre si. (MARTINS, 2011).
Compreendemos a prática social como ponto de partida, considerando a
compreensão sincrética ou caótica que os alunos possuem da realidade. Nesse momento
filosófico Saviani (2008) aponta que os alunos não possuem uma visão da totalidade do
tema que se pretende estudar. Na pesquisa que estamos desenvolvendo identificamos
que a visão sincrética dos alunos refere-se inicialmente ao pouco conhecimento que
possuem sobre as relações entre Ciência e Arte. Tais incipiências direcionam à prática
educativa à problematização da prática social fragmentada e aos processos educativos
que compartimentalizam as formas de saber produzidas pela humanidade.
Nesse sentido, coube aos professores envolvidos no momento da intervenção
que estamos iremos relatar, transmitir aos alunos o conhecimento das relações entre o


268

conhecimento científico e artístico, apresentados a partir das obras/artistas do acervo do


Ifes, por meio da leitura de imagens, momento intitulado por Saviani como
instrumentalização. Em todas as fases do processo foi possível identificar, sob a forma
de catarse, novos entendimentos dos alunos sobre a convergência entre essas formas de
conhecimento, ou seja, foi possível observar a apropriação por parte do aluno dos
diálogos entre Ciência e Arte. Fechando esse ciclo reiterativo e dialético, consideramos
que houve o retorno à prática social com o entendimento crítico e de compreensão do
fenômeno, a relação Ciência e Arte, em sua totalidade.
Portanto, é possível considerar que a leitura das obras e as suas relações com a
ciência, podem conduzir uma formação omnilateral dos alunos, fundamentadas na
Educação Estética e Científica, e reforçaram a necessidade de socialização da Ciência e
da Arte em suas formas mais elaboradas e da compreensão abrangente da noção de
conhecimento “[...] que busca unificar, numa síntese superior, os diferentes tipos de
saber, tais como o conhecimento sensível, intuitivo ou afetivo; o conhecimento
intelectual, lógico ou racional; o conhecimento artístico e estético; o conhecimento
axiológico; o conhecimento prático e teórico”. (SAVIANI, 2010, p. 10).
Cabe colocar também que a formação omnilateral almejada durante a
intervenção, fomentada pela tradição marxista e pela Pedagogia Histórico-Crítica,
“expressa uma concepção de formação humana, com base na integração de todas as
dimensões da vida no processo educativo”. (CHISTÉ, 2013, p. 105).
Guiados pelas ideias apresentadas, propusemos diálogos entre Ciência e Arte por
meio das obras de arte do acervo do Ifes. A pesquisa sobre aspectos históricos e técnicos
relacionados ao acervo de obras de arte do Ifes, iniciou-se em 2014 por meio de um
projeto de iniciação científica intitulado Obras de Arte do Acervo do Ifes – Mediações,
formação de professores e leitura de imagens, para verificar a origem, mapear e
divulgar acervo de 31 obras de arte afixadas nas paredes dos departamentos
administrativos e da biblioteca Nilo Peçanha do Ifes – campus Vitória. (CHISTÉ;
CARVALHO; SEGUEL, 2015).
Conforme resultados da pesquisa essas obras foram adquiridas na década de
1980/1990 por ocasião de uma reforma das salas do Gabinete do Diretor Geral entre
outros espaços. As obras do acervo são gravuras produzidas por artistas como Alfredo
Volpi (1896-1988), Fayga Ostrower (1920-2001), Inácio Rodrigues (1946), Dileuza
Diniz Rodrigues (1939), Eduardo Sanches Iglesias (1940), Darel Valença Lins (1924),
Saverio Henrique Castellano (1934-1996), Raphael Samú (1929).


269

A partir dessas ressalvas e esclarecimentos, no texto que segue, buscaremos


apresentar a intervenção realizada.

2 Relato da intervenção realizada

Com a intenção de exemplificarmos os momentos pedagógicos da Pedagogia


Histórico-Crítica, a seguir, apresentaremos parte de nossa intervenção pedagógica.
Como apontado, a pesquisa intitulada “Educação Científica mediada pelas obras de arte
do acervo do Ifes” está em desenvolvimento e tem como lócus o Ifes campus Montanha.
Participam dessa investigação 20 alunos, que integram o Grupo de Teatro do campus e
04 professores das áreas de Arte, Biologia, Física e Química, além do coordenador do
Grupo de Teatro que também é o proponente da pesquisa em questão e redator do
presente artigo.
O relato em questão refere-se a um dos encontros que ocorreu durante nossa
pesquisa e teve como objetivo iniciar as discussões sobre Ciência e Arte. Tal encontro
ocorreu no dia 31 de maio de 2016 e contou com a participação de 12 alunos e 02
professores. Para começar essa discussão preparamos uma apresentação que foi exibida
com a utilização de um projetor de imagens.
Iniciamos a intervenção a partir da pergunta: “Há alguma relação entre Ciência
e Arte”? e observamos que os alunos não sabiam relacionar essas áreas do saber.
Aprofundamos a discussão, informando para os alunos as possibilidades de aproximar
dois campos aparentemente tão distintos. Argumentamos que para estabelecer essa
relação era importante entender dois questionamentos “O que é Arte”? e “O que é
Ciência”?
Desse modo, apresentamos algumas definições, identificando a aproximação da
ciência com a razão e a objetividade - e da arte com a subjetividade e as emoções,
reforçando a ideia de que não concordamos com a dicotomia entre esses campos do
saber. Apresentamos também as funções dessas duas áreas do conhecimento na
sociedade atual e suas relações com o contexto social, histórico, cultural e econômico.
Expusemos nesse momento a criação como base comum da ciência e da arte,
abordagem que foi aprofundada em momento posterior, para pontuarmos que apesar de
delimitar suas diferenças a origem do ato da criação científica e artística não se
diferencia, a divergência está nos materiais e nos elementos de linguagem que são
utilizados pelo artista ou cientista nas suas representações de visões de mundo.


270

Para refletirmos sobre as questões referentes à razão e à emoção e suas relações


com o conhecimento artístico e científico, apresentamos para os alunos o texto
“Poeminha em língua de brincar” de Manoel de Barros, reforçando a ideia da criação
como base comum entre esses campos. Consideramos importante reforçar nesse ponto,
a reflexão da arte como área de conhecimento, mesmo não estando pautada nos
princípios de racionalidade objetiva da ciência.
Assim, mostramos para os alunos imagens de produções artísticas que
expressam a subjetividade do artista em relação há algum fato social, como: uma cena
do documentário Lixo Extraordinário que exibe a produção de trabalhos do artista
plástico Vik Muniz, utilizando materiais recicláveis disponibilizados por catadores em
um aterro localizado no bairro Jardim Gramacho em Duque de Caxias – RJ; uma cena
apresentada no encerramento do Curso de Extensão em Interpretação Teatral do IFES,
campus Montanha, que traz uma crítica ao rompimento da barragem da Samarco em
Mariana - MG; as obras de Frans Krajcberg que fazem crítica a devastação das florestas;
uma obra de Roger Alsing, que apresenta a Mona Lisa de Leonardo Da Vinci, recriada
por meio de um programador genético (aparelho utilizado para mapeamento genético);
uma obra de Chris McKinstry, que recria a Mona Lisa com sistema digital termográfico,
utilizando dados de raios x, ultrassonografias e ressonâncias magnéticas; e a
performance da artista Heather Cassils que registrou durante 6 meses as mudanças em
seu corpo, após se submeter ao uso de anabolizantes, a musculação e a alimentação
específicas para alterar as formas corporais.
Durante a apresentação dessas imagens, os alunos começaram a demonstraram
um entendimento da função da arte na sociedade atual, dizendo que o artista por meio
da arte poderia expressar suas ideias ou sentimentos de modo a contribuir com a
conscientização da sociedade sobre determinado assunto, como, por exemplo, a
reciclagem do lixo, a poluição ambiental, o desmatamento das florestas e matas, as
invenções científicas e tecnológicas, o uso de esteroides e de alimentos industrializados.
Fazendo relação com as produções artísticas anteriormente apresentadas,
discutimos a ideia de como as invenções científicas melhoraram ou prejudicaram a vida
humana. Como pontos positivos apresentamos a descoberta do raio x, e as evoluções
para a ultrassonografia, a ressonância magnética e o mapeamento genético, tecnologias
que auxiliam a descoberta e o tratamento de doenças. Quanto aos pontos negativos,
destacamos a relação da revolução industrial, a urbanização, o excesso de automóveis e
a modernização das embalagens dos produtos industrializados como forma de aumentar


271

a poluição; as descobertas tecnológicas e as consequências para o desmatamento; o uso


de transgênicos na alimentação; e a evolução farmacêutica e a relação com o uso de
esteróides artificiais. Explicamos, também, como algumas invenções científicas e
tecnológicas estão relacionadas às grandes guerras, às finalidades bélicas, como, por
exemplo, o GPS, o controle de tráfego aéreo e a rede mundial de computadores. Nesse
ponto, dois alunos identificaram conhecimento sobre essas relações, citando outros
exemplos como microondas e computador.
Na sequência apresentamos as relações entre a ciência e arte, a partir das
seguintes delimitações: ênfase no processo histórico do diálogo entre arte e ciência, a
ciência como tema da arte, a dimensão estética da ciência e a dimensão científica da
arte, e retomamos o ponto da criação como base comum da ciência e da arte. Para
abordarmos esses conteúdos, contamos com o apoio da professora de Arte e da
professora de Física, previamente envolvidas com a pesquisa.
Na ênfase histórica partimos da Renascença artística. Com a pintura Trindade de
Masaccio (1401-1428) identificamos como a técnica da perspectiva na produção
pictórica deste período contribuiu para o progresso das ciências, ao criar a ilusão de
profundidade na superfície plana, mudando, radicalmente, a concepção espacial e
refletindo nas novas abordagens da física que passam a incorporar essa nova concepção
(REIS et al., 2006).
A partir da obra O grande gramado de Albrecht Dürer (1471-1528)
identificamos os detalhes realísticos dos pintores renascentistas como legado para o
desenvolvimento das ciências, principalmente biologia e botânica, e a contribuição
dessas ilustrações para a divulgação científica (CHASSOT, 1994). Nos cadernos de
Leonardo da Vinci (1452-1519) demonstramos como suas criações artísticas são
influenciadas e colaboraram com a ampliação dos conhecimentos sobre anatomia,
biologia, física e matemática.
Ainda na ênfase histórica, abordamos a aproximação entre o conhecimento
científico e artístico nos movimentos da arte moderna do século XX, como Cubismo,
Surrealismo e Abstracionismo. No Cubismo, com a obra Les demoiselles d'Avignon do
pintor Pablo Picasso (1881-1973) aproximamos a representação fragmentada e
geometrizada das imagens com a nova ideia de tempo que estava sendo postulada pela
teoria da relatividade de Albert Einstein (1879-1955), confluindo para a proposta de
substituição do tempo absoluto pelo tempo relativo, principal abordagem dessa teoria
(OSTROWER, 1998).


272

No movimento Surrealista, abordamos a relação entre Ciência e Arte por meio


da influência das teorias psicanalíticas de Sigmund Freud (1856-1939) nas produções
em arte, enfatizando o papel do inconsciente na atividade criativa. No Abstracionismo,
identificamos a representação da composição por meio de formas abstratas e a
aproximação com as novas concepções sobre os estados da matéria e da energia
propostos pelo conhecimento científico vigente no século XX.
Na delimitação da ciência como tema da obra de arte mostramos para os alunos
a obra Experimento com um pássaro numa bomba de ar (1766), de Joseph Wright of
Derby que representa um experimento de óptica geométrica; a obra Flor do Mangue do
artista Frans Krajcberg criada com madeira recolhida em áreas de desmatamento; a obra
Paissagem surrealista com DNA de Salvador Dalí (1904-1989), na qual o artista
representa a descoberta da molécula de DNA; trecho da música Quanta de Gilberto Gil,
que aproxima a criação em arte com a criação em ciência; trecho do filme Intraestrellar
(2014) de Christopher Nolan, e sua relação com exploração espacial; e trecho do Teatro
de Sombras apresentado na I Jornada de Ciência e Tecnologia do Ifes campus
Montanha, que discute as influências das descobertas científicas e tecnológicas na
sociedade.
Para expormos a dimensão estética da ciência e dimensão científica da arte,
identificamos algumas considerações sobre essas dimensões. Na dimensão estética da
ciência, consideramos o modo como o cientista representa seu objeto, e exemplificamos
com o trabalho desenvolvido pelo Museu de Ciências da Vida da Universidade Federal
do Espírito Santo e suas exposições científico-culturais Corpo Humano: da célula ao
homem – Arte dos pequenos suspiros e Corpo Humano: da célula ao homem; e imagens
das peças anatômicas do anatomista Gunther von Hagens, que submete essas peças a
técnica de plastinação e as exibe em exposições. Relacionamos a dimensão cienífica da
arte, como a apropriação das ferramentas científicas para criação das obras artísticas e
exemplificamos com a obra Alba de Eduardo Kac, na qual o artista utilizou a engenharia
genética para criar um coelho geneticamente modificado.
Finalizamos a exposição das ideias perguntando aos alunos se eles já haviam
desenvolvido alguma atividade na escola envolvendo ciência e arte, e identificamos que
nenhum deles tinha participado de atividades com essa abordagem. Dessa forma,
reforçando a ideia de diálogo entre o conhecimento artístico e o conhecimento científico
apontamos para os alunos que esse trabalho poderia ser desenvolvido, na produção de


273

obras de arte, de músicas ou peças de teatro que abordassem temas científicos,


conforme exemplificamos.
Tendo vem vista que a intervenção ocorreu na realidade de um Grupo de Teatro,
realizamos jogos teatrais com o objetivo de refletir sobre as relações entre ciência e arte
que foram apresentadas. Como suporte para o jogo teatral, utilizamos a proposta da
professora Ingrid Koudela (2006), que adequou os estudos de Viola Spolin (2007) para
a realidade brasileira. Essa abordagem dialoga com a Pedagogia Histórico-Crítica, pois
aponta como fundamental a mediação do professor no processo de aprendizagem dos
jogos teatrais. O professor, ao intervir no campo educacional por meio do jogo teatral,
pode atuar na zona de desenvolvimento iminente do aluno, ou seja, naquilo que o aluno
só consegue fazer com a ajuda do professor. (MARSÍGLIA, 2011).
Adotamos ainda para a reflexão sobre os jogos teatrais, a abordagem
metodológica da Peça Didática brechtiana (KOUDELA, 1992). Nessa abordagem
Brecht dialoga com os estudos marxianos ao propor, em sua teoria da Peça Didática, a
superação da alienação artística e a reflexão do contexto social por meio do fazer teatral.
Seguindo essas propostas, desenvolvemos jogos teatrais com os alunos. No
primeiro jogo solicitamos que os alunos apresentassem suas percepções sobre o poema
de Manoel de Barros. Os grupos demonstraram o entendimento sobre o poema,
abordando as relações entre a emoção, interpretando um menino que contava sua
história, e a razão simbolizada por uma senhora que negava tudo o que o menino dizia.
Eles identificaram a razão sendo a ciência e a emoção sendo a arte.
No próximo jogo focamos nas relações entre a arte e a sociedade, e as
influências das intervenções científicas nessa sociedade. As temáticas apresentadas
pelos grupos foram: uma crítica social abordando as questões de intolerância, a qual o
grupo relacionou com a proposta apresentada no Curso de Extensão em Interpretação
Teatral do Ifes campus Montanha; uso de anabolizantes que foi relacionado à
apresentação com a performance da artista Heather Cassils; a criação de máquinas e sua
relação com a evolução e a destruição humana; e a relação da industriação com a
poluição ambiental. Na mediação e avaliação dos jogos, percebemos que os alunos
tiveram a percepção dos pontos positivos e negativos das descobertas científicas na
sociedade e identificaram a possibilidade de reflexão sobre temas sociais por meio da
arte.
Nos dois últimos jogos, trabalhamos com dois objetivos. O primeiro objetivo foi
abordar as relações entre ciência e arte na história; e depois mostrar a ciência como


274

tema da arte, a dimensão estética da ciência e a dimensão científica da arte. Nesse dois
jogos disponibilizamos as imagens apresentadas, para que os alunos as utilizassem
como referência para a criação das cenas. Os auxiliamos, com o apoio das professoras
de Arte e de Física, na leitura lenta dessas imagens e nas relações de seus intertextos
com a ciência. Observamos no processo de leitura das imagens para a apresentação dos
jogos teatrais e na transposição dessas imagens para a cena, que os alunos
demonstraram o entendimento das relações entre ciência e arte apresentadas pelos
professores.
Desse modo, consideramos que a leitura das obras e as suas relações com a
ciência, e as vivências com os jogos teatrais, contribuíram de certo modo com a
formação omnilateral dos alunos participantes da intervenção, corroborando a
apropriação do conhecimento estético e científico de maneira integrada e em suas
formas mais elaboradas, contribuindo, desse modo, para a superação da visão
fragmentada da prática social. Além disso, ressaltamos que os momentos pedagógicos
da Pedagogia Histórico-Crítica foram contemplados de modo dialético e reiterativo,
afastando-se das tendências que os consideram como passos procedimentais.

Considerações finais

Os aspectos metodológicos da pedagogia histórico-crítica podem favorecer os


processos pedagógicos a partir da prática social que torna-se enriquecida por meio do
trabalho pedagógico. Essa abordagem considera a educação, incluída na prática social,
como possibilidade de apropriação dos conhecimentos científicos e artísticos em suas
formas mais elaboradas. Nessa proposta, a apropriação dos conhecimentos depende da
mediação do professor e tem como objetivo a transformação e superação da estrutura
social que está posta, sobretudo pela sua configuração alienante.
Desse modo, consideramos fundamentais os diálogos entre a Educação Estética
e a Educação Científica embasadas na pedagogia histórico-crítica. Apresentamos a
Educação Estética como princípio criador em todas as atividades humanas, em seu
sentido sensível e crítico de transformação da realidade e a Educação Científica voltada
para promover reflexões sobre a realidade social no ensino da ciência, por meio de
atividades que relacionam os fenômenos científicos com as transformações da
sociedade. Os diálogos entre a Educação Estética e a Educação Científica foram
apontados, com o objetivo de discutir os apelos estéticos e humanísticos nas reflexões


275

sobre o conhecimento científico, a partir da leitura das obras de arte do acervo do Ifes –
campus Vitória. Direcionamos a proposta de leitura dessas imagens por meio de uma
perspectiva crítica e questionadora, capaz de favorecer múltiplas relações com o
conhecimento científico.
Com o objetivo de refletir sobre as relações entre a ciência e a arte, tendo como
referência os momentos pedagógicos da pedagogia histórico-crítica propostos por
Dermeval Saviani, apresentamos parte de nossa intervenção pedagógica realizada com o
alunos e professores do Grupo de Teatro do Ifes campus Montanha. Para o
desenvolvimento da intervenção utilizamos, com a mediação dos professores, proposta
de leitura de imagens e de jogos teatrais que favoreceram a apropriação do
conhecimento artístico e científico em suas formas mais elaboradas.
Concluímos que a intervenção pedagógica proposta contribuiu com a formação
integral dos alunos participantes, fomentando o desenvolvimento da Educação Estética
e Científica de forma integrada. Ressaltamos que os próximos encontros contemplarão o
contato dos alunos com as obras de arte do acervo do Ifes, na perspectiva de favorecer o
conhecimento científico e artístico, reforçando a proposta de formação omnilateral dos
alunos que apreciam essas obras.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM NA EDUCAÇÃO INFANTIL:


CONTRIBUIÇÕES A LUZ DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Tainara Pereira Castro (UFES/PPGE)1


Ana Carolina Galvão Marsiglia (PPGE/UFES)2

Resumo: Este artigo procura evidenciar alguns elementos da pesquisa de mestrado que tem
como objeto a avaliação da aprendizagem. Para esta discussão, elegeu-se o seguinte problema:
quais as contribuições da pedagogia histórico-crítica para a compreensão da avaliação da
aprendizagem na educação infantil? Os resultados apontam que a avaliação da aprendizagem
além de ser uma necessidade da atividade escolar, é também uma atividade que contribui na
constituição do psiquismo, como mediação do desenvolvimento humano. Destaca-se ainda que
que tal referencial possui importantes elementos para pensar e organizar a avaliação da
aprendizagem na educação infantil, entendendo-a como um dos componentes do processo
educativo, pois compreende que a atividade de ensino (realizada pelo professor) e atividade de
aprendizagem (realizada pelo aluno) são o centro da ação pedagógica.

Palavras-chave: Avaliação; Educação Infantil; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

Esse artigo tem como objetivo apresentar alguns elementos da pesquisa de


mestrado que tem como objeto de estudo a avaliação da aprendizagem na educação
infantil. Diante da proposta de pesquisa que vem sendo desenvolvida, foi realizado um
levantamento da literatura na Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), em
que evidencia-se nas pesquisas encontradas em torno da avaliação da aprendizagem na
educação infantil, a ideia da criança como sujeito produtor de cultura e o professor
como facilitador, tornando-se necessário o favorecimento de práticas educativas que


1
Tainara Pereira Castro, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal do Espírito Santo, ES, Brasil. E-mail: naracastro19@hotmail.com
2
Ana Carolina Galvão Marsiglia, Doutora em Educação Escolar pela Unesp (Araraquara), Professora do
Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Programa de Pós-Graduação
em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil, E-mail: galvao.marsigli@gmail.com


278

conduzam a construção do conhecimento por meio da interação, valorizando as


experiências infantis, sendo a avaliação compreendida como acompanhamento do
desenvolvimento infantil.
Entendendo que o trabalho educativo é uma atividade intencional destinada a
finalidades, a pedagogia histórico-crítica assume um posicionamento que considera a
escola como um espaço imprescindível para formação da individualidade humana,
tendo o professor papel importante neste processo, sendo contrário a tais concepções
pedagógicas que descaracterizam o ato de ensinar.
Procuraremos apontar nesse artigo algumas contribuições da pedagogia
histórico-crítica para a compreensão da avaliação da aprendizagem nesta etapa.
Ressalta-se que, pretende-se apresentar algumas considerações diante dos limites deste
texto, com vistas a consolidar e aprofundar futuramente as discussões e reflexões neste
campo.
Diante desse contexto, considerando que a pedagogia histórico-crítica tem seu
embasamento teórico-metodológico no materialismo histórico-dialético, apresentamos
como proposta de estudo a realização do exercício do pensamento sobre as relações que
permeiam a avaliação da aprendizagem, tendo em vista que o método materialista
histórico-dialético considera que “[...] não é possível compreender imediatamente a
estrutura da coisa ou a coisa em si mediante a contemplação ou a mera reflexão, mas
sim mediante uma determinada atividade”. (KOSIK, 1976, p. 28).
A pedagogia histórico-crítica, como base teórica de análise, articula-se em
defesa da transmissão dos conhecimentos, do professor e da escola. Tomando o trabalho
como princípio educativo pelo qual os homens, historicamente, produzem a sua
humanidade individual e coletiva, a pedagogia histórico-crítica posiciona-se favorável e
em defesa da transmissão do conhecimento e de sua apropriação, bem como do trabalho
do professor, tendo em vista que este conhecimento irá oportunizar aos sujeitos
conhecer a realidade para além da aparência, sendo condição para que se insiram na
realidade não com vias a se adaptar, mas para transformá-la.
Relacionando essa proposta pedagógica à avaliação da aprendizagem, acredita-
se que este referencial possui importantes contribuições para pensá-la entendendo-a
como um dos componentes do processo educativo, não ocorrendo de maneira
dissociada, mas sim como parte de toda ação pedagógica, contribuindo para que todos
tenham acesso aos bens materiais e intelectuais que foram produzidos pela humanidade,
bem como possibilitando um replanejamento das ações pedagógicas, com vistas a


279

potencializar cada vez mais o que está sendo ensinado, buscando estratégias mais
adequadas a atividade de ensino, deflagrando, deste modo, um movimento qualitativo
das práticas pedagógicas, que observa os resultados então alcançados e reorienta novas
possibilidades de encaminhamentos.

1 Concepção de ser humano, conhecimento, e suas relações com a educação escolar

A pedagogia histórico-crítica situa-se no bojo das teorias críticas e procura


abordar o fenômeno da educação numa perspectiva dialética, “[...] de uma dialética do
movimento do real. [...] trata-se de uma dialética histórica expressa no materialismo
histórico”. Como marco histórico deste movimento pedagógico, pode-se considerar que
sua origem remonta a década de 1970, em que há um intenso desenvolvimento de
análises sobre a educação no mundo e no Brasil numa perspectiva crítica, respondendo a
uma necessidade histórica “[...] de encontrar alternativa à pedagogia dominante3”.
(SAVIANI, 2013, p. 111-120).
Tal concepção pedagógica toma como ponto de partida a relação entre ser
humano e trabalho, entendendo que por meio de sua atividade o homem constitui-se,
humaniza-se, pois, “[...] em lugar de se adaptar à natureza, ele tem que adaptar a
natureza a si, isto é, transformá-la” (SAVIANI, 2013, p. 11).
Martins (2013) também colabora, ao evidenciar a importância da atividade
humana no processo de constituição e complexificação do psiquismo4 humano, dando
origem a um psiquismo cada vez mais sofisticado. Ao transformar um objeto da
natureza em natureza humanizada, novas necessidades são originadas, que conduzem o
homem a produzir novas formas de se objetivar, bem como a necessidade de apropriar
das produções feitas por outros humanos, mediante um processo educativo.
Saviani (2013, p. 7), destaca que “[...] o homem não se faz homem naturalmente;
ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar,


3
A pedagogia histórico-crítica tem sua origem nas críticas realizadas às teorias não-críticas e às crítico-
reprodutivistas (SAVIANI, 2008), procurando apresentar uma teoria pedagógica assentada numa reflexão
propositiva, que evidencia a importância do papel da escola, do professor e do conhecimento no processo
de constituição do ser humano. Na atualidade a pedagogia histórico-crítica se coloca em contraposição às
teorias que no campo educacional se materializam nas pedagogias do “aprender a aprender”, que tem
como ideias principais a “[...] desvalorização da transmissão do saber objetivo, na diluição do papel da
escola em transmitir esse saber, na descaracterização do papel do professor como alguém que detém de
um saber a ser transmitido aos seus alunos, na própria negação do ato de ensinar” (DUARTE, 2011, p. 9).
4
De acordo com os estudos de Martins (2013), o psiquismo cria por meio da atividade humana, a imagem
subjetiva da realidade objetiva. Para maiores esclarecimentos, sugerimos a leitura da obra da autora,
intitulada O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar.


280

avaliar, agir. Para saber pensar e sentir, para saber querer, agir ou avaliar é preciso
aprender, o que implica o trabalho educativo”.
Cabe ressaltar que o processo educativo está presente desde a origem do ser
humano coincidindo com o próprio ato de viver e este foi se diferenciando mediante as
mudanças na organização social, de modo que o caráter institucionalizado passasse a
predominar, dando origem a escola. Saviani (2013, p. 7) destaca que a escola

[...] aparece inicialmente como manifestação secundária e derivada


dos processos educativos mais gerais, mas vai transformando
lentamente ao longo da História até erigir-se na forma principal e
dominante de educação. Esta passagem da escola à forma dominante
de educação coincide com a etapa histórica em que as relações sociais
passaram a prevalecer sobre as naturais, estabelecendo-se o primado
do mundo da cultura (o mundo produzido pelo homem) sobre o
mundo da natureza. Em consequência, o saber metódico, sistemático,
científico, elaborado, passa a predominar sobre o saber espontâneo,
“natural”, assistemático, resultando daí que a especificidade da
educação passa a ser determinada pela forma escolar.

Assim, a escola assume a função de possibilitar aos indivíduos a aquisição do


patrimônio humano genérico, com vistas a torná-los humanizados. Martins (2011, p.
54), esclarece-nos que a educação escolar possui como tarefa “[...] promover a
socialização dos conhecimentos representativos das máximas conquistas científicas e
culturais da humanidade, por meio da prática pedagógica, tornando o real inteligível”.
Tornar o real inteligível aponta para a necessidade de os sujeitos compreenderem que,
na relação ativa do sujeito com o objeto, por meio da atividade humana, produzimos o
conhecimento sobre a realidade, e ao mesmo tempo nos constituímos.
Saviani (2013, p. 13), ao discutir a especificidade da educação afirma que,

[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho
educativo é o ato de produzir direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens.

Tal afirmação sinaliza na mesma direção do pensamento de Leontiev (1978),


que afirma que cada indivíduo começa sua vida nos ombros das gerações anteriores,
apontando para o caráter histórico-social do processo de apropriação e objetivação
humanas. Na mesma linha, Martins (2013, p. 271) destaca que


281

[...] o processo de aquisição das particularidades humanas, isto é, dos


comportamentos complexos culturalmente formados, demanda a
apropriação do legado objetivado pela prática histórico-social. Os
processos de internalização, por sua vez, se interpõem entre os planos
das relações interpessoais (interpsíquicas) e das relações intrapessoais
(intrapsíquicas); o que significa dizer que instituem-se a partir do
universo das objetivações humanas disponibilizadas para cada
indivíduo singular pela mediação de outros indivíduos, ou seja, por
meio de processos educativos.

Torna-se importante reconhecer, portanto, a natureza da educação escolar, seu


objeto e finalidades. Saviani (2013, p. 8-9) assinala que a educação escolar possui como
objetivo, identificar os elementos culturais que precisam ser apropriados pelos homens e
produzir as melhores formas de alcançar esse objetivo. Aponta ainda que a escola, sob a
visão da pedagogia histórico-crítica, possui como tarefa

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições
de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações
bem como as tendências atuais de transformação;
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar de modo a torná-lo
assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares;
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o
processo de sua produção bem como as tendências de sua
transformação.

Visando possibilitar ao ser humano a inteligibilidade do real, tal proposta


pedagógica sinaliza a necessidade de identificar as formas de saber mais desenvolvidas
já então produzidas pelo conjunto dos homens, procurando converter esse saber
científico em saber escolar, (organizado de acordo com os tempos escolares), definindo
métodos de ensino, de modo que esse saber possa ser apropriado pelos alunos, não
somente como um dado, mas que possa ser também captado o processo de produção e
transformação deste. Assim, compete à escola a socialização dos conhecimentos
humanos de forma sistemática e intencional.
Cabe destacar que, no que se refere aos elementos culturais (conhecimento)5 que
devem possibilitar ao homem conhecer o real, Saviani (2013, p. 13) realiza uma
distinção sobre a natureza destes a partir do conceito de clássico. Segundo o autor, o

5
Ressaltamos que os conhecimentos universais aqui mencionados têm relação com aqueles que visam
superar a cotidianidade do real, o senso comum, possibilitando a desmistificação da realidade,
favorecendo a constituição do psiquismo humano, visando a “[...] conquista das capacidades intelectuais,
das operações lógicas do raciocínio, dos sentimentos éticos e estéticos, enfim, de tudo que garanta ao
indivíduo a qualidade de ser humano”. (MARTINS, 2013, p. 275).


282

conceito de clássico tem a ver com “[...] aquilo que se firmou como fundamental, como
essencial”. Deste modo, o saber da escola tem a ver com aqueles que se colocam na
direção da socialização dos conhecimentos universais, representativos das conquistas da
humanidade, em cuja ausência, torna-se impossível ao homem compreender o
desenvolvimento histórico dos fenômenos sociais. Além disso, salienta que no contexto
da educação escolar, a relação entre professor-aluno é central. Por meio dela desponta-
se a atividade de ensinoaprendizagem, como mediação necessária para o
desenvolvimento humano.
Martins (2013, p. 278), compreendendo dialeticamente a relação entre ensino e
aprendizagem, adverte-nos que o ensino promove o desenvolvimento, e que ambos os
processos possuem especificidades, mas há entre eles

[...] uma relação de condicionabilidade recíproca, explicável à luz do


preceito lógico-dialético da dinâmica entre “quantidade e qualidade”,
ou seja, a “quantidade” de aprendizagens promovidas pelo ensino
qualifica o desenvolvimento, à mesma medida que a “quantidade” de
desenvolvimento qualifica as possibilidades para o ensino

A autora ainda adverte que se deve identificar na ação educativa quais condições
de aprendizagem operam em favor do desenvolvimento dos indivíduos, o que pressupõe
o planejamento das formas didáticas, pelas quais este saber será apropriado pelos
indivíduos, bem como constantes análises e avaliações sobre os fins a que se propõe.
Diante de tais assertivas, partimos do pressuposto de que a educação escolar
deve possibilitar o desenvolvimento humano em suas máximas expressões, em qualquer
segmento, incluindo a educação infantil, o que representa considerar o ensino como
atividade mediadora entre o desenvolvimento e a aprendizagem. Significa afirmar que a
educação infantil integra a educação escolar “[...] e, como tal, [é] responsável pela
transmissão planejada dos conhecimentos historicamente sistematizados”. (ARCE;
MARTINS, 2013, p. 7).
Pasqualini (2011, p.61, grifo da autora), destaca que, historicamente a educação
infantil vem se caracterizando “[...] como uma história da subalternidade, uma história
de desqualificação pedagógica marcada pela redução de finalidades de suas
instituições”. A autora ainda ressalta que no Brasil, a partir da década de 1990, vem se
destacando no debate acerca da educação infantil a busca de uma identidade para esta
etapa, em que tal proposição realizada pelos pesquisadores da área vem centrando-se em


283

uma perspectiva antiescolar6: o que se evidencia é o não-diretivismo, o espontâneo, o


prazer nas práticas pedagógicas. Arce (2013, p. 27-28) enfatiza que em tal proposta

[...] A criança é vista como construtora de conhecimentos, garantindo-


se assim, seu direito de expressar-se. O professor, por sua vez, atua
como um facilitador, um orientador, permitindo a interação entre as
crianças e preparando o ambiente para que essas pesquisem e
experimentem livremente, sempre acalentadas por uma atmosfera
acolhedora e repleta de afetividade. Proporciona-se, ao ser criança, o
desenvolvimento de suas habilidades cognitivas, sua identidade, a
capacidade de socialização, independência, autonomia, autoestima,
criatividade […]. O conhecimento, desse modo, não pode ser
repassado do professor para o aluno, já que esse último o constrói.
Não há como planejá-lo, pois as crianças determinam o que, como e
quando aprender.

No que se refere à avaliação, cabe destacar que se visualiza uma compreensão


dominante da avaliação na educação infantil como acompanhamento da criança.
Oliveira (2011, p. 261) assinala que a avaliação deve atuar como um recurso para
auxiliar o progresso da criança que é sujeito do processo e assevera ainda que “[...]
avaliar a educação infantil implica detectar mudanças em competências das crianças”
(idem, p. 261). Requer, por parte do professor, um olhar sensível para compreender a
criança, para que esta possa responder no “aqui-agora” de forma adequada, bem como
conhecer suas preferências e suas formas de se relacionar nas atividades.
Diferentemente, a pedagogia histórico-crítica se posiciona como contraposição a
esta proposta educativa que descaracteriza a escola, o professor e os conhecimentos
científicos, artísticos e filosóficos mais avançados. Tendo em vista seus fundamentos,
não é possível compreender o papel do professor como apenas aquele que facilita,
acompanha, estimula a aprendizagem da criança em desenvolvimento, pois a educação
escolar tem como tarefa garantir a apropriação do patrimônio humano-genérico na
educação infantil, bem como em todos os níveis.
A atividade docente é, portanto, uma atividade intencional, em que se planeja,
analisa, reflete e avalia constantemente sua ação. Tal finalidade constitui-se como


6
Pasqualini (2011, p. 61-62, grifo da autora) destaca que “[...] a expressão antiescolar é adotada por Arce
(2004) para referir-se a uma abordagem que tem se tornado hegemônica nas pesquisas em educação
infantil e que se caracteriza pela negação do ato de ensinar e pelas ideias, entre outras, de que o lúdico
(prazeroso) deve ser o eixo central na prática educativa e de que a criança deve ditar o ritmo do trabalho
pedagógico, cabendo ao professor seguir seus desejos, interesses e necessidades. Tal perspectiva vem
sendo denominada por seus proponentes de pedagogia da infância (ou pedagogia da educação infantil).
Nega-se a pertinência do ensino na educação da criança pequena, bem como a adoção das nomenclaturas
aluno e escola para se referir à criança atendida pela instituição de educação infantil e à própria
instituição”.


284

referência para a organização de processos de ensinoaprendizagem e também para a


avaliação. Moraes (2008, p. 47) afirma que

[...] A ação de avaliar não se limita a analisar o indivíduo, porém o


processo de ensino e aprendizagem no contexto social, ou seja, as
condições objetivas para a apropriação dos conhecimentos. Sob esta
perspectiva, o processo de ensino e aprendizagem não se explica pelo
biológico e muito menos pela simples condição social do aluno, entra
em questão, para além desses fatores, a concepção de
desenvolvimento humano, aprendizagem, ensino, função social da
escola. Assim, a avaliação não pode ser naturalizada, trata-se de um
processo que é sócio-histórico.

Tendo em vista que o professor antecipa em sua mente os fins de sua atividade,
e, por meio de sua capacidade reflexiva, analisa e avalia se alcançou os seus objetivos, a
avaliação, enquanto atividade inerente à própria atividade do homem, necessita ser
pensada dialeticamente, visando compreender como o sujeito produz e se apropria do
conhecimento em suas reais condições de formação. Implica ir além da verificação ou
constatação dos resultados de aprendizagem, mas torna-se necessária à atuação do
professor com a finalidade de garantir a apropriação dos conhecimentos sistematizados.
No próximo tópico procuraremos avançar em direção as contribuições da
pedagogia histórico-crítica para a avaliação da aprendizagem.

2 Primeiros apontamentos sobre a concepção de avaliação numa perspectiva


histórico-crítica

A pedagogia histórico-crítica posiciona-se em defesa da transmissão do


conhecimento, bem como do trabalho do professor, tendo em vista que este
conhecimento irá oportunizar aos sujeitos conhecer a realidade para além da aparência,
sendo condição para que se insiram na realidade não com vias a se adaptar, mas para
transformá-la. Situando-se para além dos métodos tradicionais e novos, a pedagogia
histórico-crítica visa superar por incorporação as perspectivas não-críticas e as crítico-
reprodutivistas, sinalizando uma proposta pedagógica propositiva (SAVIANI, 2008).
A pedagogia histórico-crítica compreende que a educação escolar tem um tem o
papel de garantir a apropriação da cultura para que os sujeitos possam se objetivar e
objetivar a realidade. Assim,


285

[...] Cada nova geração tem que se apropriar das objetivações


resultantes da atividade das gerações passadas. A apropriação da
significação social de uma objetivação é um processo de inserção na
continuidade da história das gerações. (DUARTE, 2008, p.30).

Nesse contexto, o professor possui um papel importante, pois será responsável


por organizar o ensino, tomando como premissa os conhecimentos clássicos
fundamentais a serem garantidos pela escola, visando a formação dos sujeitos,
elaborando os meios, as formas de organização do conjunto das atividades a serem
desenvolvidas neste espaço, isto é, do currículo, bem como verificando se o aluno
atingiu os objetivos almejados e quais as ações que serão necessárias para que a
aprendizagem de fato se efetive. (SAVIANI, 2013).
Ao elaborar uma nova formulação teórica, Saviani (2008) estrutura uma
proposta pedagógica assentada em cinco momentos interdependentes: ponto de partida
da prática educativa (prática social), problematização, instrumentalização, catarse e
ponto de chegada (prática social alterada qualitativamente). Esta proposta favorece a
iniciativa do aluno, sem abrir mão da atividade do professor, possibilita o diálogo entre
aluno e professor, sem perder de vista a cultura acumulada historicamente, bem como
leva-se em conta os interesses dos alunos, seus ritmos de aprendizagem e o
desenvolvimento psicológico, sem deixar de valorizar a sistematização dos
conhecimentos de maneira lógica, ordenada e gradativa. Observa-se que a escola, nessa
perspectiva, possui um papel fundamental na formação dos indivíduos, que não pode
perder de vista sua principal atividade: produzir a humanidade nos homens. (SAVIANI,
2008).
Procurando situar a avaliação da aprendizagem com base nessa teoria
pedagógica, Marsiglia e Magalhães (2014) apontam quatro elementos importantes para
compreender adequadamente a avaliação da aprendizagem, sendo: o que ensinar
(conteúdo)? Para quem ensinar (alunos)? Com qual finalidade (objetivo)? E, como
realizar a atividade de ensino (recursos/procedimentos)? Há, deste modo, uma relação
entre o real e o ideal, entre o que se planeja para a atividade bem como os meios de sua
execução.
Cabe destacar as contribuições de Moraes (2008, p. 46, grifo do autor) que, ao
discutir a relação entre apropriação e objetivação, entende a avaliação “[...] como uma
forma de compreender a relação cognoscitiva entre o sujeito e o objeto na
objetivação do processo de ensino e aprendizagem”. Acresce ainda a autora que


286

analisar tal relação, significa considerar a dimensão avaliativa da práxis pedagógica


como uma atividade humana adequada a finalidades. Desta maneira, a atividade
avaliativa possui como essência,

[...] analisar os elementos necessários à humanização do indivíduo,


acompanhar o processo de desenvolvimento humano não no sentido
de conformação, mas de reflexão e intervenção durante o processo.
Para que isto ocorra, é de fundamental importância a mediação do
professor entre o conhecimento científico e o aluno, tendo em vista
que o conhecimento científico não é algo que se apropria diretamente,
por meio de atributos observáveis, mas, ao contrário, necessita de
organização para que os sujeitos possam se apropriar da essência dos
conceitos. (MORAES, 2008, p. 46).

Percebe-se que a ideia de processo de desenvolvimento humano, é decorrente de


um processo de transmissão de conhecimentos, o que implica reconhecer que “[...] uma
avaliação como processo só é possível se a compreendemos e a desenvolvermos como
um processo”. (MORAES, 2008, p. 46).
Retomando os momentos da proposta pedagógica da pedagogia histórico-crítica,
no que se refere ao conteúdo, Marsiglia e Magalhães (2014) ressaltam a necessidade de
relacioná-lo à prática social. Aqui cabe ao professor reconhecer a realidade social dos
alunos, aquilo que deve servir como ponto de partida do processo de
ensinoaprendizagem. Marsiglia (2011, p. 104) adverte-nos

[...] que considerar a realidade do aluno e utilizar seu conhecimento de


senso comum como ponto de partida não deve significar oferecer ao
aluno tão somente aquilo que já está em seu cotidiano. Ao contrário, o
ponto de partida determina os problemas da prática social que devem
ser compreendidos em totalidade.

Tal afirmação torna-se pertinente, pois os conhecimentos que as crianças


possuem, são decorrentes de sua experiência imediata com o mundo, conhecimentos do
senso comum. A escola, enquanto a instituição responsável pela socialização do saber
sistematizado, deve trabalhar com os conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos
historicamente constituídos que sejam os mais elaborados. Outro aspecto que é
relevante destacar refere-se que à realidade, que é comum a professor e aluno, mas
vivenciada diferentemente por cada um deles.
Saviani (2008, p. 56) destaca que “[..] enquanto o professor tem uma
compreensão que poderíamos denominar de “síntese precária”, a compreensão dos
alunos é de caráter sincrético”.


287

Além de estar relacionada à prática social, o conteúdo precisar ser significado,


ter relevância na formação das funções psicológicas7. Isso se relaciona à
problematização, que consiste no momento de “[...] detectar que questões precisam ser
resolvidas no âmbito da prática social e, em consequência, que conhecimento é
necessário dominar”. (SAVIANI, 2008, p. 57).
De acordo com as contribuições de Marsiglia (2011, p. 106),

[...] a problematização, portanto, deve conduzir o aluno do


conhecimento advindo das relações do cotidiano (conhecimento
sincrético, fragmentado, parcial sobre o fenômeno) para o
conhecimento científico, que deve ser oferecido na escola,
reestruturando qualitativamente o domínio sobre as questões da
prática social. [....] No momento da problematização, o professor
precisa ter claro como orientará a aprendizagem, baseando-se naquilo
que já tem como material da etapa anterior e seus objetivos de ensino.

Marsiglia e Magalhães (2014, p. 1320) tomando como referência “[...] para


quem ensinar”, explicam que é preciso ter claro quem é este sujeito, e o que se quer
alcançar com a ação educativa intencional, direcionando “[...] adequadamente os
instrumentos a serem utilizados e o objetivo do ensino”.
Desse modo, a instrumentalização consiste na apropriação “[...] dos instrumentos
teóricos e práticos necessários ao equacionamento dos problemas detectados na prática
social”. Para que tal apropriação aconteça, faz-se necessário “[...] conhecer o
desenvolvimento humano para saber identificar adequadamente qual é a atividade-guia8,
ou seja, qual a atividade que promoverá o maior alcance de desenvolvimento daquela
etapa do indivíduo”. (SAVIANI, 2008, p. 57; MARSIGLIA; MAGALHÃES, 2014,
p.1320-1321).
Ressalta-se que ao pensar neste “para quem se ensina”, faz-se necessário pensar
qual a finalidade do que se ensina a este “quem”. O que se ensina serve a este sujeito?
Mas como esclarecem as autoras, este “fim” do conhecimento não deve ser um fim em
si mesmo, “[...] não é suprir suas necessidades imediatas, mas sim, lhe propiciar

7
O psiquismo humano constitui-se em uma unidade material e ideal que se estrutura em um sistema
interfuncional composto por funções psicológicas (sensação, percepção, atenção, memória, linguagem,
pensamento, imaginação, emoção e sentimento). Para maiores esclarecimentos, indica-se a leitura de
Martins (2011; 2013).
8
A atividade-guia traz consigo fatores valiosos, que contém elementos em sua estrutura que impulsionam
o desenvolvimento psíquico infantil. Pasqualini (2013, p. 77, grifos da autora) destaca que “[...] na
psicologia histórico-cultural, podemos dizer que a atividade constitui a categoria nodal para a explicação
do psiquismo. [...] Em cada período do desenvolvimento, uma determinada atividade se mostra
dominante. A atividade dominante reorganiza e forma processos psíquicos, gera novos tipos de atividade
e dela dependem as principais mudanças psicológicas que caracterizam o período”.


288

ascender do concreto ao abstrato e retornar ao “concreto pensado” - compreender as


múltiplas determinações de um fenômeno”. Aqui também se relaciona ao “como
ensinar”, ou seja, quais os meios, os recursos necessários e que serão utilizados para
garantir que os objetivos sejam alcançados. (MARSIGLIA; MAGALHÃES, 2014, p.
1321).
Saviani (2008, p. 57) destaca que, estando em posse dos instrumentos teóricos e
práticos chega-se ao “[...] momento da expressão elaborada da nova forma de
entendimento da prática social que se ascendeu. Chamamos este quarto passo de
catarse”, sendo ele o ponto culminante do processo pedagógico, em que ocorre a efetiva
incorporação dos instrumentos culturais. Conforme explica Saviani:

[...] o momento catártico pode ser considerado o ponto culminante do


processo educativo, já que é aí que se realiza pela mediação da análise
levada a cabo pelo processo de ensino, a passagem da síncrese à
síntese; em consequência, manifesta-se nos alunos a capacidade de
expressarem uma compreensão da prática em termos tão elaborados
quanto era possível ao professor. (SAVIANI, 2008, p. 57).

O momento da catarse modifica a relação entre sujeito e o conhecimento, em


que se sai de uma visão sincrética e chega-se a uma visão mais sintética sobre a
realidade, retornando novamente à prática social que agora já não é mais compreendida
em termos sincréticos. Saviani (2008, p. 57) destaca que “[...] neste ponto, ao mesmo
tempo que os alunos ascendem ao nível sintético em que, por suposto, já se encontrava
o professor no ponto de partida, reduz-se a precariedade da síntese do professor”.
A avaliação da aprendizagem, sendo entendida como um dos componentes do
processo educativo, não ocorre de maneira dissociada de seu todo. Ela é parte de toda a
ação pedagógica, devendo contribuir para que todos tenham acesso aos bens materiais e
intelectuais que foram produzidos pela humanidade.
Marsiglia e Magalhães (2014) ressaltam a necessidade de pensar os instrumentos
de avaliação, devendo estes estar claros tanto para professores quanto para alunos, que
permitirão saber se os alunos tem se apropriado daquilo que se ensina, possibilitando
um replanejamento das ações pedagógicas, com vistas a potencializar cada vez mais o
que está sendo ensinado, buscando as estratégias mais adequadas à atividade de ensino,
deflagrando, deste modo, um movimento qualitativo das práticas pedagógicas, que
observa os resultados então alcançados e orienta novas possibilidades.


289

Concordamos com Moraes (2008, p. 46), que ao conceituar a avaliação como


práxis pedagógica, possibilita-nos compreender que esta “[...] pressupõe a análise do
processo de apropriação dos conhecimentos nas condições de uma ação efetiva dos
sujeitos envolvidos na atividade de conhecer. Assim, a organização do ensino estará
voltada para o ato de ensinar e o ato de aprender”.
Dessa maneira, professor e aluno tornam-se sujeitos da atividade, e que se
apropriam por meio dela do conhecimento, apreendendo-o em suas relações com a
prática social. O aluno compreende seu processo de apropriação e o professor possui um
papel imprescindível neste desenvolvimento à medida que organiza o processo
educativo, redirecionando suas ações e também se desenvolvendo.
Desse modo, a avaliação escolar torna-se, de acordo com Moraes (2008, p. 60)
“[...] uma ação essencial para o acompanhamento do desenvolvimento do aluno ao
possibilitar analisar uma relação qualitativa entre a atividade de ensino elaborada pelo
professor e a atividade de aprendizagem realizada pelos alunos”.
Isso significa reconhecer que a avaliação da aprendizagem é atividade
mediadora entre a atividade de ensino organizada pelo professor e a atividade de
aprendizagem realizada pelo aluno. Tal reconhecimento possibilita a constante
reorganização da atividade pedagógica, pois possibilita o redimensionamento do
processo de ensinoaprendizagem, procurando garantir a apropriação dos conhecimentos
teóricos ao qual a escola deve trabalhar.

Considerações finais

Com base nos elementos apresentados ao longo deste artigo, pudemos perceber
que a avaliação da aprendizagem além de ser uma necessidade da atividade escolar
como uma ação deste espaço e do professor para desenvolver o processo de
ensinoaprendizagem, é também uma atividade que contribui na constituição do
psiquismo humano, como mediação do desenvolvimento humano.Com base nos
fundamentos da pedagogia histórico-crítica, evidencia-se a necessidade de reconhecer
que a atividade de ensino (realizada pelo professor) e atividade de aprendizagem
(realizada pelo aluno) constituem o centro da ação pedagógica.
Diante das dificuldades em encontrar referências no campo da pedagogia
histórico-crítica relacionando ao objeto deste estudo, evidencia-se a necessidade de
reflexões que por um lado, apontem as principais concepções presentes nos estudos


290

sobre a avaliação, denunciem a hegemonia dos referenciais teóricos pós-modernos, bem


como no fortalecimento dos estudos das pedagogias contra-hegemônicas, que sejam
afinadas com uma proposta de sociedade que tenha como pressuposto uma educação
direcionada para a formação plena dos indivíduos.

Referências

ARCE, A.; MARTINS, L. M.M. (org.). Quem tem medo de ensinar na educação infantil?
Em defesa do ato de ensinar. 3 ed. Campinas, SP: Editora Alínea, 2013.

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(re)colocando o ensino como eixo norteador do trabalho pedagógico com crianças de 4 a 6 anos.
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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

FORMAÇÃO DE PROFESSORES NO INSTITUTO POLITÉCNICO DA UFRJ

Marcella Freire Ventin (UFRJ)1

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar a proposta de formação de professores
defendida e praticada pelo Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social por meio do
Instituto Politécnico da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). Uma tentativa
promissora de aliar a prática docente aos aprofundamentos teórico-científicos de professores da
Educação Básica, com ênfase no Ensino Médio Integrado.

Palavras-chave: Formação de Professores; Residência Docente; Educação pelo Trabalho.

Introdução

“A formação de professores deve assumir uma forte componente


prática, centrada na aprendizagem dos alunos e no estudo de casos
concretos, tendo como referência o trabalho escolar”. (Nóvoa, 2009).

Mais do que um tema em voga, a formação de professores é uma linha de


pesquisa consolidada no campo da Educação. Existe consenso de que repensar a
profissão docente é uma necessidade no enfrentamento dos desafios impostos pela
Educação Básica, cujo modelo não corresponde às demandas e urgências do sistema
escolar.
No entanto, para propor uma estratégia nesse sentido, é preciso definir primeiro
que escola pretendemos construir. Ou seja, o professor deve ser formado para trabalhar
na perspectiva de uma concepção de educação que extrapole a que está posta e que
atenda aos entraves elencados nos diversos níveis de ensino.
A maior parte das referências utilizadas aqui foi escrita no século XIX e início
do XX. Portanto não há nada de inovador nas ideias que dão suporte ao Projeto
Pedagógico da Escola Universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
Instituto Politécnico de Cabo Frio (IPUFRJ), tampouco ao Programa de Formação de
Professores.

1
Marcella Freire Ventin, Mestre em Educação (PPGE/UFRJ), Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: freireventin@yahoo.com.br


293

O que há para perceber é o esforço para colocar em prática a concepção


politécnica de educação tanto na Educação Básica quanto na própria formação docente,
de forma integrada e com o trabalho como princípio educativo em ambos os níveis. O
presente estudo tem como lócus o Ensino Médio Integrado, mas a proposta de formação
docente apresentada deve ser entendida com uma possibilidade para orientar o trabalho
com toda a Educação Básica.
Há pouco mais de uma década, a Rede Federal de Educação Profissional entrou
num processo de ampliação expressivo. Hoje são 644 escolas de educação profissional
em atividades, divididas entre os 38 Institutos Federais (IFs) existentes, 2 Centros
Federais de Educação Tecnológica (CEFETs), 25 escolas ligadas a universidades, uma
Universidade Tecnológica e o Colégio Pedro segundo.
Nessas centenas campi dos IFs a articulação entre a educação profissional e o
ensino médio deveria acontecer na modalidade Integrada, ou seja, “conteúdos do Ensino
Médio e da formação profissional que deverão(riam) ser trabalhados de forma integrada
durante todo o curso, assegurando o imprescindível diálogo entre teoria e prática”.
(LODI em BRASIL, 2006, p.4, grifo meu). No entanto, esta integração fica restrita aos
regimentos e projetos políticos pedagógicos engavetados, na prática o ensino disciplinar
e desconectado do mundo do trabalho segue no cotidiano destas instituições.
O que merece destaque neste contexto é a inviabilidade da implantação do
modelo integrado sem que haja uma formação significativa dos docentes e demais
trabalhadores da educação, capaz de prepará-los para atuar nesta perspectiva. Portanto,
o problema que impõe reflexão é a impossibilidade dos professores planejarem e
orientarem cursos capazes de articular a formação teórica e prática para alunos de nível
médio sem que se apropriem, por meio do trabalho, das bases metodológicas e dos
referenciais pedagógicos que concretizam tal integração.
Os desdobramentos deste problema são as instituições de Educação Profissional
Técnica Integrada ao Ensino Médio que não têm “o mundo do trabalho como
referência”, conforme sugerem as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação Profissional Técnica de Nível Médio, de maio de 2012.

1 Educação e trabalho

Na verdade, todo sistema educacional se estrutura a partir da questão


do trabalho, pois o trabalho é a base da existência humana, e os


294

homens se caracterizam como tais na medida em que produzem sua


própria existência, a partir de suas necessidades. Trabalhar é agir
sobre a natureza, agir sobre a realidade, transformando-a em função
dos objetivos, das necessidades humanas. A sociedade se estrutura em
função da maneira pela qual se organiza o processo de produção da
existência humana, o processo do trabalho. (SAVIANI, 1986 apud
TUMOLO, 2005, p. 241).

Dermeval Saviani, em muitos dos seus escritos, nos faz refletir sobre o trabalho
como definidor da essência do ser humano; da perspectiva individual ou social, o
homem se constitui como tal a partir de suas ações no meio e de suas relações com os
outros homens que permeiam estas ações. De maneira resumida, o que Saviani (2007)
esclarece é que somente o trabalho e a capacidade de planejá-lo e organizá-lo nos
diferem dos demais animais. A comparação entre a abelha e o arquiteto2, feita por Marx
n’O Capital, ilustra bem esta diferença.
Conforme Vigotski (2004), o trabalho se define não apenas pela atuação do
homem sobre a natureza, mas também por uma “coordenação de esforços” entre
homens a fim de ajustar seus comportamentos e convencioná-los criando
regulamentações de modo a uni-los em uma conduta coletiva, social.
Podem ser alegadas outras muitas características que distanciam os homens de
outros animais, a consciência é um exemplo, mas poder adaptar a natureza às demandas,
ao invés de adaptar-se à natureza, é uma habilidade única. Assim, “[...] o homem se
diferencia propriamente dos animais a partir do momento em que começa a produzir
seus meios de vida, passo este que se encontra condicionado por sua organização
corporal”. (MARX; ENGELS apud SAVIANI, 2007, p. 154).
O desenvolvimento dos modos de produção, da ciência e da tecnologia é que
cria as culturas e gera a história da humanidade. E a educação deve considerar esse
desenvolvimento, incrementando a formação diante de cada novo passo que altera a
forma de trabalho. Todo modelo de formação é, historicamente, fruto do modo de
produção vigente, o que não significa pensar o “trabalho como princípio educativo”,
mas pensá-lo como fim.
Para Ciavatta (20093), “o trabalho não é necessariamente educativo, depende das
condições de sua realização, dos fins a que se destina, de quem se apropria do produto


2
“[...] e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colmeia. Mas o que distingue o pior
arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade.
No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do
trabalhador.” (MARX, 1868, p.202).
3
Disponível em www.epsjp.fiocruz.br/dicionario/verbetes/trapriedu.html


295

do trabalho e do conhecimento que se gera”. Segundo a autora, para ser considerado


fundamento educativo, o trabalho deve ser parte da escola pressupondo oferecer
conhecimento científico e tecnológico a todos os alunos, segundo a escola unitária4, e
contemplar em seus currículos a crítica aos modos de produção vigentes, à divisão
social do trabalho e aos direitos e deveres do trabalhador.
A análise da professora Ciavatta corrobora com o que Pistrak (2000, p.105)
afirmou ser a “tese fundamental” da obra Fundamentos da Escola do Trabalho: “o
trabalho na escola não pode ser concebido sem que se considerem os objetivos gerais da
educação”. Ambos pretendem chamar a atenção para o fato do trabalho não ser
educativo por si só; é necessário, para tanto, que seja socialmente útil. Não basta o
esforço de reproduzir as atividades humanas para educar, é preciso adequá-las às forças
produtivas individuais dos alunos, orientar o trabalho no sentido de atender a objetivos
claros de formação e conectar o trabalho aos conhecimentos científicos inerentes a ele.
Viabilizar a educação por meio do trabalho exige planejamento pedagógico
exaustivo, a fim de que o aluno sinta a necessidade de “[...] se instruir tendo em vista
um objetivo social determinado”. (PISTRAK, 2000, p. 107).
O modo de produção, concebido a partir da Cooperação Simples5 e desenvolvido
com a introdução de maquinarias e de microeletrônica até chegar à indústria atual, exige
dos operários algum conhecimento, por agregar processos científicos e tecnológicos ao
trabalho. Esta exigência gera uma contradição relativa à formação do trabalhador: como
dar acesso ao conhecimento científico necessário ao aumento da produtividade, sem
abrir mão da propriedade privada que se constitui deste saber?
Para solucionar o impasse, optou-se pela especialização, ou seja, o trabalhador
tem acesso apenas à parte do conhecimento inerente à sua função na linha de produção.
Assim o funcionário alcança desempenho ótimo naquela etapa do trabalho, mas somente
os encarregados de gerenciar o processo conhecem-no por completo.


4
Na concepção gramsciana, a “escola unitária” é uma proposta de educação pautada no trabalho cujo
objetivo é a emancipação da classe trabalhadora. Uma educação que possibilite a superação do modelo
capitalista onde o trabalho é dever de alguns e explorado por outros. (NASCIMENTO e
SBARDELOTTO, 2008, p. 289). Uma escola igual para todos, independentemente da origem social. Que
não separe o trabalho manual do intelectual e capaz de formar intelectuais da classe trabalhadora por meio
do acesso aos mesmos conhecimentos, currículo e cultura oferecidos à classe abastada.
5
Intitulada por Marx, a Cooperação Simples foi a maneira inicial de divisão do trabalho em que cada
artesão passou a confeccionar somente uma etapa do produto final, otimizando a relação entre tempo e
quantidade de mercadorias por meio da especialização. (Saviani, 1989). “A forma de trabalho em que
muitos trabalham planejadamente lado a lado e conjuntamente, no mesmo processo de produção ou em
processos de produção diferentes, mas conexos, chama-se cooperação”. (MARX, 1996 apud
LOMBARDI, 2001, p. 119).


296

A indústria requer, também, uma espécie de polivalência. Ou seja, se por um


lado a indústria favorece uma especificidade do trabalhador que o mantenha alheio ao
processo como um todo, por outro ela exige uma capacitação que faça o trabalhador
servir de reserva de mão de obra, que abasteça o mecanismo econômico de redução e
ampliação da produção, de acordo com as demandas do mercado. Assim, o operário é
capaz de trocar de fábrica, sem que isto demande grandes aprendizados, ou uma nova
profissionalização. O produto final da indústria pouco interfere no manuseio das
máquinas que o operário deve lidar.
O trabalhador recebe uma formação profissional parcelada, que o especializa
numa determinada tecnologia utilizada em diversas indústrias, de diferentes produtos, e,
ao mesmo tempo, é capaz de torná-lo mais eficiente naquela fase da fabricação. Deste
modo, o operário aumenta sua produtividade e pode ser trocado de indústria, conforme
o mercado demandar mais ou menos quantidade deste ou daquele produto.
Por isso, não podemos tomar como sinônimo a formação polivalente e a
politecnia. A educação politécnica é pautada nos processos do trabalho, abrangendo,
como explica Saviani (2007), a compressão dos fundamentos científicos das múltiplas
técnicas utilizadas nestes processos. A partir dela é possível assimilar os movimentos
em que se decompõem o trabalho complexo industrial e seu desenvolvimento científico
e tecnológico, unificando o trabalho num indissociável processo intelectual e manual. A
respeito das possibilidades educativas desse trabalho, Vigotski (2004, p.258) esclarece
que o significado “é infinito porque, para dominá-lo plenamente, é necessário o mais
pleno domínio do material da ciência acumulada por todos os séculos”.
É unanime entre os autores que tratam deste tema a ideia de que a Educação
Politécnica é a concepção marxista de educação. Marx não nos deixou nenhum texto
que objetivasse a questão pedagógica, entretanto é possível encontrar em sua obra
elementos que norteiam uma proposta de educação. Manacorda, em Marx e a
Pedagogia Moderna (1991, p.9), evidencia essa ausência de ênfase na pedagogia nas
obras do filósofo alemão quando afirma que ela é “tratada de maneira ocasional em seus
aspectos específicos”, mas que podemos encontrá-la “colocada organicamente no
contexto de uma crítica rigorosa das relações sociais”.
Marx e Engels (2011) eram avessos ao trabalho de crianças e jovens, a não ser
que este trabalho estivesse aliado ao processo formativo. Ou seja, que a produção das
crianças fosse combinada à educação intelectual, corporal e tecnológica, diferenciando
este do trabalho alienado.


297

Para Rodrigues (1998), a Educação Politécnica traz em seu bojo um


posicionamento político enfático e, se tratada como “concepção marxista de educação”,
tem por finalidade elevar “a classe operária acima dos níveis das classes burguesa e
aristocrática”. (MARX apud RODRIGUES, 1998, p.33).
Diante dessa finalidade, Rodrigues aponta o que ele chama de “principais
vetores da concepção marxista de educação”:

1- Educação pública, gratuita, obrigatória e única para todas as


crianças e jovens, de forma a romper com o monopólio por parte da
burguesia da cultura, do conhecimento. 2- A combinação da educação
(incluindo-se aí a educação intelectual, corporal e tecnológica) com a
produção material com o propósito de superar o hiato historicamente
produzido entre trabalho manual (execução, técnica) e trabalho
intelectual (concepção, ciência) e com isso proporcionar a todos uma
compreensão integral do processo produtivo. 3- A formação
omnilateral (isto é, multilateral, integral) da personalidade de forma a
tornar o ser humano capaz de produzir e fruir ciência, arte, técnica. 4-
A integração recíproca da escola à sociedade com o propósito de
superar o estranhamento entre as práticas educativas e as demais
práticas sociais. (RODRIGUES, 2009, Disponível em:
http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionário/verbetes/edupol.html)

A Politecnia é uma concepção de educação, não uma metodologia de ensino ou


proposta didática. Contudo, esta concepção abrange uma dimensão pedagógica e
envolve uma dimensão infraestrutural, que se preocupa com o modo de produção, com
as condições materiais e a organização do trabalho. Mas é, antes de tudo, um
posicionamento político e ideológico.
A Educação Politécnica tem a tarefa de sobrepujar as relações sociais
constituídas no trabalho alienado6, que tem por finalidade apropriar em um só bolso o
que é produzido coletivamente. Por meio da divulgação do saber, ciência e tecnologia
para a classe operária, se tornam possíveis a assimilação total do modo de produção e o
fim do domínio privado do conhecimento que mantém o trabalhador preso ao que lhe é
oferecido como emprego. “[...] a concepção de ensino e formação Politécnica é, antes de
tudo, uma crítica ao projeto excludente, elitista e diferenciador do ensino e da formação,
desenvolvido na sociedade capitalista. “ (FRIGOTTO apud RODRIGUES, 1998, p. 70).
A defesa da Educação Politécnica é, igualmente, a defesa de um novo tempo
político e econômico que vá contra a condição social existente. É defender a chance de
cada cidadão ser o que quiser ser, e não o que lhe é imposto. Se o trabalho é o que,


6
Trabalho alienado é, nesse texto, compreendido como aquele que torna o indivíduo alheio ao resultado
de sua própria atividade, excluído do uso de sua produção, expropriado de sua força de trabalho.


298

conforme Saviani (1989, p.8), “define a existência histórica dos homens”, todo homem
devia ter condições de produzir sua existência de acordo com seu desejo e ter seu
trabalho valorizado tal qual o outro que possa ter feito outra escolha.
Politecnia é, portanto, a possibilidade de formação do homem que prima pela
igualdade de oportunidades para a classe trabalhadora em resposta ao projeto de
educação dividida, imposto pela sociedade capitalista. A modernização do modo de
produção é acompanhada de uma desqualificação progressiva do trabalho, pois a tarefa
fica cada vez mais limitada, distanciando o trabalhador da noção do todo.
Segundo Rodrigues (1998, p. 57), Marx defendia que a maquinofatura “[...]
traria em si a possibilidade de uma formação politécnica e a consequente requalificação
da força de trabalho, superando, assim, a condição de alheamento do operário em
relação ao seu trabalho”. Na dimensão infraestrutural da Politecnia residem os
principais argumentos em que se apoiam as críticas em defesa ou contra a ideia de
politecnia. Não é consenso o significado de qualificar o trabalho e o trabalhador entre os
autores da área.
De um lado existem os que acreditam numa dicotomia, distinguindo a
qualificação do trabalho, relativa aos conhecimentos e habilidades necessários para a
realização de tarefas específicas da função produtiva do operário, da do trabalhador,
relacionada ao acervo geral de saberes agregado ao indivíduo. De outro lado há os que
entendem como indissociáveis os dois aspectos e questionam se o que a área busca não
é, exatamente, romper com esta dicotomia.
Para o segundo grupo, a desqualificação reside na perda de controle e
autonomia, que priva o trabalhador da liberdade no trabalho, fazendo-o perder o
interesse, refletindo na má qualidade de suas tarefas. De maneira geral, a dimensão
infraestrutural da Educação Politécnica preocupa-se em perceber como o
desenvolvimento científico e tecnológico afeta a formação do trabalhador, buscando
potencializar os aspectos positivos e minorar os negativos.
Com isso, a base da Politecnia não pode estar em formas primitivas de produção,
mas na atual. “De fato, a formação humana é sempre ditada, sob o capitalismo, pelas
necessidades de produção, e nenhuma forma de ensino poderá alterar seja o que for”.
(DANGEVILLE apud LOMBARDI, 2011, p. 147).
As novas tecnologias elevam o nível de complexidade demandada do
trabalhador, exigindo certa polivalência, “bem como a especialização flexível com base
na educação geral”. Como já exposto neste estudo, não podemos confundir polivalência


299

com politecnia, mas é preciso encarar esta demanda como aspecto favorável à Educação
Politécnica, não como capacitação máxima, adaptação ou funcionalidade, e sim para ser
incorporada e superada pela politecnia. (PAIVA apud RODRIGUES, 1998, p.64).
O avanço tecnológico simplifica a tarefa, mas a complexidade envolvida na
facilitação do fazer mantém o trabalhador cada vez mais distante da compreensão do
funcionamento da máquina. A politecnia representa a possibilidade de domínio
intelectual sobre a técnica, que torna o trabalhador ciente dos processos envolvidos e
capaz de atuar criticamente sobre sua tarefa, fomentando os aspectos criativos e
autônomos que levam a novos conhecimentos.
Não cabe à Politecnia, como explica Rodrigues (1998), superar por si só a
apropriação privada de riquezas produzidas socialmente, nem a divisão do trabalho em
intelectual e manual, pois isto constitui um limite estrutural da sociedade capitalista;
mas esta concepção define-se pela luta pela liberdade no trabalho por meio do domínio
prático e teórico dos seus processos.
Por fim, há o eixo da politecnia cuja preocupação é propor uma metodologia
pedagógica. Talvez este seja o maior desafio da Educação Politécnica, criar propostas
de ensino que contemplem as duas outras dimensões desta concepção sem partir de
abstrações distantes da conjuntura em que se insere. Vigotski (2004, p.258) aponta a
importância de introduzir na escola um plano de estudos baseado, não no trabalho
primitivo, mas nas “formas de trabalho industrial e tecnicamente aperfeiçoado”.
Repensar a instituição escolar dando espaço para uma ideia de educação
transformadora da realidade social não constitui uma tarefa trivial. Não só pelos
motivos políticos que saltam aos olhos e pela composição do trabalho que exige rapidez
na formação de novos operários, mas pela dificuldade de mudar o que está posto, ou
seja, de construir o novo no interior do velho.
A escola, como conhecemos, impõe uma estrutura rígida, que prima pela
especialização, por meio da fragmentação do saber. Como podemos alterar este quadro
em busca de uma formação omnilateral, integradora e unitária? Como tornar indivisível
o trabalho que ainda separamos entre intelectual e prático?
Vale, diante da missão árdua de encontrar estes caminhos, lembrarmos do trecho
em que Marx coloca-se, senão de maneira determinante das possibilidades, ao menos de
modo esperançoso e incentivador: “a humanidade só levanta os problemas que é capaz
de resolver [...] o próprio problema só surgiu quando as condições materiais para


300

resolvê-lo já existiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer”. (MARX apud


RODRIGUES, 1998, p. 82).
É necessário pôr em prática as ações educativas baseadas nas dimensões utópica
e infraestrutural da politecnia para que, por meio das análises na própria escola, possam
ser traçadas as críticas que propiciam o desenvolvimento da Educação Politécnica.
A escola que tem intenção de ser politécnica deve ser capaz de trazer o mundo
do trabalho para seu cotidiano, fundamentando a prática pedagógica nos processos de
trabalho que estão permeados de conteúdos que, geralmente, são ministrados (como
remédios) em doses subdivididas em disciplinas.
Há, nesta dimensão, um debate sobre o nível de escolaridade que melhor
acomoda a politecnia. Saviani considera o Ensino Médio o espaço ideal para tal
concepção, pois entende esta etapa da formação como o momento de compreensão de
como o conhecimento acumulado pela humanidade interfere na força produtiva. O autor
sugere que a escola tenha, em suas instalações, oficinas “de trabalho real”, que
possibilitem a assimilação de como se organiza o trabalho moderno. (SAVIANI, 2007,
p. 161).
A luta pela liberdade no trabalho é uma unanimidade entre os estudiosos da
Politecnia e esta luta é representada pela busca da compreensão dos fundamentos
científicos que regem os processos do trabalho e de como o trabalhador se insere nesses
processos. As contrariedades que existem entre os autores residem no método de atingir
este objetivo. A reprodução dos meios de produção dentro da escola é um caminho
viável? Ou o enfoque nas “[...] bases científicas e técnicas que sustentam os processos
produtivos”, como define Frigotto (apud RODRIGUES,1998, p. 88), é o aporte
necessário? Ou ainda, a abordagem na perspectiva da gerência do processo do trabalho?
Que abarque os conteúdos ligados à cultura geral e ao saber acadêmico?
Chegar a um consenso na dimensão pedagógica não parece ser uma meta muito
próxima. O modelo educativo que se pretende politécnico tem que ser capaz de
satisfazer uma gama de requesitos vindos tanto das duas outras dimensões da Educação
Politécnica, quanto das necessidades formativas dos alunos.
Para Saviani (1989, p. 21), os profissionais do ensino “teriam que se imbuir do
sentido de Politecnia, e pensar globalmente a questão do trabalho e explicar então,
historicamente, geograficamente, e assim por diante, este mesmo fenômeno”. Vigotski
(2004, p.264), há quase cem anos, já expunha o valor pedagógico da politecnia
comparando-o com os demais métodos e destacando, principalmente, o diferencial da


301

centralidade deslocada do professor para o aluno, que gera efeitos psicológicos


favoráveis à construção do conhecimento:
Para esse autor, diante da educação pelo trabalho, o aluno incorpora por si só os
campos nos quais se dividem a “influência educativa sobre ela”, as ciências naturais e
humanas. Para isto, é necessário organizar as atividades, de modo a colocar os alunos
numa relação criadora e ativa com os processos do trabalho. Isso não deve ser por meio
de uma profissionalização gradual, mas, mediado por uma entrada no sentido total da
ação produtiva, por uma descoberta por si das partes indispensáveis que constituem o
todo.
Vigotski (2004) aponta como cada área científica, tais como conhecemos hoje,
estão naturalmente presentes no trabalho: as questões relativas à natureza, para ele,
aparecem em todo o caminho que a matéria prima percorre dentro da indústria,
mostrando como este material se comporta sob as leis da física e da química,
desvelando suas propriedades como densidade, elasticidade e deformação, que
justificam seu uso para a produção de cada mercadoria. Como o corpo responde às
excitações nervosas para gerar a execução do trabalho, abrange outros aspectos que
devem ser compreendidos pelo trabalhador. As ciências humanas permeiam o contexto
do trabalho, por conta de todas as relações pessoais a que o trabalhador está exposto,
além das habilidades sociais que são exigidas para manter viáveis estas relações, como
confiança, afinidade, unidade, compreensão, condescendência. E, por fim, o
desenvolvimento através da história e dos espaços em que se constituem.
A facilitação da tarefa avaliativa é uma vantagem que compõe esta proposta de
educação. O próprio resultado da produção do estudante dá a ele condições de avaliar
seu progresso diante dos objetivos iniciais. A satisfação gerada pelo bom resultado já
estimulam o aluno a novos desafios.
O trabalho é inerente à condição humana e um direito consagrado pela
Constituição. No entanto, tratá-lo como centro das ações educativas ainda configura um
desafio para os educadores. Os currículos escolares permanecem, em grande parte,
alheios à relevância de preparar crianças e jovens para o mundo do trabalho. Vincular o
processo educativo à vida do aluno dá aos conteúdos sentido e justificativa, cujo efeito é
a apreensão, o saber e a constituição do conhecimento, ao invés da simples
memorização.
A Educação Politécnica está voltada para a prática, nas palavras de Vigotski
(2004, p. 273), parafraseando Marx, “[...] se limitaram a explicar o mundo e agora cabe


302

pensar em transformá-lo”. É da prática que nascem as demandas por novos


conhecimentos, é onde se justificam, confirmam e verificam.
A educação pelo trabalho possibilita a superação dos equívocos da escola de
modelo disciplinar, pois “[...] em primeiro lugar, sintetiza e unifica todos os objetos e,
em segundo, dá-lhes inclinação prática e emprego e, em terceiro, revela o próprio
processo de descoberta da verdade e o seu movimento depois que já foi descoberta”.
(Vigotski, 2004, p.275).
Unir o processo educativo ao mundo do trabalho não significa romper com a
instituição escolar:

O que se pretende é partir do fenômeno do trabalho moderno


(dimensão infraestrutural) para a reestruturação das práticas
pedagógicas (dimensão pedagógica), mediada por uma perspectiva
mais ampla de transformação global da sociedade (dimensão utópica).
(RODRIGUES, 1998, p. 92).

2 Proposta de residência docente

Antes do Instituto Politécnico de Cabo Frio existir, os responsáveis por sua


criação já haviam experimentado um modelo de escola com metodologia fundamentada
na atividade do aluno, ou seja, baseada no Trabalho. Tratava-se da Escola Municipal de
Pescadores de Macaé (EMPM), que atendia a alunos de 6º ao 9º ano, dando condições e
expertise aos idealizadores para concretizar o IPUFRJ
Desde a elaboração da EMPM, existia a proposta de aliar seu funcionamento a
um curso de formação de professores que pudesse prepará-los para o modelo de escola
que estava sendo pensado. A ideia era associar o trabalho docente na instituição à
construção do conhecimento acerca da metodologia e concepção de educação em que se
baseava seu Projeto Político Pedagógico.

Foi um Projeto [EMPM] muito importante no sentido de propor um


modelo novo de formação de professores. Um modelo semelhante ao
da residência médica, com base na atividade prática dos professores,
na adoção de novos modelos de ensino-aprendizado, centrados na
atividade do aluno, utilizando coisas que aqui no Brasil ainda não
tinham sido utilizadas [sistematicamente], como a Pedagogia de
Projetos. (AMORIM, 2011, informação verbal)7.


7
AMORIM, Fernando, em entrevista. Entrevistador: Jose Cubero. Rio de Janeiro, GEM, 2011.


303

Essa ideia foi amadurecendo com as experiências formativas realizadas ao longo


dos seis anos de funcionamento da Escola de Pescadores e, mais tarde, com o grupo de
professores do IPUFRJ.
Num primeiro momento, além do acompanhamento do trabalho dos professores
feito por docentes da Universidade, o curso era realizado em módulos distribuídos nas
férias escolares de fim e meio de ano. Cada módulo durava duas semanas, que eram
divididas em tempos coletivos de estudo sobre a metodologia e posição política do
modelo das escolas e tempos por área de conhecimento, onde eram aprofundadas as
questões e dificuldades peculiares de cada grupo.
A demanda de formar os professores foi sendo atendida conforme as
possibilidades, mas sempre tendo um Programa de Qualificação de Professores em
Educação e Trabalho em nível stricto sensu no horizonte. Em 2009 e 2010 houve um
grande esforço de tornar o programa uma realidade, o corpo docente para o curso foi
composto, as disciplinas com suas respectivas ementas foram construídas, as aulas
iniciadas, mas não houve a aprovação do mesmo junto à UFRJ e ao MEC a tempo de
dar continuidade ao trabalho.
Numa época de muitas frentes de luta, fechamento da EMPM, corte e atraso de
bolsas, pressão contra várias iniciativas do UFRJMar, pareceu ser a melhor alternativa
unir esforços para a manutenção do IPUFRJ, que estava também ameaçado. A
coordenação decidiu priorizar o Instituto, pausando algumas de suas ações.
Assim, em 2012 o UFRJMar aprovou, junto à Pró-Reitoria de Extensão (PR5), a
criação do Programa de Qualificação de Professores em Educação e Trabalho, como
curso de extensão com 359 horas de formação, já que 360 horas configuram curso de
especialização lato sensu. A primeira turma do Programa teve início no primeiro
semestre de 2013.
Em 2016 o Programa de Qualificação em Educação e Trabalho está tramitando
na Universidade para se tornar um curso de pós-graduação lato sensu, na modalidade
Residência. O Instituto Politécnico funcionará como laboratório dedicado à construção
de novos modelos de ensino e aprendizagem, onde possa ser adotado um modelo
semelhante ao da residência médica, com foco no trabalho prático dos alunos-docentes.
Conciliado à prática docente, um conjunto de disciplinas de formação teórico
metodológica, serão realizadas ao longo de dois anos, perfazendo um total de 2120
horas, além de um trabalho de conclusão.
Serão cinco disciplinas de 45 horas:


304

1) Metodologia da Educação Politécnica;


2) Metodologias das Ciências;
3) Educação,Tecnologia e Sociedade;
4) Filosofia da Educação no Mundo Ocidental;
5) Acompanhamento Pedagógico (por área do conhecimento).
O curso foi criado levando em conta a necessidade de uma formação mais
específica para atuação no Ensino Técnico Integrado ao Médio, além de dar subsídios
ao professor na área técnica em que atua dentro da escola, independente da sua área de
origem.
Vale ressaltar que esta preocupação está em consonância com os apontamentos
do Plano Nacional de Educação – PNE na direção de uma maior integração dos
conteúdos propedêuticos e técnicos. A ideia defendida pelo Programa é que estes
conteúdos não sejam somente mais integrados, mas que sejam indissociáveis. Dessa
maneira, a proposta do Programa de Qualificação de Professores em Educação e
Trabalho visa:

1. Contribuir para o aprimoramento das práticas docentes na


educação dos municípios no interior do Rio de Janeiro, tendo por
referência o modelo pedagógico do Instituto Politécnico da UFRJ, que
servirá de laboratório permanente para a formação, em nível lato
sensu, dos educadores;
2. A validação de um modelo de formação de educadores que
busca valorizar a autonomia intelectual dos alunos, acolhendo a
prática pedagógica como experiência privilegiada para a construção de
conceitos;
3. A difusão do modelo pedagógico do Instituto Politécnico da
UFRJ para o ensino técnico integrado ao médio, e estende-a, ademais,
também ao segundo ciclo do nível fundamental ─, com a substituição
da grade de disciplinas convencionais por áreas mais amplas do
conhecimento;
4. A formação de professores para atuar no ensino Técnico e
Tecnológico.
Não obstante o fato de o Governo ter ampliado de forma muito
significativa a rede de escolas federais e criado o sistema de Institutos
Federais de Educação em Ciência e Tecnologia, que continuará a
crescer nos próximos [...] anos, não existe ainda um programa de larga
escala para formar professores para este importante segmento do
sistema público. O déficit de técnicos qualificados já se constitui hoje
como um dos principais entraves ao crescimento sustentado da
economia. Porém, as universidades federais ainda não se mobilizaram
nem para a formação de professores para o ensino técnico e
tecnológico, nem tampouco para estudar os modelos mais adequados
para a educação do trabalhador e do técnico. [...] O sistema de ensino
público, mesmo nas melhores universidades públicas, tem se
envolvido muito pouco com a investigação de novas formas e modelos


305

de ensino e aprendizagem. […] Neste sentido o Programa de


Qualificação de Professores em Educação e Trabalho pretende se
constituir como uma iniciativa, que na sua fundação, já buscou um
novo arranjo acadêmico, tanto para a estrutura do curso, como na
forma de organizar o trabalho de professores e alunos, constituindo-se
com uma rede aberta envolvendo diversas unidades, departamentos e
programas e colocando-se disponível para o convênio com o IFF.
(Amorim; Cubero; Ventin; Pires, 2011, p. 2).

Apesar de entendermos a docência como campo de conhecimento de interesse de


toda a Universidade, já que todos os Centros e Unidades possuem professores em sua
composição e, portanto, metodologia e concepção de educação, acreditamos ser de
grande relevância a aproximação da Faculdade de Educação (FE) para esta iniciativa. O
Programa é interdisciplinar, foi concebido desta forma e hoje compõe um Núcleo que,
embora Órgão Suplementar do Centro de Tecnologia, tem participantes de diferentes
origens acadêmicas e traz a interdisciplinaridade no seu nome. Portanto, não há um
campo de conhecimento específico para os temas tratados pelo Programa, nem a
pretensão de haver. O que existe é a vontade de criar uma sinergia capaz de dar conta de
diversos problemas relacionados à educação, onde a FE teria um papel fundamental.

Conclusão preliminar

No Documento Base da Educação Profissional Técnica de Nível Médio


Integrada ao Ensino Médio é possível encontrar resultados das reflexões que
reemergiram no início do século a cerca da Politecnia como alternativa interessante à
formação profissional de nível médio no país. No entanto, Moura, Garcia e Ramos
(2007), entendem que só seria possível para o contexto brasileiro uma adaptação da
concepção politécnica, onde a especificidade de uma formação técnica teria lugar, já
que “a extrema desigualdade socioeconômica obriga grande parte dos filhos da classe
trabalhadora a buscar a inserção no mundo do trabalho” antes dos vinte anos.
Essa vem sendo a perspectiva do Instituto Politécnico da UFRJ, buscar a
formação profissional sem abrir mão da formação geral. Assim, a partir do trabalho
inerente a cada profissão para a qual formam-se técnicos, os alunos encontram
significado e tomam consciência de conhecimentos acumulados histórico-socialmente.
Para tanto, reconhecidamente, é emergente que os professores sejam formados na
mesma perspectiva, a fim de assumirem a tarefa de maneira consciente e com meios
para tal.


306

Até aqui fica evidente a necessidade de aprofundarmos estudos que investiguem


o sucesso (ou não) desta proposta de formação. Ainda que o curso, da maneira que
acredita-se que deve ser, ainda não tenha sido colocado em prática, os professores-
bolsistas que passaram por esta experiência, ainda não formalizada, desde 2006 na
EMPM até maio de 2016 no IPUFRJ, somam cerca de 150 participantes, compondo um
número bastante relevante para uma pesquisa acerca do tema.
Ainda que a proposta não encontre espaço na Universidade e encerre sua práxis,
os 10 anos de sua história deixaram, acreditamos, uma marca e um novo olhar sobre a
educação nestes tantos professores que tiveram a oportunidade de vivenciá-la.

Referências

AMORIM, F. A. S.; COSTA, L. H.; VENTIN, M. F.; PEREIRA, N. Q. R. Programa de Cursos


Técnicos da UFRJ. Rio de Janeiro: UFRJ, 2011.

AMORIM, F. A. S.; CUBERO, J. B.; VENTIN, M. F.; PIRES, B. S. Programa de Qualificação


de Professores em Educação e Trabalho. Rio de Janeiro: pR5/UFRJ, 2011.

ANTUNES, R. (org.). A Dialética do Trabalho: escritos de Marx e Engels. Volume 2. São


Paulo: Expressão Popular, 2013.

BRASIL, Conselho Nacional de Educação. Parecer CNE/CEB Nº 11/2012. Diretrizes


Curriculares Nacionais para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio. Brasília. Diário
Oficial da República Federativa do Brasil. Disponível em:
http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_ docman&task. Acesso em 20/072014.

BRASIL, Decreto Nº 5154 de 23 de Julho de 2004. Brasília. Diário Oficial da República


Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2004/decreto/d5154.htm. Acesso em 20/07/2014.

FRIGOTTO, G. A Produtividade na escola improdutiva: um (re)exame das relações entre


educação e estrutura econômica-social capitalista. São Paulo: Cortez, 1984.

FRIGOTTO, G. A Interdisciplinaridade como Necessidade e como Problema nas Ciências


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MANACORDA, M. A. Marx e a Pedagogia Moderna. São Paulo: Cortez – Autores


Associados, 1991.

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MÉSZÁROS, I. A Educação para Além do Capital. Tradução de Isa Tavares – 2ª ed. – São
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307

MOURA, D. H.; GARCIA, S. R. O.; RAMOS, M. N., Documento Base - Educação


Profissional Técnica de Nível Médio. Integrada ao Ensino Médio. Brasília: Secretaria de
Educação Profissional e Tecnológica – Ministério da Educação, 2007.

NASCIMENTO, M. I. M.; SBARDELOTTO, D. K. A Escola Unitária: educação e trabalho em


Gramsci. Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG Revista HISTEDBR On-line,
Campinas, n.30, p.275-291, jun.2008 - ISSN: 1676-2584

NÓVOA, A. Para uma formação de professores construída dentro da profissão Revista


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PISTRAK, M. M. Fundamentos da Escola do Trabalho. Tradução de Daniel Aarão Reis Filho;


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TUMOLO, P.S. O Trabalho na Forma Social do Capital e o Trabalho como Princípio


Educativo: uma articulação possível? Campinas: Unicamp - Educ. Soc., vol. 26, n. 90, p. 239-
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VIGOTSKY, L.S. Psicologia Pedagógica. Tradução de Paulo Bezerra – 2ª ed. – São Paulo:
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2009, Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Todos os direitos reservados. Fundação


Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.
(http://www.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes.html)


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

PNLD, LIVRO DIDÁTICO E FORMAÇÃO HISTÓRICO CRÍTICA: UM


DIÁLOGO COM SAVIANI

Daiane Francis Fernandes Ferreira UFES/CAPES 1

Resumo: Este trabalho objetiva refletir sobre os dados estatísticos que tornam o PNLD
(Programa Nacional do Livro Didático) o maior Programa de distribuição gratuita de livros
didáticos do mundo e sobre o possível papel formador destes livros no desenvolvimento do
homem (discente). Para isso, iremos dispor das contribuições de Dermeval Saviani, no que se
refere à educação e a formação do homem, e de dados estatísticos disponibilizados pelos órgãos
governamentais, no que se refere ao funcionamento do PNLD de 2014 à 2016. Dessa forma,
intenta-se contribuir para as discussões acerca do livro didático no ambiente escolar e para os
estudos que apontam a importância de olharmos para estes manuais de maneira analítica e
prudente. 2

Palavras-chave: PNLD; Livro Didático; Formação Histórico Crítica; Saviani.

Considerações iniciais

Em 2016 o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) entregou para


121.574 escolas brasileiras um total de 128.588.7303 livros didáticos4 para diferentes
níveis e modalidades de ensino, contemplando tanto as séries do Ensino Fundamental e
Médio quanto programas como o PBA (Programa Brasil Alfabetizado) e o EJA
(Educação de Jovens e Adultos). Estes números tornam o PNLD o maior Programa de
distribuição gratuita de livros didáticos do mundo e chamam a atenção tanto do mercado
editorial quanto de pesquisadores de diferentes áreas acadêmicas.
A cada nova edição do programa são abertos processos seletivos para as editoras
submeterem opções de coleções didáticas. Estas coleções são avaliadas por uma
comissão da SEB (Secretaria de Educação Básica) e podem ou não ser recomendadas

1
Daiane Francis Fernandes Ferreira, Mestranda em Educação, bolsista CAPES, Universidade Federal do
Espírito Santo, Vitória. Brasil. E-mail: daiafrancis@hotmail.com
2
Este texto é fruto de reflexões parciais promovidas durante os encontros da disciplina de Filosofia da
Educação, ministrada pelo Prof. Dr. Robson Loureiro no Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo; e contou com valiosas contribuições da Pesquisadora Clarissa
Zagotto da Cunha.
3
Dados estatísticos disponíveis em www.fnde.gov.br. Acesso em 04 junho 2016 às 12h26m.
4
Tendo em vista a diversidade de nomenclatura das diferentes tipologias referentes aos manuais
escolares, estaremos, para efeito deste panorama, usando livro, obra, manual didáticos etc. como
sinônimos.


309

para compra. Quando recomendadas e adquiridas, estas coleções de livros didáticos


acompanham oficialmente a formação dos discentes por aproximadamente quatro anos,
estando estes manuais constantemente presentes tanto na vida dos discentes quanto de
seus professores. Esta constante presença nos convida a pensar de maneira crítica os
conteúdos, métodos, e diferentes abordagens que circulam nestes manuais, que, com o
passar do tempo, tornaram-se peças fundamentais nas aulas de quase todas as
disciplinas do currículo escolar.
Logo, tendo em mente a forte presença destes manuais na sala de aula e o
crescente desenvolvimento do PNLD, este trabalho pretende compartilhar algumas
reflexões e questionamentos sobre o possível papel destes manuais na formação
humana, e sobre os resultados do Programa Nacional do Livro Didático de 2014 à 2016.
Intenta, também, provocar a reflexão do leitor acerca da importância de olhar para estes
livros de forma crítica, e chamar a atenção para a transmissão de possíveis ideais
presentes nestas publicações, que tendem a privilegiar determinadas culturas em
detrimento de outras.
Para o alcance de tais pretensões, iremos dispor das contribuições de Saviani
(1993), tanto sobre o conceito de consciência crítica, que para o autor, é aquela que se
sabe condicionada, que sabe o que e porque a condiciona, quanto de sua tese sobre a
importância da reflexão para a formação do professor, do papel da educação, e da
caracterização do bom livro didático, que para o autor é “[...] aquele que, reconhecendo-
se um dentre os diversos recursos que concorrem para o êxito do ensino, for capaz de
reunir o maior número de estímulos que permitam a professores e alunos dinamizar o
dia a dia do processo ensino-aprendizagem [...]”. (SAVIANI, 1993, p. 153).
O trabalho está dividido em dois momentos distintos, são eles: a) apresentação
da proposta do PNLD e de seu funcionamento, que contém uma reunião de dados
estatísticos acerca do investimento do Programa nos anos de 2014, 2015, e 2016, e; b)
apontamentos, calcados no pensamento de Dermeval Saviani, sobre o possível papel do
livro didático na promoção do homem e, consequentemente, em sua formação crítica.
Ressalta-se, também, que este trabalho visa a discutir a maciça presença dos
livros didáticos no ambiente escolar e o papel que eles exercem, ou podem exercer, no
processo de formação dos alunos. Os dados levantados são problematizados, de forma a
compartilhar algumas reflexões e permitir que o leitor também faça este exercício que,
segundo Saviani, “[...] é o ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, revisar,


310

vasculhar numa busca constante de significado. É examinar detidamente, prestar


atenção, analisar com cuidado”. (SAVIANI, 1993, p. 28).

1 O Programa Nacional do Livro Didático: algumas considerações

Além da distribuição dos habituais livros didáticos, o PNLD oferece para as


escolas públicas brasileiras a distribuição de dicionários, livros complementares para a
alfabetização, e coleções de obras literárias de diversos autores e temáticas. Atualmente
essa distribuição acontece em ciclos trienais alternados, período em que alguns livros
são adquiridos e outros separados para reutilização.
Os livros considerados reutilizáveis são destinados às disciplinas de Língua
Portuguesa, Matemática, História, Geografia, Física, Química e Biologia. Estes
permanecem na escola e são utilizados pelos discentes por um período de três anos. Os
demais livros, denominados pelo Programa por consumíveis, são destinados à
Alfabetização Matemática, Inglês, Espanhol, Filosofia e Sociologia. Estes permanecem
com os alunos e podem ser riscados, respondidos, e apropriados pelos discentes.
O Programa se subdivide em cinco grupos e visa a atingir o maior número de
alunos possível, são eles: a) PNLD EJA, que distribui livros didáticos para jovens e
adultos das escolas parceiras do Programa Brasil Alfabetizado; b) PNLD CAMPO, que
distribui material didático para alunos que estudam em escolas consideradas rurais; c)
PNLD OBRAS COMPLEMENTARES, que adquire obras direcionadas às turmas de 1º
ao 3º ano para auxiliar na alfabetização; d) PNLD ALFABETIZAÇÂO NA IDADE
CERTA, que visa a adquirir material didático, literatura e tecnologias educacionais para
garantir a alfabetização até, no máximo, oito anos de idade e; e) PNLD DICIONÁRIOS,
que distribui acervos de dicionários de Língua Portuguesa.
Porém, essas subdivisões nem sempre existiram. O primeiro PNLD é datado em
mais de 80 anos, teve início com outro nome, e contemplava apenas algumas séries da
Educação. Durante este período, novas comissões e ferramentas legais foram criadas
para subsidiar e fomentar a produção nacional de manuais didáticos. Foi durante o
processo de democratização brasileira, por volta da segunda metade da década de 80,
que os docentes começaram a integrar o Programa e passaram a selecionar as obras, que
até então eram exclusivamente selecionadas pelo governo.
Nos anos seguintes, o Programa passou por grandes expansões. É a partir dos
anos 1990 que é possível identificar seus maiores avanços, como a distribuição de


311

manuais didáticos para todo o Ensino Fundamental e Médio, e a aquisição de


dicionários e obras literárias, passando a alcançar todos os alunos da Rede Pública de
Educação Brasileira, das séries iniciais às séries finais.
Hoje, o PNLD é o grande responsável por aquecer o mercado editorial brasileiro
com seus expressivos investimentos e constante expansão. No ano de 2015, lançou às
editoras várias propostas de produção através de diferentes editais, dentre elas, a de
elaboração de obras multimídia com recursos didáticos digitais.
Com essa constante expansão, o Programa movimenta o mercado financeiro e,
segundo Munakata (2012), promove em torno do livro didático intenções que não estão
relacionadas com o fim educacional, e sim com a obtenção de lucro, tornando estes
livros mercadorias que carregam as características do sistema capitalista.
Tais intenções despertam muita preocupação e questionamentos, principalmente
em relação à qualidade e ao conteúdo destes manuais, pois, com uma possível
massificação comercial e com a transformação destes materiais em produto, existe a
possibilidade deles perderem sua essência didática e não cumprirem um papel
estimulador que leva a novas descobertas.
Acerca da qualidade destes manuais, o PNLD, por meio de alguns parceiros
como o IPT (Instituto de Pesquisas tecnológicas do Estado de São Paulo) e a SEB
(Secretaria de Educação Básica), informa possuir um controle de qualidade que conta
com uma comissão técnica de avaliadores que recomenda ou não as obras submetidas
pelas editoras. Estas obras são avaliadas como: i) excluídas; ii) recomendadas com
ressalvas; iii) recomendadas e; iv) recomendadas com distinção.
Diante disso, espera-se que as obras adquiridas sejam todas avaliadas e
recomendadas com distinção, de modo que as escolas públicas brasileiras recebam
apenas manuais com qualidade inequívoca, tanto em relação a sua abordagem teórica
metodológica, quanto ao seu material gráfico. Entretanto, observa-se que, em alguns
casos, os livros submetidos pelas editoras não são recomendados com distinção, em sua
maioria, recomendados com ressalvas ou apenas recomendados, e, ainda assim, estas
obras são obtidas de maneira abundante pelo governo, dando a entender que o objetivo é
adquiri-las, mesmo que não sejam as melhores e mais adequadas didáticas para o ensino
de uma disciplina ou outra; o que nos faz questionar acerca das reais intenções que
perpassam estes investimentos.
Visto isso, afim de demonstrar os valores emitidos pelo governo nos anos de
2014, 2015 e 2016 com a aquisição destes livros, a seguir são apresentados alguns dos


312

dados estatísticos disponibilizados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da


Educação. São eles:

Ano Valores (R$)


Escolas Alunos
do Exemplares Atendimento
Beneficiadas Beneficiados Aquisição Distribuição
PNLD

Ensino
39.606 10.150.460 47.409.364 368.062.791,73 58.727.886,32 Fundamental:
1º ao 5º ano

Ensino
Fundamental:
59.097 2.609.633 9.901.805 57.964.238,45 19.834.945,80 1º ao 5º ano
(Educação do
Campo)

Ensino
51.439 10.995.258 28.170.038 220.253.448,14 54.880.224,96 Fundamental:
6º ao 9º ano

Subtotal:
114.982 23.755.351 85.481.207 646.280.478,32 133.443.057,08 Ensino
Fundamental
PNLD
Ensino Médio:
2016 19.538 7.405.119 35.337.412 336.775.830,99 34.513.659,62
1ª a 3ª série

Educação de
Jovens e
Adultos (2015
25.536 2.650.789 6.998.019 82.651.540,13 16.113.584,34 e 2016):
Ensino
Fundamental e
Médio

Programa
Brasil
*** 701.816 772.092 4.972.194,84 745.644,50
Alfabetizado
(PBA)

Total do
121.574 34.513.075 128.588.730 1.070.680.044,28 184.815.945,54
PNLD 2016

Tabela 1: Total do PNLD 2016


Fonte: www.fnde.com.br acessado em 15/06/2016 às 17:00


313

Ano do Escolas Alunos Valores (R$)


Exemplares Atendimento
PNLD Beneficiadas Beneficiados Aquisição Distribuição

Ensino
47.225 10.764.129 25.454.102 173.222.891,86 30.677.077,02 Fundamental:
1º ao 5º ano

Ensino
Fundamental:
58.180 1.950.211 3.609.379 22.178.101,43 10.289.895,22 1º ao 5º ano
(Educação do
Campo)

PNLD Ensino
2015 51.762 10.774.512 27.605.870 192.661.598,51 34.641.441,68 Fundamental:
6º ao 9º ano

Subtotal:
119.345 23.488.852 56.669.351 388.062.591,80 75.608.413,92 Ensino
Fundamental

Ensino Médio:
19.363 7.112.492 87.622.022 787.905.386,58 111.041.941,71
1ª a 3ª série

1.175.967.978,3 Total do
123.947 30.601.344 144.291.373 186.650.355,63
8 PNLD 2015
Tabela 2: Total do PNLD 2015
Fonte: www.fnde.com.br acessado em 15/06/2016 às 17:00


314

Ano do Escolas Alunos Valores (R$)


Exemplares Atendimento
PNLD Beneficiadas Beneficiados Aquisição Distribuição

Ensino
46.962 11.634.717 27.517.048 187.830.450,00 32.162.604,46 Fundamental: 1º ao
5º ano

Ensino
Fundamental: 1º ao
61.675 2.073.002 4.379.376 26.097.649,80 12.073.521,41
5º ano (Educação
do Campo)

Ensino
50.619 11.818.117 75.657.959 571.265.078,86 88.570.010,26 Fundamental: 6º ao
9º ano

Subtotal: Ensino
113.150 25.525.836 107.554.383 785.193.178,66 132.806.136,13
PNLD Fundamental
2014 Ensino Médio: 1ª a
19.243 7.649.794 34.629.051 292.481.797,74 40.635.131,22
3ª série

Educação de
Jovens e Adultos:
32.864 4.758.832 13.335.546 131.403.418,12 27.671.408,15 Ensino
Fundamental e
Médio

Programa Brasil
*** 1.468.797 1.615.828 8.814.672,90 1.856.225,77 Alfabetizado
(PBA)

Total do PNLD
121.279 39.403.259 157.134.808 1.217.893.067,42 202.968.901,27
2014
Tabela 3: Total do PNLD 2014
Fonte: www.fnde.com.br acessado em 15/06/2016 às 17:00

Ao se observar as tabelas em conjunto, constata-se que os valores referentes à


soma da aquisição e distribuição de livros têm diminuindo desde 2014, e, ainda assim,
os números surpreendem. Comparado a outros programas do governo, como o Brasil
Carinhoso (programa destinado ao apoio de creches públicas ou conveniadas que
atendem crianças entre 0 a 48 meses) e o PNTE (Programa Nacional de Apoio ao
Transporte Escolar), o PNLD permanece em uma situação relativamente confortável,
visto que ultrapassa os valores investidos nos dois Programas citados.


315

No primeiro Programa, Brasil Carinhoso, foi repassado às creches um montante


de mais de quatrocentos milhões de reais, e para o segundo Programa, PNTE, foi
repassado aos transportes de estudantes um pouco mais de quinhentos milhões de reais5.
Ambos os valores estão bem distantes do último dado estatístico do PNLD, que investiu
mais de um bilhão de reais apenas com a aquisição dos manuais.
Reconhece-se, aqui, a importância dos investimentos realizados pelo governo na
aquisição de livros didáticos. Não obstante, é importante considerar estes manuais de
maneira reflexiva e criteriosa, tendo em mente, principalmente, a quantidade destes
livros que está presente nas escolas brasileiras, a parcela que eles ocupam no saldo do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, e, no caso dos docentes, a
importância de se ter um olhar crítico no momento da seleção.
Selecionar o livro didático que será adotado pela escola, independente da
disciplina, exige estudo e cautela de toda equipe pedagógica, haja vista que este
momento está cercado de estratégias de venda e trabalhos de propaganda promovidas
pelas próprias editoras. Nesse sentido, Cassiano (2005), que pesquisou a trajetória de
diferentes editoras no Brasil, relata que os agentes responsáveis pelo marketing do livro
didático adquirem conhecimentos da rotina e ambiente escolares para adentrarem nestes
meios e influenciarem na escolha das coleções.
Quando se trata das instituições privadas de ensino, Cassiano (2005) afirma que
são os professores quem detém o poder decisório na compra dos manuais, nessas
instituições a equipe de venda, em sua maioria, adota estratégias presenciais e chega a
fazer reuniões com os professores para apresentar e ofertar o produto.
Nas escolas públicas a apresentação dos livros didáticos é feita nos períodos de
ação do PNLD. Ocorre sempre em um momento determinado por uma agenda do
programa e pode ser caracterizado como sazonal, porém, exige uma mobilidade muito
maior por parte das equipes de venda das editoras, uma vez que a quantidade de escolas
é maior e o contexto em que elas estão inseridas é diverso.
Cassiano (2005) alerta os docentes para estas estratégias mercadológicas
realizadas pelas editoras, e sugere uma análise livre dos argumentos do vendedor, de
forma que os professores não se deixem influenciar por nenhuma ação.


5
Ambos os valores citados se referem ao último registro de repasse disponível no site do Fundo Nacional
de Desenvolvimento da Educação, e podem ser consultados no endereço www.fnde.gov.br, na aba
individual destinada a cada um dos programas.


316

O que se deseja é que o professor não permita ser influenciado por tais
estratégias e que ele ensine seus alunos a terem a mesma atitude, de maneira que o livro
didático seja questionado, contextualizado, e refletido a todo momento, e assim tornar-
se um potente instrumento na formação de ambos – aluno e professor.

2 Livro Didático e a formação do homem

As investigações sobre o livro didático têm constituído um domínio de pesquisa


em pleno desenvolvimento. Algumas das razões para esta ocorrência é a onipresença de
livros didáticos pelo mundo e, conforme já citado, a sua contribuição na economia do
mercado editorial que, segundo Chopin (2004, p.551), “[...] em um país como o Brasil,
por exemplo, os livros didáticos correspondiam, no início do século XX, a dois terços
dos livros publicados, e representavam, ainda em 1996, aproximadamente a 61% da
produção nacional”.
Inicialmente tais livros continham apenas exercícios de fixação. Com o decorrer
do tempo passaram a conter textos de diversos assuntos relacionados à sociedade, ao
país, e às problemáticas da época, tais como o namoro e a gravidez na adolescência, o
uso de drogas ou tatuagens, e a boa utilização da internet. Há, de acordo com Choppin
(2004, p. 556), abordagens de diferentes temáticas que servem como instrumento para
auxiliar na possível formação dos jovens e, também, “[...] na recuperação de uma
identidade cultural, devido a acontecimentos como a descolonização e o aumento das
aspirações regionalistas [...]”.
A inclusão destes conteúdos nos livros didáticos levantou, e ainda levanta,
alguns questionamentos acerca do papel destes manuais, pois, a rigor, podem ser
concebidos não apenas como meros suportes para o ensino prático das disciplinas e seu
funcionamento, mas como um significativo formador de opinião.
Entretanto, quando se fala acerca de formar opinião, deve-se atentar para qual
opinião se pretende formar e sobre o que os livros propõem que os alunos desenvolvam
uma opinião. De modo que as propostas de diferentes temáticas que partem destes livros
apresentem maneiras distintas de pensar estes temas, e estimule a autonomia do
discente, evitando possíveis engessamentos ou generalizações na forma como
determinados assuntos são tratados no ambiente escolar, pois, como afirma Candau
(2014), “ a dinâmica cristalizada na cultura escolar apresenta uma enorme dificuldade


317

de incorporar [...] as diversas linguagens e expressões culturais e as novas sensibilidades


presentes de modo especial nas novas gerações e nos diferentes grupos culturais”.
O livro didático faz parte da cultura escolar, e por isso questiona-se se ele não
tem corroborado para reforçar a cristalização mencionada por Candau. Apesar de alguns
avanços no trabalho gráfico, o conteúdo permanece quase inalterado, sempre com uma
proposta de leitura e questões sobre o que foi lido, ou uma explicação sobre algum
conteúdo e uma sequência de questões acerca do que foi explicado.
Essa sequência estática adotada pela maioria dos livros didáticos deixa de ser
estimulante ou desafiadora ainda nas primeiras séries da educação básica, quando já se
pode presenciar alunos que indagam aos seus professores qual página deve ser lida e até
sobre o número de questões que eles têm de responder, demonstrando a rotina mecânica
a qual eles já se adaptaram e a ausência de novidade em seus manuais didáticos.
Porém, o novo é um dos elementos que aguça a curiosidade, desperta o desejo
pela descoberta, e estimula a criatividade, sentimentos que deveriam conter em livros
que fazem parte da formação de jovens, livros, que como afirma Saviani (1993, p.146),
deveriam “[...] servir como elemento estimulador a professores e alunos no sentido de
aguçar-lhes a capacidade criadora, levando-os à descoberta e uso de novos recursos,
através de sugestões múltiplas e ricas”.
A sugestão de Saviani pode ser uma maneira de tornar os leitores do livro
didático parte do processo de ensino-aprendizagem, de modo que o conteúdo não seja
apenas exposto, mas construído juntamente com seus interlocutores. Dessa forma, o
livro deve “[...] conter/incorporar um discurso dialético e não se caracterizar como um
conjunto de enunciados fechados e conclusivos”. Se mostrando aberto à possibilidades,
discussões e questionamentos. (SAVIANI, 1993, p. 148).
A discussão é parte do processo de formação do homem e deve estar incorporada
ao processo de ensino-aprendizagem da escola, que, segundo Saviani (1993, p.143),
“[...] é organizado intencionalmente de modo a se atingir adequada, eficaz e
eficientemente o objetivo fundamental da educação: a promoção do homem”. Logo,
sendo o livro didático elemento consolidado nas salas de aula, não deveria ele, também,
sugerir propostas frequentes para o debate desde as primeiras séries da educação básica?
Debates, inclusive, sobre a ciência, que muitas vezes tem seus resultados colocados nos
manuais como produto final e acabado, criando a imagem de uma ciência pura, sempre
verdadeira e inalterada, como se os resultados de pesquisas científicas, em especial das


318

áreas de biomédicas, por exemplo, não fossem contestados rapidamente por outras
pesquisas, novas descobertas, e diferentes resultados.
Sobre isso, Saviani (1993, p. 148) alerta que “[...] um autor de livro didático
deve ter em mente [..] que não lhe cabe, propriamente, expor as conclusões científicas
(essa é a função dos livros especializados), mas selecioná-las e ordená-las de modo a
atingir o objetivo educacional: a promoção do homem, isto é, do educando”.
A promoção do homem, assim como os livros didáticos, são assuntos que têm
inspirado profundos debates em diversos âmbitos. Entretanto, ainda não observamos o
estabelecimento de uma relação entre estas duas temáticas, tendo em mente que, apesar
de maneiras diferentes, ambas estão presentes na escola e interrelacionam-se ou
poderiam interrelacionar-se a todo momento; pois, se como atesta Saviani (1993), o
objetivo da educação é a formação do homem, por que não dispor dos livros didáticos
para atingir tal objetivo?
Essa questão é rodeada de problemáticas e vem automaticamente acompanhada
de outras questões, dentre elas, o tipo de formação pretendida e de quem parte esta
pretensão. Saviani (1993) afirma que a alta evasão escolar indica que a escola primária,
como é denominado o Ensino Fundamental pelo autor, não é, não se faz necessária à
população brasileira, pois seu modelo elitista não corresponde as aspirações da
sociedade, o que nos permite depreender possíveis conclusões acerca dos manuais que
circulam no ambiente escolar e sua presumível ineficiência na formação do homem.
Saviani também afirma que compomos uma sociedade de laços fracos, e que o
papel da escola seria reforçar estes laços dando voz àqueles que até então foram
silenciados, o povo. Dar voz significa ouvir, confiar a alguém a palavra na certeza de
que ela, somente ela, saberá dizer o que é melhor para si mesma, através de diálogos e
discussões que poderiam (deveriam) ser iniciados na própria escola, com a presença de
diferentes indivíduos, formas de pensar, de agir, de viver, aprendendo desde já a
importância de ouvir e falar.
Como mencionado, o livro didático, a partir do intermédio do professor, pode
contribuir com a incitação de debates e é, segundo Saviani (1993, p.148), “[...] o
instrumento adequado para a transformação da mensagem científica em mensagem
educativa”. Essa transformação se torna muito importante a partir do momento que se
compreende a escola como principal agência de formação e que, ao menos em tese,
caberia a ela capacitar o seu público para compreender, refletir e dialogar criticamente


319

com os mais diversos tipos de informação, incluindo aquela de cunho científico, que por
vezes é inacessível e abstrata.
O que se percebe, pois, é que o livro didático não tem se prestado a discutir o
senso comum, conhecimento elencado nas próprias relações de um determinado grupo
social, tampouco o conhecimento científico como propõe Saviani: conhecimento
selecionado e ordenado para a promoção do educando. Daí a importância em se atentar
para o conteúdo que compõe estes manuais didáticos. A intenção é demonstrar a
responsabilidade que eles portam na tarefa de promover um espaço para o pensamento
coletivo crítico, reflexivo e emancipatório, que torne os agentes sociais indivíduos
ativos de sua realidade, e não passivos, como se tem identificado constantemente.
A responsabilidade atribuída aos livros didáticos nesta tarefa de tornar a escola
um espaço de troca e de formação, é pequena. Disso se tem consciência. O livro
didático não age sozinho e é dependente de muitos fatores, agentes, e circunstâncias.
Porém, mesmo conscientes de tal informação, entende-se que ainda que nossas
responsabilidades sejam pequenas elas devem ser cumpridas, e não ignoradas.
Isso posto, é possível inferir que os livros didáticos, comprometidos com a
responsabilidade de contribuir para a formação do sujeito integral, não surgem de
repente, como afirma Saviani (1993, p. 154), “[...] este tipo de livro não surgirá, porém,
espontaneamente. Estas notas são, pois, apenas um convite para se examinar de modo
mais profundo o problema concernente ao livro didático”.
Dessa forma, retomamos o primeiro parágrafo deste texto, os livros didáticos
têm suscitado nos dias atuais, e há algum tempo, um profícuo interesse entre
pesquisadores que têm construído um domínio de pesquisa em pleno desenvolvimento,
mas, não podemos nos deixar intimidar pela quantidade de pesquisas acerca desta
temática e pelas diferentes abordagens que têm sido dadas ao livro didático, pois,
enquanto ele não se abrir para estas vozes, mais elas devem se manifestar.

Considerações finais

O que se pretendeu defender, neste artigo, é que o livro didático pode sim
contribuir para a formação integral dos jovens, mas, para isso, ele ainda necessita de
muita investigação e de diferentes olhares atentos para seus conteúdos e abordagens.
Por mais que estes livros já sejam um objeto estudado por pesquisadores de diversas
áreas, não devemos nos esquivar de nossas contribuições, pois, além de observamos,


320

professores que se apropriam destes manuais como se mestres fossem, alunos que não
questionam as informações trazidas por estes livros e o cunho mercadológico que recebe
devido à disposição financeira do PNLD, ainda são muitos os questionamentos que
giram em torno destes manuais e de seu programa de avaliação e distribuição.
Ressalta-se, mais uma vez, a necessidade de se olhar com atenção para estes
livros e fazer parte deste processo, como professores, alunos, cidadãos que se
preocupam com o tipo de formação proposta por estes manuais e o que motiva estas
propostas. Ao refletir sobre elas, não intentamos a abolição dos livros didáticos ou sua
demonização, mas a produção consciente de seus conteúdos.
Por fim, recorre-se a Saviani (1993, p. 153) que, ao terminar suas notas sobre o
livro didático e a lei 5692/71 escreve: “[...] esperamos, com isso, ao levantar a questão
do livro didático no quadro da organização escolar brasileira atual, provocar a reflexão
de professores, autores e editores sobre a necessidade e urgência da produção de bons
livros didáticos”.

Referências

CANDAU, Vera Maria. Interculturalidade e Educação Escolar. [s.d.]. Disponível em:


<http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/veracandau/candau_interculturalidade.html>.
Acesso em: 22 junho 2016.

CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: Educação e Pesquisa.
Tradução de Maria Adriana C. Cappello. Educação e Pesquisa, São Paulo, v.30, n.3, p. 549-566,
set./dez. 2004.

CASSIANO, Célia Cristina de Figueiredo. Reconfiguração do mercado editorial brasileiro


de livros didáticos no início do século XXI: história das principais editoras e suas práticas
comerciais. Em Questão, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 281-312, jul./dez. 2005.

MUNAKATA, Kazumi. O livro didático: alguns temas de pesquisa. Revista Brasileira de


História da Educação. Campinas‐SP, v. 12, n. 3, p. 179‐197, set./dez. 2012.

SAVIANI, Dermeval. Do Senso Comum à Consciência Filosófica. São Paulo: Autores


Associados, 1993.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

LINGUAGEM, ENUNCIAÇÃO E GÊNERO DISCURSIVO:


APROXIMAÇÕES ENTRE BAKHTIN E LEONTIEV E CONSIDERAÇÕES
SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA

Karyn Meyer (IFSP)1

Resumo: O presente trabalho procura discutir a questão dos gêneros discursivos no ensino de
Língua Portuguesa dentro da perspectiva da pedagogia Histórico Crítica. Para isso, busca-se
estabelecer aproximações entre Bakhtin e Leontiev, no que tange a concepção de linguagem e,
partindo das proposições de Bakhtin acerca de gêneros discursivos, assinalar as contribuições
deste para o ensino de Língua Portuguesa dentro da perspectiva teórica assinalada.

Palavras-chave: gêneros discursivos, ensino de Língua Portuguesa, Bakhtin, Leontiev.

Introdução

Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), a


discussão acerca dos gêneros textuais no ensino de Língua Portuguesa vem crescendo e
tem tomado corpo no campo da Línguística Aplicada bem como da Educação (por meio
do letramento). Tornou-se quase consensual a ideia de que o ensino da Língua
Portuguesa não apenas deve se organizar em torno da leitura e produção de textos de
diferentes gêneros, mas de que o próprio conceito de gênero deveria ser objeto de
ensino de modo que aluno aprenda a caracterizar e diferenciar esses gêneros. Esse
conceito de gênero do discurso ou gênero textual deveria fazer parte de uma abordagem
Histórico-Crítica do ensino da Língua Portuguesa? De que forma deveria ser tratado?
Quais os fundamentos teóricos que deveriam embasar o desenvolvimento dessa
abordagem?
O objetivo deste trabalho é contribuir para o debate sobre essas questões,
explicitando alguns dos fundamentos teóricos que sustentam esse conceito. A reflexão
aqui apresentada se desenvolveu como parte da dissertação de mestrado “Os gêneros
textuais na alfabetização: uma análise da proposta apresentada no material ‘Ler e
Escrever’ da Secretaria Estadual da Educação do Estado de São Paulo” defendida junto


1
Karyn Meyer, Mestrado em Educação Escolar, Instituto Federal de São Paulo, SP, Brasil. E-mail:
karyn@ifsp.edu.br


322

ao Programa de Pós-Graduação em Educação Escolar da Faculdade de Ciências e


Letras, UNESP, Campus de Araraquara (fevereiro, 2016).

Desenvolvimento

Falar sobre os gêneros numa perspectiva materialista histórico-dialética implica


uma compreensão da linguagem enquanto produção humana que se desenvolve a partir
das condições objetivas de existência do homem. Isso significa reconhecer a linguagem
não como característica genética da espécie humana e sim como um instrumento
cultural que surge e se desenvolve como resultado da atividade vital do gênero humano,
o trabalho. As relações sociais que se estabelecem entre os seres humanos no trabalho e
na sua vida cotidiana são determinantes no desenvolvimento da consciência e da
linguagem. Afirma Leontiev (1978, p. 87) que

A produção da linguagem, como da consciência e do pensamento, está


directamente misturada na origem, à actividade produtiva, à
comunicação material dos homens.
O elo directo que existe entre a palavra e a linguagem, de um lado, e a
actividade de trabalho dos homens, do outro, é a condição primordial
sob a influência da qual eles se desenvolveram enquanto portadores do
reflexo consciente e ‘objectivado’ da realidade. Significando no
processo de trabalho um objecto, a palavra distingue-o e generaliza-o
para a consciência individual, precisamente na sua relação objectiva e
social, isto é, como objecto social.
Assim, a linguagem não desempenha apenas o papel de meio de
comunicação entre os homens, ela é também um meio, uma forma da
consciência e do pensamento humanos, não destacado ainda da
produção material. Torna-se a forma e o suporte da generalização
consciente da realidade. Por isso, quando, posteriormente, a palavra e
a linguagem se separam da actividade prática imediata, as
significações verbais são abstraídas do objecto real e só podem
portanto existir como facto de consciência, isto é, como pensamento.

Assim, é por meio da atividade de trabalho, atividade coletiva, que surgem no


desenvolvimento humano tanto a consciência como a linguagem. As formas de
organização social, os modos de produção, modificam a estrutura da consciência.
Linguagem e consciência, são, portanto, diretamente relacionadas às condições
materiais de existência do ser humano. A linguagem não é algo natural, inato, existente
desde sempre no homem e desta forma algo imutável. A linguagem como fruto do
desenvolvimento histórico social do gênero humano está atrelada às condições sócio-
históricas de sua produção. Ao mesmo tempo em que é determinada histórica e


323

socialmente, a linguagem possui uma autonomia relativa e reage influenciando as


relações humanas. Pela sua importância vital, a aquisição da linguagem constitui um
dos primeiros processos de formação em cada indivíduo, das capacidades culturalmente
elaboradas.
As características especificamente humanas são adquiridas, ou seja, ao indivíduo
cabe apropriar-se das objetivações das gerações anteriores. Somente por meio desta
apropriação ele se torna humano. Entretanto, isso não ocorre de forma natural, não basta
estar no mundo da cultura, em contato com as objetivações materiais e intelectuais para
delas se apropriar. É preciso que haja a mediação de outros homens no processo de
apropriação. É por meio de uma atividade dirigida direta ou indiretamente por outros,
no seio das relações sociais que se estabelecem objetivamente, que o indivíduo se
apropria das produções histórico-sociais das gerações precedentes e se torna de fato
humano. O pertencer à espécie, a herança genética, diferentemente do que ocorre nos
animais, não garante a existência individual. Como o ser humano produz seus meios de
existência pela mediação das relações sociais e dos instrumentos de trabalho
historicamente produzidos, sua relação com a natureza não se dá de forma direta.
Assim, dado que a relação não é imediata, para se reproduzir enquanto indivíduo e
produzir o que a humanidade necessita é preciso que cada um torne seu, por meio da
apropriação, aquilo que existe enquanto objetivação do gênero humano. Aquilo de que
cada um se apropria, se torna parte de sua individualidade. As limitações postas a esta
apropriação pelas relações sociais nas quais está inserido o homem determinam o
desenvolvimento mais restrito ou mais amplo da personalidade de cada um.
Enquanto no animal cada indivíduo representa as capacidades da espécie, no
homem isso não ocorre. O nível de desenvolvimento do gênero humano em dado
momento histórico representa uma possibilidade. A questão para o homem é que cada
um se aproprie ou não, transforme em suas as potencialidades do gênero humano.
Assim, a essência do ser humano, aquilo que o define, não está dado pelas
características genéticas da espécie. Ele é sempre histórica e socialmente determinada
pelas relações sociais e sobretudo pela classe social em que o individuo se situa. Nesse
sentido, Bakhtin (2014, p. 11) defende que

Efetivamente, não existe o indivíduo biológico abstrato, aquele


indivíduo biológico que se tornou o alfa e o ômega da ideologia atual.
Não existe o homem fora da sociedade, consequentemente, fora das
condições socioeconômicas objetivas. Trata-se de uma abstração


324

simplória. O indivíduo humano só se torna historicamente real e


culturalmente produtivo como parte do todo social, na classe e
através da classe. Para entrar na história é pouco nascer fisicamente:
assim nasce o animal, mas ele não entra na história. É necessário algo
como um segundo nascimento, um nascimento social. O homem não
nasce como um organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro
ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. Ele nasce russo
ou francês e, por último, nasce em 1800 ou 1900. Só essa localização
social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo
da criação da vida e da cultura. Todas as alternativas de evitar esse
segundo nascimento – o social – e deduzir tudo das premissas
biológicas de existência do organismo são irremediáveis e estão
condenadas ao fracasso: nenhum ato do homem integral, nenhuma
formação ideológica concreta (o pensamento, a imagem artística, até o
conteúdo de um sonho) pode ser explicada e entendida sem que se
incorporem as condições socioeconômicas. Além do mais, nem as
questões específicas da biologia encontrarão solução definitiva sem
que se leve plenamente em conta o espaço social do organismo
humano em estudo. Porque ‘a essência humana não é o abstrato
inerente ao indivíduo único. É o conjunto das relações sociais em sua
efetividade.’

O papel desempenhado pelas relações sociais no desenvolvimento humano


aparece claramente em Bakhtin e em Leontiev. Este papel não é desempenhado apenas
no âmbito do desenvolvimento filogenético. Na ontogênese, a atividade de trabalho
assim como as condições materiais de existência e as relações sociais nas quais se insere
o indivíduo, são também determinantes no desenvolvimento do psiquismo e da
linguagem. A qualidade das apropriações que o sujeito realiza será determinante no
desenvolvimento de suas funções psíquicas, dentre elas a linguagem e o pensamento.
Esta apropriação é, por sua vez, fortemente determinada pelas relações sociais nas quais
está inserido o indivíduo. Na sociedade de classes, a classe trabalhadora é privada cada
vez mais do acesso aos saberes (as significações) produzidos histórica e socialmente
pelo gênero humano.
Leontiev apresenta o conceito de significação enquanto generalização da
realidade cristalizada na linguagem, pertencendo aos fenômenos históricos. Entretanto,
aponta para o fato da significação existir também como fato individual, subjetivo. A
significação no âmbito individual, subjetivo, consiste, dessa maneira, da apropriação da
experiência sócio-histórica acumulada por parte do sujeito. Assim, ela realiza a
mediação do homem com o mundo objetivo. É por meio da linguagem que o homem
significa a realidade. A significação é a presença, na consciência do indivíduo, do
reflexo generalizado da realidade, que é dado ao homem por meio de um sistema de


325

significações já existente, elaborado histórica e socialmente. Disso implica que a


significação não é dada ao homem de forma natural, como algo inato.

[...] A sua consciência individual só pode existir nas condições de uma


consciência social; é apropriando-se da realidade que o homem a
reflecte como através do prisma das significações, dos conhecimentos
e das representações elaboradas socialmente. Assim, nas condições de
uma língua desenvolvida e ‘tecnicizada’, o homem não controla
apenas o domínio das significações linguísticas. Ele domina-as, mas
apropriando-se do sistema de ideias e de opiniões que elas exprimem.
Psicologicamente, é impossível assimilá-las de outro modo. Por outras
palavras, a apropriação do sistema das significações linguísticas é ao
mesmo tempo a apropriação de um conteúdo ideológico muito mais
geral, isto é, a apropriação das significações no sentido mais lato do
termo. (LEONTIEV, 1978, p. 130).

A apropriação da linguagem se dá no seio das relações sociais nas quais o


indivíduo está inserido. Não há neutralidade na linguagem, ela reflete tais relações por
meio das significações nela materializadas. Assim, a linguagem e sua forma concreta, a
enunciação, não podem ser atribuídas ao sujeito como fato individual. Mesmo em suas
manifestações mais cotidianas, nas enunciações mais particulares, há a presença e
determinação do elemento social. De acordo com Bakhtin

O componente verbal do comportamento é determinado em todos os


momentos essenciais do seu conteúdo por fatores objetivo-sociais.
O meio social deu ao homem as palavras e as uniu a determinados
significados e apreciações; o mesmo meio social não cessa de
determinar e controlar as reações verbalizadas do homem ao longo de
toda a sua vida.
Por isso, todo o verbal no comportamento do homem (assim como os
discursos exterior e interior) de maneira nenhuma pode ser creditado a
um sujeito singular tomado isoladamente, pois não pertence a ele, mas
sim ao seu grupo social (ao seu ambiente social).
[...]
Esse conteúdo da nossa consciência e de todo o psiquismo em seu
conjunto, bem como aquelas enunciações isoladas através das quais
esse conteúdo se revela no exterior são determinados, sob todos os
aspectos, por fatores socioeconômicos.
Nunca chegaremos às raízes verdadeiras e essenciais de uma
enunciação singular se as procurarmos apenas nos limites de um
organismo individual singular, mesmo quando tal enunciação
concernir aos aspectos pelo visto mais pessoais e íntimos da vida de
um homem. (BAKHTIN, 2014, p. 86).

O que caracteriza a manifestação individual da linguagem não é o sistema


abstrato da língua em que se insere nem o ato fisiológico de sua produção, mas a
interação verbal que se manifesta nas enunciações concretas.


326

Para Bakhtin, a manifestação concreta da linguagem que se realiza por meio de


enunciados concretos, se materializa em tipos relativamente estáveis de enunciação,
determinados pelo campo de atuação em que estão inseridos bem como pelas relações
sociais mais imediatas e mais amplas nas quais se situam o locutor e o interlocutor.
É importante ressaltar que a preocupação em situar histórica e socialmente os
enunciados (e por consequência os gêneros) perpassa a obra do autor. Em sua
perspectiva

[...] cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de
discurso na comunicação socioideológica. A cada grupo de formas
pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social,
corresponde um grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por
exemplo, relações entre colaboradores num contexto puramente
técnico), a forma de enunciação (“respostas curtas” na “linguagem de
negócios”) e enfim o tema, existe uma unidade orgânica que nada
poderia destruir. Eis por que a classificação das formas de
enunciação deve apoiar-se sobre uma classificação das formas de
comunicação verbal. Estas últimas são inteiramente determinadas
pelas relações de produção e pela estrutura sociopolítica. Uma análise
mais minuciosa revelaria a importância incomensurável do
componente hierárquico no processo de interação verbal, a influência
poderosa que exerce a organização hierarquizada das relações sociais
sobre as formas de enunciação. (BAKHTIN, 2009, p. 44-45).

Nesse trecho aparecem algumas questões que serão continuamente reiteradas ao


longo de seus textos. A primeira delas é a unidade entre a forma de comunicação, a
forma de enunciação e o tema, sendo esta unidade o elemento central do gênero. Assim,
não é a forma por si só que configura determinado gênero e este ponto é de fundamental
importância tendo em mente que o objetivo do presente trabalho é o estudo dos gêneros
no ensino da Língua Portuguesa. Dessa forma, ao se pensar no gênero como objeto de
ensino, deve-se pensá-lo nesta unidade proposta e reiterada pelo autor.
A segunda questão fundamental remete aos vínculos existentes entre as relações
sociais mais amplas (neste trecho sinalizada pelas relações de produção) e a forma de
enunciação concreta, ou seja, há, na linguagem, a manifestação de tais relações, e estas
se fazem presentes na própria estruturação dos gêneros. Podemos pensar que, enquanto
objetivações situadas social e historicamente, os diferentes gêneros contem em si as
determinações sócio-históricas nas quais o enunciado foi produzido. Não só o contexto
mais imediato na relação entre locutor e interlocutor se faz presente, mas as relações
sociais mais amplas nas quais se inserem ambos se fazem materializadas nos
enunciados que compõe o discurso. Bakhtin torna este fato explícito quando afirma que


327

“[...] A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam
completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da
enunciação”. (BAKHTIN, 2009, p. 117).
Tendo em vista tais considerações, podemos afirmar que os gêneros são
produzidos em determinados contextos e estão diretamente ligados à prática social, ou
seja, embora sejam tipos relativamente estáveis de enunciados, são criados e
modificados a partir da atividade humana organizada em diversos campos de atividades.
A variedade dos gêneros é ilimitada, pois são diversos os campos de atividade humana,
e inúmeras as possibilidades de objetivação da linguagem em cada campo. Isso não quer
dizer, entretanto, que não exista regularidade nos enunciados produzidos em
determinado campo. Quer dizer apenas que a regularidade existente não é a-histórica
nem tampouco independe da prática social humana.
A forma, se considerada independentemente dos outros aspectos que constituem
a unidade do gênero, não o define. Embora possamos reconhecer que determinada
forma remete normalmente a um determinado gênero, há casos em que tal forma se
insere em uma situação de enunciação diferente daquela em que o gênero normalmente
ocorre e traz uma temática diferente da esperada.
Ainda, há situações em que um gênero se insere em outro, o que ocorre com
frequência em textos literários.
Bakhtin apresenta uma distinção entre os gêneros primários e os secundários,
estabelecendo que os gêneros secundários são mais complexos e são formados por
diferentes gêneros primários transformados (como cartas, bilhetes, diários, etc.). Para o
autor, os gêneros literários são, geralmente, constituídos por gêneros secundários.
Assim, a presença de gêneros como cartas, bilhetes dentro do gênero literário
representa uma transformação do gênero original, visto que a situação de enunciação é
diferente. (BAKHTIN, 2011, p.. 305).
Os gêneros do discurso organizam a comunicação humana de sorte que, de
acordo com o autor, do mesmo modo como as formas da língua são interiorizadas
inconscientemente no seio da prática social, assim também o são os gêneros discursivos.
O homem se comunica exclusivamente por meio de tais gêneros, interiorizando suas
formas relativamente estáveis de organização, sem pensar teoricamente sobre elas. Na
prática sabemos as situações em que ocorrem determinados gêneros e os reconhecemos
criando expectativas sobre sua organização e duração. Entretanto, em se tratando da
questão dos gêneros no ensino, há que se pensar sobre a conscientização dos


328

mecanismos de criação e identificação dos mesmos, uma vez que, como afirma o
próprio Bakhtin (2011, p. 285):

Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os


empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a
nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos
de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em
suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de
discurso.

O melhor domínio do gênero implica uma maior conscientização do mesmo,


pois os processos voluntários permitem uma ação mais consciente sobre a linguagem. A
sistematização dos conhecimentos intuitivos sobre os gêneros, partindo do
conhecimento sincrético dos mesmos, por meio da análise e visando a síntese, irão
permitir uma mudança qualitativa na relação que se estabelece com os mesmos, ou seja,
para dominar este conhecimento, é preciso, como afirma Saviani (2009), partir da
prática social e a ela retornar. Nesse sentido, torna-se necessário estabelecer quais
critérios são fundamentais na análise dos gêneros, tendo como objetivo partir da
síncrese e chegar à síntese.
Um dos critérios basilares na definição de gênero e já explicitado no presente
trabalho remete à inserção dos gêneros em determinadas relações sociais (mais estreitas
e mais amplas). A enunciação, para Bakhtin (2009), mesmo na ausência de um
interlocutor real, é produto da interação entre indivíduos socialmente organizados. A
palavra é sempre orientada a um interlocutor, constituindo-se no produto da interação
entre locutor e ouvinte socialmente situados. Afirma Bakhtin (2009, p. 117):

Através da palavra, defino-me em relação ao outro, isto é, em última


análise, em relação à coletividade. A palavra é uma espécie de ponte
lançada entre mim e os outros. Se ela se apóia [sic] sobre mim numa
extremidade, na outra apóia-se [sic] sobre o meu interlocutor. A
palavra é o território comum do locutor e do interlocutor.

O outro, entretanto, não pode ser definido apenas como subjetividade, dado que
ambos, locutor e interlocutor, inserem-se em dadas práticas sociais, em relações sociais
historicamente determinadas, as quais marcam objetivamente as enunciações e, por
conseguinte, os gêneros. A enunciação é sempre socialmente dirigida, sendo
determinada pelas situações concretas em que ocorre, de sorte que, embora haja certa
estabilidade nas formas que o discurso possa assumir, não é esta forma que define a


329

verdadeira substância da língua, e sim a interação verbal que se concretiza em


enunciações que o faz.

Nenhuma enunciação verbalizada pode ser atribuída exclusivamente a


quem a enunciou: é o produto da interação entre falantes e, em
termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela
surgiu. Em outra passagem, procuramos mostrar que todo produto da
linguagem do homem, da simples enunciação vital a uma complexa
obra literária, em todos os momentos essenciais é determinado não
pela vivência subjetiva do falante mas pela situação social em que soa
essa enunciação. A linguagem e suas formas são produto de um longo
convívio social de um determinado grupo de linguagem. A enunciação
a encontra pronta no aspecto fundamental. Elas são o material da
enunciação, o qual lhe restringe as possibilidades. O que caracteriza
precisamente uma dada enunciação – a escolha de certas palavras,
certa teoria da frase, determinada entonação da enunciação – é a
expressão da relação recíproca entre os falantes e todo o complexo
ambiente social em que se desenvolve a conversa. As mesmas
‘vivências psíquicas’ do falante, cuja expressão tendemos a ver nessa
enunciação, são de fato apenas uma interpretação unilateral,
simplificada e cientificamente incorreta de um fenômeno social mais
complexo. É uma espécie de ‘projeção’ através da qual investimos
(projetamos) na ‘alma individual’ um complexo conjunto de inter-
relações sociais. A palavra é uma espécie de ‘cenário’ daquele
convívio mais íntimo em cujo processo ela nasceu, e esse convívio,
por sua vez, é um momento do convívio mais amplo do grupo social a
que pertence o falante. Para compreender esse cenário, é indispensável
restabelecer todas aquelas complexas inter-relações sociais das quais
uma dada enunciação é a interpretação ideológica. (BAKHTIN, 2014,
p. 79-80).

Quando se toma uma dada enunciação para o estudo de um determinado gênero


é fundamental que se expressem as determinações sociais presentes no mesmo. O
processo de conscientização, de conhecimento do gênero deve conduzir a compreensão
de que os elementos que o compõem, as escolhas do locutor, desde o nível do léxico, ao
sintático e ao estilístico, têm seus fundamentos na situação concreta de enunciação, no
direcionamento que dela se faz ao outro. Se não se leva em consideração este
direcionamento, a relação do falante com o outro, não é possível compreender de fato
um gênero.

Na verdade, qualquer que seja a enunciação considerada, mesmo que


não se trate de uma informação factual (a comunicação, no sentido
estrito), mas da expressão verbal de uma necessidade qualquer, por
exemplo a fome, é certo que ela, na sua totalidade, é socialmente
dirigida. Antes de mais nada, ela é determinada da maneira mais
imediata pelos participantes do ato de fala, explícitos ou implícitos,
em ligação com uma situação bem precisa; a situação dá forma a


330

enunciação, impondo-lhe esta ressonância em vez daquela, por


exemplo a exigência ou a solicitação, a afirmação de direitos ou a
prece pedindo graça, um estilo rebuscado ou simples, a segurança ou a
timidez, etc. A situação e os participantes mais imediatos determinam
a forma e o estilo ocasionais da enunciação. Os estratos mais
profundos de sua estrutura são determinados pelas pressões sociais
mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor.
(BAKHTIN, 2009, p. 117-118).

A comunicação verbal não é apenas determinada pelo seu contexto mais


imediato de enunciação, mas, como assinala o autor “As condições da comunicação
verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições
sociais e econômicas da época”. (BAKHTIN, 2009, p. 160).
A língua, para o locutor, é o material do qual ele se utiliza para satisfazer suas
necessidades concretas de enunciação. Ele utiliza as formas normativas, mas, para ele, o
cerne da questão não é a conformidade à norma e sim o significado que a forma assume
no contexto. Assim, não é o aspecto da forma que importa para ele, dado que este
permanece idêntico, mas, o que de fato é relevante, é o que faz com que dada forma se
adeque a determinada situação concreta.
O falante expressa sua vontade discursiva na escolha de determinado gênero do
discurso, escolha esta determinada pela situação concreta de enunciação, bem como
pela especificidade do campo de comunicação e por considerações acerca do tema. As
escolhas feitas pelo falante, em termos de palavras e orações, levam sempre em
consideração o enunciado completo. Ou seja, o enunciado como um todo, que se
expressa na forma de gêneros, determina as escolhas do locutor.

[...] O falante com sua visão de mundo, os seus juízos de valor e


emoções, por um lado, e o objeto de seu discurso e o sistema da língua
(dos recursos linguísticos), por outro – eis tudo o que determina o
enunciado, o seu estilo e sua composição. É esta a concepção
dominante.
Em realidade, a questão é bem mais complexa. Todo enunciado
concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um
determinado campo. Os próprios limites do enunciado são
determinados pela alternância dos sujeitos do discurso. Os enunciados
não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si mesmos; uns
conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos outros. Esses
reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada enunciado é pleno de
ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado
pela identidade de comunicação discursiva. (BAKHTIN, 2011, p. 296-
297).


331

O enunciado estabelece sempre relações com outros enunciados, constituindo-se


como elo da comunicação discursiva que se relaciona com o discurso do outro o
refletindo. Bakhtin (2011, p. 268) afirma que

[...] Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são


correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da
linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético, léxico, gramatical)
pode integrar o sistema da língua sem ter percorrido um complexo e
longo caminho de experimentação e elaboração de gêneros e estilos.

Discutir os gêneros em sala de aula implica reconhecer sua manifestação em


enunciados concretos, que dialogam sempre com outros enunciados, sendo por eles
determinados. O texto de determinado gênero, quando trazido para a sala de aula, não
exerce a mesma função nem se insere nas mesmas relações que o faz quando em
circulação na sociedade. Desde os mais próximos ao cotidiano, como uma receita de
bolo, até outros não tão próximos, como o texto literário, assumem, na escola, outra
função. Inserem-se em outro tipo de situação de enunciação, em outras relações. Não se
lê uma receita na sala de aula porque se quer fazer um bolo, nem se lê uma notícia de
jornal porque se deseja manter-se informado.
O gênero em sala de aula, materializado em determinado texto que se caracteriza
nesta situação como material didático, se insere em uma relação pedagógica, que tem
por objetivo o estudo do mesmo, a ação intencional, o direcionamento pelo professor,
para que o aluno se aproprie do gênero em questão, de suas características formais e
funcionais. Na sala de aula, o texto está inserido na relação pedagógica, marcado pela
situação de enunciação que se estabelece entre o professor e o aluno em um contexto de
ensino.
Essa situação concreta de enunciação coloca o gênero trabalhado dentro de outro
gênero que poderíamos nomear de gênero pedagógico. Assim, embora traga as marcas
da enunciação na sua forma original (na forma em que ocorrem na sociedade), as
relações nas quais a enunciação de fato se efetiva o modificam.
A intencionalidade, o direcionamento da atenção para determinados aspectos do
texto, a conscientização das relações que o definem, de sua estrutura e forma, não são
naturais na relação cotidiana com os gêneros. Esse tratamento peculiar é característico
das enunciações que ocorrem no espaço escolar.
Assim, o gênero se configura, nas atividades em sala de aula, enquanto conteúdo
curricular, e essa característica não é de menor importância, pois assinala justamente a


332

necessidade de um trabalho sistemático e intencional que possibilite a conscientização


do gênero enquanto unidade composta pela forma de enunciação, forma de
comunicação e o tema, situada histórica e socialmente. Essa conscientização não ocorre
de forma espontânea, pela mera exposição a um conjunto de textos do mesmo gênero.
Se assumíssemos como premissa esta possibilidade, o trabalho com gêneros em sala de
aula seria desnecessário.
Utilizam-se os mais diversos gêneros na comunicação e nas relações sociais que
os indivíduos estabelecem entre si, entretanto, assim como no uso da linguagem oral,
não há uma conscientização neste uso, não há, no uso cotidiano, uma relação consciente
com o gênero (assim como não há com as estruturas gramaticais de uma língua materna
na linguagem oral coloquial).
Portanto, o que deve marcar a presença dos gêneros na escola é o trabalho
direcionado e intencional que promova a apropriação de diversos gêneros, em especial
daqueles que o aluno não tem contato fora do espaço escolar, ou seja, dos gêneros
secundários, daqueles que se inserem na esfera do não-cotidiano (artes, ciência,
filosofia). Tal apropriação deve ser tornada possível não pelo mero contato com textos
variados, visando a observação de sua forma e elementos comuns, mas pela tomada de
consciência dos gêneros em suas manifestações concretas (enunciações) em sua unidade
entre forma, tema e situação de enunciação, marcada pelas relações sociais nas quais a
enunciação é produzida e pela presença do outro e do discurso do outro no enunciado.
A questão que se coloca em termos educacionais, refere-se à proposição, por
parte das pedagogias negativas, de que o trabalho educativo com os gêneros textuais
seja centrado na criação de um ambiente rico em termos de diversidade de gêneros,
possibilitando à criança a inferência de seus aspectos fundamentais. (DUARTE, 2010).
Embora apareça a preocupação com o trabalho sistemático com gêneros nestas
pedagogias (destaca-se aqui o construtivismo), esta sistematicidade não remete a
preocupação com o ensino do gênero enquanto conteúdo escolar, mas sim a exposição
da criança aos diferentes gêneros favorecendo sua aprendizagem.
Parte-se do pressuposto que o texto na escola assume as mesmas funções e
características que na prática social em que se insere originalmente e que, para que o
aluno se aproprie dos diferentes gêneros, a escola deva fornecer um ambiente rico e que
favoreça seu uso tal qual na prática social em que este se insere. Desconsidera-se que
nesta prática social, o relacionamento do indivíduo com o gênero é inconsciente, ou
seja, em termos gerais, eles são utilizados de forma espontânea. Assim sendo, tratar os


333

gêneros tal qual são tratados no cotidiano faz com que o ensino não seja voltado ao
estabelecimento de uma relação consciente com os mesmos.
A linguagem faz parte das esferas do cotidiano e do não-cotidiano. Na escola,
enquanto espaço privilegiado de transmissão dos saberes historicamente acumulados
pela humanidade, é fundamental que o trabalho com a linguagem possa, partindo do
cotidiano, atingir as manifestações mais elaboradas da mesma. Para isso, é fundamental
que se compreenda, no trabalho com os diferentes gêneros, o papel que a unidade
proposta por Bakhtin entre forma, tema e situação de enunciação desempenha. É preciso
que esteja claro o distanciamento entre o texto na escola e o texto em outras práticas
sociais. O texto na escola é um conteúdo de ensino, e como tal seu ensino deve
favorecer a compreensão da realidade objetiva.

Conclusão

Percebe-se, de acordo com o apresentado, que ter os gêneros enquanto conteúdo


curricular é algo fundamental. É preciso se ter claro, entretanto, que, para a pedagogia
Histórico Crítica, o ensino dos diferentes gêneros textuais na escola precisa estar a
serviço de um estudo sistemático da Língua Portuguesa, que instrumentalize o aluno
para realizar atividades de leitura e escrita nas esferas não cotidianas da prática social.
Isto modifica completamente o tratamento dado ao ensino dos gêneros na escola de
sorte que o mero contato com diferentes gêneros não é suficiente para que o aluno se
aproprie dos mesmos nem tampouco para que o indivíduo estabeleça uma relação não
espontânea com a língua.
Espera-se, assim, ter sinalizado a pertinência da temática dos gêneros
discursivos nas discussões acerca do ensino de Língua Portuguesa na perspectiva da
pedagogia histórico crítica, contribuindo, ainda que de forma preliminar, para o
desenvolvimento desta perspectiva teórica.

Referências

BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem: problemas fundamentais do método


sociológico da linguagem. São Paulo: Hucitec, 2009.

____. Os gêneros do discurso. IN: BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.

____. O Freudismo: um esboço crítico. São Paulo: Perspectiva, 2014.


334

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília: Secretaria de


Educação Fundamental, 1997.

DUARTE, N. O debate contemporâneo das teorias pedagógicas. IN: ____; MATINS, L.M.
(ORG). Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias. São Paulo:
Cultura Acadêmica, 2010.

LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte, 1978.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 18ªed. Campinas-SP:


Autores Associados, 2009.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E O TRATO COM O


CONHECIMENTO ESPORTE NA ESCOLA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES

Murilo Morais de Oliveira (UFBA)1


Cláudio de Lira Santos Júnior (UFBA) 2

Resumo: O texto apresenta reflexões sobre pesquisa em andamento em nível de doutorado.


Apresentamos as primeiras aproximações ao trato com o conhecimento esporte na escola a
partir da experiência de uma oficina fundamentada na pedagogia histórico-crítica e seus nexos
com a psicologia histórico-cultural e a metodologia crítico-superadora. Abordamos o esporte
como uma possibilidade de manifestação ulterior do jogo, e nesta linha, como atividade auxiliar
que pode vir a contribuir no processo de desenvolvimento humano dos educandos em nível
escolar. Concluímos que é possível uma abordagem do esporte que procure contribuir no
processo de humanização, desde que essa manifestação da cultura corporal seja tratada
cientificamente na escola, dentro daquilo que é a função social da escola, o que nos coloca em
oposição aos paradigmas da formação de atletas, da garantia (da falácia da) saúde, da inclusão
social ou do estilo de vida ativo.

Palavras-chave: esporte; trato com o conhecimento; metodologia crítico-superadora; pedagogia


histórico-crítica; psicologia histórico-cultural.

Introdução

O texto apresenta reflexões sobre pesquisa em andamento em nível de


doutorado. Nossa pesquisa de doutorado versa sobre o ensino do esporte na perspectiva
da pedagogia histórico-crítica (daqui por diante iremos nos referir a esta teoria como
PHC). Aqui apresentamos as primeiras aproximações ao tema, a partir da
problematização do trato com o conhecimento esporte na escola. O material serviu de
fundamentação para uma oficina sobre o ensino do esporte na escola, trabalhada com
professores da rede pública Estadual da Bahia, no ano de 2014.
Dividimos a abordagem em duas frentes que se interligam, mas que para efeito
didático são tratadas separadamente: a primeira diz respeito ao campo mais amplo da

1
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade
Federal da Bahia, BA, Brasil, e-mail: murilaum@gmail.com
2
Professor Doutor Associado I do Departamento de Educação Física da Faculdade de Educação da
Universidade Federal da Bahia, BA, Brasil, e-mail: clira@ufba.br


336

discussão sobre o esporte e a segunda sobre o trato com este conhecimento no ambiente
escolar.
Tomando a proposição didática da PHC, partimos da prática social realmente
existente, ou seja, o esporte está presente na escola, embora mais como atividade-treino
ou recreação do que como conteúdo de ensino. Então visando superar o senso comum
buscamos demarcar o que sabemos e o que precisamos saber para o trato com o
conhecimento esporte na escola.
Partindo do mais geral, apresentamos dados sobre o esporte no contexto
nacional. A pesquisa DIESPORTE3, executada entre 2010 e 2014, indica que o esporte
é responsável por cerca de 2% do produto interno bruto da Nação, ao mesmo tempo,
apenas 25,6% da população entre os 15-74 anos encontra-se envolvida em atividades
esportivas e o engajamento nestas atividades tende a cair com o avançar da idade. Por
outro lado quanto maior a escolaridade, maior o número de praticantes de esporte.
Contudo, dessa população temos que a maioria também não possui filiação a
instituições esportivas e/ou orientação profissional, assim como não praticam esporte
com fins de participar em competições. Apenas o resíduo de 5,5% quantificados pela
consulta do DIESPORTE pode ser considerado como agregado de opções de esporte
organizado e legalizado. Além disso, quando perguntados se “em sua região os espaços
públicos para a prática de esportes são suficientes?”, 36,4% dos respondentes disseram
que não e 37,0% responderam que sequer existem espaços estruturados pelo poder
público em suas regiões. Estes dados nos mostram que o esporte, apesar de muito
presente, inclusive economicamente, na vida das pessoas, não é algo de fácil acesso nem
em sua prática, e cremos que tampouco seja fácil o acesso ao seu conhecimento.
Em seguida problematizamos qual o conhecimento esporte reconhecido como
aquele a ser ensinado na escola? E qual o lugar deste conteúdo no processo de
desenvolvimento humano? Dessa forma, partimos da questão conceitual: O que é o
esporte? Qual é o esporte que temos em nossas escolas? Para a função social da escola e
do professor: O que justifica a presença do esporte como conteúdo de ensino em nossas
escolas? Nos valemos dos estudos desenvolvidos para instrumentalizar nossas
aproximações, tal como se segue4:


3
Disponível em http://www.esporte.gov.br/diesporte/index.html, acessado em 29/06/2016.
4
Explicamos que o objeto do artigo não é responder de forma conclusiva às questões aqui levantadas,
mas apontá-las como necessárias para o trato com o conhecimento esporte na escola.


337

Desenvolvimento

Tratar do esporte implica considerar como este se desenvolveu e de que maneira


isto ocorreu para que se apresentasse às pessoas da forma concreta que possui hoje, e
não de outra. Do ponto de vista de sua materialidade, o esporte é um fenômeno, fruto,
portanto, da atividade humana. Isto implica dizer que o esporte constitui o acervo
cultural da humanidade. Dado o grau de universalidade que ele alcançou, defendemos a
imperiosa necessidade de sua apreensão pelos homens, de forma científica na escola.
Em relação ao trato com o conhecimento esporte na escola, também precisamos
reconhecer que esta pode ser feita com base em diferentes propósitos de formação
humana, visando criar, ou conservar, diferentes tipos de sociedade e de relações sociais.
Identificamos na literatura da área cinco abordagens que sistematizam a educação física,
entretanto, destas apenas duas apresentam alguma sistematização para o ensino do
esporte. São elas a Crítico-Emancipatória e a Crítico-Superadora. De acordo com os
critérios definidos e a análise feita pelo autor, com a qual particularmente temos acordo,
somente a abordagem crítico-superadora encontra-se no campo crítico. (SILVA, 2011).
A proposição Crítico-Superadora é fruto da elaboração do Coletivo de Autores5
e surge no ano de 1992 no livro Metodologia do Ensino de Educação Física, trata o
conhecimento pelos princípios do materialismo histórico dialético, tem como objeto de
estudo a cultura corporal. Apresenta uma concepção de currículo ampliada, constituída
por três polos – o trato com o conhecimento, a organização escolar e a normatização
escolar - e se vale da proposição da PHC quanto ao currículo como conjunto de
atividades nucleares distribuídas no espaço e no tempo da escola, além da noção de
clássico como conteúdo de ensino e possui uma proposta de ensino em ciclos de
escolarização ao invés de etapas, onde o conhecimento científico vai se ampliando no
pensamento do aluno de forma espiralada. Atualmente esta proposição vem passando
por um processo de atualização.
Defendemos que a prática do esporte sirva à elevação do patrimônio cultural da
humanidade, o que implica o seu trato na escola mediante a contribuição da PHC,
procurando nesta os espaços de contradição que permitam o avanço da implementação
de projetos que atendam aos interesses da classe trabalhadora, contemplando em seus


5
Carmen Lúcia Soares, Celi Nelza Zülke Taffarel, Elizabeth Varjal, Lino Castellani Filho, Micheli
Ortega Escobar e Valter Bracht


338

planos uma perspectiva de formação, que tenha por objetivo final atender a uma
concepção de formação humana/omnilateral.
Em seu processo de surgimento e desenvolvimento o esporte sempre foi reflexo
das relações sociais de produção das sociedades nas quais era, e é, praticado. Outros
animais que não o homem não desenvolvem, não aprendem, não ensinam e não
praticam esporte. Da mesma maneira, o esporte não é algo que nos foi legado de
maneira mítica ou mística, com sentidos e significados encerrados em si mesmo, e não
na sociedade que o concebeu.

Pode dizer-se que cada individuo, em particular, aprende a tornar-se


um homem. Para viver em sociedade não lhe basta o que a natureza
lhe dá a nascença, tem de assimilar o que foi atingido pela
humanidade, no decurso do seu desenvolvimento histórico.
(LEONTIEV, 1977, p.54).

Por se enquadrar na categoria de “trabalho não-material”6 no processo de


produção da existência humana, entendemos que o esporte, tal qual a educação como
apresentada por Saviani, caracteriza-se como atividade onde o produto não se separa do
ato de produção, sendo estes dois elementos (o ato de produção e o produto) imbricados
e podendo ser representados pela “transmissão de valores, atitudes, habilidades,
conceitos, símbolos, etc”. A assimilação do patrimônio cultural esporte é algo que pode
se dar dentro de um processo educativo, pois o ato de educar segundo Saviani vem na
esteira da composição de uma espécie de segunda natureza do homem. (SAVIANI,
2008, p. 12-13).

[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Conseqüentemente, o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens.

Já a transmissão do patrimônio cultural esporte, pode ser enquadrada dentro do


âmbito mais geral do trabalho educativo e do processo de produção desta segunda
natureza. Processo este condicionado pelas condições objetivas da existência. No marco


6
Nos apoiamos aqui no desenvolvimento sobre trabalho material e não-material apresentado no Capítulo
VI – inédito d’O Capital de Marx.


339

da sociedade burguesa fundada na produção coletiva e apropriação privada, as


contradições não podem ser explicadas pela via do dom ou da hereditariedade. Para a
psicologia histórico-cultural

[...] o desenvolvimento das funções psíquicas é condicionado pelas


apropriações culturais, sob condições históricas nas quais elas não são
disponibilizadas equitativamente entre os indivíduos, a análise do
desenvolvimento psíquico deve reconhecer a propriedade da análise
das condições objetivas nas quais ele ocorre [...]. (MARTINS, 2013,
p. 3).

No caso da abordagem do esporte no Coletivo de Autores (2001, p.71) esta


percepção em relação aos elementos que compõem a segunda natureza do homem, já
era apontada

[...] se apresenta a exigência de ‘desmistificá-lo’ através da oferta, na


escola, do conhecimento que permita aos alunos criticá-lo dentro de
um determinado contexto sócio-econômico-político-cultural. Esse
conhecimento deve promover, também, a compreensão de que a
prática esportiva deve ter o significado de valores e normas que
assegurem o direito à prática do esporte.

Portanto, afirmamos, o esporte, enquanto patrimônio cultural da humanidade, é


um tipo de produção não-material que pode vir a contribuir, diretamente, como mais um
elemento no processo de humanização dos indivíduos.
Como possibilidade na escola, identificamos no esporte uma expressão
subseqüente do jogo com regras. Compreendemo-lo, portanto, como uma possibilidade
de manifestação ulterior do jogo (e que fique claro que o esporte não é a única
possibilidade de manifestação ulterior do jogo), ou a sua degeneração, entendida no
mesmo sentido discutido por Elkonin (2009, p. 19) enquanto modificação das
qualidades originais que caracterizam o jogo, principalmente no que diz respeito à
predominância de determinados elementos, como, por exemplo, a representação dos
papéis que aparece de maneira mais ampla e concreta nos jogos de papéis do que nos
jogos esportivos.
Não se trata, porém, de uma perspectiva etapista, ou seqüenciada, como se o
jogo de papéis fosse sendo “desmontado” rumo ao esporte, mas sim da apresentação do
esporte enquanto possibilidade mais complexa de expressão dessa atividade humana.
Tomamos esta afirmação com base na proposta de periodização do desenvolvimento
apresentada por Elkonin e discutida em Mukhina (1995). O jogo, durante a fase pré-


340

escolar, é a atividade guia no desenvolvimento da criança. Isso quer dizer que o jogo
possui papel de destaque na formação da personalidade durante esta fase da vida, sendo
uma espécie de porta de entrada para as relações sociais travadas entre os adultos e das
quais a criança procura reproduzir e se apropriar de maneira lúdica convertendo-as em
jogos
O jogo é a atividade principal, não porque a criança de hoje passa a
maior parte do tempo se divertindo, o que não deixa de ser verdade,
mas porque o jogo dá origem a mudanças qualitativas na psique
infantil. (MUKHINA, 1995, p.155, grifo do autor).

Porém, quando se passa à idade escolar esta atividade já não mais satisfaz o
processo de desenvolvimento, deixando de ser guia e tornando-se auxiliar, cedendo a
primazia à atividade de estudo. É nesta linha das atividades auxiliares que
argumentamos que o esporte se apresenta como possibilidade mais complexa, pois ao
contrário do que ocorre com o jogo (especialmente o protagonizado), este não guarda
ligações tão diretas com a realidade concreta, ou seja, com as atividades cotidianas dos
adultos, as relações entre as pessoas e as profissões.
No esporte manifesta-se a necessidade de um grau maior de abstração para, por
exemplo, a internalização tanto das regras quanto dos "papéis" envolvidos na prática
(como defensor, atacante, médio, etc.), pois nele tanto regras como papéis não se
resumem somente a delimitações resultantes do papel assumido na atividade. Como
conteúdo que paulatinamente afasta-se das questões mais diretamente empíricas
presentes no jogo, o esporte pode ser um auxiliar da atividade de estudo no aspecto do
desenvolvimento cognitivo e da capacidade de abstração

A formação de interesses cognitivos é um processo paulatino e


duradouro; se na idade pré-escolar não se dedicou suficiente atenção a
esses interesses, eles não surgirão apenas por ingressar na escola. Na
escola primária, os que experimentam maiores dificuldades não são as
crianças que ao terminarem a idade pré-escolar sabem menos, mas os
intelectualmente passivos, os que não estão acostumados a pensar, a
resolver problemas não diretamente relacionados com uma situação
lúdica ou vital. (MUKHINA, 1995, p.302).

O esporte encerra uma contradição cuja resolução pode implicar a sua


transformação em outra coisa que não o esporte. Trata-se da dialética entre o
“agonístico-lúdico”, na contradição encerrada pelo pólo da competição x pólo do gozo
estético que ocorrem simultaneamente durante a prática esportiva. De maneira mais
ampla na esfera esportiva a contradição desdobra-se nas práticas específicas entre os


341

elementos do treino (na busca da performance) e da prática livre (buscando a fruição).


Na atividade temos sempre a presença destes elementos, entretanto, a depender da
finalidade com a qual se reveste a prática, irá prevalecer um ou outro pólo.
Quando estamos tratando do esporte em seu aspecto agonístico temos elementos
que ganham muita importância pois tem conseqüências diretas para a performance na
prática da atividade, como é o caso da tática e da estratégia. Estes dois elementos,
apesar de sempre presentes, não recebem a máxima atenção quando se pratica
atividades esportivas com objetivos lúdicos. Quando estamos jogando futebol em um
Domingo no parque é muito comum observarmos um goleiro sair da meta com a bola
dominada, driblando os adversários e fazendo jogadas como um jogador de linha. Já em
uma partida agonística, de alto rendimento, situações como esta podem até ocorrer, mas
são muito mais raras pois cada jogador deve se ater ao que é o seu papel tático e
estratégico na partida.
Este suposto de que o esporte não é algo que surgiu do nada, mas que possui em
seu cerne gerador a atividade concreta e real dos homens, e que possivelmente possui
como uma via explicativa para esta atividade concreta os nexos entre esporte e jogo,
aponta também a necessidade da compreensão do próprio desenvolvimento humano, do
desenvolvimento das funções psíquicas superiores, e neste campo é sabida a
contribuição do jogo

[...] à medida que as crianças de idade menor vão se afastando da


atividade conjunta com os adultos, aumenta a importância para o
desenvolvimento da criança das formas mais evoluídas do jogo de
papéis. (ELKONIN, 2009, p. 21).

Não é demais afirmarmos que não fazemos este percurso imbuídos pela
perspectiva do Homo Ludens, famosa obra de Johan Huizinga, que defende uma
propensão do homem ao jogo, como se fosse este intrínseco ao próprio ser do homem,
como se fizesse parte de sua natureza biológica. Tomamos como referência em nossos
estudos a perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural. Nos fundamentamos no percurso
sinalizado por Elkonin (2009), em que o pesquisador relaciona o surgimento do jogo
com o momento em que a divisão social do trabalho afasta a criança do processo de
produção.
Dessa forma, seria o jogo “[...] uma atividade em que se reconstroem, sem fins
utilitários diretos, as relações sociais”. Partindo de um argumento apresentado por outro


342

pesquisador – V. Vsevolodski-Guerngross – de que manifestações como o teatro, o


esporte e a dança provém do mesmo campo, o campo dos fenômenos lúdicos, Elkonin
(ELKONIN, 2009. p. 19) desenvolve a questão dizendo que

Parece-nos que o verdadeiro curso evolutivo vai dos jogos dramáticos


para os esportivos [...] ao serem repetidas uma infinidade de vezes na
atividade coletiva real, foram se destacando paulatinamente as regras
das relações humanas que levavam ao êxito. A sua reconstituição sem
fins utilitários reais forma o conteúdo do jogo esportivo.

Para V. Vsevolodski-Guerngross “num certo nível cultural, os jogos esportivos


tem imenso valor educacional e só com a passagem para os níveis superiores da cultura
eles degeneram, esquematizam-se, racionalizam-se e convertem-se em esporte”. Assim
também ocorre com a arte, pois “os jogos dramáticos não podem competir com o drama,
ideologicamente saturado, e quando existe o teatro, extinguem-se ineludivelmente”.
Elkonin (ELKONIN, 2009. p. 20) afirma: “Com base em dados etnográficos, chegamos
à conclusão de que na sociedade moderna dos adultos não existem formas evoluídas de
jogo: elas foram desalojadas e substituídas pelas diferentes formas de arte, por um lado;
e pelo esporte, por outro:.
Cremos também que neste processo, vale a premissa de que no par mais
avançado encontramos elementos que explicam o par menos avançado.

Se o conteúdo do jogo protagonizado está diretamente ligado à vida


real dos adultos que rodeiam a criança e é determinado diretamente
por ela, o conteúdo do jogo com regras e as relações refletidas nele
não estão ligados de maneira tão direta com as relações reais em que
vive e atua a criança. Embora os jogos com regras também estivessem
indubitavelmente associados em sua origem à atividade laboral
coletiva, é difícil ver atualmente esta ligação... [entretanto]... nos
nomes dos papéis dos jogadores, ou na trama geral de alguns desses
jogos, conservam-se elementos de papéis que um dia foram
determinantes como, por exemplo, o defensor (zagueiro) e o atacante
(dianteiro) no futebol, ou as denominações das peças no xadrez; em
outros jogos, essa ligação perdeu-se totalmente e só se conservam as
regras percebidas como determinadas condições lúdicas. (ELKONIN,
2009, p. 372).

Com base nestes argumentos sobre os nexos e relações do esporte com o jogo e
suas possibilidades em relação ao desenvolvimento humano enquanto atividade auxiliar,
pensamos que ele pode vir a contribuir com o processo de desenvolvimento da
personalidade e do pensamento abstrato por parte dos escolares.


343

Destacamos que o fato de determinada atividade ser caracterizada como


“auxiliar” não implica que sua ausência, ou mesmo seu trato de maneira não científica,
não trará prejuízos para a formação da criança, ao contrário, a ausência das atividades
auxiliares é sim muito prejudicial ao desenvolvimento por serem estas atividades
auxiliares intrinsecamente ligadas com a atividade guia. Saber disso e relegar ao jogo ou
ao esporte o caráter de recreação, passatempo, divertimento ou simples atividade de
“desenvolvimento físico e motor”, no pior sentido que a educação física pode dar a isto,
não somente torna a abordagem superficial, desqualificando o potencial destes
elementos para a educação, como também anula qualquer possibilidade intencional de
incidência positiva do jogo e do esporte na formação da personalidade dos escolares.
De posse do que foi exposto, buscamos identificar quais são os elementos
intrínsecos ao esporte que o diferenciam e que o credenciariam como algo que tem lugar
na escola, ou seja, quais são os elementos sem os quais esta manifestação da cultura
corporal deixa de ser esporte? E de que maneira estes elementos incidem e podem ser
trabalhados no ambiente escolar de forma a contribuir positivamente com a formação?
Abordamos especificamente para isto a questão do trato com o conhecimento, que cuida
da seleção, organização e sistematização do conteúdo a ser ensinado ou conforme o
Coletivo de Autores (1992, p.30):

[...] trato com o conhecimento corresponderia à necessidade de criar


as condições para que se dêem a assimilação e a transmissão do saber
escolar. Trata-se de uma direção científica do conhecimento universal
enquanto saber escolar que orienta a sua seleção, bem como a sua
organização e sistematização lógica e metodológica [...] esse trato não
se viabiliza num vazio, está diretamente vinculado a uma organização
escolar. A organização do tempo e do espaço pedagógico necessário
para aprender [...].

Para o trato com o conhecimento, notamos que, de todos os elementos que


compõem o esporte, e dos quais muitos são compartilhados com o jogo (como regras,
papéis, denominações, etc.), a competição e a superação (que se expressam por dentro
da contradição agonístico/lúdico) são dois dos que têm maior imbricamento com este
elemento da cultura corporal, pois embora ambos também estejam presentes em muitos
jogos, pensamos ser virtualmente impossível pensar em uma manifestação esportiva
sem que a competição e a superação estejam presentes. Com o jogo isso nem sempre
acontece. Exemplos são os jogos cooperativos, ou os jogos cuja finalidade não envolve
nenhum tipo de classificação. Cabe, porém, a ressalva de dizer que vivemos em uma


344

sociedade que leva a competição e o individualismo aos mais elevados extremos, e


podemos até dizer que estes dois elementos estão entre os mais valorizados e
fetichizados da sociedade capitalista.
Em nossos dias, infelizmente, o modelo que temos do esporte em nossas escolas
passa muito por este viés competitivo, negativo e extremamente excludente. Um
resultado disso é que professores que não se identificam com este “modelo” de esporte
passaram simplesmente a ignorar o fenômeno, não tratando mais o esporte no âmbito
das aulas de educação física, muitas vezes substituindo-o por jogos, competitivos ou
cooperativos.
Não temos acordo com esta estratégia e indagamos: se o esporte, enquanto
produção humana, elemento da cultura corporal, não será tratado pedagogicamente na
escola, onde ele pode ser discutido e trabalhado para além da simples execução de
atividades físicas, aprendizagem (mais no sentido de memorização neste caso) de regras
e comportamentos motores e quiçá de algumas estratégias e táticas, onde isso ocorrerá?
Em “escolinhas esportivas”? Em programas televisivos? Em campeonatos de bairro?
Em encontros recreativos para a prática esportiva? Estamos convencidos que para todas
estas possibilidades brevemente apresentadas aqui a resposta é um curto e direto não. A
escola, pela sua função social, “instituição cujo papel consiste na socialização do saber
sistematizado”, diferente dos outros espaços apresentados, é o local onde por excelência
a possibilidade de trato cientifico com o conhecimento esporte está colocada.
(SAVIANI, 2008, p.14).
Defendemos que o esporte possui lugar na escola se visto a partir desta
possibilidade de contribuição no processo de desenvolvimento humano, visualizando
uma determinada perspectiva emancipatória de formação dos estudantes, e estamos
convencidos que o espaço privilegiado para isto se chama escola. Isto nos coloca em
oposição aos paradigmas do esporte como promotor da aptidão física/saúde, da detecção
de talentos, da prática pela prática/recreação ou do controle/inclusão social. Restam-nos
poucas dúvidas que, efetivamente, estes paradigmas (vistos em separado ou em
conjunto) não somente são insuficientes para justificar a presença do esporte na escola,
como também são falácias no que dizem respeito aos próprios argumentos que os
sustentam. Isto ocorre seja pelas práticas reduzidas (poucas aulas/horas semanais) que
não garantem saúde ou desenvolvimento de qualquer aptidão; seja pela exclusão dos
menos habilidosos que não promove nenhuma inclusão; seja porque a prática
desinteressada e recreativa não cabe na escola, que é o lugar do saber cientifico e


345

sistematizado; ou seja porque o esporte, por si só, não “salva” ninguém de condição
social nenhuma, que é fruto de relações sociais muito mais amplas e complexas.
Reconhecer o esporte nesta perspectiva, que vai além da compreensão de
modalidades ou visões parciais, nos exige reconhecer também que este conhecimento é
negado na escola. Mas como alterar esta lógica e tratar este conhecimento na escola
real, concreta, abordando o esporte pela contradição agonístico/lúdico no trabalho com
os estudantes e não mais reduzindo-o a um punhado de modalidades ou de práticas
vazias que sequer cumprem o mínimo daquilo que prometem?
Para dar conta deste desafio abordamos a PHC, crítica porque leva em
consideração as condições objetivas da educação, ou seja toma a explicação do processo
de formação (ideias) produzido nas condições objetivas para tal processo (base
material). Desta premissa desdobra-se a questão do conteúdo (os elementos da cultura a
ser ensinados) e do método (as formas mais desenvolvidas para tal). Além disso, nos
valemos da abordagem Crítico-Superadora, a partir do Coletivo de Autores e do uso dos
Ciclos de escolarização para o ensino do esporte, e da Psicologia Histórico-Cultural
como teoria de desenvolvimento humano.
Trabalhando a partir da contradição que apresentamos entre agonístico/lúdico
que caracteriza o esporte, e considerando os argumentos até aqui apresentados, muitos
aspectos dentro deste universo podem ser abordados pedagogicamente. Tomando por
base o conceito dos ciclos de escolarização pensamos em um conteúdo com o qual
pudéssemos demonstrar a possibilidade de ampliação das referências de forma
espiralada, indo da síncrese para a síntese, de forma que os sujeitos possam tornar-se
aptos a, paulatinamente e de forma cada vez mais complexa, constatar, interpretar,
compreender e explicar os dados da realidade, para poder nela intervir na direção dos
seus interesses de classe. (COLETIVO DE AUTORES, 1992).
Por ser algo que para nós configura-se um grande desafio, decidimos tratar a
competição no esporte de forma científica. Todavia, a própria competição, em que pese
ser um elemento intrínseco ao esporte como já mencionamos, não existe de forma
absoluta e/ou apriorística. Existem outros elementos que compõem as modalidades
esportivas que direta e indiretamente interferem no modo como se dá a competição. No
trato com o conhecimento da competição no esporte, abordamos três destes elementos,
as regras, o instrumento e o ambiente da prática esportiva.
O que são as regras? Regras são o conjunto de convenções que se adotam
buscando regular e uniformizar determinada prática restringindo o leque de ações que os


346

sujeitos podem tomar no desempenho de seus papeis. O que são os instrumentos? São
os diferentes objetos manipulados pelos sujeitos quando do desempenho de suas
práticas, ex. Bolas, tacos, dardos, petecas, pranchas, etc. Lembramos que em diversas
práticas não é necessário que o sujeito esteja de posse do instrumento para que
desempenhe determinada ação dentro da atividade. O que é o ambiente? Trata-se do
local onde são executadas as práticas, se em ambiente aquático, terrestre, aéreo, se o
piso é de areia, cimento, grama, taco, flexível, etc.
O ponto discutido refere-se ao fato de que estes três elementos interferem no
modo como se dá a competição, assim como interferem um sobre o outro. Compreender
como determinada modalidade esportiva se configurou tal qual aparece hoje requer a
observação não somente do desenvolvimento histórico das modalidades, mas também
do próprio desenvolvimento da sociedade de maneira mais ampla, pois determinados
motivos que levaram a certas mudanças, por vezes se deram pra atender necessidades,
por exemplo, econômicas. Em seu livro Sports in the Western World de 1988, William
J. Baker exemplifica a questão de maneira muito interessante ao mostrar, como a
evolução do Boxe e a criação do Futebol Americano, este a partir principalmente do
Rugby, se deram com vistas a atender necessidades como a preservação da mercadoria
(atletas profissionais via de regra oriundos da classe trabalhadora) ou da integridade
física dos participantes (atletas amadores via de regra oriundos da elite), e a atração de
público aos locais dos eventos, e com o desenvolvimento das comunicações ao consumo
pré, durante e pós eventos.
No exemplo prático que trabalhamos em nossa oficina, tomamos uma vertente
do esporte muito trabalhada na escola que é o esporte coletivo. A partir da escolha desta
variante do esporte, fizemos o exercício de procurar elementos que fossem estruturantes
das modalidades coletivas, ou seja, elementos que pudessem ser encontrados em todas
as modalidades coletivas de prática esportiva. Chegamos deste modo ao elemento
“passe”.
E o que é o passe? No esporte coletivo podemos dizer de forma simplista que o
passe é o ato de transferir o instrumento de jogo de um jogador para algum outro
jogador em melhor situação em relação a consecução da conquista da meta de
determinada prática esportiva. Afirmamos na oficina que a maneira como se executa o
passe sofre influência direta das regras, do instrumento e do ambiente onde se dá a
prática esportiva.


347

Para demonstrar e comprovar a validade desta afirmação passamos da discussão


para a prática. Levamos o grupo a um campo para experimentar, com diferentes
instrumentos, as possibilidades de passes em modalidades conhecidas, como vôlei,
futebol, basquete e handebol. Em um primeiro momento cada instrumento foi utilizado
pelos participantes de acordo com sua “função intrínseca”, ou seja, bolas de futebol para
se jogar futebol, bolas de vôlei para o jogo de vôlei, etc. Em um segundo momento,
após alguns minutos de prática, alteramos a dinâmica de forma que os instrumentos e as
modalidades não mais coincidissem, ou seja, a bola de basquete passou a ser usada no
futebol, a bola de futebol no vôlei, e assim por diante. Terminada essa rodada,
introduzimos aos participantes uma outra modalidade, o Touch Rugby.
Explicando resumidamente, Touch Rugby é uma variação da modalidade
esportiva Rugby onde procura-se minimizar o contato entre os participantes, de forma a
permitir que todos os sexos e as mais diferentes faixas etárias possam participar e
competir. O jogo contém as mesmas regras do Rugby com a exceção de que não é
permitido agarrar ou obstruir o adversário, mas apenas tocá-lo (touch em inglês). Se um
jogador de posse da bola, e quando em contato com a bola, é tocado por um adversário,
este deve gritar “touch” e o jogo é paralisado e recomeça do ponto que o atacante foi
tocado. Caso a equipe atacante não consiga marcar um ponto antes de seis touchs, a
equipe defensora passa a ter a posse da bola.
Escolhemos trabalhar com o Rugby por três motivos que destacaremos agora: 1.
por não ser uma modalidade muito difundida no Brasil, especialmente no âmbito
escolar, o Rugby nos permitiu iniciar um trabalho sem uma série de vícios típicos
esportes hegemônicos em nossas escolas (futebol, vôlei, basquete e handebol); 2. como
espécie de conseqüência do ponto 1, muitas pessoas com experiências desagradáveis nas
outras modalidades anteriormente mencionadas se sentiriam mais a vontade para
experimentar o Touch Rugby por saberem que ali praticamente ninguém também teria
conhecimento da atividade, diminuindo a pressão sobre a “performance” e; 3. O Rugby
tem uma regra de passe peculiar que o diferencia de praticamente todos os demais
esportes coletivos. No Rugby, ao mesmo tempo em que a equipe progride com a bola na
invasão do campo adversário em busca do seu ponto (try), os passes devem ser sempre
feitos lateralmente e nunca para frente, ou seja, um jogador de posse da bola só pode
passá-la para outro jogador exatamente em paralelo ou atrás de si.
Terminadas as atividades de campo, reunimos os participantes e retomamos a
discussão guiados pelas seguintes perguntas: todos os passes são iguais? Como o


348

instrumento pode ser passado? Existem diferentes maneiras de se passar o instrumento


dentro da mesma modalidade? Passes e maneiras (jogadas) de passar executadas em
uma modalidade podem ser usados em outra? O instrumento interfere no tipo e
qualidade de passe? O ambiente interfere no tipo e qualidade de passe? Infelizmente,
para o último questionamento não pudemos variar nosso ambiente, pois o local em que
executamos a oficina não dispunha de possibilidade de variações.
As respostas aos questionamentos passaram pelo aspecto da ampliação das
referências no trato com o conhecimento esporte, e não somente em relação ao
conhecimento sobre os esportes coletivos, mas também sobre as condições objetivas
que levaram ao surgimento e evolução de determinada modalidade e a maneira como se
executa o passe dentro de uma ou outra modalidade. Também foram apontadas as
possibilidades para a execução do passe (elemento técnico) dentro das modalidades e
também intramodalidades, ou seja, o conhecimento adquirido em determinada prática,
indubitavelmente, traz consequências para outras práticas. A discussão também se
estendeu para os ciclos de escolarização apontando a necessidade de se adaptar a
abordagem de acordo com o ciclo com o qual se está trabalhando, complexificando ou
simplificando o grau de exigência das tarefas, de acordo com o que se espera atingir. O
melhor exemplo disto é a adaptação do trabalho com os passes podendo ir de simples
mudanças nas regras, no instrumento e no ambiente que provoquem a necessidade de se
evoluir de formas de passe mais diretas e menos elaboradas, até graus complexos que
envolvam padrões táticos como as triangulações.

Conclusão parcial

Procuramos neste ensaio demonstrar que uma outra abordagem do esporte é
possível dentro de nossas escolas. Entretanto, mais do que apresentar uma opção,
procuramos também demonstrar que não somente o esporte tem lugar na escola, como
ele, enquanto atividade auxiliar, tem um papel importante na formação da personalidade
do indivíduo, especialmente quando considerado como uma possibilidade ulterior ao
jogo no processo de desenvolvimento humano.
Toda nossa oficina foi pensada a partir do método da Pedagogia Histórico-
Crítica, pois ao tratarmos do conteúdo esporte com os professores da Rede Pública de
Salvador, partimos da prática social real do esporte que temos efetivamente em nossas
escolas, muitas vezes marcado pela competição excludente, pela preparação para


349

campeonatos, pelo professor “rola bola” que é aquele que entrega uma bola no começo
da aula e deixa as crianças jogando, atuando no máximo como árbitro de vez em
quando, e tantos outros exemplos que poderiam encher mais uma página aqui.
Problematizamos esta questão a partir não do trato com modalidades esportivas,
mas a partir do próprio fenômeno esportivo e das possibilidades que se apresentam nas
modalidades competitivas e coletivas, com trabalho específico em relação ao passe.
Discutimos por esta via porque o esporte é importante e porque ele deve estar na escola
e ser de alguma forma parte do processo formativo da personalidade de nossas crianças.
Também aprofundamos o debate de porque o esporte, quando é apresentado em nossas
escolas, normalmente o é na maneira de senso comum descrita acima. Em sincronia
com a problematização também se dava a instrumentalização mas não somente porque
discutimos e fomos a campo “experimentar” maneiras diferentes de praticar esporte e
dar outras opções de trabalho para os participantes, mas sim porque a própria concepção
que subsidiava as atividades era colocada em outra lógica, buscava um outro padrão de
relação entre o homem e a sua criação (o esporte), devolvendo a este o domínio sobre a
coisa e a possibilidade usufrui-la não mais pela perspectiva fechada e rígida que
caracteriza o “ensino do esporte” nas nossas escolas, mas sim através do trato com o
conhecimento esporte que aborda este fenômeno com uma outra perspectiva e com
outros objetivos, reavaliando o próprio conceito de esporte e suas possibilidades. A
catarse no processo pode ser identificada com o momento em que extrapolamos a idéia
do passe como um elemento que circunscreve-se apenas ao ato de se passar o
instrumento de um jogador para outro, para a perspectiva das relações entre aquele que
possui o instrumento e todos os demais jogadores, as regras e o ambiente, o que
representa um salto na complexidade das relações sociais no esporte e de suas
possibilidades.
Com isso finalizamos com a “volta” a prática social (entre aspas porque
sabemos que nunca deixamos a prática social) com uma visão sobre o esporte que
considera sua importância e reafirma seu lugar na escola, não porque queremos formar
atletas, não porque queremos garantir (a falácia da) saúde, não porque queremos incluir
socialmente e não porque queremos estilos de vida ativos, mas sim, porque queremos
contribuir no processo de humanização e de potencialização do alcance das máximas
capacidades de cada ser humano, e isso passa, parafraseando Saviani, pelo ato de
reproduzir direta e intencionalmente em cada um de nós aquilo que de melhor e mais


350

avançado a humanidade já produziu, e pelo apresentado aqui, acreditamos que o esporte


está no rol dessas produções.

Referências

ADAM, Y. O desporto, objeto de lutas ideológicas e politicas. In: ADAM, Y. et al. Desporto e
desenvolvimento humano. Lisboa: Seara Nova, 1977.

BAKER, WILLIAM J. Sports in the western world. University of Illinois Press, 1988.

COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. 8a reimpressão. São


Paulo: Cortez, 1992.

ELKONIN, Daniil B. Psicologia do jogo. 2a ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2009.

LEONTIEV, A. O homem e a cultura. In: ADAM, Y. et al. Desporto e desenvolvimento


humano. Lisboa: Seara Nova, 1977.

MARTINS, Ligia M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições a


luz da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas: Autores
Associados, 2013.

MARX, Karl. Contribuição a critica da economia politica. São Paulo: Expressão Popular,
2008.

MUKHINA, Valeria. Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica. 10a ed. rev. e ampliada. São Paulo: Autores
Associados, 2008. (coleção educação contemporânea).

SILVA, William J. L. Crítica à teoria pedagógica da educação física: para além da formação
unilateral. 112 f. 2011. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal
da Bahia, Salvador, 2011.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016


A APROPRIAÇÃO DA ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL:
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Hadassa da Costa Santiago Bremenkamp (UFES)1


Ana Carolina Galvão Marsiglia (UFES)2

Resumo: O presente trabalho teve o objetivo de identificar práticas pedagógicas necessárias


para apropriação da alfabetização no grupo 6 da educação infantil, entendendo esse aprendizado
como essencial para o desenvolvimento humano. Para alcançarmos esse objetivo, utilizamos, a
partir da pedagogia histórico-crítica, a pesquisa bibliográfica e, além disso, fizemos uma análise
documental ao analisarmos a prática de uma professora por meio das atividades registradas no
caderno de um aluno. Concluímos que o aprendizado pleno da alfabetização tem sido um
problema, mas não se trata de um problema individual, do lugar que ocupa o professor, mas sim
das referências dominantes, que criticam as formas intencionais de ensino defendidas pela
pedagogia histórico-crítica. Entendemos que o ensino intencional deve iniciar-se na educação
infantil, não eliminando sua função do cuidar e brincar como forma de aprendizagem.

Palavras-chave: Prática pedagógica; Pedagogia histórico-crítica; Educação infantil;


Alfabetização.

Introdução

Mediante o desenvolvimento cultural dos indivíduos, conforme suas formas de


organização social foram se aprimorando, tornou-se necessário criar um sistema que
facilitasse a comunicação entre pares, bem como, desenvolver um recurso auxiliar de
memória. Esse recurso foi a escrita, que estabeleceu o marco que separou o ser humano
da pré-história e abriu as portas para a civilização. Ela se configura como um
instrumento cultural que foi se sofisticando na medida em que a história do ser humano
foi se desenvolvendo até alcançar o sistema alfabético que conhecemos. Hoje,
precisamos nos apropriar de um sistema que levou séculos para se constituir.
Como sistema cultural, ele necessita ser transmitido para ser apropriado, sendo
decisivo no desenvolvimento do psiquismo (como forma de linguagem). O psiquismo
desenvolvido é conquistado socialmente e avança em sua complexificação na medida
das apropriações realizadas, sendo o sistema de escrita alfabética uma delas, que

1
Hadassa da Costa Santiago Bremenkamp, Graduada em Pedagogia, Universidade Federal do Espírito
Santo, ES, Brasil. E-mail: hadassabremenkamp@hotmail.com
2
Ana Carolina Galvão Marsiglia, Doutora em Educação Escolar, Universidade Federal do Espírito Santo,
ES, Brasil. E-mail: galvao.marsiglia@gmail.com


352

possibilitará a abstração do pensamento, o qual promoverá um grande salto qualitativo


em cada indivíduo, como parte do gênero humano, sendo um ato dependente das
condições de humanização dos indivíduos nas quais lhe são disponibilizados os
significados culturalmente construídos pela humanidade. (MARTINS, 2013).
A partir dessa premissa, da alfabetização sendo de suma importância no
processo de humanização, defendemos que o seu desenvolvimento só é possível quando
há o ensino intencional e isso deve acontecer em todas as etapas da educação,
garantindo uma sequência de aprendizagens essenciais para a apropriação de todo o
conhecimento possível. Portanto, buscamos identificar as práticas pedagógicas
necessárias para apropriação da alfabetização no grupo 6 da educação infantil, visando o
ensino do sistema de escrita e as técnicas integrantes desse processo, entendendo esse
aprendizado como essencial para o desenvolvimento humano.
Além disso, pretendemos destacar também, concordando com Duarte (2013, p.
45), a função decisiva que o professor carrega em sua prática, qual seja, a “[...]
condução do processo de apropriação pelos alunos, do conhecimento produzido
histórica e socialmente”. Acreditamos que o professor é o responsável pelo
direcionamento do processo de apropriação realizado pelos alunos, ou seja, é ele quem
irá selecionar os conteúdos a serem ensinados e organizar sistematicamente para que
seja possível a sua transmissão e apropriação.
Partindo deste princípio, focamos nossa atenção para o grupo 6 da educação
infantil, último ano desta etapa da educação, entendendo que os esforços dos
profissionais estão mais intensos nesse momento para o alcance desse objetivo por se
tratar do último período que antecede àquele em que formalmente há obrigatoriedade de
iniciar o processo de alfabetização. O sistema de escrita é fundamental para a
comunicação da criança com o mundo e assim, elas poderão chegar ao primeiro ano
com as bases necessárias para a apropriação deste conhecimento, ampliando suas
possibilidades de aprendizado e desenvolvimento.
Para isso, baseamos nossos estudos na pedagogia histórico-crítica, pois
buscamos nesta teoria respostas para as inquietações acerca da prática pedagógica
adequada para o desenvolvimento da compreensão do sistema alfabético na educação
infantil. Para tomar contato com essa prática, fizemos uma análise documental a partir
das atividades do caderno de um aluno do grupo 6 da educação infantil de um Centro de
Educação Infantil do município de Vitória.


353

Embora concordemos que não há a obrigatoriedade (e possibilidade) das


crianças da educação infantil concluírem esta etapa já plenamente alfabetizadas,
defendemos a seriedade que o professor deve ter na educação infantil, entendendo que,
apesar de ser professor de crianças pequenas, deve desenvolver um trabalho que assuma
o compromisso de propiciar a elas a apropriação da cultura, indispensável para sua
instituição como parte do gênero humano, na qual a apropriação do sistema de escrita
alfabética é fundamental.
Acreditamos que as crianças não nascem humanizadas, mas necessitam de uma
mediação intencional que favoreça seu desenvolvimento nas mais altas possibilidades.
Concordamos com Saviani (2011, p. 13) sobre a função da escola, ao destacar a
educação como um trabalho não-material que se refere ao “[...] ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”. Dessa forma, a escola deve cumprir com essa
função sendo a instituição legitimada pela sociedade para ser responsável pelo ensino
sistematizado. Portanto, deve preocupar-se em transmitir o acúmulo histórico aos seus
alunos, ou seja, o conteúdo clássico, pois só este é capaz de contribuir para a
emancipação dos indivíduos. Por isso defendemos o ato de ensinar na educação infantil,
sem eliminar sua função de cuidar e o brincar como formas de aprendizagem. Assim,
não concordamos que isso venha ocorrer de forma assistencialista e espontânea, mas
sim de forma intencional, na qual os professores, conscientes da finalidade de suas
práticas, trabalhem com os alunos buscando seu mais elevado grau de desenvolvimento.
Entendemos que os indivíduos só se inserem na história sendo capazes de se
tornar criativos e autônomos na medida em que se apropriam do que já foi produzido
historicamente pelo conjunto dos homens. Porém, na atualidade, notamos diversas
teorias que adentram à escola e fazem a defesa de uma suposta liberdade da criança para
agir conforme suas próprias vontades. Nesse caso, entendemos que há uma grande
valorização das experiências cotidianas e dos momentos espontâneos, pois a criança
deve buscar para si, por vontade própria, o que fará sentido para ela. No entanto, quando
o processo ocorre dessa forma, a educação infantil se nega a ensinar, negando o direito
do ensino sistematizado que a educação deve propor, e, portanto, negando o direito à
humanização pela transmissão dos conhecimentos historicamente construídos. (ARCE,
2010).
Assim, concordamos com Arce (2010, p. 31), ao afirmar que “[...] o principal
direito a ser respeitado nessa instituição é o direito ao conhecimento, direito esse


354

propulsor do desenvolvimento infantil”. Esse deve ser o principal direito, não podendo
ser negado, pois é a garantia desse direito ao conhecimento que possibilitará à criança as
máximas condições de humanização. Dessa forma,

O conhecimento aqui não é apenas resultado das ressignificações,


construções infantis, ele é algo selecionado e trazido pelo professor
com a finalidade de transmissão. A ciência balizará a escolha do que
se ensinar ou não, mas um ponto é imprescindível deixar claro: a
escola deve trazer ao aluno aquilo que ele não tem em seu cotidiano.
(ARCE, 2010, p. 33).

A partir dessa premissa, ao pretendermos investigar ações que facilitem a prática


pedagógica no ensino do sistema de escrita alfabética na educação infantil, entendemos
que este conhecimento é de suma importância para a apropriação do acúmulo histórico-
social na vida do indivíduo, além de ser “[...] uma importante transição do uso
espontâneo para o uso intencional da língua”, e por isso, torna-se um elemento
indispensável para a possibilidade do mais elevado nível de desenvolvimento de todos
os seres humanos. (DUARTE, 2013, p. 152).

1 Compreendendo a alfabetização na educação infantil

A leitura e a escrita precisam ser apropriadas por todos os indivíduos, de forma


a complexificar o psiquismo. A sua apropriação possibilita um salto no
desenvolvimento do indivíduo assim como ocorreu com o gênero humano e, por isso,
ser alfabetizado significa o acesso a uma grande riqueza cultural desenvolvida no
decorrer da história e que provocou mudanças na constituição do ser humano.
Tendo em vista a importância deste processo, nos baseamos nos estudo de
Luria (2010) para entendermos como ele se realiza na apropriação do sistema de escrita
alfabética em cada indivíduo singular. A primeira fase da escrita apontada pelo autor é a
pré-escrita ou pré-instrumental, que se inicia por volta dos três anos de idade. Nessa fase
do desenvolvimento, a escrita é somente mais um brinquedo e, portanto, suas funções se
limitam puramente ao viés externo, em uma tentativa de imitar o adulto não entendendo
ainda sua função como um instrumento auxiliar de memória, pelo contrário,

Seu comportamento é o de alguém que relembra, não o de alguém que


lê. A maior parte das crianças que estudamos reproduziu sentenças
ditadas (ou, mais precisamente, algumas delas) sem olhar para o que
tinham escrito, fixando interrogativamente o teto. Todo o processo de


355

recordação ocorria de forma completamente apartada dos rabiscos,


que não eram, de forma alguma, usados pela criança. (LURIA, 2010,
p. 156).

O estágio seguinte é denominado pelo autor como atividade gráfica diferenciada,


desenvolvida por volta dos quatro e cinco anos, se inicia como atividade gráfica
indiferenciada, na qual a escrita aparentemente continua não fazendo sentido nenhum,
mas a criança consegue estabelecer relação com o que foi dito e assim, se torna um
recurso para a memória. Todavia, os rabiscos registrados no papel não são instituídos,
por isso nem sempre significarão o mesmo conteúdo. Assim, a criança entende que o
que escreveu significa algo, mas nem sempre se recorda exatamente do que lhe foi dito
anteriormente, apesar de dizer alguma coisa em resposta, porque sabe que o que
escreveu representa algo, fazendo isso conforme os seus interesses emocionais. Dessa
forma, a criança nem sempre recordará o conteúdo correto, mas irá refletir algum
conteúdo e “Em vez de um ato instrumental que usa X para reverter a atenção de volta
para A, temos aqui dois atos diretos: 1) a marca no papel e 2) a resposta à marca como
uma sugestão”, conforme esquema apresentado por Luria (2010, p. 160):

(conteúdo dado) A X
X N (Associação recordada)
(marca primitiva)
Quadro 1: Esquema representando a atividade gráfica indiferenciada.
Fonte: Luria (2010).

Torna-se necessário que haja um avanço desse signo-primário, criado pela


criança como uma sugestão de que aqueles registros representam algo, para o signo-
símbolo, no qual é possível a representação real do que lhe foi dito, contribuindo para o
desenvolvimento da escrita enquanto recurso mnemônico. Esse avanço necessário para
a superação da escrita não-diferenciada para a atividade gráfica diferenciada se dá,
conforme os experimentos de Luria (2010), por meio da inclusão do conhecimento de:
cor, forma, tamanho, quantidade e outros diferenciadores que ela vai utilizar na
linguagem escrita.
Por volta de cinco a seis anos, considerando que o desenho é o melhor recurso
que a criança tem disponível nesta etapa do seu desenvolvimento, temos a escrita
pictográfica. O desenho se expressa de forma cada vez mais elaborada, sendo utilizado


356

como uma forma de registro mnemônico, mas ainda sem que esteja associado a um
expediente auxiliar de escrita.
A partir do avanço que a criança alcança quando consegue utilizar seus desenhos
como recurso mnemônico, deve-se propor o desafio no qual ela necessitará registrar
algo consideravelmente difícil ou até mesmo impossível por meio de uma simples
figura. A partir deste desafio, a criança desenvolverá formas de superação, levando-a à
consolidação da escrita simbólica.
Um dos caminhos para estabelecer essa superação, segundo os experimentos de
Luria, é a representação de alguma parte do todo que auxilie a criança na recordação do
que registrou, como é o caso de uma criança que ao registrar o termo “Há 1000 estrelas
no céu”, desenha uma linha horizontal representando o céu e afirmando que não pode
desenhar 1000 estrelas, desenha um avião. O outro caminho que se aproxima mais da
escrita simbólica é a representação do item que apresenta dificuldades em seu registro
por signos que a auxiliarão na lembrança do que ele realmente representa. Isso pode ser
visto quando é dado o mesmo termo para outra criança e esta representa as 1000 estrelas
pelo desenho de apenas duas, afirmando que por meio das duas estrelas desenhadas,
lembrará que estas se referem a 1000.
Todavia, constata-se que neste momento a relação com a escrita é puramente
externa e apesar de entender que os signos que lhe foram ensinados podem representar
qualquer coisa, ainda não sabe estabelecer a relação entre o conteúdo, a fonética e
grafia. Em seus experimentos, Luria (2010) nos revela que ao alcançar a escrita
simbólica, a criança volta a passar por todos os processos anteriores. O retorno ao
sistema de signos ocorre quando o sistema pictográfico se torna insuficiente com a
inserção de elementos abstratos nas sentenças ditadas, induzindo à criação de um signo
que represente o termo impossível de ser representado por meio do desenho. Somente aí
o sistema alfabético ganha sentido como o instrumento completo que apresenta a
solução para os desafios que foram colocados para a criança até este momento.
A partir dessa breve exposição acerca dos estágios de desenvolvimento da
escrita propostos por Luria (2010), fica claro que este desenvolvimento acontece antes
do 1º ano do ensino fundamental, considerado responsável por iniciar e dar um salto na
alfabetização da criança. Assim, é importante ressaltar que a educação infantil pode e
deve iniciar este processo, pois “[...] embora saibamos que cabe à primeira série escolar
iniciar formalmente a alfabetização das crianças, é impossível que este tema não esteja
presente no cotidiano infantil [...]”. (STEMMER, 2010, p.131).


357

Diante dessa premissa, recorremos a Martins e Marsiglia (2015) para indicação


de ações adequadas para o desenvolvimento da escrita com crianças de cinco e seis
anos, idade que antecede o período formal de início da alfabetização. A partir das ideias
formuladas por Luria (2010), as autoras elaboraram propostas de ações pedagógicas que
colaboram para a superação de cada estágio do desenvolvimento, objetivando a
apropriação da leitura e da escrita.
Conforme já exposto, em condições típicas de desenvolvimento, com as
intervenções necessárias, as crianças do grupo 6 da educação infantil apresentarão
características da fase pictográfica, ou seja, serão capazes de recorrer ao registro por
meio do desenho como instrumento auxiliador de memória. Portanto, segundo Martins e
Marsiglia (2015) a prática pedagógica deve agir com o intuito de oferecer aos alunos
situações em que estes farão desenhos de forma dirigida para assim ser possível às
crianças estabelecerem representações. Para tanto, um procedimento importante pode
ser solicitar aos alunos que registrem substantivos abstratos, verbos e adjetivos tornando
o desenho algo limitado para registrar tudo aquilo que o aluno pretende. Ao mesmo
tempo, o professor deve apresentar às crianças o sistema cultural complexo que lhes
permitirá registrar qualquer conteúdo.

Isto porque a criança já conhece as primeiras letras e números e deve


ser apresentada formalmente ao alfabeto levando em conta a relação
entre grafemas e fonemas. De posse dos instrumentos culturais e da
compreensão de que é preciso ampliar seu repertório de escrita
(relação interpsíquica), o aluno passa, com auxílio (área de
desenvolvimento iminente), a desenvolver operações que lhe
assegurem a internalização do sistema de escrita (relação
intrapsíquica) tornando-o desenvolvimento efetivo. (MARTINS;
MARSIGLIA, 2015, p. 57).

Para consolidar a internalização desse sistema, as autoras destacam a


necessidade do ensino das relações entre fonemas e grafemas, sugerem a produção de
textos coletivos e a apresentação de diversos gêneros para que assim seja possível no
âmbito interpsíquico algo que ainda não é possível os alunos fazerem no âmbito
individual, pois ainda não se apropriaram desse complexo conteúdo.
O professor pode fazer a leitura do alfabeto, ensinando o som que cada letra
possui, associando estes sons a outros elementos como recurso de memória. Além disso,
é importante que as crianças representem graficamente as letras no caderno, pois fazer
isso de forma recorrente contribuirá para a automatização tanto da grafia quanto dos


358

seus sons correspondentes. Esse conceito de automatização é muito importante para o


aprendizado da leitura e escrita, pois segundo Saviani (2011, p. 18):

Também aqui é preciso fixar certos automatismos, incorporá-los, isto


é, torná-los parte de nosso corpo, de nosso organismo, integrá-los em
nosso próprio ser. Dominadas as formas básicas, a leitura e a escrita
podem fluir com segurança e desenvoltura. À medida que se vai
libertando dos aspectos mecânicos, o alfabetizando pode,
progressivamente, ir concentrando cada vez mais sua atenção no
conteúdo, isto é, no significado daquilo que é lido ou escrito.

Outras ações propostas são frases, cartas e músicas enigmáticas, pois, por meio
delas, o aluno vai adquirindo a capacidade de ler com o auxílio do desenho, bem como
precisará realizar a tarefa de substituí-lo pela palavra escrita. As autoras também
sugerem como recursos, jogos e brincadeiras fundamentais para esse período do
desenvolvimento, pois “[...] a brincadeira é fonte do desenvolvimento e cria a zona de
desenvolvimento iminente”. (VIGOTSKI, 2008, p. 35).
A partir das atividades propostas serão possibilitadas às crianças da educação
infantil o conhecimento do sistema alfabético e a compreensão do seu uso social
possível de expressar qualquer conteúdo, tanto para registro quanto para a comunicação.

2 Análise de uma prática na educação infantil

Tendo em vista o referencial teórico deste trabalho, entendendo a leitura e a


escrita como um instrumento social complexo que pode ter seu ensino iniciado desde os
primeiros anos de vida, analisaremos como esse processo tem ocorrido dentro das
instituições escolares. Para isso, tomaremos como amostra uma turma do grupo 6 da
educação infantil do município de Vitória.
Buscamos, por meio da prática pedagógica de uma professora do grupo 6, a
partir do caderno de um de seus alunos3, identificar de que forma as ações
desenvolvidas nesta turma de um Centro Municipal de Educação Infantil, contribuem
para desenvolver as bases necessárias para apropriação da linguagem escrita conforme
as bases teóricas já apontadas. O caderno da professora A, até o mês de junho de 2014,
era composto por diversas ações referentes ao conhecimento das letras, questões
envolvendo matemática, além da produções de desenhos.


3
O caderno foi selecionado pela professora, que o considerou o mais avançado da turma.


359

Com base nos experimentos de Luria (2010), podemos dizer que as crianças
estão na fase do desenvolvimento da escrita pictográfica e, assim, utilizam o desenho
como auxílio para a memória. Assim, o professor deve atuar para a sua superação
inserindo elementos que dificultem o registro por meio de desenho, obrigando que
recorram ao sistema alfabético, entendendo-o como um sistema cultural que possibilita
ao ser humano o registro de qualquer conteúdo. No entanto, ao procurarmos atividades
pedagógicas que propiciam esse desenvolvimento entre aquelas planejadas pela
professora, encontramos somente três. Na primeira, era solicitado à criança que
registrasse o/a maior e menor menino e menina da turma (Figura 2)4.

Figura 1: Representação do/da maior e menor menino e menina da turma


Fonte: Foto retirada pela pesquisadora do caderno analisado

Já na segunda proposta, as crianças deveriam realizar uma entrevista com


algum outro colega sobre suas preferências, gostos e sonhos futuros e logo depois,
deviam registrar as respostas obtidas (Figura 2):

Figura 2: Registro da entrevista com um colega


Fonte: Foto retirada pela pesquisadora do caderno analisado


4
Todos os desenhos utilizados foram devidamente autorizados pelo Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.


360

A terceira atividade pedagógica trazia a discussão acerca dos temas “igualdade


e liberdade” e era solicitado que as crianças elaborassem um desenho que
representassem cada termo (Figura 3):

Figura 3: Representação dos termos “igualdade e liberdade”


Fonte: Foto retirada pela pesquisadora do caderno analisado

O que pode ser analisado sobre essas ações, é que embora elas realmente
proponham, conforme mencionado por Luria (2010), elementos de tamanho e
carregados de significados difíceis de expressar por meio de desenhos, não ocorreu com
essas crianças uma diferenciação nos desenhos que lhes servisse como auxílio para a
memória, pois se constata que na atividade 1 (figura 1), todas as crianças foram
desenhadas da mesma forma, não sendo possível identificar, por meio do desenho o/a
maior e menor menino e menina. Da mesma forma, as atividades seguintes foram
realizadas com o registro simples de representação de figura humana, não sendo
possível estabelecer, por meio do desenho, o que as atividades propunham.
Outro fator que merece destaque é que de 56 atividades registradas no caderno,
apesar de terem sido desenvolvidas 14 com desenhos, somente três delas estavam
direcionadas para o que Luria (2010) nos propõe acerca da inserção de elementos que
exijam, na produção do desenho, o uso de instrumentos que auxiliem na recordação do
que foi registrado. Todavia, conforme demonstram as figuras apresentadas, não foi dado
destaque a nenhuma característica solicitada (tamanho, substantivos abstratos e


361

preferências). Portanto, ainda não se superou o desenvolvimento pictográfico, que nesse


caso pareceu ainda não estar no auge do desenvolvimento da criança autora dos
desenhos.
Dessa forma, a questão que merece destaque não é o fato de as crianças não
conseguirem expressar graficamente o conteúdo dado. Não se trata de considerá-las
“culpadas” de atraso no desenvolvimento. O importante é que seja compreendido esse
processo e que o professor promova o desenvolvimento dos seus alunos buscando a
melhor forma para a aprendizagem deles. Portanto, entendemos que a professora
deveria direcionar as atividades de modo que possibilitassem às crianças o
desenvolvimento de registros que contemplassem nos desenhos as características
presentes no conteúdo solicitado. Todavia, não há uma continuidade pedagógica que
seria necessária ao avanço esperado (pelo menos não houve registro no caderno de
atividades que possibilitassem avanços nessas questões).
Portanto, o desenho é importante para o desenvolvimento da criança, mas ele
precisa ser direcionado para sua superação, não sendo suficiente o desenho feito pela
criança livremente, pois a criança deve ter em vista o conteúdo e a função ao desenhar
para que se aproxime da função da escrita. O trabalho a ser desenvolvido nesta etapa da
educação infantil deve ser direcionado para que ocorra o avanço nas formas de registro
a partir do aumento da complexidade do conteúdo dado, não sendo possível mais ser
representado pelo simples desenho, sendo necessário recorrer ao sistema que permite
registrar qualquer conteúdo: o alfabético.
Dessa forma, podemos concluir que embora a professora tenha desenvolvido
diversas atividades que contribuem para a apropriação da linguagem escrita nas
crianças, faltou ao trabalho pedagógico uma continuidade, como proposto por Luria
(2010) e Martins e Marsiglia (2015).
Não queremos de forma alguma responsabilizar a professora em questão, pois
entendemos que isso faz parte de um sistema que tem precarizado a formação docente
por um discurso de valorização da espontaneidade dos alunos, excluindo teorias que
prezem pelo ensino intencional e pela transmissão de conhecimentos, como se elas não
existissem, como se isso não fosse possível por meio de um trabalho teórico-prático que
se comprometa com a emancipação social dos indivíduos. Conforme destaca Martins
(2010, p. 20):


362

Um primeiro princípio que tem norteado a formação de professores, a


se colocar em tela [...], diz respeito ao descarte da teoria, da
objetividade e da racionalidade expresso na desqualificação dos
conhecimentos clássicos, universais, e em concepções negativas sobre
o ato de ensinar.

Desta forma, fica claro que assim como são negados os conhecimentos
necessários à formação dos alunos, também o são aos professores e futuros professores,
que acabam por acreditar e valorizar a superficialidade do conhecimento que emerge do
cotidiano dentro das escolas. Assim, muitos professores, sem ter clareza do que fazem,
acabam contribuindo para a perpetuação da sociedade de classes ao não oferecer uma
educação de qualidade aos filhos da classe trabalhadora, que necessitam do
conhecimento para superar a condição de exploração em que vivem, sendo esta também
a sua condição (formação aligeirada e superficial). De fato, é necessário que “[...] os
trabalhadores da educação escolar compreendam que ninguém objetiva aquilo que não
lhe foi dado à apropriação”, pois somente assim será possível alcançar uma educação de
qualidade a todos os indivíduos. (DANGIÓ; MARTINS, 2015, p. 219).

Considerações finais

Pretendemos com este trabalho realizar primeiras aproximações de identificação


das práticas pedagógicas necessárias para apropriação da alfabetização na educação
infantil, defendendo a possibilidade desse processo se iniciar na educação infantil, a
partir de uma teoria crítica da educação. Afinal,

[...] a apropriação da escrita pela criança não se limita à aprendizagem


de sons, como simples soletração, mas deve ser compreendida como
um processo de aquisição de um complexo sistema de
desenvolvimento das funções superiores advindo do percurso histórico
cultural da criança. Há de se levar em conta que esse percurso tem
início na própria necessidade natural de expressão e comunicação da
criança [...]. (DANGIÓ e MARTINS, 2015, p. 212).

Por isso mesmo, as autoras argumentam que

[...] criar a necessidade de escrever deve ser uma preocupação didática


do professor atento ao ensino que produz desenvolvimento, levando-
se em conta as múltiplas relações da criança com a escrita,
especialmente com a literatura. (DANGIÓ e MARTINS, 2015, p.
213).


363

Dessa forma, é interessante que os professores, entendendo a linguagem escrita


como manifestação de comunicação, proponham atividades em que os alunos
desenvolvam essa linguagem cumprindo seu papel social e não de forma meramente
mecânica. Precisamos propor atividades na educação infantil que envolvam situações de
comunicação que, devido a sua complexidade, necessitarão de recursos que vão além
das possibilidades dos desenhos, garantindo a superação desse registro para a utilização
do sistema alfabético. Com base nos apontamentos de Luria (2010) e Martins e
Marsiglia (2015) no decorrer deste trabalho, afirmamos que é necessário valorizarmos
os desenhos das crianças da educação infantil, mas ao mesmo tempo, mostrá-las que
esse é um recurso limitado e insuficiente para comunicação social em situações mais
complexas. Isso pode ser feito por meio de diversas ações e atividades, inclusive por
meio de jogos e brincadeiras, importantes nesse período de formação. Porém,

Quando observamos que os estudantes não estão dominando a


linguagem escrita, como sistema simbólico presente na cultura em que
estão inseridos; quando percebemos que há uma grande distância entre
o conhecimento conquistado pela humanidade e o apropriado pelos
sujeitos, reconhecemos que a educação escolar não está sendo capaz
de produzir em cada indivíduo singular, a humanidade produzida pelo
conjunto dos homens. Enfim, a escolarização não está contribuindo
para a constituição do indivíduo como gênero humano, já que não
consegue lhe assegurar a efetiva condição de atuar, criar e intervir na
sociedade da qual faz e, ao mesmo tempo, não faz parte, já que dela
não participa como sujeito, por estar privado dos instrumentos
simbólicos elaborados e utilizados pelo conjunto dos homens.
(SFORNI; GALUCH, 2009, p. 82).

Dessa forma, entendemos que precisamos de uma educação que vá ao encontro


das necessidades de cada indivíduo. Apesar de termos clareza, por meio desse estudo
inicial, do papel que a educação infantil tem no processo da compreensão do sistema da
escrita pelas crianças, concluímos que há muito ainda a ser conquistado e que isso nos
revela a importância de uma sólida formação inicial/continuada de professores para que
possam assumir essa responsabilidade. Longe de corroborar ideias que culpam o
professor, nosso intento é destacar que as práticas espontaneístas revelam formação
docente pautada por ideários pedagógicos que as privilegiam e assim empobrecem a
formação tanto de professores, quanto de alunos. Devemos, pois, buscar fundamentação
teórico-prática que de fato subsidie a alfabetização das crianças de forma completa,
ampliada e enriquecida, como propõe a pedagogia histórico-crítica.


364

Referências

ARCE, A.; Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil e o espontaneísmo:


(re)colocando o ensino como eixo norteador do trabalho pedagógico com as crianças de 4 a 6
anos. In: ARCE, A.; MARTINS, L. M. (org.) Quem tem medo de ensinar na educação
infantil? Em defesa do ato de ensinar. 2. ed. Campinas, SP: Alínea, 2010, p.13-36.

DANGIÓ, M. S.; MARTINS, L. M. A concepção histórico-cultural de alfabetização. Germinal:


Marxismo e Educação em Debate, Salvador, v. 7, n. 1, p. 210-220, jun. 2015. Disponível em:
http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revistagerminal/article/view/13214/9533 Acesso em
04/12/15.

DUARTE, N. A individualidade para si: contribuição a uma teoria histórico-crítica da


formação do indivíduo. 3 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

LURIA, A. R. O desenvolvimento da escrita na criança. In: VIGOTSKII, L. S.; LURIA, A. R.;


LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 11. ed. São Paulo: Ícone,
2010. p. 143-189.

MARTINS, L. M. O desenvolvimento do psiquismo e a educação escolar: contribuições à luz


da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas-SP: Autores
Associados, 2013.

MARTINS, L. M. O legado do século XX para a formação de professores. In: DUARTE, N.


MARTINS, L. M. (org.) Formação de professores: limites contemporâneos e alternativas
necessárias. São Paulo, Cultura Acadêmica, 2010, p. 13-31.

MARTINS, L. M.; MARSIGLIA, A. C. G. As perspectivas construtivista e histórico-crítica


sobre o desenvolvimento da escrita. Campinas-SP: Autores Associados, 2015.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas, SP:
Autores Associados, 2011.

SFORNI, M. S. F.; GALUCH, M. T. B. Apropriação de instrumentos simbólicos: implicações


para o desenvolvimento humano. Educação. Porto Alegre, v. 32, n. 1, p. 79-83, jan./abr. 2009.
Disponível em http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/viewFile/5140/3776
Acesso em 04/12/15.

STEMMER, M. A educação infantil e a alfabetização. In: ARCE, A; MARTINS, L. M. (org.)


Quem tem medo de ensinar na educação infantil? Em defesa do ato de ensinar. 2 ed.
Campinas, SP: Editora Alínea, 2010, p.125-145.

VIGOTSKI, L. S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. Revista


Virtual GIS. n. 8, abr/2007 (publicada em junho de 2008). UFRJ, 2008. p. 23-36. Disponível
em: http://www.ltds.ufrj.br/gis/anteriores/rvgis11.pdf Acesso em 04/12/15.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

PRÁTICA PEDAGÓGICA À LUZ DO MATERIALISMO HISTÓRICO E


DIALÉTICO, DA TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA
HISTÓRICO-CRÍTICA

Nathalia Martins – Obeduc/UEL1


Vânia Alboneti Terra Dias – Obeduc/UEL2
Sandra Aparecida Pires Franco – Obeduc/UEL 3

Resumo: Este estudo teve como objetivo refletir sobre o processo de formação docente , a fim
de identificar as possíveis alterações na prática pedagógica de professores da Educação Básica.
Nesse sentido, foi necessário considerar as interfaces da sociedade capitalista sobre este
fenômeno. Assim, conduzida como expressão da práxis pedagógica, a educação está articulada
como uma problemática mais ampla, constituindo-se como instrumento de mediação para o
desenvolvimento e a humanização do sujeito. Trata-se de uma pesquisa de abordagem crítico-
dialética, de delineamento qualitativo. Por meio das concepções apresentadas pelos professores
entrevistados foi possível constatar que a organização capitalista interfere diretamente no
contexto educacional, entretanto, é preciso destacar que o processo de Formação Continuada
possibilitou aos docentes troca de experiências, partilha dos problemas enfrentados em sala de
aula, conhecimento teórico à luz do Materialismo Histórico e Dialético, da Teoria Histórico
Cultural e da Pedagogia Histórico Crítica, proporcionando aos professores subsídios e propostas
metodológicas que possibilitam uma ação consciente perante a prática e a possível compreensão
e alteração da realidade.

Palavras Chave: Teoria. Prática. Ação docente. Formação docente.

Introdução

As inúmeras transformações ocorridas na sociedade ao longo do tempo


enfatizam que vivenciamos uma era globalizada, constituída por alterações nas relações
sociais e, consequentemente, no mundo do trabalho.
Tais aspectos são inerentes ao processo educativo. Desse modo, é inviável falar
sobre educação distante do cenário sociopolítico e econômico, uma vez que as


1
Nathalia Martins, Mestranda em Educação, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. E-mail:
nathaliamartins92@hotmail.com
2
Vânia Alboneti Terra Dias, Graduanda em Pedagogia, Universidade Estadual de Londrina, Paraná,
Brasil. E-mail: vania_terra@hotmail.com
3
Sandra Aparecida Pires Franco, Pós-Doutora em Educação, Universidade Estadual de Londrina, Paraná,
Brasil. E-mail: sandrafranco26@hotmail.com


366

transformações sociais do cotidiano provocam profundas rupturas conceituais e de


percepção nos sujeitos nela envolvidos.
Esse trabalho apoia-se nas discussões do projeto “A práxis pedagógica:
concretizando possibilidades para uma avaliação da aprendizagem” do Programa
Observatório de Educação que tem como objetivo analisar, compreender e propor
encaminhamentos teórico-práticos para melhoria da práxis pedagógica no ambiente
escolar. Para esta finalidade professores da Educação Básica de seis colégios estaduais
do munícipio de Londrina-PR participaram de Grupos de Estudo tendo como aportes a
discussão pautada no Materialismo Histórico-Dialético, na Teoria Histórico Cultural e
na Pedagogia Histórico-Crítica, com intuito de refletir sobre a apropriação didático-
pedagógica.
Entretanto, nesse estudo em específico foi selecionado professores de um
colégio para a coleta de dados. O critério utilizado para esta seleção dos participantes
foi o de acompanhamento dos professores no Grupo de Estudo ocorrido tanto na
universidade, quanto na prática, isto é, na instituição escolar. Foram selecionados cinco
professores.
O estudo apresenta caráter qualitativo, visando às possibilidades de apropriação
didático-pedagógica em uma perspectiva Histórico-Crítica, a fim de possibilitar ao
professor uma práxis consciente capaz de expressar a totalidade do conhecimento
científico no processo pedagógico, compreendendo a educação como prática social que
tem como ponto de partida e chegada a realidade concreta do sujeito.
Para essa intencionalidade, foi proposto aos professores da instituição uma
entrevista semiestruturada, a qual considera-se que para análise das respostas é
necessário a articulação entre o conhecimento e uma teoria que organiza as respostas
obtidas a partir das indagações sobre a realidade, a fim de garantir maior rigor científico
na produção do conhecimento, assegurando assim o caráter transformador, além de
reduzir o risco de transformar o conhecimento científico em um saber apenas técnico a
serviço de uma classe dominante. Nesse sentido, Gamboa (2011, p. 113) afirma que
“[...] a produção cientifica é uma construção que serve de mediação entre homem e a
natureza, o pensar e o agir, num processo cognitivo-transformador da natureza”.

1 Trabalho, educação e formação humana


De acordo com os pressupostos de Marx (2002), a primeira premissa que
devemos considerar é a existência humana, isto é, a constatação da organização física e


367

o modo como o homem modifica o meio e se modifica a fim de produzir sua vida
material. Observa-se o trabalho como aspecto pontual; o qual, o homem coloca a
natureza a seu serviço, e produz objetos de acordo com as suas necessidades e
interesses, visto que, tal corrobora para o desenvolvimento do mesmo, pois, “[...] o
homem não se faz homem naturalmente”. (SAVIANI, 2000, p. 07).
Dessa forma, afere-se ao trabalho como uma ação pensada e planejada que
transforma a realidade, divergente de outras espécies, as quais realizam ações sem terem
intenção prévia, agindo apenas por instinto, utilizando da natureza apenas para a
sobrevivência.
Nessa perspectiva, afirma-se que o ser humano nasce em um mundo repleto de
objetos, instrumentos, saberes, linguagens, hábitos e costumes, os quais resultam na
cultura acumulada pelas gerações precedentes. Marx (2002) afirmou que o ser humano
se torna humano à medida que atua sobre a realidade apropriando-se da natureza e dos
elementos da cultura, transformando-os e transformando a si mesmo.
Diante dessa afirmação, na Teoria Histórico Cultural, Vigotski tendo como
aporte textos marxianos, não recusou a influência biológica, no desenvolvimento
humano, mas agregou a este a herança social e histórica como elementos essenciais de
conhecimento e exprimiu que “[...] o aprendizado humano pressupõe uma natureza
social específica e um processo através do qual os educandos penetram na vida
intelectual daqueles que as cercam”. (VIGOTSKI, 2010, p. 100).
Por meio dessas constatações, pode-se perceber que as aptidões e caracteres
especificadamente humanos não são transmitidos por hereditariedade biológica, mas
adquirem-se no decurso da vida por um processo de apropriação da cultura criada pelas
gerações precedentes.
Nesse contexto, ao pensar no objeto para sanar necessidades criou-se técnicas
para o resultado final. Assim, ao longo do tempo as gerações posteriores se apropriaram
do seu uso e criaram novas técnicas para novos objetos, ou seja, o homem tem a
capacidade de se apropriar do que já foi elaborado para novas ações. Portanto, o
trabalho passa a ser a forma que o homem transcende a natureza e a si mesmo.
(MARTINS 2011).
Esse processo corrobora para a concepção social e histórica de homem e que
nesta situação é instigado a construir seu pensamento por meio do processo de trabalho.
Assim, Engels (2002, p. 139) afirmou que “[...] a modificação da natureza constitui a
base essencial do pensamento humano; e é na medida em que o homem aprendeu a


368

transformar a natureza que sua inteligência foi crescendo”. Marx (2002, p.42), por sua
vez, expressou que são “[...] as mudanças históricas na vida material e na sociedade que
determinam mudanças na consciência do homem”.
O proposto pelos teóricos citados significa que o desenvolvimento humano está
vinculado à movimentação e à transformação, que são propostos por meio do processo
de trabalho, meios pelo qual transformam a natureza e a si próprios. Entretanto, na
sociedade atual, os indivíduos vivenciam uma vida engendrada nas diferentes situações
que consideram o cotidiano como centro das atenções junto ao capitalismo. Assim,
estima-se que o homem seja mero reprodutor e que dentro deste sistema ele não tenha
consciência da sua condição de sujeito.
Tal aspecto pode ser percebido mediante as falas dos professores entrevistados,
“[...] a primeira impressão que tive ao voltar para universidade foi o distanciamento do
chão da escola com as teorias preconizadas no ensino superior” (p. 1), “[...] não pensava
muito em estudar antes. A rotina da escola pública não nos permite tal luxo” (p. 3), “por
mais que eu falasse que não iria me distanciar dos estudos, acabei sendo corrompida
pelo cotidiano da escola e acabei me acomodando” (p. 5).
Os professores entrevistados expressaram na fala exemplos vivenciados do
quanto o engendramento do cotidiano interfere no fazer docente, visto que, a prática
pedagógica acaba se comprometendo diante de tal situação. Entretanto, tal pesquisa
tendo como foco o pensamento crítico e dialético perante tais constatações, permite
afirmar que a realidade concreta dos professores pautam se em abstrações teóricas para
então retornar à realidade com possíveis alterações em si e na natureza. Este processo é
norteado pelo estranhamento da realidade posta no cotidiano escolar.
Afinal, a sociedade pode ser também um espaço para luta e transformação. “Os
indivíduos podem mover o ambiente no qual participam”, o que envolve a ideia de
mudança, havendo a necessidade de ir além da cotidianidade, possibilitando o pensar
sobre as vias de transformação social. (HELLER, 2008, p. 57).
Cabe dizer que, ao considerar tais pressupostos para orientar a prática
pedagógica em sala de aula, as ações do professor devem ser diferenciadas em todos os
seus aspectos. Isso significa que o exercício docente precisa considerar este movimento
dialético.
Nesse sentido, Saviani (2000) norteia a proposta da pedagogia histórico-crítica
aliada aos pressupostos da Teoria Histórico-Cultural e do Materialismo Histórico e


369

Dialético. A proposta tem como finalidade um saber específico que possibilite o


desenvolvimento humano dos estudantes, isto é,

[...] o saber que diretamente interessa à educação é aquele que emerge


como resultado do processo de aprendizagem, como resultado do
trabalho educativo. Entretanto, para chegar a esse resultado a
educação tem que partir tem que tomar como referência, como matéria
prima de sua atividade, o saber objetivo produzido historicamente.
(SAVIANI, 1997, p.13).

Todavia, na atual conjuntura pode-se dizer que a educação configura-se numa


resposta a uma necessidade social correspondente à sociedade vigente. Neste sentido,
Silva (2009, p.187) ressalta que tal processo educacional “[...] tanto pode reiterar o
sistema de exploração capitalista vigente, quanto ser importante fermento de sua
superação, elemento de práxis social”. Neste viés, a educação consubstancia-se como
um campo de disputa de poder, refletida, especificamente, nos conteúdos ensinados e na
forma em que este processo se desenvolve.
Em sua análise, Frigotto (2003, p. 26) enfatiza que:

Na perspectiva das classes dominantes, historicamente, a educação


dos diferentes grupos sociais de trabalhadores deve dar-se a fim de
habilitá-los técnica, social e ideologicamente para o trabalho. Trata-se
de subordinar às demandas do capital.

Destarte, Saviani (1997) apresenta que é função da escola fornecer os


instrumentos necessários para a apropriação dos conhecimentos científicos, bem como a
transmissão do saber elaborado. Neste sentido, é preciso enaltecer que a teoria histórico-
cultural corrobora com a pedagogia histórico-crítica e valoriza a mediação do adulto
neste processo de desenvolvimento.
Para Vigotski (2010, p. 69), “[...] o desenvolvimento cultural tem como ponto de
partida a atuação de adultos ou outras pessoas mais experiências sobre o educando”. .
Assim, Marx afirma que “[...] os educadores são os responsáveis pelas transformações
da sociedade e, portanto, os verdadeiros sujeitos da história”. (MARX apud VÁSQUEZ,
1968, p. 160).
O processo de mediação necessita da presença de um parceiro mais experiente
que ensine ao outro que é menos experiente e que possibilite a transformação, pois não é
qualquer ação que é desenvolvida na escola que promoverá o desenvolvimento das
qualidades humanas. É preciso compreender o que de fato contribui para o


370

desenvolvimento dos educandos tornando-se urgente e essencial para a elaboração de


propostas que valorizem o conhecimento e não ações fragmentadas.
Por esse viés, “[...] na escola, acontece à passagem do saber espontâneo ao saber
sistematizado, da cultura popular à cultura erudita. [...]” e tudo isso converge a um
movimento dialético, visto que essa ação possibilita novas vivências e experiências.
(SAVIANI, 2000, p. 21).
A importância desta compreensão, isto é, da mediação, está aliada à
possibilidade de o professor perceber a relevância da formação teórica, além de
considerar os contextos culturais e institucionais em que os estudantes estão inseridos.
Mediante tais aspectos, deve-se identificar o reconhecimento do seu trabalho na
mediação entre o homem e os objetos do mundo, ainda que o processo de educação seja
responsável pela apropriação das qualidades humanas.

2 Práxis e ação docente

A escola é um espaço no qual possibilita a garantia da vida humana ao homem,


por meio da transmissão/apropriação do conhecimento científico em suas formas mais
desenvolvidas, condições de apropriar-se do mundo a sua volta. Desta maneira, cabe
ressaltar que o trabalho educativo desenvolvido neste ambiente deve ter como objetivo:

[…] o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo


singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um
lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser
assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta
das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI,
1997, p. 17).

Em meio a esse contexto, a prática pedagógica concebida como práxis


transformadora pode ser uma das formas para atingir o objetivo proposto por Saviani
(1997), isto é, a humanização.
Faz-se necessário uma prática que se distancie daquelas que se voltam apenas
para a fragmentada reprodução de saberes instituídos. Assim, atribui-se ao docente e,
em específico, à prática pedagógica, a necessidade da contradição. Neste processo, o
professor caminha em um sentido no qual vai relacionando a dialética com a própria
ação, ou seja, atua de forma a pensar sobre suas ações, buscando o entendimento e a


371

transformação sobre suas ações, sobre o que faz, como faz e porque faz, levando em
consideração a consciência sobre suas práticas.
A presença do processo dialético na ação docente reflete diretamente na
formação dos estudantes, pois uma prática pedagógica consciente possibilita um ensino
distanciado do senso comum; no entanto isso não ocorre de forma simples e intuitiva.
Requer uma sólida formação teórica e epistemológica, bem como a compreensão da
realidade, ou seja, a consciência que permite ao professor o exercício constante da
dialética.
Assim, pode-se atingir o proposto, entretanto, é preciso considerar que os
próprios professores não são imunes às transformações sociais, pois estão inseridos
neste contexto. Não existem dualismos entre educadores e educandos, divididos em
homens ativos e passivos, implicando em uma práxis incessante, tanto do objeto quanto
do sujeito e, portanto, jamais poderá haver educadores que não necessitem ser educados.
(VÁZQUEZ, 1968).
Nessa perspectiva, é necessário enfatizar que este percurso não acontece por
meio de um curso oferecido em pacotes fechados com fins imediatos e de forma
‘aligeirada’, nos quais os professores ficam apenas ouvindo sem nenhuma participação,
uma vez que estes deveriam ser os mais atuantes. A proposta da formação continuada
enfatiza um processo que possibilite um pensamento dialético sobre a teoria e a prática.
Portanto, este processo de formação visa que a relação teoria e prática permeie o
trabalho do professor, ou seja, o saber docente é práxis do trabalho elaborado para
intervenção do professor.
A reflexão acerca da práxis, que segundo a perspectiva histórico-cultural, se trata
de uma atividade humana, pressupõe que deva ser realizada como a atividade consciente
do sujeito que irá intervir. Desta maneira, foi questionado aos professores se “Há
influência da Formação Continuada acerca do método e da teoria histórico cultural em
sua prática pedagógica? Qual?”.

Sim, acabei percebendo que teoria e prática precisam caminhar


juntas e devem ser consideradas para atingir o desenvolvimento do
maior número de alunos, vi que não é fácil e que meus colegas
também tem problemas em sala de aula, mas agora tento aplicar este
conhecimento em sala de aula, no meu planejamento. (p. 2).

Sim, com o Obeduc, comecei a refletir o meu processo de ensinar e


entender melhor a forma que meus alunos aprendem, assim comecei a


372

alterar a maneira em que estava expondo o conteúdo, percebi que


fragmentava demais [...]. (p. 4).

Sim, o Obeduc me levou a estudar a teoria para poder ter uma


prática consciente, o que estava sendo deixado de lado por mim no
processo de ensino/aprendizagem. Entendi que apropriar-se do
conhecimento teórico é relevante para o processo educacional e agora
tento estudar mais e tento passar isso para meus colegas de profissão
também. (p.5).

Com as falas dos professores foi possível perceber que o processo de Formação
Continuada possibilitou aos docentes trocas de experiências, partilha dos problemas
enfrentados em sala de aula, conhecimento teórico que proporcionaram subsídios e um
pensar sobre as propostas metodológicas, sobre a didática utilizada em sala de aula,
possibilitando uma ação consciente perante a prática e a possível compreensão e
alteração da realidade.
Um dos fatores que contribuiu para que os professores conseguissem transcender
a teoria para a realidade da sala de aula foi o sentimento de pertencimento perante a
Formação Continuada que possibilitou apropriação sobre a teoria e a expropriação da
mesma no cotidiano escolar.
O processo dialético que sustenta a perspectiva da Pedagogia-Histórico-Crítica,
segundo Saviani (2000), também é de extrema relevância na formação, visto que, é
possível conhecer a realidade, para então poder negá-la por meio do conhecimento
científico, pois negá-la significa oferecer subsídios para transformá-la. Nessa vertente,
ressalta-se a fala dos professores grifada acima, pois elucida que tal processo propiciou
este perceber e conceber sobre a ação do professor.
A pedagogia histórico-crítica é o empenho em compreender a questão
educacional a partir do desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a concepção
pressuposta nesta visão é o Materialismo Histórico e Dialético, ou seja, a compreensão
da história a partir do desenvolvimento material, da determinação das condições
materiais da existência humana. (SAVIANI, 2000, p. 102).
É preciso considerar que a fala dos professores apresenta características destas
determinações, pois, apresenta a atividade docente como um movimento ao
conhecimento, e a relação indissociável entre teoria e prática; todavia há, paralelamente,
um desafio nesta situação, pois formar um educador que trabalhe nesta perspectiva
requer alguns elementos, que é a capacidade de trabalhar com os conhecimentos
sistematizados sem que haja uma anulação sobre aquilo que o educando traz consigo.


373

Por meio destas experiências, produzem-se condições para possibilitar o conteúdo


elaborado e tais apontamentos são essenciais para a proposta de formação nesta
concepção.
Desse modo, é preciso que a prática pedagógica tenha uma sólida base teórica
para que esta possa ter condições de realizar o movimento permanente entre o particular
e o universal, para que não aconteça como o professor menciona que “percebi que
antes fragmentava demais, apresentava tópicos dos conteúdos sem relação
nenhuma com o conhecimento científico, a cultura elaborada” (p.4). Para tanto, é
essencial o movimento da parte e o todo para compreensão dos elementos de uma
totalidade.
Na perspectiva marxista, a práxis deve permear a prática pedagógica, para que
haja esta compreensão, uma vez que esta é “[...] a categoria central da filosofia que se
concebe ela mesma não só como interpretação do mundo, mas também como guia de
transformação” que possibilita aos seres humanos tornarem-se sujeitos da história.
(VÁZQUEZ, 1968, p. 5).
Porém, no ambiente escolar, situar a práxis também é algo complexo, pois
mesmo em um ambiente onde a teoria e a prática deveriam estar aliadas com o
propósito de constituir um ser humano cada vez mais humano, isto não acontece em
plenitude como observamos nos relatos dos professores.
Nesse sentido, pode-se considerar o contexto, pois a escola encontra-se inserida
em uma sociedade capitalista que visa à corrida contra o tempo, a produção em larga
escala e o consumo em massa. Nessa ânsia de atender às demandas do mercado e das
imposições burocráticas, há uma corrida constante por cumprir o planejamento, o livro
didático, adquirir novas tecnologias, novos métodos sem que haja um pensar sobre o
porquê de tudo isso, tornando o trabalho do professor um processo mecânico e estático
e, muitas vezes, impedindo-o de pensar sobre suas ações.
Essas situações encontram-se atreladas a um cotidiano que traz como
característica “[...] a imediaticidade e o pensamento manipulador”, que permeiam a
instituição, constituindo-se como entraves para a consecução de uma prática pedagógica
que seja considerada práxis transformadora. (NETTO; FALCÃO, 1987, p. 25).
Todavia, o contexto da vida cotidiana na escola, ou fora dela, não deve ser
negado ou analisado apenas pela ótica do conformismo. Pelo contrário, deve ser fonte
de investigação para possibilitar aos seres humanos o desenvolvimento de suas
potencialidades, para uma posterior atitude de suspensão da cotidianidade, a qual


374

proporciona o desenvolvimento da consciência modificando a si mesmo, o que resulta


em um novo olhar para consigo e com os outros, acompanhado de uma nova ação de
transformação de desenvolvimento humano.

Considerações finais

Mediante as contribuições apresentadas no decorrer do texto constata-se que o


professor mesmo inserido em uma sociedade que traz o capitalismo como mola
propulsora de seu desenvolvimento e com isto apresenta como característica latente a
fragmentação do trabalho, a prática pedagógica não pode se encontrar engendrada neste
processo. Desta maneira, é preciso que haja estranhamento perante a realidade posta
para que possa criar necessidades de alteração, visto que, este ‘estranhar’ encontra-se
amparado em uma base teórica consistente que propicie ao professor saber sistematizar
e planejar os procedimentos pedagógicos e metodológicos que irá utilizar em sala de
aula, propiciando a instrumentalização para desenvolver sua práxis, tomando a prática
social como ponto de partida e chegada da prática pedagógica.
Nesse processo de apropriação do conhecimento historicamente acumulado
sugere-se que a prática pedagógica compreenda o ser humano como um sujeito
histórico-social que se constrói em uma relação dialética com o outro. Considera-se,
dessa maneira, de extrema relevância o elo entre prática-teoria-prática, capaz de
transformar o sujeito e a realidade que está inserido por meio do conhecimento.

Referências

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L. SILVA, V. P. MILLER, S. Marx, Gramsci e Vigostki: aproximações. Araraquara, SP.
Junqueira&Marin; Marília, SP: Cultura Acadêmica, 2009.

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VIGOTSKI, Lev Semenovich. Quarta aula: a questão do meio na pedologia. Tradução de


Márcia Pileggi Vinha. Psicologia USP, São Paulo, 2010.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

ANÁLISE DA ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ESCOLAR


A PARTIR DOS EIXOS FILOSÓFICOS DO PPP

Adreana Dulcina Platt - UEL1


Vânia Alboneti Terra Dias - UEL2

Resumo: Nesse artigo apresentaremos os resultados da pesquisa científica que discute os eixos
filosóficos do Projeto Político Pedagógico enquanto norteadores para a construção da rotina
político-pedagógica da escola, desvelando o Currículo escolar em ação. Desta forma, queremos
contribuir com o debate a partir da investigação ao histórico da construção da rotina político-
pedagógica e sua relação com os fundamentos curriculares principalmente quando estes
orientam as ações político-pedagógicas da escola, e sua repercussão quando seu discurso se
volta à formação plena do ser humano. Nosso objeto de análise, neste momento da pesquisa,
serão os eixos que respondem pela “visão de ser humano” e pela “função social da escola”
enquanto vetores que sustentarão este exercício da corresponsabilização dos sujeitos na
elaboração e efetividade prática do Projeto Político Pedagógico, dando-lhe visão de finalidade
(teleologia).

Palavras-Chave: Currículo. Projeto Político Pedagógico. Eixos Filosóficos do PPP

Introdução

A organização do cotidiano escolar descrita nas orientações filosóficas de um


Projeto Político Pedagógico é uma realidade recente na escola brasileira. Anteriormente
a conhecíamos como “administração geral da escola” enquanto pressuposto para a
realização dos fins educativos tanto na atividade-meio (direção, serviços de secretaria,
assistência ao escolar e atividades complementares como: zeladoria, vigilância,
atendimento de alunos e pais), quanto na atividade-fim: (relação ensino aprendizagem
que acontece principalmente - mas não só - em sala de aula). No entanto, reconhecemos,
conforme Saviani (2003, 1995), que a organização de um cotidiano educacional talvez
possa ser considerada um dos importantes aspectos constituidores daquele volume de
atividades nucleares da escola e que forma o “Currículo”.
Diante desses aspectos, queremos contribuir com o debate a partir da
investigação ao histórico da construção da rotina político-pedagógica e sua relação com

1
Adreana Dulcina Platt, Doutora em Educação, Universidade Estadual de Londrina, Paraná, Brasil. E-
mail: adplatt@uel.br
2
Vânia Alboneti Terra Dias, Graduanda em Pedagogia, Universidade Estadual de Londrina, Paraná,
Brasil. E-mail: vania_terra@hotmail.com


377

os fundamentos curriculares principalmente quando estes orientam as ações político-


pedagógicas e administrativas da escola, e sua repercussão quando seu discurso se volta
à formação plena do ser humano, ou seja, segundo Manacorda (1991) e Duarte (1999),
voltados a uma formação “omnilateral”.
Na perspectiva da elaboração de um currículo visando o desenvolvimento
pleno do indivíduo falaremos sobre Projeto Político-Pedagógico, documento que
contém orientações quanto a construção da rotina política e pedagógica da escola a
partir do foco teleológico (finalidade) do exercício escolar, ou seja, os eixos que
fundamentam filosoficamente as atividades reconhecidas pelo coletivo escolar como
nucleares à unidade de ensino.

1 A organização escolar e o projeto político pedagógico: paradigmas da


administração moderna educacional.

Como assertamos acima, o termo gestão escolar é recente. Pela legislação e


práticas anteriormente descritas numa pauta denominada de “administração escolar” já
era possível reconhecer as funções que agora são atribuídas à gestão escolar. O conceito
de gestão escolar foi constituído a partir dos movimentos de abertura política do país
(pós-ditadura), veiculando a promoção de novos valores e conceitos, associados à ideia
de autonomia escolar, à criação de escolas comunitárias, à participação da sociedade e
da comunidade cooperativas e associativas. A nomenclatura muda assim como as
concepções teóricas a respeito desta atividade.
A organização escolar assume um novo perfil não mais fundado unicamente nos
princípios científicos da administração, mas na concepção da gestão comprometida com
o ideário de uma composição colegiada e de caráter democrático. Compreender-se-á
num sentido amplo a gestão escolar enquanto conjunto de ações que visam promover a
organização, a mobilização e a articulação de todos os sujeitos com o compromisso de
investir na existência de condições materiais e humanas necessárias à garantia do
desenvolvimento dos processos socioeducativos, orientados à promoção efetiva da
aprendizagem. Na persecução deste objetivo a escola passa a ser vista como detentora
de autonomia, enquanto instituição com identidade e cultura própria, capaz de reagir às
solicitações dos locais e contextos na qual se encontra.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), nº. 5692/71,
(anterior à atual LDBEN 9394/96) apontava que a escola seria legitimamente


378

organizada pelos princípios da administração escolar que limitava sobremodo o trabalho


realizado nas instituições de ensino a uma lógica eminentemente cientificista como, por
exemplo, a avaliação unicamente quantitativa apoiada em instrumentos métricos, por
meio de um ensino meritocrático e bancário ou apresentando uma abusiva falta de vagas
e de recursos para o acesso e permanência aos filhos dos trabalhadores. Tudo isso
destaca a restrição de ingresso possível eminentemente um grupo em particular: a elite
dominante. A direção da escola estava centralizada na figura do diretor cuja função era
basicamente administrativa e não pedagógica (repassando informações e cumprindo
normas emitidas pelos órgãos centrais, supervisionando e dirigindo a rotina escolar
conforme estabelecia as diretrizes do programa de governo sem consulta a comunidade
escolar).
Movimentos que instituíram a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a
LDBEN 9394/96, ambas no Brasil, se assentavam em novos princípios. Estas serão
reconhecidamente de teor democrático e responsáveis por constituir objetivamente a
criação de novas ações políticas no interior das escolas, aumentando a responsabilidade
e atuação agora de uma coordenação escolar com um perfil colegiado. Este novo
modelo supõe a oportunidade de participação da comunidade escolar e local nas
decisões que envolva atividades político- pedagógicas. De acordo com Ferreira e Aguiar
(2001, p. 309):

A gestão da educação acontece e se desenvolve em todos os âmbitos


da escola, inclusive e fundamentalmente, na sala de aula, onde se
objetiva o projeto político-pedagógico não só como desenvolvimento
do planejado, mas como fonte privilegiada de novos subsídios para
novas tomadas de decisões para o estabelecimento de novas políticas.
[…] A razão de ser da gestão da educação consiste, portanto, na
garantia de qualidade do processo de formação humana – expresso no
projeto político-pedagógico – que possibilitará ao educando crescer e,
através dos conteúdos do ensino que são conteúdos de vida,
hominizar-se, isto é, tornar-se mais humano.

Assim sendo, a transformação que ocorre neste momento histórico define algo
além da gestão escolar, mas reorienta todo o vetor curricular que alimenta a construção
da rotina político-pedagógica e administrativa das unidades de ensino brasileiras. É um
novo paradigma de formação humana proposto, que se evidencia pelo mapa curricular
que orienta as atividades nucleares da escola.


379

2 O currículo como a própria dinâmica político-pedagógica da escola.

Lunardi (2004) define currículo como um campo de atividades envolvendo


múltiplos sujeitos em diferentes instâncias, cada um com tarefas específicas. Conforme
Saviani (2003), consideramos “práticas curriculares” como o conjunto de propostas
emitidas pelo governo assim como por meio da “leitura” realizada destes discursos pela
escola através de seus sujeitos.
No âmbito escolar, a literatura destaca a coexistência de três tipos de currículo:
currículo formal, currículo real e currículo oculto. Libâneo e Oliveira (2003, p.363)
conceituam estes tipos de currículo:

O currículo formal, ou oficial é aquele estabelecido pelos sistemas de


ensino, expresso em diretrizes curriculares, nos objetivos e nos
conteúdos das áreas ou disciplinas de estudo. […] O currículo real é
aquele que, de fato, acontece na sala de aula, em decorrência de um
projeto pedagógico e dos planos de ensino. É tanto o que sai das ideias
e da prática dos professores, da percepção e do uso que eles fazem do
currículo formal, como o que fica na percepção dos alunos. […] O
currículo oculto refere-se àquelas influências que afetam a
aprendizagem dos alunos e o trabalho dos professores e são
provenientes da experiência cultural, dos valores e dos significados
trazidos de seu meio social de origem e vivenciados no ambiente
escolar – ou seja, das práticas e das e experiências compartilhadas em
sala e aula. É chamado de oculto porque não se manifesta claramente,
não é prescrito, não aparece no planejamento, embora constitua
importante fator de aprendizagem.

O currículo pode ser entendido como um “artefato social e cultural” uma vez que
é constituído por um conjunto de práticas locais, globais, encadeadas, desencadeadas,
conflituosas e integradas. Ainda segundo a autora o processo de educação destacado
num currículo que identifica na formação humana plena sua prioridade, converge num
sentido objetivo o complexo diverso e rico de práticas e conteúdos que “[...] não podem
ser entendidas separadamente”. (LUNARDI, 2004, p. 6).
Ao se falar em “formas de ensinar” deve ficar claro que esta relação não se
restringe apenas entre professor e aluno em sala de aula. Neste contexto, Paro (2007, p.
11) destaca que:

É a escola inteira que deve ser motivadora; portanto, é a escola toda


que deve se tornar educadora. A esse respeito, o enriquecimento do
currículo não pode se restringir a mero acréscimo de disciplinas a
serem estudadas, mas a uma verdadeira transformação da escola num


380

lugar desejável pelo aluno, aonde ele não vá apenas para preparar-se
para a vida, mas para vivê-la efetivamente.

As atividades nucleares da escola enquanto objeto do Currículo Escolar significa


a revisitação de conhecimentos com lastro epistêmico que resultam do acúmulo da
atividade prática e reflexiva da humanidade em favor das práticas coordenadas
coletivamente, objetivando a “produção da humanidade no outro”. A transmissão e
assimilação dos saberes, neste sentido, estarão em compromisso com as relações sociais
e de produção que respondem pelos eixos que respondem objetiva e subjetivamente pela
formação humana de forma dirigida. (SAVIANI, 1995).

3 O projeto político pedagógico como elemento norteador das atividades escolares

O projeto político-pedagógico será considerado neste estudo como instrumento


articulador da escola; aquele que responde pela organização do e no tempo e espaço
escolar. O objetivo deste instrumento é orientar toda e qualquer ação escolar por
pressupostos construídos pela comunidade escolar (gestor interno e externo,
professores, funcionários, pais e comunidade) sempre numa versão democrática de
corresponsabilidades. Conforme Azevedo (2001, p. 312):

[…] democratizar é construir participativamente um projeto de


educação (...) transformador e libertador, onde a escola seja
laboratório de prática, de exercício e de conquista de direitos, de
formação de sujeitos históricos autônomos, críticos e criativos,
cidadãos plenos, identificados com os valores éticos, voltados à
construção de um projeto social solidário que tenha na prática da
justiça, da liberdade, no respeito humano (...) o centro de suas
preocupações.

No contexto de uma proposta que verifica a materialidade histórica, Gadotti


(2004, p.34-35) expressa de maneira significativa o papel o projeto político–pedagógico
reconhecidamente como instrumento “competente e líder” por ser constituído
emergencialmente de uma “natureza” que visa a autonomia e o processo democrático.
Para isso, a “[...] gestão democrática [...] exige, em primeiro lugar, uma mudança de
mentalidade de todos os membros da comunidade escolar”, porquanto a construção
deste projeto político pedagógico (PPP) será o alvo ser perseguido.
Conforme o próprio significado da palavra “projeto” (etimologicamente
enquanto “lançar para frente”) será no desafio de “pensar e agir” política e


381

pedagogicamente o cotidiano escolar de forma coletiva (quanto a diversidade, os


determinantes e a conjuntura que existem e atuam na escola, com a escola e sobre a
escola) que o PPP deve se pronunciar, no anúncio de seu conceito e na reflexão de sua
prática. Veiga (1996, p. 12 e 13) corrobora com nossa perspectiva quando conceitua a
importância do projeto político pedagógico na vida escolar:

[...] o projeto político pedagógico vai além de um simples


agrupamento de planos de ensino e de atividades diversas. O projeto
não é algo que é construído e em seguida arquivado ou encaminhado
às autoridades educacionais coo prova do cumprimento de tarefas
burocráticas. Ele é vivenciado em todos os momentos, por todos
envolvidos com o processo educativo da escola. O projeto busca uma
direção. É uma ação intencional, com um sentido explícito, com um
compromisso definido coletivamente. Por isso, todo projeto
pedagógico da escola é, também, um projeto político por estar
intimamente articulado ao compromisso sociopolítico com os
interesses reais coletivos da população majoritária. É político no
sentido de compromisso com a formação do cidadão para um tipo de
sociedade.

Diante destes aspectos, consideramos o papel central e incessante do PPP em


vigiar a práxis escolar contra desvios autoritários que marcam ideológica e
empiricamente a sociedade do capital, manifestando-se insistentemente nas diferentes
nações, como a brasileira que possui um histórico institucional patrimonialista de cunho
repressivo. (CUNHA, 1986).
Falta-nos, entretanto, reconhecer que as marcas democráticas de um projeto
político-pedagógico se evidenciam precipuamente na tensão de seus pressupostos
teleológicos, ou seja, na apresentação dos EIXOS FUNDAMENTAIS (ou norteadores)
que definem a FINALIDADE das ações e reflexões realizadas na construção da rotina
escolar. Nesse sentido, nos debruçaremos ao estudo de dois dos quatro eixos que
compõe sistemática, pedagógica e politicamente o PPP.

4 Os eixos fundamentais do projeto político

Existem várias estratégias para a composição daquilo que se constituirá num


projeto político-pedagógico. Em Vasconcelos (2008) determina-se a construção do PPP
a partir de fases que se denominarão de “marco”; em Veiga (1998) estas fases serão
descritas como “ato”. Nesse estudo, no entanto, denominaremos “corpo” enquanto
estratégia de articulação do PPP e, objetivamente, para a compreensão do que seja “eixo


382

fundamental” neste estudo. Denominamos de “corpo” porquanto aludimos sua ideia a


uma totalidade em si que constituirá outra realidade total; ou seja, são integrais em si,
portanto, não considerada numa composição de natureza “etapista” para a compreensão
político-reflexiva do termo e da ação que de si depreende. O movimento deste processo
de construção do PPP se constituirá num corpo situacional, corpo conceitual e corpo
operacional, como explicaremos a seguir.
A função do corpo situacional é apreender o movimento interno da escola,
conhecer seus conflitos e contradições, fazer seu “diagnóstico” e definir onde é
prioritário agir. De acordo com Veiga (1998, p.23-24),

O ato situacional – descreve a realidade na qual desenvolvemos nossa


ação; é o desvelamento da realidade sociopolítica, econômica,
educacional e ocupacional. […] significa, portanto ir além da
percepção imediata. É o momento de desvelar os conflitos e as
contradições postas pela prática pedagógica; é apreender seu
movimento interno, de tal forma que se possa reconfigurá-la,
fortalecida pela reflexão teórico-prática.

No corpo conceitual (que constitui o objeto do presente estudo), a escola discute


a concepção de sociedade, ser humano, educação e a função social da escola visando
um esforço teleológico que definirá as prioridades que devem ser constituir a práxis
escolar. Ainda segundo a autora (idem, p.25) sobre o ato conceitual:

[…] Diz respeito à concepção ou visão de sociedade, homem,


educação, escola, currículo, ensino e aprendizagem. Diante da
realidade situada, retratada, constatada e documentada. […] Neste
momento conceitual, devem também ser considerados os eixos
norteadores do projeto.

O corpo operacional refere-se como realizar as atividades a serem assumidas


para mudar a realidade da escola, Implica a tomada de decisão para atingir os objetivos
e as metas definidas coletivamente. Neste último tópico Veiga (1998, p.26) alude que:

Na operacionalização do projeto pedagógico, o que se faz é verificar


se as decisões foram acertadas ou erradas e o que é preciso revisar ou
reformular. Tendo em vista as diferentes circunstâncias, pode-se
tornar necessário tanto alterar determinadas decisões quanto introduzir
ações completamente novas.

Uma vez explorados os conceitos que compõem o PPP gostaríamos de destacar


no corpo conceitual dois eixos que fundamentam o projeto político pedagógico e


383

orientam a rotina escolar revestindo-lhe de objetividade e teleologia. Serão eles a


“Visão de Ser Humano” e a “Função Social da Escola”.

5 A visão de ser humano

Saviani (2003, p 133) destaca a categoria “trabalho” enquanto elemento


fundamental para a constituição do que seja “ser humano”. Diz-nos o autor:

Ora, o que define a existência humana, o que caracteriza a realidade


humana é exatamente o trabalho. O homem se constitui como tal à
medida que necessita produzir continuamente sua própria existência.
É o que diferencia o homem dos animais: os animais têm sua
existência garantida pela natureza e, por consequência, eles se
adaptam a natureza. O homem tem de fazer o contrário: ele se
constitui no momento em que necessita adaptar a natureza a si, não
sendo mais suficiente adaptar-se a natureza. Ajustar a natureza às
necessidades, às finalidades humanas, é o que se faz pelo trabalho.
Trabalhar não é outra coisa senão agir sobre a natureza e transformá-
la.

A partir dessa assertiva o ser humano será reconhecidamente um individuo que


se encontra em processo de formação e transformação por meio do trabalho. Através das
relações estabelecidas com a natureza da produção que o homem tem suas experiências,
passa a atuar no meio em que vive e complexifica seu processo de existência. E isso não
será ato solitário, mas é produto de ato relacional (relações sociais originais às suas
relações de produção).
Compreender-se-á o ser humano, enquanto sujeito e objeto de transformação do
meio em que vive, de si mesmo e dos outros que objetivamente responde por sua
existência. A formação desse sujeito e as complexidades conquistadas como respostas
às necessidades que surgem originam um corpo de saberes que são continuamente
construídos e ensinados a cada geração de humanos que surgem. Este corpo de saberes
ensinados se denominará educação. Por educação podemos entender o significado de
“tornar-se ser humano” uma vez que o objeto da educação será a “produção da
humanidade em cada indivíduo”.
Segundo Angeli (2009, p. 20) “a formação humana traz em si uma proposta
pedagógica” porquanto elabora as bases de um “humanismo histórico” que se pretende
omnilateral porquanto revolucionária, diferente da proposta burguesa de formação


384

especialista/parcializada. Os seres humanos nesta visão de formação eliminam o fosso


que contrapõe cultura e trabalho.

6 A visão da função social da escola

De acordo com Saviani (1995, p. 22-23), a escola é uma instituição social com
objetivo explícito: a transmissão e assimilação dos saberes epistemologicamente
sistematizados pela humanidade enquanto produto da história:

[...] ao tratar do papel da escola[...]: a escola é uma instituição cujo


papel consiste na socialização do saber sistematizado [...] ao
conhecimento elaborado, [...]sistematizado, [...] erudito [...]. A escola
existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que
possibilitem o acesso ao saber elaborado (ciência) [...]. As atividades
da escola básica devem se organizar a partir dessa questão.

A escola no desempenho de sua função social (enquanto formadora de sujeitos


históricos) se destaca enquanto um espaço de sociabilidade revestido da possibilidade
de construção do conhecimento cientificamente produzido. Esta instituição influencia
significativamente na constituição do que se reconhece no processo de humanidade e,
consequentemente de mundo.

O tempo da escola é encarado cada vez mais como oportunidade de


uma socialização-vivência o mais plena possível dos profissionais e
dos alunos. Há novas dimensões da formação humana recolocadas
hoje nas lutas pelo direito a educação. Nossas escolas estão
sintonizadas com esse movimento. A estreita concepção de educação
está sendo alargada dentro delas. (...) profissionais e (...) alunos
tentam encontrar espaços legítimos nos currículos (...). (II
CONGRESSO POLÍTICO-PEDAGÓGICO DA REDE MUNICIPAL
DE ENSINO/ESCOLA PLURAL, 2002, p. 13) .

O destaque a este papel da escolarização se encontra no lastro que o


complementa numa visão de ser humano omnilateral cujo objetivo está na formação
plena (e por todos os lados) dos sujeitos em relação.

Considerações finais

A presente investigação destacou que as características centrais que sustentam os


eixos que fundamentam o Currículo, em vista a formação humana plena e que ocorre


385

por meio do ato educacional são encontradas no projeto político-pedagógico (PPP), pois
exerce papel fundamental na orientação colegiada e responsável dos atores escolares
para a realização da formulação do currículo assim como na organização da própria
unidade escolar na promoção do “cotidiano político-pedagógico”. O liame que conduz
a tríade “cotidiano escolar - currículo - PPP” possui centralidade na organização
contemporânea da escola participativa e de qualidade almejada pela sociedade e
proposta pelo Estado.
Nessa perspectiva, verificamos que o Projeto Político Pedagógico norteará o
conjunto de atividades escolares construídas coletivamente a partir da dinâmica do
contexto em que a unidade de ensino e a comunidade estão inseridas. Esta organização
exigirá o exercício político na construção da rotina do currículo em ação. Diante desta
perspectiva, o estudo aponta que os eixos filosóficos aqui investigados (“visão de ser
humano” e “função social de escola”) destacam o norte perseguido pelas atividades de
transmissão e assimilação dos conhecimentos (ensino-aprendizagem, em amplo aspecto)
relevantes à formação humana plena promovidos no próprio cotidiano escolar pelos
sujeitos nela inseridos.

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ENSINO/ESCOLA PLURAL. (2002). Belo Horizonte, MG: Prefeitura Municipal de Belo
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Campinas, SP: Papirus.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA NOS FUNDAMENTOS TEÓRICOS


DAS DIRETRIZES CURRICULARES PARA A REDE PUBLICA MUNICIPAL
DE EDUCAÇÃO DE APARECIDA DE GOIÂNIA-GO

Ivone Rodrigues dos Santos (SME – Aparecida de Goiânia)1


Aline Araújo Caixeta da Silva (SME – Aparecida de Goiânia)2
Cecília Honória dos Santos Pereira (SME – Aparecida de Goiânia)3

Resumo: Esse texto tem como objetivo relatar o processo de reescrita das Diretrizes
Curriculares para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental I e II da Rede Pública
Municipal de Ensino de Aparecida de Goiânia-GO, iniciado em 2015 e ainda em fase de
elaboração. O referido documento tem como referencial teórico os pressupostos filosóficos,
psicológicos e pedagógicos defendidos pela Pedagogia Histórico-Crítica. Intenta-se também,
apresentar as etapas concluídas e as projeções futuras, os obstáculos e as superações, bem como
os pressupostos teóricos que estão subsidiando a elaboração deste documento, apontando o seu
delineamento com as condições histórico e social, com as concepções de gestão e com o
compromisso e prioridades assumidos pelos professores que compõem o quadro técnico dessa
Secretaria da Educação.

Palavras-chave: Diretrizes Curriculares; Pedagogia Histórico-crítica; Aparecida de Goiânia-


GO.

Introdução

Esse texto tem como objetivo relatar o processo de reescrita das Diretrizes
Curriculares para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental I e II da Rede
Pública Municipal de Ensino de Aparecida de Goiânia-GO, iniciado em 2015 e ainda
em fase de escrita, tendo como referencial teórico os pressupostos filosóficos,
psicológicos e pedagógicos defendidos pela Pedagogia Histórico-Crítica.
De acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB (BRASIL, 1996),
configura-se incumbência da União: "[...] estabelecer, em colaboração com os estados,

1
Ivone Rodrigues dos Santos, Psicóloga/Pedagoga, Secretaria Municipal da Educação de Aparecida de
Goiânia, Goiás, Brasil. ivonesantospsico@hotmail.com
2
Aline Araújo Caixeta da Silva, Letras (Port/Fran)/Pedagoga, Secretaria Municipal da Educação de
Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil. aline1313@gmail.com
3
Cecília Honória dos Santos Pereira, Pedagoga/Artes Visuais, Secretaria Municipal da Educação de
Aparecida de Goiânia, Goiás, Brasil. ceciliahonoria@gmail.com


388

Distrito Federal e os municípios, competências e diretrizes para a Educação Infantil, o


Ensino Fundamental e o Ensino Médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos
mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum". Tendo isso em vista,
originaram-se as Diretrizes Gerais para a Educação Básica, sendo cada etapa de ensino
contemplada com Diretrizes Curriculares próprias: Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil (Resolução n.º 5, de 17 de dezembro de 2009) e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de 09 (nove) anos (Resolução n.º 7,
de 14 de dezembro de 2010).
Sabe-se que as Diretrizes Curriculares Nacionais são um conjunto de definições
sobre princípios, fundamentos e procedimentos na Educação Básica que tem como
objetivo orientar as escolas na organização, articulação, desenvolvimento e avaliação de
suas propostas pedagógicas. No entanto, por estarem vinculadas ao conjunto das
políticas sociais, as orientações legais no campo educacional apresentam-se interligadas
com as mudanças e transformações políticas, sociais, econômicas e culturais da
sociedade contemporânea, vinculando a educação ao desenvolvimento econômico do
país e delineando o processo educativo em consonância com o plano hegemônico e com
determinações materiais que sustentam os interesses do sistema capitalista.
Por este viés, nas discussões sobre a organização e estruturação dos meios
(conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) para o processo de ensino-aprendizagem,
tem repercutido, hegemonicamente, uma análise que privilegia o desenvolvimento do
trabalho pedagógico, a partir dos interesses da criança, com ênfase nos conhecimentos
tácitos, desarticulando a necessária relação entre teoria e prática e disseminando no
campo educacional uma desvalorização do conhecimento científico e teórico.
(DUARTE, 2010).
Não obstante, partindo do entendimento que as orientações e planejamentos
conduzidos pelo sistema educacional devem ser resultado de uma práxis intencional
com objetivos e ações premeditadas e que o delineamento de uma prática educativa,
para desenvolver-se e alcançar os objetivos de possibilitar que os educandos se tornem
agentes ativos no processo de desenvolvimento, necessita, fundamentalmente, ser
norteada por um referencial teórico, a Secretaria Municipal da Educação (SME) de
Aparecida de Goiânia percebeu a necessidade de re/discutir os documentos curriculares
que estavam direcionando o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas nas
unidades de ensino deste municipio, desde o ano de 2007, pois os objetivos e
intencionalidades apresentados nos fundamentos teóricos e metodológicos que


389

sustentavam a prática pedagógica nesses documentos, apresentavam ausência de


intencionalidade teórico-metodológica, configurando-se em documentos pragmáticos e
utilitaristas. (SAVIANI, 2013).
Para explicitar esse processo, apresentamos a seguir as etapas concluídas e as
projeções futuras, os obstáculos e as superações, bem como os pressupostos teóricos
que estão subsidiando a elaboração das Diretrizes Curriculares, documento significativo
para essa rede de ensino.

1 Processo de elaboração das Diretrizes Curriculares para a Rede Pública


Municipal de Educação de Aparecida de Goiânia-GO

O eixo central para a reescrita das Diretrizes Curriculares procurou atender a


uma ação primordial inserida no Plano de Ações Articuladas (PAR) vigência 2009-
2014, haja vista que o documento curricular em vigor datava do ano de 2007, não
havendo atualização até o presente ano. É oportuno relatar, que no referido ano, foi
elaborado as Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano), Ensino
Fundamental II (6º ao 9º ano) e uma Proposta Curricular para a Educação Infantil, com
sinalização que teriam vigências bienais.
O Currículo em vigor apontava para um ecletismo de referencial teórico, de
forma que a organizaçao administrativo-pedagógica da rede de ensino explicitava um
alinhamento com os princípios teóricos que fundamentam a política nacional de
educação. Contudo, algumas especificidades que envolve os processos de gestão dos
procedimentos para a estruturação, organização e acompanhamento dos processos de
ensino-aprendizagem, tanto no âmbito da secretaria de educação, quanto nas unidades
de ensino, precisavam ser ordenados e unificados, de forma a apontarem maior
compreensão sobre o papel da escola e dos elementos norteadores de um currículo.
Partindo desse contexto, no decorrer do ano de 2015, subsidiada por outra gestão
e por prioridades e compromissos assumidos por técnicos da SME, essa instituição
entendeu que re/discutir as Diretrizes Curriculares municipais para essa rede de ensino
oportunizaria repensar os projetos pedagógicos e buscar um alinhamento conceitual que
possibilitaria a promoção da equidade de aprendizagem, garantindo que conteúdos
básicos sejam ensinados para todos os alunos, considerando os diversos contextos nos
quais eles estão inseridos, o que promoveria uma melhoria crescente na qualidade
socialmente referenciada da educação desse município.


390

Para alcançar esse objetivo, a SME, por meio da Portaria nº 082/2015, instituiu
uma comissão para discutir e re/escrever o documento curricular, desmembrado em três
volumes: Educação Infantil (volume I), Ensino Fundamental I (volume II) e Ensino
Fundamental II (volume III). De acordo com o documento, “II – A referida Comissão
tem por finalidade articular, planejar e executar todo o processo de re/escrita das
Diretrizes Curriculares Municipais, garantindo, nesse processo, a participação de toda
Comunidade Escolar e Local”. (APARECIDA DE GOIÂNIA, 2015).
Nessa direção, a Comissão, formada por professores que compõem o quadro
técnico da Secretaria Municipal da Educação, desde março de 2015, reuniu-se
semanalmente, em sessões de estudos e discussões para elaborar essas Diretrizes.
Inicialmente, optou-se por revisitar leituras que esclarecessem sobre as diferentes
concepções pedagógicas e suas implicações no trabalho educativo. As reflexões e
discussões buscavam identificar a defesa e concepções apresentadas pelas diversas
perspectivas teóricas em relação aos seguintes aspectos: concepção de ser humano,
sociedade e educação; especificidade da educação escolar; concepção de ensino-
aprendizagem e/ou desenvolvimento humano; planejamento e avaliação do trabalho
educativo.
Concomitante a este trabalho, o grupo de profissionais que fazem parte dessa
comissão, fomentaram debates acerca dos aspectos concernentes a realidade da
educação neste município e seus anseios. O que se percebeu foi uma variação teórico
metodológica, consequência das “teorias do Aprender a Aprender”4 nas ações da SME,
das Unidades de Ensino e dos professores, gerando assim, um cenário de ecletismo
teórico, didático e metodológico, no qual se verificou influências do Construtivismo, da
Pedagogia do Professor Reflexivo, da Pedagogia das Competências, da Pedagogia dos
Projetos e da Pedagogia Multiculturalista.
A partir desse movimento, ficou perceptível que havia necessidade de
estabelecer uma concepção teórica para toda rede municipal de ensino, uma vez que a
definição de uma corrente pedagógica, demarca os pressupostos filosóficos,
psicológicos e pedagógicos, oportunizando, assim, a superação desse ecletismo teórico
em busca de avanços para a educação, com o objetivo de formar indivíduos atuantes e
com consciência crítica.


4
Nomenclatura que se refere ao ideário escolanovista, nomeada pelo estudioso Newton Duarte (2010).


391

Nesse sentido, após o primeiro semestre de estudos e pautado na realidade


supracitada, a pedagogia histórico-crítica constituiu-se como referencial teórico
norteador para a reescrita das Diretrizes Curriculares, considerando que é uma teoria
que se empenha em colocar a Educação a serviço da transformação das relações sociais,
valorizando os conhecimentos historicamente construídos.
A partir desses estudos, foram delineados os fundamentos teóricos do Currículo,
explicitando a concepção de sociedade, ser humano, trabalho, desenvolvimento
humano, educação, escola, ensino-aprendizagem e avaliação. Os textos das Diretrizes
não se apresentam concluídos, porém constituem-se o resultado do trabalho coletivo de
todos os membros da Comissão. As condições econômicas do município não
possibilitaram o acompanhamento de uma assessoria, por este viés, a dinâmica
encontrada para assegurar a coerência teórica foi, após a escrita individual de cada área
que compõe o currículo, voltar o texto para uma leitura e re/construção coletiva, com a
inferência de todos os membros participantes da Comissão.
Essa produção não está sendo fácil, visto a limitação teórica e conceitual dos
próprios membros da Comissão e ao intenso esforço intelectual que requer os estudos e
discussões dos pressupostos teóricos que subsidia a teoria Pedagogia Histórico-Crítica.
A esses fatores, soma-se as condições objetivas de trabalho e estudo, uma vez que este
movimento configura-se como mais uma das ações realizadas pelos profissionais, não
havendo, portanto, uma dedicação exclusiva. Todavia, ressaltamos que esta ação
apresenta-se como resultado de superação, tanto no que se refere aos limites pessoais
dos membros da Comissão, quanto como perspectivas para medidas emancipatórias da
educação em relação aos condicionantes políticos, econômicos e sociais.
O fato da elaboração do documento ser orientado pelos princípios da Pedagogia
Histórico-Crítica, denota, portanto, alguns aspectos centrais tais como: o currículo
organizado por áreas do conhecimento e a contextualização e problematização dos
conteúdos, inclusive no que se refere as diretrizes curriculares para a Educação Infantil.
Os três volumes que compõem as Diretrizes Curriculares municipais apresentam
uma parte em comum na qual é explicitado o referencial teórico do documento,
abordando os pressupostos gerais da Pedagogia Histórico-Crítica; os aspectos históricos
e legais das etapas e modalidades atendidas pela rede municipal de ensino; as
considerações sobre o desenvolvimento e a aprendizagem de pessoas com altas
habilidades/superdotação, com transtornos globais do desenvolvimento e com
deficiência nas áreas intelectual, visual, auditiva, física e múltiplas, apontando


392

orientações para o Atendimento Educacional Especializado; a concepção de Educação


Integral nas escolas de Tempo Integral e a concepção de Avaliação da rede de ensino.

2 Pressupostos teóricos da elaboração das Diretrizes Curriculares

Re/escrever as Diretrizes Curriculares para a rede municipal de ensino significou


discutir os fundamentos teóricos da Pedagogia Histórico-Crítica, que foram elaborados
a partir da definição de um método que tem por objetivo orientar todo o trabalho
realizado no contexto escolar.
No que se refere às bases epistemológicas da pedagogia histórico-crítica, a
contribuição marxiana5 para a constituição teórica dessa corrente é fundamental. Um
dos primeiros pressupostos teóricos que se pode destacar é a questão da dialética,
enfatizando, como pontuou Saviani (2013), que não se trata de uma dialética idealista,
mas uma dialética do movimento real, ou seja, trata-se de uma dialética histórica
expressa no materialismo histórico e dialético, o qual procura compreender e explicar o
todo desse processo, abrangendo desde as condições de existência do ser humano e a
forma como são produzidas as relações sociais até a inserção da Educação nesse
processo e, consequentemente, a Teoria Histórico-Cultural como teoria orientadora do
desenvolvimento, por procurar explicar o aprendizado humano a partir de sua natureza
social.
Saviani (2013) afirma que a educação é vista como mediação no interior da
prática social global, explicitando que o movimento do conhecimento é a passagem do
empírico ao concreto, pela mediação do abstrato, ou seja, a passagem da síncrese à
síntese, pela mediação da análise. Assim, a prática é o ponto de partida e o ponto de
chegada, por este viés, entende-se que as orientações e planejamentos conduzidos pelo
sistema educacional devem ser resultado de uma práxis intencional com objetivos e
ações premeditadas, pois se constituem como um meio que possibilita à rede de ensino
ultrapassar o domínio do pragmatismo e do operacionismo, da práxis utilitária imediata
e do senso comum que a ela está relacionado. Para Saviani (1996, p. 02):

Passar do senso comum à consciência filosófica significa passar de


uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita,


5
Os conceitos marxianos são inerentes aos pensamentos do próprio Marx, distintos, portanto, dos conceitos
marxistas, que se referem à tradição construída a partir de Marx pelos seus seguidores.


393

degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária,


coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada.

Pode-se afirmar que, nessa perspectiva pedagógica, a referência para a educação


contemporânea deve ser a formação dos seres humanos capazes de transformar a
realidade posta. Dessa forma, como afirma Duarte (2011), é colocado em primeiro
plano, na Pedagogia Histórico-Crítica, a socialização pela escola das formas mais
desenvolvidas do conhecimento até aqui produzido pela humanidade. Essa defesa se faz
necessária porque a educação é a forma cultural de transmitir as novas gerações os
conhecimentos elaborados historicamente pela humanidade. Segundo Saviani (2013, p.
13),

[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação
diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que
precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à
descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

Partindo desse direcionamento, as Diretrizes Curriculares da Rede Pública


Municipal de Ensino de Aparecida de Goiânia, encontram, também, na Teoria
Histórico-Cultural, os argumentos necessários para a compreensão da importância da
socialização dos conteúdos historicamente acumulados como condição para o
desenvolvimento humano. Visto que, para esta perspectiva teórica a apropriação dos
conteúdos científicos propicia o desenvolvimento das funções psicológicas superiores,
considerados mecanismos psicológicos complexos, próprios dos seres humanos, como a
atenção voluntária, a memória lógica, as ações conscientes, o comportamento
intencional e o pensamento abstrato, diferenciando, portanto, dos processos
psicológicos elementares como reflexos, associações simples e as reações
automatizadas. (VYGOTSKY, 2007).
De acordo com Eidt e Tuleski (2007, p.7), “[...] aprendizagem e o
desenvolvimento constituem uma unidade dialética, onde a aprendizagem
impulsionando o desenvolvimento, por sua vez gera novas aprendizagens mais
complexas, infinitamente”. Dessa forma, na perspectiva da teoria histórico-cultural, a
aprendizagem por meio da mediação dos instrumentos culturais, sejam eles simbólicos
ou concretos, com a ajuda de um adulto ou de colegas mais experientes, tem um papel


394

de destaque no processo de desenvolvimento da criança. Vygotsky (2007, p.103),


defende que o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento:

Aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado


adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe
em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra
forma, seriam impossíveis acontecer. Assim, o aprendizado é um
aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das
funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente
humanas.

Para Saviani (2013, p. 13) “[...] o trabalho educativo é o ato de produzir direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”. Busca-se com isso reafirmar o papel da
escola que, ainda de acordo com o autor, “[...] existe, pois, para propiciar a aquisição
dos instrumentos que possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o
próprio acesso aos rudimentos desse saber”. (SAVIANI, 2013, p. 14).
Considera-se, assim, que o trabalho educativo escolar não se trata de qualquer
ação. É imprescindível a intencionalidade e a organização adequada com fins
direcionados. Sobre a importância da intencionalidade no trabalho pedagógico, Saviani
(2013, p. 7) apresenta sua defesa: “[...] o homem não se faz homem naturalmente; ele
não nasce sabendo ser homem, [...] ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir.
Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que
implica trabalho educativo.
Para esse enfrentamento, a pedagogia histórico-crítica advoga a transmissão de
conteúdos historicamente produzidos e objetivamente interpretados como base para a
organização de um currículo escolar. Saviani (2012, p. 55) afirma que

[...] os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes,


conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela
transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa. Parece-
me, pois, fundamental que se estenda isso e que, no interior da escola,
nós atuemos segundo essa máxima: A prioridade de conteúdos é a
única forma de lutar contra a farsa do ensino.

Como já apontamos, as Diretrizes Curriculares Municipais estão elaboradas em


três volumes, atendendo as especificidades do trabalho educativo voltado para a
Educação Infantil e para o Ensino Fundamental dos anos iniciais e finais, apontando as
políticas e pressupostos para a educação das pessoas com deficiências, bem como as
orientações para a Educação Integral nas escolas de Tempo Integral. Relacionamos esta


395

atenção explícita com o educar, e com as especificidades do atendimento oferecido, com


a questão apresentada por Saviani (2012) ao situar a importância de uma ação educativa
intencional como condições básicas para a construção de um sistema educacional. De
acordo com o autor, a coerência em relação à situação de que faz parte, se exprime
precisamente pelo fato de operar intencionalmente sobre ela. Esclarece que,

Sistema é a unidade de vários elementos intencionalmente reunidos,


de modo a formar um conjunto coerente e operante. [...] Com efeito,
se o sistema nasce da tomada de consciência da problematicidade de
uma situação dada, ele surge como forma de superação dos problemas
que o engendraram. (SAVIANI, 2012, p. 72, grifos do autor).

Com essa compreensão, o objetivo da educação escolar, defendido pelo referido


documento curricular, é mediar a constituição dos indivíduos e a produção da cultura
universal humana, num processo educativo intencional e, portanto, direcionado,
pensando os problemas que permeiam os vários contextos numa perspectiva radical,
rigorosa e de conjunto. (SAVIANI, 2012).

Considerações finais

Após a explicitação das fases concluídas da elaboração das Diretrizes


Curriculares de Aparecida de Goiânia – GO, inferimos que ainda são muitos os
desafios, tanto no que se refere ao término da escrita deste documento, quanto para sua
real efetivação.
Em relação as ações projetivas para a conclusão desse Currículo, esclarecemos
que após a escrita de todas as áreas do conhecimento, uma das próximas etapas é enviar
o documento para a apreciação dos demais profissionais da educação. A fase seguinte
será pensada após as inferências desses profissionais, na qual a Comissão irá avaliar a
melhor forma de realizar a logística do movimento. Todavia, é oportuno ressaltar que
várias programações, logísticas e cronogramas já foram anteriormente elaborados, haja
vista a consciência que os membros da Comissão tem sobre a importância de um
trabalho educativo com intencionalidade e objetivos premeditados, contudo, inferimos
que as ações tiveram que ser revistas inúmeras vezes. O movimento está inserido em um
contexto que é histórico e social, submetido, portanto, a determinações políticas e
econômicas.


396

Após a conclusão da escrita do documento curricular, o desafio subsequente será


a efetivação desse Currículo na prática docente. Para tanto, apontamos como destaque a
necessidade do município realizar ações, englobando os aspectos físicos, materiais,
pedagógicos, humanos e, de forma especial, a capacitação continuada dos profissionais
da educação, objetivando preparar os professores a fim destes terem condições para
conjecturar metodologias e práticas pedagógicas que atendem ao aluno concreto que se
encontra na sala de aula, levando em conta sua realidade física, biológica, psicológica,
cultural e social, de forma que a sua atuação não se restrinja a legitimar políticas oficiais
que invadem a escola e, especificamente, a sala de aula, sem um comprometimento
efetivo da prática pedagógica.

Referências

APARECIDA DE GOIÂNIA. Secretaria Municipal da Educação. Portaria nº. 082/2015 de 21


de setembro de 2015. Institui a comissão de re/escrita diretrizes gerais de organização e
funcionamento da rede municipal de ensino – 2015. Aparecida de Goiânia: Secretaria Municipal
da Educação, 2015.

BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei n.º9.394/96, de dezembro de


1996.

DUARTE, N. O debate contemporâneo das teorias pedagógicas. In: MARTINS, L. M;


DUARTE, N. Formação de Professores: limites contemporâneos e alternativas necessárias.
São Paulo, Cultura Acadêmica, 2010, p. 33-49.

DUARTE, N. Fundamentos da pedagogia histórico crítica: a formação do ser humano na


sociedade comunista como referência para a educação contemporânea”. In: A. C. G.
MARSIGLIA (Org.), Pedagogia histórico-crítica: 30 anos, Campinas: Autores Associados,
2011 p. 7-21

EIDT, N. M.; TULESKI, S. C.O método da Psicologia Histórico-Cultural, e suas implicações


para se compreender a subjetividade humana. In: CIPSI-Congresso Internacional de Psicologia.
Maringá, 2007,Maringá. ANAIS: CIPSI-Congresso internacional de Psicologia. Maringá:
UEM, 2007.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum a consciência filosófica. Autores Associados,


Campinas – SP, 1996.

SAVIANI, D. Educação brasileira estrutura e sistema. 11ª ed. Campinas: Autores


Associados. 2012.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. rev. Campinas,


Autores Associados. 2013.

VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016


APROXIMAÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA À EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS

Érica Renata Vilela de Morais (IFES)1


Dilza Côco (IFES)2

Resumo: Esse artigo tem por objetivo apresentar análises sobre a produção de pesquisas que
aproximam a teoria formulada por Demerval Saviani, denominada de Pedagogia histórico-
crítica (PHC) à educação de jovens e adultos. Para isso privilegiamos como fonte de pesquisa a
base de dados da Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BNTD), por meio de
consulta eletrônica. Essa consulta, sistematizada no mês de junho 2016, combina descritores
como: formação de professor, Pedagogia histórico-crítica e Educação de Jovens e Adultos
(EJA). O período delimitado no levantamento compreende os anos de 2005 a 2016. As
pesquisas selecionadas e analisadas evidenciam que a temática da EJA tem sido abordada a
partir dos pressupostos da PHC, contudo, ainda apresenta números que podem ser considerados
de baixa ocorrência. Esse aspecto sinaliza que a PHC possui potencial para investimento em
pesquisas que investem em questões da EJA, especialmente no que diz respeito a prática
pedagógica.

Palavras-chave: Pedagogia histórico-crítica; educação de jovens e adultos; formação de


professores.

Introdução

O presente artigo faz parte de pesquisa em andamento, do Programa de Pós


Graduação em Ensino de Humanidades, do Curso de Mestrado Profissional do Instituo
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo - IFES, campus Vitória.
Esse estudo integra a linha de Formação de Professores e constitui um dos trabalhos do
Grupo de Pesquisa “Educação na Cidade e Humanidades” (GEPECH). É importante
situar que essa investigação se alinha, em termos metodológicos, aos estudos
qualitativos e compreende duas etapas de produção de dados. Inicialmente será
desenvolvido junto com professores um material educativo direcionado ao público da
Educação de Jovens e Adultos (EJA) que toma como referência espaços da cidade com


1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES), Campus Vitória, Brasil. E-mail:
ericarenata@ifes.edu.br
2
Dra em Educação e Professora do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES),Campus Vitória, Brasil. E-
mail:Dilzac@ifes.edu.br


398

potencial para explorar conhecimentos que sustentam práticas pedagógicas voltadas a


uma perspectiva de formação humana integral.
Essa proposta será construída com professores que atuam em uma unidade de
ensino pública, pertencente ao sistema municipal de Vitória/ES, que tem como público
alvo, exclusivamente, jovens e adultos. Essa unidade de ensino possui uma proposta
diferenciada do universo de escolas do município de Vitória, uma vez que sua estrutura
organizacional contempla uma sede administrativa e salas de aulas localizadas em
diferentes polos. Esses polos funcionam em vários bairros e espaços físicos da cidade,
como parques, igrejas, associação de catadores de material reciclável dentre outros.
Assim, o lócus selecionado para a primeira parte dessa pesquisa apresenta
características favoráveis para pensar a relação educação e cidade. A partir desse
planejamento construído e desenvolvido com professores e alunos dessa unidade de
ensino, o material educativo formulado a partir dessa experiência será compartilhado e
validado em um curso de formação de professores a ser realizado na modalidade de
curso de extensão, no Ifes/campus Vitória.
Esse delineamento da pesquisa sinaliza alguns temas de base como educação de
jovens e adultos e formação de professores. Esses eixos de discussão ancoram a
proposta desse artigo que visa apresentar resultados de levantamento bibliográfico de
trabalhos desenvolvidos na EJA e que tomam como referência teórica a Pedagogia
histórico-crítica. Esse levantamento justifica-se pela necessidade de compreensão das
contribuições dessa teoria ao campo da EJA, bem como conhecermos a utilização de
seus conceitos.
Consideramos fundamental abordar tal temática, pois historicamente a Educação
de Jovens e adultos tem sido objeto de ações e estratégias pontuais de vários governos.
Entendemos que cabe analisar com criticidade esse cenário, urge a necessidade de
serem traçados caminhos e estratégias para se pensar em uma nova estrutura - que possa
efetivamente superar essa trajetória marcada por desigualdades sociais, históricas e pela
descontinuidade das políticas educacionais.
No debate acadêmico, podemos encontrar várias pesquisas envolvendo a
temática da EJA. Essas pesquisas trazem conhecimentos e resultados, cujas
contribuições têm sido essenciais para compreender esse universo, os seus problemas e
entraves educacionais. São fontes importantes que podem apresentar elementos para um
reordenamento das políticas e programas na área, que vise à criação de política pública


399

de caráter permanente voltado para a modalidade, tanto de formação do educando,


quanto da formação inicial e continuada do educador.
Nesse sentido, privilegiaremos em nosso levantamento estudos que adotam a
Pedagogia histórico-crítica, elaborada por Saviani. Segundo esse autor, a partir do
conceito de produção, em sua acepção marxista, a educação é definida como um ato de
produzir intencionalmente e sistematicamente os conhecimentos elaborados
historicamente pela humanidade, portanto, ela é produtora do modo de produção e sua
finalidade deriva de como os homens produzem sua existência. (SAVIANI, 2008).
A luz dos termos da Pedagogia histórica-crítica busca-se a partir da prática
social concreta, compreender os mecanismos assumidos historicamente no contexto
educacional. Segundo Saviani (2008), a concepção da PHC busca interferir na realidade,
objetivando sua transformação. Nesse contexto, o presente artigo tem como questão
principal analisar quais as aproximações dessa proposta à educação de jovens e adultos
apresentadas nas pesquisas acadêmicas.
Para isso estruturamos esse artigo em três partes. Inicialmente nos aproximamos
teoricamente da PHC entendendo esses conhecimentos como suporte para a prática e
para ações transformadoras. Em seguida discutimos os procedimentos usados para a
realização das buscas das pesquisas acadêmicas, apresentam as investigações que
exploravam a temática de educação de jovens e adultos, apontando as aproximações da
PHC à EJA. Por fim, tecemos as nossas considerações finais.

2 Pedagogia histórico-crítica no campo de estudos da Educação de Jovens e


Adultos

Nota-se que vários pesquisadores do campo da educação têm apoiado seus


estudos em pressupostos da Pedagogia histórico-crítica. Essa constatação pode ser
comprovada em buscas simples nos bancos de dados de várias instituições de pesquisa
como a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a Universidade de São Paulo
(USP), a Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e tantas outras. Contudo,
reconhecemos que um levantamento amplo precisa abarcar uma base maior de dados.
Nesse sentido, recorremos ao acervo disponibilizado pelo site da Biblioteca Digital
Brasileira de Teses e Dissertações (BNTD), por meio de consulta eletrônica. Essa
consulta foi realizada no dia 14-06-2016, no período de 2005 a 2016, na qual fizemos
duas buscas, combinando os seguintes descritores: na primeira busca “Pedagogia


400

histórico-crítica” e “jovens adultos”, na segunda utilizamos os descritores “formação de


professor” e “Pedagogia histórico-crítica Saviani”.
A consulta sistematizada no site da BNTD possibilitou localizar pesquisas
acadêmicas desenvolvidas em diferentes instituições do Brasil. Destacamos que trata-se
de um levantamento inicial, que deverá ser aprofundamento no percurso de
desenvolvimento de nossa investigação, mas que apresenta um panorama de estudos
importantes para nossa revisão de literatura e aproximação com conceitos da PHC.
Tomando como referência a primeira combinação de descritores utilizados
“Pedagogia histórico-crítica” e “jovens adultos”, foram localizados 12 (doze) trabalhos
sendo; 03 (três) teses e 09 (nove) dissertações. Em análise constatamos que 07 (sete)
pesquisas não trabalham com pressupostos da pedagogia histórica crítica defendida por
Saviani. Dentre esses trabalhos identificamos 02 (duas) dissertações que trabalham com
uma perspectiva crítica que não se baseiam nos estudos empreendidos por Saviani.
Dos demais trabalhos indicados na busca, todos os 05 (cinco) estão abordando a
educação de jovens e adultos. Dentre esses 01 (uma) dissertação usa a Pedagogia
histórico-crítica em suas referências em dois momentos bem pontuais e 02 (dois)
trabalhos (dissertação e tese) tem como representatividade da perspectiva os estudos de
Paulo Freire. Por fim, elencamos 02 (duas) dissertações que tem como tema a educação
de jovens adultos e aproximações com a Pedagogia histórico-crítica.
A segunda busca orientada para a identificação de relações entre PHC e
formação de professores localizamos 20 (vinte) pesquisas, sendo 15 (quinze)
dissertações e 05 (cinco) teses. Após análise exploratória do conjunto de estudos
selecionamos apenas 01 (uma) tese na linha de formação de professor por indicar
aproximações mais específicas com a PHC. Assim, as duas formas de busca, sinalizam
que a PHC tem oferecido suporte teórico para discussões relacionadas à EJA.

2 Para início de uma conversa: considerações e aproximações da PHC à EJA

Centrada na problemática pedagógica e fundada no materialismo histórico-


dialético, elaborado por Marx, Saviani (2008, p. 142) propõe com a pedagogia
histórico-crítica tratar a problemática pedagógica, incluindo as questões didáticas, mas
em estreita relação com as questões sociais, políticas e econômicas.
Conforme os pressupostos da Pedagogia histórico-crítica, a educação deve ter
como objetivo a transformação da realidade. Nesse caso, é preciso entender que essa


401

realidade é fruto das relações sociais incorporadas por elementos historicamente


produzidos pela humanidade.
Saviani (2008, p. 143) argumenta que a educação como mediação no seio da
prática social deve cumprir o papel de possibilitar a apropriação dos conhecimentos
historicamente construídos, de modo que o domínio desses saberes culmine o
desenvolvimento e a transformação das relações sociais. É nesse sentido, por meio das
pesquisas encontradas que procuramos explorar as possíveis aproximações e
distanciamentos da pedagogia histórico-crítica à EJA. Como já dito, trata-se de
primeiras iniciativas de análise e interpretação do cenário de investigações que
contemplam a PHC como fundamento de base.

3 Pedagogia histórico-crítica e a pesquisa: diálogos possíveis

A partir dos descritores “pedagogia histórico-crítica” e “jovens adultos”,


analisaremos duas pesquisas com o objetivo de identificar aproximações da Pedagogia
histórico-crítica à educação de jovens e adultos. A tese de doutorado apresentada por
Gonçalves (2014) intitulada de “Alunos com deficiência na educação de jovens e
adultos em assentamentos paulistas: experiências do PRONERA”, da Universidade
Federal de São Carlos-UFSCar, mostra que a pesquisadora buscou analisar a situação
educacional da pessoa jovem e adulta com deficiência no campo, em dois
assentamentos paulistas, sob o enfoque da educação especial.
Pautada nos proposições da pedagogia histórico-crítica e em seus fundamentos, a
pesquisadora analisa o contexto e as interfaces da modalidade da educação de jovens
adultos para melhor compreender as dificuldades de educandos com deficiência em
processo de escolarização.
Gonçalves (2014) adota a história como essência do estudo. Baseia-se nos
fundamentos filosóficos e na perspectiva histórico cultural. Por meio da Pedagogia
histórico-crítica e de seus fundamentos a autora analisa a educação de jovens e adultos a
partir de fatores políticos, econômicos e sociais que produziram o analfabetismo. No
âmbito da educação de jovens e adultos, o estudo enfatiza a importância dos trabalhos
desenvolvidos por Paulo Freire para essa modalidade.
Com base nos pressupostos da PHC, a qual se encontra firmada no materialismo
histórico dialético, Gonçalves (2014) define o homem com um ser histórico concreto e


402

que nas relações sociais produz a sua existência. Assim, a perspectiva de educação é
compreendida dentro de uma característica histórica.
Gonçalves (2014) aponta para a complexidade em tornar garantido a oferta, o
acesso, a permanência e a apropriação do conhecimento para os educandos da educação
de jovens e adultos. Sabe-se que no caso da educação especial e da educação no campo
o cenário é ainda mais complicado. Conforme abordagem da PHC, na perspectiva de
uma prática educativa emancipadora, é por meio da educação e da apropriação do
conhecimento científico, histórico, artístico e filosófico em suas formas mais
desenvolvidas, que será possível participar e transformar essa realidade.
Com o objetivo de problematizar essa situação a autora buscou, nos pressupostos
da PHC, elementos para compreender e analisar criticamente o contexto das teorias
pedagógicas difundidas no contexto educacional brasileiro. Ao descrever os passos
propostos por Dermeval Saviani, apresenta-os como um método dialético que mantém
vinculação entre educação e sociedade.
Conforme dados obtidos nessa pesquisa, infelizmente, a criação de políticas de
inclusão dos alunos da EJA com deficiência não garante atendimento especializado da
educação especial para esses alunos. Quanto às condições complexas do trabalho
docente, evidencia a participação e o empenho das professoras em conduzir o
conhecimento científico de modo a trabalhar os conteúdos numa perspectiva crítica e
emancipatória, mas admite que além da formação para atuar na EJA faz-se necessário a
formação no âmbito da educação especial.
O estudo de Gonçalves (2014) apresenta como desafio a questão de um possível
esvaziamento no que se refere aos conteúdos formais na EJA. Em conformidade com a
autora e apoiada nos pressupostos da PHC, isso consequentemente, causaria o
rompimento com o processo de apropriação do conhecimento sistematizado
impossibilitando a instrumentalização, a catarse e o retorno a prática social conforme
apresentado por Saviani, inviabilizando a libertação das condições de exploração.
A julgar-se pela temática, outro trabalho relevante é a pesquisa de Menezes
(2011) defendida na Universidade Federal do Amazonas-UFAM, intitulada de “A
Práxis do Educador da Educação de Jovens e Adultos: Um estudo de caso na Escola
Estadual Pedro Teixeira”. Nessa dissertação o autor buscou analisar a práxis docente na
Educação de Jovens e Adultos, firmada na perspectiva histórico-crítica.
Menezes (2011) faz alguns apontamentos sobre a formação profissional e o fazer
pedagógico do educador da EJA, para isso toma como referência os estudos


403

empreendidos por Saviani compreendendo que a formação de professores deve emergir


da reflexão crítica de aspectos históricos culturais, políticos econômicos. Essa postura
supõe conceber o homem como produtor da sua história e nessa relação vai se
constituindo como sujeitos. Nesse sentido, tomar como parte do processo de formação
as experiências dos professores, pode apontar para um caminho de superação do fazer
engessado e que não considera a realidade e a história de vida desses educadores.
Mediante a constatação do não atendimento da demanda de formação continuada
para os docentes da EJA, o autor faz referência aos estudos empreendidos por Saviani,
no qual afirma que o problema de formação no Brasil está relacionado a aspectos
históricos e teóricos. As aproximações com estudiosos como Paulo Freire, Miguel
Arroyo, Moacir Gadotti e Gaudêncio Frigotto, apontadas pelo autor, somam
conhecimentos que nos ajuda a refletir criticamente sobre a educação de jovens e
adultos e, conscientemente, sobre a práxis do educador enquanto aquele que ensina, mas
que aprende e precisa aprender.
Tecendo algumas considerações, cabe destacar que, embora tenhamos ampliado
o período de anos para a busca, isso não teve representatividade em termos de pesquisas
envolvendo a PHC e a EJA. Observa-se que as pesquisas analisadas estão próximas dos
anos finais determinado na busca. Além, disso nota-se uma polaridade na divulgação e
apropriação da proposta da PHC por diferentes instituições de educação.
Em busca realizada com o grupo de descritor “pedagogia histórico-crítica
Saviani” e “formação de professor”, elencamos a tese de Tonus (2009), intitulada de
“Psicologia e educação: aproximação e apropriação”, da Universidade Estadual
Paulista. A pesquisa teve como objetivo compreender que relação é atribuída por
professores entre as teorias psicológicas e a prática educativa. Também buscou
compreender as considerações que os professores podem fazer em relação a estes
conteúdos, quais são as representações construídas em torno da psicologia da educação
durante a formação e a atuação profissional.
Ressaltamos que essa pesquisa não teve como foco a educação de jovens de
adultos, mas a formação de professor. Tonus (2009), seguindo a didática apresentada
pela pedagogia histórico-crítica desenvolveu uma proposta de plano de ensino,
abordando alguns dos temas relevantes da psicologia da educação, para ser realizado em
cursos de formação de professores.
Embora Tonus (2009) se fundamente em vários momentos nos pressupostos da
Pedagogia histórico-crítica apresentados por Saviani (2008), para desenvolver a


404

proposta de intervenção com os professores, a autora buscou seguir a didática


desenvolvida na obra “Uma didática para a pedagogia histórico-crítica” do autor João
Luiz Gasparin. Tonus (2009) apresenta o seu trabalho como tentativa de superação das
dificuldades apontadas por Gasparin (2005) e enfatiza alguns apontamentos realizados
pelo autor, no sentido de que são poucos os que buscam a aproximação da pedagogia
histórico-crítica com a prática escolar. Por fim, deixa evidente que a proposta da
didática a ser desenvolvida se apoia na pedagogia histórico-crítica.
Buscando as aproximações no âmbito da formação de professor, o estudo
realizado por Tonus (2009) coloca em foco o indivíduo concreto, como síntese das
múltiplas relações. A autora defende que psicologia enquanto ciência deve servir de
fundamentação da pedagogia enquanto sistematização da prática – que compreende o
homem concreto, não isolados das suas emoções, dos anseios e das suas vivências. Por
fim, aponta que o processo de formação de educador precisa compreender e partir da
prática social concreta conforme proposto por Saviani.
Nesse sentido, destacamos como aproximação da nossa pesquisa o embasamento
e apropriação dos pressupostos da PHC. No entanto, apontamos como distanciamento o
não reconhecimento dos passos proposto por Saviani, como sendo um momento
pedagógico dialético. Ao propor no final de um planejamento/atividade a construção de
um relatório que se oriente nas perguntas elaboradas pelo autor Gasparin, penso que se
tratando de uma perspectiva dialética, em algum momento as perguntas e respostas não
darão conta de atender e entender a prática social concreta, uma vez que nos
pressupostos da Pedagogia histórico-crítica essa é o ponto de partida e de chegada na
prática educativa.

Considerações finais

Como dito anteriormente esse artigo buscou analisar aproximações da Pedagogia


histórico-crítica com a investigação no campo da educação de jovens. De modo geral,
os trabalhos que se apoiam nos pressupostos da pedagogia crítica empreendida por
Saviani, fazem uma análise crítica ao caráter da escola. Mostram que enquanto sistema
de ensino e aparelho ideológico do estado, ela articula como objetivo comum de realizar
inculcação ideológica e de atuar como reprodutora das relações sociais.
Nesse sentido, as pesquisas apresentam como ponto comum o esforço para
superação da dominação dos sistemas de ensino pelos interesses da classe dominante.


405

Por esse caminho, pesquisadores têm apropriado os pressupostos da Pedagogia


histórico-crítica com o objetivo de fazer uma reflexão crítica sobre a educação,
procurando compreendê-la no âmbito das relações políticas/ideológica, econômicas e
históricas. A fundamentação apresentada nas pesquisas articulam-se ao conceito de
práxis. Contudo, à luz dessa teoria, poucos trabalhos tem procurado desenvolver
intervenções de ensino envolvendo o conteúdo, o conhecimento e a ação do professor.
Por outro lado, os estudos encontrados envolvendo a pedagogia histórico-crítica
e a temática da EJA, guarda um potencial por oferecer possibilidades conceituais dessa
teoria para a compreensão de fenômenos educativos da EJA, mas também indica
desafios a serem enfrentados em novos estudos no sentido de investir com mais
propriedade os pressupostos teóricos, buscando formas de articulação com a prática
pedagógica, especificamente, na modalidade EJA.
Compreendendo que as relações sociais são modificadas historicamente, mas
não totalmente, pois carregam em si marcas, contradições e aspectos de um contexto
desenvolvido historicamente pela humanidade, temos como desafio pensar uma
proposta de intervenção de ensino, fundamentada teoricamente nos pressupostos da
Pedagogia histórico-crítico e na concepção do materialismo dialético, mais
especificamente, nos cinco momentos que correspondem o movimento enquanto
processo pedagógico, que se dá o processo do conhecimento.

Referências

Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações-BDTD. Disponível em:


http://bdtd.ibict.br. Acesso em: 14-06-2016.

GONÇALVES, Taisa Grasiela Gomes Liduenha (2014). Alunos com deficiência na educação
de jovens e adultos em assentamentos em assentamentos paulistas: experiências do
PRONERA. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de São Carlos – São Carlos: UFSCar,
2014. 199 f.

MENEZES, Eloy Lima, A Práxis do Educador da Educação de Jovens e Adultos: Um


estudo de caso na Escola Estadual Pedro Teixeira. Dissertação (Mestrado em Educação) –
Universidade Federal do Amazonas – Manaus: UFAM, 2011. 137 f; s/ Il.

TONUS, Karla Paulino (2009). Psicologia e educação: aproximação e apropriação. Tese


(Doutorado em Educação Escolar) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e
Letras - Campus de Araraquara – Araraquara: 2009 184 f. ; 30 cm.

SAVIANI, Demerval. Pedagogia histórica crítica: primeiras aproximações. Campinas, São


Paulo: Autores Associados, 2008.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA COMO FUNDAMENTO DA


CONSTRUÇÃO CURRICULAR DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA
INTEGRADA AO ENSINO MÉDIO

Rosane de Abreu Farias (FAETEC/RJ)1

Resumo: O presente estudo configurou-se na retomada teórica de conceitos importantes da


Pedagogia Histórico-Crítica como fundamento para a elaboração curricular que se proponha a
integrar educação profissional técnica de nível médio ao ensino médio. Portanto, foram
utilizados autores que trabalham com ambas as temáticas buscando sua interseção enquanto
fundamentos teóricos: Saviani (2013) na perspectiva dos príncipios filosóficos e
epistemológicos para a referida integração; e Ramos (2014) no embasamento para a construção
curricular coletiva, que efetivamente seja realizada tendo o trabalho como Princípio educativo
em sua dimensão histórica e ontológica.

Palavras-chave: Currículo Integrado; Educação Profissional; Ensino Médio Integrado

Introdução

A proposta de um currículo integrado configura na atualidade uma diversidade


de ideias advindas das muitas perspectivas de crítica à rigidez escolar materializada no
currículo humanista clássico.
O conceito de currículo apresenta tradicionalmente a definição de um
documento prescritivo daquilo que deve ser realizado pela escola enquanto processo de
ensino-aprendizagem. Desta forma, materializa-se como seleção arbitrária de
determinados conhecimentos em detrimento de outros. "O currículo é sempre resultado
de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se
aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo". (SILVA, 1999, p. 15).
O currículo enquanto campo de estudos, pesquisas e análises, ou seja de
teorização, foi constituído no momento de universalização da escolarização. Ainda que
seja reconhecida como um direito para todos, a educação não precisa ser a mesma para
todos. Nesta perspectiva, críticas ao currículo humanista clássico surgem, assim como
propostas alternativas ao mesmo.


1
Rosane de Abreu Farias, Mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – UERJ, Supervisora
Educacional da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
Email: ro.afarias@gmail.com


407

Inaugurou-se, assim, a preocupação formal com a educação que a classe


trabalhadora deveria receber; surgiram as questões: qual seria mais adequada? Qual
promoveria desenvolvimento econômico e individual? Qual valorizaria seus interesses?
De que forma deveria ser realizada? E essas são questões presentes sempre que se pensa
em currículo, e nas palavras de Silva, "as teorias do currículo estão ativamente
envolvidas na atividade de garantir o consenso, de obter hegemonia." (SILVA, 1999, p.
16)
Nesse texto pretende realizar uma retomada da construção conceitual de uma
Pedagogia Histórico-Crítica como possibilidade de materialização de uma proposta de
currículo para a Educação Profissional Técnica Integrada ao Ensino Médio.

1 De que possibilidade de currículo integrado estamos falando?

A percepção sócio-histórica da sociedade brasileira, marcada pelas


desigualdades sociais resultados de seus longos anos de economia escravocrata, a
associação da burguesia nacional, de forma subordinada, a burguesia internacional e o
desenvolvimento econômico seguindo padrões de "modernização do arcaico"
demonstram o desafio em que se constitui a construção de uma concepção de educação
comprometida com as necessidades da classe trabalhadora. Dessa forma, a integração da
educação profissional técnica de nível médio ao ensino médio insere-se nessa
perspectiva de materialização do princípio ético-político com esta classe. A discussão
que se segue é pertinente enquanto sinalizadora da possibilidade de construção de uma
proposta político-pedagógica que supere dialeticamente as necessidades da realidade
brasileira, à medida que a formação profissional no ensino médio deixe de ser uma
imposição dessa realidade concreta de uma sociedade marcada pela desigualdade.
(FERNDANDES, 2009; OLIVEIRA, 2013).
Assim, a proposta seria compreendê-la como uma nova concepção de educação
para a classe trabalhadora, na qual a formação humana integral constituir-se-ia no
princípio filosófico de formação omnilateral tendo o trabalho como principio educativo
em seu duplo sentido: ontológico e histórico; a indissociabilidade entre educação
profissional e ensino médio materializa o princípio ético-político da formação por
reconhecer a necessidade da classe trabalhadora prover suas necessidades; a
indissociabilidade entre conhecimentos gerais e específicos; entre conhecimentos
científicos, culturais e ético-políticos, constituir-se-ia no princípio epistemológico de


408

seleção do conhecimento; e por fim o princípio pedagógico que se materializa na


organização curricular e na transmissão desses conhecimentos.
A partir desses princípios sistematizados por Ramos (2014), a autora sintetiza
que o princípio filosófico é orientado pela "filosofia da práxis" como concepção de
mundo, concretizada na forma de se interrogar e conhecer a realidade, a qual se revela,
epistemologicamente, no método materialista histórico-dialético. Ela argumenta, então,
que o sentido pedagógico encontra sua referência na "pedagogia histórico-crítica", cujo
principal representante é Dermeval Saviani. Este a partir da categoria “modo de
produção", tem como pressuposto que "as mudanças das formas de produção da
existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais,
por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção
correspondente.” (SAVIANI, 2013, p. 2).
Saviani (2013) destaca que a pedagogia histórico-crítica surge na década de
1980 como uma necessidade dos educadores brasileiros de superarem tanto os limites
das pedagogias não-críticas como das teorias crítico-reprodutivistas, conseguindo
razoável difusão enquanto proposta pedagógica nesta década. Porém, na década de
1990, com o advento do neoliberalismo e suas reformas estruturais em diversas áreas,
entre elas a educacional, esta proposta foi tomada como forma de resistência. O não
cumprimento das promessas educacionais expressas por esta fase, provomeu uma
retormada das perspectivas críticas e da pedagogia histórico-crítica como proposta.
Partindo da categoria marxista de trabalho enquanto processo de produção da
existência humana realizado por meio de uma ação intencional de transformação da
natureza, e processo por meio do qual, além de produzir sua subsistência o homem
produz conhecimento sobre a natureza e em relação com outros homens, Saviani afirma
que "a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos [e isto] significa afirmar
que ela é, ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como
é, ela própria, um processo de trabalho". (SAVIANI, 2013, p.11).
Dessa forma, a categoria modo de produção expressa três facetas de um mesmo
processo: a primeira produção é a de bens materiais necessários à subsistência humana,
a segunda produção é a de conhecimentos sobre a natureza que é construída visando o
aperfeiçoamento constante da primeira faceta, e a terceira produção são as de valores
para a convivência social com outros homens que realizam o mesmo processo e sua
representação simbólica. Deste processo, resultam assim duas formas de trabalho: o


409

material que é explícito pelo bem palpável, materializado; e o não-material que é


expresso pelo saber construído no e pelo processo, ou seja, a ciência e a cultura.
Nessa perspectiva, a educação pode ser considerada um trabalho não material
uma vez que ela materializa o ato de transmissão de um conhecimento, seja ele
científico ou cultural, em uma forma de relação social determinada marcada pela não
separação do produto do trabalho de seu ato de produção. Ou seja, o produto não se
separa do produtor no momento de seu consumo, no ato de educar a transmissão do
conhecimento é produzida e ao mesmo tempo consumida em uma relação social
(produzida por quem ensina e consumida por quem aprende). Para Saviani (2013) essa é
a definição da natureza da educação.
A partir desta natureza, a educação tem seu ponto de especificidade na seleção e
validação do produto (conhecimento) que deve ser transmitido. Saviani (2013) destaca
que do trabalho não-material produzido (da ciência e da cultura), a especificidade da
educação é a preocupação com a seleção do que é necessário ao homem assimilar a fim
de produzir sua existência naturalizando tais elementos como uma segunda natureza, ou
seja, selecionar o conhecimento que é imprescindível ao homem para produzir-se
homem. Ele exemplifica com o ato de ler e escrever: o código escrito em si é uma
produção humana exterior ao ser, porém é necessário às relações humanas ao ponto de
ser inconcebível, ou desumano, não propiciar seu aprendizado. Assim, "[...] o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto de homens".
(SAVIANI, 2013, p. 13)
Resume-se a natureza da educação em um trabalho não-material cujo ato de
produção não dissocia-se do ato de consumo, e sua especificidade em seleção daquilo
que é produzido coletivamente e de necessária transmição às gerações futuras. Dessa
forma, o objeto da pedagogia entendida como ciência da educação configura-se da
seguinte maneira:

[...] de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam


ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se
tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta
das formas mais adequadas para atingir esse objetivo. (SAVIANI,
2013, p. 13).

Destacando que a educação não se restringe ao ato ensinar, porém que ensinar é
uma particularidade da natureza própria do fenômeno educativo, e que o mesmo ao ser


410

institucionalizado pela escola reflete uma identidade própria, Saviani (2013, p. 13)
destaca que "[...] a escola configura uma situação privilegiada, a partir da qual se pode
detectar a dimensão pedagógica que subsiste no interior da prática social global". Pode-
se perceber, assim, a constituição do campo de estudo do currículo: a seleção de
conhecimentos e suas formas de transmissão.
Assim, Saviani (2013) defende que a escola é a instituição social cuja tarefa
principal é a transmissão do saber elaborado bem como de seus fundamentos, ou seja,
do conhecimento sistematizado. Sua crítica às novas formas de currículo centrado no
interesse dos alunos, na resolução de problemas por eles escolhidos ou em aspectos da
prática social dissociados de seus fundamentos, tendem a descaracterizar o trabalho
escolar, a ampliar-se de tal maneira o conceito de currículo que se deixa de lado a tarefa
principal da escola, definida por ele como a atividade nuclear da escola, razão de sua
existência.

Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a


existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na
experiência de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência
escolar, o que, inclusive, chegou a cristalizar-se em ditos populares
como "mais vale a prática do que a gramática" e "as crianças
aprendem apesar da escola". É a exigência de apropriação do
conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que torna
necessária a existência escolar. (SAVIANI, 2013, p. 14).

Apesar de parecer saudosismo à pedagogia tradicional, Saviani (2013)


argumenta que não é disso que se trata. Ressalta que a crítica realizada ao mecanicismo
e ao esvaziamento de sentido na transmissão de conhecimentos realizada pela respectiva
pedagogia foi justa e necessária, porém a negação da transmissão de conhecimento
sistematizado em prol da criatividade e da liberdade de escolha dos alunos também nega
o que é essencial da natureza escolar. Ou, em suas palavras: "[...] clássico na escola é a
transmissão-assimilação do saber sistematizado". (SAVIANI, 2013, p. 17)
Dessa forma, o autor sinaliza que essa finalidade da escola determina a
metodologia e organiza os processos de ensino-aprendizagem que serão adotados.
Assim resgata o princípio gramsciano de escola unitária pelo qual, na organização da
escola, associada à maturidade psicológica do educando, haveria um primeiro momento
de formação que, com base dogmática e disciplinadora, visaria construir os
fundamentos científicos e culturais, assim como desenvolver o método e a disciplina
para os estudos; este seria propiciador do segundo momento de formação, o


411

desenvolvimento ativo e criativo com bases autônomas de estudo, seja acadêmico ou


profissional. (GRAMSCI, 1968).
Com base nessa ideia, Saviani (2013, p. 17) defende que "[...] é preciso entender
que o automatismo é condição da liberdade e que não é possível ser criativo sem
dominar determinados mecanismos". E completa:

[…] a liberdade só se dá porque tais aspectos [os mecanismos próprios


do conhecimento] foram apropriados, dominados e internalizados,
passando, em consequência, a operar no interior de nossa própria
estrutura orgânica. Poder-se-ia dizer que o que ocorre, nesse caso, é
uma superação no sentido dialético da palavra. Os aspectos mecânicos
foram negados por incorporação e não por exclusão. Foram superados
porque negados enquanto externos e afirmados como elementos
internos. (SAVIANI, 2013, p. 18).

O que Saviani (2013) sintetiza em suas colocações é que a principal preocupação


da pedagogia se constitui exatamente na forma como o saber sistematizado será
transmitido às novas gerações permitindo-lhes adquirir o método propiciador da
produção de novos saberes. Para demonstrar seu ponto de vista, o autor compara a
questão do conhecimento para o cientista e para o professor: para o primeiro, ele afirma
que descobrir novos conhecimentos é seu objetivo principal em sua área de atuação;
enquanto que para o segundo, o crescimento intelectual de seus alunos é seu objetivo
principal, sendo o conhecimento um instrumento para esse crescimento, ou seja, a
principal questão da pedagogia é transformar em saber escolar o saber elaborado
(ciência ou cultura) socialmente, sua preocupação diz respeito ao:

[...] o processo por meio do qual se selecionam, do conjunto do saber


sistematizado, os elementos relevantes para o crescimento intelectual
dos alunos e organizam-se esses elementos numa forma, numa
sequência tal que possibilite sua assimilação. (SAVIANI, 2013, p. 65).

Dessa forma, distinguindo produção de saber de elaboração de saber, o referido


autor destaca que a importância da escola está em fornecer o acesso e domínio dos
instrumentos de sistematização e elaboração do saber, permitindo assim a socialização
do saber elaborado, uma vez que este é uma força produtiva (e atualmente um meio de
produção) que quando restrita a um grupo enquanto propriedade privada, impede que os
trabalhadores que contribuem para a produção desse saber por meio de sua atividade
prática real possam ascender ao nível de sua elaboração. O acesso a esses instrumentos
permitiria também aos trabalhadores o desenvolvimento de sua consciência crítica.


412

Em relação ao saber elaborado, o autor faz duas distinções importantes: primeiro


que o saber é socialmente produzido, o que implica afirmar que o saber está em
constante processo de elaboração, logo ele não é um conhecimento acabado e
simplesmente transmitido, mas pressupõe-se que o que já foi elaborado precisa ser
transmitido a fim de que a partir dele se possa realizar transformações e superações.
Segundo, que a dicotomia saber popular e saber erudito pressupõe uma polarização de
saberes que deve ser superada, uma vez que associar a primeira à libertação e a segunda
à dominação desconsidera que ambas são produções sociais históricas e que é o acesso a
esta produção histórica da humanidade que de fato promove a libertação e põe fim à
distinção. Assim o autor defende,

[…] a cultura popular, do ponto de vista escolar, é de maior


importância enquanto ponto de partida. Não é porém, a cultura
popular que vai definir o ponto de chegada do trabalho pedagógico
nas escolas. (...) O povo precisa da escola para ter acesso ao saber
erudito, ao saber sistematizado e, em consequência, para expressar de
forma elaborada os conteúdos da cultura popular que correspondem
aos seus interesses. (SAVIANI, 2013, p. 69-70).

Ao desconsiderar-se essa função da escola em fornecer o acesso ao saber


elaborado, defendendo-se que a cultura popular é que deve ser transmitida na escola,
transmite-se aos trabalhadores aquilo que ele já possui, e assim, ao negar-lhe o acesso à
cultura erudita, dominada pela classe dominante, nega-lhe a possibilidade de também
dominar tal cultura de modo que deixe de ser um elemento de distinção de classes.
Explicitadas as considerações de Saviani (2013, p. 91) sobre a natureza e
especificidade da educação, sobre a tarefa principal da educação escolar e sobre a
preocupação central da pedagogia, e considerando que a pedagogia trata das formas, dos
processos e dos métodos, seu desafio constitui-se exatamente na articulação da
dimensão teórica com a prática no sentido de torná-las indissociáveis. Neste sentido,
Saviani afirma que "[...] a pedagogia histórico-crítica [...] considera que a teoria tem seu
fundamento, o seu critério de verdade e a sua finalidade na prática". E destaca que, se
no âmbito da materialidade da teoria há entraves que prejudicam seu avanço, ao mesmo
tempo possibilita-se a compreensão desses e o desenvolvimento de mecanismos de
transformação dos mesmos.
De forma geral, o referido autor enuncia três desafios à materialidade da ação
pedagógica brasileira: a ausência de um sistema de educação nacional, a contradição
entre as formulações teóricas críticas e a estrutura organizacional da educação já


413

existente, e por último, e talvez mais grave, a descontinuidade das políticas


educacionais. Dado que o primeiro e o último desafio localizam-se com maior
preponderância no âmbito das políticas públicas para a educação, localizaremos maior
enfoque no segundo desafio por este apresentar maior centralidade nas atividades
cotidianas da escola e do currículo.
Nesta perspectiva, Saviani (2013, p. 99) destaca que enfrentamos "[...] o
problema relativo ao descompasso entre o teor da proposta, em sua formulação teórica,
e o modo como se concebe e se executa o processo de implantação", ou seja, ainda que
teoricamente a proposta seja crítica aos determinantes sociais, o processo de
implantação coloca aos docentes a necessidade e o desafio de pensar em novas formas
de organização de seu trabalho, de sua ação pedagógica, a fim de promover a
mobilização e desenvolvimento de mecanismos de resistência aos mesmos. Para tal,
"[...] a forma de implantação envolve a problemática organizacional que, por sua vez,
tem a ver com a questão da ligação entre teoria e prática que nós, educadores,
teimosamente tendemos a compreender como polos separados".
Ao separar-se teoria e prática, há a tendência a valorização de um ou outro na
forma como a ação pedagógica será organizada. Assim, se por um lado se critica a
pedagogia tradicional por se centrar na teoria, por outro, as tendências progressistas
centraram-se na valorização da prática, da experiência. Saviani (2013) exemplifica com
a organização da sala de aula, como a concepção de educação materializa-se: em uma
sala de aula tradicional, cuja centralidade está na figura do professor e o objetivo é a
transmissão do conhecimento, a organização se dá em carteiras enfileiradas tendo o
quadro negro e a mesa do professor à frente e nenhum estímulo visual que não seja
aquele exposto no quadro, de modo que toda atenção dos alunos deve estar nesta
exposição; em uma sala de aula progressista, cuja centralidade está na figura do aluno,
em seus interesses e nas experiências que podem levá-lo a construir seus
conhecimentos, a organização das carteiras se dá de acordo com o tipo de experiência
que será desenvolvida, há exposição de assuntos e trabalhos dos alunos pelas paredes, e
interação constante entre os alunos.
O autor, então, adverte:

[…] quando se quer mudar o ensino, guiando-se por uma outra teoria,
não basta formular o projeto pedagógico e difundi-lo para o corpo
docente, os alunos e, mesmo, para toda comunidade escolar,
esperando que eles passem a se orientar por essa nova proposta. É


414

preciso levar em conta a prática das escolas que, organizadas de


acordo com a teoria anterior, operam como um determinante da
própria consciência dos agentes, opondo, portanto, uma resistência
material à tentativa de transformação alimentada por uma nova teoria.
(SAVIANI, 2013, p.102).

Dessa forma, percebe-se que o Documento Base para integração da Educação


Profissional ao Ensino Médio (BRASIL, 2007) constitui-se em uma formulação que
considera os aspectos filosóficos, por meio da colocação do horizonte utópico da
politecnia, ao mesmo tempo que reconhece as mediações sócio-históricas da sociedade
brasileira, seus reflexos na organização escolar e seus limites, colocando-se assim como
uma "travessia", uma possibilidade de mobilização da ação pedagógica na perspectiva
da transformação social.
Reconhece-se, portanto, que,

[…] a educação é, sim, determinada pela sociedade, mas que essa


determinação é relativa e na forma da ação recíproca - o que significa
que o determinado também reage sobre o determinante.
Consequentemente, a educação também interfere sobre a sociedade,
podendo contribuir para a sua própria transformação. (SAVIANI,
2013, p. 80).

É nessa perspectiva que Ramos (2014) contribui para uma sistematização do


processo de elaboração curricular integrada, partindo do trabalho enquanto princípio
educativo, que concebe o desenvolvimento do conhecimento a partir das relações que o
homem estabelece com a natureza (no sentido de adaptá-la a si) e com os outros
homens; da filosofia da práxis enquanto princípio filosófico e epistemológico, que
concebe

[…] o real como um todo estruturado (e que, portanto, não é caótico),


que se desenvolve (por não ser imutável nem dado uma vez por todas)
e que se cria permanentemente (e, por isso, não é um todo perfeito e
acabado no seu conjunto e não é mutável apenas em suas partes
isoladas). (RAMOS, 2014, p. 211).

O processo de elaboração de um currículo integrado constituir-se-ia como um


trabalho coletivo de acordo com o seguinte movimento:

[…] problematizar fenômenos - fatos e situações significativas e


relevantes para compreendermos o mundo em que vivemos, bem
como processos tecnológicos da área profissional para a qual se
pretende formar -, como objetos de conhecimento, buscando
compreendê-los em múltiplas perspectivas (tecnológica, econômica,


415

histórica, ambiental, social, cultural, etc.); explicitar teorias e


conceitos fundamentais para a compreensão do(s) objeto(s)
estudado(s) nas múltiplas perspectivas em que foram problematizadas
e localizá-los nos respectivos campos da ciência (áreas do
conhecimento, disciplinas científicas e/ou profissionais), identificando
suas relações com outros conceitos do mesmo campo
(disciplinariedade) e de campos distintos do saber
(interdisciplinariedade); situar os conceitos como conhecimentos de
formação geral e específica, tendo como referência a base científica
dos conceitos e sua apropriação tecnológica, social e cultural; a partir
dessa localização e das múltiplas relações, organizar os componentes
curriculares e as práticas pedagógicas, visando corresponder, nas
escolhas, nas relações e nas realizações, ao pressuposto da totalidade
do real como síntese de múltiplas determinações. (RAMOS, 2014, p.
214, grifos nossos).

Dessa forma, para a autora a proposta é que o currículo se organize a partir de


situações de aprendizagem definidas pela equipe pedagógica; tais situações seriam
resultado da problematização do processo de produção em múltiplas perspectivas e a
partir destas perspectivas seriam selecionados os conceitos e conhecimentos necessários
para a compreensão desses processos: aqueles que são fundamentais de cada área do
conhecimento e aqueles que transitam por diversas áreas de conhecimento,
estabelecendo-se assim tanto a prática disciplinar específica quanto a interdisciplinar,
tanto a formação geral quanto a específica.
Ela considera também que a definição de tempos e espaços escolares não
poderia ser realizada de forma rígida, pois haveria a necessidade de se defini-los na
forma que melhor atendesse ao desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem
dos conceitos e conhecimentos, da mesma forma como aconteceria com o processo de
avaliação. Este, tomado em sentido formativo, seria centrado na percepção daquilo que
já foi assimilado e do que ainda necessita-se assimilar. Em suas palavras, "prioridades
podem ser conferidas aos respectivos tempos e atividades, sem que, entretanto, isso
signifique hierarquizar disciplinas e conteúdos sob o julgamento de seu valor para a
formação". (RAMOS, 2014, p. 216).
Percebe-se assim, o desafio a ser materializado pelas redes escolares que
decidam integrar a educação profissional ao ensino médio: como construir um currículo
de fato integrado com lógicas de organização e funcionamento tão diversos? Como
integrar teoria e prática a partir das lógicas disciplinares e fragmentadas existentes hoje
no interior da escola? Como tornar a construir uma formação integral que conjugue a
perspectiva de ser um ensino propedêutico ao ensino superior e ao mesmo tempo
permita o exercício do trabalho ao seu fim? Essas são questões que desafiam a escola,


416

enquanto instituição viva e dinâmica, porque constituída de sujeitos sociais em


constante prática, a buscar soluções na própria materialidade do real.
Corroborando com Saviani (2013), essas questões retornam aos outros dois
desafios destacados pelo autor: para a política pública de formação para a classe
trabalhadora efetivar-se, materializada pela possibilidade de integração entre educação
profissional e educação básica, tornar-se-ia necessário que realmente fosse assumida
como uma prioridade governamental. Por outro lado, o próprio autor destaca que a
partir da constituição estrutural da sociedade brasileira, esta não é uma opção:

Com efeito, socializar os meios de produção significa instaurar uma


sociedade socialista, com a consequente superação da divisão em
classes. Ora, considerando-se que o saber, que é objeto específico do
trabalho escolar, é um meio de produção, ele também é atravessado
por essa contradição. Consequentemente, a expansão da oferta de
escolas consistentes que atendam a toda a população significa que o
saber deixa de ser propriedade privada para ser socializado. Tal
fenômeno entra em contradição com os interesses atualmente
dominantes. Daí a tendência a secundarizar a escola, esvaziando-a de
sua função específica, que se liga à socialização do saber elaborado,
convertendo-a numa agência de assistência social, destinada a atenuar
as contradições da sociedade capitalista. (SAVIANI, 2013, p. 85).

Considerações finais

No contexto atual, as políticas públicas para a educação defendem a necessidade


de um currículo cada vez mais integrado como forma de superar a fragmentação
disciplinar. Desta forma torna-se também importante compreender a quais princípios
sociais, filosóficos e políticos tal defesa está vinculada.
Nessa perspectiva, não se trata de realizar uma discriminação sobre princípios
verdadeiros ou falsos, mas de demonstrar que cada um deles representa relações sociais
assimétricas de poder. Desvelar tais relações possibilita elaborar outras propostas de
organização curricular. Reconhecer que o cotidiano da escola, suas relações
interpessoais, também fazem parte deste currículo, permite refletir sobre a função social
da escola e de que forma cada um é também responsável por ela.
Desta forma, o presente estudo buscou contribuir para a reflexão do papel
importante que a organização curricular representa para a formação, mas sabendo-se
que um documento prescritivo, o qual muitas vezes é assumido como apenas mais um,
representa princípios sociais, filosóficos, epistemológicos e políticos que são assumidos


417

como princípios formativos das gerações futuras, produtores de subjetividades,


possibilidades de resistência e luta de classes.

Referências

BRASIL, Ministério da Educação e da Cultura. Educação Profissional técnica de Nível Médio


Integrada ao Ensino Médio. Documento Base. 2007.

FERNDANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na Améria Latina. 4ª.


ed. São Paulo: Global, 2009.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 4. ed. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 1980.

__________. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 1968.

OLIVEIRA, Francisco de. Crítica a razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2013.

RAMOS, Marise. Filosofia da Práxis e práticas pedagógicas de formação de trabalhadores.


Trabalho & Educação, Belo Horizonte, v. 23, n.1, p. 207-218, jan-abr 2014.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11ª. ed. Campinas:


Autores Associados, 2013.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo.
2ª. ed. Belo Horizonte: Autêntca, 1999.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA O TRATO


COM O CONHECIMENTO REFERENTE AO TRABALHO CIENTÍFICO NA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE EDUCAÇÃO FÍSICA

Márcia Morschbacher (UFSM)1

Resumo: Este trabalho tem como objetivo analisar as contribuições da pedagogia histórico-
crítica em uma possibilidade de trato com o conhecimento relativo ao trabalho científico na
formação de professores de Educação Física. Nosso campo de pesquisa foi o Eixo Trabalho
Científico do curso de Licenciatura em Educação Física da Faced/Ufba. Situamos estas
contribuições, fundamentalmente, quanto ao estabelecimento da natureza e da especificidade da
educação (que conduzem à definição de trabalho educativo), da delimitação da ciência como o
conhecimento a ser tratado no processo sistemático de escolarização (e, em nosso caso, de
formação universitária) e do conceito de conhecimento clássico.

Palavras-chave: Formação de professores; Educação Física; Trabalho científico; trato com


conhecimento.

Introdução

Esse trabalho analisa as contribuições da pedagogia histórico-crítica em uma


possibilidade de trato com o conhecimento relativo ao trabalho científico na formação
de professores de Educação Física no que se refere aos critérios ou parâmetros para a
seleção do conhecimento e aos objetivos e diretrizes gerais para a organização e
sistematização do conhecimento. Resulta de uma pesquisa documental que teve como
objeto a formação dos professores de Educação Física para o trabalho científico e
objetivou analisar uma possibilidade de trato com o conhecimento para o Eixo Trabalho
Científico do Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal da
Bahia (Ufba), sistematizando objetivos e diretrizes e uma proposta de seleção e de
organização de conteúdos de ensino. Tal como a pesquisa em questão, a fundamentação
teórico-metodológica deste trabalho localiza-se na dialética materialista, na pedagogia
histórico-crítica e na abordagem crítico-superadora.


1
Márcia Morschbacher, Doutora em Educação, Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul,
Brasil. E-mail: mm.edufisica@yahoo.com.br.


419

A exposição do conteúdo desse trabalho organiza-se a partir dos seguintes


tópicos: a) recuperação da problematicidade do problema relativo à formação da classe
trabalhadora, dos professores em geral e, em específico, dos professores de Educação
Física para o trabalho científico; b) parâmetros teórico-metodológicos da Licenciatura
Ampliada e do Curso de Licenciatura em Educação Física da Ufba; c) o trato com o
conhecimento no Eixo Trabalho Científico e; (d) reflexões sobre as contribuições da
pedagogia histórico-crítica para o trato com o conhecimento.

1 Humanização, ciência e educação escolar


Temos como ponto de partida a problematização do papel da ciência no processo


de produção e reprodução da vida, refletimos sob o ponto de vista de uma dupla
caracterização da ciência, apreensível no seu movimento efetivamente real ao longo da
história da humanidade2. Esta caracterização refere-se: a) à definição conceitual do que
é a ciência ao longo da história da humanidade e; b) à conexão entre o modo de
produção capitalista e a ciência. Em ambos os casos, utilizamos como pressuposto
teórico-metodológico fundamental a relação de determinação recíproca entre o modo de
produção e reprodução da vida e a organização política e jurídica e os sistemas de
ideias; sendo o modo de produção, em última instância, o fator determinante3.
O primeiro pressuposto de toda a existência humana é o fato de que “[...] os
homens têm de estar em condições de viver para poder ‘fazer história’”. Desse modo, a
produção dos meios necessários à satisfação desta necessidade (estar vivo) corresponde
ao primeiro ato histórico. Os seres humanos não encontram prontos na natureza os bens
necessários à sua subsistência. Para suprir esta necessidade, lhes é demandado produzir
estes bens mediante o trabalho. Trata-se do processo que se opera entre o ser humano e
natureza, em que aquele regula e controla, de forma consciente, a transformação desta
pela sua ação prática. (MARX; ENGELS, 2007).
Por ser atividade consciente de transformação da natureza, o trabalho é atividade
previamente ideada e executada de acordo com o projeto prévio. Por ser atividade

2
Alinhamo-nos com as conclusões de Marx e Engels (1998) segundo as quais a história “de todas as
sociedades até hoje existentes” (p. 40) é a história da luta de classes. Esta luta tem como elemento
determinante e/ou condição originária o modo como os seres humanos produzem e reproduzem os meios
necessários para viver de acordo com um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e
das relações de produção. A “história da humanidade” não se refere, nesta acepção, à uma história idílica
ou a um agrupamento de acasos, mas à história do processo de produção da vida material.
3
Cf. Marx (2008), Marx e Engels (2007), Engels (1981).


420

planejada e que demanda o conhecimento gradativamente mais completo da instância a


ser transformada, dos instrumentos de trabalho e das maneiras mais adequados de fazê-
lo, a transformação dos seres humanos, na perspectiva da humanização, é sua dimensão
intrínseca. Os seres humanos tornam-se humanos (diferenciam-se da natureza,
mantendo com ela, todavia, uma unidade que é materialmente fundada) mediante o
processo intencional de produzir e reproduzir a existência, isto é, pelo trabalho.
(MARX, 1990).
A atividade de transformação material da natureza complexifica-se de acordo
com a complexificação das necessidades e dos instrumentos de sua satisfação,
incluindo-se o conhecimento cada vez mais sistemático e completo da natureza, dos
instrumentos e das técnicas. Assim sendo, as necessidades materiais dos seres humanos
e o processo de produzir e reproduzir a existência, bem como a sua complexificação,
encontram-se em unidade dialética com o desenvolvimento de formas de conhecimento
e de meios de sua produção cada vez mais sistemáticas ou metódicas da realidade, nas
quais a ciência é sua expressão mais desenvolvida.
Com base nesses pressupostos, podemos definir a ciência como atividade
humana realizada com a finalidade de conhecer a realidade (refletir a realidade material
no pensamento) e nela intervir de acordo com as condições materiais que os seres
humanos tanto recebem como legado das gerações anteriores quanto produzem de
acordo com as necessidades determinadas por estas condições. É atividade socialmente
determinada e historicamente desenvolvida: o reflexo das necessidades materiais
humanas e do modo como estas são prática e materialmente produzidas e providas, em
conexão com um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas e das
relações de produção.
A penetração racional gradativamente mais profunda na realidade, que a ciência
propicia, é componente importante para a determinação do grau de perenidade e de
alcance da ação humana sobre a realidade, tanto no quadro imediato da manutenção da
existência, quanto no revolucionamento das condições em que o modo de produzir e
reproduzir a vida se dá. O conhecimento exerce um papel de mediação no processo de
produção e reprodução da vida entre a realidade e a ação humana de transformação
desta realidade.
Em uma etapa histórica marcada por sucessivas crises e pelas guerras
imperialistas, resultado da agudização das contradições materialmente constitutivas do
modo de produção capitalista, a ciência tanto serve aos interesses do capital quanto


421

fornece os meios para a superação deste modo de produção, tendo em conta que,
contraditoriamente, possibilita o conhecimento gradativamente mais concreto da
realidade e fornece uma parcela das bases a partir das quais uma nova sociedade pode
ser erigida. Este componente contraditório nos é particularmente importante, posto que
a ciência tem um papel fundamental na humanização dos indivíduos mediante o
trabalho educativo, na medida em que é a expressão do conhecimento conceitualmente
mais elaborado que a humanidade desenvolveu ao longo da história. (ARRIZABALO;
MONTORO, 2014; SAVIANI, 2012).
Conforme aludimos, com a complexificação do modo de produzir e reproduzir a
vida, complexifica-se o conhecimento adquirido sobre a realidade e desenvolvem-se
formas mais aprimoradas de obter este conhecimento – a ciência. O conhecimento que
se acumula, com o desenvolvimento da escrita, pode ser registrado e transmitido de uma
geração para outra em um patamar superior às possibilidades da transmissão oral. Dessa
complexificação também resulta o desenvolvimento de procedimentos e de instituições
voltadas para a transmissão sistemática deste patrimônio da humanidade4 – a forma
escolar da educação. (SAVIANI, 2012).
Sendo a ciência a expressão mais desenvolvida da capacidade humana de
conhecer a realidade e de expressá-la na forma de conceitos, esta tem um papel
fundamental na humanização que se opera pelo trabalho educativo. A apropriação do
conhecimento científico, bem como o processo e os meios de sua produção,
potencializam a atividade humana de transformação material da realidade: o domínio
dos conceitos, dos processos e das leis que operam na realidade (cuja sistematização é
tarefa da ciência e cuja transmissão é tarefa do trabalho educativo) possibilita aos seres
humanos intervir nesta realidade em um patamar qualitativamente superior.
Conforme Saviani e Duarte (2012), a educação escolar torna-se a forma
dominante de educação no modo de produção capitalista à medida que o conhecimento
científico é incorporado no processo produtivo como força produtiva direta. A produção
da existência material passa a requerer o domínio de conhecimentos mais complexos
cuja transmissão já não pode ocorrer somente pela forma oral e pela experiência
imediata no processo de produção. Coloca-se como demanda a existência de “[...] um
tipo específico de atividade humana, voltado para a formação dos indivíduos”, qual seja,
a educação escolar. (DUARTE, 2012, p. 44).

4
O mesmo pode ser afirmado em relação às instituições voltadas para a produção sistemática deste
patrimônio – como as universidades e institutos de pesquisa.


422

Não se pode olvidar que esta é, também, uma reivindicação histórica da classe
trabalhadora. Há disputa entre os projetos de formação, os ideais pedagógicos e pela
direção das políticas públicas de educação. Tem-se uma correlação de forças no campo
educativo, de conforme as classes em luta. De acordo com Saviani (2003), no
capitalismo, a educação é marcada pela contradição entre a especificidade do trabalho
educativo (a socialização do conhecimento) e especificidade das relações capitalistas de
produção (a propriedade privada dos meios de produção). A correlação de forças entre
as classes em luta impulsionam o movimento em duas direções possíveis: uma
favorável aos interesses da classe capitalista e outra favorável aos interesses da classe
trabalhadora. Enquanto encontrarmo-nos submetidos à contradição entre capital e
trabalho, estes dois componentes interpenetram-se e disputam espaço entre si na
realidade concreta, de acordo com a correlação de forças entre as classes.
No atual grau de desenvolvimento das forças produtivas (que é marcada pela sua
destruição e pela sua conversão em forças destrutivas) e das relações de produção, a
reivindicação das formas mais desenvolvidas do patrimônio que a humanidade
acumulou (no âmbito da filosofia, da arte e da ciência) como conteúdo a ser tratado nos
processos de escolarização da classe trabalhadora expressa uma necessidade vital sob
um duplo sentido: a) o da socialização parcial de um meio de produção, pelo fato de
que a apropriação da ciência (nos seus processos e resultados) pela classe trabalhadora
implica, ainda no seio deste modo de produção, na socialização de uma parte
constitutiva dos meios de produção que é o conhecimento científico e; b) o da
ampliação da capacidade humana de conhecer, explicar e intervir na realidade
contraditória, seja no quadro de um modo de produção altamente destrutivo e em
decomposição que necessita ser superado mediante a ação organizada e consciente, seja
da construção coletiva de uma nova sociedade baseada na socialização dos meios de
produção. (SAVIANI; DUARTE, 2012).
Com base nestas considerações, defendemos o trato com o conhecimento
científico na universidade, na contramão da tendência à desqualificação dos
trabalhadores no próprio processo de formação. Desqualificação esta que tem como uma
de suas variáveis o rebaixamento e o esvaziamento dos conteúdos tratados na escola e
na universidade. Essa tendência, ao desqualificar a formação dos trabalhadores, visa
rebaixar o valor da força de trabalho, limitando o desenvolvimento da sua capacidade de
pensamento teórico e, por conseguinte, a capacidade de explicação – apreendendo os
processos e as leis de desenvolvimento da sociedade e da natureza – e de intervenção no


423

real, projetando de modo consciente e fundamentado a sua ação prática – incluída, aqui,
a luta organizada e situada nos planos imediato, mediato e histórico para a superação do
capitalismo.
O rebaixamento da capacidade de conhecer a realidade, rebaixa,
tendencialmente, a possibilidade da ação humana sobre a mesma e, no atual grau de
decomposição do modo de produção capitalista, em que o seu funcionamento opera sob
contradições crescentemente insustentáveis à manutenção da vida, este fato é
inevitavelmente problemático à humanidade.
Na formação de professores e, em particular, na formação de professores de
Educação Física, a tendência ao seu rebaixamento também se constitui em situação
problemática, devido às questões anteriormente expostas e ao papel que estes
profissionais possuem na socialização sistemática do conhecimento produzido e
acumulado pela humanidade para a classe trabalhadora no plano da cultura corporal. O
rebaixamento da formação priva os professores do desenvolvimento da capacidade de
explicação e de intervenção na realidade em patamares superiores, considerando-se o
lugar desta capacidade no quadro da especificidade do trabalho professor – o trabalho
pedagógico. Uma formação rebaixada teoricamente, combinada com os problemas
educacionais próprios de uma sociedade dividida em classes e de um país dependente
como o Brasil, limita o trabalho pedagógico do professor e incide sobre a formação das
novas gerações que frequentam a escola pública. (SAVIANI, 2003, 2012; GAMA,
2015).
Uma das expressões da tendência de rebaixamento da formação de professores
consiste na negação e/ou negligência, durante o processo de formação, do trato com o
conhecimento científico e dos meios de produzi-lo. Esta questão têm sido constatada e
criticada por investigações científicas da Educação e da Educação Física. (TAFFAREL,
1993; SANTOS JÚNIOR, 2005; MARTINS, 2010; MARSIGLIA; MARTINS, 2013).
Trata-se de um problema que se intensifica na medida em que é reforçado pela
base teórica hegemônica que fundamenta a formação de professores no Brasil (as
“pedagogias do aprender a aprender”). Essa referência tanto minimiza o papel do trato
com o conhecimento sistematizado, em especial, obtido e exposto de forma científica,
quanto reduz a ciência e a pesquisa à investigação (não raras ocasiões, descrição) da
prática utilitária e pragmática, restrita ao cotidiano. (MARSIGLIA; MARTINS, 2013).
Na fase imperialista do capitalismo, em que os dados da realidade explicitam
claramente que a humanidade defronta-se com a saída pelo socialismo ou pela barbárie,


424

em que se nega o conhecimento científico aos trabalhadores nos processos de


escolarização e de formação profissional, a questão da base teórica da formação e o
potencial desta para munir os trabalhadores de instrumentos de pensamento para
explicar as determinações do real e nele intervir de forma a revolucioná-lo, não são
questões despiciendas.
As propostas para a formação de professores e os processos de escolarização dos
trabalhadores que se baseiem em uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre a
realidade e no desenvolvimento de uma consistente base teórica e da formação política
fundam-se, necessariamente, em uma teoria do conhecimento e em uma concepção de
mundo que permita a estes apreender o real nas suas múltiplas determinações e projetá-
lo e agir para transformá-lo para além do modo como este apresenta-nos. Esta base
teórica é a dialética materialista e os seus desdobramentos no âmbito da teoria da
aprendizagem, da teoria pedagógica e na metodologia de ensino. Ainda, há que se
destacar o horizonte teleológico que esta porta e que se relaciona com a construção do
socialismo como transição ao comunismo. (SAVIANI, 2009; TAFFAREL, 2012).

2 Parâmetros teórico-metodológicos do Curso de Licenciatura em Educação Física


da FACED/UFBA

Com o intento de superar o problema do rebaixamento da formação dos


professores de Educação Física e resistindo à divisão entre licenciatura e bacharelado, o
Curso de Licenciatura em Educação Física da Faced/Ufba organiza-se a partir de um
curso único (baseado na Licenciatura Ampliada5), que visa assegurar a consistente
formação teórica dos professores para o trabalho pedagógico com a cultura corporal nos
diferentes campos de trabalho – saúde, lazer, educação e esporte.
No combate pela formação em um curso único, tem-se, na Licenciatura
Ampliada, que o componente que confere unidade ao trabalho do professor de Educação
Física nos distintos campos de intervenção é o trabalho pedagógico com a cultura
corporal. Sem perder de vista a especificidade de cada campo de intervenção, os
professores de Educação Física desenvolvem uma atividade sistemática de transmissão
de conhecimento, com um dado objeto em determinados espaços e tempo, que possui

5
Expressão da síntese resultante da luta organizada de professores e estudantes de Educação Física pela
qualificação da sua formação e contra a divisão da formação entre licenciatura e bacharelado e do
conhecimento científico produzido sobre a formação de professores nas áreas da Educação e da Educação
Física segundo a base teórica materialista e dialética.


425

objetivo, avaliação, conteúdo, método. É nesse sentido que a formação dos professores
de Educação Física é perspectivada tendo em vista a instrumentalização dos professores
a partir de uma base de conhecimentos que garantam uma base teórica consistente, a
partir da qual estes colocam em movimento os conceitos apropriados consoante a
especificidade de cada campo de atuação. (TAFFAREL; SANTOS JÚNIOR, 2010;
TAFFAREL, 2012).
A opção pela base teórica que funda a proposta da Licenciatura Ampliada
orienta-se pela dialética materialista e seus desenvolvimentos que se expressam na
teoria da aprendizagem e do desenvolvimento, na teoria pedagógica e na metodologia
do ensino, como a expressão das elaborações teóricas mais avançadas para a explicação
e intervenção no real que a humanidade produziu como reflexo da sua relação concreta
com este. Esta opção dá-se enraizada na relação concreta da humanidade com a
realidade e no reconhecimento de que a teoria mais avançada é aquela que permite aos
indivíduos apreenderem o real na sua riqueza de determinações – portanto, na sua
manifestação concreta.
Fundada na concepção de formação omnilateral, a proposta da Licenciatura
Ampliada objetiva uma consistente formação baseada no acervo de conhecimentos
necessários ao trabalho pedagógico com a cultura corporal nos diferentes campos de
trabalho e ao domínio das ferramentas de pensamento e de pesquisa para o acesso e à
produção de conhecimento científico.
O Projeto Político Pedagógico do curso de Licenciatura em Educação Física da
Faced/Ufba define o conhecimento como fruto da práxis histórica da humanidade em
profunda conexão com o modo de produzir e reproduzir a vida. A cultura corporal,
objeto de estudo da Educação Física, origina-se da práxis humana na forma de
atividades criativas ou imitativas “das relações múltiplas de experiências ideológicas,
políticas, filosóficas e outras, subordinadas às leis histórico-sociais”. (UFBA, 2011, p.
26).
O trabalho pedagógico é definido como o elemento identificador do trabalho dos
professores de Educação Física; a prática social como como articuladora do
conhecimento e, a história, a matriz científica. Perspectiva-se, neste sentido, que os
professores:
a) Dominem os processos lógicos de construção e os meios, técnicas e métodos de
produção do conhecimento científico que fundamentam e orientam a sua ação
profissional;


426

b) Mobilizem esses conhecimentos transformando-os em ação moral, ética, estética e


política libertadoras e emancipatórias na perspectiva da superação da sociedade de
classes;
c) Dominem os conhecimentos específicos para a sua ação profissional;
d) Compreendam e enfrentem as questões envolvidas com o trabalho no modo de
produção capitalista, seu caráter e organização;
e) Critiquem a base técnica e tecnológica do seu trabalho e busquem a construção de
bases científicas para a organização do trabalho assentadas em uma perspectiva
emancipatória, solidária, coletiva, com autonomia e auto-organização e;
f) Avaliem de forma crítica e teoricamente fundamentada a própria atuação e o
contexto em que atuam (UFBA, 2011).
A sua base teórica está situada na dialética materialista como teoria do
conhecimento, a psicologia histórico-cultural como teoria da aprendizagem e do
desenvolvimento, a pedagogia histórico-crítica como teoria pedagógica e na
metodologia crítico-superadora como metodologia de ensino e/ou abordagem
metodológica da Educação Física.
O currículo está organizado em quatro eixos: Trabalho Científico, Fundamentos,
Conhecimento Específico e Práxis Pedagógica. A finalidade destes eixos curriculares é
o agrupamento das disciplinas de acordo com o caráter do conhecimento de que o
currículo é incumbido de garantir aos estudantes e a sua organização/disposição ao
longo dos oito semestres letivos do curso, considerando, sobretudo, o princípio da
“espiralidade da incorporação das referências do pensamento”6.
Na seção subsequente, tratamos do trato com o conhecimento no Eixo Trabalho
Científico, sobretudo quanto à seleção do conhecimento.

3 O trato com o conhecimento no Eixo Trabalho Científico


O Eixo Trabalho Científico tem por objetivo o trato com o conhecimento


referente ao trabalho científico, que, em conjunto com as demais disciplinas do
currículo, deve oferecer condições para o desenvolvimento do pensamento teórico e da
atitude científica dos estudantes. Os principais conteúdos de ensino a serem tratados são
aqueles relativos a “o que é e como se produz o conhecimento científico”. (UFBA,

6
Cf. Coletivo de Autores (2012, p. 34, grifos dos autores). Gama (2015) refere-se a este princípio metodológico
como “ampliação da complexidade do conhecimento”.


427

2013a, p. 1). Estes têm lugar na formação de professores de Educação Física tendo em
vista:
a) A superação do senso comum com vistas ao desenvolvimento da consciência
filosófica; b) A formação científica que explique a ciência em perspectiva histórica,
considerando a conexão com o modo como os seres humanos produzem e reproduzem a
vida ao longo da história da humanidade; c) A formação científica situada na filosofia
da ciência, que aborde, principalmente, a relação entre matéria e consciência; d) O
estudo sobre o que é o conhecimento e o processo histórico que permite a sua produção;
e) O estudo do conhecimento sobre o patrimônio que os seres humanos historicamente
produziram sobre a cultura corporal e o processo histórico que possibilitou a sua
produção; f) O estudo das abordagens, métodos e técnicas de pesquisa que predominam
na pesquisa dos elementos constitutivos da cultura corporal e; g) O estudo das
abordagens, métodos e técnicas de pesquisa explicados à luz do estágio de
desenvolvimento das forças produtivas e das relações de produção no modo de
produção capitalista, a partir do processo de transição do feudalismo ao capitalismo.
O Eixo Trabalho Científico é composto pelas seguintes disciplinas:

Disciplina Carga Horária Semestre de oferta


Abordagens Métodos e Técnicas de Pesquisa em
34 h/a 1º
Educação Física I (AMTP)
Abordagens, Métodos e Técnicas de Pesquisa em
34 h/a 3º
Educação Física II
Abordagens, Métodos e Técnicas de Pesquisa em
34 h/a 6º
Educação Física III
EDCD70 – Monografia 68h/a 8º

Quadro 1 – Disciplinas do Eixo Trabalho Científico


Fonte: UFBA (2011).

A carga horária das disciplinas do Eixo, consideradas em sua oferta atual,


apresenta-se consideravelmente exígua (170h/a), o que demanda o redimensionamento
do tempo pedagógico destinado ao Eixo. Essa limitação remete à necessidade de revisão
do seu papel no curso, na medida em que, do ponto de vista do conhecimento tratado,
trata-se de conhecimentos de base para o desenvolvimento de uma sólida formação
teórica.
Tais disciplinas apresentam as seguintes ementas em vigor (conforme o Quadro
2). Apresentamos também a reformulação das ementas proposta na minuta do


428

documento do Eixo Trabalho Científico. Percebe-se que tal reformulação visou superar
a generalidade de conteúdos de que padecem as ementas vigentes.

Disciplina Proposta em vigor desde 2011 Proposta reformulada (2013)


Abordagens Estudos sobre as abordagens Estudos sobre o desenvolvimento histórico
Métodos e para o ensino e pesquisa na da necessidade e da capacidade humana para
Técnicas de Educação, Educação Física, responder à pergunta sobre a possibilidade
Pesquisa em Esporte e Lazer com ênfase na do conhecimento da realidade, com ênfase na
Educação proposta materialista histórico investigação da relação matéria/consciência
Física I dialética: fundamentos, nas abordagens para a pesquisa científica que
métodos e técnicas. predominam na Educação Física, esporte e
lazer. Estudo (a) das características do texto
científico e (b) das formas e da organização
do trabalho científico para alcançar a
verdade.
Abordagens, Estudos sobre as abordagens Estudos sobre o desenvolvimento histórico
Métodos e para o ensino e pesquisa na das teorias científicas e abordagens
Técnicas de Educação, Educação Física, pedagógicas elaboradas pela Educação
Pesquisa em Esporte e Lazer com ênfase na Física, esportes e lazer, considerando-se os
Educação proposta materialista histórico fundamentos teóricos e os pressupostos
Física II dialética: Fundamentos, ontológicos, gnosiológicos, axiológicos e
métodos e técnicas. Partindo teleológicos que subjazem a estas teorias, de
para: generalizações; modo a situar teoricamente os instrumentos,
explicações; teorizações. métodos e técnicas a elas subjacentes.
Abordagens, Estudos sobre as abordagens Estudos críticos e em perspectiva histórica
Métodos e para o ensino e pesquisa na sobre os balanços da produção do
Técnicas de Educação, Educação Física, conhecimento em Educação Física, esportes
Pesquisa em Esporte e Lazer com ênfase na e lazer, com ênfase na constatação de
Educação proposta materialista histórico necessidades vitais (problemáticas
Física III dialética: fundamentos, significativas) ainda não investigadas com a
métodos e técnicas. finalidade de seleção de problemas de
pesquisa e produção de projetos de pesquisa
científica.
Monografia Módulo de Aprofundamento: Estudos individuais orientados sobre
novas hipóteses, problemáticas significativas do trabalho
experimentações, estudos e pedagógico na área Educação Física,
projetos aprofundados. esportes e lazer com vistas à produção da
Processo de construção e monografia de conclusão de curso.
seminário de defesa pública da
monografia.
Quadro 2 – Ementas das disciplinas
Fonte: UFBA (2013).

Evidenciamos que se as ementas em vigor, no que se refere às disciplinas AMTP


I, II e III, apresentam-se pouco diferenciadas do ponto de vista da indicação dos


429

conteúdos de ensino, a proposta reformulada delineia-os com maior precisão e permite


visualizar a organização destas disciplinas em ciclos, que abarcam os conhecimentos no
âmbito: (1) da problemática filosófica (epistemologia e filosofia da ciência); (2) da
histórica da ciência; (3) da metodologia da pesquisa (métodos, técnicas e instrumentos
de pesquisa); (4) do debate epistemológico da Educação Física (proposições de ciência
e proposições pedagógicas da Educação Física).
A reformulação das ementas proposta em 2013 procura imprimir a cada
disciplina certa especificidade em suas ementas. Nesta reformulação, identificamos que:
a) AMTP I abrange o estudo do desenvolvimento histórico da necessidade e da
capacidade humana de conhecer a realidade; a investigação da relação entre matéria e
consciência nas abordagens teóricas que predominam na Educação Física (positivismo,
fenomenologia e marxismo) e; o estudo das características do texto científico e das
formas de organização do trabalho científico;
b) AMTP II aborda as proposições de ciência e as proposições pedagógicas
sistematizadas na Educação Física do ponto de vista de seus pressupostos filosóficos
(ontologia, gnosiologia, axiologia e teleologia), da conexão com as abordagens teóricas
e de seus instrumentos, métodos e técnicas, e;
c) AMTP III apresenta o estudo dos balanços da produção do conhecimento produzidos
na área como base à elaboração dos projetos de pesquisa dos estudantes.
Identificamos uma determinada lógica na composição das disciplinas do Eixo
quando analisamos os objetivos e os conteúdos de ensino. Esta lógica expressa uma
determinada concepção de trabalho científico (de ciência) e de formação humana, as
quais fundam-se em determinados parâmetros teórico-metodológicos – nomeadamente,
a base teórica em que se sustenta o curso de Licenciatura em Educação Física da
Faced/Ufba.
Em análise à organização dos conhecimentos que compõem o Eixo Trabalho
Científico, identificamos que estes são organizados de modo a ampliar as referências de
pensamento dos estudantes, em um movimento que se inicia com o trato com o
conhecimento visando o domínio dos conceitos fundamentais da epistemologia
(ser/matéria, pensar/consciência, materialismo, idealismo, conhecimento, ciência,
relação sujeito-objeto, método, verdade), da história da ciência, das abordagens teóricas
predominantes na pesquisa em Educação Física (positivismo, fenomenologia e
marxismo) e dos procedimentos didáticos fundamentais relativamente ao texto
científico (AMTP I); avança para o aprofundamento do estudo das abordagens teóricas,


430

as proposições de ciência e as proposições pedagógicas da Educação Física, destacando-


se a conexão com as abordagens teóricas (AMTP II) e; para o estudo dos balanços da
produção do conhecimento produzidos na Educação Física e para a instrumentalização
para a elaboração dos projetos de pesquisa (AMTP III); culminando com a elaboração,
sob a orientação de um professor orientador, dos TCC (Monografia).

À guisa de conclusão: contribuições da pedagogia histórico-crítica para o trato


com o conhecimento no Eixo Trabalho Científico

O Curso de Licenciatura em Educação Física da FACED/UFBA, tendo em vista


a concepção de formação omnilateral, a base teórica fundada na dialética materialista, o
projeto histórico superador da luta de classes, o trabalho como princípio educativo, a
história como matriz científica (etc.) e o objetivo de que os estudantes dominem os
meios de produção do conhecimento científico, propõe um currículo em que o
conhecimento encontra-se organizado em Eixos, dentre os quais, o Eixo Trabalho
Científico. É evidente a conexão entre teoria do conhecimento, teoria pedagógica e
abordagem metodológica no âmbito da proposta do curso de Licenciatura em Educação
Física da FACED/UFBA.
Coerente com a base teórica e a proposta de formação delimitada pelo PPP, o
Eixo Trabalho Científico busca concretizar de forma sistemática a demanda do domínio,
pelos estudantes, dos meios de produção do conhecimento científico. Esta demanda
procura ser atendida mediante o trato com um conjunto de conhecimentos selecionados
no âmbito da filosofia (problemática filosófica em geral e epistemologia em geral e
voltada à área da Educação Física), da história da ciência e da metodologia da pesquisa.
Subjaz à seleção destes conhecimentos (e à proposta do Eixo Trabalho Científico
considerada no todo), além da concepção de ciência que explicitamos, uma
compreensão superadora da formação para o trabalho científico. Esta compreensão
supera a tradicional definição da formação para o trabalho científico presente na
Educação Física: aquela restrita ao domínio dos conteúdos relativos às técnicas e
instrumentos de pesquisa. Trata-se de uma compreensão de trabalho científico que trata,
de forma sistemática, o movimento efetivamente real da ciência ao longo da história da
humanidade, considerando: a) a conexão da ciência com o modo de produzir e de
reproduzir a vida; b) as teorias sobre o que é o conhecimento científico e sobre as


431

maneiras mais adequadas de obtê-lo tendo em vista determinadas teorias sobre o que é o
ser (ontologia) e; c) os métodos, técnicas e instrumentos elaborados visando a produção
do conhecimento científico.
Ao analisarmos as contribuições da pedagogia histórico-crítica para o trato com
o conhecimento no Eixo Trabalho Científico destacamos que estas contribuições
situam-se, principalmente, nos componentes a seguir.
Ao definir a natureza e a especificidade, o objeto e a tarefa da educação, e ao
delimitar o papel da educação escolar no processo de humanização, a pedagogia
histórico-crítica fornece elementos para fundamentar e concretizar o trabalho
pedagógico visando a formação de professores com consistente base teórica para o
desenvolvimento do trabalho pedagógico, por sua vez, nos campos de trabalho. No
âmbito da formação de professores em geral e, em específico, de Educação Física, o
domínio do conhecimento científico e dos meios de sua produção é componente
inerente de tal formação: não se eleva o pensamento teórico da classe trabalhadora
mediante os processos de escolarização se os indivíduos responsáveis pela condução
desta tarefa não tenham desenvolvido esta capacidade, bem como se não dominam os
conceitos científicos a serem tratados e as bases científicas do trabalho pedagógico.
Portanto, tendo em conta a tendência à desqualificação da formação da classe
trabalhadora a partir de diferentes meios, entre estes, o rebaixamento teórico dos
currículos devido à negação do acesso ao conhecimento científico, uma proposta de
formação que reivindique e materialize o acesso a este conhecimento apresenta-se como
avançada e como expressão da resistência à referida tendência.
Sobre a seleção do conhecimento, a pedagogia histórico-crítica contribui ao
estabelecer que não é qualquer conhecimento que deve ser selecionado, organizado e
sistematizado no processo educativo. O conhecimento que deve ter lugar no currículo, é
aquele que se expressa nas formas mais elaboradas que a humanidade produziu ao longo
da sua história – a ciência. Além disso, o conceito de conhecimento clássico apresenta-
se como um relevante balizador para selecionar o conhecimento. Considerando o objeto
do Eixo Trabalho Científico e a competência global de domínio dos meios de produção
do conhecimento científico, a seleção do conhecimento fundamenta-se na pergunta pelo
conhecimento clássico da história da ciência, da epistemologia, dos métodos e técnicas
de pesquisa. Trata-se de selecionar o conhecimento que melhor expresse o percurso da
humanidade no processo de conhecer a realidade, considerando a conexão com os
diferentes modos de produzir e de reproduzir a vida.


432

É vital que os estudantes compreendam, mediante sucessivas aproximações o


movimento efetivamente real da ciência ao longo da história da humanidade – seja no
plano geral da ciência concebida como atividade humana sistemática de conhecimento
da realidade, seja no plano particular da expressão desta atividade na área específica, a
Educação Física. Quanto a este último aspecto, trata-se de fornecer as condições
necessárias para os estudantes reconhecerem a) a conexão da ciência com a Educação
Física, b) o modo como se dá esta relação, c) como o objeto da área se constitui
historicamente, d) como, em um dado período histórico, é ele também objeto da
investigação científica, a partir de quais fundamentos teóricos este objeto e esta área são
definidos e investigados e (e) quais são as tendências do conhecimento produzido.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A EDUCAÇÃO INFANTIL NA PERSPECTIVA DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-


CRÍTICA: UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA CONTRA HEGEMÔNICA

Fernanda Yully dos Santos Monteiro (UFPA)1


Kelly Katia Damasceno (UFPA) 2

Resumo: O presente texto constitui um estudo teórico-bibliográfico, que visa suscitar uma
discussão acerca da organização do trabalho pedagógico na educação infantil para além das
pedagogias hegemônicas que estão presentes em todas as etapas da educação. Para tanto,
compreendemos como possibilidade para abordarmos as questões da educação, incluindo-se a
educação infantil, a pedagogia histórico-crítica, por ser esta, além de uma teoria da educação,
também uma teoria pedagógica que possibilita o ensino e a aprendizagem das crianças pequenas
em seu pleno desenvolvimento, de maneira omnilateral, contribuindo com a perspectiva da
formação para a emancipação humana. O método utilizado para as apreensões acerca do objeto
em questão é o materialismo histórico e dialético e, como procedimento metodológico,
utilizamos a pesquisa bibliográfica. Concluímos que a importância da PHC no campo da
educação infantil fica evidente ao possibilitar o acesso ao conhecimento histórico cultural
produzido pela humanidade, voltada à construção omnilateral do sujeito; demarcamos, por fim,
que apenas o acesso ao conhecimento mais elaborado é capaz de questionar e propor a
transformação das atuais bases societais, tornando-se inegável a importância desta teoria contra-
hegemônica no ensino da educação infantil.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica; Educação Infantil; Prática Pedagógica.

Introdução

Historicamente a educação infantil tem sido colocada à margem de propostas


críticas educacionais, uma vez que é assumida a perspectiva assistencialista massificada
por moldes reprodutivistas dentro das instituições infantis de educação.
Nas últimas décadas, observa-se que alguns fenômenos sociais, tais como:
urbanização e novo modelo de família, em que a mulher assume a responsabilidade
financeira, indo em busca do mercado de trabalho para o sustento familiar, mobilizaram


1
Mestranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará
(PPGED/UFPA). Membro da Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física, Esporte e Lazer da
Universidade Federal do Pará (LEPEL/UFPA).
2
Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal do Pará
(PPGED/UFPA). Professora da Secretaria de Educação do Estado de Mato Grosso (SEDUC/MT).


435

movimentos sociais em prol da expansão do número de vagas nessa etapa de formação,


bem como educadores na discussão acerca da compreensão sobre a infância e práticas
pedagógicas destinadas a essa fase da vida humana.
O presente texto é um estudo teórico-bibliográfico, que visa suscitar uma
discussão acerca da organização do trabalho pedagógico na educação infantil para além
das pedagogias do “aprender a aprender”, que estão presentes em todas as etapas da
educação. Para tanto, compreendemos, como possibilidade para abordarmos o
conhecimento na educação, incluindo a educação infantil, a pedagogia histórico-crítica,
por ser esta, além de uma teoria da educação, também uma teoria pedagógica que
possibilita o ensino e a aprendizagem das crianças pequenas visando seu pleno
desenvolvimento, de maneira omnilateral, contribuindo com a perspectiva da
emancipação humana. (DUARTE, 2010).
A pedagogia histórico-crítica tem como base o materialismo histórico e
dialético, que se articula a um projeto histórico para além do capital: “[...] entende-se
por projeto-histórico a delimitação do tipo de sociedade que se quer criar [...]”. Desse
modo, a dialética materialista se apresenta como uma postura, um método, uma práxis e
um movimento de superação, que possibilita a transformação, superando as impressões
fenomênicas e analisando crítica e rigorosamente o objeto estudado, discutindo o
fenômeno em sua totalidade, para a apreensão do real. (FREITAS, 1987, p. 122).
Para análise e discussão acerca da pedagogia histórico-crítica na educação
infantil utilizaremos, ainda, a pesquisa bibliográfica que, segundo Gil (2002, p. 44),
“[...] é desenvolvida com base em material já elaborado constituído principalmente de
livros e artigos científicos”.
O presente texto está organizado da seguinte maneira: 1) Breve histórico da
educação infantil; 2) O trato pedagógico e organização do trabalho pedagógico na
educação infantil, elucidando as teorias pedagógicas em voga; 3) A possibilidade de
inserção da Pedagogia Histórico-Crítica na educação infantil; e, por fim, as
considerações finais.

1 Breve panorama histórico da educação infantil

A história do direito das crianças e o direito à educação infantil é marcada por


diversas contradições e mobilizações. Podemos dizer que é a partir da segunda metade
do século XX que a educação infantil passa a ser institucionalizada e normatizada; em


436

nosso país, até então, a educação das crianças pequenas era uma atribuição quase
exclusiva das famílias e das instituições cuidadoras dos menores abandonados.
As concepções teóricas voltadas para a infância se encontram atreladas às ações
de violências, punição e repressão. Perez e Passone (2010, p. 653) assinalam que no
período da colonização esta parte da história do Brasil foi impiedosa, demarcada pela
aculturação imposta às crianças indígenas pelos jesuítas e a segregação e discriminação
racial dos “enjeitados”; posteriormente, a Roda dos Expostos ou Roda da Misericórdia,
em que as crianças eram deixadas em cilindros de madeira localizados em conventos e
Casas de Misericórdias. Quando a campainha era acionada significava que algum menor
acabara de ser abandonado; pelas condições precárias de saúde em que as crianças
chegavam, atreladas às condições de higiene das instituições, ocorria um índice alto de
mortandade infantil nesses locais.
No fim do século XIX e início do século XX, período marcado pela mudança
imperial para a república, diante da situação de calamidade pública e pressão social
colocam-se novos rumos, mesmo que tímidos, no que tange aos cuidados para com as
crianças pequenas em nosso país.
Segundo alguns estudiosos da área, entre eles, Perez e Passone (2010), a história
da institucionalização e legalização da infância é constituída a partir de três principais
momentos políticos do século XX, ocorridos no Brasil; são eles: 1) O Estado Novo,
com Getúlio Vargas no poder e o discurso populista (1930 a 1945); 2) A Ditadura
Militar, controle e repressão dos direitos políticos e civis (1964 a 1985); 3) A
Redemocratização do país, luta pelas garantias dos direitos civis de toda a população
brasileira.
Pelo limite de discussão do texto, destacamos a infância no aspecto educacional.
Compreendemos que, enquanto sujeito omnilateral, também fazem parte do
desenvolvimento do indivíduo os aspectos: familiar, saúde, dentre outros. Entretanto, no
limite de discussão que nos propomos nesse texto, destacamos a infância no aspecto
educacional, em que se tem como marco legal para a institucionalização da educação
infantil a promulgação da Carta Magna, ou seja, da Constituição Federal (CF) de 1988
que, no Artigo 208, dispõe sobre:

O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia


de:
I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17
(dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para


437

todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria (Redação dada
pela Emenda Constitucional nº 59, 2009); [...]
IV - educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5
(cinco) anos de idade (Redação dada pela Emenda Constitucional nº
53, de 2006); [...]. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Complementa a disposição acima o Estatuto da Criança e do Adolescente, sob a


Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, que, no Artigo 53, trata sobre o direito à
Educação, à Cultura e aos Esportes e Lazer: “A criança e o adolescente têm direito à
educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho [...]”. (BRASIL, 1990).
Pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) nº 9.394,
promulgada em dezembro de 1996, no Título V - Dos níveis e das modalidades de
Educação e Ensino - Capítulo I - Da composição dos níveis escolares:

Art. 21. A educação escolar compõe-se de:


I - educação básica, formada pela educação infantil, ensino
fundamental e ensino médio;
II - educação superior. (BRASIL, 1996, grifos nossos).

A Lei nº 11.274, em fevereiro de 2006, altera a LDB 9.394/96 e amplia o Ensino


Fundamental para nove anos de duração; desse modo, a educação básica passa a ser
organizada em: educação infantil: Creche: 0 - 3 anos e Pré-escola: 4 - 5 anos; Ensino
Fundamental - 6 a 14 anos e Ensino Médio - 15 a 17 anos.
No final dos anos 1990 e nos primeiros anos dos anos 2000, período em que a
educação das crianças de 0 a 6 anos passa a compor legalmente a primeira etapa da
educação básica, sendo de responsabilidade administrativa dos municípios, em diversas
prefeituras essa etapa da educação permanecia sob a administração das Secretarias de
Promoção Social ou correlatas, sob o comando, em especial, das primeiras-damas dos
municípios, o que fortalecia o assistencialismo, a indução de que conseguir uma vaga
nas instituições para os filhos era um “favor” para as mães, além da carência de
qualificação das profissionais que atuavam junto às crianças, o que fortalece o
esvaziamento do conteúdo pedagógico oferecido a esse público infantil.
É a partir do início do século XXI que a determinação do disposto da LDB
9.394/96 quanto à responsabilidade da educação infantil passa a ser respeitada nas
secretarias de educação dos municípios. Em tese, essa mudança possibilita uma
discussão sobre a infância e o trabalho oferecido nas instituições infantis, mais
aprofundada do ponto de vista teórico, considerando que fará parte das discussões dos


438

técnicos das secretarias, apoiadas em estudos de especialistas das universidades e


Instituições do Ensino Superior (IES) que se dedicam a pesquisas acerca das diversas
áreas da infância (educação, psicologia, etc.); isso posto, poderá contribuir com as
práticas pedagógicas desenvolvidas junto às crianças, sobretudo, das camadas populares
menos favorecidas.
Nesse sentido, compreendemos que é imprescindível a oferta de formação de
professores para a educação infantil fundada nas teorias educacionais. Embora a LDB
9.394/96, no Artigo 62, tenha estabelecido que a formação de professores para atuarem
na educação básica fosse a de nível superior, facultou-se a formação em nível médio de
magistério para os profissionais que atuassem nos primeiros cinco anos do Ensino
Fundamental e na educação infantil. Campos, Füllgraf e Wiggers (2006) assinalam um
dado alarmante, em que muitas das prefeituras e entidades, contestando a exigência da
formação de professores, buscavam subterfúgios “contratando educadores como se
desempenhassem atividades de limpeza, para fugir ao requisito de formação prévia”.
(CAMPOS; FÜLLGRAF; WIGGERS, 2006, p. 90).
Nessa perspectiva, questionamos: qual o trato com o conhecimento da educação
infantil? E a organização do trabalho pedagógico do professor, como fica? Ponderamos
que a organização do trabalho pedagógico do professor continua comprometida, o
quadro de professores não atende o perfil necessário para o ensino; em linhas gerais, a
educação infantil continua à mercê do descaso do Estado em relação ao ensino da
infância.
Marsiglia (2011, p. 62) assinala “[...] a falta de reconhecimento do papel da
creche e da pré-escola no desenvolvimento global das crianças, a precariedade e má
qualidade do serviço, quadro de profissionais deficitário e desqualificado”. Destaca um
panorama comum ao ensino da educação infantil e da educação de forma geral, que é o
de oferecer o mínimo, o que recai no assistencialismo e não cumpre nem a função de
cuidar e nem educar, binômio muito conhecido no campo da educação da infância.
O histórico da educação infantil foi marcado por diversas mobilizações sociais e
pelo direito à educação das crianças pequenas; os movimentos feministas, movimentos
de bairro e sindicato inseriam-se na luta por acesso às creches. Essas mobilizações estão
atreladas à conjuntura de redemocratização política, bem como aos aspectos
econômicos e socioculturais. Tal fato estimulou os estudiosos e profissionais
diretamente ligados às questões da infância a formularem diretrizes mais condizentes


439

com a nova conjuntura, a necessidade de criação e ampliação de vagas, formação de


profissionais para atender a esse público infantil.
Destacamos que, mesmo diante de alguns avanços no que diz respeito à
institucionalização e normatização da educação infantil nos diais atuais, ainda há
problemas reais em que essa etapa da educação continua sendo colocada à margem, uma
vez que uma das prioridades do capitalismo é a formação do trabalhador para o mercado
de trabalho; deste modo, as creches e pré-escolas ainda apresentam número reduzido de
vagas. Faltam recursos materiais, recursos humanos com formação adequada para o
trabalho com as crianças menores de 6 anos, sendo que ainda é presente nas instituições
certa característica assistencialista em detrimento da educativa, ou seja, o binômio “o
cuidar x o educar”.

2 A organização do trabalho pedagógico e a escola como espaço de prática contra-


hegemônica

Para compreender o trabalho pedagógico é necessário fazer-se a reflexão de sua


totalidade e como este se constitui na vida do homem. Para tal, dialogamos com Taffarel
(2010) que, em suas incursões sobre o processo de trabalho capitalista, traz
contribuições quanto às relações de trabalho. A autora afirma que:

O trabalho não significa somente uma ação humana. É muito mais do


que isto. É um ser humano, com suas condições físicas, químicas,
biológicas, psicológicas e sociais que realiza um intercâmbio com a
natureza, transformando-a e sendo transformado por ela, gerando a
cultura. O trabalho, portanto, que é elemento fundante do ser social,
vai adquirindo ao longo da história características, mantendo, no
entanto, o que lhe é imanente. (TAFFAREL, 2010, p. 20-21).

A partir disso, vemos que o trabalho como gerador de cultura assume um posto
de elevada grandeza dentro da discussão que buscamos. Para compreender quais os
fatores implicados na sociedade capitalista em que vivemos, precisamos compreender
de qual forma ocorre o processo onde o produto do trabalho se converte em mercadoria,
levando em consideração a existência de produtos materiais e não materiais. E para
produto não material, temos como exemplo a aula de um professor, que é consumida no
ato de produção. (TAFFAREL, 2010).
O trabalho pedagógico do professor se encontra diretamente condicionado às
demandas do capital, onde a educação, de forma geral, se torna um produto rentável,


440

passando a ser tratada, em diversos momentos, como simples mercadoria; assim, a


prática pedagógica do professor sofre intervenção, pois a ele é exigido ministrar os
conteúdos escolhidos pela escola, de forma “qualitativa”, para que os alunos alcancem
os resultados esperados pelos pais, e com isso a escola ganhe como lucro a permanência
destes alunos e a conquista de novos - nos remetemos aqui à escola privada também.
A prática pedagógica do professor tem sido tema de destaque nas discussões
acerca da educação, entretanto, Teles e Ibiapina (2009) apontam que “[...] a discussão
não atinge a necessidade dos professores”, tendo em vista que os docentes não se
sentem “seguros e conscientes do significado da prática pedagógica, para o
desenvolvimento do trabalho docente”. (TELES; IBIAPINA, 2009, p. 1).
Importante frisar que a prática pedagógica do professor e a Organização do
Trabalho Pedagógico (OTP) são elementos essenciais para a aprendizagem do aluno;
esta deve ser balizada através de teorias críticas que possibilitem o pleno
desenvolvimento do sujeito. Nesse sentido, assinalamos a importância de teorias
pedagógicas contra hegemônicas, uma vez que as teorias do “aprender a aprender”,
“aprender a fazer”, entre outras, estão em voga e secundarizam ou mesmo esvaziam o
conteúdo das aulas, assim como seu sentido/significado.
Teles e Ibipiana (2009, p.4) assinalam que “[...] quando o professor não tem
consciência do significado do seu trabalho, acaba por desenvolver prática pedagógica
que compromete a verdadeira finalidade do trabalho docente”, ou seja, é necessária a
consolidação de bases teórico-metodológicas comprometidas com a realidade da criança
da educação infantil.
Entendemos que a escola deve ser o espaço de transmissão do saber elaborado;
entretanto; a escola dualista apresentada para a classe burguesa e para o proletariado
coloca em voga dois modelos educacionais. Lombardi pontua, nesse sentido, que:

Como a burguesia tem mecanismos e instituições próprias para o


cuidado de seus pequenos – tomados como herdeiros da riqueza, e que
por isso, devem ser preparados para o domínio e o controle do saber e
da gestão do ter – , ao Estado compete o cuidado da massa infantil dos
que vivem do trabalho ( do proletariado para usar uma expressão que é
própria do referencial marxista). (LOMBARDI, 2013 p. 10).

A perspectiva da formação dualista não é nova; portanto, pontuamos que, para


além de suas contradições, a escola como espaço de produção e difusão do
conhecimento se apresenta como espaço contra hegemônico quando articulada à


441

perspectiva revolucionária, atrelada a uma perspectiva de educação pública, gratuita,


laica, socialmente referenciada, que deve ser desenvolvida desde a mais tenra idade.
Dessa maneira, concordamos com a ideia de Lombardi (2013, p. 13) de que “[...]
o educador precisa romper com as pedagogias escolares articuladoras do interesse da
burguesia e vincular suas concepções e sua prática a uma perspectiva revolucionária de
homem e de mundo”. Com isso não estamos apontando a escola enquanto redentora da
humanidade, ou como o instrumento com o qual revolucionaremos a sociedade, mas
entendemos que a escola, por meio de “seus conteúdos e práticas dará aos trabalhadores
as ferramentas ao entendimento da exploração, ideologias e controles dessa sociedade”
.(LOMBARDI, 2013, p. 14).
Caracterizamos aqui a importância da escola e de seus conteúdos a serviço das
mudanças das atuais bases estruturais. Ponderamos que não é qualquer conteúdo ou
qualquer teoria pedagógica, mas uma base teórico-metodológica que esteja realmente
atrelada à construção de uma sociedade sem classes, uma sociedade que almeje a
emancipação humana, ou seja, o pleno desenvolvimento espiritual, cultural, etc. do
homem.

3 A pedagogia histórico-crítica e a educação infantil

Como citado anteriormente, não é qualquer teoria pedagógica dentro da escola


que trará os elementos necessários à transformação do status quo, portanto, entendemos
a pedagogia histórico-crítica como uma rica possibilidade de compreensão e orientação
da prática pedagógica na educação infantil e demais etapas da formação humana. Tal
pedagogia é apresentada por Saviani (2013a, p. 101) como:

[...] uma teoria que procura compreender os limites da educação


vigente e, ao mesmo tempo, superá-los por meio da formulação de
princípios, métodos e procedimentos práticos ligados tanto à
organização do sistema de ensino quanto ao desenvolvimento dos
processos pedagógicos que põem em movimento a relação professor-
aluno no interior das escolas.

Esta teoria propõe uma perspectiva historicizadora dos conteúdos, ou seja,


definida pelo processo histórico (SAVIANI, 2013a), guiando-se pela categoria marxiana
de trabalho, e que possui um posicionamento e compromisso com um projeto histórico
antagônico, uma concepção de homem e de mundo:


442

Trata-se de explicitar como as mudanças das formas de produção da


existência humana foram gerando historicamente novas formas de
educação as quais, por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de
transformação do modo de produção correspondente. (SAVIANI,
2013a, p. 2).

Saviani (2013a) apresenta a PHC como alternativa para superação da pedagogia


nova e tradicional, afirmando que o ponto de partida do processo educativo é que existe
uma diferença de conhecimento entre os sujeitos (professor e aluno), referente ao
conhecimento e experiência, que condiciona os alunos a um estado sincrético de
conhecimento. “O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em
cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo
conjunto dos homens” (SAVIANI, 2013a, p. 13).
Acerca da educação infantil é possível constatar, como na educação de forma
geral, que esta ainda encontra suas teorias pedagógicas permeadas pelas teorias
construtivistas, ou seja, uma perspectiva dominante na educação, inclusive na educação
infantil; pedagogias centradas no lúdico e na “liberdade” da criança, assim apresentando
uma concepção “antiescolar”, conforme formulação de Arce (2004). Dessa maneira,
presenciamos a antiescolarização da criança pequena em espaços que deveriam
promover o ensino dos conhecimentos produzidos pela humanidade.
Na busca do aprofundamento teórico necessário, alguns reflexões a respeito do
uso da PHC na educação infantil se colocam. Apesar de termos total acordo com a
teoria em questão, cabem alguns questionamentos a respeito da possibilidade de sua
aplicação no ensino de crianças menores de 6 anos (idade referente à educação infantil);
estes questionamentos giram em torno, também, da aplicação dos cinco momentos
pedagógicos (prática inicial, problematização, instrumentalização, catarse e prática
social final). Dentre estes podemos citar: “as crianças pequenas compreenderão o
conteúdo através dessa abordagem de ensino?”; “os cinco momentos pedagógicos serão
respeitados? Ou não é possível utilizá-los na totalidade?”.
Arce (2013) aponta que as dúvidas a respeito da possibilidade da PHC na
educação infantil são muitas, tendo-se em vista que a teoria é vista como conteudista, o
que seria considerado uma tortura para as crianças; entretanto, a mesma aponta o
equívoco a respeito deste pensamento, demarcado por um discurso que prega a
desescolarização da educação infantil; assim, a autora demarca que “uma Pedagogia que
discute as possibilidades do ´ensinar´, do ´dirigir´ intencionalmente o desenvolvimento


443

infantil só poderia gerar dúvidas, desconfianças e, por vezes até sentimentos mais
intensos” (ARCE, 2013, p. 6).
Saviani (2013b, p. 26) afirma que “a primeira condição para se atuar de forma
consistente no campo da educação é conhecer, da forma mais precisa possível, o modo
como se encontra estruturada a sociedade na qual se desenvolve a prática educativa”.
Inevitável assinalarmos que a sociedade vigente se encontra sob o domínio do capital e,
portanto, as práticas pedagógicas da escola contribuem para a manutenção do status
quo, embora contenham, dialeticamente, espaços de contradição a essa ordem.
Portanto, assinalamos que, para se combater a desescolarização na educação infantil e
demais níveis de ensino, é necessária uma pedagogia que se aproprie dos conteúdos de
maneira crítica e contribua com a formação omnilateral da criança.
Nesse sentido, Saviani (2013b, p. 26) sustenta que a pedagogia histórico-crítica
“se posiciona claramente a favor dos interesses dos trabalhadores, isto é, da classe
fundamental dominada na sociedade capitalista. Daí, seu caráter de pedagogia contra
hegemônica inserindo-se na luta pela transformação da sociedade atual”.
Quanto à sua inserção na educação infantil e sobre os questionamentos trazidos
anteriormente, Fleer apud Arce (2013, p. 6) caracteriza o acesso à “educação infantil de
qualidade como um grande diferencial para a escolarização posterior das crianças”. E
Arce (2013) vai caracterizar esta qualidade com um trabalho pedagógico que contribua
para a formação de conceitos científicos, à luz da Teoria Histórico-Cultural aqui
balizada pela Pedagogia Histórico-Crítica.
Nesse sentido, compreendemos que a Pedagogia Histórico-Crítica aplicada à
educação infantil contribui com o desenvolvimento da criança, uma vez que consolida
conceitos científicos e estimula a criança intelectualmente, permitindo o trato
diferenciado com o conhecimento, possibilitando o entendimento de conteúdos de
diversas esferas, sejam estas sociais, econômicas, culturais ou outras. Assim, torna-se
fundamental que, no ensino da educação infantil, o professor estimule a criança a
formar conceitos e confrontar o conhecimento (ARCE, 2013); dessa forma podemos
contar com uma formação integral que possibilite à criança integrar-se às produções
mais ricas já realizadas pela humanidade.


444

Algumas considerações finais

Em nosso estudo inicial acerca da inserção da pedagogia histórico-crítica na


educação infantil, compreendemos a importância de uma pedagogia concreta
(SAVIANI; DUARTE, 2012) para o trato com o conhecimento em todas as etapas do
desenvolvimento humano, em suas máximas potencialidades.
Para tanto, elegemos a PHC enquanto uma concepção da educação que busca
compreender a realidade de forma crítica, na perspectiva da totalidade, que, através do
movimento dialético, busca inserir-se no real concreto e superar as contradições.
Ratificamos a importância dessa teoria pedagógica ao orientar-se pela garantia do
acesso ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade. E demarcamos, por
fim, que apenas o acesso ao conhecimento elaborado, em suas formas mais ricas, é
capaz de questionar e propor a transformação das bases societais em voga, tornando
inegável a importância desta teoria contra-hegemônica no ensino da educação infantil.

REFERÊNCIAS

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pedagógicas inclusivas. Parnaíba-PI: Sieart, 2009. p. 1-190. (Vol. 1).


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

DOM QUIXOTE NA SALA DE AULA: A LEITURA DE UM CLÁSSICO À LUZ


DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Thuany Ramos Lopes Zambon (PMS)1

Resumo: Este artigo busca reafirmar a importância do ensino e do estudo da literatura clássica
na sala de aula. Tendo como referencial teórico os pressupostos da pedagogia histórico-crítica,
foi elaborado e desenvolvido uma plano de trabalho envolvendo a leitura do clássico Dom
Quixote para uma turma do segundo ano do ensino fundamental do município de Serra. Este
trabalho apresenta os momentos desse plano de trabalho assim como os resultados que foram
obtidos. Esclarece também, de maneira geral, o que prega a pedagogia histórico-crítica, o que
ela considera como clássico e o porquê deles serem tão importantes para a formação humana.

Palavras-chave: Dom Quixote. Pedagogia histórico-crítica. Literatura. Clássicos.

Introdução

Esse artigo objetiva apresentar um plano de trabalho desenvolvido com uma


turma do segundo ano do ensino fundamental em uma escola pública do município de
Serra. O plano de trabalho foi elaborado de acordo com os pressupostos da pedagogia
histórico-crítica e buscou atuar intencionalmente no desenvolvimento psíquico do
aluno.
Desse modo, esse artigo apresenta, de maneira geral, os pressupostos da
pedagogia histórico-crítica, em seguida entra no campo da literatura, reafirmando o
ensino da arte e dos clássicos na escola.
Também faz-se uma breve apresentação do livro escolhido para o plano de
trabalho, Dom Quixote, de Miguel de Cervantes e, antes de explanar como se
desenvolveu esse trabalho, é citado de maneira bem resumida os estudos de Martins
(2011) a respeito das funções psicológicas, pois elas são fundamentais para
compreender como funciona o psiquismo humano e como os professores podem atuar
em seu desenvolvimento. Por fim, é elucidado o plano de trabalho e apresentado os
resultados obtidos em cada momento.

1
Thuany Ramos Lopes Zambon, Graduada em pedagogia pela Universidade Federal do Espírito Santo
(UFES), Professora na Prefeitura Municipal de Serra (PMS), Espírito Santo, Brasil. E-mail:
thuanyrlopes@gmail.com


447

1 A pedagogia histórico-crítica

A pedagogia histórico-crítica se configura como uma teoria crítica que busca


lutar contra a seletividade do ensino, prezando por uma educação de qualidade para
todos. No final da década de 1970, Dermeval Saviani iniciou suas reflexões acerca das
novas possibilidades para o campo educacional e que viria a se constituir em uma
pedagogia revolucionária.
Para Saviani (2008) o propósito de uma pedagogia revolucionária consiste na
igualdade essencial entre os homens. Ele defende uma profunda reforma na escola
partindo de seu interior, em que sua preocupação seria com os conteúdos e com os
procedimentos que garantissem que eles fossem realmente assimilados.
Para o autor, os conteúdos são fundamentais porque “[...] sem conteúdos
relevantes, conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela transforma-se
num arremedo, ela transforma-se numa farsa”. (SAVIANI, 2008, p. 45).
Para ele, a prioridade de conteúdos é a única forma de se lutar contra a farsa do
ensino,

[...] justamente porque o domínio da cultura constitui instrumento


indispensável para a participação política de massas. Se os membros
das camadas populares não dominam os conteúdos culturais, eles não
podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra
os dominadores, que se servem exatamente desses conteúdos culturais
para legitimar e consolidar a sua dominação. [...] O dominado não se
liberta se ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam.
Então, dominar o que os dominantes dominam é condição de
libertação. (SAVIANI, 2008, p. 45).

A pedagogia revolucionária compreende seus fatores condicionantes e se


reconhece como “[...] elemento secundário e determinante”; todavia, ela constitui-se em
um instrumento importante e decisivo no processo de transformação social, tendo em
vista que mesmo sendo elemento determinado, “[...] não deixa de influenciar o elemento
determinante”. (SAVIANI, 2008, p. 52-53).
A essa pedagogia revolucionária, Dermeval Saviani nomeou, em 1984, de
pedagogia histórico-crítica.

Na busca da terminologia adequada, concluí que a expressão


histórico-crítica traduzia de modo pertinente o que estava sendo
pensado. Porque exatamente o problema das teorias crítico-
reprodutivistas era a falta de enraizamento histórico, isto é, a


448

apreensão do movimento histórico que se desenvolve dialeticamente


em suas contradições. A questão em causa era exatamente dar conta
desse movimento e ver como a pedagogia se inseria no processo da
sociedade e de suas transformações. Então, a expressão histórico-
crítica, de certa forma, contrapunha-se a crítico-reprodutivista. É
crítica, como esta, mas, diferentemente dela, não é reprodutivista, mas
enraizada na história. Foi assim que surgiu a denominação.
(SAVIANI, 2012, p. 119).

A pedagogia histórico-crítica concentra seus esforços na transmissão dos


elementos culturais em suas formas mais desenvolvidas e para isso, “[...] a atividade
educativa deve ser diretiva, intencional, planejada segundo fins desenvolvimentistas do
ser humano em suas máximas possibilidades, dadas pela apropriação da cultura”, pois
“Ao se apropriar daquilo que a humanidade já produziu histórica e coletivamente e que
se coloca como necessidade aos seres humanos, o indivíduo objetiva conhecimentos”.
(MARSIGLIA, 2013, p. 232-234).
Considerando o empenho da pedagogia histórico-crítica em resgatar a função
principal da escola, a questão que se estabelece é: quais são os critérios de seleção dos
conhecimentos a serem transmitidos?
De acordo com Saviani (2012, p. 13), o clássico constitui-se num critério útil
para a seleção dos conhecimentos a serem transmitidos, pois “[...] o clássico é aquilo
que se firmou como fundamental, como essencial”. Nesse sentido, quando se busca a
formação dos indivíduos na direção da constituição da individualidade livre e universal,
a transmissão do conhecimento científico, artístico e filosófico pela escola se torna
muito importante.

Ora, a escola precisa ir além do cotidiano das pessoas e a forma de ela


fazer isso é por meio da transmissão das formas mais desenvolvidas e
ricas do conhecimento até aqui produzido pela humanidade.
(DUARTE, 2012, p. 155).

Entre as formas mais desenvolvidas e ricas do conhecimento encontra-se a


literatura clássica, erudita, que buscaremos, a partir de agora, compreender sua
relevância na formação do indivíduo e o porquê o seu estudo se faz necessário dentro
dos muros da escola.


449

2 A importância do ensino de literatura na escola

Sabemos que a grande obra poética revela-nos novas variações de


sensibilidade que, ao serem lidas, poderão ser apropriadas e
incorporadas por outrem. Ao concretizá-las por meio da língua,
patrimônio cultural da humanidade, o poeta ou prosador a estará
desenvolvendo e a enriquecendo em sua maior expressividade.
(FERREIRA, 2012, p. 107).

De acordo com Ferreira (2012), a arte literária consiste em uma complexa


organização de elementos linguísticos que extrapola o cotidiano. A autora explica que a
literatura clássica utiliza recursos conotativos, plurissignificativos e possibilita que o
leitor chegue a um nível de abstração que vai além do cotidiano.
É válido lembrar, como ressalta a autora, que não é apenas o tempo que vai
caracterizar determinada obra literária, ou obra de arte, como clássica. Sim, o clássico é
aquilo que resistiu ao tempo e nos serve de modelo, mas não significa reconhecer
determinada obra como clássica apenas pelo tempo de sua existência. A obra clássica
perpassa o tempo por seu caráter humanizador, por influenciar no desenvolvimento do
gênero humano.
Há de se ter o cuidado de não atribuir grande valor a determinada obra pelo
sucesso que ela faz em seu lançamento. Muitas histórias causam grande alvoroço
quando são lançadas, mas logo em seguida caem no esquecimento. Isso é um sinal de
que elas não eram tão fundamentais ao ponto de serem passadas para as futuras
gerações.
Contudo, a história nos mostra que muitas obras de grande relevância para o
gênero humano também foram perdidas, muitas vezes por não serem compreendidas em
seu tempo. Por este mesmo motivo, grandes obras da humanidade também só foram
reconhecidas muitos anos após sua criação.
A literatura clássica eleva o leitor para além de sua cultura, possibilitando
desenvolver diferentes sensações e perceber o mundo pelos olhos do outro. A literatura
clássica permite que o leitor viaje no tempo e consiga compreender questões de
diferentes segmentos por meio de sua bagagem histórica e cultural.
Em sua defesa pelo ensino de literatura clássica na escola, Ferreira (2012) utiliza
como exemplo a história do grande escritor brasileiro, Machado de Assis. Sintetizando
o exemplo citado por Ferreira, Machado de Assis teve uma infância pobre, de saúde
debilitada e além de gago era epilético. Mesmo com essas dificuldades ele se tornou um


450

renomado escritor cujas obras são consideradas clássicas não só na literatura brasileira,
mas também mundial.
Entretanto, a questão que se estabelece é: como ele conseguiu chegar a tamanho
sucesso? Muitas pessoas justificariam, segundo Ferreira (2012), afirmando que foi seu
talento, seu dom, ou mesmo entrariam na questão espiritual. Todavia, o que sucedeu na
história de Machado de Assis foi que ele conheceu em sua juventude uma mulher
francesa e essa mulher começou a lhe dar aulas de francês. Após dominar o idioma, ele
aprendeu inglês e futuramente aprendeu o alemão. Nesse percurso, Machado de Assis
teve contato com grandes obras da literatura mundial, o que serviu de modelo para os
seus trabalhos.
Ferreira (2012) utilizou este exemplo para problematizar a seguinte questão: e
se essa mulher francesa não entrasse na vida de Machado de Assis? Bem,
provavelmente teríamos perdido a chance de conhecer um grande escritor. Isso porque
ele teve acesso às obras clássicas por meio dessa mulher, e não na escola.
A defesa do ensino de literatura clássica na escola se justifica porque não é todo
aluno que terá a oportunidade de estudar e conhecer os clássicos literários fora da sala
de aula. Por isso, é preciso que haja um mediador que possibilite esse acesso, que
apresente esse novo mundo ao aluno. O aluno não descobrirá sozinho as grandes obras
disponíveis no acervo da humanidade, cabe ao professor desempenhar essa função.
Em busca de uma prática pedagógica coerente com os pressupostos da
pedagogia histórico-crítica e tendo os clássicos como referência para o critério de
seleção de conteúdos, foi elaborado um plano de trabalho para ser desenvolvido em uma
turma do segundo ano do ensino fundamental, de uma escola municipal de Serra, que
objetivou possibilitar o acesso dos alunos à clássica história da literatura mundial: Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes. O desenvolvimento desse plano de trabalho também
possibilitou trabalhar outros aspectos fundamentais para a formação humana, como a
concentração, a imaginação, a criatividade, o controle do comportamento e a memória,
pois Dom Quixote foi apresentado à turma por meio da leitura realizada pela professora
e, com isso, esses elementos foram fundamentais para que a leitura e a escuta pudessem
se comunicar sem nenhum ruído entre elas.


451

2 As aventuras de Dom Quixote de la Mancha

Dom Quixote é um clássico de Miguel de Cervantes. Tendo sua primeira edição


publicada no ano de 1605, a história do nobre cavaleiro andante foi traduzida e adaptada
em muitas línguas. Essa história também foi, e ainda tem sido, representada nas mais
diversas formas de expressão artística, como o teatro, a dança, o cinema, a música, o
desenho animado, as histórias em quadrinhos, as artes plásticas, entre outras.
A título de exemplo da grandiosidade dessa obra, grandes artistas das artes
plásticas se inspiraram em Dom Quixote, como Picasso, Dalí e Portinari. As aventuras e
desventuras do nobre cavaleiro e seu fiel escudeiro encantam crianças, jovens e adultos.

Dom Quixote é um livro de cavalaria, [...] na verdade, uma paródia


das antigas histórias de cavaleiros andantes. Dom Quixote não é um
herói empolgante, que consegue vencer implacavelmente seus
inimigos, fazendo valer sua própria justiça. Muito pelo contrário, por
isso às vezes é chamado de anti-herói. Quixote tem como fortes
características a bondade e a nobreza, mas o idealismo do cavaleiro
esbarra na fronteira da loucura, já que nem cavaleiro de fato ele é! É
um nobre decadente, leitor alucinado de livros de cavalaria, que
resolve, de uma hora pra outra, fazer justiça com a velha lança
abandonada pelo seu bisavô. [...] Todos os acontecimentos em que
Dom Quixote se envolve têm um lado real e outro imaginário, sendo o
engano a base das ações do cavaleiro, que confunde moinhos com
gigantes, monges beneditinos com feiticeiros diabólicos, rebanhos de
carneiros com exércitos inimigos. Mas, apesar de sempre cair no
ridículo, o leitor vai tomando carinho por ele ao perceber que tudo o
que faz visa ao bem e à justiça. (CHIANCA, 2005, p. 104).

E de fato o leitor é cativado por essa história e se identifica com o idealismo de


Dom Quixote, assim como se identifica com o apego aos valores materiais representado
pelo seu fiel escudeiro, Sancho Pança. Essas duas figuras se complementam e refletem
de uma maneira cômica e sutil a complexidade do ser humano.
Essa obra é um exemplo de clássico literário que perpassou os séculos, mas seus
elementos centrais continuam atuais. Essa história merece ser contada às crianças, pois
além de seu conteúdo ser humanizador e nos transportar para o imaginário de Dom
Quixote nos tempos medievais, ela possui uma leveza e um teor cômico que encanta o
leitor e desenvolve a vontade de se aprofundar cada vez mais nesse universo literário.


452

3 Dom Quixote na sala de aula

De acordo com Ferreira (2012, p. 125), “[...] a literatura pode contribuir para a
emancipação humana”. Desse modo, o plano de trabalho elaborado e desenvolvido
possui uma intencionalidade pedagógica e buscou atuar diretamente no
desenvolvimento psíquico dos alunos. Entretanto, antes de explanar as etapas do plano
de trabalho, cabe mencionar em breves linhas um pouco sobre o psiquismo humano, que
foi citado no parágrafo anterior.
A formação do psiquismo humano se dá por meio da atividade social, que atribui
aos instrumentos o papel de mediador entre o sujeito e o objeto de sua realidade. Não se
pode desconsiderar a parte biológica do psiquismo, visto que também é material, mas
ele tem como base principal para seu desenvolvimento a interação entre o sujeito e o
mundo. (FACCI, 2004).
Para Martins (2011, p. 38, grifo da autora), devemos entender por psiquismo:

Outra coisa senão unidade material e ideal expressa na subjetivação do


objetivo, isto é, na construção da imagem subjetiva do mundo
objetivo. É material na medida em que é estrutura orgânica e é ideal
posto ser o reflexo da realidade, a ideia que a representa
subjetivamente.

O psiquismo é, portanto, uma unidade que possui um complexo sistema


funcional composto por funções psicológicas, sendo elas sensação, percepção, atenção,
memória, linguagem, pensamento, imaginação e emoções/sentimentos.
Pela análise realizada por Martins (2011), podemos compreender que a sensação
é a função mais elementar, a qual cabe a captação de estímulos que visa a construção de
uma imagem de seus componentes. À percepção cumpre unificar a imagem do objeto,
sendo ela desenvolvida conforme os reflexos incondicionados dão lugar aos
condicionados e, futuramente, às aprendizagens sociais.
A atenção se desenvolve diante da exposição do indivíduo a uma imensa
quantidade de percepções, pois é por meio dela que ele consegue organizar seu
comportamento objetivando um fim específico. O desenvolvimento da memória resulta
na formação da imagem do que foi sentido, percebido e atentado no passado, com isso,
sua função é a fixação, armazenamento e evocação das experiências.
Com o desenvolvimento da linguagem, o homem superou os limites da
representação sensorial imediata da realidade e passou a representá-la por meio das


453

palavras. Seu principal objetivo é a comunicação. O pensamento resulta da superação


ocasionada pelo desenvolvimento da linguagem e, com ele, surge a construção de
ideias, que são os conteúdos do próprio pensamento. Sua principal função é o
conhecimento e a regulação do comportamento.
A imaginação é a construção antecipada da imagem do produto a ser alcançado
pela atividade. Ela colabora para a transformação criativa da realidade. As emoções
possuem um caráter circunstancial e podem atender motivações dadas por qualidades
isoladas dos objetos. Já os sentimentos possuem natureza histórico-social, são
desenvolvidos por influência da cultura e na dependência de objetos e fenômenos em
conjunto. Eles atuam nas relações entre realidade presente, experiências passadas e
expectativas futuras.
Ao finalizar sua análise sobre as funções psicológicas (aqui apenas citadas),
Martins (2011, p. 52, grifo da autora) assinala que são essas funções que, “[...]
umbilicalmente unidas, caracterizam o psiquismo humano e se colocam a serviço da
inteligibilidade do real.”
Após essa breve citação sobre as funções psicológicas, que nos ajuda a
compreender como se dá e se desenvolve o psiquismo humano, será apresentado como
foi desenvolvido o plano de trabalho.
O primeiro momento foi constituído da leitura do livro, um capítulo por dia ao
início de cada aula. O exemplar escolhido foi da editora DCL, adaptado por Leonardo
Chianca, porque possui uma adaptação para o público mais jovem, mas mantém uma
linguagem culta, preservando algumas palavras que remetem à época em que a história
foi criada.
Esse exemplar tem 22 (vinte e dois) capítulos e 100 (cem) páginas, o que
possibilitou que a história fosse concluída no período de um mês.
A leitura foi realizada de maneira fiel ao que estava escrito, mesmo quando
haviam palavras ou expressões que não eram conhecidas pelos alunos, o que não
impediu que eles compreendessem a história, pois na maioria das vezes eles analisavam
o contexto e compreendiam o sentido da frase.
Entretanto, havia o combinado para que toda vez que escutassem uma palavra ou
um termo desconhecido, deveriam anotar no caderno para buscar posteriormente o seu
significado.
Antes de iniciar esse trabalho, houve uma conversa com a turma para explicar
que esse também era um momento de aula e de atividade. Isso porque eles já estavam


454

condicionados a associar aula e atividades apenas aos momentos em que estão copiando
algo ou resolvendo exercícios.
Eles compreenderam então que a atividade em que estariam participando seria a
atividade de escuta, e nesse momento seria necessário exercitar a imaginação, a
criatividade, a concentração e principalmente a memória, pois como a leitura era diária,
era preciso recordar o episódio ocorrido no dia anterior para dar continuidade à história.
Com isso, eles foram avaliados diariamente, por meio de observações e
indagações sobre a história. A cada aula, antes de iniciar a leitura do capítulo, os alunos
deveriam recontar o que havia acontecido no capítulo anterior. Desse modo era possível
verificar a atenção que eles davam à história, assim como fazê-los exercitar a oralidade
para contar uma história com coerência e sequência lógica.
O segundo momento do plano de trabalho foi passar um filme de animação, que
contasse as aventuras de Dom Quixote. Esse momento pode ser denominado de
frustração. Os alunos estavam empolgados para assistir ao filme, querendo descobrir se
as imagens criadas por eles em sua imaginação iriam coincidir com as figuras do vídeo,
mas ficaram decepcionados ao perceberem que muitas cenas que estavam ansiosos para
ver, não estavam presentes na animação. Assim, realizaram a comparação entre a
história do livro e a história do filme e chegaram à conclusão de que o filme deixou
muito a desejar.
O terceiro momento se constituiu em uma pesquisa para conhecer um pouco
sobre o autor de Dom Quixote, Miguel de Cervantes, e com isso foram descobertas
algumas curiosidades interessantes, como a história de que foi soldado de guerra e que
foi, inclusive, prisioneiro durante cinco anos.
Saber dessas informações deixaram os alunos ainda mais interessados. Muitos
perguntaram se Dom Quixote realmente existiu ou se ele era o próprio Miguel de
Cervantes. A figura do cavaleiro andante impressionou e encantou as crianças, que
queriam torná-lo real a todo momento.
O quarto e último momento desse plano de trabalho foi a confecção de um
dicionário ilustrado com palavras retiradas do exemplar lido. Após o fim da história, as
palavras que eles anotavam para pesquisar seus significados ao final de cada capítulo
foram compartilhadas e reunidas para a criação de um dicionário ilustrado inspirado em
Dom Quixote. Dessa maneira, cada página possui uma palavra, com seu significado e
uma ilustração feita por uma criança (cada criança ficou responsável por ilustrar uma
palavra).


455

Assim, o dicionário contém algumas palavras como escudeiro, albergue, castelão


e arcabuz. Esta última palavra não estava na história de Dom Quixote, mas na história
de Miguel de Cervantes, ao ser mencionada como o modelo da arma que ele levou um
tiro durante a guerra, fazendo-o perder sua mão esquerda.

Conclusão

A respeito da educação, Saviani (2008, p. 58) afirma que ela é uma atividade que
possibilita “ [...] uma desigualdade no ponto de partida e uma igualdade no ponto de
chegada”. Essa afirmação consegue explicar a relação que existiu entre a professora, os
alunos e a história, visto que antes de iniciar a leitura para a turma, a história era
considerada legal e interessante, porém, ao perceber o quanto essa história tocou os
alunos e o quanto eles se emocionaram com o seu final, a relação com essa obra atingiu
um patamar mais elevado, pois ela transformou os alunos e os fez aprender a escutar
com paciência e ter mais vontade de ouvir do que falar.

A arte representa a vida em suas mais intensas formas de manifestação


e faz isso construindo engenhosamente um mundo inesgotável e de
uma intensidade quase infinita. Ao fazer isso a arte revela a essência
dinâmica, transformativa e inesgotável da própria vida. (FERREIRA,
2012, p. 136).

Referências

CHIANCA, L. Dom Quixote / Miguel de Cervantes Saavedra; adaptador Leonardo Chianca;


ilustrador Cárcamo. – 1. ed. - São Paulo: Editora DCL, 2005.

DUARTE, N. Luta de classes, educação e revolução. In: SAVIANI, D. e DUARTE, N.


Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação escolar. Campinas, SP: Autores
Associados, 2012.

FACCI, M. G. D. A periodização do desenvolvimento psicológico individual na perspectiva


de Leontiev, Elkonin e Vigotski. Cad. Cedes, Campinas, Vol. 24, n. 62, p. 64-81, abril 2004.
Disponível em: < http://www.cedes.unicamp.br/publicacoes/edicao/268 >. Acessado em: 04 de
outubro de 2016.

FERREIRA, N. B. de P. A catarse estética e a pedagogia histórico-crítica: contribuições para


o ensino de Literatura. Araraquara (SP). Tese (Doutorado em Educação Escolar). Universidade
Estadual paulista. Araraquara, SP: 2012.


456

MARSIGLIA, A. C. G. Contribuições sobre os fundamentos teóricos da prática pedagógica


histórico-crítica. In: MARSIGLIA, A. C. G. (Org.). Infância e pedagogia histórico-crítica.
Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

MARTINS, L. M. Pedagogia histórico-crítica e psicologia histórico-cultural. In: MARSIGLIA,


A. C. G. (Org.). Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas, SP: Autores Associados,
2011. p. 43-57.

SAVIANI, D. Escola e democracia. Campinas, SP: Autores Associados, 2008.


SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. Campinas, SP: Autores
Associados, 2012.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

HISTÓRIAS EM QUADRINHOS DO UNIVERSO MACANUDO: UM


CAMINHO PARA A FORMAÇÃO DE LEITORES CRÍTICOS

Ana Carolina Langoni (IFES)1


Priscila de Souza Chisté (IFES)2

Resumo: O artigo apresenta uma pesquisa do Mestrado Profissional em Letras, a qual objetivou
compreender como a utilização sistematizada dos quadrinhos do Universo Macanudo pode
contribuir com a formação do leitor crítico. A metodologia utilizada foi a pesquisa colaborativa,
pois contou com a participação dos envolvidos para avaliar e repensar as propostas realizadas. A
proposta foi desenvolvida a partir da Psicologia Histórico-Cultural e da Pedagogia Histórico-
Crítica. O referencial relacionado à formação do leitor crítico dialoga com os conceitos
bakhtinianos de linguagem, dialogismo e responsividade. Parte do pressuposto de que
quadrinhos tendem a contribuir com a formação leitora dos alunos, por serem atrativos e por
explorarem jogos de linguagem capazes de aguçar o espírito crítico, e conclui que eles podem
formar leitores críticos, desde que haja adequação temática e formal em seu uso.

Palavras-chave: formação de leitores; histórias em quadrinhos; ensino de língua portuguesa.

Introdução

O artigo em tela apresenta uma pesquisa de mestrado do Programa de Pós-
Graduação em Letras do Instituto Federal do Espírito Santo (Profletras), a qual propõe a
utilização sistematizada das Histórias em Quadrinhos (HQs) do Universo Macanudo
como modo de contribuir com a formação crítica do leitor na disciplina de Língua
Portuguesa.
A partir de revisão de literatura, consideramos que a formação de leitores tem
sido uma das maiores preocupações dos professores de Língua Portuguesa, pois as
dificuldades em leitura afetam não só o ensino/aprendizagem da língua materna, como
também o de outras disciplinas. Os dados da pesquisa Retratos da leitura no Brasil 3


1
Ana Carolina Langoni, Instituto Federal do Espírito Santo, ES, Brasil. E-mail:
carollangoni@hotmail.com
2
Priscila de Souza Chisté, doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Espírito Santo, Brasil.
E-mail: pchiste@ifes.edu.br


458

(FAILLA, 2012) revelam que a leitura no país não tem sido satisfatória e que ela vai
diminuindo com o passar do tempo, o que evidencia a necessidade de pensar em novas
estratégias para formar leitores.
Nota-se que existe uma ausência de informações que orientem uma prática que
produza sentido para a leitura e, em consequência disso, “o ensino da leitura parece ser
realizado ao acaso, fazendo com que os professores ajam através do ensaio-e-erro
quando da abordagem de materiais escritos junto a seus alunos” (SILVA, 2011, p. 37).
Até mesmo os guias curriculares são superficiais e não contribuem com essa orientação.
Dessa forma, muitas vezes a escola não forma leitores críticos, aqueles que se
posicionam de forma ativa diante do que leem após uma reflexão crítica.
Observamos no cotidiano escolar que esse mesmo aluno que diz que não gosta
de ler na escola pratica a leitura constantemente no uso de redes sociais, cada vez mais
presentes na vida dos adolescentes. Percebe-se, então, que uma proposição seria
encontrar formas de despertar nesse aluno o interesse pela leitura também na escola e
encontrar formas de contribuir com a formação dos alunos como leitores críticos, que
têm uma postura ativa diante da leitura, refletindo e se posicionando com relação ao que
leem.
As HQs apresentam-se como alternativa viável nesse sentido, uma vez que
apresentam linguagem simples e acessível e são atrativas para os alunos, por unirem
linguagem verbal e visual na abordagem de situações corriqueiras e cotidianas. Esses
fatores, segundo Mendonça (2010), contribuem para despertar o interesse dos leitores e
melhorar a fluência da leitura.
Ainda existe um certo preconceito com relação ao uso dos quadrinhos no ensino
e muitos os consideram uma leitura de baixa qualidade, por entenderem que é fácil ler
quadrinhos. Entretanto, é preciso observar que, como todas as formas de linguagem, há
aqueles que não levam à crítica e à reflexão, mas também há diversas obras muito ricas,
que exigem conhecimento de mundo do leitor e domínio de algumas estratégias nada
fáceis de leitura.
De acordo com Vergueiro (2014), o uso das histórias em quadrinhos faz com
que os alunos estejam propensos a participar mais ativamente das atividades propostas,
por se tratar de uma leitura com a qual eles já possuem familiaridade. É difícil encontrar
um aluno que não goste de quadrinhos, porque geralmente são as primeiras formas de
linguagem com as quais os alunos têm contato nas séries iniciais. Muito se engana
também aquele que pensa que eles só servem para séries iniciais. Há quadrinhos para


459

atender a todas as faixas etárias, tanto com relação à temática quanto com relação à
linguagem. Cabe ao professor selecionar aqueles adequados ao que pretende trabalhar e
pensar em formas de explorá-los com os alunos
Ao pensar nas HQs mais adequadas para trabalhar a formação do leitor crítico,
deparamo-nos com os quadrinhos do argentino Liniers, autor das tiras Macanudo. Suas
tiras constituem o “Universo Macanudo”, assim chamado porque ele utiliza personagens
variados e foi criando galáxias de personagens dentro desse universo. Cada galáxia é
utilizada para expressar um estado de espírito. Esse Universo será apresentado de forma
mais detalhada na seção a seguir.

1 O Universo Macanudo

Macanudo é uma palavra em espanhol que significa “extraordinário”,


“estupendo”, “magnífico”. As tiras Macanudo são publicadas no jornal La Nación, da
Argentina, desde 2001. A tira foi batizada com esse nome porque, na época em que
começou a ser publicada, a Argentina passava por uma grande crise econômica e
encantava ao autor a ideia de ver uma palavra de alento impressa todos os dias no maior
jornal do país.
Em seus quadrinhos, Liniers utiliza personagens diversos e aborda variados
temas, como cotidiano, relações humanas e amor. Também critica a política, a mídia e o
consumismo e aborda problemas sociais. Algumas de suas tiras são apenas para divertir,
mas notamos em algumas um lado crítico e reflexivo, principalmente no que se refere à
indústria cultural (termo que explanaremos na próxima seção) e ao poder que ela exerce
sobre as pessoas.
Além da temática, nossa escolha pelas tiras Macanudo para desenvolver
atividades que contribuam com a formação de leitores críticos deve-se também ao fato
de serem criativas e não seguirem um padrão, como é possível observar na tira a seguir
(Figura 1), em que o formato triangular dos quadrinhos é o responsável por seu humor,
pois, devido ao espaço que o artista utilizou para apresentar o texto, é possível escrever
poucas palavras, o que realça a importância que Liniers dá à relação forma e conteúdo
de suas produções. Assim, consideramos que o caráter inovador, criativo e irreverente
de produção das tiras Macanudo, tanto relacionado à forma quanto ao conteúdo, nos
fizeram optar por esse autor e por esses quadrinhos.


460

Figura 1 - Exemplo de tira criativa do autor


Fonte: Liniers, Macanudo, n.5. Trad. Claudio R. Martini. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2012, p. 64.

Dentre os oito livros publicados com tiras Macanudo em português,


selecionamos aquelas capazes de despertar nos alunos uma atitude responsiva ativa, de
os fazerem pensar sobre sua prática social, o momento histórico contraditório que estão
inseridos, e se posicionar sobre temas como a influência da mídia, a intolerância
religiosa e política, a corrupção, a política etc., relacionando essas tirinhas com outros
textos, de diferentes gêneros, como notícia, poesia, cartum, propaganda, música etc.
Apresentaremos na próxima seção o aporte teórico relacionado às Histórias em
Quadrinhos, compreendendo sua relação com a indústria cultural e com o ensino.

2 As histórias em quadrinhos

A Arte Sequencial faz parte das linguagens contemporâneas da Arte, assim


como as charges, os cartuns, as tiras, as histórias em quadrinhos, entre outros gêneros
híbridos oriundos desses. Para trabalhar com quadrinhos, é preciso compreender o papel
que cada linguagem (visual e verbal) ocupa na HQ. A compreensão da linguagem dos
quadrinhos é indispensável para que o aluno interprete os múltiplos discursos neles
presentes e para que o professor obtenha melhores resultados na sua utilização. Além
disso, é preciso entender a origem e a ideologia que permeia as HQs. (VERGUEIRO,
2014).
Grande parte das críticas ao uso das HQs no ensino deve-se ao fato de serem
produtos da indústria cultural. Esse conceito foi criado por Horkheimer e Adorno para
substituir a expressão “cultura de massas” e se referir à cultura produzida em larga
escala para entreter as massas, buscando uma padronização e reforçando os valores da
classe dominante e do sistema capitalista. O objetivo é que a massa permaneça alienada,


461

internalizando e seguindo esses valores sem questioná-los, e que não reflita sobre sua
condição de explorada por esse sistema. Essa indústria atende à demanda das massas ao
mesmo tempo que impõe padrões de consumo, de comportamento e até mesmo
políticos.
As histórias em quadrinhos surgiram como produto da indústria cultural,
seguindo as características dessa indústria e tendo, por isso, um caráter universal, que
poderia ser reconhecido e assimilado por qualquer leitor, de qualquer região. Assim
como os demais produtos da indústria cultural, a linguagem dos quadrinhos deve ser
simples, para ser de fácil decodificação. A influência da indústria cultural nos
quadrinhos faz com que elas reforcem os valores dominantes e não veiculem críticas ao
sistema.
Compreendemos que os quadrinhos surgiram como produto dessa indústria, para
entreterem os leitores e serem consumidos em massa, mas observamos que muitos
deles, apesar de serem “produto” dessa indústria, vão além desse objetivo e apresentam
temas e formas que levam à reflexão crítica sobre a realidade, subvertendo a sua origem.
Sendo assim, eles podem ser usados para esse fim no contexto educacional.
É possível perceber que as HQs,

[...] assim como qualquer forma de comunicação humana, têm servido


ao longo da história tanto à reprodução da ideologia das classes
dominantes quanto à sua denúncia, o que significa dizer que elas em
si, não são boas nem más, mas sim o uso que fazemos delas (SILVA,
2011, p. 69).

Vergueiro (2014) aponta que inicialmente as HQs eram pouco utilizadas no


ensino e apenas ilustravam conteúdos. Essa utilização teve bons resultados, e os
quadrinhos passaram a ser incluídos com maior frequência em materiais didáticos.
O autor enumera algumas razões para o uso dos quadrinhos no ensino: os
estudantes gostam de ler quadrinhos; palavras e imagens, juntas, ampliam a
compreensão; existe um nível alto de informação nos quadrinhos; os recursos variados
dos quadrinhos possibilitam maior familiaridade com o gênero; o enriquecimento do
vocabulário; o estímulo ao exercício do pensamento para compreender o que não está
expresso; o caráter globalizador da temática dos quadrinhos; e o fato de eles poderem
ser usados em qualquer série, com qualquer tema. Além dessas razões, o autor inclui
duas outras muito importantes: a acessibilidade dos quadrinhos e seu baixo custo.


462

Santos Neto (2011) também destaca algumas vantagens no trabalho com os


quadrinhos: eles podem contribuir no desenvolvimento da sensibilidade (que advém da
experiência de sentidos e sensibilidades) e ampliar a capacidade de verbalizar e
interpretar o mundo; possuem uma linguagem rica, com inúmeras possibilidades;
também trabalham a interpretação da imagem, auxiliando no desenvolvimento da
capacidade de interpretação dos alunos; alguns ajudam a pensar a realidade de uma
forma diferente, mais crítica.
De certo que as HQs não devem ser o único gênero utilizado no ensino; elas se
constituem em mais uma forma de linguagem disponível, que está presente em quase
todas as áreas no processo de ensino/aprendizagem de conteúdos e na discussão de
temas específicos. Por esses motivos, optamos por utilizá-las na formação do leitor
crítico, tema que discutiremos na seção a seguir.

3 A formação do leitor crítico

No contato com o interlocutor, o texto adquire outro significado, pois muda o


contexto e muda também a consciência; o discurso deixa de pertencer ao locutor e passa
a ser visto pela consciência do interlocutor, que é constituída de outros discursos e
outras vozes. A compreensão é sempre dialógica; os sentidos são constituídos na troca,
no diálogo entre duas consciências. “Em toda parte temos o texto virtual ou real e a
compreensão que ele requer. O estudo torna-se interrogação e troca, ou seja, diálogo”.
(BAKHTIN, 1997, p. 341).
Dessa forma, para formar leitores ativos, que assumam essa postura dialógica
com o texto, o professor precisa compreender essa relação de dialogismo e levar em
consideração que a compreensão de determinado texto para o aluno não será
necessariamente igual à sua, pois está diretamente ligada ao contexto em que o aluno se
insere, às suas vivências, às suas leituras e ao seu conhecimento de mundo. Contudo, é
preciso considerar também que existe um limite para tal leitura subjetiva, pois a
realidade não pode ser explicada de infinitas formas como diz a concepção pós-moderna
de linguagem. A essência do objeto não muda, porque a matéria conserva sua
propriedade independente do sujeito. Assim, é preciso partir da prática social do aluno,
imersa no sistema capitalista, de modo a refletir sobre ela e problematizá-la por meio
das atividades de leitura realizadas na escola.


463

De acordo com Schwartz (2006), nota-se que a leitura tem sido trabalhada,
recorrentemente, como decodificação ou simples captura do sentido único do texto,
desconsiderando seus aspectos extralinguísticos e a experiência de vida dos leitores.
Além disso, segundo Orlandi (2012), existe uma certa imposição para que o aluno
atribua ao texto apenas alguns sentidos e não outros. Para a autora, existem leituras
previstas para um texto, mas há sempre novas possibilidades de leitura, que vão variar
de acordo como contexto sócio-histórico. Assim, cabe ao professor mediar o processo
de construção da história de leituras do aluno, estabelecendo desafios para a
compreensão, sem deixar de fornecer condições para que o aluno seja capaz de assumir
esses desafios.
Nesse contexto, “o professor, enquanto alguém que, de certo modo, apreendeu as
relações sociais de forma sintética, é posto na condição de viabilizar essa apreensão por
parte dos alunos, realizando a mediação entre o aluno e o conhecimento que se
desenvolveu socialmente”. (SAVIANI, 2011, p. 122).
Segundo Vigotski (2010), a mediação do professor exerce papel fundamental no
desenvolvimento do educando. Com a ajuda de um indivíduo mais experiente, o aluno
pode realizar reflexões e atividades que não conseguiria fazer sozinho naquele
momento, mas depois, devido ao processo de apropriação do conhecimento, ele adquire
autonomia para desempenhar tais reflexões e atividades.
Geraldi (1984) alerta que, em meio a discussões de como, quando e o que
ensinar, esquece-se de questionar o objetivo do ensino, ou seja, para que ensinar. Esse
objetivo está diretamente ligado à concepção que o professor tem de linguagem e à sua
postura com relação à educação. Nesse sentido, concebemos a linguagem como
processo de interação verbal que considera o leitor um sujeito ativo, constituído de
forma dialógica. Assim, entendemos que por meio da linguagem é possível contribuir
com a formação do leitor crítico desde que a leitura seja compreendida como prática
social, auxiliando a pensar a realidade e desenvolver o senso crítico do leitor, ampliando
sua participação social.
Levando em consideração o objetivo de nossa pesquisa, compreender como a
utilização sistematizada dos quadrinhos do Universo Macanudo pode contribuir com a
formação do leitor crítico, percebemos que existe a necessidade de repensar as práticas
de leitura na educação básica, na busca pela formação de leitores críticos, e acreditamos
que os quadrinhos podem contribuir nesse sentido. Na proxima seção, apresentaremos a


464

metodogia utilizada para atingir nosso objetivo, os sujeitos da investigação e os


materiais didáticos elaborados em nossa pesquisa.

4 Metodologia

Uma das exigências do Mestrado Profissional em Letras é que sejam priorizadas


metodologias nas quais haja participação tanto do pesquisador quanto dos demais
envolvidos, partindo do pressuposto que o pesquisador não é o único detentor do
conhecimento e que todos podem contribuir com seus saberes, desde que o objetivo
deste processo seja a apropriação do conhecimento sistematizado. Além disso, espera-se
que a pesquisa gere um produto educacional que será disponibilizado para uso em
diferentes escolas. Objetivando atender aos requisitos do programa, a metodologia
utilizada foi a pesquisa participante ou colaborativa, com participação coletiva na
resolução de problemas identificados em determinada realidade, visando à ampliação do
nível de consciência crítica desse grupo.
Nota-se, nessa metodologia, o diálogo com conceitos bakhtinianos, tais como
dialogismo, alteridade e exotopia, uma vez que propõe o diálogo constante, durante todo
o processo, entre pesquisador e participantes, e a construção conjunta do conhecimento.
Para Bakhtin (1997), os indivíduos se constituem na alteridade, são construídos e
transformados sempre através do outro, a partir de relações dialógicas. Desse modo,
veem o mundo também sob a perspectiva do outro, o que enriquece suas visões de
mundo e as transforma, contribuindo com a ampliação de suas consciências críticas.
Assim, o ponto de vista de ambos é transformado, nessa interação dialógica, tornando-
os mais conscientes e responsáveis por suas escolhas e atos.
Com o objetivo de validar nossa proposta de modo colaborativo, inicialmente
constituímos um grupo de pesquisa pequeno, com duas professoras de Língua
Portuguesa e seis alunos do 9º ano do Ensino Fundamental II, que se reuniu em horário
alternativo para desenvolver as atividades propostas pelos materiais elaborados e sugerir
modificações ou apresentar contribuições. Essa série foi escolhida porque nessa fase da
adolescência os alunos já conseguem desenvolver melhor a atividade crítica,
participando mais intensamente da realidade social, o que possibilita o trabalho de
formação de leitores críticos. Constituímos um grupo de pesquisa pequeno com o
objetivo de validar nossa proposta de modo colaborativo, de forma que todos pudessem
contribuir e participar ativamente do processo.


465

Elaboramos materiais educativos para serem utilizados nos encontros do grupo


de pesquisa, seguindo os momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-Crítica
(SAVIANI, 2008): a prática social (forma como estão sintetizadas as relações sociais
em um determinado momento histórico); a problematização (colocar em xeque as
respostas dadas à prática social, questionando essas respostas, assinalando suas
insuficiências e incompletudes); a instrumentalização/apropriação3 (oferecer condições
para que o aluno compreenda o objeto de estudo em suas múltiplas determinações); a
catarse (momento em que o aluno manifesta que apreendeu o fenômeno de maneira
mais complexa); e o retorno à prática social (com modificação da prática social em
função da aprendizagem resultante da prática educativa).
É importante ressaltar que esses momentos foram separados apenas para fins
didáticos, pois eles são articulados, não acontecem necessariamente em etapas
separadas. Partimos da prática social, das aulas de leitura das aulas de Língua
Portuguesa, e identificamos um dos problemas existentes nessa prática: a dificuldade de
formar leitores críticos. Para buscar uma forma de melhorar essa prática, oferecendo aos
alunos as ferramentas necessárias para melhorar sua prática, chegamos às HQs do
Universo Macanudo, que são atrativas e criativas e apresentam críticas à indústria
cultural e aos valores veiculados por ela. Propusemos diversas atividades de análise
desses quadrinhos e dos discursos presentes neles, bem como das relações intertextuais
e interdiscursivas entre eles e outros textos. Dessa forma, os alunos chegaram à catarse,
em que percebemos, em vários momentos da pesquisa, “um novo posicionamento diante
da prática social, revelado por uma leitura mais crítica, ampla e sintética da realidade”
Assim, consideramos que houve um retorno à prática social de forma modificada, em
função da aprendizagem decorrente das atividades desenvolvidas com a mediação do
professor. (MARSIGLIA; OLIVEIRA, 2008, p. 1971).
Em um momento posterior, de modo a validar nossa proposta no contexto da
sala de aula regular, uma das professoras participantes aplicou as atividades em seis
turmas de 9º ano, quatro no turno matutino e duas no vespertino.


3
Este momento é intitulado por Saviani (2009) de instrumentalização. Contudo, escolhemos apresentá-lo
também como apropriação por acreditar que o termo instrumentalização pode ser remetido, de modo
equivocado, à racionalidade instrumental. Nesse sentido, consideramos ser necessário renomear o termo,
pois instrumentalização parece não corresponder à totalidade do processo de apropriação do saber
sistematizado e, ao mesmo tempo, fica atrelado à ideia de racionalidade instrumental.


466

4. 1 O produto educacional elaborado

A fim de atender aos requisitos do Programa de Pós-Graduação com relação à


criação de um produto educacional, elaboramos um material educativo destinado aos
professores de Língua Portuguesa, disponibilizado no formato de livro virtual (e-book),
no site do programa. Esse material foi elaborado a partir do conceito de dialogismo, de
Bakhtin (1997), propondo a apropriação do conhecimento através das atividades e da
mediação dos professores, evitando ao máximo apresentar conceitos prontos. Não visa
despotencializar a função do professor impondo-lhe mais um material didático
prescritivo, mas compartilhar nossos estudos e experiências.
O livro, intitulado “Macanudo: formando leitores críticos” (Figura 2) foi
dividido em quatro capítulos: “O Universo Macanudo”, apresentando o autor, o
contexto de produção e algumas características das tiras Macanudo, “Orientações de
Leitura”, com exploração de uma possibilidade de leitura das tirinhas apresentadas nas
atividades propostas no material educativo; “A linguagem dos quadrinhos”, com
atividades elaboradas para favorecer o conhecimento dessa linguagem, considerando a
interação, estimulando a elaboração de conceitos e a sistematização do aprendizado de
modo interativo; e “Formando leitores críticos”, com atividades envolvendo tirinhas que
fazem críticas a elementos da indústria cultural e ao seu alto poder de persuasão, para
que os alunos emitissem suas impressões sobre elas e, depois, discutissem as questões
propostas e as relacionassem a textos de outros gêneros (música, charge, propaganda,
poesia, filme etc.), estabelecendo relações intertextuais e interdiscursivas entre eles e as
tirinhas, colocando diferentes textos em diálogo e percebendo pontos de convergência e
divergência entre seus discursos.


467

Figura 2 - Material educativo elaborado

Fonte: Material elaborado pela autora.

Essas atividades foram desenvolvidas no grupo colaborativo, conforme


descreveremos a seguir.

5 Relato da experiência

Inicialmente, fizemos uma identificação do problema que pretendíamos analisar,


a formação do leitor crítico por meio das HQs, bem como um primeiro contato com os
interessados que constituíram o grupo de pesquisa, uma divisão das tarefas e um
estabelecimento dos principais objetivos da pesquisa.
A proposta de intervenção foi dividida em duas etapas. A primeira consistiu no
conhecimento da linguagem dos quadrinhos, desenvolvendo as atividades do terceiro
capítulo do material educativo. Na segunda etapa, foram propostas atividades de leitura,
interpretação e compreensão de alguns quadrinhos Macanudo, do quarto capítulo do
guia, buscando que a leitura promovesse o que Silva (2011) propõe: uma forma de
encontro entre o homem e a realidade sociocultural. O objetivo era que, por meio dos
quadrinhos, os alunos evoluíssem da leitura mecânica que costumam realizar em suas
práticas escolares para uma leitura que despertasse seu lado sensível, que os fizesse
refletir sobre sua realidade e o mundo que os cerca.
Antes da segunda etapa ser iniciada, os alunos analisaram uma tirinha sozinhos e
escreveram suas percepções sobre ela. Ao final da segunda etapa, eles analisaram mais


468

três tirinhas sozinhos, para que fosse possível comparar a análise que os alunos faziam
antes da intervenção com a análise após a intervenção. Para finalizar, eles produziram,
coletivamente, uma tirinha crítica, refletindo sobre algum problema da realidade deles, e
responderam a um questionário final, para avaliar as oficinas realizadas.
Ao trabalhar o capítulo sobre a linguagem dos quadrinhos, os alunos
sistematizaram, a partir dos exemplos dados e da mediação das professoras por meio de
perguntas, conceitos sobre a linguagem visual dos quadrinhos. Eles avaliaram o material
educativo utilizado e, de todo o material, sugeriram apenas a troca das tiras cômicas,
para que o humor ficasse mais evidente. No final, preencheram os balões de uma
história em quadrinhos que não conheciam, para colocar em prática o que estudamos.
Após essa etapa, foi apresentada uma tirinha aos alunos (Figura 3), para que eles
registrassem suas impressões sobre os elementos que compõe sua linguagem visual e
sobre seu conteúdo, sem intervenção das professoras, para compreender de que modo
estavam sendo realizadas suas análises críticas.

Figura 3 - Tira analisada pelos alunos

Fonte: Liniers. Macanudo, n.2. Campinas, SP: Zarabatana Books, 2009, p. 54.

A partir das respostas dos alunos, foi possível perceber que eles ainda liam os
quadrinhos de forma simplificada, sem refletir e se posicionar sobre seu conteúdo, sem
relacionar os recursos visuais utilizados pelo artista ao conteúdo, fazendo apenas uma
leitura mecânica, procurando o traço de humor. Essa tira foi utilizada como parâmetro
para analisar, posteriormente, a evolução crítica dos alunos.
Após essa análise, iniciamos o estudo dos quadrinhos Macanudo. Todas as tiras
livres selecionadas fazem uma crítica (direta ou indireta) à indústria cultural,
principalmente à mídia televisiva. Propusemos a análise de cada tira, momento em que


469

os alunos fizeram comentários e observações, depois seguimos com a discussão das


perguntas relacionadas à tira e colocamos outros textos em diálogo com ela.
Os alunos conseguiram identificar a maioria das críticas feitas nas tirinhas,
poucas vezes precisaram de intervenção por meio de perguntas que os levassem a
analisá-las por outros ângulos até chegar à crítica que acreditamos que eles alcançariam.
Eles notaram críticas ao consumismo; à falta de individualidade e de personalidade de
pessoas que só copiam padrões divulgados pela mídia; às redes sociais, com a falsa
ideia de vida perfeita repleta de amigos; à mídia; à vontade de ser famoso a qualquer
preço; à corrupção em pequenos atos; às falsas propagandas políticas; aos conteúdos
dos programas de TV e à publicidade, que utiliza estratégias baseadas em mentiras, para
nos convencer a comprar e a sermos consumistas.
A partir das análises das tirinhas do material e das discussões feitas no grupo, foi
possível perceber que os quadrinhos podem contribuir com a formação de leitores
críticos, dependendo da forma como forem trabalhados; pois os alunos evoluíram na
análise dos quadrinhos, deixando de apenas decodificá-los e passando a buscar pistas e
marcas nas formas e no conteúdo que os levassem à interpretação. Conseguiram
também estabelecer relações dialógicas tanto entre os quadrinhos e outros textos, quanto
entre os quadrinhos e sua prática social, percorrendo de modo dialético os momentos
pedagógicos da Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 2009) que utilizamos na
metodologia de ensino.
Finalizamos o estudo com a análise de três tirinhas, sem explicação da atividade
pelas professoras, a fim de verificar se houve evolução na leitura. Percebemos nas
análises feitas pelos alunos uma atividade crítica de leitura dos quadrinhos, com a
expressão de seus pensamentos, após uma reflexão acerca do que leram. Eles analisaram
sua prática social, refletiram e se posicionaram sobre as tirinhas, assumindo uma atitude
responsiva ativa (BAKHTIN, 1997) diante da leitura, dando uma resposta ao texto.
Além da análise de tirinhas, os alunos produziram em conjunto duas tirinhas
críticas que promoviam a discussão de algum problema da realidade (apesar das
peculiaridades de cada ser, a realidade é uma só, esse é o princípio do materialismo
histórico-dialético, partimos da realidade objetiva sempre). Em uma delas desenharam
um personagem tomando banho por duas horas e ficando sem água, devido ao
desperdício. Na outra (Figura 4), fizeram uma crítica ao apelo da mídia pelo consumo,
apresentando um personagem que assiste à propaganda de um desodorante que faria


470

com que as mulheres caíssem em seus braços. Ele compra o desodorante, mas nada
acontece, e ele fica sem entender nada.

Figura 4 – Exemplo de tirinha produzida pelos alunos

Fonte: Material elaborado pelos alunos.

Nessa tirinha eles usaram diversos elementos da linguagem visual: balões do


som da TV e de pensamento; na transição do segundo para o terceiro quadrinho eles
utilizaram o recurso da elipse; e os personagens são desenhados em ângulos diferentes,
ora de perfil e ora de frente, o que dá um dinamismo aos quadros. O que nos faz
perceber que não foi só criação de um conteúdo crítico, mas a forma também
acompanhou a evolução dos alunos. Notamos que os alunos aprenderam sobre a
linguagem dos quadrinhos e compreenderam que eles não precisam ter como função
apenas a diversão e o entretenimento; eles podem fazer críticas à prática social, ainda
que de forma bem-humorada, como qualquer outro gênero textual.
Os alunos responderam a um questionário final, no qual avaliaram positivamente
as atividades e as consideraram importantes para seu aprendizado, reconheceram que
evoluíram na compreensão de tirinhas e afirmaram que se sentem mais preparados para
lê-las e identificar as críticas feitas. Assim, atingimos nosso objetivo de transformar,
ainda que minimamente, a realidade dos alunos, contribuindo com a ampliação de sua
consciência crítica na sistematização e apropriação conjunta do conhecimento.
Os alunos da sala de aula regular passaram pelo mesmo processo que os do
grupo de pesquisa, com aplicação das mesmas atividades e dos questionários, e foi
possível perceber, pelas atividades e pelos relatos dos alunos e da professora, que o
material pode ser utilizado na sala de aula pelos professores de Língua Portuguesa, pois
contribuiu com a formação dos diversos alunos que participaram da pesquisa como


471

leitores críticos. A professora que aplicou as atividades relatou que os alunos gostaram
muito delas e que o material é bem diferente dos livros didáticos com os quais já
trabalhou, pois percebe que eles não levam o aluno pensar e refletir sobre questões de
sua prática social, geralmente propõem uma leitura mais superficial. Ela observou
também que os alunos ficaram menos agitados e mais participativos nas aulas.
Após essa etapa, juntamos os dois materiais e formamos um só (Figura X),
voltado para os professores, com quatro capítulos: o primeiro, apresentando o Universo
Macanudo; o segundo, com propostas de leituras das atividades do livro; o terceiro, com
as atividades elaboradas para estudar a linguagem dos quadrinhos; e o quarto, com as
atividades elaboradas para desenvolver a formação de leitores críticos.

6 Considerações finais

Diante da experiência apresentada é possível perceber que os quadrinhos podem


formar leitores críticos, desde que exista adequação temática e formal em seu uso. Em
primeiro lugar, é preciso, como já foi dito, apresentar aos alunos a linguagem que é
própria dos quadrinhos e que está em relação com o conteúdo apresentado, pois a forma
reforça e dialoga com a ideia apresentada pelo quadrinista. Não basta ler balões e ver a
gramática que está posta no texto. É preciso compreender o modo como os quadrinhos
foram estruturados, compreender os elementos visuais utilizados e colocá-los em
diálogo com o conteúdo apresentado na discussão da tirinha. O artista, por intermédio
da forma, apresenta uma ideia que critica a realidade. Os alunos têm que perceber isso,
pois interfere no sentido dado ao texto.
Além disso, é necessário esclarecer os objetivos do estudo dos quadrinhos e
conhecer melhor os alunos e seus gostos, para despertar neles o interesse pela leitura. Se
as atividades fazem sentido para o aluno, ele tem mais vontade de aprender, pois se
constitui, por meio de diferentes mediações, como um sujeito mais crítico diante da
realidade muitas vezes massificada pela indústria cultural.
Por meio de recorrentes atividades como essas, pode-se contribuir com a
formação crítica, por isso o processo é contínuo, não é pontual, e precisa ser
incorporado pelos sistemas de ensino. Para tanto, os materiais didáticos desenvolvidos,
após serem reavaliados na sala de aula regular, estão sendo disponibilizados aos
professores de Língua Portuguesa de Cachoeiro de Itapemirim, por meio de divulgação
virtual. Também realizamos, no referido município, formação de professores para


472

compartilhar a pesquisa desenvolvida, explicando a proposta e a forma como as


atividades foram trabalhadas, para que os professores que se identificarem com ele
possam incorporá-lo à sua prática, fazendo as adaptações que julgarem necessárias.
De modo geral, acreditamos que a pesquisa contribuiu com a formação dos
alunos que participaram das oficinas como leitores críticos e com a modificação de sua
prática social e esperamos contribuir com a prática dos outros professores, que poderão
utilizar a seu modo as atividades do material educativo em suas aulas.

Referências

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2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

FAILLA, Zoara (org.). Retratos da leitura no Brasil 3. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo/ Instituto Pró-Livro, 2012.

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João Wanderley (org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Ática, 1984.

MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão; OLIVEIRA, Celso Socorro. Aproximações histórias e


teóricas com a pedagogia histórico-crítica e sua proposta metodológica. In: Anais do VIII
Congresso Nacional de Educação da PUCPR-EDUCERE e III Congresso Ibero-Americano
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MENDONÇA, Márcia R. S. Um gênero quadro a quadro: a história em quadrinhos. In:


DIONÍSIO, Ângela P.; MACHADO, Anna R.; BEZERRA, Maria A. Gêneros textuais e
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ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 9. Ed. São Paulo: Cortez, 2012.

SANTOS NETO, Elydio dos. Dez considerações para professores que desejam trabalhar com
histórias em quadrinhos. In: SANTOS NETO, Elydio dos; SILVA, Marta Regina Paulo da
(orgs). Histórias em quadrinhos e educação: formação e prática docente. São Bernardo do
Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011. p. 127-136.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 11. ed. Campinas,


SP: Autores Associados, 2011.

______. Escola e democracia. Edição Comemorativa. Campinas, SP: Autores Associados,


2008.

SCHWARTZ, Cleonara Maria. Os sentidos da leitura. Cadernos de Pesquisa em Educação,


Programa de Pós-Graduação em Educação. v. 12, n. 24 (jul./dez. 2006). Vitória: PPGE, 2006.
SILVA, Ezequiel T. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova pedagogia da
leitura. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2011.


473

VERGUEIRO, Waldomiro. Uso das HQs no ensino. In: RAMA, Ângela; VERGUEIRO,
Waldomiro (orgs.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. 4. ed. São Paulo:
Contexto, 2014. p. 7- 29.

VIGOTSKI, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2010.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

ATIVIDADES DIDÁTICAS CONTEXTUALIZADAS PARA AULAS DE


ECOLOGIA NO ENSINO MÉDIO: UMA PROPOSTA FUNDAMENTADA NA
PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA

Ana Paula Dias Pazzaglini Roldi (SEDU/NIPEEA-Cnpq)1


Kleber Roldi (SEDU/GEPAC)2

Resumo: Este trabalho é fruto de uma atividade didática desenvolvida com alunos da 1ª série do
ensino médio de uma escola pública estadual de Vitória, ES. Utilizamos a Pedagogia Histórico-
Crítica como aporte teórico metodológico para o planejamento e desenvolvimento de uma
sequência de aulas contextualizadas que contemplaram conteúdos de Ecologia e Meio Ambiente
durante o 1º trimestre de 2016. Realizamos atividades diversificadas, entre as quais destacamos
a exibição de vídeos de curta duração, debates, introdução de uma prática investigativa, aulas
expositivas dialogadas, pesquisa orientada e apresentação de seminários. Ao final, identificamos
que houve um crescimento significativo do nível de conhecimentos científicos entre os
participantes. Os alunos materializaram e sistematizaram os novos conceitos. Promoveram
também uma ampla divulgação dos trabalhos na escola, contribuindo com a socialização desse
conhecimento.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica; Prática Social; Ecologia.

Introdução

A Pedagogia Histórico-Crítica tem ganhado espaço como perspectiva
educacional. Segundo Gasparin (2012, 2013, p.3), essa metodologia de ensino tem sido
bastante citada em trabalhos que visam “resgatar a importância da escola e a
reorganização do processo educativo”. Entretanto, a relação dos educadores com ela
ainda é tímida, fato que legitima a importância de trabalhos que a tenham como aporte
teórico-metodológico.

1
Ana Paula Dias Pazzaglini Roldi, licenciatura em Ciências Biológicas e Mestrado em educação pela
Universidade Federal do Espírito Santo-UFES. Professora da Secretaria Estadual de Educação do Estado
do Espírito Santo (SEDU) e membro do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Estudo em educação
Ambiental (NIPEEA-cnpq), Espírito Santo, Brasil. E-mail: ana_pazzaglini@hotmail.com
2
Kleber Roldi, Bacharelado/Licenciatura Plena em Ciências Biológicas pela Universidade Federal do
Espírito Santo e Mestrado Profissional em Educação em Ciências e Matemática pelo Instituto Federal do
Espírito Santo. Professor da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Espírito Santo (SEDU) e
membro do Grupo de Estudo e pesquisa em Alfabetização Científica e Espaços de Educação Não Formal
(GEPAC). E-mail: kleberroldi@gmail.com


475

Para Saviani, o termo Pedagogia Histórico-Crítica evidencia no seu caráter


Histórico a interferência da educação sobre a sociedade, podendo contribuir para a sua
transformação. Já a Crítica se pauta na consciência da determinação exercida pela
sociedade sobre a educação.
Ao final da década de 1970, generalizou-se entre os professores a expectativa em
torno da busca de alternativas sobre os rumos da educação. Tornaram-se evidentes a
insuficiência, a inadequação e a inviabilidade da orientação oficial amparada na
concepção crítico-reprodutivista, visto que:

Esta pedagogia oficial que se tentou generalizar é inconsistente, é


passível de contestação, atende a interesses minoritários, atende à
tentativa dos grupos dominantes de impor a toda a sociedade a sua
dominação. Mas, e então? Se essa educação, essa forma de ensinar,
não é adequada, qual será? (SAVIANI, 2011, p. 78).

Os professores tinham grandes expectativas sobre a forma de condução no


processo educativo e a concepção crítico-reprodutivista não tinha respostas para essas
indagações. De acordo com ela “qualquer tentativa na área de educação é
necessariamente reprodutora das condições vigentes e das relações de dominação -
características próprias da sociedade capitalista” (SAVIANI, 2011, p.78), não alcançada
pelas transformações, um fenômeno que se justifica em si mesmo.
Os educadores tentavam romper com essa lógica dominante e apostavam em
uma “educação que não fosse, necessariamente, reprodutora da situação vigente, e sim
adequada aos interesses da maioria, aos interesses daquele grande contingente da
sociedade brasileira, explorado pela classe dominante” (SAVIANI, 2011, p. 79).
A Pedagogia Histórico-Crítica surge nesse movimento histórico, a partir de
1979, e busca compreender a questão educacional a partir dos condicionantes sociais.
Busca nas contradições internas da sociedade capitalista não apenas elementos de
legitimação da dominação de saberes, mas elementos que potencializem a tendência de
transformação dessa sociedade.
Essa pedagogia relaciona-se intimamente com a realidade escolar, visto que
surge em decorrência de necessidades sentidas e elencadas pela prática dos educadores
nas condições atuais. “Esta pedagogia objetiva resgatar a importância da escola, a
reorganização do processo educativo, ressaltando o saber sistematizado, a partir do qual
se define a especificidade do saber escolar” (GASPARIN, 2012, 2013, p. 4).


476

Saviani (2011, p. 9) afirma que a tarefa a que se propõe a Pedagogia Histórico-


Crítica em relação à educação escolar implica:
a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o saber
objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua produção e
compreendendo as suas principais manifestações, bem como as tendências atuais de
transformação.
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne
assimilável pelos alunos no espaço e no tempo escolares.
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o
saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem
como as tendências de sua transformação.
Como a maioria das escolas mantém ainda um modelo de ensino construído há
décadas, o que vemos hoje é um enorme distanciamento entre o que é lecionado nas
escolas e a vida dos alunos, principalmente quando se trata do ensino de ciências.
Chassot (2003, p. 94) faz uma crítica ao fato de que “conhecer a ciência é assunto quase
vedado àqueles que não pertencem a essa esotérica comunidade científica”. O autor
afirma ser necessária a aproximação entre os conhecimentos científicos e a inclusão
social. Acreditamos que um trabalho consistente, apoiado nos princípios da Pedagogia
Histórico-Crítica pode cumprir esse papel.

Desenvolvimento

Realizamos este trabalho com alunos da 1ª série do ensino médio do Centro


Estadual de Ensino Médio em Tempo Integral São Pedro, localizado no município de
Vitória, ES. Ao todo, foram 207 participantes, divididos em seis turmas diferentes. O
aporte teórico-metodológico utilizado foi a Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI,
2007) que objetiva resgatar a importância da escola e a reorganização do processo
educativo. Essa teoria evidencia um método diferenciado de trabalho e ressalta o saber
sistematizado que é especificado em cinco passos imprescindíveis para o
desenvolvimento do estudante, são eles: Prática social inicial, problematização,
instrumentalização, catarse e prática social final. É importante ressaltar que:

Seu método de ensino visa estimular a atividade e a iniciativa do


professor; favorecer o diálogo dos alunos entre si e com o professor,


477

sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura acumulada


historicamente; levar em conta os interesses dos alunos, os ritmos de
aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, sem perder de vista a
sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação
para efeitos do processo de transmissão-assimilação dos conteúdos
cognitivos (GASPARIN, 2012, 2013, p. 4).

O trabalho estruturado com os passos que compõem a didática da Pedagogia


Histórico-Crítica exige do educador uma nova forma de pensar os conteúdos, que
devem ser trabalhados de maneira contextualizada em todas as áreas do conhecimento,
enfatizando que as vivências nas relações contribuem significativamente para a
construção/reconstrução desse conhecimento.
De acordo com Gasparin (2012, 2013), essa didática objetiva um equilíbrio entre
teoria e prática e envolve os educandos em uma aprendizagem significativa dos
conhecimentos científicos e políticos. Dessa forma tornam-se sujeitos participativos de
uma sociedade democrática e de uma educação política, tendo como marco referencial a
teoria dialética do conhecimento para fundamentar a concepção metodológica e o
planejamento do ensino-aprendizagem.
Gasparin (2005) estrutura os cinco passos da didática da Pedagogia Histórico-
Crítica, conforme adiante:
1º Passo - Prática Social Inicial: Nível de desenvolvimento atual do educando.
Expressa-se pela prática social inicial dos conteúdos. Tem seu ponto de partida no
conhecimento prévio do professor e dos educandos. É o que o professor e alunos já
sabem sobre o conteúdo, no ponto de partida, em níveis diferenciados. Esse passo
desenvolve-se, basicamente, em dois momentos: a) o professor anuncia aos alunos os
conteúdos que serão estudados e seus respectivos objetivos; b) o professor busca
conhecer os educandos através do diálogo, percebendo qual a vivência próxima e
remota cotidiana desse conteúdo antes que lhes seja ensinado em sala de aula,
desafiando-os para que manifestem suas curiosidades, dizendo o que gostariam de saber
a mais sobre esse conteúdo.
2º passo – Problematização: Consiste na explicação dos principais problemas
postos pela prática social, relacionados ao conteúdo que será tratado. Esse passo
desenvolve-se na realização de: a) uma breve discussão sobre esses problemas em sua
relação com o conteúdo científico do programa, buscando as razões pelas quais o
conteúdo escolar deve ou precisa ser aprendido; b) em seguida, transforma-se esse
conhecimento em questões, em perguntas problematizadoras levando em conta as


478

dimensões científica, conceitual, cultural, histórica, social, política, ética, econômica,


religiosa etc., conforme os aspectos sobre os quais se deseja abordar o tema,
considerando-o sob múltiplos olhares. Essas dimensões do conteúdo são trabalhadas no
próximo passo, o da instrumentalização.
3º passo - Instrumentalização: Essa se expressa no trabalho do professor e dos
educandos para a aprendizagem. Para isso, o professor: a) apresenta aos alunos através
de ações docentes adequadas o conhecimento científico, formal, abstrato, conforme as
dimensões escolhidas na fase anterior; os educandos, por sua vez, por meio de ações
estabelecerão uma comparação mental com a vivência cotidiana que possuem desse
mesmo conhecimento, a fim de se apropriar do novo conteúdo. b) nesse processo usa-se
todos os recursos necessários e disponíveis para o exercício da mediação pedagógica.
4º passo - Catarse: É a expressão elaborada de uma nova forma para entender a
teoria e a prática social. Ela se realiza: a) por meio da nova síntese mental a que o
educando chegou; manifesta-se através da nova postura mental unindo o cotidiano ao
científico em uma nova totalidade concreta no pensamento. Nesse momento o educando
faz um resumo de tudo o que aprendeu, segundo as dimensões do conteúdo estudadas. É
a elaboração mental do novo conceito do conteúdo; b) essa síntese se expressa através
de uma avaliação oral ou escrita, formal ou informal, na qual o educando traduz tudo o
que aprendeu até aquele momento, levando em consideração as dimensões sob as quais
o conteúdo foi tratado.
5º passo - Prática social final: Novo nível de desenvolvimento atual do
educando, consiste em assumir uma nova proposta de ação a partir do que foi aprendido.
Esse passo se manifesta: a) pela nova postura prática, pelas novas atitudes, novas
disposições que se expressam nas intenções de como o aluno levará à prática, fora da
sala de aula, os novos conhecimentos científicos; b) pelo compromisso e pelas ações
que o educando se dispõe a executar em seu cotidiano pondo em efetivo exercício social
o novo conteúdo científico adquirido.
Apoiados nessa metodologia, planejamos e executamos uma sequência de aulas
contextualizadas, que versaram sobre o tema Ecologia e Meio Ambiente. Além dos
conteúdos conceituais, procuramos alcançar também os conteúdos atitudinais e
procedimentais. Zabala (1998) aponta que o termo “conteúdos” é usado para expressar
aquilo que se deve aprender, mas em relação quase que exclusiva aos conhecimentos
disciplinares clássicos – nomes, teoremas, princípios, conceitos. Segundo o autor,


479

[...] os conteúdos de aprendizagem não se reduzem unicamente às


contribuições das disciplinas ou matérias tradicionais. Portanto,
também serão conteúdos de aprendizagem todos aqueles que
possibilitem o desenvolvimento das capacidades motoras, afetivas de
relação interpessoal e de inserção social. (ZABALA, 1998, p. 30).

Trabalhamos conceitos de cadeias e teias alimentares, fluxos de matéria e


energia nos ecossistemas, ciclos biogeoquímicos, relações ecológicas, entre outros.
Procuramos estabelecer as conexões desses conceitos com os conhecimentos prévios
sobre meio ambiente, desenvolvimento sustentável e impactos ambientais ocasionados
pelas ações humanas. Como atividade prática investigativa, propusemos a construção e
acompanhamento de um terrário3. As etapas do trabalho e o detalhamento das atividades
realizadas estão descritos abaixo.
Para identificarmos os conhecimentos prévios e as vivências trazidas do meio
social pelos educandos para a sala de aula, iniciamos orientando os alunos a escrevem
as três primeiras palavras que lhes vinham à cabeça e que se relacionavam ao conceito
de “Ambiente”. Cada participante recebeu uma ficha para realizar o registro das
palavras individualmente. Após recolhermos as fichas (não foi necessário identificar-se)
e lermos aleatoriamente algumas das palavras registradas pelos estudantes, percebemos
uma carência muito grande de vocabulário que relacionasse o ser humano e o Ambiente.
Anunciamos, então, os conteúdos que seriam abordados e os instigamos a
participarem do debate. Questionamos sobre a inserção do ser humano como parte do
Ambiente e problematizamos que a dicotomia homem-natureza certamente é um dos
fatores responsáveis pela legitimação da degradação ambiental, no sentindo de que é
muito mais fácil poluir e degradar o ambiente quando não nos sentimos parte dele.
Para iniciar a etapa da problematização, exibimos o curta de animação “MAN”,
de Steve Cutts – disponível no youtube. O vídeo retrata as relações de apropriação dos
bens naturais para consumo de forma inconsequente, com vistas ao bem-estar humano.
Os alunos assistiram atentamente e houve uma grande inquietação. Ao termino,

3
Roteiro para construção de um terrário: Materiais: 2 garrafas PET (preferencialmente de plástico
transparente); Cascalho grosso, cascalho fino e areia; Pó de xaxim ou húmus; Folhas secas trituradas
(podem ser substituídas por húmus); Terra; Plantas de espécies que não cresçam muito e sementes; Água;
Fita adesiva. Como montar o terrário: No fundo de uma das garrafas, coloque cerca de 4 cm de cascalho;
Por cima da camada de cascalho, coloque uma camada de pó de xaxim ou húmus com as folhas secas
trituradas; Em seguida faça uma camada com a areia e a última camada com a terra; Faça pequenas covas
na camada de terra e plante as plantinhas e sementes; Depois que colocar cuidadosamente um pouco de
água, tampe com a outra garrafa e lacre com a fita adesiva; O ecossistema está pronto.


480

lançamos a pergunta: O que o filme te faz pensar? Será que essas relações realmente
acontecem? “Acho que sim, o homem só pensa em dinheiro” (ALUNO 1); “isso
acontece porque somos muito egoístas” (ALUNO 2); A partir dessa pergunta
disparadora, exibimos um documentário sobre o rompimento da barragem de resíduos
de mineração localizada na cidade de Mariana, MG.
O debate continuou no sentido de investigar se, de alguma forma, os estudantes
seriam capazes de relacionar o desastre ambiental de Mariana – que teve seu epicentro
relativamente distante de nós – com nossa vida cotidiana e nosso Estado. “Teve sim, eu
ia surfar em regência e hoje não posso mais” (ALUNO 3), “os peixes estão acabando”
(ALUNO 4)”.
Os alunos começaram a movimentar alguns conhecimentos sobre impactos
ambientais locais. Surgiu a problemática do “pó preto” – minério de ferro particulado
carregado pelo vento dos pátios da Vale S.A. – fato que tem causado muito incômodo à
população. Além de provocar muita sujeira nas casas dos moradores, afeta a saúde das
pessoas, provocando sérios problemas respiratórios.
Outro problema citado foi o da balneabilidade das praias da grande Vitória, que
somente em Março de 2016 foram categorizadas impróprias para banho. Será que nos
meses de janeiro e fevereiro do mesmo ano as praias realmente estavam próprias para
banho? Quais seriam os interesses políticos e econômicos ocultos por trás dessas
informações?
As inscrições de uma educação política aparecem no dia a dia das salas de aula.
Segundo Guiomar (citado por SAVIANI, 2011, p. 63) a função política da educação se
cumpre pela mediação da competência técnica. Ela considera que para realizar essa
função política de forma transformadora é necessário possuir competência pedagógica,
dominar os processos internos ao trabalho pedagógico. A autora explicita que o papel
político da educação se cumpre, na perspectiva dos interesses dos dominados, quando se
garante aos trabalhadores o acesso ao saber sistematizado.
Saviani elaborou o texto “Onze teses sobre educação e política”, publicado no
livro Escola e democracia, e nele procurou caracterizar mais precisamente as relações
entre política e educação para que sejam superados tanto o “politicismo pedagógico”
que dissolve a educação na política, quanto o “pedagogismo político” que dissolve a
política na educação. E assim foi emergindo e tomando forma essa nova proposta
pedagógica.


481

O conteúdo de ecologia estava sendo ministrado no semestre em que a prática


foi realizada. Foram abordados os conceitos de espécie, população, comunidade,
ecossistemas, fatores bióticos e abióticos, produção primária de energia, cadeias e teias
alimentares, relações ecológicas, ciclos biogeoquímicos e impactos ambientais.
Partimos, então, para a construção do terrário. Os alunos de cada turma
organizaram-se previamente em quatro grupos e levaram o material necessário para a
construção. Cada grupo recebeu um roteiro com orientações gerais para o
desenvolvimento da prática que se deu de forma autônoma. Os terrários foram
montados dentro de garrafas PET e simulavam ecossistemas naturais (Figura 1).
Quando prontos, foram lacrados e etiquetados para posterior identificação.

Figura 1: Construção dos terrários

Fonte: Arquivo pessoal do autor, 2016.

No decorrer do processo, surgiram muitas indagações dos alunos: “Mas a planta


não vai morrer, professor?” “Não vai faltar oxigênio para as formigas? “De onde virá a
água para as plantas?” Nesses momentos, repassávamos as perguntas para os próprios
alunos e observávamos que os conteúdos disciplinares eram mobilizados juntamente
com as vivências cotidianas de cada um para darem respostas às próprias perguntas e/ou
para as perguntas dos colegas, o que potencializou a apropriação dos conceitos
científicos. “Acho que a planta vai murchar por falta de ar”. “Acho que ela pode morrer
ou sobreviver por causa do carvão e da água”. “Acho que a formiga vai comer a planta”.
Essas indagações e hipóteses constituíram-se potências para mediarmos a fase seguinte.


482

Após construção do terrário, teve início a fase de observação e registro. Para fins
de acompanhamento e avaliação, cada grupo utilizou um diário de bordo, uma espécie
de agenda na qual foram anotadas todas as observações, análises e reflexões feitas pelos
alunos a partir daquilo que era observado no terrário.
Os estudantes receberam orientações e algumas dicas para a observação do
terrário e registro nos diários de bordo. Algumas indagações foram lançadas a fim de
estimular a curiosidade, tais como: O que será que vai acontecer? Por que eu acho que
isso vai acontecer? Minha previsão inicial se confirmou? Como posso explicar o que
estou observando? O que irá acontecer com o terrário a longo prazo? Será que acontece
algo parecido na natureza? É possível comparar o terrário com algum ecossistema
natural?
Os primeiros registros nos diários traziam principalmente especulações sobre o
que aconteceria com as plantas do terrário que se encontrava fechado. “Nossa opinião é
que ela vai crescer pois de dia a planta faz a fotossíntese”. Os grupos observaram que as
paredes das garrafas estavam embaçadas “o litro parece estar todo suado e a terra parece
estar bem molhada como se tivesse regado a planta”, “parece que a água que colocamos
na terra evaporou”. Os alunos concluíram que ocorreu o processo de evaporação e
condensação da água do terrário, constituindo-se um ciclo.
A aluna 1, que inicialmente acreditava que a planta morreria, quatro dias após
observação do terrário afirma: “Agora acho que ela não vai morrer, a planta parece estar
crescendo”. Aluna 2: “As folhas da planta estão ficando amarronzadas. Será que ela está
ficando doente?”. Ao constatar que as folhas estavam caindo a aluna afirma: “ As folhas
que antes tinham caído estão virando adubo para a terra, com a terra adubada vai ficar
melhor para as plantas”. Aluno 3: “Como a planta morreu as formigas também não
sobreviveram, faltou oxigênio”. Nesse exemplo, observamos a relação estabelecida
entre o oxigênio liberado pelas plantas durante a fotossíntese e a respiração aeróbia dos
animais.
Por fim, na última fase do trabalho, propusemos aos alunos que pensassem em
alguma forma de compartilhar o conhecimento construído com os demais colegas. Eles
sugeriram então, uma rodada de apresentações em forma de seminários, na qual cada
grupo estaria responsável por pesquisar e preparar uma apresentação em PowerPoint
sobre um determinado tipo de poluição ambiental. Foram sorteados os temas e os
grupos prosseguiram com os trabalhos de pesquisa de forma autônoma. Utilizaram os
laboratórios de informática da escola tanto para a fase de pesquisa como para a


483

preparação das apresentações. Nesse processo, os professores atuaram como mediadores


e acompanharam toda a execução do trabalho. Foram definidas as datas de
apresentações e, dessa forma, todos puderam compartilhar seus conhecimentos com os
demais (Figura 2).

Figura 2: Preparação e apresentação dos seminários

Fonte: Arquivo pessoal do autor, 2016.

Houve uma intensa e produtiva interação e trocas de saberes e experiências. Esse


momento caracterizou fortemente uma prática social final, em um nível de
conhecimento científico muito acima daquele identificado na etapa inicial do trabalho.
Os alunos foram capazes de identificar de maneira bastante clara as fortes relações
existentes entre os seres humanos e o ambiente que os rodeia. Perceberam que o
desenvolvimento econômico e tecnológico não está desligado das implicações sociais e
ambientais e é responsabilidade de todos, como cidadãos, zelar pelo equilíbrio e pelo
bem-estar do planeta em que vivemos.

Conclusões

A partir das análises, consideramos que as atividades realizadas à luz da


Pedagogia Histórico-Crítica produziram resultados bastante positivos com relação à
construção de conhecimentos científicos pelos alunos participantes. Houve uma grande
euforia inicial pela expectativa de realizarem uma atividade prática – construção do


484

terrário – e à medida que foram introduzidos os conteúdos curriculares, a participação e


o envolvimento foram bastante satisfatórios. Nos momentos das apresentações finais,
identificamos um bom nível de conhecimentos em Ecologia e notamos bastante
entusiasmo e alegria nos alunos, o que nos leva a acreditar no sucesso do trabalho
realizado.
Zabala (1998) propõe uma forma de classificar essa diversidade de conteúdos.
Ele relaciona os conteúdos conceituais, procedimentais e atitudinais, respectivamente,
com as seguintes perguntas: “o que se deve saber”, “o que se deve saber fazer” e “como
se deve ser”.
Destacamos a importância da escolha da Pedagogia Histórico-Crítica como
fundamento teórico desse trabalho. A metodologia, estruturada passo a passo, permitiu
ao aluno identificar com mais clareza os conteúdos curriculares estudados. Também é
possível perceber as relações diretas dos conceitos científicos e suas implicações nos
campos social, econômico, político e ambiental. Saviani (2011, p. 120) considera que
“Se a teoria desvinculada da prática se configura como contemplação, a prática
desvinculada da teoria é puro espontaneísmo. É o fazer pelo fazer”. Dessa forma,
destacamos o papel fundamental da escola na formação integral de sujeitos ativos e
participativos.
Para Gohn (2010, p.58) “A cidadania ativa requer a formação de cidadãos
conscientes de seus direitos e deveres, protagonistas da história de seu tempo”. Nesse
sentido entendemos que a participação consciente na tomada de decisões nos campos
político, econômico, cultural e ambiental, relaciona-se diretamente com o processo de
emancipação social.

Referências

CHASSOT, A. Alfabetização científica: uma possibilidade para a inclusão social. Revista


brasileira de educação, nº22, jan-abr 2003.

GASPARIN, J. L.; PETENUCCI, M. C. Pedagogia histórico crítica: da teoria à prática no


contexto escolar. 2012. 2013.

_______. Aprender, Desaprender, Reaprender. 2005. Texto digitalizado.

GOHN, M. da G. Educação não formal e o educador social: atuação no desenvolvimento de


projetos sociais. São Paulo: Cortez, 2010.

SAVIANI, D. Escola e Democracia. 39. ed. Campinas: Autores Associados, 2007.


485

________. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações - 11.ed.rev.— Campinas,


SP: Autores Associados, 2011.

ZABALA, A.; ROSA, E. F. da F. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Artmed,
1998.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E A PRÁTICA DIDÁTICO-


PEDAGÓGICA NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL TÉCNICA DE NÍVEL
MÉDIO: PERCEPÇÕES DISCENTES

Maria Adélia da Costa (CEFET-MG)1


Eduardo Henrique Lacerda Coutinho (CEFET-MG)2

Resumo: Este texto analisa, discute e debate as percepções discentes acerca da materialização
da prática didático-pedagógica dos docentes que atuam na educação profissional. Para tanto,
buscou-se estabelecer conexões entre os excertos extraídos das manifestações dos estudantes em
relação à ação docente e ao processo de aprendizagem. Desse modo, por meio da técnica de
grupo focal e da aplicação de um questionário estruturado a 128 alunos das 2ªs e 3ªs série de um
curso técnico, foi possível perceber que os professores cujos alunos apontaram com déficit na
prática didático-pedagógica, em sua maioria, não são licenciados. Registra-se que o corpo
docente da formação técnica específica conta com maior parte de mestres e doutores,
majoritariamente das áreas das engenharias e das ciências da computação e apenas 05 dos 72
professores pesquisados possuem cursos de formação docente (licenciaturas).

Palavras-chave: educação profissional; percepções discentes; prática didático-pedagógica;


formação docente.

Introdução

Esse texto apresenta um estudo sobre as percepções discentes acerca da prática
didático-pedagógica dos professores que atuam na educação profissional técnica de
nível médio (EPTNM). Com efeito, baliza-se, conforme assevera Saviani (2005), na
necessidade de retomar um discurso crítico, que considere as relações entre a educação
e os condicionamentos sociais, de tal forma que a prática social seja indissolúvel da
prática educativa. E, neste sentido, a prática educativa tem por finalidade a compreensão
do aluno relativa ao saber historicamente produzido pelo homem. Desse modo,
desmistifica um saber distanciado da existência do ser social para um saber construído a


1
Maria Adélia da Costa, Doutoramento em Educação (UFU), Centro federal de Educação tecnológica de
Minas Gerais, Brasil. E-mail: adelia.cefetmg@gmail.com
2
Eduardo Henrique Lacerda Coutinho, Doutoramento em Ciências Sociais (PUC-SP), Centro federal de
Educação tecnológica de Minas Gerais, Brasil. E-mail: educoutinho@adm.cefetmg.br


487

partir das relações sociais, políticas, culturais, econômicas, que vão se acumulando de
gerações a gerações. Frente a essas considerações, entende-se que “[...] O homem não se
faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce
sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber pensar e agir; para saber querer, agir ou
avaliar é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo” (SAVIANI, 2005 p. 7).
Considera-se essa discussão de fundamental importância nos cursos da educação
profissional, posto que essa modalidade de ensino forma para o mundo do trabalho, na
perspectiva de uma formação integral que unifique a formação humana com a formação
técnica. Assim, educação e ensino interagem numa organicidade tal que o ato de ensinar
requer simultaneamente a (co)participação de professores e alunos que, de forma
sistemática, organizada e planejada (re)constroem os conhecimentos numa constante
relação com o meio social local, regional e global. É por meio das relações sociais
orgânicas que o processo ensino-aprendizagem vai se consolidando e nesse sentido,
“[...] o ato de dar aula é inseparável da produção desse ato e de seu consumo”
(SAVIANI, 2005 p. 12-13).
Frente a isso, entende-se que a prática didático-pedagógica dos professores da
EPT tem um compromisso político-social de possibilitar aos estudantes uma reflexão
sobre as conjunturas sociais, culturais e políticas a que estão inseridos. Nesse sentido,
apreende-se, assim como Saviani (2005), que cabe às instituições escolares, sobretudo
às vocacionadas para a formação do aluno trabalhador - as escolas de educação
profissional, a função social de promover as transformações societárias por meio do
saber elaborado, possibilitando, assim, aos indivíduos a superação das formas de
organização social vigente e da divisão das classes sociais. Não obstante, faz-se urgente
e necessário que os docentes tenham consciência social e política do seu papel como
formador de opiniões e, portanto, venham a promover especialmente nos cursos de
educação profissional o debate e a problematização das múltiplas facetas dos modos de
produção capitalista, colaborando com a formação crítica do futuro trabalhador. Com
efeito, vale destacar que, assim como Saviani (2005), entende-se que a escola não é
apenas reprodutora da sociedade, mas também pode ser instrumento para mudanças
societárias, pois, à medida que educa, forma-se um novo homem.
Considerando esse cenário, propõe-se a investigar a prática didático-pedagógica
dos docentes da educação profissional técnica de nível médio, atentando para a
materialização de ações de uma pedagogia histórico-crítica que tem por finalidade
compreender a educação a partir do desenvolvimento histórico objetivo (SAVIANI,


488

2005, p.102). A pedagogia histórico-crítica é o passaporte para que a ação docente


promova no aluno inquietações acerca da prática social a que está inserido.
Com efeito, essa pedagogia é:

[...] tributária da concepção dialética, especificamente na versão do


materialismo histórico, tendo fortes afinidades, no que ser refere às
suas bases psicológicas, com a psicologia histórico-cultural
desenvolvida pela “Escola de Vigotski”. A educação é entendida
como o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Em outros termos, isso
significa que a educação é entendida como mediação no seio da
prática social global. A prática social se põe, portanto, como o
ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí
decorre um método pedagógico que parte da prática social onde
professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando,
porém, posições distintas, condição para que travem uma relação
fecunda na compreensão e encaminhamento da solução dos problemas
postos pela prática social, cabendo aos momentos intermediários do
método identificar as questões suscitadas pela prática social
(problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a
sua compreensão e solução (instrumentação) e viabilizar sua
incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos
(catarse). (SAVIANI, 2005, p.420, grifos meus).

Concorda-se com o autor quando se refere à educação como mediação no seio da


prática social global o que impõe aos atores educacionais do ensino técnico o
compromisso com uma formação integrada, onde a formação humana seja tão
importante quanto à formação técnica. Ou seja, o saber é produzido nas relações sociais,
na práxis social e é, portanto, histórico (SAVIANI, 2005). Desse modo, questiona-se: os
profissionais que não se formaram para a docência, mas que atuam como professores na
EPTNM teriam uma prática didático-pedagógica favorável ao desenvolvimento integral
dos estudantes? Estariam [eles] preparados para, segundo Saviani (2005, p.420),
analisar e debater as questões suscitadas pela “prática social (problematização),
dispondo de instrumentos teóricos e práticos para a sua compreensão e solução
(instrumentação) e viabilizando sua incorporação como elementos integrantes da
própria vida dos alunos (catarse)”?
Entende-se que os estudantes são os agentes que poderão de forma mais
eficiente colaborar na identificação e organização dos dados coletados uma vez que eles
são parte indissolúvel desse processo de ensinar e aprender. Não obstante, a


489

interlocução da pedagogia histórico-crítico com a formação docente se faz sob o


pressuposto de que os profissionais não formados para a docência poderão ter maior
dificuldade em valorizar, como ponto de partida, o contexto social dos alunos. Essa
crença é balizada pelo fato de esses profissionais não terem em sua formação as
discussões e conhecimentos necessários ao exercício da docência.
Estas questões refletem a realidade em que se encontra um número considerável
de profissionais que atuam como professores mesmo não tendo se formado para ser
professor, o que implica reconhecer a existência de profissionais diversos: engenheiros,
químicos, farmacêuticos, enfermeiros, arquitetos, advogados, dentre outras profissões,
atuando como docentes em salas de aula. A título de exemplificação apresenta-se na
Tabela 01 o percentual de professores com formação específica, para as disciplinas que
compõem o núcleo da formação geral do ensino técnico integrado.

Tabela 1: Percentual de professores com formação específica

Fonte: RUIZ, RAMOS e HINGEL (2007)

Pela análise da Tabela 01 apenas o quadro docente das disciplinas de Língua


Portuguesa, Biologia e Educação Física é composto por 50% de professores com
formação em cursos de licenciatura. Com efeito, as áreas de Física e de Química
apresentam um cenário preocupante, pois, o percentual de professores licenciados para
ministrar essas disciplinas é de 9% para a primeira e de 13% para a segunda. Esta
situação expõe uma fragilidade própria da profissão docente à medida que não existem
políticas obrigatórias para que o exercício da docência seja de uso exclusivo dos
professores.


490

De acordo com os estudo de Gauthier et al. (2006), o que caracteriza a profissão


docente é o fato de:

[...] conhecer profundamente a matéria a ser ensinada, sua estrutura,


sua construção histórica bem como os métodos, técnicas,
analogias ou metáforas que melhor se aplicam ao seu ensino é o
que diferencia o professor de qualquer outro leigo que entende e se
interessa pelo assunto objeto do seu ensino. (GAUTHIER et al. 2006,
p.29).

Portanto, as especificidades da profissão docente vão se constituindo em marcas


identitárias próprias. Sob esse contexto, entende-se que a pedagogia histórico-crítica
poderá não se materializar na prática pedagógica dos profissionais que atuam como
docentes e que, no entanto, não foram formados para a profissão professor. Ou seja,
trabalhar em uma instituição de ensino requer conceber a escola como um espaço
privilegiado do saber elaborado, do conhecimento científico e da cultura erudita.
Nesse sentido, os estudos de Tardif (2004) contribuem para o entendimento da
relação entre o professor, enquanto sujeito do processo ensino-aprendizagem, e a sua
relação e (re)construção dos saberes. Desse modo, os saberes profissionais dos
professores são:

[...] temporais no sentido que [...] uma boa parte do que os professores
sabem sobre o ensino, sobre os papeis do professor e sobre como
ensinar provém de sua própria história de vida e, sobretudo de sua
história de vida escolar. Plurais e heterogêneos porque provêm de
diversas fontes. [...]. Personalizados e situados porque se trata
raramente de saberes formalizados, de saberes objetivados, mas sim de
saberes apropriados, incorporados, subjetivados, saberes que é difícil
dissociar das pessoas, de sua experiência e situação de trabalho.
(TARDIF, 2000, p.15)

Compreende-se que ao construir a sua identidade docente, o sujeito-professor


mantém uma estreita relação entre a sua subjetividade, a sua história de vida, o seu
contexto sócio-político e cultural e a materialização da sua profissão. Assim, o
desenvolvimento de suas atividades profissionais sofrerá interferências de sua vida na
infância, de sua vida escolar, de seus valores e de suas crenças, de suas representações
sociais de vida e de mundo. Considerando o forte vínculo existente entre a subjetividade
do sujeito professor e a construção de seus saberes profissionais, importa questionar o
que é esse saber. Para Borges (2004, p.90), “não é suficiente que o professor faça


491

qualquer coisa para se denominar de saber é preciso que ele saiba por que faz essas
coisas ou por que faz desta ou daquela forma”. Nesta perspectiva, apenas dominar os
conhecimentos a serem ensinados, não basta. É necessário incorporar à ação docente um
conhecimento pedagógico e curricular. Sendo assim, como os professores que não
tiveram acesso ao curso de formação de professores irão construir os saberes
profissionais necessários a sua prática docente? Se a profissão docente se aprende na
prática, qual o sentido de se ir à escola? Charlot (2005) questiona: para o professor, qual
é o sentido de ensinar? Qual é o sentido de tentar ajudar os jovens a aprender e a
compreender as coisas?
Diante dessas indagações pressupõe-se que o trabalho docente possa ser
entendido como uma tarefa complexa que requer uma formação acadêmica profissional
bastante sólida e exige muito mais que o domínio dos conhecimentos específicos que
serão (re)produzidos na relação com a prática. Tardif (2004) assevera que a relação dos
docentes com os saberes não se reduz a uma função de transmissão dos conhecimentos
já constituídos. Todo educador necessita refletir e compreender a relação estabelecida
entre a teoria e a sua prática. Corroborando com essa premissa, Sacristán & Goméz
(2000, p. 9-10) afirmam que:

Sem compreender o que se faz, a prática pedagógica é mera reprodução


de hábitos existentes, ou respostas que os docentes devem fornecer as
demandas e ordens externas [...]. O profissional do ensino, antes de ser
um técnico eficaz, deve ser alguém responsável que fundamenta sua
prática numa opção de valores e em ideias que lhe ajudam a esclarecer
as situações, os projetos e os planos, bem como as possíveis
consequências de suas práticas.

Diante deste cenário, entende-se que muitas são as possibilidades e os desafios


presentes na prática pedagógica docente, sobretudo dos professores que não possuem
uma formação específica para o exercício da docência, pois, segundo Tardif (2012, p.
35) “[...] quanto mais desenvolvido, formalizado e sistematizado é um saber mais longo
e complexo se torna o processo de aprendiz.
Dessa forma, apreende-se o aspecto materialista na teoria de Saviani (2005 p.
14), quando ele afirma que “[...] a escola é uma instituição cujo papel consiste na
socialização do saber sistematizado. [...] não se trata de qualquer tipo de saber. [...] tem
a ver com o problema da ciência. Com efeito, ciência é exatamente o saber metódico,
sistematizado”. Partindo desta tese, a pedagogia histórico-crítica, é uma concepção


492

educacional que tem consciência de que o homem é um ser histórico, pois, à medida que
se desenvolve ele constrói história e é esta história que origina o conhecimento que é
transmitido por meio na educação escolar.

1 Percursos metodológicos para apreensão do fenômeno investigado

A pesquisa em questão é de natureza qualitativa, pois, não há neutralidade do


pesquisador, uma vez que a compreensão dos fenômenos supõe a interpretação, a
revelar os sentidos e os significados que não se dão imediatamente, indagando,
buscando o esclarecimento das fases ocultas que se escondem atrás dos fenômenos
(GAMBOA, 2007, p. 88). Lüdke e André (1986, p.6) afirmam que “para realizar uma
pesquisa qualitativa também é necessário promover o confronto entre as evidências,
coletar informações sobre o assunto e o conhecimento acumulado a respeito dele (...)”.
Os estudos de Frigotto (2010, p. 79), permitem compreender a importância da dialética
na apreensão materialista e histórica do fenômeno investigado, pois, “[...] a dialética não
pode constituir-se numa “doutrina” ou numa espécie de suma teológica. Para ser
materialista e histórica tem de dar conta da totalidade, do específico, do singular e do
particular”. Desse modo, o método na perspectiva materialista histórica, está:

[...] vinculado a uma concepção de realidade, de mundo e de vida no


seu conjunto. A questão da postura, neste sentido, antecede o método.
Este se constitui em uma espécie de mediação no processo de
apreender, revelar e expor a estruturação, o desenvolvimento e
transformação dos fenômenos sociais. (FRIGOTTO, 2010. p. 84).

Frente a isso, o desafio maior foi buscar um conhecimento teórico que pudesse
proporcionar a apreensão das contradições, da estrutura e da dinâmica do objeto
pesquisado (COSTA, 2012, p. 21), pois de acordo com o educador Frigotto (2005,
p.75), “as nossas escolhas teóricas não se justificam nelas mesmas, pois, não existe
método alheio a uma concepção de realidade”. Portanto, utilizou-se como procedimento
investigativo a técnica de grupos focais, realizada com 24 alunos de 02 cursos
profissionalizantes ofertados por uma Instituição de Educação Profissional e
Tecnológica, pertencente à rede federal. Esclarece-se que ocorreram dois encontros
distintos com dois grupos de 12 alunos. Após a realização da “roda de conversa” com
esses grupos de alunos, foi aplicado um questionário para 128 alunos(as), o que


493

representou o quantitativo de 04 turmas - 2ªs e 3ªs séries - dos dois cursos técnicos
investigados.
Antes da aplicação do questionário foi explicado para eles a finalidade da
pesquisa e solicitado que se manifestassem favoráveis, ou não, em participar. Não
obstante, o questionário, de uma forma geral, possibilitou a realização de uma avaliação
institucional, pois, permitia que os estudantes manifestassem a sua percepção em
relação: a prática pedagógica docente; aos serviços administrativos, de apoio e
infraestrutura; a coordenação do curso e; aos aspectos acadêmico-formativos do curso.
Além disso, os alunos foram convidados a realizarem uma autoavaliação.
As questões trabalhadas foram amplas. Para este estudo considera-se
interessante debater e discutir as questões referentes às percepções discentes acerca da
prática docente e a relação professor x aluno. Num primeiro momento, para a
organização e a coleta de dados, realizou-se uma pesquisa nos sítios dos departamentos
onde os professores dos cursos técnicos se encontram lotados. Para efeito do
delineamento do perfil docente foi consultado a graduação de origem, a titulação e o
vínculo com a instituição. Desse modo, constatou-se que todos os docentes do quadro
efetivo são de dedicação exclusiva. No cruzamento de dados resultantes da entrevista
com os grupos focais, fez-se um esforço para verificar em que momento as falas
discentes tinham uma relação com a formação de origem do docente, podendo assim,
organizá-las em três blocos distintos. O primeiro bloco refere-se aos excertos discentes
que se relacionavam com as práticas pedagógicas dos professores não licenciados ou
que não tiveram acesso a cursos de formação pedagógica; o segundo bloco é do grupo
dos professores licenciados e o terceiro bloco refere-se tanto aos professores licenciados
quanto aos não licenciados. Esclarece-se que entende não ser necessário identificar a
instituição, bem como os cursos técnicos pesquisados, uma vez que em nada alteraria
e/ou influenciaria os resultados de pesquisa.

2 Traçando o perfil dos professores que atuam na educação profissional

Considerando a lacuna existente nas pesquisas de formação de professores para a


EPTNM, optou-se neste trabalho por um estudo exploratório sobre o perfil de todos os
professores que compõem o quadro docente da educação básica, técnica e tecnológica
(EBTT) da instituição pesquisada. Para tanto, realizou-se uma pesquisa documental
visando o mapeamento da formação acadêmica profissional; da titulação e do regime de


494

trabalho dos professores que lecionam nos Cursos Técnicos desta instituição. Desse
modo, registra-se no Gráfico1 a titulação dos 1.246 professores pertencentes ao corpo
docente da instituição.

Gráfico 1 – Número total de professores na instituição investigada

Aperfeiç Graduad
oados os Doutores
Especiali
0% 13% 30%
stas
8%

Mestres
49%

Fonte: Instituição pesquisada - Relatório de Gestão/2014

Esse cenário mostra que o número de professores com titulação de mestres e


doutores é bastante significativo, pois, somam aproximadamente 80% do quantitativo
de docentes efetivos da instituição. Para uma Instituição que valoriza o tripé: ensino,
pesquisa e extensão, considera-se que a titulação dos docentes pode favorecer o
desenvolvimento desta relação trípede. No entanto, há que se cuidar para que o
pesquisador não se sobreponha ao professor, e que, portanto, o ensino não seja
desvalorizado em detrimento da valorização da pesquisa e da extensão.
Por se tratar de um estudo introdutório, uma porta de acesso a futuras pesquisas,
considerou-se viável a investigação por amostragem nos dois cursos técnicos integrados
- planejado de modo que o aluno conclua o Ensino Médio juntamente com uma
habilitação profissional técnica de nível médio. Não obstante, compete informar que os
cursos integrados investigados são compostos por aproximadamente 67% de professores
da formação geral (núcleo básico das disciplinas que compõem a matriz curricular do
ensino médio) e 33% de professores da parte específica de cada habilitação profissional
a que se destina o curso. Com efeito, informa-se que a carga horária da formação geral é
de 2.400 horas e da formação específica é de 1.300 horas. Apresenta-se no Gráfico 2 a
formação acadêmica inicial dos professores que atuam especificamente nos 02 cursos
técnicos pesquisasdos. Contudo, apesar de se tratar de um curso integrado, este perfil
docente refere-se apenas aos professores da formação técnica específica.


495

Gráfico 1: Formação acadêmica inicial dos professores que atuam nos cursos técnicos
investigados

Graduação em Matemática 1,30%


Licenciatura Plena em … 1,30%
Licenciatura p/ … 5,50%
Graduação em Física 1,30%
Arquitetura e Urbanismo 5,50%
Ciências da Computação 43%
Engenharias 42%

Fonte: Dados de pesquisa/2015

O Gráfico 2 confirma as premissas anteriores que apontavam para um grupo de


professores que não se formaram para a profissão professor. Dos 72 professores que
formam o corpo docente da formação técnica, apenas 05 se formaram para, de fato,
serem professores (licenciados). Os demais 67 professores são profissionais de outras
áreas, majoritariamente das engenharias e ciências da computação, que se tornaram
professores pelo fato dessa profissão não ter uma exigência legal de formação
específica. Este retrato instiga o interesse em averiguar como ou quais os saberes
docentes, estes profissionais, constroem no desenvolvimento das atividades docentes?
Os cursos de engenharia civil, engenharia elétrica, ciência da computação, arquitetura e
urbanismo são suficientes para que esses profissionais se tornem professores? Estarão
os professores, sobretudo aqueles cuja formação acadêmica profissional não se fez em
cursos específicos para formação de professores, conscientes da responsabilidade e da
complexidade que envolve o exercício de sua profissão? As dimensões humanas,
afetivas, sociais, culturais, políticas, econômicas são consideradas relevantes no
planejamento de sua aula? A sua prática pedagógica relaciona com a prática social?

3 O olhar discente sobre a materialização da prática docente

Organizou-se no Quadro 1 os excertos das falas dos alunos quando reunidos no


grupo focal. Foi uma conversa com uma finalidade acadêmica que se pautou pela leveza
dos participantes, criando um clima de confiança e menos formal. Os estudantes ficaram
a vontade para falarem das questões apontadas pelo pesquisador que se atentava para
não perder o fio da objetividade da pesquisa. As falas foram organizadas em três blocos.
O primeiro referente a prática pedagógica dos professores que não se originaram de


496

cursos de formação docente. O segundo refere-se aos professores licenciados e o 3º


bloco envolvem os professores licenciados e os não licenciados. Ressalta-se, porém,
que os alunos pesquisados não sabiam dessa classificação. As correlações foram
efetuadas após a realização da técnica do grupo focal, relacionando o professor citado
pelo aluno e a sua formação acadêmica inicial.

Quadro 1: Olhares discentes sobre a prática pedagógica docente


NÃO LICENCIADOS LICENCIADOS AMBOS
O professor não dá aula. Manda ler na O professor y deveria dar Os professores
apostila que é péssima. Não tem aula provas menos caóticas. deveriam dar
prática. Como aprender a dirigir sem maior atenção
pegar no carro? aos alunos com
Os professores precisam de maior teor Ótimo professor dificuldade de
pedagógico a técnico (fazem disponibiliza de métodos aprendizagem.
terrorismo com os alunos). São super interativos e descontraídos
inteligentes, mas às vezes não nas aulas, melhorando o
conseguem passar o conhecimento de aprendizado!
forma clara e objetiva aos alunos.
Os professores de laboratório A professora possui As matérias das
deveriam estar sincronizados com os grandes habilidades em ciências exatas
professores das aulas teóricas. lecionar, tornando a devem ser
Deviam motivar mais os alunos. Não aprendizagem mais explicadas com
consigo entender nada da aula do facilitada e melhor calma e coesão.
professor x. Bom conhecimento da aplicada no cotidiano.
matéria e pouca didática.
Nas aulas de desenho quem na A melhor professora Os professores
verdade nos ajuda é o técnico, pois o possui domínio da matéria, andam com a
professor só nos disponibiliza a e suas explicações são matéria de forma
apostila e diz que nós temos que claras e objetivas! acelerada, não
aprender sozinhos. O professor x fala dando tempo
que o aluno tem de ser autodidata, para que sala
olhar as coisas e aprender. acompanhe.
O professor é extremamente
inteligente, porém possui o mesmo
defeito que a maioria dos nossos
professores tem: não têm a didática
necessária para passar seu
conhecimento. Professores muito
antiquados.
Ser professor é fácil. O professor
senta na cadeira não faz mais nada. A


497

gente é que faz por ele.


Excelente professor, inteligente, mas A professora sabe explicar Os professores
não gosta muito de explicar, prefere bem a sua matéria, sempre deveriam falar
muita das vezes passar a matéria para se disponibilizou para tirar menos de sua
que os alunos pesquisarem, não gosta dúvidas, esclarecer a vida pessoal e
de corrigir exercícios dados; trabalha matéria, dar plantões fora ensinar mais.
com o mesmo sistema de faculdade o do horário de aula, etc. Preconceito
que na minha opinião não é correto contra
em se tratando de um curso técnico. homossexuais
Podiam ser mais atualizados (mais
didática para os professores das
técnicas) e mais focados no ensino.
Não forneceu apostilas, sendo que
todo o conteúdo de ensino ele
mandava baixar na internet. E quem
não tem computador?

Os discursos discentes indicam a necessidade da escola dirigir um olhar para as


praticas didático-pedagógicas dos professores, sobretudo daqueles que não
frequentaram cursos de formação docente. A maioria das dificuldades apontadas pelos
discentes refere-se ao bloco dos professores não licenciados. Este retrato representa a
realidade das escolas de Formação Profissional e Tecnológica que numa visão
minimalista de qualificação profissional pode comprometer os pressupostos de uma
educação humanizadora e libertadora quando permitem a admissão de profissionais
(professores) não qualificados ou não graduados para esta missão. Acredita-se que haja
a necessidade de se incorporar à formação acadêmico-profissional preceitos da
formação para professores visando a consolidação da identidade desse profissional e
práticas coerentes com o favorecimento do processo ensino- aprendizagem.
Compila-se no Gráfico 2 dados extraídos dos questionários discentes a despeito
da prática pedagógica docente.


498

Gráfico 2: Olhares discentes sobre a ação didático-pedagógica docente

Apoio didático-pedagógico aos … 75,00


25,00
Integração entre a formação … 78,13
21,88
Valorização dos saberes … 75,00
25,00
Articulação entre a teoria e a … 25,00
75,00
Relação dos conhecimentos … 62,50
37,50
Linguagem clara e acessível na … 9,38
90,63

RAZOÁVEL/RUIM EXCELENTE/BOM

Fonte: dados de pesquisa/2015

O Gráfico 2 representa o esforço da pesquisadora em tratar os dados qualitativos


em forma de percentuais visando a uma melhor compreensão da percepção discente em
relação à prática didático-pedagógica docente. Nesse sentido, merece especial atenção a
questão apontada pelos alunos, tanto do grupo focal, quanto aos respondentes do
questionário, pois 75% dos respondentes indicam a necessidade dos professores se
sensibilizarem com os alunos que em sua trajetória formativa apresentam dificuldades
de aprendizagem. É urgente e necessária, na percepção discente em relação a
materialização da prática docente, um plano de ação e de intervenção pedagógica,
visando a possibilitar melhores condições de aprendizagem e de permanência dos
estudantes nessa instituição.
É preciso entender que “a prática educativa do professor tem um sentido político
em si” (SAVIANI, 2005) e que a mesma requer a materialização do saber-fazer,
entendido como o domínio do conteúdo do saber e dos métodos adequados para trans-
mitir o conteúdo do saber escolar aos alunos que não apresentam as precondições
idealmente estabelecidas para sua aprendizagem [MELLO, 1982, p. 145]. Diante disso,
entende-se que os professores desta instituição carecem compreender melhor quais são
as suas competências técnicas para que possa imprimir “à sua prática docente um
caráter político (...) Porque o saber-fazer constitui uma das necessidades imediatas para
sua imagem de profissional, para uma percepção mais crítica e menos assistencialista do
valor de seu trabalho”. (SAVIANI, 2005, p.55).
Quando se trata da percepção a despeito da integração entre a formação técnica e
a formação geral os alunos afirmam que 78% dos professores não se dispõem a
derrubada dessa fronteira. Pelas manifestações orais dos estudantes foi possível captar
que o individualismo sobrepõe à coletividade. Cada docente toma sua disciplina como a


499

mais importante dentre as outras do currículo escolar e se atentam as especificidades


técnicas na finalidade de preparar eficaz e eficientemente os alunos para o labor. A
perspectiva de uma educação politécnica apontada por Marx em meados do século XIX
se perde de sentido. Marx e Engels (1983, p. 60) entendem a educação sob três pilares:

a). Intelectual; b). Corporal - tal como a que se consegue com os


exercícios de ginástica e militares; e c). Tecnológico - que recolhe os
princípios gerais e de caráter científico de todo o processo de
produção e, ao mesmo tempo, inicia as crianças e os adolescentes no
manejo de ferramentas elementares dos diversos ramos industriais.

O entendimento desses autores possibilita a problematização da prática didático-


pedagógica dos docentes em apreço, uma vez que os mesmos lecionam em uma
instituição de educação tecnológica e, na percepção dos estudantes pesquisados, se
limita a uma formação mais técnica, silenciando a educação corporal, cultural, social,
política. Contudo, a formação para o trabalho necessita ser crítica e desalienante, pois “a
essência da realidade humana é o trabalho, é através dele que o homem age sobre a
natureza, ajustando-a as suas necessidades”. (SAVIANI, 2005, p.94).
Desta forma, para Saviani (1996) uma metodologia de ensino deveria ter como
ponto de partida a prática social, comum a professores e alunos, para em seguida
problematizar as questões que precisam ser resolvidas no âmbito dessa prática social. A
apropriação de instrumentos teóricos e práticos para resolver os problemas detectados
no processo ensino-aprendizagem, é denominado por Saviani, de instrumentalização.
Além da instrumentalização, o autor destaca o momento da catarse, que se constitui da
incorporação dos instrumentos culturais transformados em elementos ativos,
reconstruídos pelos alunos que por conseguinte vão reconstruindo os conhecimentos. E
por fim, aponta o momento da prática social que é a elevação dos alunos ao nível do
professor para se compreender a especificidade das relações pedagógicas. Ou seja, nesta
fase os alunos conseguem se elevar por meio da análise chegar a síntese.
Corroborando com esses apontamentos, identifica-se que nas questões referentes
à relação dos conhecimentos científicos com a prática social (formação humana) e a
valorização dos saberes culturais e sociais, a maioria dos alunos avalia a prática
pedagógica como razoável ou ruim. Entende-se que essa percepção seja decorrente da
falta de diálogo entre o grupo de professores do curso, bem como de uma tendência do
ser professor especialista de um saber disciplinar específico. Saviani (2005) assevera
que uma das tarefas postas à pedagogia histórico-crítica é a conversão do saber objetivo


500

em saber escolar, de modo que se torne assimilável pelos alunos no espaço e tempos
escolares, provindo dos meios necessários para que os alunos não apenas assimilem o
saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo de sua produção, bem
como as tendências de sua transformação.
Com efeito, a relação que o professor estabelece da sua disciplina teórica com a
prática é entendida como satisfatória pelos alunos. Assim como os mesmos afirmam que
os docentes utilizam de uma linguagem clara e compreensível na explanação dos
conteúdos escolares.

Considerações finais

Entende-se que este estudo investigativo poderá colaborar com reflexões acerca
da formação docente para a EPTNM e apresentar pistas para futuras pesquisas. Percebe-
se que as representações que os estudantes constroem sobre os aspectos relacionados ao
ensino e à prática docente, proporcionará a busca de elementos para melhor se
compreender a materialização das práticas didático-pedagoógica, sobretudo, sobre o
processo de ensinar e de aprender. Evidencia-se que a prática educativa está
intensamente ligada às experiências vividas pelos profissionais da educação. É, com a
história de vida e de existência, que os mesmos (re)significam os (pré)conceitos, os
valores, a simbologia e a afetividade. O educador é, ao mesmo tempo, aprendiz e
ensinador de alguma coisa para alguém. Seu saber é pessoal e intransferível, é aquilo
que forma o seu acervo de conhecimentos. Se existe o objetivo de compreender como se
constrói a identidade docente, há que se atentar para os saberes e fazeres que cada um
traz consigo para o interior da escola, da sala de aula. O objetivo deve ser a formação do
ser humano como um todo e baseada na prática social, para que ao fim do período
escolar as desigualdades de início não tenham sido ampliadas pela apropriação do saber
historicamente produzido pela humanidade. (SAVIANI, 2005).
Pelos relatos dos alunos apreendem-se apelos a melhores práticas pedagógicas,
no sentido de favorecer a formação integrada e o diálogo, a derrubada de fronteiras
entre as disciplinas. Não obstante, entende-se que a materialização das práticas
analisadas está apontando para uma educação vocacionada, e os preceitos de uma
formação politécnica são silenciados nas ações docentes. Os dados apontam que os
professores cuja formação acadêmica profissional não é a licenciatura, são os que mais
apresentam déficit no desenvolvimento de uma prática didático-pedagógica que


501

favoreça a formação humanística. No entanto, há que se considerar que o fato de,


apenas serem professores licenciados, também não garante um desempenho profissional
favorável à trajetória formativa do aluno e ao processo ensino-aprendizagem.
Considera-se este estudo incipiente para conclusões finais. Nesse sentido,
acredita-se que esta temática possa ser mais explorada/investigada sob o olhar dos
diferentes sujeitos (alunos, professores e gestores) envolvidos no processo ensino-
aprendizagem. Contudo, destaca-se que a opinião do aluno poderá ser tomada como
referência para o desenho de como os professores constroem a sua identidade e os
saberes profissionais.
Pela minha experiência profissional e recorrendo as anotações em minha agenda
de trabalho, posso dizer que as maiores reclamações dos alunos em relação aos
professores se referem a sua prática pedagógica, sendo, os professores em sua maioria,
aqueles cuja formação acadêmica profissional não se fez em centros de formação de
professores. Embora se constituam de um grupo com a maior parte de mestres e
doutores, no entanto são em sua gênese a maioria de engenheiros e profissionais da
ciência da informação. Ou seja, são profissionais das ciências e tecnologias que estão
atuando como professores na EPTNM.

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TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O PAPEL DO ENSINO DE CIÊNCIAS PARA


A PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA.

Bruno Novais de Souza (UNESP)1

Resumo: Nas últimas décadas, o Ensino de Ciências vem tentando acompanhar o ritmo
de desenvolvimento da Ciência e da Sociedade. Novas propostas surgem tendo em vista
que os problemas na relação ensino-aprendizagem ainda estão presentes na educação e o
Ensino de Ciências não está isento deste contexto. A teoria pedagógica Histórico-Crítica
acredita que o papel da escola é o de socializar o conhecimento científico produzido
historicamente através do ensino aos excluídos socialmente, auxiliando no processo de
transformação do atual modelo socioeconômico. Este trabalho analisa as publicações
voltadas para o Ensino de Ciências referenciadas teoricamente pela Pedagogia
Histórico-Crítica com o objetivo de explicitar qual a concepção de Ensino de Ciências
defendida por essa teoria pedagógica.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica; Ensino de Ciências e Educação Crítica.

Introdução

Nos últimos períodos, o Ensino de Ciências sofreu algumas reformulações


acompanhando as exigências de cada década e, consequentemente, as propostas
pedagógicas foram modificadas com objetivo de dinamizar a aprendizagem. Com a
intensificação da industrialização brasileira e o reflexo das descobertas científicas da
ciência da natureza, o ensino teve como foco a experimentação, os roteiros para as aulas
práticas se massificaram, cabendo ao professor ensinar aos alunos a seguir os manuais
de instruções, instigando a aprendizagem, pois ela só seria garantida quando o aluno
reproduzisse o método científico. (KRASILCHIK, 1987)
Durante a década de 60 e 70, o avanço da ciência em um país era garantia de
seu desenvolvimento na disputa internacional, assim, os investimentos no Ensino de
Ciências da natureza e na formação de professores passaram a ser prioridades dos

1
1 Bruno Novais de Souza, Biólogo, Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho, São Paulo,
Brasil. E-mail: bndsbio@gmail.com


504

governos. Após a redemocratização do Brasil, a entrada das psicologias cognitivas


ligadas a Piaget e aos conflitos sociais que o avanço da ciência promoveu, a proposta
para o Ensino de Ciências ganhou um novo rumo e novas preocupações.
(KRASILCHIK, 1987)
Podemos observar que o Ensino de Ciências vem tentando acompanhar o ritmo
de desenvolvimento da Ciência e da Sociedade. Novas propostas surgem, tendo em
vista que os problemas na relação ensino-aprendizagem ainda estão presentes na
educação e o Ensino de Ciências não está isento deste contexto, necessitando de estudos
específicos que tenham como objetivo responder as lacunas ainda existentes em mais de
50 anos de formulação.
Na Pedagogia Histórico-Crítica (PHC), Dermeval Saviani aponta a necessidade
do desenvolvimento de uma educação comprometida com os problemas sociais,
argumentando que o papel da escola é o de socializar o conhecimento cientifico
produzido historicamente através do ensino aos excluídos socialmente pelo sistema
capitalista, contribuindo para a sua superação. Segundo Saviani (2008, p. 75):

Em outros termos, o que eu quero traduzir com a expressão pedagogia


histórico-crítica é o empenho em compreender a questão educacional
com base no desenvolvimento histórico objetivo. Portanto, a
concepção pressuposta nesta visão da pedagogia histórico-crítica é o
materialismo histórico dialético, ou seja, a compreensão da história a
partir do desenvolvimento material, da determinação das condições
materiais da existência humana.

Com o materialismo histórico dialético, método marxista, passamos a


compreender a realidade e os seus fenômenos não apenas em sua aparência, de forma
imediata, sincrética, mas a sua contextualização na história, o seu movimento e os
elementos contraditórios que passam a coexistir no fenômeno, ao desvelar as é
construída uma visão totalizadora que possibilita ao indivíduo compreender a realidade
em seu dinamismo histórico e, portanto, a potencialidade de transformação da realidade
concreta pela classe explorada – a trabalhadora. (KOSIK, 1976).
Como atividade inerente ao ser humano, a educação está associada ao
processo histórico da humanidade no seu desenvolvimento diante das dificuldades
enfrentadas para a sua sobrevivência. Essa relação se estabelece em concomitância com
o trabalho humano, pois é neste processo que nossa espécie modifica a natureza em prol
das necessidades, e a educação sistematizará a socialização das técnicas, das teorias, dos
métodos, desenvolvendo o processo de formação das novas gerações (SAVIANI, 2008).


505

A Pedagogia Histórico-Crítica no Ensino de Ciências

Desde a primeira formulação de Dermeval Saviani, outros autores vêm


contribuindo na construção desta teoria pedagógica, o que chamamos de construção
coletiva da PHC. Uma das atuais preocupações dentro da PHC tem sido o seu
desenvolvimento nas áreas específicas, apontando desafios para os pesquisadores das
grandes áreas (Ciência da Natureza, Ciência da Sociedade, Linguagens e Matemática),
que precisam se apropriar dos pressupostos que embasam a PHC, das especificidades de
cada área, para apresentar saídas à educação escolar.
Buscamos fazer um levantamento das produções existentes que retratam o
Ensino de Ciências na perspectiva da PHC, com o objetivo de extrair dessas publicações
a concepção de Ensino de Ciências para a PHC. Tomando a própria Pedagogia
Histórico-Crítica e o materialismo histórico-dialético como fundamentação teórica, este
trabalho se faz necessário pela síntese que ele apresenta da PHC no Ensino de Ciência
para as práticas educativas no contexto da educação escolar.
Totalidade, praxis, mediação e contradição são conceitos chaves do
materialismo histórico dialético que nos permite analisar os trabalhos de forma
unificada e específica, recorrendo aos elementos comuns e incomuns da fundamentação,
essencial para a construção de síntese do enfoque da PHC no Ensino de Ciência via
publicações em diversos formatos. A síntese que pretendemos alcançar com esse
levantamento não se trata de somar as partes para a configuração de um novo todo, ela
carrega a expressão da diversidade e a tensão da contradição. Segundo Franco, Carmo e
Medeiro (2013, p. 9):

É importante ter claro que a síntese é muito mais que um ecletismo,


ela considera fielmente a tese e a antítese, porém se apresenta como
uma nova configuração fruto do processo da contradição e nova
possibilidade de discussão quando ocupa o lugar de tese.

Realizamos uma revisão bibliográfica, levantamento de periódicos (Scielo e


Domínio Público) e de teses e dissertações (Banco de teses da Capes e Banco digital de
teses e dissertações), selecionando os documentos que trazem em sua fundamentação a
PHC e, consequentemente, o materialismo histórico-dialético. Para localizar os
documentos, usamos os seguintes descritores: a) Ensino de Ciências + Pedagogia
Histórico-Crítica; b) Ciências da Natureza + Pedagogia Histórico-Crítica; c) Biologia +


506

Pedagogia Histórico Crítica; d) Química + Pedagogia Histórico-Crítica; e) Física +


Pedagogia Histórico-Crítica.
Com as restrições já apontadas, selecionamos 12 documentos (4 dissertações, 2
teses, 3 artigos e 3 livros). A leitura foi realizada com o olhar destinado às contribuições
que tais publicações traziam em seu desenvolvimento, no que restringe ao Ensino de
Ciências a partir dos pressupostos da PHC. Ao defender as formulações de Saviani,
entendemos que estas publicações compõem a construção coletiva da PHC para o
Ensino de Ciências.
Para analisar os documentos utilizamos roteiros, Marin (2001, p.5) afirma que
“um roteiro identificador dos principais pontos relativos ao documento já é uma pré-
análise, pois contém informações resultantes de algum processamento inicial das
leituras dos mesmos.”. A partir do roteiro construímos um quadro que explicita a
divisão realizada para o tratamento dos dados.

Quadro 1 – Classificação dos documentos analisados


Principal relação
estabelecida entre
Autor Ano Tipo de Temática o Ensino de
Documento Ciências e a PHC
Análise da incorporação Superação do
dos conceitos de cotidiano pela
ANUNCIACA 2012 Dissertação química orgânica na apropriação dos
O, B. C. P. da formação de conceitos
professores. científicos

SANTOS, F. S. 2015 Dissertação A PHC e o Ensino de Superação do


S. dos Ciências na Formação cotidiano pela
de Professores do apropriação dos
Ensino Fundamental. conceitos
científicos
ZUQUIERI, R. 2007 Dissertação Eficácia da PHC no Ensino de Ciências
C. B. Ensino de Ciências na crítico através da
Educação Infantil. análise histórica da
sociedade
GENOVEZ C. 2006 Dissertação As propostas Ensino de Ciências
L. C. R. metodológicas da PHC crítico através da
na Educação Ambiental análise histórica da
– poluição das águas. sociedade
SOUZA, D. C. 2014 Tese Proposição de Ensino de Ciências


507

de elementos teórico- crítico através da


metodológicos que análise histórica da
favorecessem a sociedade
construção da Educação
Ambiental crítica na
escola.
MORI R. C. 2014 Tese Contribuições de uma A experimentação
Experimentoteca para a no Ensino de
prática e para a Ciências como
formação de passagem do
professores de Química. empírico ao
concreto
ANUNCIAÇÃ 2015 Artigo A PHC como Superação do
O B. C. P. da., referencial teórico- cotidiano pela
NETO H. S. metodológio no curso apropriação dos
M., de Licenciatura em conceitos
MORADILLO Química no Campo. científicos
E. F. de
ROSELLA M. 2010 Artigo Proposta de ensino e Ensino de Ciências
L. A., aprendizagem de crítico através da
CALUZI J. J. conceitos científicos análise histórica da
sociedade
ARAGAO A. 2012 Artigo O ensino de Química Ensino de Ciências
S. para alunos cegos a crítico através da
partir das orientações análise histórica da
da PHC sociedade
SANTOS C. S. 2005 Livro Abordagem estratégica A experimentação
dos da PHC como no Ensino de
instrumento para o Ciências como
Ensino de Ciências. passagem do
empírico ao
concreto
ANUNCIAÇÃ 2016 Livro Passos metodológica da Superação do
O B. C. P. da PHC na formação de cotidiano pela
Professores de Ciências apropriação dos
conceitos
científicos
GERALDO, 2009 Livro Didática para o Ensino Ensino de Ciências
A.C. H. de Ciências na crítico através da
perspectiva da PHC análise histórica da
sociedade
FONTE: O autor 2016


508

Podemos observar que as publicações foram divididas em eixos - Principal


relação estabelecida entre o Ensino de Ciências e a PHC - funcionando como categorias
de análises, que surgiram após a leitura de todo material selecionado, são eles: 1) Prática
Social: superação do cotidiano pela apropriação dos conceitos científicos; 2) Ensino de
Ciências crítico através da análise histórica da sociedade e 3) A experimentação no
Ensino de Ciências como passagem do empírico ao concreto.
As categorias levantadas surgiram durante a leitura, sendo a expressão do
aspecto predominante de determinados artigos, assim, foi possível agrupá-los,
facilitando a análise das particularidades de cada publicação. Os trabalhos trazem em
sua fundamentação teórica os fundamentos filosóficos que embasam a PHC, e com isso
já fazem sua defesa pela a historicidade, criticidade, superação do cotidiano e pelo salto
necessário do empírico para o concreto, veremos que alguns poderiam ser analisados em
mais de um eixo. Mas essa divisão se faz necessária porque ela demarca, o que é para os
autores, o aspecto mais relevante da PHC para o Ensino de Ciências.

1 Prática Social: superação do cotidiano pela apropriação dos conceitos científicos

Anunciação, Neto e Moradillo (2012), Anunciação (2012), Santos (2015),


Anunciação (2016) foram as publicações enquadradas como “Prática Social: superação
do cotidiano pela apropriação dos conceitos científicos”, uma vez que na relação
estabelecida entre Ensino de Ciências e a PHC, partem da Prática Social para construir a
concepção de Ensino de Ciências dentro desta proposta pedagógica.
No desenvolvimento da PHC, Dermeval Saviani, em sua primeira obra “Escola
e Democracia”, analisa as principais propostas pedagógicas e suas metodologias de
ensino. Após uma reflexão, que busca nos elementos históricos compreender os motivos
que levaram à defesa de determinadas concepções, inicia a sistematização do método de
ensino próprio à PHC. Saviani elenca cinco passos (Prática Social Inicial,
Problematização, Instrumentalização, Catarse e Prática Social Final) que estruturam a
relação ensino-aprendizagem (SAVIANI, 2000).
Anunciação (2012, p.73) afirma que “propor uma teoria pedagógica
fundamentada na prática social se faz extremamente relevante no ensino de ciências,
pois a realidade concreta dos estudantes pode motivá-los à aprendizagem”,
desenvolvendo a concepção de um Ensino de Ciências conectado com a realidade dos
alunos para colocar em destaque a importância do conhecimento científico, sendo a


509

maior contribuição da PHC a não desvinculação do cotidiano com a ciência e o ensino


tem a responsabilidade de clarificar essa relação.
Analisando os demais documentos dessa categoria, encontramos mais detalhes
do significado da Prática Social no Ensino de Ciências e as modificações necessárias na
realidade dos sujeitos envolvidos (professor e aluno). Para Santos (2015) a capacidade
do Ensino de Ciências é garantir a compreensão do ser humano sobre os fenômenos que
compõem o seu cotidiano, entendendo essa compreensão como parte constitutiva de seu
desenvolvimento. As mudanças na realidade globalizada exigem que os indivíduos
busquem meios para garantir sua sobrevivência, e o ensino de ciências é o responsável
em buscar formas de diminuir os impactos causados pelo desenvolvimento do
capitalismo no âmbito ambiental, seja através das novas tecnológicas ou até mesmo na
busca por novas formas de convívio homem-natureza. Mas a PHC reconhece o
cotidiano como contraditório, fruto da sociedade capitalista, e diferencia a Prática Social
das experiências do dia-a-dia dos indivíduos. Santos (2015, p. 67) aponta tais
diferenças:

Os conhecimentos relativos às Ciências Naturais servirão de


instrumentos aos alunos para que a prática social dos mesmos seja
modificada, com vistas à transformação social. Concordamos com o
autor que na PHC, o conceito de cotidiano fica ampliado,
considerando-se interesses e determinantes econômicos e políticos e
que, nessa perspectiva, o cotidiano é justamente aquilo que o ensino
de ciências deve superar.

O ensino através do cotidiano tem sido um ponto de defesa por diversas


propostas pedagógicas, na defesa de que ao trabalharem com o cotidiano possibilitam a
abordagem de questões reais, oriundas do âmbito de interesse dos estudantes, podendo
motivar e apoiá-los na compreensão de métodos e conteúdos.
Para a PHC, a prática social como metodologia de ensino não é resultado de
elementos que são extraídos do cotidiano e transformados em conteúdo escolar, mas o
fruto das relações concretas entre os seres humanos, é olhar para a realidade em seu
todo e averiguar como ela ocorre nas relações sociais. Nas palavras de Martins (2013, p.
290) “é a necessidade de reconhecer tanto o professor quanto o aluno em sua
concretude, isto é, como sínteses de múltiplas determinações”. A prática social localiza
a educação escolar no seio da organização da sociedade capitalista, mas com o objetivo
de superá-la. (MARTINS, 2013)


510

O Ensino de Ciências baseado na PHC cria uma tensão na interpretação da


realidade, que era vista de forma caótica, para Anunciação (2016) ele deve passar a
questionar a própria estrutura lógica interna do conhecimento científico, uma vez que é
durante a Prática Social que a relação dialética teoria e prática é questionada. Ao
exaltarem a Prática Social como ponto de defesa que sustenta o Ensino de Ciências na
perspectiva da PHC, os autores apresentam abertamente os objetivos atribuídos à
Ciência da Natureza na educação escolar.

2 Ensino de Ciências crítico através da análise histórica da sociedade

Geraldo (2005), Zuquieri (2007), Genovez (2006), Souza (2014), Aragão


(2012), Rosella e Caluzi são publicações que defendem que o Ensino de Ciências
precisa estar apropriado das suas relações históricas sociais para se constituir como
ensino crítico. Estes trabalhos apresentam diferentes níveis de explicação para o
desenvolvimento de um Ensino de Ciências crítico, perceberemos que alguns apenas
fazem uma transposição direta, quase mecânica, da fundamentação da PHC -
materialismo histórico-dialético - outros buscam desenvolver mais a fundo as pontes
que devem ser conectadas entre a PHC e o Ensino de Ciências.
A PHC é uma teoria pedagógica revolucionária e crítica, reconhece que o
sistema educacional não determina a sociedade, mas que o sistema social opera
definindo as diretrizes educacionais. Acompanha o desenvolvimento das propostas
pedagógicas que não se propõem a romper com o capitalismo (Escola Tradicional, Nova
e Tecnicista), chamada por Saviani de teorias não-críticas, propondo sua superação por
incorporação. A PHC é crítica porque não desvincula a mudança dos paradigmas
educacionais da mudança do sistema socioeconômico. (SAVIANI, 2008).
Entre os trabalhos deste eixo, Geraldo (2009) é o que estabelece mais relações
para o Ensino de Ciências com a PHC, inclusive neste trabalho são abordados
elementos que o enquadraria em outros eixos. Este crédito é oriundo da natureza da
publicação, que é no formato de livro, tendo mais possibilidades para mais proposições.
Geraldo (2009) defende a articulação do Ensino de Ciências aos pressupostos da PHC
através dos fundamentos históricos e sociais do conhecimento científico, do
entendimento da ciência como processo e produto, baseada na práxis social humana.
O Ensino Ciências se torna crítico quando ele tem como objetivo socializar a
patrimônio histórico-científico produzido pela humanidade, no reconhecimento da


511

importância da história e suas contradições para a transformação da atual realidade.


Segundo Geraldo (2009, p. 66):
Uma parte importante dos conhecimentos disponíveis e
necessários para a continuidade e o desenvolvimento das
atividades humanas contemporâneas são os conhecimentos de
ciências naturais (geologia, biologia, física e química) e aí
podemos identificar uma primeira aproximação para uma
delimitação da especificidade do ensino das ciências naturais
nas escolas de formação básica.

Ainda encontramos no trabalho de Geraldo (2009) dez objetivos do Ensino de


Ciências para a educação escolar, são eles: (i) compreender a natureza e os fenômenos
que nela se desenvolve; (ii) compreender o conhecimento científico como prática social;
(iii) desenvolver o vocabulário e a linguagem científica; (iv) relacionar a ciência,
tecnologia e a sociedade, (v) desenvolver as operações do pensamento; (vi) desenvolver
as habilidades cognitivas; (vii) desenvolver atitudes favoráveis a uma aprendizagem
científica significativa; (viii) despertar o interesse pela qualidade de vida, como direito e
dever; (ix) desenvolver uma visão de mundo crítica e totalizadora, integrando todos os
tipos de ciências e; (x) participar de discussões sobre ciência, tecnologia e sociedade.
(GERALDO, 2009)
Zuquieri (2007), Aragão (2012), Rosella e Caluzi (2010) são trabalhos que não
se comprometem a estabelecer conexões mais profundas no papel do Ensino de Ciências
com a PHC, destacam apenas a importância do conhecimento histórico para o ensino,
uma vez que o conhecimento científico é gerado no motor das necessidades históricas
da humanidade, como também, meios de significar o mundo e transformá-lo. Segundo
Zuquieri (2007, p.66):

A nossa opção pela metodologia da Pedagogia Histórico-Crítica teve o


intuito de propiciar práticas educativas que valorizem a relação
educação e sociedade, através do qual o ensino de ciências deva ser
pensado de maneira a permitir que o aluno saia do seu conhecimento
prévio e espontâneo para chegar ao conhecimento científico,
permitindo uma visão de educação e sociedade objetivada na
transformação social.

Caluzi e Rosella (2010, p.10) ainda apontam que apenas a socialização dos
conteúdos, pressuposto da PHC, incorporado ao Ensino de Ciências no trabalho de
GERALDO (2009), não é suficiente, pois “desvendar não se limita mais a um simples


512

acúmulo de informações científicas sobre a realidade, mas um apropriar-se da cultura


elaborada para que possamos participar ativamente das conquistas da Ciência e da
Tecnologia”.
Os trabalhos Genovez (2006) e Souza (2014), merecem uma análise separada
dos demais. Apesar de partirem da defesa pela relação educação e sociedade no Ensino
de Ciências, são publicações voltadas para a Educação Ambiental. A Educação
Ambiental é uma proposta de ensino que carrega diferentes vertentes, mas existe uma
concepção hegemônica que embasa as práticas pedagógicas dos professores de ciências,
esse ideário coloca o ser humano como responsável e vítima dos desastres ambientais, e
a ação individual se torna a solução paras as questões do meio ambiente (SOUZA,
2014).
As diretrizes da PHC na Educação Ambiental, para essas publicações, partem
da realidade concreta da atual escola, com o olhar nos fatores históricos que
determinaram as dificuldades que o Ensino de Ciências possui ao apresentar uma
ruptura na relação de degradação do ser humano para com o meio ambiente. Segundo
Souza (2014, p.62):

Neste contexto teórico, entendemos que a pedagogia histórico-crítica


proposta por Demerval Saviani e colaboradores traz avanços
qualitativos às discussões da EA crítica, uma vez que ambas assumem
como princípio a realidade concreta que envolve os educandos,
considerando as demandas e necessidades históricas dos sujeitos no
sentido de questionar a escola existente, de situá-la num contexto mais
amplo do que aquele das salas de aulas e de valorizar o conteúdo
como instrumento para a participação social, propondo alternativas e
indicando a necessidade de uma educação que promova a práxis para
a transformação social.

A análise educacional da PHC a partir do desenvolvimento do capitalismo, sua


busca pela compreensão da sociedade e o papel que a educação deve cumprir diante dos
desafios colocados para o desenvolvimento da humanidade, são os pontos fortes que
levaram a adoção dessa pedagogia para os trabalhados desse eixo. Os recursos
tecnológicos, a economia, a política e o meio ambiente são preocupações presentes no
Ensino de Ciência, e a PHC, com sua visão holística da realidade, apresenta saídas para
essa preocupação.


513

3 A experimentação no Ensino de Ciências como passagem do empírico ao


concreto

O ensino por meio da experimentação é quase uma necessidade no


âmbito das ciências naturais. Ocorre que podemos perder o sentido da
construção científica se não relacionarmos experimentação,
construção de teorias e realidade socioeconômica e se não
valorizarmos a relação entre teoria e experimentação, pois ela é o
próprio cerne do processo científico. (SANTOS, 2005, p. 61).

Um dos objetivos da educação escolar para a PHC é revelar o concreto latente


no empírico. A construção do pensamento passa por etapas, iniciando no empírico,
passando pelo abstrato até atingir o concreto, que é o alcance de uma concepção
coerente, cultivada e histórica, superando o senso comum, que é uma visão
fragmentada, incoerente e desarticulada. O concreto é histórico, ele se revela na e pela
práxis, o empírico ao concreto corresponde, em termos de concepção de mundo, a
passagem do senso comum à consciência filosófica. (SAVIANI, 1996)
Mori (2014) e Santos (2005) foram as publicações que se debruçam na
experimentação como passagem do empírico ao concreto. No desenvolvimento do
Ensino de Ciências no Brasil a experimentação ganhou espaço com a evolução
científica, vista como consequência da ciência moderna, na defesa de que para ensinar
ciências é preciso reproduzir o método científico (Narde e Almeida, 2007). Mas ao
adotarem a PHC como fundamentação teórica o Ensino de Ciências por experimentação
ganha novos contornos, para Mori (2014, p. 430),

O experimento científico realizado na sala de aula, embora também


sirva ao estudo de hipóteses e se oriente a partir de e em direção a um
saber teórico, não se propõe, contudo, a contribuir direta e
imediatamente para o desenvolvimento deste saber.

Geraldo (2009) também traz algumas preocupações no que tange o erro de


algumas propostas de Ensino de Ciências apostarem na experimentação como também
produção de conhecimento científico e afirma que a experimentação não deve ser uma
mera reprodução dos passos metodológicos desenvolvidos nas pesquisas. Em Geraldo
(2009, p. 79) “ [...] essa definição da especificidade do processo de conhecimento
escolar não exclui a apropriação e o desenvolvimento das habilidades de investigação
criadora de conhecimentos na escola por meio de técnicas didáticas específicas”.


514

Considerações finais

Esse trabalho buscou, através de publicações, analisar qual é a concepção de


Ensino de Ciências para Pedagogia Histórico-Crítica. Por não existir documentos
direcionados a este propósito, foi preciso levantar todos os trabalhos que partem da
teoria pedagógica formulada pelo professor Dermeval Saviani para construir saídas para
o Ensino de Ciências, com o objetivo de extrair a concepção de Ensino de Ciências
calcada no materialismo histórico-dialético.
O ponto de partida comum a todos os trabalhos analisados é o que aponta a
possibilidade do Ensino de Ciências em contribuir para a construção da concepção de
mundo dos envolvidos (professor e aluno), pois a apropriação dos conceitos científicos
qualifica a relação homem/meio ambiente, e na prática social essa relação ganha
contextos mais amplos, revelando que a ciência produzida atende aos interesses de uma
sociedade forjada na desigualdade e que o Ensino de Ciências, como pertencente ao
currículo da educação, precisa se comprometer com a transformação deste contexto de
dominação.
Apontamos como uma importante conclusão que não foi encontrado nenhum
trabalho que faça um balanço geral, na perspectiva da PHC, do Ensino de Ciências nas
ultimas décadas e suas consequências para a educação escolar. Com apenas doze
trabalhos, percebemos que a relação entre o Ensino de Ciências e a PHC ainda é frágil e
difusa, o que possibilita colocarmos na ordem do dia a necessidade de produções
específicas para a área. Por a PHC ser uma teoria pedagógica consolidada teoricamente,
os trabalhos analisados utilizaram os seus pressupostos, transpondo para o contexto da
Ciência da Natureza, apresentando-os como concepção de Ensino de Ciências, o que
nos permite apropriarmo-nos de importantes produções da área do conhecimento para
efetivamente pensarmos a materialização das Ciências da Natureza a partir de uma
proposta pedagógica anticapitalista e libertária.

Referências

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ANUNCIAÇÃO, B. C. P. Pedagogia Histórico-Crítica na Formação de Professores de


Ciências. 1 ed – Curitiba: Appris, 2016.

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FRANCO, K. J. S.M; CARMO, A. C. F. B.; MEDEIROS J. L. Pesquisa qualitativa em


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Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais – UEG/UnU Iporá, v.2, n. 2, p.91-
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GENOVEZ, C. L. C. R. A Poluição das águas do rio Bauru vista sob a perspectiva da


Pedagogia Histórico-Crítica. Dissertação - Programa de Pós-Graduação em Educação para a
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KOSIK, K. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

KRASILCHIK, M. O professor e o currículo das ciências. São Paulo-SP. Editora da


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Campinas, SP: Autores Associados. – (Coleção educação contemporânea) 2008.


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Associados. 11 ed. 1996.

SOUZA, D. C. de. A educação ambiental crítica e sua construção na escola pública:


compreendendo contradições pelos caminhos da formação de professores. Tese - Programa
de Pós-Graduação em Educação para a Ciência. Bauru-SP. 2014.

ZUQUIERI R.C. B. Ensino de Ciências na Educação Infantil: Análise de Práticas Docentes


na Abordagem Metodológica da Pedagogia Histórico-Crítica. Dissertação - Programa de
Pós-Graduação Educação para a Ciência. Bauru-SP. 2007.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

AS PEDAGOGIAS DO "APRENDER A APRENDER" E OS DOCUMENTOS


OFICIAIS: UMA ANÁLISE DO TRABALHO EDUCATIVO NO BERÇÁRIO

Wanessa Raylla de Albuquerque Ferreira (SEDU)1


Ana Carolina Galvão Marsiglia (UFES)2

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre a prática pedagógica na educação
infantil, tomando como base o referencial teórico da pedagogia histórico-crítica por meio de
análise crítica acerca da educação infantil com base nos documentos oficiais com foco no
trabalho educativo no berçário. Assim, vamos de encontro à concepção de criança que defende
que as instituições de educação infantil se afastem do modelo de ensino e se pautem na não-
diretividade e em práticas espontaneístas. Trata-se de uma pesquisa teórico-conceitual que inclui
procedimentos metodológicos de pesquisa bibliográfica e documental, considerando os autores
de referência da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural. Dessa forma
esperamos contribuir para a reflexão acerca da importância do ensino nos berçários de forma a
proporcionar o máximo desenvolvimento humano, por meio da democratização do
conhecimento sistematizado em busca da transformação da sociedade.

Palavras-chave: Pedagogia histórico-crítica. Psicologia histórico-cultural. Berçário.

Introdução

De acordo com documentos oficiais que norteiam a educação infantil:


Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998),
Parâmetros Nacionais de Qualidade para a Educação Infantil (BRASIL, 2006a), Política
Nacional de Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à Educação
(BRASIL, 2006b), Resolução nº 05, de 17 de dezembro de 2009 (Resolução CNE/CEB
5/2009) e Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010),
valoriza-se o cuidado, a brincadeira e integração, sendo estes, portanto, fundamentais
para o trabalho pedagógico na educação infantil, articulados com situações que
reproduzam contextos cotidianos.

1
Wanessa Raylla de Albuquerque Ferreira, Pedagoga, Secretaria de Educação do Estado do Espírito
Santo, ES, Brasil.
E-mail: wraylla@gmail.com
2
Ana Carolina Galvão Marsiglia, Doutora em Educação Escolar, Universidade Federal do Espírito Santo,
ES, Brasil. E-mail: galvao.marsiglia@gmail.com


518

Por meio de análise crítica acerca da educação infantil com base nestes
documentos oficiais com foco no trabalho educativo no berçário, o presente trabalho
visa refletir sobre a prática pedagógica na educação infantil, baseados no referencial
teórico da pedagogia histórico-crítica.
Trata-se de uma pesquisa teórico-conceitual que inclui procedimentos
metodológicos de pesquisa bibliográfica e documental, considerando os autores de
referência da pedagogia histórico-crítica e da psicologia histórico-cultural.
Dessa forma esperamos contribuir para a reflexão acerca da importância do
ensino nos berçários de forma a proporcionar o desenvolvimento humano, contribuindo
para que esses sujeitos se apropriem de toda cultura produzida historicamente pelo
conjunto dos homens por meio da democratização do conhecimento sistematizado em
busca da transformação da sociedade.

Desenvolvimento

O estudo a que nos propomos se constitui com base na crítica à ideologia


dominante na sociedade em que vivemos – sociedade capitalista – a qual rege os
pressupostos teóricos para as práticas pedagógicas em vigor nos documentos federais e
que se apoia tanto no neoliberalismo, quanto no pós-modernismo.
Conforme afirmou Vigotski (apud DUARTE, 2008, p. 204), no contexto pós-
revolução russa, “[...] a psicologia como ciência não seria possível na velha sociedade,
ou seja,na sociedade capitalista mas que assumiria grande importância na nova
sociedade, no socialismo”. Dessa forma, Duarte (2008) defende a necessidadede
conhecimento dos limites enfrentados pela luta por uma pedagogia marxista, em defesa
da educação, contra práticas que valorizam a autonomia do aluno mascarando um
processo social de apropriação privada do conhecimento por pedagogias de cunho
liberal burguês. O primeiro passo seria a crítica às concepções idealistas e não históricas
de sociedade e da educação:

É com esse espírito que entendo ser necessário não só a crítica ao


construtivismo, mas também a todas as pedagogias que integram a
ampla e heterogênea corrente pedagógica que tenho chamado
genericamente de “pedagogias do aprender a aprender” (DUARTE,
2008, p. 207).


519

Ao grupo denominado como pedagogias do “aprender a aprender”, podemos


incluir, além do construtivismo, a pedagogia das competências, a teoria do professor
reflexivo, a pedagogia dos projetos, estudos multiculturalistas, pedagogia
empreendedora e outras que se originam na Escola Nova.
O ideário escolanovista foi colocado pela burguesia sob o pretexto de superar a
escola tradicional, identificada então com tudo que havia de negativo na educação,
fazendo referência às formas clássicas de ensino. Dessa forma, o clássico passou a ser
rejeitado; porém, conforme Saviani (2008, p. 18), "[...] clássico na escola é a
transmissão-assimilação do saber sistematizado".
Então, a Escola Nova passou a ser vista como aquela que deveria superar o
modelo no qual o professor é o centro, autoritário, detentor e transmissor de todo o
conhecimento, propondo uma visão de professor como aquele que orienta, ajuda o aluno
a aprender a aprender, reforçando dessa forma uma intensa negação à essência do
trabalho educativo, que para Saviani (2008, p. 13): “[...] é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens”.
Assim, essa definição, basal para a pedagogia histórico-crítica, não tem por
objetivo defender a escola tradicional, mas sim, defender a “[...] escola como instituição
destinada à universalização do processo de apropriação das formas mais ricas e
desenvolvidas do conhecimento”. (DUARTE, 2008, p. 210).
Segundo Duarte (2008, p. 215) há quatro princípios valorativos contidos no lema
“aprender a aprender”:

O primeiro desses princípios é o de que aprender sozinho é melhor do


que aprender com outras pessoas. O segundo é o de que a tarefa da
educação escolar não é a de transmissão do conhecimento socialmente
existente, mas a de levar o aluno a adquirir um método de aquisição
(ou construção) de conhecimentos. O terceiro princípio é o de que
toda atividade educativa deve atender aos e ser dirigida pelos
interesses e necessidades dos alunos. O quarto princípio é o de que a
educação escolar deve levar o aluno a “aprender a aprender”, pois
somente assim esse aluno estará em condições de se adaptar
constantemente às exigências da sociedade contemporânea, a qual
seria uma sociedade marcada por um intenso ritmo das mudanças.

Está explícito nestes quatro princípios o enfoque contrário à


transmissão/assimilação de conhecimentos pela escola. Tais princípios estão


520

diretamente vinculados às ideologias do neoliberalismo e do pós-modernismo,


consideradas por Duarte (2008), as ideologias da classe dominante.
Tomando como base o referencial teórico citado, foi feita a análise crítica de
alguns documentos oficiais que norteiam a educação infantil com foco no trabalho
educativo no berçário. Os documentos são: Referencial Curricular Nacional para a
Educação Infantil – RCNEI (BRASIL, 1998), Parâmetros Nacionais de Qualidade para
a Educação Infantil (BRASIL, 2006a), Política Nacional de Educação Infantil: pelo
direito das crianças de zero a seis anos à Educação (BRASIL, 2006b), Resolução nº 05,
de 17 de dezembro de 2009 (Resolução CNE/CEB 5/2009), Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010).
Todos os documentos analisados corroboram a mesma concepção, a qual
considera a criança como um sujeito histórico e social, que constrói conhecimentos por
meio dos processos de criação, significação e ressignificação, utilizando diferentes
linguagens e é capaz de agir e pensar o mundo por si mesma influenciando dessa forma
o ambiente em que vive.

Art. 4º As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão


considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito
histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas
cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva,
brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta,
narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade,
produzindo cultura. (Resolução CNE/CEB 5/2009, p.1).

Ao considerar a criança como um sujeito de direitos, os Parâmetros Nacionais de


qualidade para a educação infantil (BRASIL, 2006a, p.19), explicita quais são os
direitos garantidos à criança. Dentre eles destacamos aqui o direito à autonomia e
participação e o direito à individualidade, ao tempo livre e ao convívio social. A
autonomia é entendida como a capacidade para aprender a aprender, cabendo à
educação apenas acompanhar o processo de desenvolvimento dessa criança que
participa ativamente construindo seu próprio saber, apontando para o protagonismo da
criança em seu processo de aprendizagem.
Essa perspectiva, portanto, vem reforçar os princípios do “aprender a aprender”,
que estão de acordo com os ideais pós-modernos. Segundo Duarte (apud STEMMER,
2012, p. 28):


521

O pós-modernismo não trata apenas da crítica burguesa de progresso,


mas rejeita a própria ideia de progresso; [...] não trata apenas da crítica
à forma burguesa de educação escolar, mas de implodir a escola por
meio da negação da existência de um conhecimento objetivo a ser
transmitido, da negação da autoridade do professor e da negação da
intencionalidade do ato educativo.

Os Parâmetros de qualidade ainda acrescentam à concepção de criança que:

[...] Os novos paradigmas englobam e transcendem a história, a


antropologia, a sociologia e a própria psicologia resultando em uma
perspectiva que define a criança como ser competente para interagir e
produzir cultura no meio em que se encontra.[...] (BRASIL, 2006a,
p.13).

As interações entre as crianças, entre crianças e adultos e com o meio


proporcionam ricas trocas de experiências que resultam na apreensão de formas
diversificadas de representações sociais e de comportamento que são internalizadas
pelas crianças e expressas nas brincadeiras entre elas – daí a importância de haver uma
intervenção intencional por parte dos professores nas brincadeiras das crianças – que
são marcadas pela imitação. “Portanto, a ‘cultura infantil’ descansa sobre os pilares da
imitação, constituindo-se em um dos elementos do seu caráter de conservação do
existente e de sua perpetuação” (ARCE; BALDAN, 2012, p. 194).
Segundo as autoras, para que esse caráter de conservação e perpetuação do
existente seja rompido, é necessária a intervenção intencional do professor, pois, do
contrário, não haverá renovação, apenas a manutenção de valores tradicionais adaptados
ao tempo presente. Portanto, faz-se necessário que a cultura seja apresentada à criança,
pois devido ao movimento de conservação a mesma não possui condições de desvelar
os preconceitos e práticas alienantes presentes na produção cultural humana,
contribuindo para a sua permanência devido à falta de intervenção – ensino.
Podemos afirmar, portanto que a cultura não consiste em um ato criativo e
espontâneo, pois o aparato biológico não garante a humanização da espécie humana.
Esta se dá por meio da apropriação da cultura transmitida pelo processo de educação,

Assim, a criança, por meio da apropriação da cultura realizada de


diversas formas (seja pelos objetos produzidos pela humanidade, seja
pela transmissão assistemática do folclore, pelas brincadeiras, ou pelo
aprendizado sistemático das artes e das ciências), a conserva e a
modifica ao mesmo tempo sem, entretanto, criar o novo, esse ato é um
ato de reprodução ativo, embora não criativo (ARCE; BALDAN,
2012, p. 196).


522

Gostaríamos de deixar claro que ao afirmar que a criança não produz cultura não
estamos de forma alguma dizendo que ela não possui capacidade criativa, ou que é um
ser desprovido de alguma bagagem cultural. Entendemos que a criança, mesmo o bebê,
chega à escola trazendo consigo conteúdos culturais oriundos de seu convívio familiar
transmitidos a ela de forma assistemática. Esses conhecimentos devem ser considerados
pelo professor como ponto de partida, pois, o ato educativo não deve pautar-se apenas
no cotidiano de aluno, mas, ir além dele. Portanto a capacidade criativa da criança está
atrelada ao contato que ela tem com a cultura humana, que “[...] para nós, significa a
síntese da produção humana traduzida nos fenômenos do mundo objetivo por meio da
cultura material (instrumentos do trabalho) e da cultura intelectual (a linguagem, as
ciências e as artes)” (ARCE; BALDAN, 2012, p.189).
Analisando a relação existente entre o cuidar e o educar, destacamos que a
dicotomia existente entre eles parte do processo histórico de constituição das
instituições de educação infantil, uma vez que devido ao processo de crescimento
econômico no país, a mulher passou a desempenhar um papel cada vez mais ativo no
mercado de trabalho, criando uma maior necessidade de atendimento às crianças não só
de 4 a 6 anos mas também aos bebês de zero a 3 anos. Diante deste novo cenário, as
instituições de educação infantil cresceram à margem do sistema de ensino devido à
urgência da demanda, a falta de recursos financeiros e omissão da legislação e por isso
se voltaram mais aos aspectos assistencialistas, ou seja, ao cuidado.

A trajetória da educação das crianças de 0 a 6 anos assumiu e assume


ainda hoje, no âmbito da atuação do Estado, diferentes funções,
muitas vezes concomitantemente. Dessa maneira, ora assume uma
função predominantemente assistencialista, ora um caráter
compensatório e ora um caráter educacional nas ações desenvolvidas.
(BRASIL, 2006b, p.8).

Segundo esse documento, o cuidar e o educar está diretamente relacionado à


nova concepção de ver a criança como já citado: sujeito de direitos, capaz de estabelecer
relações, produtora de cultura e nela inserida. Esse novo olhar deu origem a estudos que
direcionavam o trabalho pedagógico para o desenvolvimento de ações voltadas ao
cuidar e ao educar como aspectos indissociáveis.
Nos parâmetros de qualidade o cuidar e o educar também aparecem de forma
indissociável, uma vez que é direito da criança a garantia de suas necessidades como


523

alimentação, saúde, higiene e o acesso ao conhecimento sistematizado. Porém, o mesmo


documento é claro ao afirmar que na maioria das creches no Brasil ainda há o
predomínio de ações voltadas ao cuidado, com uma educação de baixa qualidade, não
criando condições para o acesso ao conhecimento sistematizado.
Educar para o RCNEI possui o objetivo principal de fornecer conhecimentos
para a construção de uma identidade autônoma, dessa forma as aprendizagens
acontecem nos momentos de interação proporcionados pelo professor, o qual tem
consciência de que:

Educar significa, portanto, propiciar situações de cuidados,


brincadeiras e aprendizagens orientadas de forma integrada e que
possam contribuir para o desenvolvimento das capacidades infantis de
relação interpessoal, de ser e estar com os outros em uma atitude
básica de aceitação, respeito e confiança, e o acesso, pelas crianças,
aos conhecimentos mais amplos da realidade social e cultural.
(BRASIL, 1998, p.23)

O RCNEI prossegue então com a definição de cuidar:

Contemplar o cuidado na esfera da instituição de educação infantil


significa compreendê-lo como parte integrante da educação, embora
possa exigir conhecimentos, habilidades e instrumentos que
extrapolam a dimensão pedagógica. [...] A base do cuidado humano é
compreender como ajudar o outro a se desenvolver como ser humano.
Cuidar significa valorizar e ajudar a desenvolver capacidades.
(BRASIL, 1998, p.24).

Destacamos primeiramente a ideia de que tanto o cuidar quanto o educar são


elementos que ajudam a desenvolver capacidades, fato esse característico da Escola
Nova, a qual tem sua origem marcada pela necessidade de progresso e pela exacerbada
competitividade marcadas pelo fim da Segunda Guerra Mundial, onde a educação ficou
em evidência como aquela que seria capaz de promover as mudanças necessárias por
meio do acesso à informação e ao “[...] valor agregado a um processo que, todavia, não
é o mesmo para todos”. (MORAES, 2009, p.589).
Dessa forma o cuidar está associado ao educar de forma a desenvolver na
criança sua capacidade adaptativa imposta pela sociedade para a sobrevivência dos
indivíduos, ou seja, desenvolver habilidades para “aprender a aprender” e dessa forma
adaptar-se à sociedade.

[...] a concepção construtivista assume todo um conjunto de


postulados em torno da consideração do ensino como um processo


524

conjunto, compartilhado, no qual o aluno, graças à ajuda que recebe


do professor, pode mostrar-se progressivamente competente e
autônomo na resolução de tarefas, na utilização de conceitos, na
prática de determinadas atitudes e em numerosas questões. (ARCE,
2005, p. 55).

Nesse sentido ressaltamos a íntima relação existente entre a Escola Nova e o


construtivismo e seu caráter atrativo e sedutor, denunciado por Rossler (in Duarte 2005)
o qual começou a conquistar a simpatia de educadores e sistemas de ensino a partir da
década de 80 e que permanece forte até hoje e incorpora diversos discursos teóricos
aumentando assim sua hegemonia no campo da educação. Este autor defende que o
construtivismo seria a concepção negativa sobre o ato de ensinar, uma vez que o educar
está pautado em um conjunto de métodos e técnicas a serem aplicadas pelo professor em
sala de aula.
Tal ideário seduz por seu discurso progressista e transformador e por seu apelo
ao senso comum, porém a sedução, segundo Rossler (2005, p.18), “[...] é portanto um
fenômeno histórico, surgido no interior dos processos de alienação das relações
humanas e, nesse sentido, contrário à formação de indivíduos livres e conscientes.”
Sendo o construtivismo dotado de um caráter sedutor e portanto alienante, sua práticas
vão de encontro a um dos seus principais lemas que é o desenvolvimento de sujeitos
autônomos.
Percebemos que há um direcionamento, nos documentos, para a superação da
dicotomia existente entre o cuidar e o educar por meio da integração de ambos como se
fossem complementares ou até mesmo dependentes entre si: “A Educação Infantil deve
pautar-se pela indissociabilidade entre o cuidado e a educação” Esse fato acaba por
descaracterizar o trabalho educativo, que conforme já citado anteriormente, que consiste
em produzir em cada individuo singular a humanidade produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens, uma vez que resume o educar em atos de
cuidado, onde o mesmo está relacionado à identificação das necessidades expressas pela
criança e possui dois objetivos principais: preservação da vida e desenvolvimento das
capacidades humanas, porém, no contexto do documento em questão, as capacidades
humanas estão relacionadas apenas às necessidades básicas e afetivas, sempre
ressaltando o protagonismo da criança. (BRASIL, 2006b, p. 17).

Assim, cuidar da criança é sobretudo dar atenção a ela como pessoa


que está num contínuo crescimento e desenvolvimento,


525

compreendendo sua singularidade, identificando e respondendo às


suas necessidades. (BRASIL, 1998, p.25).

O volume 2 do RCNEI ao relacionar as orientações didáticas, estas são


desenvolvidas com base nos cuidados básicos e sempre em função dos desejos e
interesses da criança pois é ela quem conduz seu processo de aprendizagem. Considera-
se as ações de cuidado como intervenções pedagógicas sempre com o objetivo de
desenvolver a autonomia das crianças, com práticas que reproduzem o cotidiano, pois, o
objetivo é fazer da creche uma extensão do lar: “A Educação Infantil tem função
diferenciada e complementar à ação da família, o que implica uma profunda,
permanente e articulada comunicação entre elas.” (BRASIL, 2006b, vol 2, p.17).
Consideramos a importância do cuidado na prática docente com bebês, porém é
necessário que haja uma superação do aspecto assistencialista da educação infantil,
disseminado e reafirmado por práticas que levam em conta essa indissociabilidade do
cuidar e do educar, resumindo o trabalho pedagógico em cuidados básicos de
alimentação, higiene e etc. Portanto nosso objetivo é superar tais práticas espontaneístas
que permeiam o cotidiano nas instituições de educação infantil no direcionamento de
ações que promovam as máximas possibilidades de desenvolvimento por meio dos
conteúdos de ensino que, segundo Martins, são

[...] os conhecimentos mais elaborados e mais representativos das


máximas conquistas dos homens [...]. Advogamos o princípio segundo
o qual a escola, independentemente da faixa etária que atenda, cumpra
a função de transmitir conhecimentos, isto é, de ensinar como lócus
privilegiado de socialização para além das esferas cotidianas e dos
limites inerentes à cultura de senso comum. (MARTINS, 2012, p.94).

Portanto nesse sentido, o cuidado é considerado como conteúdo de ensino a ser


sistematizado pelo docente e que irá compor o processo educativo a fim de promover o
desenvolvimento humano do indivíduo, pois, o ser humano se desenvolve como tal a
partir da apropriação da cultura transmitida por meio de conteúdos de ensino específicos
fundamentados aos pressupostos teóricos do desenvolvimento da criança.
Podemos afirmar que a apropriação da cultura historicamente produzida se faz
pela mediação por meio da educação escolar, intencional e sistemática, de forma que o
professor tenha condições para planejar os conteúdos a serem trabalhados tomando
como base a fase de desenvolvimento de seus alunos. Torna-se imprescindível então


526

considerarmos a criança como um indivíduo concreto o qual influencia e também é


influenciado pelo meio social em que vive.

[...] como indivíduo empírico, a criança se interessa por satisfações


imediatas ligadas à diversão, à ausência de esforço, às atividades
prazerosas. Como indivíduo concreto, por sintetizar as relações sociais
que caracterizam a sociedade em que vive, seu interesse coincide com
a apropriação das objetivações humanas, isto é, o conjunto dos
instrumentos materiais e culturais produzidos pela humanidade e
incorporados à forma social de que a criança participa. (SAVIANI
apud MASSUCATO; AZEVEDO, 2011, p.147).

É possível perceber, tanto em relação ao papel das instituições como nas


propostas pedagógicas, o caráter não escolar da educação infantil propagado pelos
documentos analisados.

Enquanto a escola tem como sujeito o aluno, e como objeto


fundamental o ensino nas diferentes áreas através da aula; a creche e a
pré-escola têm como objeto as relações educativas travadas num
espaço de convívio coletivo que tem como objeto as relações
educativas travadas num espaço de convívio coletivo que tem como
sujeito a criança de 0 até 6 anos de idade. (BRASIL, 2006, vol.1,
p.17).

Conforme Saviani (2012, p.71), tal entendimento que resiste em considerar a


educação infantil como educação escolar, tem como base a incompreensão dos
processos de aquisição do conhecimento e o papel mediador da escola nesse processo,
bem como a ideia de uma visão estereotipada da escola como sendo amorfa e sem vida.
Esse pensamento se constitui em razão de um entendimento que vê o processo de ensino
como algo meramente transmissivo o qual reforça o lema do “aprender a aprender” que

[...] ao contrário de ser um caminho para a [...] formação plena dos


indivíduos, é um instrumento ideológico da classe dominante para
esvaziar a educação escolar destinada à maioria da população,
enquanto, por outro lado, são buscadas formas de aprimoramento da
educação das elites. (DUARTE apud PRADO; AZEVEDO, 2012,
p.49).

Portanto, segundo essa concepção, a instituição de educação infantil não deve


ser considerada uma escola, mas sim um local livre e que deve proteger a criança do
mundo adulto. Porém, em defesa de uma escola pública e de qualidade, entendemos que
esta deve garantir o acesso ao saber sistematizado, considerando o cotidiano, porém,


527

afastando-se dele por meio de práticas pedagógicas intencionais, fazendo da escola o


local destinado ao ensino.
O RCNEI (BRASIL, 2006, vol.1, p.18) tem como proposta pedagógica que as
crianças sejam “[...] auxiliadas nas atividades que não puderem realizar sozinhas; ser
atendidas em suas necessidades básicas físicas e psicológicas; ter atenção especial por
parte do adulto em momentos peculiares de sua vida”. Esse mesmo documento também
aponta a interação social como uma das estratégias mais importantes do professor para a
promoção de aprendizagens, sendo que a interação está relacionada à convivência com
os pares, comunicação e consigo mesma.

Propiciar a interação quer dizer, portanto, considerar que as diferentes


formas de sentir, expressar e comunicar a realidade pelas crianças
resultam em respostas diversas que são trocadas entre elas e que
garantem parte significativa de suas aprendizagens.(BRASIL, 1998,
p.31).

Corroborando com esta concepção, o documento “Política Nacional de


Educação Infantil: pelo direito das crianças de zero a seis anos à educação” (BRASIL,
2006b), recomenda que

A prática pedagógica considere os saberes produzidos no cotidiano


por todos os sujeitos envolvidos no processo: crianças, professoras e
professores, pais, comunidade e outros profissionais; [...] a reflexão
coletiva sobre a prática pedagógica, com base nos conhecimentos
historicamente produzidos, tanto pelas ciências quanto pela arte e
pelos movimentos sociais, norteie as propostas de formação.
(BRASIL, 2006b, p.27).

O professor deve considerar o tempo da criança, respeitando seus limites, a fim


de que o ensino se dê por compartilhamento, de forma que o professor planeje suas
atividades visando articular o conhecimento prévio da criança com suas experiências
práticas, ressaltando a importância do conhecimento espontâneo, pois este é captado
principalmente pelos sentidos. Portanto, conforme Rocha (1999), a tarefa da instituição
de educação infantil,

[...] não se limita ao domínio do conhecimento, assumindo funções de


complementaridade e socialização relativas tanto à educação como ao
cuidado e tendo como objeto as relações educativas-pedagógicas
estabelecidas entre e com as crianças pequenas (0 a 6 anos). (ROCHA
apud SILVA, 2012, p.96).


528

Em oposição a estes apontamentos, Arce (apud PRADO; AZEVEDO, 2012)


defende um modelo de proposta pedagógica pautado na Escola de Vigotski, o qual,
valorize a transmissão de experiência e conhecimento ressaltando a participação do
adulto e o professor nesse processo, considere a interação não mais como entre pares e a
partir do ambiente imediato, mas na interação com a cultura universal do gênero
humano, compreenda as especificidades da criança, ou seja, sua forma de pensar e de
explorar o mundo e priorize a apropriação dos produtos culturais produzidos pela
humanidade. Diante do exposto, defendemos a existência de um currículo para a
educação infantil a fim de priorizar os conhecimentos e sistematizar o processo de
ensino e aprendizagem da criança desde o berçário. Saviani (2012) afirma que as ações
pedagógicas inerentes à educação infantil também requerem sistematização,
organização e disciplina.
Constata-se dessa forma o caráter escolar da educação infantil, a qual requer
uma mediação pedagógica que promova o desenvolvimento dos processos mentais
superiores, conforme Leontiev (apud ARCE; SILVA, 2012) é o educador que opera
sobre a atividade da criança e determina o desenvolvimento do seu psiquismo, opondo-
se ao ideário construtivista que coloca o professor como aquele que limita-se a seguir a
criança. Entendemos que o homem não se torna humano naturalmente, ou seja, este
processo não é puramente biológico uma vez que ele (o homem) necessita “aprender” a
pensar, sentir, agir, a ser humano, e para tal torna-se imprescindível o trabalho
educativo. Portanto, ressaltamos

[...] a importância da escola para o desenvolvimento psicológico dos


alunos, considerando o trabalho do professor no processo de ensino-
aprendizagem para além dos paradigmas ideológicos que naturalizam
questões que são produzidas nas relações sociais. (FACCI apud
SILVA, 2012, p.49).

“Assim, o saber que diretamente interessa à educação é aquele que emerge como
resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho educativo [...]” e
nesse contexto o papel da escola é mediar a passagem do saber espontâneo ao saber
sistematizado. (SAVIANI, 2008, p.7),


529

Conclusão

Podemos perceber por meio da análise crítica dos documentos oficiais que
regem a educação infantil, a oposição existente entre as práticas reafirmadas pelas
pedagogias do “aprender a aprender” com o referencial teórico da pedagogia histórico-
crítica. Tais práticas valorizam o cuidado, a brincadeira e integração, sendo estes,
portanto, fundamentais para o trabalho pedagógico na educação infantil, articulados
com situações que reproduzam contextos cotidianos. Para a pedagogia histórico-crítica
o que promove o desenvolvimento humano do indivíduo é o acesso à humanidade que é
produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens por meio da transmissão
do saber sistematizado, em oposição a uma educação que apenas reproduza o cotidiano.
(SAVIANI, 2008).
Para as pedagogias do “aprender a aprender” o professor é um mero facilitador
das relações sociais entre as crianças e deve valorizar suas atividades espontâneas em
detrimento de uma diretividade do ensino, deve dar voz à criança, articulando os
conhecimentos prévios com a prática do dia-a-dia proporcionando assim que ela mesma
construa conhecimento, desprezando dessa forma os conteúdos sistematizados e
reforçando a ideia de que a creche é um local destinado mais ao convívio coletivo do
que à educação como processo de humanização.
Tais considerações representam o que Martins (2009) cita como “pedagogia da
espera”, ou seja, a ideia segundo a qual pouco há que se fazer até que as crianças
cresçam e por isso o trabalho com os pequenos está pautado apenas nos cuidados
básicos. Segundo a autora, para superar as práticas espontaneístas, o professor precisa
ter conhecimento das ações que interferem de modo indireto e direto no
desenvolvimento da criança. A interferência indireta é feita por meio dos conteúdos de
formação operacional que cria novas habilidades na criança e se relaciona, além dos
cuidados básicos, também aos saberes sociológicos, psicológicos, filosóficos etc. que
devem pautar a organização do ensino por parte do professor. A interferência direta é
feita por meio dos conteúdos de formação teórica que promovem a apropriação do
conhecimento sistematizado.
Percebemos, portanto, a importância da diretividade do ensino em oposição ao
espontaneísmo, pois, o ser humano se desenvolve como tal a partir da apropriação da
cultura transmitida por meio de conteúdos de ensino específicos fundamentados aos
pressupostos teóricos do desenvolvimento da criança.


530

Dessa forma, afirmamos mais uma vez que a pedagogia histórico-crítica nos
possibilita pensar e analisar as práticas do ensino com crianças no berçário,
compreendendo que são sujeitos concretos, analisando-os como síntese de múltiplas
determinações, a fim de subsidiar ações que reflitam o compromisso da escola com o
ensino.
Nessa perspectiva, Arce e Silva (2009, p.163) discorrem sobre o ensino como
eixo articulador do trabalho com bebês afirmando que é possível ensinar no berçário,
ressaltando a necessidade de estimulação a fim de provocar no bebê o desenvolvimento
cognitivo, emocional e fisiológico, de forma intencional e direcionada.
Segundo Vigotski (apud ARCE; SILVA, 2009, p.165), “[...] o desenvolvimento
do bebê no primeiro ano baseia-se na contradição entre a máxima sociabilidade (devido
à situação em que se encontra) e suas mínimas possibilidades de comunicação”, ou seja,
ele se caracteriza por duas peculiaridades: a primeira é que o mesmo é incapaz de
satisfazer suas necessidades biológicas, sendo totalmente dependente do adulto e a
segunda é que embora seja dependente, ele não possui nenhum meio de comunicação
em forma de linguagem. Tais informações permite-nos inferir a importância do cuidado
para o desenvolvimento dos bebês.

Nos primeiros meses de vida se desenvolvem com especial


intensidade as reações de orientação até o adulto e os reflexos
condicionados ligados aos adultos que lhe cuidam. Ao final do
segundo mês aparece a primeira forma específica de reação do adulto
que o cuida. (ELKONIN apud ARCE; SILVA, 2009, p.166)

Segundo esse autor, o desenvolvimento da criança em seu primeiro ano de vida


acontece por meio da influência dos adultos, de suas intervenções e estímulos, e dessa
forma o adulto contribui para a formação do ser social, como assevera Vigotski (apud
MARTINS, 2009, p. 101),

[...] Toda relação da criança com o mundo exterior, inclusive a mais


simples, é a relação refratada por meio da relação com outra pessoa. A
vida do bebê está organizada de tal modo que em todas as situações se
faz presente de maneira visível ou invisível outra pessoa.

Percebemos claramente que o bebê aprende desde o momento que nasce, por
isso, a satisfação de suas necessidades são traduzidas em cuidados que devem ser
organizados e direcionados para o ensino que promova o desenvolvimento, de forma


531

que este ensino seja sistematizado tomando como base as especificidades relacionadas
ao período de desenvolvimento do bebê.
Sobre o trabalho educativo no berçário, Martins (2009, p. 181) assinala que este
deve operar precisamente na atividade da criança e em sua consciência, porém, o
desenvolvimento da psique não reflete automaticamente tudo que age sobre a criança,
daí a importância que o educador possui sobre este desenvolvimento, reforçando ainda
mais a oposição ao modelo de trabalho no qual defende-se o espontaneísmo e estar
pronto a suprir apenas as necessidades fisiológicas do bebê. Este profissional deve
compreender claramente que a integração entre o cuidar e o educar traduzem-se em
ações planejadas e estas necessitam estar pautadas com base no desenvolvimento da
criança.
Portanto, percebemos a necessidade de democratização do conhecimento
sistematizado em busca de uma transformação da sociedade, respeitando e garantindo às
crianças na educação infantil desde o berçário o direito ao conhecimento por meio do
ensino.

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construtivista. In: DUARTE, N (org.). Sobre o Construtivismo. – 2. Ed. – Campinas, SP:
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SAVIANI, Nereide. Educação infantil versus educação escolar, implicações curriculares de uma
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educação escolar? : entre a (des)escolarização e a precarização do trabalho pedagógico nas
salas de aula. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. p.53-79

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A.;MARTINS, L. M. (Orgs.). Ensinando aos pequenos de zero a três anos. Campinas, SP:
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______. Projetos pedagógicos e os documentos oficiais do Ministério da Educação (MEC): o


construtivismo e a pedagogia da infância como pano de fundo do processo de oposição ao
ensino nas salas de aula de educação infantil. In: ARCE, A.; JACOMELI, M.R.M. (orgs).
Educação infantil versus educação escolar? : entre a (des)escolarização e a precarização do
trabalho pedagógico nas salas de aula. Campinas, SP: Autores Associados, 2012. p.83-106

STEMMER, M.R.G. Educação infantil: gênese e perspectivas. In: ARCE, A; JACOMELI,


M.R.M. (orgs.). Educação infantil versus educação escolar? : entre a (des)escolrização e a
precarização do trabalho pedagógico nas salas de aula. Campinas, SP: Autores Associados,
2012. (Coleção educação contemporânea)


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

DEGAS, Edgar. A aula de dança. 1871. Óleo sobre tela, 19,7 x 27 cm.

GT 3 – INTERFACES ENTRE PSICOLOGIA E PEDAGOGIA

O GT “Interfaces entre Psicologia e Pedagogia” visou a abrigar trabalhos que


apresentassem resultados de pesquisas parciais ou concluídas acerca das relações entre educação e
desenvolvimento humano, à luz da unidade teórico-metodológica entre a pedagogia histórico-crítica e
a psicologia histórico-cultural.



SUMÁRIO (GT3)

CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A


FORMAÇÃO DO ADOLESCENTE NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO............... 535
ALFABETIZAÇÃO - ISSO NÃO É BRINCADEIRA: CONTRIBUIÇÕES DA
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA PARA PENSAR O ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA ............................... 549
CRÍTICA À ABORDAGEM DO PROFESSOR REFLEXIVO: UMA PRÁTICA
INSTRUMENTAL A SERVIÇO DO CAPITAL NA EDUCAÇÃO ............................. 563
O ALUNO COM AUTISMO NA ESCOLA REGULAR: REFLEXÕES SOBRE A
PRÁTICA EDUCATIVA................................................................................................. 578
APONTAMENTOS SOBRE O ENSINO DOS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO DOS
SERES VIVOS E O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO ............................. 588
ESCOLA SEM PARTIDO: INTENSIFICANDO A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA DA
CONSCIÊNCIA .............................................................................................................. 603


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

CONTRIBUIÇÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL PARA A


FORMAÇÃO DO ADOLESCENTE NO ENSINO MÉDIO INTEGRADO

Priscila de Souza Chisté (IFES)1

Resumo: O artigo em tela tem como objetivo compreender a importância do Ensino Médio
Integrado como um modo de contribuir para a formação do adolescente. Para tanto, dialoga com
autores que analisam a trajetória da Educação Profissional no Brasil e, de modo mais especifico,
o Ensino Médio Integrado. Apresenta pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural no que se
refere ao adolescente e a importância da educação escolar, com o objetivo de conhecer suas
peculiaridades psicológicas e entender a importância do Ensino Médio Integrado como
mediador dessa formação. Utiliza como abordagem metodológica a pesquisa bibliográfica e
documental, tendo em vista que recorre a livros, dissertações, teses e legislações para discorrer
sobre o assunto. Conclui que o Ensino Médio Integrado é um lócus propício para a formação
integral desde que suas bases estejam sustentadas pelas ideias de formação politécnica, integral
e omnilateral.

Palavras-Chave: Ensino médio integrado. Adolescência. Formação humana.

Introdução

Sabemos que, mesmo sendo a formação humana um tema fundamental nas


discussões educacionais, quando se trata de Educação Profissional tal temática é
recorrentemente menosprezada, pois o foco volta-se para a instrumentalização dos
sujeitos de modo a atender às demandas do mercado. Todavia, essa discussão toma um
novo caminho a partir do materialismo histórico-dialético, nas figuras essenciais de
Marx, no campo da filosofia, e de Vigotski, na psicologia.
Tais abordagens consideram o trabalho educativo como um modo de contribuir
com a formação humana com vistas à emancipação do sujeito por meio de mediações
que estimulem o desenvolvimento de todas as capacidades humanas. A partir dessa
temática nosso objetivo consiste em compreender, por meio da Psicologia Histórico-
Cultural, a importância do Ensino Médio Integrado como um modo de contribuir para a

1
Priscila de Souza Chisté, doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Espírito Santo, Brasil.
E-mail: pchiste@ifes.edu.br


536

formação do adolescente. Assim, buscamos refletir sobre a seguinte questão: qual é a


importância do Ensino Médio Integrado para a formação do adolescente?

1 Educação profissional no Brasil e o Ensino Médio Integrado

Na história da educação brasileira a Educação Profissional foi pensada para


treinar uma parcela da população para o desempenho de atividades manuais
consideradas de nível intelectual inferior, atender às demandas da indústria ou
contemplar os grupos sociais desfavorecidos economicamente.
Seguindo essas metas, muitas foram as iniciativas e legislações elaboradas para a
Educação Profissional no Brasil. Contudo, tais legislações foram problematizadas ou
analisadas de modo especial por um grupo de intelectuais2 influenciados pela tradição
marxiana e suas implicações na educação. Concomitante a essas discussões, mas
distante da base epistemológica marxiana, ocorreu no Congresso Nacional, o processo
que culminou com criação de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), a Lei nº
9.394/1996, elaborada nos moldes do ideário neoliberal.
Apesar da implementação da nova LDB, na ocasião, estávamos longe da
construção de uma escola única, capaz de superar a dualidade da formação dos jovens
(formação técnica x formação humana). Assim, ficou evidenciado que as políticas
públicas e a legislação relacionada com o Ensino Médio e a Educação Profissional
promovidas a partir da década de 1990 não apresentavam interesse pela formação
humana conforme apregoava o grupo de intelectuais citados.
Com o fim do governo de Fernando Henrique Cardoso uma nova chance para a
integração entre o Ensino Médio e a Educação Profissional aconteceu pela via da
publicação do Decreto n° 5.154/2004, incorporado à LDB n° 9.394/1996 por meio da
Lei n° 11.741/2008. A discussão sobre as leis anteriores resultou em uma significativa
mobilização dos setores educacionais vinculados ao campo da Educação Profissional,
principalmente no âmbito dos sindicatos e dos pesquisadores da área “Trabalho e
Educação”. Desse modo, durante o ano de 2003 e até julho de 2004, houve grande
efervescência nos debates sobre o Ensino Médio e a Educação Profissional.
Tais reflexões conduziram ao entendimento de que uma solução transitória e
viável seria um tipo de Ensino Médio que garantisse a integralidade da educação básica,

2
Machado (1991), Saviani (1989), Manacorda (1991), Enguita (1994), Franco (1991), Kuenzer (1995) e
Rodrigues (1998).


537

ou seja, que contemplasse o aprofundamento dos conhecimentos científicos produzidos


e acumulados historicamente pela sociedade, e também abarcasse os objetivos da
formação profissional numa visão que integrasse as dimensões humanas e tecnológicas.
Essa perspectiva, ao adotar a ciência, a tecnologia, a cultura e o trabalho como eixos
estruturantes, contemplaria as bases em que se poderia desenvolver uma educação
tecnológica ou politécnica e, ao mesmo tempo, uma formação profissional exigida pela
dura realidade socioeconômica do País. “O Ensino Médio integrado ao ensino técnico,
sob uma base unitária de formação geral, é uma condição necessária para se fazer a
travessia para uma nova realidade”. (FRIGOTTO; CIAVATTA; RAMOS, 2005, p. 43).
Foi a partir desse embate que se edificaram as bases que deram origem ao
Decreto n° 5.154/2004. Esse instrumento legal, apesar de manter as ofertas dos cursos
técnicos concomitantes e subsequentes conforme o Decreto n° 2.208/1997, teve o
grande mérito de trazer de volta a possibilidade de integrar o Ensino Médio à Educação
Profissional, agora, numa perspectiva que não se confundia totalmente com a educação
politécnica, mas que apontava em sua direção porque continha alguns de seus
princípios. Diante dessas premissas, apresentaremos os conceitos de Politecnia a fim de
ampliar essa discussão.

2 Caminhos em busca da politecnia

Politecnia diz respeito ao “[...] domínio dos fundamentos científicos das


diferentes técnicas que caracterizam o processo de trabalho moderno”. A partir dessa
concepção, o ensino deveria concentrar-se nas modalidades fundamentais que dão base
à multiplicidade de processos e técnicas de produção existentes. O ideário gramsciano
em que se insere a Politecnia busca romper com a dicotomia entre a educação básica e a
técnica e resgatar o princípio da formação humana em sua totalidade. (SAVIANI, 2003,
p. 140).
Em termos epistemológicos e pedagógicos, esse ideário defende um ensino que
integra ciência e cultura, humanismo e tecnologia. Visa ao desenvolvimento de todas as
potencialidades humanas e propõe uma formação distanciada do humanismo liberal,
voltado para o ensino memorístico, mas que contribui para o desenvolvimento da
capacidade de criação intelectual e prática do sujeito, além de proporcionar a
compreensão da totalidade social. (MOURA, 2013).


538

Na sociedade capitalista a escola profissional significa, correntemente, uma


escola de categoria inferior, destinada aos jovens desprovidos de recursos, corroborando
a diferenciação social. De modo contrário, na escola do trabalho socialista, sob a égide
da Politecnia, os conhecimentos técnicos e práticos têm um nível de compreensão
intelectual que visa promover as condições para a supressão dos mecanismos
reprodutores da desigualdade cultural e social. Essa escola teria por objetivo ser mais
que um vínculo de difusão dos novos princípios sociais. Ela se caracterizaria “[...] como
uma influência organizada do proletariado sobre as demais classes, com o intuito de
criar as novas gerações, capazes de promover o prosseguimento da revolução até a
completa transformação da sociedade”. (MACHADO, 1991, p. 152).
A escola politécnica não é aquela “[...] onde se estudam muitos ofícios, mas
onde se ensina às crianças a compreender a essência dos processos de trabalho, a
substância da atividade laboriosa do povo e as condições de êxito no trabalho. É uma
escola onde as crianças aprendem a medir a extensão de suas faculdades”. O ensino
politécnico destina-se a desenvolver uma cultura geral do trabalho, o que pressupõe a
compreensão da produção em seu conjunto, o conhecimento da direção em que se
desenvolvem a técnica e as mudanças tecnológicas. (MACHADO, 1991, p. 156).
No plano pedagógico, em se tratando da escola de Ensino Médio, essa proposta
de articulação entre o trabalho e o ensino pressupõe a integração de todas as disciplinas,
saturando-as, ao máximo, com as questões e desafios concretos suscitados pela
atividade laborativa. Tal forma de integração tem por objetivo, no seu limite, romper
com a fragmentação do conhecimento. A formação politécnica deve penetrar todas as
disciplinas e se traduzir na escolha do ensino tanto da Física como da Química, tanto
das Ciências Naturais como das Ciências Sociais.
Assim, a escola politécnica visa pôr o aluno em contato com a herança cultural e
ser uma escola criadora, capaz de desenvolver a personalidade e a autonomia do
discente. Uma escola cujo objetivo básico é desenvolver o alicerce cultural sólido e
durável, capaz de acompanhar o indivíduo em sua trajetória, útil às suas atividades de
trabalho e de vida, independentemente da especificidade exercida. Nesse contexto,
mostra-se muito relevante recuperar os conceitos de Integração e de Omnilateralidade, e
enfatizar suas vitalidades para a estruturação do Ensino Médio Integrado.

3 Integração e omnilateralidade no Ensino Médio Integrado


539

Para Ciavatta (2005), é preciso buscar as origens do termo integrar a partir das
ideias de Gramsci, com um sentido de completude, de compreensão das partes no seu
todo ou da unidade no diverso, de tratar a educação como totalidade social, isto é, nas
múltiplas mediações históricas que concretizam os processos educativos.

[...] queremos que a educação geral se torne inseparável da Educação


Profissional em todos os campos onde se dá a preparação para o
trabalho: seja nos processos produtivos, seja nos processos educativos
como a formação inicial, como o ensino técnico, tecnológico ou
superior. Significa que buscamos enfocar o trabalho como princípio
educativo, no sentido de superar a dicotomia trabalho manual/trabalho
intelectual, de incorporar a dimensão intelectual ao trabalho produtivo,
de formar trabalhadores capazes de atuar como dirigentes e cidadãos.
(CIAVATTA, 2005, p. 84).

Desse modo, o sentido de integração expressa uma concepção de formação


humana, com base na integração de todas as dimensões da vida no processo educativo, e
visa à formação omnilateral dos sujeitos, ou seja, a Educação Integral.
Para Manacorda (1991), frente à realidade da alienação humana, na qual todo
homem alienado por outro encontra-se alienado da sua própria natureza, está a
exigência da omnilateralidade. A omnilateralidade refere-se a um desenvolvimento
total, completo, multilateral, em todos os sentidos das faculdades e das forças
produtivas, das necessidades e da capacidade humana.
Segundo esse autor, Marx, nos Manuscritos de 1844, utiliza a expressão
“omnilateral” quando diz que “[...] o homem se apropria de uma maneira omnilateral do
seu ser omnilateral, portanto como ser total”. Assim, omnilateralidade é a chegada
histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a
uma totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar o
gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado
excluído em consequência da divisão do trabalho. (MARX, 2004, p. 108).

3 Eixos do Ensino Médio Integrado: trabalho, ciência e cultura

A partir dessas bases (integração e omnilateralidade), Ramos (2005) aponta ser


necessário criar um projeto de Ensino Médio que tenha como eixo o trabalho, a ciência
e a cultura. Um projeto que garanta ao adolescente o direito a uma formação completa


540

que contribua para a leitura de mundo e para a atuação crítica integrada à sua sociedade
política.
Essa formação supõe a compreensão das relações sociais subjacentes a todos os
fenômenos, com a compreensão de que os homens e mulheres são seres histórico-
sociais que atuam no mundo concreto para satisfazer suas necessidades subjetivas e
sociais e, nessa ação, produzem conhecimentos. CIAVATTA, 2005).
Nos eixos que fundamentam o Ensino Médio Integrado, o trabalho é considerado
como o princípio, pois serve de mediação entre o homem e o objeto a ser
investigado/conhecido, e confere significado a uma escola que se diz ativa e criadora.
“Ter o trabalho como princípio educativo implica referir-se a uma formação baseada no
processo histórico e ontológico de produção da existência humana, em que a produção
do conhecimento científico é uma dimensão”. (RAMOS, 2005, p. 119).
Ciavatta (2005) alerta que, apenas ao enfocar o trabalho na sua particularidade
histórica, nas mediações específicas que lhe dão forma e sentido no tempo e no espaço,
podemos apreendê-lo ou apreender o mundo do trabalho na sua historicidade, como
atividade criadora. Porém, de modo contrário, na sociedade atual, o trabalho pode ser
penoso, capaz de alienar o ser humano de si mesmo, dos outros e dos produtos de seu
trabalho na forma de mercadorias.
Ramos (2005) considera necessário integrar todas as dimensões da vida no
processo educativo, pois o trabalho, a ciência e a cultura são categorias indissociáveis
da formação humana. Essa concepção de trabalho associa-se à concepção de ciência,
pois relaciona-se com conhecimentos produzidos, sistematizados e legitimados
socialmente ao longo da história, como resultado de um processo empreendido pela
humanidade na busca da compreensão e transformação dos fenômenos naturais e
sociais. Portanto, a ciência conforma conceitos e métodos que são transmitidos para
diferentes gerações e, ao mesmo tempo, que podem ser questionados e superados
historicamente, no movimento permanente de construção de novos conhecimentos.
A outra dimensão da vida que precisa integrar o processo educativo é a cultura
que segundo Ramos (2005), deve ser entendida como diferentes formas de criação da
sociedade, seus valores, suas normas de conduta e suas obras. Portanto, a cultura é tanto
a produção ética quanto a estética de uma sociedade. Assim se pode compreender que
os conhecimentos característicos de um tempo histórico e de um grupo social trazem a
marca das razões, dos problemas, das necessidades e das possibilidades que motivaram
o avanço do conhecimento em uma sociedade. Nesse sentido, a escola deve se


541

apresentar como escola da cultura e trabalho, isto é, da ciência tornada produtiva e da


prática tornada complexa, ou seja, com estreita relação com a vida coletiva. Contudo,
percebemos que temos um longo caminho para traçar no que se refere à implementação
dessas prerrogativas, pois a realidade marcada pelo capitalismo, muitas vezes, não
oferece condições objetivas para atender e efetivar tais premissas.
Diante das ideias apresentadas cabe, na seção seguinte, apresentar reflexões
sobre aspectos psicológicos relativos ao aluno que frequenta o Ensino Médio Integrado.
A ideia é conhecer as peculiaridades psicológicas do adolescente de modo a contribuir
com o entendimento da importância do Ensino Médio Integrado à Educação
Profissional.

4 Adolescência e formação humana a partir da psicologia histórico-cultural

Os estudos que deram origem à psicologia histórico-cultural foram produzidos


há mais de 80 anos, no contexto de consolidação do Socialismo na União Soviética. Na
ocasião, diante de muitos desafios econômicos, políticos, culturais e sociais, a educação
foi tida como prioridade deste país. A pedagogia soviética tinha como objetivo a
formação do homem novo a partir do humanismo, do coletivismo, do respeito pelo
indivíduo e do desenvolvimento integral das crianças e dos adolescentes como membros
da sociedade.
Assim, Vigotski analisou a adolescência por meio de uma perspectiva histórica
ampla que concebia a emancipação humana como aspecto fundamental para construção
de uma nova sociedade. Por isso, sua concepção de indivíduo estava relacionada como a
sua concepção de sociedade, pressupondo que a análise das fases do desenvolvimento
da vida humana sempre tem como referência um posicionamento político. A partir de
uma visão de luta histórica pela liberdade a adolescência necessitava ser compreendida
como um momento crítico que integrava o desenvolvimento do indivíduo, no qual para
se conhecer, caberia um posicionamento político em relação ao próprio significado
desse desenvolvimento. A análise que Vigotski propõe sobre a adolescência compõe um
cenário de busca por sistematizar estudos sobre o desenvolvimento psicológico
individual para a construção do Socialismo.
Duarte, Ferreira e Anjos (2014) alertam que buscar em Vigotski um conjunto de
características universais da adolescência e aplicá-las à análise da educação
contemporânea seria incorrer em erro. Cabe considerar que algumas características da


542

adolescência apontadas por Vigotski são válidas para os dias atuais, sobretudo quando
esse autor abarca uma perspectiva científica e filosófica sobre a adolescência. Para ele o
adolescente é um ser histórico e social. Portanto, é importante compreender que “[...] as
leis biológicas e as características determinantes do desenvolvimento humano pautadas
na hereditariedade não são mais as forças motrizes do desenvolvimento humano, pois
cederam lugar às leis sócio-históricas”. (ANJOS, 2013, p. 17).
Além da compreensão da importância dos aspectos históricos e sociais, outro
ponto importante refere-se à consideração da adolescência como um período em que
linhas de desenvolvimento se articulam e se afetam, a saber: a dos interesses; a da
formação dos conceitos e do desenvolvimento do pensamento; e a do desenvolvimento
das funções psicológicas superiores. Assim, o ponto central desse período não são os
conflitos nem mesmo as mudanças corporais, biológicas, mas a formação das linhas de
desenvolvimento que colaboram com a compreensão da realidade em suas múltiplas
determinações e com a inserção ativa desses sujeitos na sociedade.
Para Vigotski (1996), as etapas do desenvolvimento das funções psicológicas do
ser humano, principalmente as do adolescente, ocorrem dentro de um complexo sistema
hierárquico de novas formações psíquicas. As funções psicológicas superiores referem-
se a processos voluntários, ações conscientemente controladas, mecanismos
intencionais, como a consciência, a vontade e a intenção, que pertencem à esfera da
subjetividade. Elas não se relacionam apenas com o desenvolvimento das funções como
memória, atenção, percepção da realidade, mas também com o desenvolvimento da
personalidade e da concepção de mundo. As funções psicológicas superiores envolvem
o domínio de meios externos de desenvolvimento da cultura e do pensamento, como a
linguagem, a escrita, o cálculo e o desenho. Exigem a utilização significativa de
mediadores e se vinculam diretamente ao processo de escolarização.
A função principal dessas novas formações consiste no desenvolvimento do
pensamento a partir da formação de conceitos. Para Vigotski (1996), conceito é uma
formação qualitativamente nova, uma nova forma de atividade intelectual, um novo
modo de conduta, um novo mecanismo intelectual. É um ato real e complexo de
pensamento que não se prende à memorização, um ato de generalização que evolui com
os significados das palavras e pode transitar de uma generalização para outra. Todas as
restantes funções se unem a essa formação nova, compondo uma síntese complexa.
Com a formação dos conceitos, abre-se diante do indivíduo o mundo da consciência
social objetiva, o que torna possível a compreensão, a abstração e a síntese.


543

Com o desenvolvimento desses novos elementos, o sujeito é capaz de sair dos


limites dos dados concretos, de entender os conceitos abstratos e as relações entre os
fenômenos. Torna-se, então, capaz de compreender a si mesmo e de formar uma
concepção de mundo, pois internaliza ideias, conceitos e valores, amplia suas
possibilidades de ação na realidade social. “A formação de conceitos abre diante do
adolescente o mundo da consciência social e impulsiona inevitavelmente o intenso
desenvolvimento da psicologia e da ideologia de classes, a sua formação”. (VIGOTSKI,
1996, p. 66).
Quando passa a dominar conceitos, o adolescente alcança um nível superior em
seu pensamento, o que indica novas formas de atividade intelectual. Engendram-se as
concepções sobre a vida, a sociedade, as pessoas, enfim, sobre o mundo a seu redor. Por
meio desse processo, o adolescente domina o fluxo de seus processos psicológicos,
orientando-se para a resolução dos problemas que surgem e que exigem o
desenvolvimento de formas superiores do pensamento para poder solucioná-los. Nesse
sentido, passa a apresentar ideias articuladas, embasadas e reflexivas sobre si, sobre o
outro e sobre o mundo.
Assim, podemos considerar que a adolescência é marcada pelo crescimento de
uma atividade crítica, pelo surgimento de interesses teóricos e pela necessidade de
conhecer a realidade. Isso porque o adolescente passa a participar mais intensamente da
realidade social, o que é possibilitado pelo desenvolvimento psíquico e pela capacidade
maior de abstração que lhe é conferida por meio da formação de conceitos. Tal
desenvolvimento também permite uma maior compreensão da realidade e favorece a
inserção do adolescente no meio cultural, principalmente na escola.
No adolescente, a atividade principal ou atividade-guia é estudar na escola e,
nesse contexto, estabelecer relações pessoais com seus pares. Essa atividade refere-se a
uma forma de reproduzir, com os outros adolescentes, as relações existentes entre os
adultos. Tais relações se efetivam a partir do respeito, da confiança, e são importantes
para a formação da sua personalidade. Para Anjos (2013), a história do desenvolvimento
da personalidade do adolescente constitui-se de três leis fundamentais.
A primeira lei regula o desenvolvimento e a estrutura das funções psíquicas
superiores. Desse modo, a mudança da estrutura da personalidade é caracterizada pelo
salto qualitativo das funções psíquicas elementares que são incorporadas às funções
psíquicas superiores, consideradas continuação das elementares. Essa primeira lei
consiste na transformação das funções imediatas, espontâneas, nas funções voluntárias e


544

intencionais. Anjos (2014, p. 231) nos ajuda a compreender essa transformação quando
explica:

Por exemplo: o homem primitivo, ao criar pela primeira vez um signo


exterior para lembrar-se de algo, consequentemente, já passaria a uma
nova forma de memória, ou seja, a passagem da memorização
involuntária à memorização regulada por signos. Isso quer dizer que,
ao introduzir meios artificiais externos para recordar-se de algo, ele
passa a dominar o processo de sua própria memorização.

A segunda lei refere-se ao fato de que as relações entre as funções psíquicas


superiores foram anteriormente relações reais entre os homens. Assim, todas as funções
psíquicas superiores “são relações de ordem social que, ao serem internalizadas,
constituem a base da estrutura social da personalidade. [...] são produto das formas
coletivas de comportamento”. Desse modo, a natureza psíquica do ser humano é
caracterizada por um conjunto de relações sociais que são internalizadas pelo indivíduo
e convertidas em funções da personalidade. (ANJOS, 2014, p. 232).
A terceira lei postula que as funções psicológicas, a princípio, são operações
externas que o indivíduo realiza com o auxílio do emprego de signos que permitem ao
sujeito realizar operações cada vez mais complexas sobre os objetos e sobre o outro.
Um exemplo simples que se pode pensar refere-se ao conselho dado por um familiar ou
amigo sobre um risco iminente. O adolescente não precisa experimentar o infortúnio,
ele pode lembrar-se da conversa que teve e que internalizou e, a partir dai, já não precisa
mais das advertências dos amigos e familiares para evitar tal acidente. Portanto, faz-se
necessária a mediação do uso de signos para que o indivíduo possa influenciar o
comportamento de outros.
Desse modo, fica evidente que o processo de desenvolvimento das funções
psíquicas superiores ocorre pela passagem das relações sociais externas ao interior do
indivíduo, constituindo a base fundamental da formação da personalidade. “[...] Tudo
aquilo que era a princípio exterior – convicções, interesses, concepção de mundo,
normas, éticas, regras de conduta, tendências, ideais, determinados esquemas de
pensamento – passa a ser interior”. Assim, as três leis apresentadas indicam o caráter
social do desenvolvimento da personalidade do adolescente que permite a identificação
com os adultos e com outros adolescentes. Eles encontram modelos para a imitação e
para a construção de suas relações com as pessoas. Tais relações podem ser ampliadas
no espaço escolar, portanto a escola torna-se assim o local de conhecimento, encontros e


545

convívio entre adolescentes, e entre adolescentes e professores. Ela é também um


espaço de criação. (VIGOTSKI, 1996, p. 63).
Para Vigotski, a imaginação e a criatividade estão relacionadas com a livre
elaboração dos elementos da experiência, e essa combinação “[...] exige, como premissa
indispensável, a liberdade interna do pensamento, da ação, do conhecimento alcançado
tão só aos que dominam a formação de conceitos. [Qualquer] alteração na formação de
conceitos reduz a imaginação e a criatividade”. (VIGOTSKI, 1996, p. 207).
Martins (2012, p. 10) nos ajuda a compreender que desenvolvimento psíquico
corresponde à intelectualização de todas as funções psicológicas superiores, dentre elas
também a imaginação. Destarte, pode-se considerar a poesia tão necessária quanto a
geometria e, nesse contexto, a imaginação, a criatividade, a fantasia e os próprios
sentimentos não são “entes autônomos, independentes de todo o sistema psíquico. Pelo
contrário, seu desenvolvimento resulta e se vincula, sobretudo, à formação do
pensamento abstrato, isto é, a um alto grau de desenvolvimento conceitual”.
Com isso, fica clara a impossibilidade de qualquer hierarquização de
conhecimentos no âmbito da educação escolar direcionada à formação de conceitos
científicos. A valorização de tais conhecimentos, em igual medida, também está
presente nas ideias sobre a Educação Integral propostas anteriormente neste texto. Cabe
relembrar que para Marx a formação omnilateral refere-se a todas as dimensões
humanas; desta forma, precisamos nos apropriar de maneira omnilateral das
objetivações para nos constituirmos como seres completos. Quais seriam, então, as
premissas para o desenvolvimento integral do adolescente?

5 Premissas para o desenvolvimento integral: a importância da escola

Para que tal desenvolvimento integral ocorra, é necessário que os


conhecimentos sejam apropriados como ferramentas e instrumentos de compreensão da
realidade. Precisam ser formados os recursos cognitivos para tal, que colaborarão com o
desenvolvimento e a compreensão da realidade por meio de generalizações e abstrações
que levarão esse entendimento para além do aparente. Nesse sentido, não basta conceber
como se dá o desenvolvimento do ser humano, suas peculiaridades e características;
para Vigotski também é necessário organizar a prática educativa para criar novas
necessidades e novos níveis de pensamento.


546

Portanto, cabe à escola proporcionar que o ensino envolva a análise e a reflexão


de diversos tipos de conceitos. Um dos modos para se atingir tal resultado, como sugere
Saviani (1989), parte da análise da prática social global, ou seja, da forma como estão
sintetizadas as relações sociais em um determinado momento histórico para, a seguir,
colocarmos em xeque as respostas dadas à esta prática social, levantando indagações,
assinalando suas insuficiências e incompletudes.
Diante dessas questões, cabe à escola oferecer condições para que o aluno
compreenda o objeto de estudo em suas múltiplas determinações, o que demanda a
apropriação de novos conhecimentos através da mediação intencional do professor, o
qual colaborará com a ampliação das elaborações do pensamento com sínteses,
reflexões e catarses acerca do vivido. A partir desse processo de vivências, apropriações
e de momentos em que o aluno manifesta o que apreendeu, o sujeito enriquecido pelas
objetivações humanas passa a participar da prática social de outro modo: compreende a
realidade em suas múltiplas relações, fica impulsionado a agir de forma transformadora,
buscando a modificação da realidade marcada pela desigualdade social.
A escola, quando bem organizada, age significativamente nesse meio, pois pode
promover a aprendizagem, assim como o consequente desenvolvimento do indivíduo.
Esse crescimento não se dá automaticamente, não é inato, mas compõe um processo que
é social, que ocorre nas relações com as outras pessoas, em uma realidade histórica e
cultural.
Assim, segundo Martins (2012) a educação escolar é um processo que interfere
diretamente na formação integral dos educandos, ou seja, em todas as dimensões
possíveis. Tal prerrogativa dialoga com o que foi apontado quando tratamos da
formação omnilateral dos alunos que frequentam o Ensino Médio Integrado pensado a
partir da Politecnia e dos três eixos, trabalho, ciência e cultura. Desse modo, é
importante compreender que, para a educação escolar promover desenvolvimento, o
ensino não deve apenas reproduzir os saberes de senso comum; mas promover a
apropriação dos conteúdos clássicos, ou seja, aqueles que se firmaram como essenciais,
como elementos culturais fundamentais ao processo de humanização.
Em suma, a escola é lócus do saber historicamente sistematizado, espaço
privilegiado para a socialização desse saber. É a instituição social que deve prezar pelo
ensino de conhecimentos que incidam sobre o desenvolvimento dos indivíduos e sobre
as contradições sociais por eles enfrentadas, ou seja, ela necessita posicionar-se a favor
da plena formação humana.


547

As ideias marxianas, que sustentam as teorias de Vigotski, apontam que a


captação da realidade não assegura por si mesma o seu real conhecimento, ainda que
dela resulte inúmeros mecanismos adaptativos. “Apenas como resultado das complexas
mediações do pensamento é que o objeto da captação torna-se inteligível e, assim sendo,
é enquanto abstração mediadora na análise do real que o ensino da filosofia, da ciência,
da arte, etc., adquire sua máxima relevância”. (MARTINS, 2012, p. 12).
A partir dessas colocações e sem deixar considerar que no interior da escola
existem contradições que atravessam o trabalho pedagógico, pode-se pensar nos
pressupostos do Ensino Médio Integrado - sua concepção integrada, omnilateral,
politécnica e centrada nos eixos trabalho, ciência e cultura - como um modo de
contribuir sobremaneira com a travessia em busca de uma educação emancipadora,
capaz de colaborar com a formação psicológica do aluno, para que esse seja capaz de
atuar como dirigente e atuante em uma sociedade menos desigual.

Referências

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personalidade do adolescente. Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente-SP, v. 25,
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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

ALFABETIZAÇÃO - ISSO NÃO É BRINCADEIRA: CONTRIBUIÇÕES DA


PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA PARA PENSAR O ENSINO DA LÍNGUA ESCRITA

Patrícia Maria Guarnieri Ramos (UNIMEP)1


Anna Maria Lunardi Padilha (UNIMEP)2

Resumo: Esse trabalho apresenta parte de uma pesquisa em andamento em nível de mestrado na
Universidade Metodista de Piracicaba que tem como objeto de estudo a alfabetização nas séries
iniciais do ensino fundamental na escola pública. Fundamentada no método materialista
histórico e dialético de K. Marx, articula a Psicologia de L.S. Vigotski e de seus colaboradores
com a Pedagogia Histórico-crítica, fundada por Demerval Saviani e desenvolvida por ele e por
seus colaboradores, bem como se pauta na intersecção que ambas assumem em defesa da escola
e do ensino dos conhecimentos historicamente produzidos como caminho para a transformação
da sociedade. Quanto aos aspectos históricos, busca subsídios nos estudos de M.R.L.Mortatti
acerca da história da alfabetização no Brasil e da progressiva desmetodização do ensino da
leitura e da escrita, com o advento do construtivismo e das políticas públicas pautadas no
neoliberalismo.

Palavras-chave: Alfabetização. Psicologia histórico-cultural. Pedagogia histórico-crítica.


Políticas públicas.

1 Apontamentos iniciais da pesquisa acerca do problema e do objeto de estudo

A realidade do domínio da leitura e da escrita e de sua vinculação com o


desenvolvimento cultural dos membros da sociedade deve ser concebida sob as
categorias trabalho e linguagem, constitutivas da “condição humana do homem"3. Por
isso, um estudo sobre alfabetização envolve várias áreas: Filosofia, Sociologia, História,
Psicologia, Linguística, as Letras e as Artes e, especificamente, aqui, neste trabalho, os
articulados à educação escolar.


1
Patrícia Maria Guarnieri Ramos, psicóloga, mestranda em Educação. Universidade Metodista de
Piracicaba, São Paulo, Brasil. E-mail: psicopmgr@gmail.com
2
Anna Maria Lunardi Padilha, mestre em Educação e doutora em Educação, Conhecimento, Linguagem e
Arte. Universidade Metodista de Piracicaba. São Paulo, Brasil. E-mail anapadi@terra.com.br
3
Cf. PINO, A. (2005, p. 93-94). Nessa obra, o autor aprofunda os estudos de L.S. Vigotski na afirmativa
de que a mediação semiótica é constitutiva da natureza humana do homem. A significação converte a
natureza em cultura e a cultura em natureza, a resposta que o homem dá à natureza já é cultural, sendo
que não há objetos naturais que não sejam convertidos em objetos culturais. Assim é a linguagem.


550

Como pressuposto, assumimos que o ensino da linguagem escrita na escola é


condição para o acesso e para o domínio dos bens culturais desenvolvidos pela
humanidade na história. Portanto, não se trata de qualquer ensino ou de qualquer acesso.
Não basta qualquer nível de domínio ou apropriação. Tem que ser o mais rico, o
melhor, o mais abrangente alcançado até agora no desenvolvimento da cultura humana.
Partindo da seriedade com que se deve abordar a criança e o processo de seu
desenvolvimento - do qual faz parte a aquisição da linguagem escrita -, urge que se
desenvolvam, de fato, estratégias para melhor desempenho da escola na função de
alfabetizar seus alunos nas séries iniciais do Ensino Fundamental. Para além de estarem
na escola – e os dados informam que a grande maioria está4 –, os alunos da classe
popular precisam efetivamente ter o domínio da linguagem escrita e de outros conteúdos
escolares que são condições imprescindíveis para o desenvolvimento e para a
participação na sociedade letrada contemporânea.
Um dos aspectos que confere maior complexidade à temática é que, mesmo
considerando os índices negativos sobre a alfabetização no país, quando nos referimos
às avaliações nacionais e internacionais, os próprios dados são contraditórios. Há, por
um lado, uma perspectiva positiva apresentada pelo IBGE, segundo as últimas pesquisas
divulgadas. No Censo Demográfico 2000/2010, as tabelas 27 e 28 indicam os resultados
sobre alfabetização e apontam que, entre 2000 e 2010, em todos os estados da
federação, os percentuais de analfabetismo caíram. Em todas as regiões do país, há
diminuições significativas. Considerando os municípios com número maior de 500.000
habitantes, têm-se os seguintes resultados: Região Norte em 2000, 5,6% de analfabetos,
em 2010, 3,6%. Na Região Nordeste, em 2000, 10,4%, em 2010, 7,0%. Na Região
Sudeste, em 2000, 5,0%, em 2010, 3,2%. Na Região Sul, em 2000, 8,6%, em 2010,
2,5%. Na região Centro-Oeste, em 2000, 5,6%, em 2010, 3,6% (IBGE, 2010).


4
O site do Observatório do PNE divulga a porcentagem de 97,1 % de crianças entre seis e 14 anos
matriculadas no Ensino Fundamental (dados de 2013). O mesmo site divulga que 71,7% dos jovens de 16
anos concluem o Ensino Fundamental e que ainda permanecem fora da escola 500 mil crianças entre seis
e 14 anos, que correspondem aos filhos da população com renda per capita de 1/4 de salário mínimo,
negros, indígenas e deficientes. O Observatório do PNE é uma iniciativa de 20 organizações ligadas à
Educação, especializadas nas diferentes etapas e modalidades de ensino que, juntas, se propõem a realizar
o acompanhamento permanente das metas e estratégias do PNE. São elas: Capes, Cenpec, Comunidade
Educativa Cedac, Fundação Itaú Social, Fundação Lemann, Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal,
Fundação Roberto Marinho/Canal Futura, Fundação Santillana, Fundação Victor Civita, Instituto Avisa
Lá, Instituto Natura, Instituto Paulo Montenegro, Instituto Rodrigo Mendes, Instituto Unibanco, Ipea,
Mais Diferenças, SBPC, Todos Pela Educação, Unesco e Unicef. O desenvolvimento da plataforma
contou com o apoio do BID.


551

No site Observatório do PNE, divulga-se que 27% da população entre 15 e 64


anos (dados de 2011) está em situação de analfabetismo-funcional. Esses dados são
relativos à meta 09 do PNE, que diz: “elevar a taxa de alfabetização da população com
15 anos ou mais, para 93,5% até 2015, e até o final da vigência deste PNE, erradicar o
analfabetismo absoluto e diminuir em 50% a taxa de analfabetismo-funcional”.
(OBSERVATÓRIO DO PNE, 2015). Diante desses dados e de sua análise, pode-se
considerar que o Brasil tem conseguido avançar em suas metas sobre a erradicação do
analfabetismo, conforme prevê o Plano Nacional de Educação vigente?
Acreditamos ser de suma importância que esses dados sejam confrontados a
partir de uma perspectiva histórica de construção do fenômeno e que suas
determinações sejam apontadas e analisadas, uma vez que assumimos o método
materialista, histórico e dialético, cujas categorias totalidade, contradição e mediação
devem ser fios condutores dos que estudam os fenômenos humanos nessa perspectiva.
Por não darem conta das determinações históricas e políticas do objeto, os dados
obtidos por esses institutos de pesquisa não representam a realidade efetiva das escolas
públicas. Ou seja, é preciso apreender as contradições desses resultados quando nos
questionamos sobre o quanto as crianças e adolescentes, na escola pública, usufruem do
domínio de sua língua materna, com perspectivas de que desenvolvam suas funções
psicológicas superiores e elaborem conceitos científicos.
Com o intuito de buscar respostas a essa questão, a pesquisa aborda leituras
sobre a temática, considerando autores que tenham se preocupado e abordado o
fenômeno sob este enfoque, isto é, com estudos que considerem a linguagem escrita em
suas determinações social, política, econômica e pedagógica.
O estudo segue apoiado em autores como Maria do Rosário Mortatti (2000,
2009, 2010, 2013), que problematiza historicamente a produção do silenciamento da
discussão sobre a compreensão do conceito de alfabetização no Brasil e quanto esse
silenciamento está em consonância com o modelo neoliberal de Estado5, que
fundamenta as políticas públicas sobre a educação em geral e a alfabetização, em
específico, e dita modelos (modismos) de ensino que se sustentam nos resultados das
avaliações nacionais e internacionais, forçando os alunos a se adequarem às tais


5
Cf. SILVA JÚNIOR, J. R.; SGUISSARDI, V. Novas faces da educação superior no Brasil. 2. ed. rev.
São Paulo: Cortez, Bragança Paulista, 2001. Nessa obra, os autores fazem uma análise das implicações da
reforma do Estado Neoliberal, que se inicia no Brasil na década de 90, e as consequências sobre o Ensino
Superior. Contudo, é possível aplicar tais análises à Educação Básica.


552

habilidades e competências de leituras correspondentes a essas avaliações. Não


necessariamente essas habilidades correspondem ao domínio da leitura e escrita com
vistas a se desenvolverem como funções psicológicas superiores. E aos professores se
tem atribuído o papel de “meros provedores de estratégias para essa aprendizagem”.
(MORTATTI, 2013, p.15).
Sobre os dados quanto ao analfabetismo-funcional, Mortatti (2013) afirma que,
apesar de constatar que não são poucos os esforços e investimentos financeiros
dedicados a superar as metas de universalização da educação primária, não têm
significado concretamente a universalização do acesso aos conhecimentos básicos. Isto
é, não têm representado avanços na aquisição da linguagem escrita para as crianças que
estão na escola pública frequentando as séries iniciais do Ensino Fundamental.
Em consonância com as reflexões da referida autora, a presente pesquisa assume
essa perspectiva de estudo, que prevê ser “necessário para o século XXI mexer na caixa
preta da alfabetização escolar”. E, decididamente, perceber o equívoco dessas políticas,
para que se interrompam os sucessivos desastres promovidos por esses modismos; que
se renovam e se repetem e, assim, retirar as crianças do “verdadeiro limbo” em que a
escola se encontra, no que diz respeito ao ensino da linguagem escrita. (MORTATTI,
2013, p.31).
Assim, faz parte desde estudo a discussão teórico-metodológica a partir das
determinações históricas sobre o conceito de alfabetização e do impacto dessas
discussões: na formação de professores e na defesa de métodos que se caracterizem
como um processo escolar, sistematizado e intencional para ensinar a linguagem escrita,
sem prescindir de uma perspectiva teórico-metodológica, visando sequências planejadas
e organizadas para que o professor ensine e o aluno aprenda. (MORTATTI, 2009, p.
111).
Outra contribuição importante que a autora traz com suas pesquisas é a proposta
da organização da história da alfabetização no Brasil em quatro momentos. Na obra: Os
sentidos da alfabetização: (São Paulo/1876-1994) de 2000, utilizando-se da
metodologia da “configuração textual”6 e da problematização sobre os métodos de
alfabetização, chega à organização de quatro momentos históricos. Nossa pesquisa
segue como contribuição na análise do quarto momento, meados da década de 1980 até


6
Na sessão seguinte, em que apresentamos o método da pesquisa, será abordada a metodologia da
“configuração textual” elaborada pela autora. Metodologia que utilizaremos na pesquisa para analisar o
documento do Pacto Nacional para alfabetização na idade certa – PNAIC.


553

os dias atuais no qual está caracterizado o predomínio de concepções construtivistas ou


ainda “socioconstrutivistas” e “construtivismo-interacionista”. (2000, p. 276)7.
De modo mais amplo, discutindo o modelo ideológico do “aprender a aprender”
na educação, Duarte (2001, p. 30), no livro: Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica
às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana, afirma que, a partir da
década de 80, se difunde maciçamente a epistemologia da psicologia genética de Jean
Piaget. E que esse fato não pode ser visto como um “fenômeno isolado, mas articulado
com um contexto de mundialização do capital e de difusão, na America Latina, do
modelo econômico, político e ideológico neoliberal e de seus correspondentes no plano
teórico, o pós-modernismo e o pós-estruturalismo”. Consequência nefasta também se vê
nos estudos sobre L.S. Vigotski, cooptados pelo lema do “aprender a aprender”
deslocando todo o potencial da obra do autor, de base marxista, abordando-o como
interacionista.
Na contramão dessa leitura interacionista da obra de Vigotski, a presente
pesquisa visa somar forças aos estudos críticos abordando o ensino da linguagem escrita
fundamentado nos pressuposto filosóficos marxistas. Nesse sentido, assumimos a
Psicologia Histórico-cultural e a Pedagogia Histórico-crítica como bases teóricas, uma
vez que ambas estão ancoradas num mesmo solo epistemológico - o materialismo
histórico-dialético – e oferecem fundamentação sólida para esta discussão. Com essa
relação, busca-se a justa posição afirmada por Martins (2013, p. 311): “o ponto de
intersecção entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica reside na
defesa dos conhecimentos clássicos, historicamente sistematizados, ou então, do ensino
dos verdadeiros conceitos, quais sejam, científicos”.
O princípio comum entre esses estudos é de fundamental importância para a
construção de um conceito de alfabetização que garanta, de fato, o uso adequado da


7
Cf. MORTATTI, Maria do Rosário. M. R. L. A “querela dos métodos” de alfabetização no Brasil:
contribuições para metodizar o debate. Acolhendo a Alfabetização nos países de Língua Portuguesa,
São Paulo, v. 3, p.91-114, 2009. “Esses momentos e suas características são, muito resumidamente: 1º
momento (1877-1890) - disputa entre os defensores do então “novo” método da palavração e os dos
“antigos” métodos sintéticos (alfabético, fônico, silábico); 2º momento (1890 a meados da década de
1920) - disputa entre defensores do então “novo” método analítico e os dos “antigos” métodos sintéticos;
3º momento (meados de 1920 a final da década de 1970) - disputa entre os defensores dos “antigos”
métodos de alfabetização (sintético-analítico) e os dos então “novos” testes ABC para verificação da
maturidade necessária ao aprendizado da leitura e escrita, de que decorre a introdução dos “novos”
métodos mistos; 4º momento (meados da década de 1980 a 1994) disputa entre os defensores da então
“nova” perspectiva construtivista e os dos “antigos” testes de maturidade e dos “antigos” métodos de
alfabetização”.


554

linguagem escrita para o desenvolvimento das funções psicológicas dos alunos da


escola pública. Com o propósito de que não seja qualquer desenvolvimento, mas aquele
que possibilite seus melhores resultados, e que não seja para um grupo restrito, mas para
os todos os alunos, filhos da classe trabalhadora.
Considerando esses pressupostos, esta investigação se propõe a reconhecer a
linguagem escrita - conforme discute Vigotski (2000, 2001, 2012, 2014) - como uma
função psicológica superior, um comportamento complexo, recorrendo também às
contribuições da função da escola e do ensino assumida pela Pedagogia Histórico-
crítica.

2 O caminho metodológico da pesquisa: o materialismo histórico-dialético

Conforme exposto, a opção metodológica é pelo materialismo histórico-


dialético, cunhado por K. Marx (1817-1883) e F. Engels (1820-1895). Podemos
compreender, como questões introdutórias para os limites deste texto, que, para esses
pensadores, “os homens começam a se distinguir dos animais logo que começam a
produzir seus meios de existência. Ao produzirem seus meios de existência, os homens
produzem indiretamente sua própria vida material”, ou seja, que a origem da condição
humana é decorrente das relações de trabalho coletivo, em que o homem produz e é
produzido. (MARX, K; ENGELS, F., 2007, p. 10-11).
Diferenciando-se da filosofia de sua época, dominada pelas concepções
idealistas, Marx e Engels postulavam que os indivíduos são dependentes das condições
materiais da sua produção. Para o marxismo, a história é seu substrato material, a
essência do homem é o conjunto das relações sociais (2007). A sociedade industrial,
lócus de sua teoria, que estava se organizando pelas relações comerciais, determina que
as forças produtivas estabeleçam as relações de produção e a divisão do trabalho,
organizado em manual e intelectual pela classe dominante. Cria-se, no homem, algo
inédito na história, que é sua consciência substantivada. A teoria marxista problematiza
a concepção de que o Estado representa os interesses gerais da sociedade civil –


555

ideologicamente, o Estado representaria os interesses da propriedade privada e serviria à


classe dominante8.
No campo da ciência, o materialismo histórico-dialético de Marx e Engels
propõe a saída do núcleo racional da dialética idealista de Hegel e converte a dialética
em um modo de pensar o real. Na introdução ao livro A Ideologia Alemã, Gorender
define a dialética como: “[...] severa disciplina do pensar que objetiva reproduzir
conceitualmente o real na totalidade inacabada dos seus elementos e processos”.
(MARX; ENGELS, 2007, p. XXXVIII).
Para adotar o método materialista histórico-dialético, necessita-se considerar a
realidade em movimento, partindo, sim, do empírico, da realidade dada, do real
aparente, do objeto como ele se apresenta à primeira vista, mas, pelas abstrações desse
real, considerar uma compreensão mais elaborada, do que há de essencial no objeto: o
concreto pensado. O real pensado torna mais completa a realidade observada.
(TOZZONI, 2001, p.35).
Dizendo de outra forma, Paulo Netto (2011, p. 20-22) afirma que, nessa
perspectiva metodológica, a teoria é o movimento real do objeto transposto para o
cérebro do pesquisador – é o real reproduzido e interpretado no plano ideal. Desse
modo, o objeto tem existência objetiva, não dependendo do pesquisador. Superando a
descrição da aparência do objeto, o método propicia o conhecimento teórico, partindo
da aparência; contudo, visa alcançar sua essência, isto é, sua estrutura e seu movimento
de construção na realidade. É esse conhecimento teórico que garante a objetividade,
pois a verificação de sua verdade se dá na prática social e histórica.
Em relação ao objeto deste estudo, a Psicologia Histórico-cultural traz conceitos
importantes para abordar o fenômeno da aquisição da linguagem escrita. L.S. Vigotski
(1896-1934) desenvolveu uma psicologia de base materialista histórico-dialética,
ancorando-se nas teses de Marx e Engels para formular as leis de constituição e de
desenvolvimento do psiquismo humano. Na mesma medida e intensidade que Marx e


8
Cf. GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: As concepções de Estado em Marx, Engels,
Lenin e Gramsci. Porto Alegre: Editora L&PM, 1996. Segundo o autor, a grande contribuição da teoria
de Karl Marx é assumir que a sociedade e o Estado não podem ser concebidos por si, mas pelas raízes
materialistas que os constituem. Assim, inverte a lógica desenvolvida por Hegel, segundo a qual o
Estado funda a sociedade, dizendo, então, que quem funda o Estado é a sociedade. Nesse sentido, a
crítica ao Estado burguês está na base de toda a crítica que Marx faz ao modelo de Estado moderno. O
Estado surge então na defesa da propriedade privada e da divisão do trabalho. O Estado é legitimado
pelos detentores dos bens de produção, ele nunca é neutro ou mantém uma relação de igualdade entre os
homens, pois, em sua origem, tem as implicações com a minoria da sociedade, que são quem detém os
meios de produção.


556

Engels (2007) pretendiam refutar as visões idealistas dos filósofos de seu tempo e
buscavam uma análise pautada na concretude do homem em suas relações de produção,
Vigotski e seus colaboradores tinham como princípio a elaboração de uma psicologia
também concreta do homem.
Ao adotar a perspectiva materialista histórico-dialética é que se busca, na
Psicologia de Vigotski, compreender o fenômeno da linguagem escrita. E, nessa base de
sustentação, abordar o objeto, buscando, assim, suas origens e suas determinações. Para
a Psicologia Histórico-cultural, a aquisição da linguagem escrita exige ações que
caminhem na direção de proporcionar à criança, que está sob esse processo, uma relação
vertical, ou seja, a aquisição da linguagem não é repertório que ela domine pela
experiência imediata; precisa ser ensinada para se tornar um recurso do psiquismo. Sua
estrutura precisa passar do domínio externo para o domínio deliberado e interno do
indivíduo. (VIGOTSKI, 2014).
Pensar a linguagem a partir dessa premissa torna-se, para nós, um pressuposto
metodológico que dá a possibilidade de abordar a essência desse fenômeno,
considerando suas determinações materiais impulsionadas, numa sociedade de classes,
pela luta entre os que dominam esse sistema de códigos e participam integralmente das
produções humanas e aqueles que não dominam, ficando à margem dessa produção.
Outro pressuposto conceitual metodológico sobre esse fenômeno busca-se em
Leontiev (1978) e sua explicação de que a evolução humana continua a se desenvolver,
mas o mecanismo que engendra essa evolução não é determinado pelas heranças
biológicas, e sim pelo novo mecanismo criado pelo homem, que é a cultura. Para
Leontiev, os fenômenos externos da cultura material e intelectual é que representam os
mecanismos que fazem a passagem evolutiva de geração após geração. O trabalho foi a
atividade fundamental que possibilitou essa forma de transmissão, que é exclusiva do
homem. Desse modo, toda geração começa em um mundo de objetos e fenômenos
intelectuais criados pelas gerações precedentes.
Na afirmativa da tese de que o indivíduo humano precisa se tornar um humano,
o autor considera que o processo educativo é que garante a continuidade do
desenvolvimento da história social da humanidade. Sem a possibilidade dessa
transmissão, a história seria interrompida e um novo começo seria inevitável, pois os
objetos que ali estariam não teriam sentido para as gerações vindouras. Considerando
esse processo educativo como forma de transmissão de cultura, observa-se que, quanto
mais complexos se tornam os objetos da cultura e os conteúdos produzidos pela história


557

do homem, mais se tornam necessários o aperfeiçoamento desse processo educativo e as


instituições educacionais da sociedade. Ao considerar esse fato, logo se coloca uma
questão: todos têm acesso a essas aquisições historicamente produzidas com igualdade
de condições? A partir da afirmativa de Leontiev (1978, p. 275), podemos concluir que
essas condições estão determinadas pela divisão do trabalho social: “A divisão social do
trabalho tem igualmente como consequência que a actividade material e intelectual, o
prazer e o trabalho, a produção e o consumo se separem e pertençam a homens
diferentes”.
Por isso, quando discutimos a alfabetização de crianças em nosso país, podemos
fazer uma análise semelhante à de Leontiev (1978) perguntando: para quem a
alfabetização é um bem cultural adquirido desde muito cedo na infância? Fica para os
filhos da classe dominada e subalterna a probabilidade de se alfabetizar em um processo
longo, que, no nosso caso, no Brasil, pode até estender-se para mais do que os cinco
anos do 1º ciclo do Ensino Fundamental? Espera-se, por ventura, que o Pacto pela
Alfabetização na Idade Certa – PNAIC dê conta de alcançar a alfetização plena ao final
do 3º ano (Brasil, 2012, p.05)? O que perde o filho da classe dominada que não domina
sua língua materna escrita desde o início do seu processo de escolarização? Que, por
não dominá-la, fica à margem das produções da filosofia, das ciências e das artes?
Ainda como pressuposto metodológico, a pesquisa busca uma mediação dessa
Psicologia, enquanto um paradigma de compreensão sobre o humano, com uma
intervenção da prática social e escolar, com vistas à transformação dos modos de
produção capitalista. Nesse sentido, assume como referencial, no campo da Pedagogia,
os estudos de Saviani (2008, 2013), pois, concomitante aos estudos e aprofundamentos
sobre os conceitos fundamentais da Psicologia soviética para a aquisição da linguagem
escrita, encontra-se, na pedagogia histórico-crítica, uma proposta contra-hegemônica de
educação: reconhece-se a importância dos modos organizados intencionalmente e
rigorosamente fundamentados para alfabetizar, processo que resulta em uma escola que
assuma o seu papel intransferível de ser responsável pela transmissão do conhecimento
socialmente construído. (DUARTE, 1996).
Saviani (2008) desenvolve uma profunda análise sobre as práticas pedagógicas e
suas implicações com a possibilidade ou não da transformação da sociedade. Nessa
análise, encontra ideais pedagógicos que assumem posturas conservadoras e de
manutenção dos determinantes sociais de uma sociedade dividida em classes, seja
propondo a tentativa da transformação pelo seu microcosmo, isto é, pelo seu interior,


558

negando as determinações macrossociais, seja partindo dessas condições macrossociais


e gerando as mesmas atitudes conservadoras. As tendências pedagógicas analisadas pelo
autor, de um modo ou outro, contribuem para a conservação da forma como se organiza
injustamente a sociedade.
Como forma de romper com essa tendência dominante, a Pedagogia Histórico-
crítica busca fazer resistência a essa condição limite de transformação e constrói como
premissa a perspectiva de que a escola possa ocupar um lugar transformador. Nesse
sentido, esta pesquisa assume o pressuposto de que a escola é um lugar de
transformação social, e “luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do
ensino das camadas populares”. (SAVIANI, 2008, p. 25-26).
Subsidiada por esses pressupostos teóricos e metodológicos, a pesquisa parte da
premissa de que o bom ensino da linguagem escrita, portanto, a alfabetização, é a pedra
de toque de todo o sistema de ensino. Seu tratamento inadequado determinará
negativamente toda a trajetória escolar. (MARTINS; MARSIGLIA, 2015).
A pesquisa propõe-se à análise do material de formação de professores do
PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, delimitando o estudo aos
Cadernos de Apresentação e oito unidades referentes ao curso para os professores do 3º
ano do Ensino Fundamental. Como forma de abordar o documento, aproximamo-nos da
metodologia formulada por Mortatti: “análise de configuração textual”. Essa
metodologia tem contribuído para que, a partir dessa primeira década do século XXI,
tenha se constituído a “tendência à história da alfabetização como campo de
conhecimento autônomo e interdisciplinar”. (MORTATTI, 2012, p. 88).
Assumimos como referência essa metodologia na abordagem do material do
curso de formação de professor do PNAIC, objetivando identificar as concepções sobre
o ensino da leitura e da escrita presentes no documento, que expressam a tendência
hegemônica para a alfabetização nas políticas educacionais, estabelecidas pelo estado
brasileiro. A pesquisa também analisará entrevistas realizadas com professores
alfabetizadores, com o objetivo de problematizar a desmetodização do ensino da leitura
e da escrita na realidade da escola pública.

3 Considerações parciais: por uma concepção marxista em alfabetização

Como primeiros resultados deste estudo, pode-se formular que, para a aquisição
da linguagem escrita é preciso que os alunos caminhem muito além da sua experiência


559

imediata com o mundo letrado. Urge que se tenham métodos eficientes para conduzir as
crianças para a apreensão desse sistema de escrita e que se possa oferecer à criança um
instrumento para estabelecer uma relação abstrata e superior com a sua função
psicológica de escrita da língua materna.
Pela perspectiva assumida nesta investigação, a linguagem escrita, como função
psicológica superior, é produto histórico, originária da relação com o trabalho (LURIA,
1991) e só faz sentido como prática social. Qualquer atribuição à aquisição da
linguagem que não signifique uma unidade de sentido nas práticas sociais pode ser
compreendida como alienação. Assim como para Marx, trabalho alienado é “não
trabalho”, alfabetização alienada é “não alfabetização” (MARTINS; MARSIGLIA,
2015, p.74).
Nesse sentido, ao atribuir à alfabetização – e ao consequente domínio da escrita
– o papel de desenvolvimento de uma função psicológica superior altamente complexa,
fica dispensável falar em letramento, afinal, indivíduos alfabetizados podem ser leitores
e produtores de diferentes gêneros textuais. A função da escola é justamente essa.
Desse modo, assume-se o pressuposto de que a aquisição da linguagem escrita
não se dá espontaneamente e essa só poderá ter melhor êxito quando compreendida
como um processo de elevação e abstração, que vai além da simples transposição da
linguagem oral; como um produto social, o qual as gerações mais capazes têm a
responsabilidade de transmitir às gerações futuras com propósitos de garantir sua
evolução. Assim como para um indivíduo humano se tornar um indivíduo da sua
espécie não basta nascer; para ser um representante da espécie humana é necessário
adquirir o que foi alcançado no decurso histórico da sociedade humana, é preciso se
tornar um homem (LEONTIEV, 1978 – grifo nosso). Afirmamos, com outros
estudiosos, que é preciso que nossa sociedade assuma a responsabilidade de
providenciar todas as condições necessárias para a aquisição da linguagem escrita, por
parte das gerações que estão em formação, para que possam prosseguir com o processo
de evolução da sociedade humana.
Assim sendo, abordamos a discussão do ensino da linguagem escrita a partir das
discussões que Vigotski faz sobre os conceitos espontâneos e os conceitos científicos,
justamente quando esses últimos vão à frente do desenvolvimento e criam novos
círculos de conceitos, ou seja, operam em zonas em que as crianças ainda não dominam,
concluindo que tais conceitos podem efetivamente desempenhar um grande papel ao
formarem zonas de desenvolvimento imediato. (VIGOTSKI, 2001, p.544).


560

Ousamos aqui apontar que nessa discussão sobre conceito científico e


espontâneo ou cotidiano está o próprio exercício do método materialista dialético. A
criança está em contato imediato com sua realidade através de seus sentidos, um
conhecimento empírico dessa realidade (conceitos espontâneos), mas são os
conhecimentos científicos que podem efetivamente promover uma compreensão de
modo mais radical e que possibilite seu domínio.
Buscamos em Martins (2013, p. 141-142) a atualização dessa afirmação quando,
no ponto de intersecção entre a Pedagogia Histórico-crítica e Psicologia Histórico
Cultural, afirma:

O estofo materialista dessas teorias aponta a apropriação do


patrimônio cultural como “ferramenta” imprescindível à existência
ativa dos indivíduos, posto que a captação imediata da realidade não
assegura por si mesma o seu real conhecimento, ainda que dela
resultem inúmeros mecanismos adaptativos. Apenas como resultado
das complexas mediações do pensamento é que o objeto da captação
se torna inteligível e, assim sendo, é enquanto abstração mediadora na
análise do real que o ensino da filosofia, da ciência, da arte etc.
adquire sua máxima relevância.

Em nossa compreensão, o ensino da leitura e da escrita, ou seja, o ensino da


linguagem escrita constitui ferramenta que opera de modo singular na abstração
mediadora e na análise do real. Sem o domínio dessa função, a leitura do mundo
possível é aquela determinada pela sua experiência imediata.
O ensino da leitura e da escrita prevê um sistema conceitual formal que exige
um domínio científico para quem pretende ensiná-la. Tal postura vai em sentido
contrário ao da naturalização dos processos de aprendizagem da leitura e da escrita que
a reduzem a trocas espontâneas de sujeitos viventes em sociedades letradas.
Com a presente pesquisa, espera-se contribuir para uma contínua e permanente
discussão sobre as determinações com relação ao tema da alfabetização e intensificar a
caminhada de muitos pesquisadores que vêm militando na luta pela educação pública e
de qualidade para os filhos da classe trabalhadora. O modo como se pretende fazer isso
é a abordagem crítica e multideterminada pela realidade concreta da sociedade
capitalista, desenvolvendo um corpo teórico-metodológico consistente que possa atuar
de modo contra-hegemônico frente às políticas públicas conservadoras sobre o tema.
O que promove ações consistentes, nessa direção, a nosso ver, é a possibilidade
de considerar a Pedagogia Histórico-crítica como mediadora entre os conhecimentos da


561

Psicologia Hitórico-cultural, as práticas pedagógicas e o acesso da classe trabalhadora


aos conhecimentos mais elevados conquistados pela humanidade, como ensina
Dermeval Saviani em sua obra.

Referências

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____ Obras escogidas III. Problemas del desarrollo de la psique. Machado Grupo de
Distribuión, S.L. Madri, 2012.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

CRÍTICA À ABORDAGEM DO PROFESSOR REFLEXIVO: UMA PRÁTICA


INSTRUMENTAL A SERVIÇO DO CAPITAL NA EDUCAÇÃO

Bruna Ramos Marinho (IFRR/UERR)1

RESUMO: Esse trabalho apresenta um recorte de nossa pesquisa de doutoramento que analisou
as limitações da abordagem de formação de professor Professor Reflexivo, de Donald Schön,
bastante difundida na década de 1990; e que segue fundamentando o discurso dos formadores
acerca da necessidade de formar profissionais reflexivos, autônomos e críticos. Nossos suportes
teóricos foram os estudiosos da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico Cultural,
que nos lançou luzes e passou, a partir daí, a orientar o nosso olhar acerca de como pensar a
formação dos professores. Localizadas no Materialismo Histórico-Dialético, essas teorias nos
permitem entender que a formação do indivíduo não pode ser dissociada do conjunto das
relações sociais. Com base nesse referencial, apresentaremos equívocos e consequências para a
formação dos professores deflagrados a partir de abordagem tal como a do Professor Reflexivo.

Palavras-chave: Formação de Professores; Professor Reflexivo; Pedagogia Histórico-Crítica,


Psicologia Histórico-Cultural.

Introdução

Atuamos ao longo de uma década nas escolas da rede oficial de ensino e nas
escolas particulares de São Paulo. O contato com os dilemas enfrentados pelos
professores que trabalhavam nas escolas diariamente, na prática pedagógica, apontou a
necessidade de se produzir um contexto de investigação e reflexão, cujo intuito era
construir propostas que atendessem às necessidades específicas dos docentes ao
trabalhar espaços complexos como são as escolas. Tais necessidades, especificamente,
referiam-se a problemas como o mau desempenho acadêmico dos alunos, desinteresse
pelos estudos, baixa frequência escolar, indisciplina, violência, entre outros.
Assim, diante dessa situação, nosso projeto de pesquisa de doutoramento
inicialmente propunha-se a pensar essa prática dos professores, tendo como produtores
de conhecimento os próprios docentes e a escola como contexto de produção desse
conhecimento. Como subsídio teórico-metodológico, selecionamos a abordagem de

1
Bruna Ramos Marinho. Licenciada em Letras pela Unesp/Assis. Doutora em Educação pela
Unesp/Marília. Docente do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Roraima e do
Programa de Mestrado Acadêmico em Educação da Universidade Estadual de Roraima. Roraima.Brasil.
email: bruna.marinho@ifrr.edu.br.


564

formação de professores Professor Reflexivo, de Donald Schön. Para que se desse


suporte à produção do conhecimento, como procedimento de reflexão, foi pensada a
construção de um espaço de escuta, ou seja, um espaço de reflexão acerca da
experiência na escola, em que as questões, os problemas vivenciados pelos docentes
fossem compartilhados e analisados.
Ao final desse processo, o professor voltaria à prática com a finalidade de
reconstruí-la. Este espaço para pensar e refletir seria a Hora de Trabalho Pedagógico
Coletivo- HTPC, período de duas horas aproximadamente da carga horária de trabalho
dos docentes, cuja finalidade é pensar as questões pedagógicas pertinentes ao ensino à
aprendizagem. Assim, segundo a perspectiva do Professor Reflexivo, ao docente seria
proporcionada maior autonomia, porque nesse processo haveria uma produção de
conhecimento regida e desenvolvida pelo próprio docente.
No entanto, o espaço de escuta proposto não pôde ser construído, porque, diante
das complexas demandas, não havia condição favorável para que os docentes aderissem
ao espaço de escuta: muitos professores lecionavam em várias escolas e não conheciam
bem aquela escola específica. A rotina da escola que tinha o maior número de alunos da
daquela região levava a gestão a transformar aquele momento em que todos se reuniam
em espaço de transmissão de informações e demandas da Secretaria da Educação, mas a
falta de adesão dos docentes foi a que inviabilizou o projeto.
Essa aparente desmotivação em buscar respostas a partir da própria prática foi o
que nos levou a romper com a abordagem do Professor Reflexivo, uma vez que ela não
tinha como responder ao novo problema: explicar por que a escola não consegue refletir
sobre si mesma. A resposta para essa compreensão veio a partir do embasamento
proporcionado pela pedagogia histórico-crítica e pela psicologia histórico-cultural. Com
isso, uma nova pesquisa foi deflagrada para compreender aquelas relações que
permeiam toda escola, o trabalho do professor e que nos levou a analisar por que a
abordagem do Professor Reflexivo não permitiu transformar aquelas práticas.

1 O contexto do professor reflexivo

Historicamente, os modelos (hegemônicos neoliberais) de abordagem da


educação têm sido elencados na mesma proporção em que há uma desmontagem do
Estado, de desenvolvimento da crise econômica e do desemprego. A consequência disso
tem sido a destruição dos direitos trabalhistas e sociais. Embora os discursos oficiais


565

apontem para a educação como um direito universal assegurado pelo Estado,


concretamente, o que tem sido deflagrado é um processo de defesa da noção do privado.
Isso significa que os problemas encontrados em tais contextos deixam de ser
considerados no âmbito público para serem considerados como problemas, cuja
resolução depende da iniciativa individual. Esse modo de compreender as relações
sociais das esferas políticas e econômicas no nível individual terá reflexos na educação.
Correspondendo a esse princípio hegemônico neoliberal, nos anos de 1980,
Donald Schön, professor do Massachusetts Institute of Techonology, nos Estados
Unidos, com a sua abordagem do Professor Reflexivo, tornou-se um novo parâmetro na
formação do professor. A abordagem do Professor Reflexivo está baseada na concepção
do ensino como atividade reflexiva. No Brasil, o trabalho de Schön será amplamente
conhecido a partir de 1990, com a publicação do livro Os professores e a sua formação,
organizado por Antonio Nóvoa, com a contribuição de Schön e Pérez-Gómez.
A orientação de Schön acerca do Professor Reflexivo e da reflexão sobre a
prática parte de seus estudos da obra de Polanyi e Dewey. O eixo da proposta de Schön
está na valorização da experiência e do conhecimento tácito para a construção de uma
epistemologia da prática. Para os estudiosos dessa abordagem, o saber do professor é
calcado na sua experiência, uma vez que os conhecimentos teóricos recebidos na sua
formação na universidade não conseguem abarcar as complexidades de sua prática.

A realidade social não se deixa encaixar em esquemas


preestabelecidos do tipo taxonômico ou processual. A tecnologia
educativa não pode continuar a lutar contra as características, cada vez
mais evidentes, dos fenômenos práticos: complexidade, incerteza,
instabilidade e conflito de valores. Os problemas da prática social
não podem ser reduzidos a problemas meramente instrumentais, em
que a tarefa profissional se resume a uma acertada escolha e aplicação
de meios e procedimentos. De um modo geral, na prática não existem
problemas, mas situações problemáticas, que se apresentam
frequentemente como casos únicos que não se enquadram nas
categorias genéricas identificadas pela técnica e pela teoria existentes.
(PÉREZ-GÓMEZ, 1997, p. 99-100, grifos do autor).

Por tal razão, propõem estratégias tais como reflexão na ação e reflexão sobre a
ação que ganham o estatuto de conceitos nesta abordagem. O argumento dos defensores
do Professor Reflexivo é que o conhecimento teórico, valorizado nas universidades e na
escola, constitui um impedimento para a construção da autonomia do professor e do
aluno. Desta forma, a reflexão na ação e a reflexão sobre a ação empoderam o professor,


566

tornando-o autônomo em relação ao conhecimento teórico típico das universidades. Nas


palavras de Pérez- Gómez:

Quando o professor reflecte na e sobre a ação converte-se num


investigador na sala de aula: afastado da racionalidade instrumental, o
professor não depende das técnicas, regras e receitas derivadas de uma
teoria externa, nem das prescrições curriculares impostas do exterior
pela administração ou pelo esquema preestabelecido no manual
escolar. (PÉREZ-GÓMEZ, p.106; grifos do autor).

A aplicação da proposta de valorização e desenvolvimento do saber prático


deflagra algumas consequências para a relação deste professor com o conhecimento,
com o ensino e com a aprendizagem. Portanto, as consequências atingem tanto a
formação do professor quanto a do seu aluno, cuja formação será mediada por este
docente para quem o conhecimento científico parece ser um obstáculo à construção do
seu saber prático. Isso porque em relação ao conhecimento, há uma legitimação da
superioridade do saber não-científico em detrimento do conhecimento/da teoria.
A abordagem do Professor Reflexivo, de acordo com Duarte (2001, 2003, 2010),
partilha do mesmo entendimento que as pedagogias escolanovistas, uma vez que o foco
das atividades pedagógicas não está na transmissão do conhecimento, mas apenas no
processo de construção de conhecimento. Na formação do professor, isso resultaria
numa formação não centrada a apropriação teórica, mas apenas na prática e na ação.
Como consequência dessa valorização do processo e desvalorização do próprio
conhecimento nesta abordagem, a universidade (e a escola) torna-se apenas um locus
fornecedor de técnicas e saberes limitados às necessidades e imposições do “mercado de
trabalho” da sociedade capitalista. Isso porque, ao se centrarem no processo, o intuito
dessas pedagogias não corresponde a uma preocupação com a formação do indivíduo,
mas com a sua capacidade de aprender aquilo que seja útil à vida social, às exigências
do mercado. Diante do exposto, diferentemente do que intencionam essas pedagogias —
denominadas por Duarte (2010) de pedagogias do aprender a aprender —, elas não
produzem autonomia intelectual ou espírito crítico. Ao contrário, o que elas produzem é
um indivíduo vazio e adaptável às mudanças que exige a sociedade. (DUARTE, 2013,
p. 604).
Observemos na citação abaixo o que Schön entende por conhecimento escolar e
por saber prático:


567

Todos estes exemplos ilustram a diferença entre o que eu e Jeanne


Bamberger designamos por representações “figurativas” e “formais”.
As figurativas implicam agrupamentos situacionais, contextualizados:
as relações que se estabelecem na maior proximidade possível das
experiências quotidianas. As formas implicam referências fixas, tais
como linhas, escalas, mapas com coordenadas, medidas uniformes de
distância: numa palavra, o saber escolar. Através da reflexão-na-ação,
um professor poderá entender a compreensão figurativa que um aluno
traz para a escola, compreensão que está muitas vezes subjacente às
suas confusões e mal-entendidos em relação ao saber escolar. Quando
um professor auxilia uma criança a coordenar as representações
figurativas e formais, não deve considerar a passagem do figurativo
para o formal como um “progresso”. Pelo contrário, deve ajudar a
criança a associar estas diferentes estratégias de representação.
(SCHÖN, 1997, p. 85).

Um professor formado pelos moldes da universidade trabalha em sala de aula


com base num conhecimento entendido como conhecimento escolar. Para Schön
(1997), esse conhecimento escolar impede que o professor dê voz aos alunos. Tanto
para a formação do professor quanto para o ensino escolar, o estudioso propõe que haja
a possibilidade de valorização do conhecimento figurativo ou situacional.
Ao contrário do que pensa Schön, defendemos o mesmo posicionamento da
pedagogia histórico-crítica, quando esta entende que conhecimento não embasado na
teoria, nos métodos científicos é tido como limitante, uma vez que não permite ao
indivíduo o desenvolvimento de uma relação teórica com a realidade, uma relação
que pode transcender as aparências do real. Um conhecimento que não é pautado na
ciência limita o indivíduo ao imediatismo da representação da realidade calcada na sua
percepção sensorial, que é a percepção a que está submetido o conhecimento
proveniente da experiência. Portanto, este conhecimento empírico está distante de
embasar a escola na sua tarefa de alcançar sua finalidade: desenvolver o espírito crítico,
bem como as potencialidades máximas do indivíduo.
Em síntese, quando Schön defende o saber figurativo, o que ele parece
desconhecer é que não é qualquer conhecimento que pode produzir o desenvolvimento
do aluno, uma vez que é necessário que o aluno se aproprie dos sistemas de
conhecimentos e habilidades e das “formas e operações gerais da atividade intelectual
que se encontrem na sua base”. (DAVÍDOV; MÁRKOVA, 1987, p. 181; tradução
nossa).
É necessário que o indivíduo se aproprie dos conhecimentos historicamente
produzidos e objetive-se neles, desenvolvendo suas capacidades. O conhecimento que
pode desenvolver suas capacidades e alargar a compreensão do mundo não é o


568

sensorial, mas o conhecimento teórico, o conhecimento conceitual. Destacamos que o


ensino tem a responsabilidade e é a forma necessária para transcorrer o
desenvolvimento intelectual, pois, como veremos na próxima seção, esse
desenvolvimento possui uma natureza histórico-cultural concreta.

2 Uma abordagem histórica da formação do indivíduo

Partindo do pressuposto marxista que compreende o homem como um ser social,


considera-se que a “essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo
singular”, mas ao “conjunto das relações sociais”. Não há como dissociar a formação do
indivíduo do conjunto das relações sociais, pois o processo de humanização de cada
indivíduo ocorre sempre numa dinâmica, em que ele internaliza os elementos da cultura
e, ao mesmo tempo, objetiva-se nela transformando-se subjetivamente. (MARX;
ENGELS, 1989).
Para isso, é fundamental não só o contato do indivíduo com o mundo
circundante, mas também a presença da comunicação, i.e., da mediação de outros seres
humanos: da família, de todas as pessoas que o cercam. Pela sua função, esse é um
processo de educação, pois, por meio dele, o indivíduo insere-se na história,
universaliza-se, constituindo nesse processo a sua individualidade. Aqui, ainda não
estamos nos referindo à educação escolar, que é uma forma de educação sofisticada,
mas a toda forma de relação e de experiências no seu dia a dia desde o nascimento de
cada indivíduo. Ao longo da vida, as pessoas do entorno proporcionam a cada indivíduo
a aquisição de conhecimentos, hábitos, valores e linguagem. É, por meio dessa
mediação recebida das gerações anteriores, que cada indivíduo apropria-se da cultura
humana e pode fazer parte da sociedade de seu tempo.
Contudo, no contexto das sociedades capitalistas, o modo como tem se dado esse
processo, ao mesmo tempo que se propicia ao indivíduo a apropriação de sua
genericidade -fazer parte da cultura humana-, também traz em seu bojo a
impossibilidade de ele se objetivar em suas máximas potencialidades, uma vez que essa
apropriação tem ocorrido mediada por circunstâncias sócio-históricas, que envolvem
luta de classes. Duarte explica que isso significa que, em consequência da alienação,
objetivações tais como a ciência, a arte, a educação, a filosofia e a política estão
distantes da maioria das pessoas dada a desigualdade social. Existe, portanto, uma


569

relação entre a riqueza do mundo material e o nível ou o descompasso com a riqueza


subjetiva do indivíduo. (DUARTE, 2001).
É nesse ponto que passamos a tratar do trabalho e sua relação com a produção de
uma individualidade, que pode ser alienada ou de uma individualidade portadora do
desenvolvimento das possibilidades máximas da subjetividade.

3 Trabalho: fundamento ontológico do ser humano

Marx considera que a dinâmica apropriação/objetivação é um dos motores


principais do desenvolvimento histórico. Isso porque essa dinâmica é tomada como
característica essencial da relação humana na produção da vida material, na atividade
vital humana. (MÁRKUS, 1974, p. 37).
Marx (1984, p. 153) define trabalho como:

[…] uma atividade orientada a um fim para produzir valores de uso,


apropriação do natural para satisfazer a necessidades humanas,
condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza,
condição natural eterna da vida humana, e, portanto,
independentemente de qualquer forma dessa vida, sendo antes
igualmente comum a todas as suas formas sociais.

Para que o ser humano pudesse sobreviver, ao longo do processo histórico,


necessitou desenvolver uma ação sobre a natureza, gerando um mundo de objetos, de
conhecimentos. Esse mundo criado, por sua vez, gerou novas necessidades aos
indivíduos. Essas necessidades deflagraram sempre novas atividades num processo sem
fim. (DUARTE, 2001, p. 118-122; 1999, p. 32).
Nesse processo, o indivíduo produz e reproduz os meios necessários à sua
sobrevivência, de modo que, com isso, cria uma realidade humana e, por meio dessa
realidade, humaniza-se. Enfim, o homem, na produção da vida material, constrói uma
realidade humana e, com ela, constrói suas capacidades humanas. Daí a importância de
entender a atividade em que o indivíduo se insere.
Nessa busca pela compreensão ontológica do ser humano, tomamos a atividade
e a consciência como duas categorias inseparáveis, tendo em vista que atividade
humana é consciente. Ela é consciente, na medida em que, para ser objetivada, a
atividade precisa ser previamente planejada ou dirigida idealmente para um fim.


570

Para que a atividade ocorra, é necessária a mediação da consciência que deve


estabelecer ligações entre as ações, as necessidades e os motivos do indivíduo para
executá-la. Por exemplo, se tenho a necessidade de ensinar determinado conteúdo aos
alunos na aula, primeiramente divido as ações de forma a atender esse motivo: estudo o
tema, leio, busco material didático, organizo os instrumentos, etc.
Cada ação é executada em forma de operação. Um exemplo de operação: para
estudar o tema eu realizei a operação de leitura, eu fiz anotações, etc. Em si mesma, de
modo isolado, cada ação não se liga ao motivo de cada ação que é ensinar o conteúdo,
mas, antes que aconteça a aula, houve um planejamento prévio do que precisaria fazer
para realizar a aula. Cada ação feita, para dar a aula e ensinar o conteúdo, não estava
diretamente articulada uma a outra, mas foi a consciência que ligou cada ação realizada
para que se desse a atividade, isto é, a aula para que se ensinasse o conteúdo.
Vemos, no exemplo do ensino, que a mediação da consciência precede a efetiva
transformação concreta da realidade - seja ela natural ou social. Martins (2001, p. 54)
explica que a atividade social humana é uma práxis. Práxis é atividade na qual há a
coincidência entre o processo de transformação da realidade e do próprio sujeito, à
medida que este atua sobre o mundo. Entretanto, se tomamos a atividade de trabalho
para pensar a práxis no contexto em que estamos, teremos outras reflexões a fazer. A
práxis só era possível nas sociedades mais primitivas, pois a atividade do trabalho era
fundada numa interdependência entre os membros da comunidade.
Assim, numa atividade voltada para a agricultura, para que a produção do
alimento fosse realizada e matasse a fome da comunidade, todos os membros deveriam
cooperar com ações específicas distribuídas a partir de uma elementar divisão técnica e
social do trabalho. Tal divisão estava orientada para a satisfação da necessidade de toda
a comunidade, e o resultado da atividade correspondia a todos os membros. Logo, a
divisão social do trabalho não impunha uma barreira entre o desenvolvimento humano
genérico alcançado até ali e as possibilidades de desenvolvimento de cada indivíduo
pertencente àquela comunidade. Desse modo, havia uma unidade entre a consciência e a
experiência dos indivíduos na sua atividade de trabalho. Assim, chegava-se a uma
atividade a partir de uma relação consciente com a teoria que orientava o pensar e o agir
de cada indivíduo. A prática e a teoria eram uma unidade, uma práxis (SILVA, 2007, p.
20-21).
No contexto da sociedade contemporânea capitalista diferentemente ocorrerá
isso. Não há, como tendência geral, uma configuração de práxis tendo em vista a


571

propriedade privada e a divisão social do trabalho. O trabalho é elemento fundamental


no processo de apropriação e objetivação humana, mas na história humana, com a
constituição do capitalismo, com o desenvolvimento das forças produtivas, o trabalho
toma outra proporção, a partir da divisão social do trabalho. Há uma divisão entre o
trabalho material e o trabalho intelectual. Com isso, há uma especialização do
trabalhador que realiza tarefas bastante limitadas, repetitivas e mecânicas:

[...] a partir do instante em que o trabalho começa a ser dividido, cada


um tem uma esfera de atividade exclusiva e determinada, que lhe é
imposta e da qual ele não pode fugir; ele é caçador, pescador, pastor
ou crítico, e deverá permanecer assim se não quiser perder seus meios
de sobrevivência [...]. (MARX;ENGELS, 1989,p. 29).

Com a divisão social do trabalho, a atividade não é dividida voluntariamente.


Tal divisão se constitui com prejuízo para os que não estão na esfera intelectual. Essas
tarefas, por sua vez, restringem o desenvolvimento das potencialidades humanas no
trabalhador, uma vez que delimitam quais capacidades o indivíduo pode desenvolver,
para que elas sejam desempenhadas. Não é difícil concluir que tais capacidades se
restrinjam às mais simples, monótonas e menos desafiadoras à capacidade de aprender
do indivíduo. Contudo, elas são versáteis. Nos dias atuais, a fim de que os trabalhadores
possam inserir-se no mercado de trabalho, é imposta a necessidade de que eles se
adaptem às rápidas e exigentes demandas proporcionadas pelas mudanças tecnológicas.
O contexto de trabalho capitalista não permite que o trabalhador esteja
consciente da totalidade da confecção daquele produto, tampouco de sua finalidade. O
trabalhador não sabe para quê nem para quem produz. A capacidade que ele deposita no
produto de seu trabalho não lhe pertence, mas sim ao capitalista. O trabalho realizado
sob tais circunstâncias de alienação deforma o indivíduo, transfortmando-o numa
máquina produtora de mais-valia, isto é, de lucro. Com base em Marx, Oliveira;
Quintaneiro (2002, p.47) explicam que existe um tempo de trabalho necessário, no qual
é gerado o equivalente ao seu salário, com um tempo de trabalho excedente, cujo valor
produzido não é pago ao trabalhador, do qual se apodera o proprietário do capital. Esse
valor excedente, a mais-valia, permite a acumulação crescente e corresponde ao grau de
exploração da força de trabalho pelo capital.
Aqui chegamos ao ponto crucial deste trabalho, uma vez que é este o momento
em que conseguimos compreender por que a abordagem de formação de professor
Professor Reflexivo não dá conta de formar um docente reflexivo ou crítico. No entanto,


572

ainda que tenhamos a intenção de responder a tal indagação, sabemos que o faremos de
forma sucinta. Tal é o espaço proposto para um artigo.

3.2 O trabalho educativo no contexto das relações sociais do capital

Se na seção anterior, expusemos acerca da atividade vital humana (o trabalho),


tratando dos elementos que compõem sua estrutura, também faz-se necessária uma
referência à relação das significações.
Não há uma transposição direta da realidade social à interna, mas a linguagem
tem papel fundamental de mediadora da realidade externa para a interna. Por meio da
relação entre o significado que uma atividade possui e o sentido que ela adquire para o
indivíduo, constituem-se os conteúdos da consciência, que podem tender para processos
alienantes ou humanizadores, dependendo de como ele desenvolverá sua atividade e das
relações sociais aí implicadas.
O significado da educação escolar no seio da prática social aponta para a
educação como a que transmite o conhecimento historicamente acumulado e desenvolve
as potencialidades máximas dos indivíduos. A escola é uma mediadora entre as
gerações passadas e as gerações futuras. Entretanto, ao mediar as gerações, ela deve
possibilitar cada vez mais ao indivíduo tornar-se um ser histórico-social consciente.
(OLIVEIRA, 1996).
Dessa forma, a educação, ao passo que intermedeia a apropriação dos
conhecimentos pelos indivíduos, tem como pressuposto assegurar que esse processo
ocorra de forma esclarecida e crítica. Isso porque o trabalho educativo deve visar, além
da assimilação de conhecimento e informações, a formação e amadurecimento da
consciência do aluno como sujeito em uma sociedade. (SAVIANI, 2000).
O projeto de formação do indivíduo deve voltar-se para o devir humano. Voltar-
se para o devir humano significa entender a humanização não somente como um
resultado, mas também como um processo de produção do novo, no qual possa haver
uma busca da superação das relações sociais de alienação e de dominação. Em síntese, o
ato educativo implica contemplar a humanização como um vetor de transformação
social. (DUARTE,2001).
Para isso, é essencial que o ato educativo seja percebido como uma mediação
valorativa, uma prática orientada por fins e valores conscientes. Em outras palavras, a
educação deve ser entendida não como neutra, mas como possuindo um claro


573

posicionamento, uma vez que seus objetivos apontam para a formação de um tipo
específico de ser humano. Contudo, devemos recordar que o processo de trabalho, no
caso do professor, se dá em meio às relações capitalistas. Mesmo que o trabalho
educativo se configure em um trabalho intelectual, não podemos afirmar que se trata de
uma atividade isenta das interferências alienantes do capital. (OLIVEIRA, 1996, p. 21).
De maneira conscientemente resumida, apontamos, com base nas reflexões de
Serrão (2002), que o professor - tal como outros trabalhadores - vende sua força de
trabalho em troca de salário quer seja na escola particular quer seja na pública.
Professores de escolas públicas ou particulares não são os donos dos meios de
produção; para sobreviver, eles vendem sua força de trabalho. Isso significa que mesmo
que sua atividade exija criatividade, reflexão, que seja ele um profissional competente, o
sentido que o trabalho educativo tem para ele estará perpassado por essas relações de
produção – trabalho/salário que se estabeleceram e não necessariamente terá relação
com o significado de desenvolver as potencialidades máximas dos indivíduos.
Tomando o contexto brasileiro sobre o trabalho do professor, podemos afirmar
que dificilmente o professor poderá estar inteiro na sua atividade, visto que precisa
trabalhar muitas vezes em condições precárias, em diversas escolas ao mesmo tempo,
sem a devida formação, etc. Em síntese, a venda da força de trabalho o coloca numa
situação de exploração, e a exploração o leva a ter condicionada sua consciência a estas
relações alienadas e alienantes. Explorado, o professor está alijado do progresso
material e do progresso não-material. A alienação a que ele se submete aí obstaculiza a
construção de uma consciência e uma existência livre e universal. Isso porque a
consciência estrutura-se na atividade (LEONTIEV,1978).
No caso do professor, sua atividade principal é o seu trabalho. Estando o
trabalho realizado em relações sociais alienantes para esse indivíduo, a consciência dele
refletirá as relações sociais alienantes a que está submetido por meio da linguagem, por
meio das significações. Isto acontece a partir do momento em que não coincide o
significado da educação com o sentido que o trabalho tem para ele, uma vez que o
motivo pelo qual ele trabalha é o da sobrevivência. Desarticulado do significado social,
o trabalho em condições alienantes converte-se em mortificação ao indivíduo, em algo
que o torna submisso, escravo e arruína seu espírito.
A exploração a que é submetido aliena-o, tanto no conteúdo de consciência
(aspecto não material) quanto na sua vida material. Não por acaso, até mesmo o senso
comum é capaz de estampar nos comerciais de tv, nos jornais que há uma contraposição


574

deflagrada na atividade desenvolvida no trabalho educativo do professor. O professor é


profissional pelo qual o desenvolvimento tecnológico-científico é produzido e, portanto,
passa por ele a produção da riqueza material e não material do mundo. No entanto, pelas
relações de produção capitalista, nem mesmo ele, por conta exploração a que é
submetido, pode se apropriar dessa riqueza, uma vez que sua atividade é desvalorizada
pelo resultado do seu trabalho. O salário recebido não permite que ele se aproprie das
riquezas materiais e não materiais que ele também produziu para a sociedade.
Em suma, como também pensam Marino Filho (2007, p.13-16) e Márkus (1974,
p.52), nessas condições, o indivíduo tem condicionado o seu psiquismo formado
socialmente pelas relações alienadas. Desta forma, como resultado das relações sociais
alienadas, a consciência é uma falsa consciência, na medida em que sua representação
da realidade é dada de forma deformada e invertida.
Como explicamos, nessas relações sociais do capital, o sentido construído pelo
indivíduo o distancia de uma compreensão da dimensão social da sua atividade, pois
compromete significação que o seu trabalho educativo deveria ter, limitando-o ao
sentido de ser o meio pelo qual recebe o salário responsável por sua sobrevivência.
Assim, o sentido, sendo não coincidente com a significação da atividade, deflagra um
esvaziamento da consciência que se expressa na linguagem. Dito de outro modo, a
relação com os produtos da atividade humana e a relação alienada com a sua própria
atividade limitam a percepção do indivíduo das qualidades históricas e conceituais do
mundo que o cerca, deflagrando uma capacidade cognitiva limitada e limitante, enfim,
alienada. Desta forma, dada sua posição nas relações sociais numa sociedade capitalista,
a sua compreensão da realidade e de si mesmo torna-se unilateral.

Considerações finais

Com base nas discussões acima, ainda que tenham sido de modo breve, dados os
limites de um artigo no que tange a extensão do texto, podemos afirmar que a
abordagem de Professor Reflexivo, ao buscar responder aos dilemas do cotidiano, por
meio da construção de conhecimento, a partir da reflexão sobre a ação, não se porta
como uma abordagem consistente na formação de um professor reflexivo.
Como vimos, não há, em sua epistemologia, um aparato que sustente e
compreenda como se dá a formação dos indivíduos, quais os seus condicionantes, para
assim, compreender os conteúdos que informam a sua consciência, e, a partir da


575

mediação do teórico, instrumentalizar-se para a transformação social. Sem a mediação


do teórico, o indivíduo é alijado das objetivações que permitem o desenvolvimento de
uma consciência crítica, isto é, de objetivações que proporcionem uma
instrumentalização que permita ao indivíduo analisar aquilo que constitui os conteúdos
de sua consciência via linguagem e que reconheça o ser humano como “síntese das
múltiplas determinações”, a abordagem de Professor Reflexivo não só é ineficiente no
seu objetivo de provocar a reflexão como também

[...] impede a compreensão da especificidade do trabalho educativo


como atividade mediadora dentro da prática social, como um fato
imprescindível do processo de passagem do ser ao dever-ser, um
processo de transformação social. (OLIVEIRA, 1996, p. 22, grifos
nossos).

É por isso que ratificamos os estudos de Duarte (2010) quando afirma que
desconhecimento acerca da concreticidade da constituição do ser humano tem levado
educadores e as próprias pesquisas educacionais a uma série de imprecisões na
compreensão do trabalho educativo. Em consequência disso, frequentemente, o trabalho
educativo é realizado na contramão de um processo de desenvolvimento humanizador,
mas alienante. O efeito desse processo não é restrito ao educador, mas abrange o
educando que reflete a concepção de educação a qual ele, o professor, é submetido nas
suas relações sociais.
Não por acaso ainda existem nas escolas pensamentos e práticas pedagógicas
que refletem um estado de alienação tais como a dicotomização da teoria e da prática e
as práticas desumanas a que estão submetidas as crianças mais pobres e as deficientes
intelectuais tidas como incapazes de aprender e não merecedoras nenhuma atividade
pedagógica; entre outras tão cruéis e mal informadas. Isso ocorre porque a formação da
consciência do educando e do educador objetivada pelo trabalho educativo alienante é
uma falsa consciência, pois, para esta consciência, o mundo não aparece de forma
esclarecida, mas antes se apresenta sob a forma de um mundo desconhecido e poderoso,
como afirmou Marino Filho (2007, p. 18). Sob a forma de preconceitos já naturalizados
como verdades, não há para eles o que mudar.
Com base nos autores estudados, bem como na Pedagogia Histórico-Crítica e na
Psicologia Histórico-Cultural, concluímos que a possibilidade de transformação dessa
formação alienante parte da adoção e de uma formação cuja mediação teórica
compreenda os indivíduos como síntese de suas relações sociais. Sem essa mediação, é


576

possível que estejamos reforçando a formação de um docente condicionado pelas


relações sociais que tendem para a alienação, uma vez que seu processo de formação
não será uma condição subjetiva para que ele possa constituir uma crítica de tais
relações, as quais permeiam a sociedade e, por extensão, seu próprio trabalho.
Faz-se, assim, necessária uma orientação epistemológica do professor acerca do
projeto de formação dos seus educandos. Contudo, esde projeto será infértil se a prática
social, na qual o trabalho educativo se insere não for também contemplada com um
projeto de transformação, de forma que se superem as relações sociais alienantes, a
formação das gerações futuras estará fadada a replicar continuamente essas relações
sociais alienantes. Sem o desenvolvimento de uma formação e um ensino que propiciem
aos indivíduos outra forma de relação com a realidade, tais relações sociais alienantes
continuarão a ser naturalizadas por eles por meio de teorias e abordagens tais como a do
Professor Reflexivo que destitui de suas propostas e análises uma visão que abarque e
desvele a complexidade, materialidade da realidade. Sem o pensamento teórico presente
na formação do professor e na formação das novas gerações, a educação não produzirá
conhecimento, mas palpites, já nos ensinou que os palpites não justificam a existência
da escola. (SAVIANI, 2012).

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

O ALUNO COM AUTISMO NA ESCOLA REGULAR:


REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EDUCATIVA

Fernanda de Araújo Binatti Chiote (UFES)1


Emilene Coco dos Santos (UFES)2

Resumo: Este estudo tem por objetivo analisar as práticas educativas de professores na inclusão
de alunos com autismo no ensino regular. Toma a perspectiva histórico-cultural, representada
pelos estudos de Vigotski (1983, 1997) e de outros autores que compartilham desse referencial,
como base teórica e metodológica para compreender o desenvolvimento da pessoa com autismo.
Os dados apresentados são recortes de duas pesquisas de mestrado Chiote (2011) e Santos
(2012). As análises indicam que a aposta na educabilidade do sujeito com autismo precisa ser
permeada pela intenção e planejamento das ações educativas. A mediação pedagógica assumiu
um papel fundamental no processo de apropriação do conhecimento pelos alunos com autismo,
por buscar orientá-los, chamar a sua atenção e conduzi-los nas propostas de atividades, entre
outras ações.

Palavras-chave: Autismo. Escola regular. Prática educativa. Mediação pedagógica.

Introdução

A Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(BRASIL, 2008) e as normativas que a sucedem para sua implementação, são marcos
legais que representam, como aponta Vasques (2011), um “nascimento simbólico” no
campo da legislação educacional para as pessoas com autismo, pois tais documentos
definem o aluno com autismo como público-alvo da educação especial como parte dos
transtornos globais de desenvolvimento, garantindo sua escolarização na escola regular.
A partir do movimento de educação inclusiva, observa-se o aumento de
matrículas de pessoas com autismo no ensino regular. O encontro com esses alunos no
espaço dessa escola tem causado estranheza e desconforto por parte dos professores e
demais profissionais da escola, “[...] transtornados pela falta de preparo ante uma tarefa

1
Fernanda de Araújo Binatti Chiote, Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, Professora do ensino básico, técnico e
tecnológico da Ufes – CEI Criarte, ES, Brasil. E-mail: fbchiote@yahoo.com.br
2
Emilene Coco dos Santos, Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo, Professora da educação básica pela Prefeitura Municipal de
Vitória, ES, Brasil. E-mail: emilenecoco@gmail.com


579

que lhe parece hercúlea, e também mergulhados em dúvidas, ansiedades e incertezas


sobre como viabilizar a concretização de tal proposta”. (BASTOS, 2005 p.134).
O grande desafio para a escolarização dos alunos com autismo, como aponta
Cruz (2009), é propiciar condições de desenvolvimento que tornem o sujeito com
autismo participante da realidade, num maior investimento na significação em relação à
apropriação dos elementos culturais. Assim, este estudo tem por objetivo analisar as
práticas de professores na inclusão de alunos com autismo no ensino regular, tendo
como foco o uso de materiais adaptados no trabalho educativo com essas crianças.

1 Referencial teórico e metodológico

De acordo com Vigotski (1997), o desenvolvimento da criança com deficiência é


marcado por uma incompletude que não advém da deficiência em si, mas do meio
cultural que, projetado para um modelo ideal de sujeito, não oferece caminhos
alternativos e recursos para potencializar seu desenvolvimento. Os sujeitos se
constituem e se desenvolvem nas condições concretas de vida a partir dos processos
interativos, no modo como os outros medeiam sua relação com os objetos culturais e o
mundo. Diante das peculiaridades comunicativas da criança com autismo, é necessário
ir além de uma visão do senso comum de que ela “não interage” e avaliar como nós
estamos interagindo com ela nos diferentes espaços, inclusive os educacionais.
A participação do outro na constituição do sujeito em sua relação com o mundo
é fundamental na perspectiva histórico-social.

Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criança, suas


atividades adquirem um significado próprio em um sistema de
comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, são
refratadas por meio do prisma do ambiente da criança. O caminho do
objeto até a criança e desta até o objeto passa por meio de outra
pessoa. Essa estrutura humana complexa é o produto de um processo
de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligações entre
história individual e história social. (VIGOTSKI, 2007, p. 19).

A criança constitui-se como ser social com e pelo outro, por meio da mediação
que a insere no meio cultural. O processo de constituição cultural na criança, como nos
aponta Pino (2005, p. 158), é mais do que sua inserção na cultura, é a “[...] inserção da
cultura nela para torná-la um ser cultural”.


580

Os processos de mediação e inserção da criança no mundo e na cultura são


atravessados pelas expectativas do outro em relação à posição e ao lugar social ocupado
pela criança e na projeção de posições e lugares futuros. No desenvolvimento infantil e
humano, “[...] as funções psicológicas constituem a projeção na esfera privada (plano da
pessoa ou da subjetividade) do drama das relações sociais em que cada um está
inserido”. (PINO, 2000, p. 72, grifos do autor).
Nessas condições concretas de vida, a posição social e o lugar da pessoa com
autismo são muitas vezes atravessados pela impossibilidade de participar de atividades
tipicamente infantis, devido às suas características como os comprometimentos nas
áreas de interação social e linguagem e principalmente ao comportamento estereotipado.
O autismo, compreendido a partir da falta, de impossibilidades e limitações,
demarca os lugares e papéis ocupados por esses sujeitos como os de quem precisa
primeiro ser educado em seu “defeito”, para depois participar das práticas culturais, o
que pode privá-las de um desenvolvimento cultural mais amplo, acarretando
consequências secundárias que não são da deficiência em si e sim de origem social.
Vigotski (1997, p.145) indica que “com frequência as complicações secundárias são
resultado de uma educação incompleta”. Dessa forma, a perspectiva histórico-cultural
nos permite olhar para a criança com autismo, para seu desenvolvimento a partir do que
lhe é possibilitado no meio social, nos modos como a interação e a mediação do outro
podem favorecer sua participação nas práticas culturais.
A partir da abordagem histórico-cultural, entendemos a atividade do professor
por meio da mediação pedagógica. Essa forma de mediação se caracteriza pela
intencionalidade e sistematicidade e necessita de planejamento das ações,
diferenciando-se das mediações cotidianas que são imediatas e nem sempre
intencionais.

As mediações pedagógicas têm uma orientação deliberada e explícita


no sentido da aquisição de conhecimentos sistematizados pela criança
e de transformação de seus processos psicológicos. A mediação do
adulto, no contexto pedagógico, deve ser, tipicamente, consciente,
deliberada. (ROCHA, 2000, p. 42).

O professor torna-se o outro no processo de desenvolvimento do aluno com


autismo que, por meio da mediação, deve possibilitar, de acordo com Vigotski, a
emergência de funções que a criança ainda não domina; pois, para o autor, “[...] único
tipo positivo de aprendizado é aquele que caminha à frente do desenvolvimento,


581

servindo-lhe de guia: deve voltar-se não tanto para as funções já maduras, mas
principalmente para as funções em amadurecimento”. (VIGOTSKI, 2005, p. 130).
Desse modo, é necessário propor adaptações e recursos que considerem as
possibilidades desses sujeitos, com vistas a envolver todos os profissionais da escola
(BRIDI, 2006, p. 63).
Para Baptista (2002, p.131), essas adaptações e recursos se caracterizam como
“[...] dispositivos que delimitam e viabilizam a experiência [...]”, constituindo-se como
garantia para a efetivação do processo inclusivo. Assim, tendo em vista as
possibilidades educacionais da criança com autismo e considerando os apontamentos de
Bridi (2006) acerca da necessidade de adaptações e de recursos para viabilizar a prática
educativa dirigida a essa criança, abordaremos aspectos do trabalho realizado com dois
alunos com autismo, um na educação infantil e outro no ensino fundamenta.
Reconhecemos os desafios envolvidos no processo de adaptação da criança com
autismo ao ambiente escolar, contudo é urgente pensarmos e realizarmos ações que
contribuam para a permanência desses sujeitos na escola, sem tantas repetições de uma
mesma atividade. Propomos, então, que a escola busque adaptar-se a esse sujeito,
mesmo diante de suas peculiaridades quanto ao desenvolvimento e participação nas
atividades pedagógicas, com uma aposta na sua educabilidade, entendendo a escola
como um espaço de aprendizado para todos.
Nesse sentido, a construção de materiais diversificados possibilita aos alunos
uma oportunidade de vivenciar experiências de usos possíveis de determinado recurso.
Ensinar a usar esses recursos faz parte do trabalho pedagógico do professor. Dessa
forma, na educação infantil, as crianças são orientadas pelos adultos nos diferentes
momentos e atividades. Os modos como os outros interpretam, orientam e regulam suas
ações no espaço escolar são internalizados pela criança num processo no qual ela se
apropria das formas culturais, ao mesmo tempo em que as modificam criando sua
maneira singular de interagir/intervir no meio, regulando suas próprias práticas.
Essa orientação para a atividade continua sendo necessária nos próximos anos,
no ensino fundamental, pois os conteúdos vão se ampliando e a participação da criança
com autismo nessa fase do ensino pode ficar descontextualizada do que é ensinado ao
restante da turma. Parece-nos um prolongamento das atividades vivenciadas na
educação infantil, restrito ao que o aluno já sabe fazer (recorte e colagem, massa de
modelar, pintura de figuras), logo, repetição das mesmas atividades, muitas vezes sem
planejamento ou sistematização.


582

Por meio da abordagem histórico-cultural, entendemos que a ação do professor


na condução do processo de ensino pode restringir ou viabilizar a aprendizagem e o
desenvolvimento do aluno com autismo. Portanto essa ação precisa ser caracterizada
pela intencionalidade, sistematicidade, planejamento e reflexão, na busca de formas
alternativas de considerar os conteúdos e inserir a criança com autismo no ensino
comum. Nesse texto, faremos um recorte de duas dissertações que nos conduzem a
reflexões e nos dão pistas sobre o trabalho educativo com duas crianças com autismo na
educação básica, no Estado do Espírito Santo, Brasil.

2 Análise e discussões

Na educação infantil, apresentamos Daniel, uma criança de cinco anos,


diagnosticado com autismo infantil aos dois anos. O encontro com Daniel foi o primeiro
contato das professoras (regente, colaboradora de planejamento e colaboradora de ações
inclusivas) com o autismo infantil e, inicialmente, diziam não estarem preparadas para
trabalhar com o “autismo”, esvaziando a potência do fazer pedagógico. (CHIOTE,
2011).
O modo como Daniel se comportava no espaço escolar causava uma grande
angústia nas professoras por não saberem como criar situações para provocar avanços
no desenvolvimento da criança a partir do trabalho realizado com a turma. A ausência e
a dependência de Daniel, a dificuldade em compreendê-lo, entender seus desejos e
necessidades eram as principais queixas das professoras, pois ele estava sempre
distante, não olhava para as pessoas, não falava, pouco “se expressava” e necessitava
sempre de outra pessoa com ele para participar das atividades.
No planejamento do trabalho pedagógico com Daniel, foi definido que teria um
adulto junto a ele. Dessa forma, nas situações cotidianas, enquanto a professora regente
conduzia as atividades com o grupo, a professora colaboradora de ações inclusivas e a
pesquisadora se colocavam no contexto cotidiano junto a Daniel, chamando a sua
atenção para o que acontecia à sua volta, significando, inserindo-o nas situações e
instigando sua participação de modo voluntário.
No decorrer do processo de inserir Daniel nas situações coletivas, percebemos
que algumas dinâmicas precisavam ser modificadas, para favorecer o trabalho da
professora regente com a turma e Daniel, proporcionando situações de desenvolvimento
para todas as crianças. Investiu-se no trabalho com pequenos grupos, um momento


583

semanal em que a professora dividia a turma em três ou quatro grupos, propondo


atividades diversificadas3 para cada um.
O objetivo do trabalho com pequenos grupos era favorecer momentos de
intervenção mais individualizados por parte da professora regente, possibilitando que
ela se colocasse como mediadora nas situações e identificasse os percursos de
aprendizagem de cada criança, explorando mais as hipóteses das crianças e observando
o desenvolvimento de cada uma a partir dela mesma.
Os planejamentos se constituíram como um espaço de reflexão e construção de
ações para inserir Daniel e implicaram adaptações, como a mudança da disposição das
carteiras da sala, que proporcionou mais interação entre as crianças, ao mesmo tempo
em que favoreceu que Daniel percebesse a movimentação do grupo. As carteiras
enfileiradas não era a melhor disposição para uma turma de educação infantil, pois
restringia a interação entre os alunos. Daniel sentava-se na primeira carteira ao lado da
porta e não tinha visão da sala como um todo.
Com a mudança da disposição na sala, formaram dois grupos com dez carteiras,
com cinco carteiras uma ao lado da outra e de frente para as outras cinco. A carteira de
Daniel permaneceu a primeira ao lado da porta, pois, nessa nova disposição, ele tinha
visão de toda a sala e ficava de costas para a porta, atitude fundamental para que ele
percebesse o espaço da sala de aula e os movimentos que ali aconteciam.
As possibilidades de mediação com Daniel foram construídas nas reflexões das
ações realizadas, no levantamento de hipóteses e na sistematização de novas/outras
ações com ele em sua turma. Esse movimento não foi linear nem desprovido de
contradições. Muitas vezes as expectativas e projeções de desenvolvimento das
professoras se baseavam predominantemente no processo de alfabetização, enfatizado
no trabalho com letras e número, o que demandava retomar os percursos de Daniel e
seus colegas, pois todos frequentavam pela primeira vez a escola e, a partir disso, traçar
novas projeções.
Novas configurações foram surgindo no trabalho com a turma. Desenhos,
momentos de brincadeiras e contação de histórias, começaram a ser percebidos pelas
professoras como atividades favorecedoras do desenvolvimento de todas as crianças em
seus processos de simbolização antes de entrarem nos processos deliberados de

3
No trabalho com pequenos grupos, eram propostas para cada um atividades diferentes. Em um grupo, a professora
mediava as situações, possibilitando que a criança, com sua ajuda, resolvesse situações-problema que ainda não
conseguia sozinha; os demais grupos realizavam atividades em que as crianças eram mediadores umas das outras,
fazendo de maneira mais independente as tarefas propostas, como desenho, modelagem com massinha, jogos, leitura,
manuseio de livros, pintura etc.


584

alfabetização, num movimento de “[...] mostrar o que leva as crianças a escrever,


mostrar pontos importantes pelos quais passa esse desenvolvimento pré-histórico e qual
a sua relação com o aprendizado escolar”. (VIGOTSKI, 2007, p.127).
Nos momentos de planejamento, buscáva-se refletir com as professoras e a
pedagoga sobre as ações desenvolvidas com Daniel e sua participação, a partir dos
modos como professoras e pesquisadora se colocavam nas situações e possibilitvam a
participação do aluno. As reflexões direcionaram as ações, modificaram a rotina de
trabalho da professora regente e apontaram a necessidade de realizar momentos de
estudo. Esses momentos serviram para ajustar projeções, definir objetivos comuns e dar
unidade às ações num pensar sobre Daniel, suas formas de se manifestar e interagir,
para um agir intencional da professora no sentido de provocar aprendizagens a partir das
vivências dele nos tempos e espaços da educação infantil.
Com base em Santos (2012), podemos dizer que, no ensino fundamental, temos
Rafael, aluno com autismo matriculado no 4º ano. No trabalho com os profissionais da
escola uma das ações realizadas foi a reorganização e a sistematização dos momentos de
planejamento com a utilização de um único caderno para o registro das intervenções por
todos os profissionais envolvidos. Esse caderno de planejamento foi utilizado pelos
profissionais nos anos seguintes e tinha como proposta oportunizar o registro, quase
diário, das respostas do aluno ao que era elaborado como atividade.
Porém, enquanto os profissionais se esforçavam por estruturar o trabalho,
Rafael, muitas vezes, parecia “testar” o grupo quanto aos espaços e tempos
estabelecidos pela escola. Dependendo de quem estivesse com ele, fazia as atividades
propostas, mesmo reclamando, e ficava um tempo maior na sala. Em outras situações,
com pessoas com um vínculo mais frágil, ficava correndo pelos corredores e
permanecia no balanço sem entrar na sala em nenhum instante.
Conhecer Rafael envolveu participar de todos os seus momentos de “ausências”
dos lugares formais de aprendizagem, como a sala de aula, buscando interagir com ele a
partir de seus interesses. Para Vigotski (1983), a história da sociedade e o
desenvolvimento do homem estão totalmente ligados, de forma que não seria possível
separá-los.
Foi sugerido aos profissionais que atuavam com Rafael um investimento maior
na produção de recursos materiais que pudessem intervir na relação da criança com a
escrita, leitura e outros conhecimentos trabalhados na escola, além de mediar a relação
com os outros alunos e adultos. Acatando a sugestão, uma professora tomou como base


585

o interesse de Rafael pela Turma da Mônica, para confeccionar recursos materiais que
tinham como objetivo mediar a relação do aluno com a escrita. Os personagens
principais do Gibi foram usados como suporte para as atividades, como: jogo da
memória, dominó, fichas com frases após leitura do Gibi e banco de palavras.
Essa proposta foi levada para a sala de aula e para a biblioteca, visando a
ampliar a participação da criança. As atividades eram propostas em pequenos grupos e
em um momento em que os outros alunos poderiam participar. Rafael demonstrou
entusiasmo em fazer atividades com esses materiais, repetindo os mesmos gestos já
observados, como: cheirar, beijar, bater com o dedo, virar a ficha para ver a sombra e
apontar com mão da professora as figuras e as palavras para serem lidas.
A partir disso, foi confeccionado um banco de palavras com nomes de animais e
objetos em envelopes para mediar a relação do aluno com a leitura. Rafael demonstrou
atenção à leitura das fichas, “vendo todas as fichas”, identificando os animais imitando
os sons e passando o dedo onde estava escrito o nome do animal.
No entanto, não bastava ter o recurso, foi importante saber como utilizá-lo de
forma a ampliar as possibilidades de relação da criança com as fichas no processo de
leitura. A atuação do adulto é fundamental para mediar a relação da criança com os
recursos materiais. Essa atuação envolve observação sistemática da criança para
conhecê-la e identificar as nuances de suas possibilidades comunicativas,
intencionalidade e planejamento por parte dos educadores no trabalho educativo.
Destaca-se como avanço na participação de Rafael nas atividades de ficha de
leitura a retomada que ele fez da sequência de ações conforme registro no diário de
campo: “Ele tirou a ficha de trás da casa e, aparecendo outro animal, passa o dedo no
nome, na letra e abre a porta para ver o que era”. Essas ações foram produzidas pela
pesquisadora, repetidas com ele e depois feitas por ele sozinho.
Vigotski (2000) vê na imitação um processo dinâmico que favorece e possibilita
a aprendizagem, desmitificando o aspecto mecânico ou restrito que lhe é conferido. A
relevância e a importante função que a imitação ocupa no desenvolvimento e na
aprendizagem estão diretamente relacionadas com as relações sociais e a organização do
trabalho pedagógico do professor. A capacidade de entendimento do aluno será
ampliada na medida em que houver maior intervenção do professor como mediador e
organizador do processo de aprendizagem do aluno.
As análises nos permitem dizer que, em seu aprendizado sobre a leitura, Rafael
começou a acompanhar a fala e o gesto do outro no texto, com curiosidade por querer


586

saber o que estava escrito quando ele apontava as palavras para serem lidas, seguindo
com o seu dedo o caminho das letras nas atividades e nos livros. Além disso, o sentido
atribuído pelo adulto às imagens e à escrita orientava o aluno na percepção de que, além
das ilustrações das histórias, havia textos para serem lidos. Isso, de certa forma,
contribuiu para o desenvolvimento da atenção voluntária dele e para a regulação maior
da própria conduta em situações de leitura.

Algumas considerações finais

O processo de desenvolvimento da criança com autismo na escola está


relacionado ao papel que o outro desempenha na mediação pedagógica, à atribuição de
sentido às suas ações e ao planejamento com vistas à apropriação de conhecimentos por
essa criança. Portanto, as adaptações e adequações não envolvem unicamente os
conteúdos curriculares, mas, também, indicam a necessidade de pensar os tempos, os
espaços, os recursos e as estratégias pedagógicas utilizadas.
As características dos recursos materiais utilizados para mediar a relação com a
leitura foram: imagens coloridas, fichas com diferentes formatos e tamanhos e letras
com um tamanho apropriado para leitura. Porém, a reorganização da sala de aula
favorecendo o trabalho em pequenos grupos, tanto na educação infantil quanto no
ensino fundamental, possibilitou às professoras assumir o papel de mediadoras,
orientando o aluno, chamando a sua atenção, conduzindo-o nas propostas de atividades,
entre outras ações fundamentais no processo de apropriação do conhecimento.
Portanto, investir no trabalho pedagógico, em adaptações e adequações, como
meio de favorecer o desenvolvimento dos alunos com autismo nos espaços e tempos da
escola não é atribuição individual do professor regente. Torna-se necessário um trabalho
articulado entre os profissionais da escola para dar efetivo suporte aos professores e
garantir o estabelecimento de uma política educacional que possibilite, de fato, a
atuação da escola numa perspectiva inclusiva.

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R.; BOSA, C. (Org.). Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto Alegre:
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587

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______. A Formação social da mente. 7. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

APONTAMENTOS SOBRE O ENSINO DOS SISTEMAS DE CLASSIFICAÇÃO


DOS SERES VIVOS E O DESENVOLVIMENTO DO PENSAMENTO


Júlia Mazinini Rosa
Lígia Marcia Martins

Resumo: Esse trabalho é parte de uma pesquisa de doutorado em andamento, situada nas
interfaces entre a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica, que tem como
objeto mais amplo os alcances potenciais na concepção de mundo promovidos pelo ensino de
evolução. O objetivo do presente texto é apresentar resultados preliminares de reflexões a
respeito do ensino dos sistemas de classificação dos seres vivos (com destaque para a
sistemática filogenética) e o desenvolvimento da função psíquica pensamento, tendo como
enfoque o pensamento abstrato empírico e teórico. Para isso, toma-se como referencial as
proposições de Vigotski e Davidov sobre o desenvolvimento do pensamento conceitual, bem
como elementos fundamentais da sistemática filogenética sistematizados por Amorim (2002).
Levantamos a hipótese de uma possível relação entre o ensino da sistemática filogenética e o
desenvolvimento do pensamento teórico. Merece atenção o fato de que a sistemática não é
elemento constituinte do currículo de biologia na educação básica.

Palavras-Chave: psicologia histórico-cultural, desenvolvimento do pensamento; sistemas de


classificação dos seres vivos, pedagogia histórico-crítica, ensino de evolução.

Introdução

Sabe-se que Vigotski e seus colaboradores dedicaram-se a desvendar as leis do


desenvolvimento psíquico humano, demonstrando suas distinções essenciais das leis
que descrevem o desenvolvimento do psiquismo animal. Em linhas gerais, o psiquismo
elementar opera dentro de um campo perceptual imediato e concreto e depende dos
objetos reais e concretos existentes nele. Um mamífero é capaz de realizar operações do
raciocínio (análise e comparação, síntese e generalização) manipulando objetos, mas
não é capaz de operar com representações ideais dos mesmos objetos quando estes se
encontram ausentes do campo perceptual. Como consequência, o pensamento natural
pode ser chamado de pensamento prático e a inteligência animal torna-se, assim, uma
inteligência capaz de solucionar problemas com objetos reais, em um campo perceptual
imediato.


589

Em contrapartida, as formas de relação humana com o mundo produziram um


sistema de representações ideiais de objetos (a linguagem) que resultou na libertação do
campo perceptual imediato e na possibilidade de operar em campos abstratos. A
independência do campo perceptual imediato conquistado com a capacidade abstrativa
permite a realização de operações do raciocínio, a formulação de ideias, juízos, valores,
conceitos e o desenvolvimento da imaginação (a criação de objetos ideais antes mesmo
de se materializarem), da capacidade de planejamento etc. O pensamento humano,
diferentemente do animal, conquista a forma abstrata.
É necessário dizer que a capacidade abstrativa do pensamento humano não
assume um único padrão de profundidade e amplitude para toda e qualquer pessoa.
Pode-se afirmar que existem alcances abstrativos mais ou menos profundos, mais ou
menos amplos, na compreensão do mundo, da natureza, de si mesmo. Alcances estes
que são dependentes da apropriação do conhecimento humano historicamente
produzido. Em outras palavras, quanto mais profunda for a apropriação do
conhecimento mais desenvolvido, mais independente do campo perceptual imediato
torna-se o pensamento.
Conforme Vigotski (1995), a capacidade de abstração se inicia com o
aprendizado da linguagem, na infância. O caminho feito pela internalização da
linguagem e seu entrecruzamento com o pensamento altera qualitativamente o
psiquismo, promovendo o estabelecimento de interrelações entre as funções psíquicas e
colocando em movimento seu desenvolvimento e diferenciação.
Vigotski (1991) descreve experimentos realizados com crianças de dois anos de
idade nos quais era solicitado a elas que descrevessem objetos de duas formas: por
mímica e pela fala. Observou-se que, pela linguagem verbal, a criança descrevia apenas
objetos isolados. Em contrapartida, a mesma criança era capaz de reproduzir facilmente
aspectos dinâmicos e gerais da figura, por mímica. A conclusão alcançada por Vigotski
é a de que, na fase pré-verbal do desenvolvimento infantil, os processos perceptivos não
captam apenas objetos isolados, mas a totalidade do campo perceptual. Contudo, a
percepção primitiva capta o todo como um emaranhado indiferenciado e sincrético de
elementos. Mas o que explicaria então, o fato de a criança de dois anos conseguir
expressar, por meio da fala, apenas elementos destacados e não a figura geral? Para
Vigotski, a linguagem apresenta função analítica e o processo de rotulação é função
primária da linguagem na criança pequena, pois “capacita a criança a escolher um


590

objeto específico e isolá-lo de uma situação global por ela percebida simultaneamente.”
(VIGOTSKI, 1991, p. 36).

Pelas palavras, as crianças isolam elementos individuais, superando,


assim, a estrutura natural do campo sensorial e formando novos
(introduzidos artificialmente e dinâmicos) centros estruturais. A
criança começa a perceber o mundo não somente através dos olhos,
mas também através da fala. (VIGOTSKI, 1991, p. 36).

Com o desenvolvimento da percepção verbalizada, a linguagem adquire


também função sintetizadora e a criança torna-se hábil a descrever verbalmente a
totalidade do campo perceptual. A função sintetizadora é fundamental para se atingir
formas mais complexas de percepção. O resultado da apropriação da linguagem,
continua Vigotski (1991), é a superação do imediatismo da percepção natural, que dá
lugar a um complexo processo de mediações. Esse sistema de mediações, afirma o
autor, é inédito, ou seja, está completamente ausente na percepção animal.
Conforme Luria (1979), a palavra é a unidade fundamental da linguagem e pode-
se distinguir nela dois componentes básicos: a representação material e o significado.
Com isso se quer dizer que cada palavra significa um objeto. Esta função representativa
da palavra tem grande importância psicológica, pois confere objetividade a percepção
humana do mundo. A comunicação animal expressa estados emocionais, estados
subjetivos, mas não representa objetos. A percepção animal permanece refém da
estrutura fusionada entre estímulo e resposta. Capta a realidade externa misturando-a e
confundindo-a com estados psicofísicos internos. Em outras palavras, a percepção
natural não estabelece as corretas distinções entre o mundo exterior e o sujeito. Deste
modo, por mais que o animal consiga captar objetivamente o entorno (afinal, peixes
orientam-se no mar, répteis orientam-se em terra etc.), pode-se dizer que a percepção
natural do mundo ainda é subjetiva, visto que é a linguagem humana o que significa
objetos e estabelece relações cada vez mais objetivas entre os elementos do campo
perceptual.
É neste sentido que Vigotski (1991, p. 37) afirma: a percepção humana é a
percepção de objetos reais. O mundo é visto não apenas em seus elementos isolados,
em “cor e forma”, mas também com “sentido e significado”. “Não vemos simplesmente
algo redondo e preto com dois ponteiros; vemos um relógio e podemos distinguir um
ponteiro do outro”. A percepção humana passa a ser, assim, a percepção categorizada
do mundo.


591

Luria (1979) relaciona o significado da palavra com a capacidade de analisar o


objeto, distinguir suas propriedades essenciais (discriminar o traço essencial) e
relacioná-lo a determinadas categorias. A palavra tem, portanto, a função de abstrair e
generalizar, processos fundamentais para a organização dos objetos do mundo em um
sistema complexo de associações e relações. Isto é, a palavra retira o objeto do campo
das imagens sensoriais, formadas por captação imediata e o inclui no “[...] sistema de
categorias lógicas que permitem refletir o mundo com mais profundidade”. (LURIA,
1979, p. 35).
Contudo, a criança pequena, presa ainda no campo perceptual imediato, não
saltará de uma vez para alcances abstrativos maiores. Neste sentido, conforme Vigotski,
a palavra aprendida pela criança pequena não se identifica ainda com o conceito
propriamente dito. Este, não se produz mecanicamente1. O pensamento da criança
desenvolve paulatinamente a capacidade abstrativa à medida que se apropria, não
meramente da linguagem verbal, mas do conhecimento sistematizado capaz de
categorizar o mundo em sistemas de conceitos científicos.
O pensamento e a percepção categorizados tanto não são dados prontamente
que, ao estudar o desenvolvimento do pensamento conceitual, Vigotski (2001)
estabeleceu uma periodização: guiada pela linguagem dos adultos, a criança parte do
pensamento por agrupamento sincrético, proveniente de sua percepção ainda
desorganizada do mundo, na qual predominam conexões subjetivas, para as etapas do
pensamento por complexos, nas quais ocorre o estabelecimentos de relações de
diferentes tipos (de caráter cada vez mais objetivo) e também de generalizações. O
máximo grau do desenvolvimento do pensamento por complexos, a forma dominante do
pensamento infantil, é chamado pelo autor de estágio do pseudoconceito.
O comportamento dos sujeitos participantes de experimentos sobre a
periodização do pensamento é descrito por Luria do seguinte modo: em tenra idade,
crianças acumulam figuras reunidas casualmente (agrupamento sincrético). Mais tarde,

1
Vigotski (2001) assinala: o conceito de cachorro não é formado espontaneamente na criança por meio da
superposição de diferentes imagens de um cachorro, para que se consiga uma espécie de “cachorro
coletivo” ou cachorro genérico. Se assim o fosse, o pensamento natural conseguiria formar conceitos.
Conforme explica Davidov (1988, p. 108), o desenvolvimento do pensamento abstrato pressupõe uma via
ascendente, que caminha do concreto sincrético ao abstrato e outra via, descendente, que caminha do
abstrato ao concreto pensado. A primeira via consiste na construção da abstração (ou seja, no conceito) do
aspecto geral, universal do fenômeno. Por sua essência, a abstração não pode expressar o conteúdo
especificamente concreto do objeto. Portanto, no caminho inverso, “esta abstração se satura de imagens
visuais concretas do objeto correspondente, se faz rica e com conteúdo”.


592

as figuras são reunidas de acordo com sua cor, forma ou tamanho. Às vezes, os grupos
se formam com base em traços identitários que mudam em um conjunto seriado. Assim,
a criança reúne, em série: uma pirâmide grande azul, um grande cilindro azul, um
cilindro pequeno amarelo, uma pirâmide pequena amarela (primeiras etapas do
pensamento por complexos). Destaca-se que, neste processo, os objetos são
identificados e reunidos de acordo com seus traços aparentes. Comumente, o
pensamento por complexos toma a aparência pela essência: em uma terceira
modalidade, os sujeitos já conseguem encontrar os traços identitários dos objetos e
reuni-los em grupos adequados, contudo, cometem deslizes, tomando por traços
essenciais, os secundários.
Vigotski (2001) afirma que a característica distintiva do pensamento por
complexos é a fusão entre o geral e o particular. Deste modo, por mais que o
pensamento por complexos consiga captar os nexos objetivos entre os elementos da
realidade, ainda não estabelece as corretas relações entre a parte e o todo, o específico e
o universal. A categorização da realidade nos estágios do pensamento por complexos
carece de hierarquia altamente organizada. Assim, as generalizações e abstrações que o
pensamento por complexos conquista são ainda ligadas à mera aparência dos fenômenos
do real e, de certo modo, dependentes de aspectos concretos. O pseudoconceito é,
certamente, um alcance abstrativo e uma forma de generalização exclusiva do
pensamento humano. Contudo, tratam-se abstrações e generalizações inferiores.
O caminho necessário para a conquista das abstrações e generalizações
superiores certamente não foi trilhado pelo pensamento humano mais espontâneo e
cotidiano, mas pelo método científico. Nesse sentido, Luria (1979) sinaliza a existência
de dois tipos de conceitos: os comuns (cachorro, gato, árvore, flor) e os científicos
(mamífero, invertebrado, bactéria, vegetal). Os primeiros são assimilados pela criança
em sua experiência prática de vida e evocam imagens relacionadas à estas experiências.
Por esta razão, são carregados de conteúdo concreto. Os segundos são assimilados pela
criança como resultado da aprendizagem escolar. São inicialmente formulados e
apresentados à criança pelo professor e possuem, desde o início, conteúdo abstrato. A
criança que é capaz de assimilar seu conteúdo abstrato deverá ter condições de
completar seu conteúdo com a concreticidade necessária para que tais conceitos
carreguem tanto sentido (pessoal) quanto significado (objetivo).
Para Davidov (1988), os problemas centrais do ensino estão estreitamente
conectados com a fundamentação lógico-psicológica da estruturação das disciplinas


593

escolares, de forma que conteúdo e método determinam o tipo de consciência e de


pensamento do indivíduo aprendente. As formas fundamentais da consciência e do
pensamento estão ligadas à abstração, à generalização e ao conceito, ou seja, as
particularidades da generalização (em unidade com processos de abstração e formação
de conceitos) caracterizam o tipo geral de pensamento.
A generalização constitui-se como via fundamental para a formação dos
conceitos e consiste em, por meio da comparação, identificar propriedades essenciais e
características dos objetos. À medida que a generalização significa considerar
separadamente um traço essencial comum a um grupo de objetos, este processo também
não se dá inseparável da análise, bem como não se separa de uma operação de
abstração.
A generalização cumpre uma importante função na passagem da captação
sensório-perceptual (e concreta) do mundo ao pensamento por conceitos (percepção
abstrata). Tal função é a sistematização ou a classificação dos objetos e fenômenos do
real, procedimento este que tem grande importância em toda a atividade de estudo:
“uma das tarefas centrais do ensino consiste, justamente, em fazer as crianças
conhecerem os esquemas de classificação, que refletem as correlações dos conceitos em
uma e outra área”. (DAVIDOV, 1988, p. 102).
No ensino de ciências naturais e biologia, os estudantes aprendem a classificar
e categorizar processos e fenômenos relacionados a todos os níveis de organização da
matéria viva – da célula à ecosfera – de modo geral, em qualquer disciplina. Porém,
além disso, há disciplinas específicas destinadas à categorização dos organismos, os
chamados sistemas de classificação dos seres vivos, tais como a taxonomia e a
sistemática filogenética.
Quanto aos tipos de pensamento, no que tange à capacidade abstrativa,
Davidov os classifica em pensamento empírico e pensamento teórico. O primeiro é
derivado da ciência empírica, fundada na lógica formal. O segundo resulta da ciência e
da lógica dialética. Em cada um deles, a abstração, a generalização, o próprio
movimento dos processos de análise e síntese, bem como a natureza dos sistemas de
classificação correspondentes apresentam particularidades as quais permitem
reconhecer distinções.


594

1 Pensamento empírico, pensamento teórico e os sistemas de classificação dos seres


vivos.

À parte as inúmeras contradições existentes na atividade científica, esta


apresenta como tendência e como característica essencial a elaboração de uma
concepção objetiva de mundo. A conquista da objetividade do pensamento, longe de ser
imediata, é um processo histórico tão longo quanto a humanidade. Em outras palavras, a
ciência desenvolve-se tendo como determinante, em última instância, a estrutura
econômica das diferentes formações sociais que foram se constituindo ao longo da
história humana. “A razão do mundo é a razão do mundo”, afirma Tonet (2013, p. 21).
A transição do mundo medieval para o moderno fez emergir o padrão moderno
de ciência, fundamentado na lógica formal. Contudo, a maturidade da sociedade
burguesa – atingida no século XIX – ocasionou a percepção da insuficiência da lógica
formal para a explicação da essência mais profunda dos fenômenos da realidade. O
desenvolvimento da dialética neste século representou a superação de limites da lógica
moderna e deu origem ao que Tonet (2013, p. 65) chamou de “padrão marxiano”,
referindo-se ao advento do método científico elaborado por Marx, o materialismo
histórico-dialético. É importante mencionar que, ainda que nas ciências naturais não se
tenha estruturado, na época oitocentista, um método científico dialético tal como Marx o
fez, a concepção de natureza adquiriu um caráter dialético mais profundo com a
publicação de A Origem das Espécies, de Darwin2.
Análises suficientemente detalhadas e aprofundadas sobre a estrutura da lógica
formal e/ou da lógica dialética foram feitas por Kosik (2002) e Lefebvre (1991), entre
outros. Contudo, recorreremos, neste trabalho, às análises de Davidov (1988) com
respeito às particularidades das abstrações e generalizações dos conceitos formais, que
constituem o pensamento empírico, e dos conceitos dialéticos, constituintes do
pensamento teórico.
Em linhas gerais, a distinção essencial entre a ciência empírica e a teórica é que
a primeira centra-se na descrição objetiva dos fenômenos (suas propriedades, suas


2
Alguns evolucionistas, tais como Lewontin (1998), Mayr (1998) e Gould e Lewontin (1979) fazem
análises sobre o pensamento darwiniano a partir das quais é possível reconhecer os avanços dialéticos e
os limites ainda cartesianos da teoria de Darwin.


595

características diretamente dadas) enquanto a segunda3 esforça-se para ir além da


descrição e desvendar as conexões internas constituintes de sua essência. Essência e
aparência possuem diferentes conteúdos e ambas são necessárias para se explicar um
fenômeno em sua totalidade. Enquanto a ciência empírica alcança apenas a descrição
aparente dos fenômenos, ainda que tal descrição represente profundas conquistas
abstrativas, a totalidade lhe escapa, assim como a verdadeira natureza do fenômeno.
A principal função do pensamento empírico, segundo Davidov (1988), é a
construção de um esquema firme de determinantes e de classificação dos objetos. O
conhecimento empírico é uma das formas mais desenvolvidas de pensamento. Seu logro
consiste em conferir à contemplação um conteúdo de universalidade abstrata e formal,
pois orienta-se para a separação e comparação das propriedades dos objetos com a
finalidade de abstrair deles a generalidade.
O pensamento empírico possui caráter direto, ou seja, obtém o conhecimento
direto e imediato da realidade. Preocupa-se com a quantidade e a medida, as
propriedades e a qualidade, identidade e diferença, contraposição e até mesmo a
contradição. Em virtude disto, relaciona-se com a categoria da existência presente, com
a manifestação externa do objeto. Elabora representações gerais das imagens mais
concretas. As possibilidades cognoscitivas deste pensamento são muito amplas, pois
assegura um campo de percepção de características e relações tanto diretamente
observáveis, quanto aquelas que, em determinado momento, não são observáveis, mas
deduzidas indiretamente pelo raciocínio. (DAVIDOV, 1988).
A abstração do pensamento empírico teve grande importância na classificação
dos seres vivos. O próprio Davidov (1988, p. 104) a reconhece: “[...] sobre a base lógica
se constroem, pelo geral, numerosos determinantes em diferentes ciências naturais: das
plantas superiores, das algas, dos insetos, dos peixes, das aves, dos minerais etc.”
Contudo, pelo fato de a lógica formal não ser capaz de superar a aparência dos
fenômenos, o pensamento empírico, ao permanecer nas representações gerais abstratas
não desvenda a essência da natureza e, com isso, tem capacidade limitada de substituir
noções metafísicas e essencialistas por uma visão mais objetiva sobre os seres vivos.


3
A divisão entre lógica formal e lógica dialética, ou ciência empírica e ciência teórica é artificial. Trata-se
da mesma lógica e da mesma ciência, em diferentes graus de desenvolvimento. A rigor, a lógica formal
está contida na dialética, assim como a ciência empírica está contida na teórica. Esta última não prescinde
da ciência empírica, ao contrário, a incorpora.


596

Historicamente, os estudiosos preocupados com a organização do conhecimento


sobre os seres da natureza valem-se de tais determinantes e representações gerais que
constituem os conceitos empíricos. Aristóteles, tradicionalmente conhecido como “pai
da ciência da classificação”, preocupava-se em “[...] obter uma noção clara dos
caracteres distintivos e das propriedades comuns” dos animais por ele classificados. E o
caminho mais fácil para atingir tal objetivo era a comparação. Seu Historia animalium é
organizado em comparações de estrutura (anatomia comparada), biologia reprodutiva e
comportamento. Dividia animais entre “de sangue” e “sem sangue” (posteriormente
reclassificados por Lamarck como vertebrados e invertebrados); vivíparos e ovíparos e,
entre ovíparos, separou os “de pelo” (mamíferos); dos demais, hoje conhecidos como
répteis e anfíbios; distinguiu cetáceos de peixes e mamíferos terrestres; classificou
diversos tipos de animais com asas etc. (MAYR, 1998).
De acordo com Mayr (1998), o método de classificação que predominou de
Cesalpino (1519-1603) até Lineu (1707-1778), seguia a lógica das divisões dicotômicas
que começava com um número de classes facilmente reconhecíveis e os dividia em
conjuntos subordinados de subclasses, por meio de caracteres diferenciadores. Tal
método foi especialmente popular em um período da história em que o conhecimento
humano empenhava-se em buscar ordem e lógica no universo criado por Deus. O
método da divisão lógica servia para descobrir e definir a verdadeira essência dos
organismos. Refletia, portanto, a filosofia essencialista.
A taxonomia de Lineu, diferentemente do método dicotômico, obedece a um
sistema de categorias hierárquicas. Contudo, fundamentava-se ainda na ideia de que
cada organismo é possuidor de uma “essência” dada a ele no momento da criação. O
sistema de Lineu influenciou as categorias4 taxonômicas atuais, as quais ainda são
chamadas de lineanas. (MAYR, 1998).
Nelson Bernardi5, ao refletir sobre a teoria e o método das diferentes correntes
da taxonomia, ressalta os limites da filosofia essencialista para explicar a diversidade
dos seres vivos e aponta para a insuficiência em termos de unidade metodológica em
ramos da taxonomia moderna, tais como a tradicional e a numérica.


4
As principais, da mais genérica à mais específica, são: Reino, Filo, Classe, Ordem, Família, Gênero,
Espécie. Entre elas existem outras categorias intermediárias, identificadas pelos prefixos super ou sub,
indicando sua ordem no sistema hierárquico.
5
Prefácio do livro Fundamentos de Sistemática Filogenética (AMORIM, 2002, p. 9).


597

A taxonomia tradicional só comporta um tipo de treinamento, a


familiarização sensorial, neural, com os espécimes. Esse
conhecimento é indispensável aos taxonomistas de qualquer
tendência, mas é insuficiente para a tomada de decisões, para a
solução de problemas de relacionamento formulados pela teoria
sistemática.

A partir da investigação da literatura a respeito do tema realizada até o


momento, este trabalho lança a hipótese (a qual ainda necessita aprofundamento) de que
predomina, na taxonomia (ao menos em sua fase anterior a Darwin), os procedimentos
da ciência empírica e lógico formal. E que, sendo assim, elabora conceitos denominados
por Davidov de “representações gerais”, as quais correspondem às abstrações formais.
A preocupação do taxonomista é com a identificação de propriedades (caracteres)
externos e aparentes, isto é, as estruturas biológicas as quais permitem categorizar
determinado organismo em um sistema hierárquico. As estruturas apresentadas pelo
organismo serão diferentes ou semelhantes a determinados grupos. Tal procedimento é
feito por meio da comparação entre caracteres e organismos. Para Davidov (1988), a
comparação é o principal meio de formação das representações abstratas empíricas.
Um dos problemas enfrentados pela taxonomia oitocentista era a questão do
parentesco ou afinidade existente entre as espécies, manifestada pelo compartilhamento
de caracteres “essenciais”. Sobre isso, a teoria de Darwin lançou nova luz. A hipótese
de um ancestral comum entre as espécies não era absolutamente nova, contudo, nenhum
evolucionista havia ainda tratado de modo tão inequívoco que existem grupos naturais
compartilhando caracteres essenciais porque vieram de um ancestral comum. (MAYR,
1998).
Neste sentido, uma das principais contribuições do darwinismo para a
classificação dos seres vivos é a compreensão da vida em suas dimensões históricas.
Com base em Davidov, pode-se dizer que a história escapa à ciência empírica,
preocupada, predominentemente, com a categoria da existência presente. A
classificação dos seres vivos feita empiricamente parece partir precisamente de uma
pergunta referente à existência presente: o que é este organismo? Já um sistema teórico
parte de outras questões além desta, tais como: qual é sua origem? Como chegou a ser o
que é hoje?
A teoria sobre a origem das espécies fez emergir uma nova ciência da
classificação dos seres, a sistemática filogenética. A segunda hipótese (a qual também
necessita ser aprofundada) levantada por este trabalho pode ser enunciada do seguinte


598

modo: a sistemática filogenética representou um alcance na direção do desenvolvimento


do pensamento teórico a respeito da classificação do mundo vivo, pois supera as visões
empiristas anteriores por não mais considerar a espécie como realidade autônoma.
De acordo com Davidov (1988), enquanto os conceitos empíricos são elaborados
por comparação e abstração de propriedades comuns, formalmente gerais, os teóricos
surgem a partir da análise da função de certa relação particular dentro de um sistema
integral. Enquanto os conceitos empíricos refletem em suas representações as
propriedades externas dos objetos, os teóricos evidenciam suas conexões internas, indo
além dos limites das representações. No conceitos empíricos, a propriedade geral
costuma pertencer à mesma ordem das propriedades particulares e singulares dos
objetos. Nos teóricos, são estabelecidas as relações entre o universal e o singular, por
meio de mediações.
O essencial do tipo de generalização e abstração teóricas está em evidenciar o
movimento histórico que é o próprio objeto o qual representam. O conceito teórico vai
além da existência presente e representa a transição. Assim, concebe o objeto como
elemento de um sistema, e, em virtude disto, estabelecendo as corretas relações entre o
geral, o particular e o singular, a abstração teórica evidencia o que, no objeto específico,
constitui-se como movimento universal. Esta é, precisamente, a essência do objeto, para
a ciência dialética: o movimento histórico universal que é parte de todo elemento
particular de um sistema. A abstração teórica configura-se, assim, como unidade de
análise (ou, como Davidov a nomeia, “célula”). Desse modo, a abstração teórica, ou
seja, dialética, não se apresenta como mera abstração, mas como o próprio concreto.
O pensamento teórico examina o concreto em desenvolvimento, em movimento,
evidenciando as conexões internas do sistema, e, com isso, as relações do singular e do
universal. A principal diferença entre os conceitos teóricos e as representações gerais
(empíricas), continua Davidov (1988, p. 131), “consiste em que nos primeiros se
reproduzem o processo de desenvolvimento, de formação do sistema, da integridade, do
concreto e só dentro deste processo se revelam as particularidades e as interrelações dos
objetos singulares”.
O materialismo da teoria darwiniana trouxe contribuições para a filogenia com
relação ao conceito de homologia. Para Amorim (2002), este é um dos conceitos
fundamentais de toda a biologia comparada, pois consiste na ferramenta básica a qual
permite a comparação entre partes de indivíduos distintos. Tal conceito, quando
derivado da filosofia idealista (Saint Hilaire e Owen), diz respeito apenas a uma relação


599

de semelhança topológica – de posição espacial – entre estruturas corporais de


diferentes organismos, independentemente de sua função ou gênese. Homologia fazia
oposição ao conceito de analogia, que evidenciava a mesma função em órgãos não
correspondentes em posição, em diferentes indivíduos. Tendo a topografia como traço
fundamental, o conceito de homologia não ultrapassava o pensamento empírico e sua
base lógico-formal, pois evidenciava aspectos aparentes das estruturas biológicas e não
o que nelas existe de essencial.
Em sua reformulação evolucionista, o conceito de homologia refere-se a
estruturas que possuem a mesma origem filogenética, isto é, a semelhança de forma,
posição e às vezes de função entre estruturas de organismos diferentes é resultado da
ancestralidade comum entre as espécies. Neste caso, ao evidenciar a ancestralidade
comum, o conceito dialético de homologia revela o movimento universal e histórico que
conecta todas as espécies existentes na atualidade. A palavra homólogo poderia até ser
substituída pela palavra homogenético na formulação evolucionista. Deste ponto de
vista, diversas estruturas antes consideradas homólogas (na aparência) deixaram de ser
assim conceituadas, como é o caso das asas de um mamífero e as asas de uma ave6.
Na filogenia as características de uma espécie não são vistas como “pertencentes
a ela”, tal como no modelo idealista anterior, mas como “resultado da herança, com ou
sem modificações, de características homólogas que existiam em suas espécies
ancestrais e das ancestrais de suas ancestrais até o início da vida”. (AMORIM, 2002, p.
58).
Assim, a filogenia concebe as diferenças e similaridades entre os organismos em
séries de transformação7, que consistem na reconstrução histórica das modificações

6
“Uma comparação cuidadosa entre a forma e posição das asas de um morcego e da ema mostra que elas
diferem de diversas maneiras: na ave, as membranas alares ligam a parte distal do membro anterior ao
tórax; em um morcego, as membranas estendem-se entre os dedos extremamente alongados do membro
anterior. A semelhança é superficial. Como há um grande número de outros caracteres que mostram que
os morcegos formam um subgrupo de mamíferos, pode-se inferir que as modificações genéticas que
produziram aquilo que se chama de ‘asa’ em um e em outro desses grupos surgiram duas vezes, em
ancestrais independentes. Além disso, há muitas evidências de que a espécie ancestral mais recente
comum a aves e morcegos – o ancestral de todos os Amniota – não apresentava asas” (AMORIM, 2002,
p. 20).
7
Há aqui dois alertas importantes a serem feitos. Em primeiro lugar, o estudo das modificações históricas
de determinada estrutura mostra uma série linear de transformação, o que não é possível de ser observado
na natureza. O movimento evolutivo, tal como explicado pelo mecanismo da seleção natural não é linear,
tampouco progressivo. Como bem explica Lewontin (1998), Darwin estabeleceu um modelo variabilístico
de evolução, em contraposição às teorias transformacionais anteriores. Apesar do uso do termo “série de
transformação”, é errôneo imaginar que uma estrutura biológica se transforma diretamente em outra ao
longo de sua história evolutiva. A transformação acontece por meio da atuação da seleção natural na
diversidade de características apresentadas pela espécie, de modo que as mais adaptadas sobrevivem e
podem ser transmitidas por hereditariedade. As não adaptadas perecem e não são passadas de geração em


600

ocorridas em uma estrutura, determinando, em um conjunto de condições, quais são as


mais antigas (plesiomórficas) e quais são as modificadas (apomórficas), isto é, as novas,
derivadas a partir das antigas. (AMORIM, 2002).
Além disso, tais estruturas pertencentes a certo organismo não são concebidas
como partes autônomas, mas elementos de um sistema integral: o corpo. Nenhuma
estrutura evolui senão em relação com o corpo como um todo. Neste sentido, o
pensamento teórico sobre a classificação dos organismos supera o empírico por
estabelecer as relações entre as estruturas (elementos particulares) e o organismo
(totalidade) e também por reconhecer as relações entre espécies (particularidade) e o
movimento universal de evolução da matéria viva.

Considerações finais.

Não se pretendeu aqui endossar um antagonismo entre a ciência empírica e a


lógica formal, de um lado; e a ciência teórica e a lógica dialética, de outro. Ao contrário,
se o pano de fundo das reflexões feitas é a história do desenvolvimento do pensamento
humano, compreende-se que a ciência teórica, a qual consiste em uma superação da
empírica por incorporação, jamais seria uma conquista humana não fossem as etapas
anteriores de desenvolvimento científico.
Davidov (1988) afirma a importância dos conceitos empíricos no
desenvolvimento do pensamento de escolares de menor idade. Além de importante, a
formação do pensamento empírico em crianças é tarefa obrigatória, diz o autor, pois os
alcances lógico-formais fazem, necessariamente, parte das formas mais desenvolvidas
de pensamento. Possibilita grandes alcances abstrativos e fornece precisão e
determinação a seus conceitos. Contudo, pode-se questionar as contribuições do


geração. Considerando o tempo histórico, é possível observar a transformação de caraterísticas antigas em
novidades evolutivas, contudo, tal transformação ocorre por seleção e não diretamente.
Em segundo lugar, quando se estabelece a relação entre as proposições de Davidov sobre o pensamento
teórico e as teorias evolutivas, leva-se em conta o seguinte: para Davidov, enquanto o pensamento
empírico responde à pergunta “o que é este objeto?”, o teórico, por incluir a dimensão histórica, responde
às questões “o que é, o que foi e o que pode vir a ser este objeto?” Logicamente, quando se trata da
história natural, dificilmente o pensamento teórico será capaz de responder ao que o objeto pode vir a ser,
visto que a evolução nos fornece pistas sobre o passado da espécie e de suas estruturas e não sobre seu
futuro. Portanto, pode-se considerar que os conceitos sobre a classificação dos seres vivos, quando
teóricos, evidenciam o movimento histórico que já aconteceu.


601

pensamento empírico para a concepção de mundo, de maneira geral, no atual momento


histórico de desenvolvimento da sociedade capitalista.
O esgotamento das forças produtivas aponta para a necessidade de superação
desta formação social, algo que não acontecerá sem a organização da classe
trabalhadora. Está implícita, na formação da consciência de classe para si, a necessidade
de compreensão profunda da realidade atual, o que inclui entender a essência dos
fenômenos que revelam tanto o funcionamento da sociedade quanto o funcionamento da
natureza. Não será somente com o ensino da ciência empírica que se alcançará o
objetivo de elaborar, em estudantes, uma concepção verdadeiramente objetiva de
mundo, capaz de superar a aparência dos fenômenos e compreendê-los em sua essência.
Neste sentido, apesar de ser função da escola levar os estudantes a desenvolver alcances
abstrativos empíricos, é necessário ascender do abstrato ao concreto. Concordamos com
Davidov (1988, p. 121), quando diz: “o problema consiste em encontrar vias tais de
ensino nas que o entendimento [pensamento empírico] se converta em um momento da
razão e não adquira um papel dominante e autônomo.”
Amorim (2008) faz uma síntese realista e precisa do que ocorre no ensino de
biologia no que diz respeito ao embate entre as concepções idealistas e materialistas
sobre a natureza, às quais acrescentamos também a disputa entre concepções metafísicas
e dialéticas. Afirma o autor: se, por um lado, entre a comunidade científica, a evolução é
bem aceita, por outro, a compreensão de alguns aspectos mais profundos desta teoria
ainda é limitada. O referencial anterior ao evolucionista (composto de uma mistura de
elementos do essencialismo aristotélico, do idealismo de Platão e do criacionismo), de
mais de 23 séculos de idade, ainda não parece superado, o que se reflete no ensino das
ciências da vida. Para o autor, ao menos nas disciplinas de zoologia e botânica (os
sistemas de classificação de vegetais e animais podem ser aqui incluídos), até mesmo
em nível universitário, ainda tem como apoio uma concepção essencialista e idealista de
mundo.

A conseqüência é que, constando Evolução do conteúdo programático


de Biologia no ensino básico, convivem formalmente dois paradigmas
antagônicos: um deles, evolutivo quanto ao processode origem da
diversidade; o outro, essencialista-idealista quanto à natureza das
espécies e da organização da informação biológica. (AMORIM, 2008,
p. 127).

Diante de tais análises, acredita-se ser tarefa dos professores das ciências
biológicas e de pesquisadores sobre ensino de biologia que estiverem comprometidos


602

com a transformação social e com a formação de uma concepção objetiva de mundo,


reflexões acerca das questões aqui tratadas. Ainda que as relações estabelecidas aqui
sobre o pensamento empírico, o pensamento teórico e os sistemas de classificação de
seres vivos necessite aprofundamento, a partir da realidade apresentada por Amorim
(2008), cabe investigar o quanto o ensino escolar de biologia tem contribuído para a
formação do pensamento teórico. Esta questão não foge ao debate sobre as relações
entre a formação da concepção de mundo e o currículo de ciências biológicas/naturais
tal como é construído pelo pensamento pedagógico hegemônico; e tal como seria
construído pela pedagogia histórico-crítica.

Referências

AMORIM, Dalton de Souza. Fundamentos de sistemática filogenética. Ribeirão Preto: Holos


Editora. 2002.

DAVIDOV, Vasili. La enseñansa escolar y el desarollo psiquico. Moscou: Editorial Progreso.


1988.

GOULD, Stephen J.; LEWONTIN, Richard. The spandrels of San Marco and the Panglossian
Paradigm: a critique of the adaptationist programme. Proceedings of the Royal Society of
London.B 205, p. 581-598. 1979.

KOSIK, Karel. Dialética do concreto. São Paulo: Paz e Terra. 2002.

LEFEBVRE, Henri. Lógica formal, lógica dialética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
1991.

LEWONTIN, Richard. A tripla hélice: gene, organismo, ambiente. Lisboa: Edições 70. 1988.
94 p.

LURIA, A. R. Curso de psicologia geral. Vol. IV. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1979.

MAYR, Ernst. O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: Editora UNB. 1998.

TONET, Ivo. Método científico: uma abordagem ontológica. São Paulo: Instituto Lukács.
2013.

VIGOTSKI, Lev. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes. 4a ed. 1991.

_______________. Obras escogidas. Tomo II. Madrid: Visor, 2001.

_______________. Obras escogidas. Tomo III. Madrid: Visor, 1995.


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

ESCOLA SEM PARTIDO:


INTENSIFICANDO A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA DA CONSCIÊNCIA

Matheus Eduardo Rodrigues Martins (UFPR)1


Uriel Pozzi Silva (UFPR)2
Graziela Lucchesi Rosa da Silva (UFPR)3

Resumo Esse artigo detém como objetivo central a discussão acerca das consequências do PL
867/215 - auto-intitulado Escola sem Partido - para a formação da consciência dos estudantes na
educação formal. Para isso, realizamos, com base na Psicologia Histórico Cultural e na
Pedagogia Historico-Crítica, a discussão sobre a formação de consciência e o papel da educação
nesse processo. Ainda, expressamos o projeto educacional sob o qual esse processo ocorre
atualmente e, com base nessas reflexões, discutimos as concepções presentes no Projeto de Lei.
Concluimos que essas concepções e o PL 867/215 detém caráter ideológico, conformando
consciências fragmentadas e padronizadas. O PL visa inviabilizar o papel de tomada de
consciência perante uma sociedade alienada, ao extrair a função educacional e reflexiva de
conhecimentos universais sistematizados, por parte do professor e da escola. Afirmamos, por
fim, a necessidade de defender uma educação que possibilite a apropriação do conhecimento
historicamente constituido pela humanidade, gerando indivíduos omnilaterais.

Palavras chave: Consciência; Psicologia Histórico-Cultural; Pedagogia Histórico-Crítica;


Escola sem Partido

Introdução

A educação, segundo a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-


crítica, detém papel fundamental tanto ao desenvolvimento de indivíduos singulares
quanto ao desenvolvimento do gênero humano. Na sociedade contemporânea, é
sobretudo a educação formal que possibilita aos indivíduos se apropriarem dos
conhecimentos científicos produzidos pelo gênero humano e, assim, desenvolverem
suas potencialidades. Para tanto, são necessárias situações pedagógicas sistematizadas e


1
Matheus Eduardo Rodrigues Martins Autor, Graduando de Psicologia, Universidade Federal do Paraná,
Curitiba-Paraná, Brasil. E-mail: matheus_erm@hotmail.com
2
Uriel Pozzi Silva, Graduando de Psicologia, Universidade Federal do Paraná, Curitiba-Paraná, Brasil. E-
mail: uripozzi@hotmail.com
3
Graziela Lucchesi Rosa da Silva, Doutora em Educação, Professora Adjunta da Universidade Federal do
Paraná – Departamento de Psicologia, Curitiba-Paraná, Brasil. E-mail: grazielaluc@hotmail.com


604

intencionalmente organizadas, disponibilizadas, na atualidade, majoritariamente no


contexto escolar. (KLEIN, 2007).
Para tais concepções teóricas, o processo de ensino-aprendizagem de caráter não
espontâneo possibilita a apropriação dos fundamentos explicativos das ciências,
baseados em conceitos científicos, das mais diversas áreas do conhecimento, os quais
atuam e transformam qualitativamente a consciência do estudante quando apropriados.
Assim, a educação formal em grande parte fornece o conteúdo da consciência individual
e propicia o desenvolvimento do pensamento teórico, forma mais complexa de
pensamento e que opera por meio dos verdadeiros conceitos. Os indivíduos, portanto,
também criam e se objetivam na realidade a partir dos conhecimentos transmitidos pelo
processo educacional formal. (VIGOTSKI, 2001; ABRANTES; MARTINS, 2006).
Entretanto, vivemos um período no qual impera o neoliberalismo, sob a lógica
do capital. Em meio à globalização econômica, às privatizações, aos cortes dos gastos
em direitos sociais e à lógica de mercado, o Estado implementa, permeado pelo ideario
pedagógico do “aprender a aprender”, uma educação unilateral, acrítica, voltada à lógica
de esforço do indivíduo para se adaptar às mudanças do mercado de trabalho. Neste
contexto, a educação formal promotora do desenvolvimento humano, portanto, sofre
grandes ataques, sobretudo quando a sociedade capitalista mais precisa de indivíduos
unilaterais. Um desses ataques é o Projeto de Lei (PL) intitulado Escola sem Partido (n.º
867, de 2015), o qual vem à tona por meio de um discurso de liberdade de consciência,
pluralismo de ideias e neutralidade. (DUARTE, 2004).
Ante o exposto, o objetivo deste trabalho é discutir os impactos que esse Projeto
de Lei teria na conformação da consciência dos estudantes da educação formal. Para
isso, discutimos qual o papel da educação formal na formação da consciência, a partir
dos fundamentos da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica; além
de demonstrar o quanto o PL Escola sem Partido é uma expressão das demandas do
capital por meio das medidas neoliberais ao campo da educação formal.

1 O Processo de Formação de Consciência a partir dos fundamentos da Psicologia


Histórico-Cultural

Ao abordarmos o desenvolvimento da consciência, com base na psicologia


histórico-cultural, fundamentamo-nos na concepção de que o ser humano é um ser
social ativo. Ou seja, por meio do trabalho – atividade vital humana – diferencia-se dos


605

demais seres devido a sua formação essencialmente coletiva, esta que, por sua vez,
possibilita o surgimento de tipo específico de psiquismo, próprio dos seres humanos: a
consciência. Leontiev (1978, p. 69) explica que o reflexo consciente “[...] é o reflexo da
realidade concreta destacada das relações que existem entre ela e o sujeito, ou seja um
reflexo que distingue as propriedades objetivas estáveis da realidade”.
Apreender o processo de desenvolvimento do reflexo psíquico consciente
demanda, segundo Leontiev (1978), o entendimento de que diferentemente do animal
que possui necessidades estritamente biológicas e saciadas de forma imediata, o ser
humano age sobre a natureza, modificando-a, ao mesmo tempo em que modifica a si
mesmo, produzindo intencionalmente meios – instrumentos – para saciar suas
necessidades. Conforme expressa Almeida:

Para produzir um instrumento, é necessário apropriar-se de objetos da


natureza e criar para estes, usos sociais. Nessa produção, os homens se
objetivam, cristalizando no instrumento, mesmo em repouso,
movimentos e gestos da atividade humana. Como instrumento, o
objeto passa a ser portador de funções sociais, ganhando um
significado social a partir dessa objetivação. (ALMEIDA, 2008, p.
25).

Márkus (1974) enfatiza que tendo o trabalho como mediação primeira, os


sujeitos ao criarem objetivações geram também novas necessidades, sociais em origem
e conteúdo, que ampliam as capacidades humanas, acarretando o desenvolvimento da
história da humanidade.
Logo, para satisfazerem tantas necessidades, cada vez mais os seres humanos
estabelecem relações sociais independentes de sua vontade. Não satisfazem, portanto,
suas mais diferentes necessidades de forma individual, pois para objetivar suas vidas
precisam também se apropriar das criações humanas. Ao conjunto de relações sociais
necessárias para a produção e reprodução do ser humano em uma sociedade, denomina-
se modo de produção. (MARX, 2007).
Ao nascerem, os seres humanos já estão inseridos em determinado modo de
produção, em relações já instituídas, nas quais se inserem para reproduzi-las e/ou
transformá-las. Ou seja, o modo de produção estabelece necessidades dos sujeitos e as
formas que essas são satisfeitas, determinando os próprios sujeitos – concebendo um
“ser social”. Como expressam Marx e Engels:


606

Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o


aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é,
muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma
determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida
desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida,
assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto
com o que produzem como também com o modo como produzem. O
que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de
sua produção. (MARX & ENGELS, 2007, p. 87)

Segundo Leontiev (1978), é nesse processo de produção e reprodução da vida,


por meio da atividade humana, que a consciência é forjada. Isso porque as novas
necessidades, coletivas, mais complexas, exigiram que as ações das atividades humanas
separassem-se dos motivos pelos quais as atividades são estuturadas, fazendo com que
as ações fossem meios para determinados fins.
Assim, tais ações são então dirigidas por um objetivo consciente. O ser humano
começa a direcionar diferentes ações que em sua consciência detêm um significado
social. Assim, os indivíduos, na atividade, geram a consciência constitutiva de
significações. (LURIA, 1994).
Esses novos processos mentais se estruturam em função da captação e do
domínio da realidade que exige, por sua vez, domínios perceptivos, atencionais e
mnêmicos, os quais ultrapassam o âmbito da apreensão sensorial, possibilitando a
criação de uma imagem subjetiva da realidade objetiva. Leontiev (1978, p. 87) esclarece
que tal complexificação só foi possível mediante a linguagem, forma concreta pela qual
opera a consciência da realidade circundante – sendo, assim, a linguagem o veículo das
significações. Para o autor, a linguagem não exerce “apenas o papel de meio de
comunicação entre os homens, ela é também um meio, uma forma da consciência e do
pensamento humanos, não destacado ainda da produção social. Torna-se a forma e o
suporte da generalização consciente da realidade”.
Luria (1979) explica que a linguagem é um sistema de códigos que se
transformou em instrumento crucial do conhecimento humano e meio mais importante
de desenvolvimento da consciência ao possibilitar a superação dos limites sensoriais,
ao individualizar as características dos fenômenos e ao formular determinadas
generalizações ou categorias. De acordo com Leontiev (1978, p. 88), “[...] a
consciência é o reflexo da realidade, refractada através do prisma das significações e
dos conceitos linguísticos, elaborados socialmente”.
Leontiev (1978) concebe os termos “significado social” e “sentido pessoal” para
se referir ao conteúdo da consciência, que se expressa na linguagem por meio da


607

palavra, como explicita-se mais adiante. O significado corresponde à significação social


de determinada relação da atividade social concreta e o sentido à concepção subjetiva na
consciência.

A significação é aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre


objetivamente num sistema de ligações, de interações e de relações
objetivas. A significação é refletida e fixada na linguagem, o que lhe
confere a sua estabilidade. Sob a forma de significações lingüísticas,
constitui o conteúdo da consciência social; entrando no conteúdo da
consciência, torna-se assim a "consciência real" dos indivíduos,
objetivando em si o sentido subjetivo que o refletido tem para eles.
(LEONTIEV, 1978, pg. 94).

Vygotski (1995, 2001, p. 398) salienta que a palavra, elemento fundamental da


linguagem, é um reflexo generalizado da realidade, cujo significado configura-se como
unidade indecomponível da linguagem e da consciência e, deste modo, “[...] a palavra
desprovida de significado não é palavra, é um som vazio”. O autor explica, ainda, que
uma palavra sempre se refere a um grupo ou classe de objetos e suas relações e, deste
modo, constitui um sistema de significação. Esse sistema de relações, segundo Luria
(1979), refere-se ao sentido da palavra, o qual é dependente da situação concreta em que
a emprega. Sob tais fundamentos, Almeida (2008) assevera que a palavra possibilita a
formação de conceitos e, com isso, torna-se mecanismo essencial do movimento do
pensamento desenvolvido.
Um dos mais importantes fatos da ciência psicológica, segundo Luria (1979, p.
38), é a tese proposta por Vigotski referente a intrinseca relação entre a estrutura do
significado da palavra (conceito) e a estrutura da consciência. Deriva deste fato a
afirmação de que “o homem reflete e toma consciência do mundo de diferentes modos
em cada etapa do desenvolvimento, baseando-se em significados da palavra
estruturalmente diferentes e numa estrutura de conceitos diferente pelos mecanismos
psicológicos que apresenta”. Luria explica que por meio desta tese é possível entender
que nas etapas sucessivas do desenvolvimento, o reflexo psíquico da realidade –
consciência – é realizado por conceitos que têm estrutura semântica (direto-figurada ou
lógico-verbal) e por uma correlação diferente de processos psíquicos (percepções,
memorizações, pensamento verbal abstrato).
Luria (1979) enfatiza que esse sistema de relações, nas pessoas que se
apropriaram de grande conjunto de conhecimento fornecido pela escola e ciência, é
substancialmente mais rico e complexo em relação àquelas que possuem experiências


608

limitadas pelo cotidiano. Por este modo, os autores da Psicologia Histórico-Cultural são
enfáticos ao afirmar que ao se pretender o desenvolvimento em níveis mais complexos
do pensamento, o ensino formal não pode se limitar à reprodução e repetição dos
conceitos espontâneos, obtidos na vida cotidiana, imediata. Estes, na verdade, devem ser
utilizados como meio para elaboração de conceitos científicos que envolvem níveis
mais avançados de pensamento e de processos psíquicos.
Vigotski (2001) assevera que o ensino sistematizado e intencional, por meio dos
conceitos científicos, deve ampliar as experiências e movimentar as necessidades e
interesses dos alunos para além do seu cotidiano, possibilitando a tomada de
consciência para intervir na realidade por meio de análises, sínteses e generalizações. É
importante frisar, assim, a importância da apropriação do conhecimento sistematizado
na formação de conceitos científicos, sendo a educação escolar e o educador os
principais mediadores do desenvolvimento desse processo. A esse respeito, trataremos a
seguir.

2 Educação formal e desenvolvimento da consciência: relação humanização e


alienação

Na perspectiva da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-crítica,


o papel da educação formal é de promover o desenvolvimento do ser humano, garantir a
humanização dos indivíduos e, portanto, a formação de sua consciência. Tal processo
deve ocorrer através da apropriação dos conhecimentos sistematizados produzidos
historicamente pela sociedade, ou seja, internalizados no psiquismo na forma de
conceitos. (MARTINS, 2013a).
Para a pedagogia histórico-crítica, à educação escolar cabe a transmissão de um
tipo específico de conhecimento, os conhecimentos clássicos, de forma sistematizada e
intencional. É nesse sentido que o conhecimento clássico deve ser transmitido no
contexto escolar, entendendo tal conhecimento como “aquilo que se firmou como
fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se num critério útil para a seleção
dos conteúdos do trabalho pedagógico”. (SAVIANI, 2003, p. 14).
Tais conteúdos devem ser organizados de tal maneira que propiciem a cada
indivíduo singular apropriar-se da humanidade produzida historicamente. Vale destacar
que os conteúdos disponibilizados no contexto escolar referem-se, fundamentalmente,
aos conteúdos universais, representativos das máximas conquistas culturais da


609

humanidade, os quais promovem a inteligibilidade do real de forma mais complexa e


articulada. (MARTINS, 2013a).
Sob os fundamentos da psicologia histórico-cultural e da pedagogia histórico-
cultural, entende-se, de acordo com Martins (2013a, 2013b), que o efetivo
desenvolvimento psíquico demanda, portanto, ações educativas intencionalmente
orientadas para esse fim. No entanto, a efetivação desse objetivo depende da qualidade
da educação escolar, uma vez que somente o ensino sistematizado e orientado por
conteúdos clássicos promovem a formação dos comportamentos complexos, ancorados
nos processos funcionais superiores. Em síntese, à educação escolar cabe a função de
promover, em cada sujeito, a humanidade desenvolvida pelo gênero humano.
Contudo, de acordo com Silva (2011), é preciso levar em consideração que o
entendimento das possibilidades e limitações da aprendizagem e do desenvolvimento
humanos demanda a compreensão da configuração da divisão do trabalho e das relações
produtivas na sociedade de classes e, especificamente, na sociedade capitalista. Isso
porque, conforme apontam Saviani e Duarte (2012, p. 2), a educação escolar é marcada
pela seguinte contradição: “Trata-se da contradição entre a especificidade do trabalho
educativo na escola – que consiste na socialização do conhecimento em suas formas
mais desenvolvidas – e o fato de que o conhecimento é parte constitutiva dos meios de
produção que, nesta sociedade, são propriedade do capital e, portanto, não podem ser
socializados”.
A educação, deste modo, não está afastada da realidade material de produção da
vida. Ela é essencial para desenvolver as formas de trabalho, a consciência social, os
modos de relacionamento entre os seres humanos. (LOMBARDI, 2010). Essa
contradição entre o que se produz e o que pode ser apropriado tem consequências
profundas para o sistema de significações e, portanto, para a consciência. Concebe-se
esse processo como Ideologia. (LOMBARDI, 2010).
Nesse contexto, para Chauí (1984), a ideologia detém como uma de suas
principais características naturalizar a visão parcial do real da classe dominante. A
ideologia burguesa proclama como verdade as ideias fragmentadas ensinadas pela
burguesia.
A educação é, portanto, tanto uma forma de humanizar – ao possibilitar o
processo de apropriação de conhecimentos do gênero humano -, quanto uma forma de
alienar – visando uma apropriação de conhecimentos específicos, que reproduzem a
divisão de classes. A concepção de que a educação deve possibilitar a apropriação dos


610

mais plurais conhecimentos produzidos pelo gênero humano está em constante embate
com a concepção ideológica de educação. Saviani e Duarte (2012) enfatizam que a
contradição presente na educação escolar nesta sociedade pode produzir movimento em
duas direções:

Uma delas, favorável aos interesses da classe dominante, consiste em


ações que [...] entravam todas as formas possíveis a constituição de
um sistema nacional de educação pública que permita às crianças,
adolescentes e jovens da classe trabalhadora o acesso ao saber erudito.
O sistema escolar estrutura-se de forma fragmentada, reproduzindo a
divisão social do trabalho e a lógica do mercado. O acesso ao
conhecimento dá-se de maneira profundamente desigual e seletiva.[...]
A outra direção possível do movimento produzido pela contradição
que marca a educação escolar na sociedade capitalista, esta sim
favorável aos interesses da classe trabalhadora, é a luta pela efetivação
da especificidade da escola, fazendo do trabalho de socialização do
conhecimento eixo central de tudo o que se realiza no interior desta
instituição [...]. Esta luta requer ações organizadas no plano dos
embates políticos, no plano da formação de quadros altamente
qualificados, no plano da produção do conhecimento sobre a educação
e no plano da construção teórica e prática de uma pedagogia que
fortaleça o trabalho de produção direta e intencional em cada aluno e
em todos os alunos, do domínio dos conhecimentos necessários ao seu
pleno desenvolvimento como seres humanos. (SAVIANI, DUARTE,
2012, p. 2-3)

A esse respeito, Martins (2013a) enaltece que é necessária uma constante


problematização do saber transmitido em sala de aula. É necessário que a escola e os
educadores organizem e selecionem conhecimentos que possibilitem o enfrentamento
da contradição presente na sociedade.
Desta forma, evidencia-se o papel de “não neutralidade” da escola, e a
importância do combate à ideologia também nesse meio. Para aprofundar a discussão
desta contradição presente no contexto escolar, no próximo item será apresentado o
projeto educacional o qual está sendo implementado em nosso país. Isso possibilita
basear ainda mais a discussão pretendida, acerca das consequências do PL Escola sem
Partido para a formação da consciência.

3 Projeto educacional sob a lógica do capital

No ponto anterior, expressamos a contradição inerente ao papel da educação na


sociedade de classes capitalista: fundamental no processo de humanização, mas, ao


611

mesmo tempo, crucial para uma formação ideológica da consciência, sob os interesses
da lógica do capital.
Nossa sociedade, portanto, detém um projeto de educação atrelado ao projeto
econômico-político da classe dominante que se intensifica, sobretudo, após a crise da
década de 1970. Nesse período, o capitalismo, ao passar por uma de suas crises, detém a
necessidade de sua recuperação. Ou seja, era necessário modificar o padrão de
acumulação capitalista, que se caracterizava pelo financiamento público-estatal e pelo
padrão fordista-keynesiano de produção da vida social. (DAHMER PEREIRA, 2007).
Produz-se, portanto, uma série de mudanças na organização do trabalho, do
Estado e das instituições capitalistas (NETTO, 2012). Esse conjunto de mudanças
fundamenta-se na lógica neoliberal que, segundo Fiori (1997), caracteriza-se pela menor
intervenção política possível – pelo Estado – nas questões econômicas, bem como na
supremacia da individualidade e na “igualdade de oportunidades” para que indivíduos e
organizações concorram e se desenvolvam.
Entre algumas consequências dessas concepções estão as privatizações, a maior
liberdade competitiva entre empresas, a abertura de novos mercados (como saúde e
educação), a modernização e tecnicização de países periféricos. Tais mudanças são,
ideologicamente, travestidas de uma noção de igualdade e democratização: desenvolver
os países emergentes para torná-los mais competitivos, possibilitando estabilidade e
diminuição da pobreza; o que na verdade tem como objetivo possibilitar às empresas
dos países desenvolvidos se apropriarem de novos mercados, terem força de trabalho
mais barata e, deste modo, aumentarem sua produção. (LIMA, 2005).
E para tudo isso ocorrer, é necessário tecnologia – progresso técnico e
investimento em capital humano (MIRANDA, 1997). Como afirma Zanardini (2007), é
necessário o desenvolvimento de pessoas capazes de resolver problemas, com espírito
criativo e flexível para se adequarem aos novos desafios propostos nessa nova
organização social. Em síntese, uma das principais necessidades desse projeto
econômico-político é a implantação de políticas que desenvolvam um padrão de força
de trabalho nos países periféricos, que sustentem as modificações da reestruturação
produtiva (LIMA, 2005). E como já destacado, a educação detém papel fundamental na
formação da força de trabalho.
Fica evidente, portanto, que o projeto de educação atrelado a esse projeto
econômico-político, visa: [1] formar força de trabalho para as necessidades pós-crise
(LIMA, 2005); [2] ao mesmo tempo, servir como novo mercado e gerar lucro (ROSSA


612

& SOUZA, 2015); [3] e, por fim, porém de forma mais velada, esse investimento em
capital humano, a implementação da técnica e dos valores neoliberais, serve como
forma de controle/segurança social, na medida em que insere os conteúdos necessários a
essa técnica e a esses valores neoliberais, procurando omitir e repelir conteúdos que se
oponham à forma mercadológica. Ou seja, construir uma supremacia do conhecimento
técnico voltado às necessidades do mercado em detrimento de um ensino crítico que
possibilite a revolta contra o sistema. (LEHER, 1999; GENNARI, 2010).
Essa lógica é delineada por órgãos internacionais que cumprem importante papel
na organização do capital a nível mundial, como o Fundo Monetário Internacional
(FMI), Banco Mundial (BM) e até mesmo organismos que, sob a máscara de
compromisso social, contribuem para a manutenção do modo de produção capitalista,
como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Esses órgãos elaboram
diretrizes educacionais para os países periféricos, que são admitidas pelos governos dos
Estados. (MIRANDA, 1997).
Segundo Leher (1999), alguns dos motivos para isso acontecer dizem respeito à
dependência econômica dos países periféricos em relação ao BM, aliado à necessidade
de acompanhar as reformas neoliberais a nível global – também impostas em boa parte
pelo Banco Mundial, devido a este estar sob controle dos países desenvolvidos.
Miranda (1997) explica que o paradigma de conhecimento veiculado em tais
diretrizes volta-se a uma racionalidade instrumental. Ao invés de um conhecimento
universal, há o conhecimento voltado às necessidades imediatas e pragmáticas. Para
Leher (1999, p. 11), a educação, tornando-se instrumental e baseada nos valores
neoliberais, detém conteúdos “fortemente carregados de ideologias apologéticas ao
capital e o debate educacional é pautado em grande parte pelos ‘homens de negócios’ e
pelos estrategistas políticos”. Gennari (2010) também nos auxilia a aprofundar sobre
esta questão, ao afirmar que isso só não é mais intenso devido à autonomia que os
professores ainda detém em sala de aula, expressa que:

Um profissional revoltado com suas condições de vida e de trabalho


ou um peixinho vermelho minimamente esperto podem alimentar o
senso crítico dos alunos e estimular no cardume a necessidade de se
rebelar perante as injustiças e se capacitar para deixar de ser mero
expectador da cena social. [...] tanto o Estado como os empresários já
perceberam a necessidade de arranhar esta liberdade do corpo docente
e de neutralizar as posições que divergem da lógica dominante.
(GENNARI, 2010, p.20).


613

As medidas do receituário neoliberal ocasionam, assim, a privatização e a


tecnicização do ensino, privilegiando uma formação deficitária em ensino crítico e
destituindo em grande parte a função docente de ensinar os fundamentos do
conhecimento científico.
Dentre as principais medidas que expressam o aprofundamento desse projeto,
estão: as tentativas de implementação de Organizações Sociais (instituições privadas)
para gerir a educação secundária em diversos estados; a permissão para o governo
delegar às Organizações Sociais a contratação de professores no Ensino Superior, em
conjunto com o congelamento de concursos públicos; intensos cortes no orçamento da
educação, ano a ano, fazendo-a cada vez mais dependente do capital privado; a
permissão da cobrança de mensalidades em cursos de pós-graduação públicos; Projeto
de Lei que institui a cobrança de mensalidade em cursos de graduação públicos; e
destacamos, por fim, as reorganizações escolares como ocorre no estado de São Paulo,
no ano de 2015.
Com esse projeto educacional em curso, não é mera coincidência que o PL
Escola sem Partido apareça com tanta força neste momento. A partir da compreensão do
projeto educacional, afirmamos que o PL Escola sem Partido, com suas concepções de
neutralidade, liberdade de consciência e pluralismo de idéias, detém o intuito de
aprofundar esse projeto. Pois o PL impede que o projeto educacional já em curso seja
questionado pela escola e seus educadores – alicerçando e perpetuando um ensino
pragmático, tecnicista e acrítico –intensificando o controle ideológico de um projeto de
educação. É a partir dessas questões que realizamos a discussão das consequências do
PL para a formação da consciência dos estudantes da educação formal.

4 O PL Escola sem Partido e seus impactos na Formação de Consciência

O projeto detém esse nome devido ao grupo que o apresentou, que se


autodenomina Movimento pela Escola sem Partido. O Projeto Escola Sem Partido (PL
867/2015) foi apresentado à câmara dos deputados no dia 23 de março de 2015, pelo
Deputado Izalci (PSDB-DF). Projetos semelhantes ou com o mesmo texto estão sendo
apresentados também em diversos estados e municípios. Até o momento, está em
análise por 9 assembleias legislativas e, pelo menos, 17 câmaras municipais, sendo que
o projeto já foi aprovado no estado de Alagoas. O PL 867/2015 detém nove artigos e
dois textos anexos, intitulados como [1] justificativas e [2] deveres do professor.


614

Dentre as noções presentes no PL, destacamos para discussão a defesa pela


neutralidade, o pluralismo de ideias e a liberdade de consciência. Essas concepções
estão delineadas, no PL, como princípios da educação nacional e dão base para as ações
defendidas pelo programa Escola sem Partido.
Porém, diante de um projeto educacional que visa perpetuar uma educação
fragmentada, expomos que o PL Escola sem Partido detém caráter ideológico ao
defender esses princípios. Pois a educação está calcada num conjunto de significados
que já reproduz os valores do modo de produção vigente. Ou seja, mesmo que haja
neutralidade por parte dos professores e da escola no momento do processo educacional,
há um conjunto de significados que já é veiculado.
Logo, consideramos que os princípios defendidos pelo PL expressam o embate
ideológico na educação, de forma geral, e na educação escolar, de forma específica.
Conforme exposto, a educação escolar pode tornar os estudantes mais conscientes da
realidade e da forma como agem e se posicionam frente ao mundo. Para tanto, é
essencial a apropriação e reflexão acerca dos conhecimentos historicamente
sistematizados, os quais possibilitam a decodificação abstrata da realidade concreta e o
enriquecimento do universo de significações instituinte da consciência. Entretanto, para
isso ocorrer é necessário que haja um processo de seleção e reflexão crítica sobre o
conteúdo do processo de ensino, por estudantes e professores. (SAVIANI; DUARTE,
2012; MARTINS, 2013b).
No PL do Programa Escola sem Partido, entretanto, há um artigo exclusivo aos
professores, proibindo ações ou afirmando o que devem fazer, com base nas concepções
de neutralidade e liberdade de consciência dos alunos. Isso impossibilita o docente de
direcionar os conteúdos educativos universais. O PL, portanto, ao defender a
neutralidade e liberdade de consciência, nega o conjunto ideológico de significados –
que já é imposto, não permitindo a liberdade de consciência –, e impossibilita a crítica,
por parte do educador, às concepções políticas que se conservam no projeto
educacional. Se os educadores se expressam contra o sistema de significações
naturalizado pelo projeto educacional eles podem ser considerados doutrinadores – por
não estarem sendo neutros à realidade.
O PL soma-se assim a outros aparatos que impedem a manifestação contra a
dominação de classe imposta, tal como a lei “Antiterrorismo” (lei 13.260/2016) – que
impede variadas formas de manifestação. Como exemplo, o PL Escola sem Partido
impede que os educadores possibilitem os alunos tomarem conhecimento de atos


615

públicos de manifestação política: “Art 4º, III – o professor não fará propaganda
político-partidária em sala de aula nem incitará seus alunos a participar de
manifestações, atos públicos e passeatas”. O PL, portanto, inviabiliza a atividade
política e impede manifestações de professores. Esse viés do projeto escancara ainda
mais a fundo os ideais do projeto educacional da classe dominante, como expressa
Frigotto (2013) ao se referir ao projeto de educação neoliberal:

[...] a questão da qualidade da educação está vinculada ao interesse e


luta de classes. Ou seja, a denominada qualidade total da educação na
ótica mercantil é aquela que desenvolve no educando os estritos
requisitos que lhes dão funcionalidade e adaptabilidade aos processos
produtivos, que faz bem feito dentro das especificações do que se
programa, que acredita que o que ganha é o justo de acordo com sua
função e entende que não lhes cabe a atividade política. (FRIGOTTO,
2013, p. 19).

Outra consequência desse aspecto de “naturalização” do sistema de significados


ideológicos é a conformação de consciências padronizadas aos moldes atuais de força
de trabalho. Isso ocorre pois, apesar de não se impedir que os sujeitos apropriem-se de
conceitos científicos por meio da educação formal, são conceitos selecionados, voltados
a determinadas áreas do conhecimento. Essas áreas do conhecimento, como vimos a
partir do receituário neoliberal, são conteúdos específicos da ciência e tecnologia,
voltados ao mercado; e conteúdos sociológicos e filosóficos provenientes também de
uma concepção de mundo e ser humano.
Assim, os educadores perdem sua função de deter um processo ativo dentro da
sala de aula, realizando questionamentos e reflexões acerca do conteúdo. Isso torna-se
explícito no 3º artigo do PL, que determina que: “são vedadas, em sala de aula, a prática
de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a
realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou
morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.”
O PL do Programa Escola sem Partido vai, ao contrário do que apregoa, na
contramão da liberdade de consciência e neutralidade. Isso porque legitima o conjunto
de significados ideológicos desenvolvidos nesta sociedade. Auxilia, portanto, para
conformar a consciência a partir de conceitos cindidos, a partir de uma sociedade
cindida – e não permite a contraposição a isso. Compreende-se, ainda, que o PL Escola
sem Partido em ligação ao projeto educacional, detém-se aos seguintes aspectos: a
intensificação das propostas organizativas e pedagógicas nas escolas que visam o ensino


616

acrítico e tecnicista; a formação de consciências padronizadas, obedientes, que


dificilmente irão se voltar contra o sistema vigente – ou seja, realiza um apaziguamento
indireto do descontentamento social.

Considerações finais

Mészáros (2006, p. 98) enfatiza que

[...] numa sociedade alienada o processo de redução em si mesmo, já


que é ‘inconscientemente’ determinado por uma série de necessidades
alienadas, está destinado a produzir maior alienação: a sujeição do
homem a instrumentos cada vez mais poderosos de sua própria
criação.

Sob tal lógica, consideramos que o PL é uma expressão de manutenção da


educação a serviço dos interesses dominantes. Nesse ponto, concluímos como
imprescindível o retorno aos fundamentos da psicologia histórico-cultural e da
pedagogia histórico-crítica. Isto pois estes possibilitam o entendimento de que a ciência
e seus fundamentos, sob a lógica do capital, tornam-se propriedade privada que
impulsionam o desenvolvimento das forças produtivas à custa da produção da miséria
da classe trabalhadora, bem como evidencia a urgência em revelar o véu ideológico que
encobre as relações postas – sendo estas teorias, portanto, ferramentas fundamentais de
contraposição ao PL Escola sem Partido.
Ressalta-se, então, o caráter de transformação que a educação formal pode gerar
num ensino fragmentado – e, consequentemente, na consciência dos sujeitos –,
tornando-o processo de “tomada de consciência”. (MARTINS, 2013).
Isso ocorre porque, segundo Almeida (2008, p. 84), por mais que a realidade das
relações crie um sistema de significados ideológico, é também, um sistema
contraditório. Afirma Almeida: “[...] a dinâmica social e, por conseqüência, a dinâmica
da personalidade desenvolvem-se com essas contradições. Ao transladarem-se para a
pessoa, os sistemas sociais internalizam-se como sistemas psicológicos em luta”.
Vigotski (2001) expressa que é possível haver modificações na consciência a
partir das contradições do real, o que nos leva à educação como possibilitando a
apresentação e superação dessas contradições. A educação formal pode auxiliar no
processo de destrinchar as contradições, aprofundar questionamentos, ir às raízes de
determinados conhecimentos.


617

Logo, a psicologia histórico-cultural e a pedagogia histórico-crítica postulam


que é necessário defender conhecimentos que caminhem para um processo de
humanização plena dos indivíduos, além de identificar quais são as condições pelas
quais opera a aprendizagem – se num contexto que gera indivíduos omnilaterais ou que
reproduzem a lógica de exploração de nossa sociedade. (MARTINS, 2013a).
Por fim, é com esta que concluímos este artigo, entendendo que o Projeto de Lei
Escola sem Partido é uma expressão de um movimento reacionário e autoritário, que
busca inviabilizar o papel revolucionário da educação. Em um última instância,
representa um embate ideológico, o qual evidencia a luta de classes presente na
educação.
Nesse sentido, é necessário realizar enfrentamentos que façam frente a uma
educação precária, privada, tecnicista e ideológica; e ainda mais, que almejam a
transformação desta sociedade. A revolução da consciência se realiza também por meio
da educação que traz à tona as contradições, fato que pode propiciar a transformação do
sistema de significados, do conhecimento ideológico – que se constrói nas relações
dentro e fora da escola.

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Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

K
OLLKOLLWITZ, Kathe. A marcha dos tecelões. 1897.
Gravura em água-forte, 21,6 x 29,5 cm.

GT4 – EDUCAÇÃO INCLUSIVA

O GT “Educação Inclusiva” intencionou reunir trabalhos que apresentassem resultados de


pesquisas parciais ou concluídas que, fundamentadas no materialismo histórico dialético,
destacassem direitos, cidadania e políticas de crianças, adolescentes e jovens em suas condições
socais, étnicas, de gênero e raciais, em articulação com o campo da educação e da escola; formas de
acolhimento e processos institucionais que incluíssem crianças e adolescentes; e processos instituintes
de inclusão de alunos com deficiência na diversidade de suas condições de vida.

GT5 –EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL E MOVIMENTOS SOCIAIS

O GT “Educação Não-Formal e Movimentos Sociais” objetivou acolher trabalhos que


apresentassem resultados de pesquisas parciais ou concluídas que tratassem da natureza e
especificidade da educação, a partir da teoria do conhecimento materialista histórico-dialético, da
teoria psicológica historico-cultural e da pedagogia histórico-crítica, em espaços formativos e em
relação com movimentos de luta social na cidade e no campo.



SUMÁRIO (GT4 e GT5)

POR UMA EDUCAÇÃO ESPECIAL PARA ALÉM DO CAPITAL:


CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL ............................................................................................ 622

PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL: A


DEFESA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO ATENDIMENTO
EDUCACIONAL ESPECIALIZADO ............................................................................ 635

EDUCAÇÃO NA CIDADE: A MODERNIZAÇÃO DA CIDADE DE VITÓRIA EM


DEBATE NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES.............................650

A RELAÇÃO TRABALHO-SAÚDE E A DOCÊNCIA NA EDUCAÇÃO ESPECIAL


........................................................................................................................................... 657


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016


POR UMA EDUCAÇÃO ESPECIAL PARA ALÉM DO CAPITAL:
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DA PSICOLOGIA
HISTÓRICO-CULTURAL1

Régis Henrique dos Reis Silva (UNICAMP)2

Resumo: O objetivo desse texto é discutir a possibilidade de desenvolvimento de uma educação


especial para além do capital. Para tanto, primeiramente trataremos das contradições da educação
especial brasileira na contemporaneidade. Na sequência, abordaremos, a partir de alguns apontamentos
sobre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural, suas contribuições para o
desenvolvimento da educação especial para além do capital. Por fim, recuperaremos, a partir do
exposto, as sínteses e articulações necessárias para demonstrar que a defesa da educação especial para
além do capital na escola brasileira é possível, não obstante, demanda uma práxis consubstanciada em
concepções de ser humano, educação e sociedade contrahegemônicas, nesse sentido, a própria defesa
da socialização do conhecimento por meio da escola à todas as pessoas, inclusive aos deficientes, faz
parte de um processo complexo de lutas de classes, particularmente aquelas realizadas no âmbito
educacional.

Palavras-chave: Deficiência; Pedagogia Histórico-Crítica. Psicologia Histórico-Cultural; Educação


Especial; Educação Inclusiva.

1 Contradições da educação especial brasileira na contemporaneidade

No nosso entendimento e de autores como Frigotto (2001), Saviani e Duarte (2012) e


outros, a sociedade capitalista vem sofrendo uma crise profunda, que tem como problemática
não mais a produção (material e não material) da riqueza, mas sua apropriação pelas
diferentes classes sociais.
Assim, essa crise tem provocado profundas mudanças no sistema do capital e de seu
metabolismo social, nas diferentes esferas sociais, em especial na produtiva, política e
ideológica. Por exemplo, na esfera produtiva, os últimos quarenta anos foram de
reestruturação e mudanças no mundo do trabalho, na economia e na política, a partir do final
dos anos 1970, tivemos o avanço da “mundialização do capital” e a ascensão do


1
Esse texto trata-se de uma versão revisada e ampliada do trabalho apresentado e publicado no Congresso
Pedagogia Histórico-Crítica: educação e desenvolvimento humano, na cidade de Bauru/SP, no ano de 2015.
2
Régis Henrique dos Reis Silva, Doutor em Filosofia e História da Educação, Universidade Estadual de
Campinas, São Paulo, Brasil. E-mail: regishsilva@gmail.com.


623

neoliberalismo como expressão política do modo de gerenciamento do capital capitaneado


pela Nova Direita Anglo-saxãe, na esfera ideológica, mais ou menos no mesmo período, mas
principalmente depois de 1968, deparamo-nos com um movimento de Recuo da Teoria.
(ANTUNES, 2009; PLATT, 2004; MORAES, 2001).
Em virtude do caráter associado-dependente do modo de inserção do Brasil no sistema
do capital, as referidas mudanças começaram a ocorrer de forma mais incisiva em nosso país,
nos últimos vinte anos, quando a organização social brasileira iniciou um processo de
profundas transformações políticas, econômicas e sociais. Essas transformações ocorreram
com maior ênfase a partir dos anos 1990, nos governos de Collor de Melo (1990-1992),
Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), quando o Brasil
iniciou um processo de reforma do estado e da educação, que visava intensificar a
internacionalização da economia brasileira face ao processo de reestruturação produtiva e às
mudanças no mundo do trabalho.
É oportuno observar que boa parte das reformas realizadas é oriunda das prescrições
neoliberais, concretizadas em acordos firmados com agências multilaterais (Banco Mundial,
Banco Interamericano de Desenvolvimento, Banco Internacional para Reconstrução e
Desenvolvimento, Fundo Monetário Internacional, Organização Mundial do Comércio,
Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Assim sendo, na
área educacional brasileira, a reforma realizada visou, entre outras coisas, à universalização da
educação básica, principalmente do ensino fundamental, conforme preconizavam as
conferências de Educação para Todos (Declaração de Jomtien - 1990) e sobre Necessidades
Educacionais Especiais (Declaração de Salamanca - 1994), das quais o Brasil foi signatário.
Assim, consubstanciadas em teorias educacionais de base econômica (Teoria do
Capital Humano), as declarações de Jomtien e Salamanca preconizavam a educação como
elemento do desenvolvimento humano, sob um tom marcadamente “humanista, com enfoque
multiculturalista”. (DI GIORGI, 1996).
Nesse contexto, nosso interesse por questões pessoais, institucionais e político-sociais
voltaram-se para a educação dos deficientes ou, de forma genérica, para a educação especial3.
Assim, a partir dos anos 1990, observamos que a educação especial brasileira passou por um
processo de redefinição do seu público e da sua organização, pois, embora haja controvérsia


3
Conforme Bueno (1993, p. 37), até os anos 1950, no Brasil, “praticamente não se falava em educação especial,
mas na educação de deficientes”. Entretanto, o termo Educação Especial, ou sua abreviatura “EEs”, é
genericamente empregado.



624

sobre as traduções da Declaração de Salamanca, como bem indica Bueno (20084), a área, pelo
menos no plano da retórica, começou a se orientar pelos princípios inclusivistas5. Entretanto,
as controvérsias sobre o modelo inclusivista (educação inclusiva ou inclusão total6) são
oportunas para a observação de que a inclusão escolar de alunos com necessidades
educacionais especiais7 ganhou destaque nos eventos políticos, científicos e até na própria
LDBEN n. 9394/96, a qual dedicou o Capítulo V com três artigos (do 58 ao 60) à educação
especial.
Nessa lei, o atendimento aos alunos com necessidades especiais foi definido como
dever do estado e que sua educação deveria ser pública, gratuita e preferencialmente na rede
regular de ensino. Assim, a EEs, que até então estava à parte do sistema educacional comum
de ensino, passou a se situar como modalidade da educação escolar, oferecida
preferencialmente no ensino regular.
É oportuno observar que, embora a luta pela educação do deficiente no Brasil tenha
ganhado impulso com o movimento da Educação Inclusiva, essa luta tem registros de longa
data na historiografia da educação brasileira.
Nesse sentido, a partir das considerações dos autores consultados e no levantamento
realizado, foi possível identificar e caracterizar três fases (ou períodos) a respeito da
constituição da área de EEs no Brasil, que apresentamos na sequência uma breve síntese de
cada uma delas8.
1. Primeiras iniciativas da educação do deficiente no Brasil: tentativas de
institucionalização (Século XVI a 1930): A primeira fase da educação do deficiente no
Brasil compreende o período do século XVI a 1930 e caracteriza-se pelas primeiras iniciativas


4
Segundo o autor, a primeira tradução impressa da Declaração de Salamanca, publicada pela Coordenadoria
Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - CORDE, em 1994, assumia uma orientação
integradora. Já em 2007, essa mesma coordenadoria altera essa tradução com a substituição de integração por
inclusão, o que gera um dilema conceitual e de fundamentação política (BUENO, 2008).
5
Segundo Stainback e Stainback (apud DORÉ et al.,1997, p. 176), “[...] trata-se de um novo paradigma [...] a
noção de ‘full inclusion’ prescreve a educação de todos os alunos nas classes e escolas de bairro [...] reflete mais
clara e precisamente o que é adequado: todas as crianças devem ser incluídas na vida social e educacional da
escola e classe de seu bairro, e não somente colocada no curso geral (‘mainstream’) da escola e da vida
comunitária, depois de ele já ter sido excluído”.
6
Ver Mendes (2006).
7
Termo utilizado para se referir não só às pessoas com deficiência, mas a todas as pessoas “excluídas” da escola
e da sociedade, como os negros, os índios, as mulheres, os pobres e as demais minorias sociais (MENDES,
2006).
8
Sobre essas fases, é importante destacarmos que os marcos cronológicos utilizados para sua elaboração não são
“camisas de força” e muito menos unânimes, mas, sim, um modo aqui estabelecido para tratar as temáticas. No
caso das fases da EEs brasileira, articulamos o esquema de organização do processo de criação e
desenvolvimento da Educação do Deficiente no Brasil elaborado por Jannuzzi (2006) com a discussão das
políticas de EEs na perspectiva da Educação Inclusiva desenvolvida pelo Governo brasileiro na transição dos
anos 1990 para os anos 2000.



625

de encaminhamento da questão, com algumas tentativas de institucionalização. (JANNUZZI,


2006).
2. Maior participação da sociedade civil e política na educação do deficiente: tentativas
de escolarização (1930-1973): A segunda fase da educação do deficiente no Brasil
compreende o período de 1930 a 1973 e caracteriza-se pela maior participação da sociedade
civil e política, com algumas tentativas de escolarização, principalmente em instituições
especializadas de caráter filantrópico. (JANNUZZI, 2006).
3. As políticas sociais de equidade: os princípios integracionistas e inclusivistas nas
políticas educacionais do estado gestor (1973-20..): A terceira fase da educação do
deficiente no Brasil compreende o período de 1973 aos dias atuais e caracteriza-se pela
institucionalização da EEs no país com a criação de órgãos normativos em âmbito federal e
estadual, bem como pela promoção de políticas sociais de equidade por parte desses
organismos. Essas políticas sociais, consubstanciadas nos princípios integracionistas9 e
inclusivistas, foram responsáveis pela “[...] instalação de um verdadeiro subsistema
educacional, com a proliferação de instituições públicas e privadas de atendimento ao
excepcional [...]”.(BUENO, 1993, p. 37).
Situando o debate nos fatos e acontecimentos mais recentes, os aspectos históricos da
terceira fase da EEs brasileira evidenciam que, nos últimos 30 anos, a política de “integração
escolar” provocou a expansão das classes especiais na escola pública, mas ao mesmo tempo
favoreceu o processo de exclusão na escola regular. Já nos últimos 15 anos
(aproximadamente), as classes especiais e as escolas especiais privadas e filantrópicas vêm
sendo substituídas pelas salas de recursos (atual sala de atendimento educacional
especializado), porém de modo precário, visto que boa parte dos alunos com necessidades
especiais, inserida nas salas de aula da escola regular, está sem receber nenhum tipo de
suporte para a escolarização. E isso produziu o fenômeno que Freitas (2002) intitulou de
“inclusão-excludente” para se referir à lógica perversa escondida nas políticas de
universalização da educação básica, que recorrem à progressão continuada e aos ciclos de
escolarização.


9
Normalização/integração e mainstreaming – Princípio evocado no Brasil, em fins dos anos 1970 e início dos
anos 1980, cuja proposta básica consistia em oferecer ao excepcional as condições de vida idênticas às de outras
pessoas, e assim minimizar as diferenças e potencializar as semelhanças, reconhecendo nos excepcionais as suas
potencialidades. Por isso, há a ênfase no discurso da integração (mainstreaming), pois o princípio da
normalização demandava a necessidade de integração progressiva do excepcional com os considerados normais,
inclusive no processo de escolarização, o que requeria aproximação política, administrativa e pedagógica entre
os ensinos regular e especial (JANNUZZI, 2006, p.180-181).



626

Desse modo, autores consubstanciados nos teóricos marxistas, no materialismo


histórico-dialético, e empenhados no desenvolvimento de suas análises da apreensão da
educação como parte da organização social (educação como mediação) vêm contribuindo para
a compreensão da problemática educacional das pessoas com necessidades especiais,
principalmente para a lógica das políticas de equidade social.
Nesse sentido, os estudos de Garcia (2004), Platt (2004), Kassar (2011), entre outros,
revelam que os princípios da economia da educação estão na base das políticas equitativas, as
quais, baseadas nos princípios integracionistas e inclusivistas, “camuflam-se” de retórica
democrática. Isso porque esses princípios fazem parte do movimento de Educação para
Todos, que, apoiados em teorias educacionais de bases econômicas (Teoria do Capital
Humano), visam ao desenvolvimento humano, enquanto ideologia, como recurso necessário
para o desenvolvimento econômico. Assim sendo, esse movimento não almeja equacionar as
desigualdades sociais (diferença substantiva), mas, por meio de políticas sociais
compensatórias, minimizá-las para a constituição de uma coesão social, constituindo o que a
literatura vem intitulando de “formação de uma cultura comum”, conforme a execução de
uma “agenda globalmente estruturada”. (PLATT, 2004; VILARINHO NETO, 2011;
DRAIBE; RIESCO apud KASSAR, 2011).
Portanto, trata-se, segundo Sanfelice (2006), de uma política compensatória dentre
outras avaliadas por indicadores quantitativos mais do que qualitativos. No caso do Brasil,
essas políticas começaram a ser implantadas nos anos 1990, nos governos Collor de Melo
(1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com a
reforma do estado e da educação. Não obstante, foi a partir dos anos 2000, no governo Lula,
que essas políticas foram potencializadas com a implantação de políticas sociais via gestão
por editais, como estratégia de indução do modelo educacional assumido pelo governo,
principalmente na área de educação especial.
Como afirmam Garcia e Michels (2011, p. 115):

A organização da política de Educação Especial nos últimos anos pode ser


caracterizada como uma “política de resultados”, ou seja, um
privilegiamento de efeitos que mostrem vantagens na relação custo/benefício
tais como maior número de alunos matriculados na relação com os
investimentos financeiros. Tais resultados são constitutivos de uma gestão
gerencial articulada à racionalização das atividades estatais e que não se
atém a uma análise mais qualitativa da educação. Essa concepção de gestão
implica uma tentativa de imposição do próprio processo de implantação da
política quando define quais são as tarefas locais e como devem ser
desenvolvidas.



627

Assim, apesar desses problemas e dificuldades, estamos diante de um movimento


contraditório, visto que uma “agenda globalmente estruturada10” concilia interesses do estado
neoliberal com as reivindicações dos movimentos sociais de e para deficientes11. E, neste
caso, a contradição é latente, porque, ao mesmo tempo em que se trata de uma ideologia
importada de países do centro do capital com sérios prejuízos para a maior parte da população
brasileira, pois não contempla mudanças estruturais na sociedade, não podemos negar que
essas políticas vêm alterando a relação da educação regular com a educação especial, ou pelo
menos minimizando o distanciamento que havia entre elas. Também, do lado da educação
especial, elas vêm se aproximando dos problemas e movimentos sociais de luta da educação
regular, particularmente a defesa pela escola pública, laica, gratuita e de qualidade para todos.
Assim sendo, essas políticas, diante das contradições existentes na dinâmica social
mais ampla e das contradições da realidade educacional em particular, podem, quem sabe, vir
a se constituir como uma estratégia de superação dos problemas educacionais brasileiros. Pois
essas políticas, conforme a perspectiva assumida para debatê-las e a teoria pedagógica para
desenvolvê-las, podem possibilitar aos educadores e à sociedade em geral ir “à raiz” dos
problemas sociais e educacionais, favorecendo a compreensão histórica das diferenças e dos
mecanismos explícitos e implícitos de exclusão educacional e social como elementos
justificadores das desigualdades sociais, em especial da acumulação privada dos meios de
produção e da exploração do ser humano pelo ser humano. Além disso, uma escola pública,
laica, gratuita e de qualidade para todos, inclusive para as pessoas com deficiência e/ou
necessidades especiais, não poderá surgir enquanto existirem mecanismos tão efetivos de
exclusão e seletividade social, como os praticados pela escola brasileira.
Após essas considerações gerais sobre a educação do deficiente e da educação especial
brasileira, discutiremos, no próximo tópico, as contribuições que a pedagogia histórico-crítica,
enquanto formulação coletiva que está em construção, pode oferecer para o desenvolvimento


10
Agenda da ONU para o combate à discriminação dos deficientes - 1981: Ano Internacional da Pessoa
Deficiente; 1982: Programa de Ação Mundial para as Pessoas Deficientes (PAM); 1983 a 1992: Década das
Pessoas Deficientes.
11
Em 1980, ocorreu o I Encontro Nacional de Entidades de Pessoas Deficientes, a partir do qual se
consolidaram várias entidades representativas das categorias de pessoas com deficiências, assim como, no ano de
1981, foi promovido pela ONU o “Ano Internacional das Pessoas Deficientes” (AIPD). Segundo Jannuzzi
(2006), esse evento sintetizou o espírito da luta das pessoas com deficiência e contribuiu para solidificar a
participação dessa população na discussão de seus próprios problemas. Por isso, o trocadilho das palavras de e
para ao nos referirmos aos movimentos sociais dos deficientes, pois cada vez mais foram constituindo
movimentos sociais de deficientes (fundadas e dirigidas por deficientes) e não só para deficientes (geralmente
fundadas e dirigidas por pessoas não deficientes).



628

de uma educação especial para além do capital, principalmente por meio da sua aproximação
com a psicologia histórico-cultural.

2 Alguns apontamentos sobre a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-


cultural

Segundo Duarte e Saviani (2012), boa parte das ideias hegemônicas na educação em
tempos recentes centra-se na crítica à “metafísica do sujeito”, particularmente a crítica à
razão, à consciência, à verdade e à objetividade do conhecimento. Os referidos autores
intitulam esse movimento de neopragmatismo, o qual, no esforço de se opor à referida
metafísica, torna-se ele próprio fortemente metafísico, reduzindo tudo à linguagem. Como
contraponto a esse movimento, Duarte e Saviani (2012) apresentam a perspectiva histórico-
ontológica da formação humana (radicalmente antimetafísica), particularmente o pensamento
de Marx e sua filosofia historicizada contida nos Manuscritos Econômico-filosóficos, de
1844.
Pois é justamente a partir dos esforços de construção de uma pedagogia concreta
(pedagogia histórico-crítica) de inspiração marxiana e marxista, os quais foram realizados
inicialmente por Saviani, há pouco mais de 30 anos, que um coletivo de professores e
pesquisadores passou a se empenhar na apreensão dos elementos fundantes do materialismo
histórico-dialético, tanto nos aspectos ontológicos como epistemológicos e metodológicos,
passando assim a contribuir para o desenvolvimento da referida pedagogia.
Conforme Duarte (2012), a partir da análise de trechos da obra de Saviani, é possível
identificar elementos que podem contribuir para uma ontologia da educação, dentre elas as
definições de ato educativo e trabalho educativo. Nestas são evidenciadas as características
basilares das obras de Saviani, quais sejam: a busca pela superação da dualidade entre
essência e historicidade; e o seu esforço de que uma teoria marxista da educação possa ser
também uma pedagogia marxista. Desse modo, iniciamos nossos apontamentos sobre a
pedagogia histórico-crítica com a recuperação da natureza e a especificidade da educação, a
partir do conceito de trabalho educativo desenvolvido por Saviani (2008):

[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida sobre
a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato
de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos
homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à
identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos



629

indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro


lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para
atingir esse objetivo. (SAVIANI, 2008, p. 13).

Observem que, para Saviani (2008), um problema central para a educação, o qual
constituirá em seu objeto de estudo, é a identificação do quê e como ensinar. Logo,

[...] os diferentes tipos de saber não interessam em si mesmos; eles


interessam, sim, mas enquanto elementos que os indivíduos da espécie
humana necessitam assimilar para que se tornem humanos. Isto porque o
homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem,
vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber
pensar e sentir; para saber querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que
implica trabalho educativo. Assim, o saber que diretamente interessa à
educação é aquele que emerge como resultado do processo de aprendizagem,
como resultado do trabalho educativo. Entretanto, para chegar a esse
resultado, a educação tem que partir, tem que tomar como referência, como
matéria-prima de sua atividade, o saber objetivo produzido historicamente.
(SAVIANI, 2008, p. 7).

Desse modo, um elemento que reforça a noção do trabalho educativo, como natureza e
especificidade da educação, conforme apresentado por Saviani (2008), é a possibilidade da
sua institucionalização, que foi o que ocorrera com o advento da sociedade moderna, quando
o trabalho educativo foi institucionalizado pela escola, que se constituiu como instituição
responsável pela socialização do saber sistematizado. Segundo Saviani (2008, p. 7):

[...] Esta passagem da escola à forma dominante de educação coincide com a


etapa histórica em que as relações sociais passaram a prevalecer sobre as
naturais, estabelecendo-se o primado do mundo da cultura (o mundo
produzido pelo homem) sobre o mundo da natureza. Em consequência, o
saber metódico, sistemático, científico, elaborado, passa a predominar sobre
o saber espontâneo, “natural”, assistemático, resultando daí que a
especificidade da educação passa a ser determinada pela forma escolar.

Entretanto, o fato de o saber ser sistematizado não significa dizê-lo que é neutro.
Assim sendo, Saviani (2008) pondera que não podemos cair na falácia positivista, que
identifica objetividade e neutralidade, pois, embora não exista conhecimento desinteressado,
“a objetividade é possível porque não é todo interesse que impede o conhecimento objetivo.
Há interesses que não só não impedem como exigem a objetividade”. Por isso, Saviani refere-
se ao saber objetivo produzido historicamente. (SAVIANI, 2008, p. 8).
Então Saviani (2008) afirma que a tarefa a que se propõe a pedagogia histórico-crítica
em relação à educação escolar implica em:



630

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições de sua
produção e compreendendo as suas principais manifestações, bem como as
tendências atuais de transformação.
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar, de modo que se torne
assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares.
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o processo
de sua produção, bem como as tendências de sua transformação (SAVIANI,
2008, p. 9).

Desse modo, considerando a necessidade de definição de um critério para a


identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados, Saviani (2008) sugere
trabalharmos com a noção de clássico, que

[...] não se confunde com o tradicional e também não se opõe,


necessariamente, ao moderno e muito menos ao atual. O Clássico é aquilo
que se firmou como fundamental, como essencial. Pode, pois, constituir-se
num critério útil para a seleção dos conteúdos do trabalho pedagógico.
(SAVIANI, 2008, p. 14).

A respeito da descoberta das formas adequadas de desenvolvimento do trabalho


pedagógico, Saviani (2008, p. 14) observa que essa questão “[...] trata-se da organização dos
meios (conteúdos, espaço, tempo e procedimentos) através dos quais, progressivamente, cada
indivíduo singular realiza, na forma de segunda natureza, a humanidade produzida
historicamente”. Portanto, a partir das elaborações de Saviani (2008), podemos afirmar que,
no horizonte da pedagogia histórico-crítica, está a constituição de uma escola que supere a
escola tradicional e a escola nova. Nesse sentido, inclusive, Saviani, ao ponderar sobre os
embates entre a escola tradicional e a escola nova, recupera uma transcrição de Gramsci como
forma de sinalização de uma perspectiva superadora das referidas escolas:

Deve-se distinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada
pelo método Dalton. Toda escola unitária é escola ativa, se bem que seja
necessário limitar as ideologias libertárias nesse campo [...]. Ainda se está na
fase romântica da escola ativa, na qual os elementos da luta contra a escola
mecânica e jesuítica se dilataram morbidamente por causa do contraste e da
polêmica: é necessário entrar na fase “clássica”, racional, encontrando nos
fins a atingir a fonte natural para elaborar os métodos e as formas
(GRAMSCI apud SAVIANI, 2008, p. 17-18).

Na transcrição a seguir, Saviani é mais elucidativo ainda. Vejamos então:

Às vezes me dá a impressão de que, passados mais de cinquenta anos,


continuamos ainda na fase romântica. Não entramos na fase clássica. E o que
é a fase clássica? [...]



631

Ora, clássico na escola é a transmissão-assimilação do saber sistematizado.


Este é o fim a atingir. É aí que cabe encontrar a fonte natural para elaborar os
métodos e as formas de organização do conjunto das atividades da escola,
isto é, do currículo. E aqui nós podemos recuperar o conceito abrangente de
currículo: organização do conjunto das atividades nucleares distribuídas no
espaço e tempo escolares. Um currículo é, pois, uma escola funcionando,
quer dizer, uma escola desempenhando a função que lhe é própria.
Vê-se, assim, que para existir a escola não basta a existência do saber
sistematizado. É necessário viabilizar as condições de sua transmissão e
assimilação. Isso implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe
gradativamente do seu não domínio ao seu domínio. Ora, o saber dosado e
sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no espaço escolar,
ao longo de um tempo determinado, é o que nós convencionamos chamar de
“saber escolar”. (SAVIANI, 2008, p. 18).

Em síntese, as contribuições da pedagogia histórico-crítica para o desenvolvimento de


uma educação especial para além do capital estão nos pressupostos filosóficos, na proposta
pedagógico-metodológica e no significado político da sua realização, porque, ao se
fundamentar em bases marxianas e marxistas, leva à compreensão, sob a valorização da
história, da educação e do ser humano que educa.
É nesse sentido que a pedagogia histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural irão
se aproximar e contribuir, uma com a outra, para a educação escolar das pessoas com e sem
deficiência. Por isso, não podemos deixar de mencionar a importância da perspectiva
assumida por Vygotsky, no que se refere à constituição social do psiquismo e ao papel da
mediação para a formação das funções superiores psicológicas.
Como afirma Barroco (2011), os trabalhos desenvolvidos por Vygotsky e por outros
psicólogos russos e soviéticos são contribuições marcantes para a educação especial soviética
e não soviética, porque enfatizam que todas as pessoas (deficientes e não deficientes) podem
ser educadas, face o caráter histórico-cultural de formação de seus psiquismos. No caso dos
deficientes que apresentem algum déficit de origem orgânica, como cegueira, surdez,
paraplegia etc, segundo Vygotsky, esse déficit não se constitui necessariamente como um
fator limitador do desenvolvimento, mas o seria, sim, as condições sócio-históricas. Como
afirmam Vygotsky e Luria (apud BARROCO, 2011, p. 173),

[...] as pessoas com deficiência, mesmo tendo grandes especificidades em


seus desenvolvimentos, podem e devem frequentar a escola, e o que esta lhes
ensina deve projetá-las a outro patamar, deve transformá-las, metamorfoseá-
las, deve contribuir para que passem de crisálidas a borboletas [...]. Essa
seria, pois, a escola que poderíamos chamar de inclusiva.

Assim sendo, concordamos com Barroco (2011) quanto à necessidade de que a


formação de psicólogos e de educadores valorize a história e a filosofia, particularmente os



632

conteúdos clássicos dessas áreas, no intuito de que a prática profissional e pedagógica deles
supere os treinos sensoriais e assuma uma perspectiva mais ampla de desenvolvimento
humano.
Acreditamos que essa perspectiva inspirará outra proposta de educação especial, a qual
ganhará materialidade com as defesas marxistas de educação escolar contempladas na
pedagogia histórico-crítica, assim como coincidirá com as concepções de ser humano,
educação e sociedade presentes na referida pedagogia e na psicologia histórico-cultural.

3 Pedagogia histórico-crítica e educação especial na luta de classes da educação escolar


brasileira

A contribuição da pedagogia histórico-crítica está nos pressupostos filosóficos, na


proposta pedagógico-metodológica e no significado político da sua realização, pois, como
dissemos anteriormente, na esfera ideológica temos vivenciado um processo de Recuo da
Teoria. (MORAES, 2001).
Nesse processo, diversas teorias vêm propagandeando o caos, a impossibilidade de
apreensão da realidade, formulando uma tendência teórica de ceticismo epistemológico e
relativismo ontológico de diferentes níveis, cujo resultado praxiológico tem sido a aceitação
e/ou conformação de um quadro social conservador, em que, no limite, as mudanças sociais
possíveis são conjunturais e orientadas por uma lógica pragmática e individualista. Portanto,
como não concordamos com essa visão, aproximamo-nos das perspectivas teóricas que
afirmam a inteligibilidade do real (a realidade existe e é possível apreendê-la) e a sua
superação em termos estruturais.
Assim, no campo particular da educação, encontramos a pedagogia histórico-crítica,
que, além de não aderir ao ceticismo epistemológico e relativismo ontológico, assim como a
psicologia histórico-cultural, defende a apropriação da cultura por meio do ensino
sistematizado e a transmissão de conhecimentos clássicos como função precípua da Escola.
Ao mesmo tempo, visualiza nesta a possibilidade de se constituir um lócus de compreensão da
marginalização, inclusive dos deficientes – suas origens, desdobramentos e os mecanismos
para seu enfrentamento. Sendo assim, as duas teorias sinalizam para a possibilidade de uma
práxis transformadora a partir da escola.
Conforme Duarte e Saviani (2012, p. 2), há uma contradição que marca a história da
educação escolar na sociedade capitalista. “Trata-se da contradição entre a especificidade do



633

trabalho educativo na escola [...] e o fato de que o conhecimento é parte constitutiva dos
meios de produção que, nesta sociedade, são propriedade do capital [...].”

Assim, segundo os autores, a referida contradição, por ser dinâmica, pode produzir
movimento pelo menos em duas direções: uma conforme os interesses da classe dominante,
representada pela precarização da escola pública, e outra, de acordo com os interesses da
classe trabalhadora, representada pela realização da função precípua da escola, qual seja a
socialização do conhecimento como eixo central de todas as atividades realizadas no seu
interior.
Portanto, os autores ponderam que a luta pela realização da função precípua da escola
pública, “[...] por si mesma, não revolucionará a sociedade pelo simples fato de que a escola
não tem o poder de mudar a sociedade”. Porém, a efetivação da revolução como
transformação consciente da realidade social atual por uma nova forma de regulação das
relações sociais de modo superior, em outras palavras, qualitativamente superior ao modo de
regulação vigente, é uma tarefa complexa e altamente desenvolvida no que se refere ao
processo criativo, o qual não se faz sem a apropriação do que existe de melhor no patrimônio
cultural da humanidade. (SAVIANI; DUARTE, 2012, p. 4).
Por isso, a defesa da escola pública como lócus privilegiado de transmissão-
assimilação do conhecimento historicamente produzido pelos seres humanos coincide com a
luta pelo socialismo, inclusive com a luta pelos direitos sociais dos deficientes (tratando-se,
neste caso, de superação por incorporação).

Referências

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São Paulo, SP: Boitempo, 2009. 287 p. (Coleção Mundo do Trabalho)

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Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2006.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E PSICOLOGIA HISTÓRICO-


CULTURAL: A DEFESA DO DESENVOLVIMENTO HUMANO NO
ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO

Ivone Rodrigues dos Santos (PPGE/UFG-GO) 1


Régis Henrique dos Reis Silva (PPGE/UFG-GO e FE/UNICAMP) 2

Resumo: Este texto, de natureza bibliográfica, tem como objetivo discutir as contribuições da
Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural para o trabalho educativo no
Atendimento Educacional Especializado, levando em conta o papel da escola e a concepção de
desenvolvimento humano defendido por estas teorias em contraposição as atuais orientações da
Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. A discussão
destaca que ao ser orientado por uma pedagogia de base produtivista as orientações legais para
este atendimento estão esvaziadas de uma atividade de caráter formativo e problematiza as
estratégias e os desafios observados para sua efetivação, apontando os posicionamentos
defendidos pelas duas perspectivas teóricas citadas anteriormente, como possibilidades para a
orientação da prática pedagógica.

Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica. Psicologia Histórico-Cultural. Atendimento


Educacional Especializado. Desenvolvimento humano.

Introdução

Esse texto, de natureza bibliográfica, tem como objetivo discutir as


contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia Histórico-Cultural para o
trabalho educativo no Atendimento Educacional Especializado, considerando a
necessidade de uma teoria norteadora para uma prática pedagógica efetivamente
inclusiva e comprometida com as formas mais adequadas de dirigir o desenvolvimento
humano.
A proposta de educação inclusiva apresentada nas novas diretrizes para o
sistema educacional, tendo em vista a Política Nacional de Educação Especial na
Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEE-EI), compreende a Educação Especial como


1
Ivone Rodrigues dos Santos. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Goiás (PPGE/UFG – GO), Brasil. ivonesantospsico@hotmail.com
2
Régis Henrique dos Reis Silva. Doutor em Educação pela Unicamp. Professor da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Goiás (PPGE/UFG-GO) e da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), Brasil regishsilva@gmail.com


636

modalidade responsável pela educação de pessoas que apresentam deficiências ou um


transtorno específico no desenvolvimento, atualmente compreendidos como alunos com
deficiência nas áreas intelectual, física, visual, auditiva ou com altas
habilidades/superdotação e transtornos globais do desenvolvimento, apontando o
Atendimento Educacional Especializado (AEE) como principal suporte às necessidades
específicas desses educandos. (BRASIL, 2008).
Embora reconheçamos as singularidades no desenvolvimento e na aprendizagem
dos alunos atendidos por esta modalidade de ensino, entendemos que as práticas
educativas realizadas no Atendimento Educacional Especializado não devem
apresentar-se de forma dissociada dos processos gerais da educação. Partimos do
pressuposto que a finalidade da educação especial tem os mesmos objetivos da
educação como um todo, sendo de influência e intervenções planejadas, com objetivos
premeditados e conscientes nos processos de crescimento e desenvolvimento natural do
organismo. Compreende-se que a transmissão de conhecimento científico como
finalidade precípua da escola, além de visar equiparação de condições, é determinante
para crianças com e sem deficiências terem autonomia e apropriação das formas mais
desenvolvidas do saber objetivo produzido historicamente. (VYGOTSKY, 1999).
Não obstante, a organização e orientação para a oferta desse atendimento
encontram estreitas filiações ao modo pelo qual está constituída a sociedade. Por
estarem vinculadas ao conjunto das políticas sociais, as orientações legais no campo
educacional apresentam-se interligadas com as mudanças e transformações políticas,
sociais, econômicas e culturais da sociedade contemporânea, vinculando a educação ao
desenvolvimento econômico do país e erigindo o processo educativo em consonância
com o plano hegemônico e com determinações materiais que sustentam os interesses do
sistema capitalista. Por este viés, a discussão sobre a organização e estruturaçao dos
meios (conteúdos, espaço, tempo e procedimentos), para o atendimento direcionado ao
deficiente também está alinhado com as relações produtivas necessária ao mercado de
trabalho.
Fundamentado em princípios de base produtivista, as vertentes pedagógicas que
subjazem à organização da atual política educacional são orientadas por uma pedagogia
de tendência tecnicista, inspiradas nos princípios de racionalidade, eficiência e
produtividade, defendendo a educação como algo objetivo e operacional (SAVIANI,
2012).



637

Em decorrência, as normativas legais para o Atendimento Educacional


Especializado enfatizam orientações técnicas e operacionais para a oferta e estruturação
desse serviço secundarizando, pois, a especificidade do trabalho pedagógico e as
particularidades do desenvolvimento da pessoa com deficiência. (BRASIL, 2008, 2009,
2010a, 2011).
Neste contexto, questionamos em que medida a centralidade dessas políticas e
das bases teórico-pedagógicas que fundamentam a operacionalização desse atendimento
direcionam os propositos pedagógicos do AEE de forma a organizar, planejar e
estruturar um ensino que ultrapasse o determinismo biológico, possibilitando condições
individuais para que o aluno possa entrar em contato com o currículo e tenham acesso à
educação e aos conhecimentos, a fim de que tais garantias não tenham como
consequencia uma inclusão excludente3.
Diante desse contexto de contradiçao entre inclusão e exclusão, e considerando
que os fundamentos da Educação Especial estejam assentados nos direitos essenciais do
ser humano de participar da educação oferecida a todos, visto que as suas finalidades
são as mesmas, encontramos na Pedagogia Histórico-Crítica e na Psicologia Histórico-
Cultural possibilidades de tomada de consciência sobre os mecanismos que determinam
os processos de ensino-aprendizagem e as possibilidades de superação. A contribuição
dessas duas perspectivas teóricas é sinalizada por Silva (2014, p. 86) como sendo
possibilidade de uma práxis transformadora a partir da escola. De acordo com o autor,

[...] a pedagogia histórico-crítica, que, além de não aderir ao ceticismo


epistemológico e relativismo ontológico, assim como a psicologia
histórico-cultural, defende a apropriação da cultura por meio do
ensino sistematizado e a transmissão de conhecimentos clássicos
como função precípua da Escola. Ao mesmo tempo, visualiza nesta a
possibilidade de se constituir um lócus de compreensão da
marginalização, inclusive dos deficientes – suas origens,
desdobramentos e os mecanismos para seu enfrentamento.

Para tanto, apresentamos as projetivas enfatizadas pela Educação Especial para o


Atendimento Educacional Especializado, apontando os posicionamentos defendidos por
esta duas perspectivas teóricas como possibilidades para a orientaçao da prática
pedagógica deste atendimento.


3
Expressão utilizada por Demerval Saviani para referir-se a uma característica da concepção pedagógica
dominante que manifesta-se no terreno educativo. Nessa, a estratégia consiste em incluir estudantes no
sistema escolar, em cursos de diferentes níveis e modalidades, sem padrões de qualidade exigidos para o
ingresso no mercado de trabalho. (SAVIANI, 2013a).



638

1 Pedagogia Histórico-Crítica e Psicologia Histórico-Cultural: contribuições para o


trabalho educativo no Atendimento Educacional Especializado

Quando discutimos a educação da pessoa com deficiência ou com um transtorno


específico no desenvolvimento, a partir da Pedagogia Histórico-Crítica e da Psicologia
Histórico-Cultural, estamos assumindo o pressuposto da natureza social do
desenvolvimento e do conhecimento especificamente humano, partindo do princípio
que o desenvolvimento e aprendizagem dizem respeito às experiências do sujeito no
mundo com base nas interações, destacando, assim, a defesa sobre a natureza e a
especificidade da educação neste processo. Essa defesa se faz necessário porque a
educação é a forma cultural de transmitir as novas gerações os conhecimentos
elaborados historicamente pela humanidade. Segundo Saviani (2013, p. 13),

[...] a natureza humana não é dada ao homem, mas é por ele produzida
sobre a base da natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho
educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada
indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação
diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que
precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à
descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.

Os aspectos fundamentais da abordagem Vigotskiana, que trata da concepção da


pessoa com deficiência, parte da compreensão que o princípio de desenvolvimento
cognitivo e da personalidade é o mesmo, seja para a criança com ou sem deficiência.
Com base nesta perspectiva teórica, a deficiência não é fator impeditivo do
desenvolvimento e sim uma condição com a qual a pessoa convive, podendo se
constituir como um poderoso estímulo para a reorganização do psiquismo do sujeito.
(VYGOTSKY, 1997).
Os estudos de Vygotsky (1997, p. 153) apontam que a criança com deficiência
atinge o desenvolvimento por meio de substituição de vias usualmente utilizadas pela
criança normal, ressaltando que “[...] onde é impossível o desenvolvimento orgânico, ali
está aberta de modo ilimitado a via do desenvolvimento cultural”4. Partindo dessa


4
A tradução desta citação do espanhol para o português, assim, como as demais apresentadas neste
trabalho, são de nossa responsabilidade.



639

compreensão, a perspectiva vigotskiana não valoriza as dificuldades provindas do


defeito, mas as potencialidades que podem ser desenvolvidas.
Para Vygotsky e Luria (1996), a diferença básica entre esses dois grupos está na
dificuldade da criança com deficiência utilizar recursos (instrumentos) e signos culturais
de forma a contemplar os aspectos fundantes do desenvolvimento humano, como
memória mediada, abstração, pensamento verbal, atenção voluntária, percepção dirigida
e voluntária, etc., próprios das funções psicológicas superiores. Contudo, essa
dificuldade não determina as possibilidades de desenvolvimento.
Leontiev (1978, p.267), esclarece que a ampliação dessas capacidades são
produtos da vida social e não biológica, pois, “[...] cada individuo aprende a ser um
homem. O que a natureza lhe dá quando nasce não lhe basta para viver em sociedade. É
lhe, ainda, preciso adquirir o que foi alcançado no decurso do desenvolvimento
histórico da sociedade humana”.
Com base neste pressuposto, a educação que se propõe aos alunos que
necessitam do Atendimento Educacional Especializado deve fazer parte do processo
geral de educação, assegurando a transmissão do saber sistematizado, permitindo o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Agindo assim, compreende-se
que o processo educacional pode elevar o homem da sua condição primitiva a forma
cultural, ultrapassando o determinismo biológico e ao mesmo tempo, percebendo que a
deficiência não retira do homem a sua possibilidade de humanização. Dessa forma, é
indispensável a intencionalidade da prática educativa nesse processo. Partindo do
pressuposto eleito, a mediação no processo educacional deve identificar a zona de
desenvolvimento próximo para se constituir o ensino sobre ele (VYGOTSKY, 1993).
Em outras palavras, “[...] o bom ensino é aquele que se situa no âmbito daquilo
que a criança não consegue fazer sozinha, mas o consegue aprendendo com o adulto”.
Afirma-se com isso, que a finalidade da escola é, portanto, garantir que os
conhecimentos ultrapassem o pragmatismo da vida cotidiana e assuma uma perspectiva
mais ampla de desenvolvimento humano, propriciando a aquisição dos instrumentos que
possibilitem o acesso ao saber científico. (DUARTE, 1998, p. 14).
Entendendo a ação educativa intencional como fator determinante para o
desenvolvimento, inferimos que os fatores desencadeados pela deficiência intelectual,
física, sensorial, ou pelas especificidades no processo de aprendizagem dos alunos com
altas habilidades/superdotação e transtornos globais do desenvolvimento, não podem ser
compreendidos pelos professores no Atendimento Educacional Especializado como



640

inibidores do trabalho pedagógico. Embora reconheçamos e defendemos as


especificidades de cada área de atendimento, bem como a importância dos instrumentos
e recursos mediadores para a potencialização e/ou substituição das áreas
comprometidas, inferimos que o que está em questão não é somente o desenvolvimento
de estratégias linguísticas para o ensino (dactilologia, tadoma, braile, língua de sinais) e
nem conteúdo curricular, mas a concepção de que a educação tem papel revolucionário
na vida das pessoas, com e sem deficiência. (BARROCO, 2011).
Apontamos tal defesa porque, embora o Atendimento Educacional Especializado
esteja garantido na legislação educacional desde a promulgação da Constituição Federal
em 19885, o delineamento do seu atual propósito, bem como a forma de efetivação deste
serviço, encontra-se melhor definido após a elaboração da Política Nacional de
Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva no ano de 2008 (BRASIL,
2008), apresentando projeção da ação educacional no AEE com ênfase em questões
relativas a procedimentos técnicos e uso de recursos, esvaziadas do sentido de uma
atividade de caráter formativo.
De acordo com esse documento, o AEE é um programa da Educação Especial e
tem como função ofertar serviços, recursos de acessibilidade e estratégias capazes de
eliminar barreiras que impeçam a plena participação social e o desenvolvimento da
aprendizagem dos alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e
altas habilidades/superdotação, caracterizando-se como parte integrante do processo
educacional e abrangendo todas as etapas e modalidades da educação básica, sendo
oferta obrigatória dos sistemas de ensino (BRASIL, 2008). Pode ser oferecido nas Salas
de Recursos Multifuncionais (SRM)6 da própria escola em que o educando está
matriculado ou em outra escola de ensino regular, ou ainda em Centros de Atendimento
Educacional Especializado (CAEE), em instituições comunitárias, confessionais ou
filantrópicas sem fins lucrativos e conveniadas com as Secretarias de Educação ou


5
A garantia do Atendimento Educacional Especializado está presente em documentos anteriores a PNEE-
EI (BRASIL, 2008) sendo sua oferta estabelecida como dever do Estado na Constituição Federal de 1988
(MENDES, 2010) e posteriormente no Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei n. 8.069, de 13 de julho
de 1990, no artigo 54; nas Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei n. 9.394 de 20 de dezembro de
1996, no artigo 4 e nas Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, Resolução
CNE/CEB n. 2 de 11 de setembro de 2001 no parágrafo único do artigo 1º.
6
Estas salas foram implantadas como parte de um programa específico do Ministério da Educação – O
Programa de Implantação de Salas de Recursos Multifuncionais, que tem como objetivo apoiar os
sistemas de ensino na implantação de salas com materiais pedagógicos e de acessibilidade, para a
realização do atendimento educacional especializado.



641

órgãos equivalentes, de forma não substitutiva a escola comum e em período contrário a


escolarização. (BRASIL, 2009, 2010a).
De acordo com o decreto 7.611 de 17 de novembro de 2011 o objetivo deste
serviço direciona-se em:

I - prover condições de acesso, participação e aprendizagem no ensino


regular e garantir serviços de apoio especializados de acordo com as
necessidades individuais dos estudantes;
II - garantir a transversalidade das ações da educação especial no
ensino regular;
III - fomentar o desenvolvimento de recursos didáticos e pedagógicos
que eliminem as barreiras no processo de ensino e aprendizagem; e
IV - assegurar condições para a continuidade de estudos nos demais
níveis, etapas e modalidades de ensino. (BRASIL, 2011).

Para implementar essas ações voltadas à oferta do AEE, o Ministério da


Educação – MEC, se propõe a prestar apoio técnico e financeiro no que tange à
implantação da SRM, local de execução do AEE no ensino regular. Estes espaços são
descritos pelo Ministério da Educação (BRASIL, 2010b) como sendo, Salas de
Recursos Multifuncionais do Tipo I e do Tipo II, diferenciando-se de acordo com os
recursos adicionais para acessibilidade de alunos com deficiência. Ao nortear a
implantação desses espaços em escolas da rede regular, o Ministério da Educação
explicita os papéis da escola e do professor do AEE. Assim, pertence à escola, no que
concerne aos aspectos pedagógicos e relacionais, a garantia dos seguintes serviços:

a) Contemplar, no Projeto Político Pedagógico - PPP da escola, a


oferta do atendimento educacional especializado, com professor para
o AEE, recursos e equipamentos específicos e condições de
acessibilidade;
b) Construir o PPP considerando a flexibilidade da organização do
AEE, realizado individualmente ou em pequenos grupos, conforme o
Plano de AEE de cada aluno;
c) Matricular, no AEE realizado em sala de recursos multifuncionais,
os alunos público alvo da educação especial matriculados em classes
comuns da própria escola e os alunos de outra(s) escola(s) de ensino
regular, conforme demanda da rede de ensino;
d) Registrar, no Censo Escolar MEC/INEP, a matrícula de alunos
público alvo da educação especial nas classes comuns; e as matriculas
no AEE realizado na sala de recursos multifuncionais da escola;
e) Efetivar a articulação pedagógica entre os professores que atuam
na sala de recursos multifuncionais e os professores das salas de aula
comuns, a fim de promover as condições de participação e
aprendizagem dos alunos;
f) Estabelecer redes de apoio e colaboração com as demais escolas da
rede, as instituições de educação superior, os centros de AEE e outros,



642

para promover a formação dos professores, o acesso a serviços e


recursos de acessibilidade, a inclusão profissional dos alunos, a
produção de materiais didáticos acessíveis e o desenvolvimento de
estratégias pedagógicas;
g) Promover a participação dos alunos nas ações intersetoriais
articuladas junto aos demais serviços públicos de saúde, assistência
social, trabalho, direitos humanos, entre outros. (BRASIL,
2010b).

E, ao professor que atua no Atendimento Educacional Especializado, são


atribuídas as seguintes funções:

1. Elaborar, executar e avaliar o Plano de AEE do aluno,


contemplando: à identificação das habilidades e necessidades
educacionais específicas dos alunos; a definição e a organização das
estratégias, serviços e recursos pedagógicos e de acessibilidade; o tipo
atendimento (...); o cronograma do atendimento e a carga horária,
individual ou em pequenos grupos;
2. Programar, acompanhar e avaliar a funcionalidade e a
aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade no AEE,
na sala de aula comum e nos demais ambientes da escola;
3. Produzir materiais didáticos e pedagógicos acessíveis, considerando
as necessidades educacionais específicas dos alunos e os desafios que
estes vivenciam no ensino comum, a partir dos objetivos e das
atividades propostas no currículo;
4. Estabelecer a articulação com os professores da sala de aula comum
e com demais profissionais da escola, visando a disponibilização dos
serviços e recurso e o desenvolvimento de atividades para a
participação e aprendizagem dos alunos nas atividades escolares; bem
como as parcerias com as áreas intersetoriais;
5. Orientar os demais professores e as famílias sobre os recursos
pedagógicos e de acessibilidade utilizados pelo aluno de forma a
ampliar suas habilidades, promovendo sua autonomia e participação.
6. Desenvolver atividades próprias do AEE, de acordo com as
necessidades educacionais específicas dos alunos: ensino da Língua
Brasileira de Sinais – LIBRAS para alunos com surdez. Ensino da
Língua Portuguesa escrita para alunos com surdez; ensino da
Comunicação Aumentativa e Alternativa – CAA; ensino do sistema
Braille, do uso do soroban e das técnicas de orientação e mobilidade
para alunos cegos. Ensino da informática acessível e do uso de
Tecnologia Assistiva – TA; ensino de atividades de vida autônoma e
social; e orientação de atividades de enriquecimento curricular para as
altas habilidades/superdotação; e promoção de atividades para o
desenvolvimento das funções mentais superiores. (BRASIL, 2010b).

Certamente, a aquisição de equipamentos, materiais didáticos, pedagógicos e


mobiliários disponibilizados pelo MEC e as articulações de atividades realizadas tanto
no espaço escolar, quanto de forma intersetoriais, junto aos demais serviços públicos,
viabilizam o processo de inclusão na escola comum e, inquestionavelmente, no
Atendimento Educacional Especializado. No entanto, embora reconheçamos que os



643

alunos público alvo deste atendimento necessitem de metodologia adaptada, recursos


específicos e instalações adequadas, chamamos a atenção para a importância da
intencionalidade do fazer pedagógico junto a esses recursos, pois, conforme ressalta
Saviani (2013, p. 17), a ação pedagógica envolve,

[...] viabilizar as condições de sua transmissão e assimilação. Isso


implica dosá-lo e sequenciá-lo de modo que a criança passe
gradativamente do seu não domínio ao seu domínio. Ora, o saber
dosado e sequenciado para efeitos de sua transmissão-assimilação no
espaço escolar, ao longo de um tempo determinado, é o que nós
convencionamos chamar de “saber escolar”.

Não obstante, analisando o exposto acima, percebe-se que a projeção da ação


educacional no AEE apresenta ênfase em questões relativas a procedimentos técnicos e
uso de recursos. Inferimos que os princípios que rege esta centralidade no AEE estão
pautados em uma pedagogia de tendência tecnicista que objetiva no trabalho
pedagógico, expectativas do homem com capacidade técnica e habilidades imediatas
para o processo produtivo do mundo globalizado (SAVIANI, 2012; 2013). Todavia, por
este viés, Michels (2011, p. 226) alerta que, subsidiados por tais perspectivas teóricas,

[...] a centralidade das ações dos professores do atendimento


educacional especializado (AEE) permanece nas técnicas e nos
recursos especializados [...]. Mesmo aquelas ações que dizem respeito
à articulação com a classe comum não estão atreladas à discussão
pedagógica, e sim a utilização de recursos específicos.

Nesse sentido, é preciso ter clareza que as atividades realizadas no Atendimento


Educacional Especializado, assim como todas as outras atividades desenvolvidas na
escola, devem estar articuladas com os principais objetivos da educação. Em outras
palavras, observamos que a educação especial deve constituir-se primordialmente, em
educação, com as mesmas finalidades para pessoas com e sem deficiência.
Em relação a formação do profissional para a atuação com o referido público, a
orientação legal (BRASIL, 2008; 2009) dispõe que as atividades realizadas no AEE
devem ocorrer mediante a atuação de um professor especialista que irá dispor de
atividades que venham desenvolver a base para a construção do conhecimento proposto
no ensino regular. Assim, compete a este profissional lecionar áreas específicas (leitura
e escrita de Braille, Libras, orientação e mobilidade, treino de visão e atividade motora
adaptada), bem como conteúdos referentes à autonomia pessoal e social dos alunos,
conforme destaca o documento Brasil (2008):



644

O atendimento educacional especializado é realizado mediante a


atuação de profissionais com conhecimentos específicos no ensino da
Língua Brasileira de Sinais, da Língua Portuguesa na modalidade
escrita como segunda língua, do Sistema Braille, do Sorobam, da
orientação e mobilidade, das atividades de vida autônoma, da
comunicação alternativa, do desenvolvimento dos processos mentais
superiores, dos programas de enriquecimento curricular, da adequação
e produção de materiais didáticos e pedagógicos, a utilização de
recursos ópticos e não ópticos, da tecnologia assistiva e outros.

Não obstante, para que os professores tenham elaboração teórica e/ou conceitual
para realizar tais atividades entendemos ser necessário uma preparação dos professores
ao nível da sua formação inicial, contínua e especializada, assegurada,
preferencialmente, em uma política de formação de professores. Todavia, a educação
atual não tem atendido a esses parâmetros. De acordo com Marsiglia e Martins (2013) a
formação de professores no Brasil está sob a égide do modelo econômico social vigente
e não se sustenta em modelos teórico-práticos, esclarecem que,

[...] o esvaziamento da formação de professores não significou a


assunção do capital de uma postura de desvalorização em relação a
ela. Por um lado, porque se transformou em um importante filão de
mercado e por outro, porque conclamar a formação dos professores é
uma necessidade da afirmação dos seus próprios referenciais que
seduzem e se revelam com roupagens progressistas, ocultando as
implicações de uma formação pautada no “saber” fazer, conhecer,
conviver e ser, isto é, “aprender a aprender”. E tudo isso, em nome de
um discurso de defesa da individualidade e respeito às diferenças,
interesses e motivações singulares que descarta a universalidade do
gênero humano. (MARSIGLIA; MARTINS, 2013, p. 98).

O nosso esforço é no sentido de compreender a educação escolar e a mediação


realizada pelo professor no Atendimento Educacional Especializado como um lócus
privilegiado para o desenvolvimento do educando com deficiência, contudo, nesse
serviçoda Educação Especial, a exemplo do que ocorre com a educação em geral, a
especificidade da prática pedagógica é secundarizada. No contexto nacional “A atuação
do educador não se sustenta em modelos teórico-práticos e sim, em práticas que
preparam o indivíduo para uma ocupação profissional que atenda o mercado,
(com)formando os sujeitos para o modo de produção capitalista”. Em decorrência
desses determinantes no processo de formação dos professores, verificamos, na área da
educação especial, uma ênfase na valorização do conhecimento pessoal, no não
verbalizado, nas relações sociais, na autonomia e na atuação do professor com ações



645

voltadas para questões relativas a procedimentos técnicos e uso de recursos.


(MARSIGLIA; MARTINS, 2013, p. 98).
Ao discorrer a cerca da organização do ensino especial Vygotsky (1997, p. 33)
discorda da forma como estava organizado e das práticas em vigor, nomeando-as de
enfadonhas, silenciosas e desarticuladas das necessidades sociais dos alunos,
defendendo, assim, a importância de um processo educativo com propósitos e
organização distintos.
Marsiglia e Martins (2013, p. 101) ao discutir sobre as implicações que os atuais
modelos teóricos que fundamenta os processos de ensino, ocasiona ao desenvolvimento
do educando, alertam para o fato que “[...] essas pedagogias propõem colocar o aluno
defronte de um problema e, como boa “pedagogia da espera”, acreditar que ele vai
construir conhecimentos sobre o tema em questão”. Assim, defendem a importancia das
práticas pedagógicas do professor advertindo que, se subsidiados por tais perspectivas
teóricas,

O aluno até consegue se apropriar de alguns conhecimentos


espontaneamente. Mas o faz de forma lenta, precária,
superficial. Apropriações dessa ordem são bastante úteis à vida
cotidiana. Mas o problema é que essa ‘vida prática’, tratada de
maneira pragmática e fragmentada, não nos eleva ao máximo
desenvolvimento e faz de nós os sujeitos alienados que não
conseguem avançar na luta por outra sociedade. (MARSIGLIA;
MARTINS, 2013, p. 101).

Considera-se, assim, que o trabalho educativo escolar não se trata de qualquer


ação. É imprescindível a intencionalidade e a organização adequada com fins
direcionados. Sobre a importância da intencionalidade no trabalho pedagógico Saviani
(2013) apresenta sua defesa:

Isto porque o homem não se faz homem naturalmente; ele não


nasce sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo
sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber pensar e sentir; para
saber querer, agir ou avaliar é preciso aprender, o que implica
trabalho educativo. Assim, o saber que diretamente interessa à
educação é aquele que emerge como resultado do processo de
aprendizagem, como resultado do trabalho educativo.
Entretanto, para chegar a esse resultado a educação tem que
partir, tem que tomar como referência, como matéria prima de
sua atividade, o saber objetivo produzido historicamente.
(SAVIANI, 2013, p. 7).



646

Em relação as especificidades do trabalho pedagógico no Atendimento


Educacional Especializado temos a conciência que a atuação do professor deve estar
voltada para o que há de particular na construção deste desenvolvimento, haja vista o
seu carater complementar e/ou suplementar ao ensino comum, todavia, defendemos e
orientamos que a ênfase deve ser dada aos conteúdos escolares. Esses, promovem e
impulsionam o uso de caminhos indiretos, visto que proporcionam à criança a
possibilidade de atuar com recursos psicológicos (funções) adquiridos por meio da
internalização dos signos culturais.
Os obstáculos presentes nas atividades propostas pela ação mediadora do
professor levam a criança a novos patamares de desenvolvimento. Quando ela faz uso
de determinado raciocínio e/ou quando lhe são propostas atividades com um grau de
complexidade que demanda informações que ainda não se estabeleceram e que se
encontram em processo, em decorrencia de ciclos de desenvolvimentos ainda não
completados, elas se vêem desafiadas e procuram utilizar estratégias diferenciadas para
sua superação, o que não seriam capazes de obter sozinhos sem a influência de um par
mais desenvolvido e sem a produção direta e intencional que os saberes formais
provocam. Os conhecimentos científicos atuam no sentido de modificar as condições
naturais de sua existência, modificando sua relação com o mundo, promovendo
desenvolvimento e aprendizagem.
Vygotsky (1997, p. 135) defende a tese que “[...] o desenvolvimento cultural é a
esfera principal onde é possível a compensação da deficiência. Onde é impossível o
desenvolvimento orgânico, ali está aberta de um modo ilimitado a via do
desenvolvimento cultural”. Logo, a compreensão do desenvolvimento da pessoa com
deficiência exige aprofundamento no conceito de compensação e super compensação da
deficiência. O processo de compensação parte do princípio que,

[...] simultaneamente com o defeito estão dadas também as tendências


psicológicas de uma direção oposta; estão dadas as possibilidades de
compensação para vencer o defeito e de que precisamente essas
possibilidades se apresentam em primeiro plano no desenvolvimento
da criança e devem ser incluídas no processo educacional como sua
força motriz. Estruturar todo processo educativo segundo a linha das
tendências naturais à supercompensação significa não atenuar as
dificuldades que surgem no defeito. [...], mas tencionar todas as forças
para sua compensação. (VYGOTSKY, 1997, p. 32 - 33).

Nesse contexto, o processo educacional é fundamental para possibilitar a


compensação do defeito. A escola deve criar mecanismos que despertem a necessidade



647

de transformar a deficiência em talento, compensando ou até super compensando a


deficiência. Acreditarmos que é nessa forma de compreensão do desenvolvimento do
educando com deficiência que os profissionais que atuam no Atendimento Educacional
Especializado devem almejar para organizar e estruturar sua prática educativa.
No caso de superação das barreiras à aprendizagem dos alunos com deficiência
múltiplas, a acessibilidade aos processos de comunicação e linguagem são buscados,
com mais intensidade, através das tecnologias assistivas, da ajuda técnica e da
comunicação aumentativa e alternativa. Contudo, o professor deve ser coerente quanto
ao uso da tecnologia para que a mesma não se torne esvaziadas de um caráter formativo.
Inferimos que a obtenção destes recursos deve objetivar resgatar as potencialidades do
educando e motivação para desenvolver sua aprendizagem. O fundamental, portanto, na
ação pedagógica é que ela faça com que a criança desenvolva suas potencialidades.
A teoria Pedagogia Histórico-Crítica se propõe a realizar esse enfrentamento.
Ela também se coloca na defesa dessa educação intencional. Essa perspectiva teórica
advoga a transmissão de conteúdos historicamente produzidos e objetivamente
interpretados como base para a organização de um currículo escolar. Defende que é
função da escola mediar a formação humana e o resultado da produção da cultura
universal por meio de um método educativo intencional, pelo qual o indivíduo é movido
a aprender as formas mais desenvolvidas do saber objetivo produzido historicamente
pelo gênero humano. Saviani (2012, p. 55) afirma que

[...] os conteúdos são fundamentais e sem conteúdos relevantes,


conteúdos significativos, a aprendizagem deixa de existir, ela
transforma-se num arremedo, ela transforma-se numa farsa. Parece-
me, pois, fundamental que se estenda isso e que, no interior da escola,
nós atuemos segundo essa máxima: A prioridade de conteúdos é a
única forma de lutar contra a farsa do ensino.

A identificação do que ensinar e como ensinar é um problema central nas


discussões dos autores que contribuem para a construção coletiva deste referencial
teórico. De acordo com Saviani (2013, p. 7) para a educação,

[...] esses diferentes tipos de saber não interessam em si mesmos; eles


interessam, sim, mas enquanto elementos que os indivíduos da espécie
humana necessitam assimilar para que se tornem humanos. Isto
porque o homem não se faz homem naturalmente; ele não nasce
sabendo ser homem, vale dizer, ele não nasce sabendo sentir, pensar,
avaliar, agir. Para saber pensar e sentir; para saber querer, agir ou
avaliar é preciso aprender, o que implica trabalho educativo. Assim, o



648

saber que diretamente interessa à educação é aquele que emerge como


resultado do processo de aprendizagem, como resultado do trabalho
educativo. Entretanto, para chegar a esse resultado, a educação tem
que partir, tem que tomar como referência, como matéria-prima de sua
atividade, o saber objetivo produzido historicamente.

Nesse sentido, em carater de considerações finais, inferimos, consubstanciados


em Silva (2014, p. 85), que

Em síntese, as contribuições da pedagogia histórico-crítica para a


educação especial brasileira estão nos pressupostos filosóficos, na
proposta pedagógico-metodológica e no significado político da sua
realização, porque, ao se fundamentar em bases marxianas e
marxistas, leva à compreensão, sob a valorização da história, da
educação e do homem que educa. É nesse sentido que a pedagogia
histórico-crítica e a psicologia histórico-cultural irão se aproximar e
contribuir, uma com a outra, para a educação escolar das pessoas com
e sem deficiência.

Nesses termos, considerando as possibilidades de recursos diferenciados, a


existência de espaços próprios e adaptados, o reduzido número de aluno por
atendimento (podendo ocorrer também de forma individualizada) e a sinalização de
professores com formação específica para a função, também defendemos o
Atendimento Educacional Especializado como sendo um importante suporte da
Educação Especial para o desenvolvimento dos educandos público alvo do seu
atendimento.
Porém, alertamos que faz-se necessário rever uma multiplicidade de elementos
que estão direcionando este trabalho, tais como: juntamente com a utilização de técnicas
e recursos próprios para cada área de atendimento, torna-se indispensável garantir aos
educandos o acesso ao conhecimento científico e a cultura historicamente acumulada,
assegurados, por exemplo, por meio da implementação de um modelo de formação
inicial específica para o atendimento especializado, objetivando preparar os professores
a descobrirem as formas mais adequadas de dirigir o desenvolvimento humano, sem
contudo, perder de vista o saber objetivo produzido pela humanidade.

Referências

BARROCO, S. M. S. “Pedagogia histórico-crítica, psicologia histórico-cultural e educação


especial: em defesa do desenvolvimento da pessoa com e sem deficiência”. In: A. C. G.
MARSIGLIA (Org.), Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas: Autores Associados,
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649

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DUARTE, N. Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar. Cad. CEDES. Vol.
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VYGOTSKY, L. S. Obras escogidas II. Problemas de Psicologia General. Madrid: Visor.


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homem primitivo e criança. Trad. Lolio Lourenço de Oliveira. Porto Alegre: Artes Médicas,
1996



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

EDUCAÇÃO NA CIDADE: A MODERNIZAÇÃO DA CIDADE DE VITÓRIA


EM DEBATE NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES

Patrícia Guimarães Pinto (IFES)1


Priscila de Souza Chisté (IFES)2

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar pesquisa em andamento que visa compreender o
processo de modernização da cidade de Vitória, ES, afim de propor material educativo
relacionado com alguns espaços da cidade de Vitória, a ser compartilhado, validado e
reelaborado por meio de formação de professores do Ensino Médio. Utiliza como aporte
metodológico a pesquisa intervenção com ações colaborativas sistematizada por Freitas (2010) e
Ibiapina (2008) e como referencial teórico autores que abordam a história de forma crítica como
Lefebvre (2001), Ferreira (2009) e Krug (2009). Busca por meio da Pedagogia Histórico-Crítica
favorecer a mediação do saber sistematizado de modo a contribuir com a formação do professor
compreendendo-o como agente modificador de seu meio e de suas relações com seus
educandos.

Palavras-chave: Educação na cidade; Modernização de Vitória; Formação de professores.

Introdução

O artigo apresenta pesquisa em andamento realizada no Programa de Pós-


Graduação em Ensino de Humanidades (PPGEH), do curso de Mestrado Profissional
em Ensino de Humanidades. A pesquisa integra o programa de formação de professores
desenvolvido no Grupo de Pesquisa (CNPq) sobre Educação na Cidade e Humanidades
(Gepech). Essa investigação visa compreender o processo de modernização da cidade de
Vitória, no Espírito Santo, para propor a elaboração de material educativo, sob a forma
de um roteiro histórico-cultural relacionado com alguns espaços de Vitória, a ser

1
Patrícia Guimarães Pinto, Graduada em História, Universidade Federal do Espírito Santo, Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Ensino de Humanidades, Instituto Federal do Espírito Santo, ES, Brasil.
E-mail: patriciap14@bol.com.br
2
Priscila de Souza Chisté, doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Espírito Santo, Brasil.
E-mail: pchiste@ifes.edu.br


651

compartilhado, validado e reelaborado por meio de formação de professores do Ensino


Médio. É fundamental abordar tal temática, pois consideramos que os professores que
atendem ao público das séries do Ensino Médio necessitam ampliar suas discussões e
estudos sobre práticas educativas que possibilitem conscientização e desenvolvimento
do senso crítico através da mediação do saber sistematizado.
Para apresentar a pesquisa em andamento sistematizaremos o artigo em questão
em cinco seções:
Na primeira abordaremos aspectos do processo de modernização da cidade de
Vitória a partir dos autores Ferreira (2009), Klug (2009) e Schutz-Foerste (2011). Na
segunda seção, iremos dialogar com Lefebvre (2001) no que diz respeito à configuração
das cidades e as relações de poder que permeiam nossa sociedade. Também
abarcaremos as contribuições de Gadotti (2004) que considera os espaços educativos e a
vivência na cidade como espaços permanentes de aprendizagem. Ainda sobre a temática
cidade, Chisté e Sgarbi (2016) nos levam a buscar na cidade formas de humanização do
sujeito.
Na terceira seção, propomos abordar a metodologia da pesquisa por meio de
discussões com Ibiapina (2008) no que diz respeito às questões no âmbito da formação
de professores. Em consonância com Freitas (2010) consideramos que o professor seja
coautor do conhecimento, podendo através de pesquisa intervenção com ações
colaborativas, contribuir para a melhoria dos processos educativos, sendo possível
assim, avaliar, aplicar e validar o material educativo proposto. Como método de ensino
que promoverá os planejamentos e execuções, tanto do material educativo quanto da
formação de professores, pretendemos dialogar com Saviani (2009), mais
especificamente quando propõe os momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-
Crítica.
Na quarta seção faremos a descrição da proposta de roteiro histórico-cultural
para análise dos processos de modernização da cidade de Vitória, ressaltando que esse
roteiro pode ainda sofrer algum ajuste em decorrência das análises executadas no
processo. Por fim, na quinta seção, pretendemos apresentar os resultados já alcançados e
os que esperamos para a pesquisa.



652

1 O processo de modernização da cidade de Vitória

Visando entender o cenário estabelecido na época em que ocorreram as


principais transformações na paisagem física e social de Vitória buscamos na literatura
disponível os fatos que permearam esse processo e as razões políticas, sociais e culturais
envolvidas para compreender através da configuração da cidade e sua história, as
diversas relações de poder presentes e como isso pode ser problematizado em forma de
conhecimento sistematizado que possa reforçar a cidade como espaço de extremo valor
educativo.
O movimento europeu que antecede a modernização de Vitória e de outras
capitais do Brasil e do mundo toma força a partir da metade do século XIX com grandes
descobertas tecnológicas.

[...] a ciência fazia revelar as luzes do progresso e da civilização com


todos os seus símbolos: luz elétrica, grandes bouvevards, telégrafo,
locomotiva, enfim todas as representações do triunfo de uma
modernidade que tinha pressa e não podia esperar. Um tempo onde a
civilização se impunha como um caminho sem retorno, com uma
força tamanha propagada aos lugares mais recônditos [...].
(FERREIRA, 2009, p. 70).

A Revolução Industrial deu início a todas essas mudanças rumo ao progresso


ficando essas transformações evidentes inicialmente em países como França e
Inglaterra. O projeto de reforma e urbanização que ocorreu em Paris entre 1851 e 1870
tornou-se conhecido mundialmente e não passou despercebido pelos arquitetos,
urbanistas e homens públicos brasileiros, assim como nos relata Siqueira (2011). A
autora afirma ainda que a mudança econômica do Brasil, da agricultura para a
industrialização, balizou o interesse e necessidade em se modernizar as mais antigas
capitais brasileiras, destacando nesse momento Rio de Janeiro, São Paulo, Recife e
Vitória.
Um dos principais projetos que influenciaram a revitalização da arquitetura
urbana no Brasil, a reforma da capital francesa denominada haussmanniana foi
instituída pelo prefeito de Paris, revitalizando e trazendo uma valorização estética da
paisagem urbana com elementos do imaginário republicano e da modernidade recém
incorporada.



653

Aqui no Espírito Santo, essas mudanças ocorreram principalmente a partir do


governo de Muniz Freire (1892-1896 e 1904-1908), passando pelo governo de Jerônimo
Monteiro (1908-1912) e se estendendo até o governo de Florentino Avidos (1924-1928)
que agiram incisivamente no processo de modificação da paisagem física, cultural e
política da cidade de Vitória e fizeram com que as relações na cidade ficassem
permeadas pelo cenário que vinha se configurando na tão recente República. Esse
estudo irá nos proporcionar como afirma Klug (2009, p.12) “a identificar o papel do
sítio físico nos diferentes momentos históricos do processo de construção da paisagem e
da imagem de Vitória”.

1.1 Primeiro Momento

O primeiro momento de mudança da paisagem se inicia no século XVI, mais


precisamente em 1551 quando Vitória foi fundada na chamada Ilha de Santo Antônio. A
escolha foi pensada estrategicamente, pois a capital antiga, Vila Velha, ficava em área
próxima à baía, suscetível a ataques de embarcações e índios. A escolha da ilha é
apontada por Klug pelas seguintes razões:

O terreno era bastante irregular, com muitos recortes e


afloramentos rochosos que poderiam funcionar como pontos
estratégicos de defesa. O sítio físico da ilha era composto por
áreas alagadiças, mangues, mar, morros, enseadas, praias e
maciços. (KLUG, 2009, p.17).

A Vila de Vitória era bastante pequena como nos mostra a Figura 1, possuindo
ruas tortuosas, pequenas e irregulares, com grandes ladeiras onde no topo ficavam
concentradas as construções mais importantes (Klug, 2009). Esse cenário se estendeu
até meados do século XIX com a população situada basicamente no litoral e com vistas
para a baía de Vitória. Os anos até o final do século XIX transcorrem sem grandes
intervenções na paisagem física da cidade que conserva como destaque as construções
religiosas, tendo a baía como seu principal referencial.



654

Figura 1 – Área de aterro do Campinho (atual Parque Moscoso) – Vitória

Fonte: Acervo do Arquivo Público do Estado do Espírito Santo

1.2 Segundo Momento

1.2.1 Muniz Freire (1892-1896 e 1904-1908)

José de Melo Carvalho Muniz Freire segundo nos diz Ferreira (2009, p. 03)
“acreditava que Vitória se tornaria uma grande praça comercial com um centro
populoso e dinâmico” e reforça ainda que

Muniz Freire pensou a cidade de Vitória integrada ao


desenvolvimento da província, não se restringindo às necessidades
pontuais e imediatas apresentadas pela capital. Almejando dotá-la de
centralidade e protagonismo, posicionando-a na vanguarda do
desenvolvimento local, pretendia atrair para Vitória toda produção da
província, como também da abastada vizinha Minas Gerais, por meio
de uma malha ferroviária, no intuito de estabelecer relações
comerciais com o resto do mundo, por meio de um porto bem
estruturado na capital capixaba (FERREIRA, 2009, p. 6).

Muniz Freire propõe um ousado projeto de modernização da cidade que tinha


como objetivo ampliar a cidade cerca de cinco a seis vezes o tamanho atual propondo a
expansão da ilha através do projeto denominado de Novo Arrabalde3, localizado à
nordeste da ilha e que deveria como nos afirma Klug (2009 p.27) “possuir
características físicas diversas da encontrada no núcleo inicial central, pois a escolha


3
s.m. Que se encontra localizado na periferia de uma cidade; fora dos limites de uma cidade; subúrbio.
Local extremamente afastado do centro (cidade, bairro etc); arredor. (Etm. do árabe: ar-rabad) Disponível
em: http://www.dicio.com.br/arrabalde/



655

inicial era vista pelo engenheiro responsável pelo projeto, Saturnino de Brito4, como um
erro”, tendo o mesmo caracterísiticas não favoráveis, sendo um terreno acidentado. O
mesmo condenava a edificação e expansão na área. Esse novo projeto extremamente
inovador propunha ainda grandes áreas públicas como bosques e parques aproveitando e
valorizando as paisagens naturais presentes na cidade.

1.2.2 Jerônimo Monteiro (1908 – 1912)

Ao assumir em 1908, Jerônimo de Souza Monteiro continua o processo de


remodelagem da cidade de Vitória idealizado por Muniz Freire, por meio do chamado
Plano de Melhoramentos e de Embelezamento de Vitória que foi um projeto que
começou com diversas ações como a derrubada de casas e igrejas, desapropriações,
construção de ícones nacionais que dariam força ao advento da República, construção
de novos prédios do governo, muitos circundando o Palácio Anchieta, alargamento de
ruas, aterros de grandes áreas, instalação do bonde elétrico e de luz elétrica por todo o
centro, água e esgoto, construção de parques públicos e praças. A figura 2 mostra a
pavimentação da rua D’ Alfândega. Vemos também o bonde puxado por cavalo (que
logo seria substituído pelo bonde elétrico). Essa rua é bastante emblemática por fazer
parte do centro comercial da cidade até os dias de hoje.

Figura 2 – Trecho da rua d’Alfandega – Vitória

Fonte: Exposição “Postais do Espírito Santo – Acervo do Monsenhor Jamil Abib”


4
Conforme nos diz Bertoni (2015) Francisco Rodrigues Saturnino de Brito formou-se engenheiro civil
em 1886 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro tendo participado da expansão da malha rodoviária de
vários estados brasileiros como Minas Gerais, Pernambuco e Ceará. A partir de 1892 começa a realizar
trabalhos voltados para a área de saneamento básico vindo a participar de importantes projetos em
Vitória/ES, Campos dos Goytacazes/RJ, Santos/SP, validando através deles princípios higienistas afim de
construir um saber urbano de matriz sanitária.



656

Seguindo a ideia de embelezamento europeizado, a construção do Parque


Moscoso trará para Vitória um local onde a burguesia estabelecida recentemente
encontra um espaço para lazer e relacionamentos sociais com fontes e esculturas
imponentes, praças e ruas largas e arborizadas com abundância de água que reforça a
ideia de saneamento e higienização agregada à ideia de riqueza e beleza, exemplificadas
pela Figura 3.

Figura 3 – Parque Moscoso

Fonte: Exposição “Postais do Espírito Santo – Acervo do Monsenhor Jamil Abib”

1.2.3 Florentino Avidos (1924 – 1928)

Florentino Avidos também merece destaque no processo de modernização em


questão. Como ele era engenheiro e estivera a frente do Plano de Melhoramentos de
Vitória durante o governo que precedeu o seu (Nestor Gomes), conhecia a capital, suas
demandas e projetos, realizando um número significativo de mudanças estruturais na
região central de Vitória afim de “adequar Vitória aos modernos padrões urbanos
existentes” (Ferreira, p. 202). E Ferreira continua a enumerar as diversas ações postas
em prática

Desapropriações, indenizações, escavações, aterros, demolição de


prédios, alargamento e calçamento de ruas e avenidas. Colocação de
meios-fios, construção de novos passeios, ladrilhamento e drenagem
de vias, expansão da iluminação pública com troca e implantação de
novos postes e luminárias, melhorias nos serviços de água e esgoto,
mudanças e ampliação na linha dos bondes, entre outras, foram as
ações desenvolvidas no antigo sítio histórico da cidade. As ruas
Jerônimo Monteiro, Primeiro de Março, Duque de Caxias, Ladeira do
Palácio, Sete de Setembro, Graciano Neves, Coronel Monjardim,
Treze de Maio, do Oriente, do Rosário, Gama Rosa, Coutinho



657

Mascarenhas e travessa, Ladeira Professor Balthazar, Henrique


Coutinho, Washington Pessoa, General Câmara, Ararigboia, General
Osório, Caramuru, São Francisco, viaduto ligando a ladeira São
Francisco à rua do Egypto, rua nova e velha do Egypto, Beira Mar,
avenida José Carlos, Escadaria Maria Ortiz, avenida Cleto Nunes,
escadaria da avenida Cleto Nunes, avenida República, ladeira e
escadaria da rua Pernambuco e avenida 15 de Novembro foram
objeto de melhoramentos, assim como a praça Costa Pereira, praça
João Clímaco e Praça Municipal. (FERREIRA, 2016, p. 201-202).

Construções grandiosas como a primeira grande ponte ligando Vila Velha a


Vitória, Ponte Florentino Avidos5 ocorrem neste governo. Também merecendo destaque
está a obra de ampliação do Porto de Vitória que havia sido suspensa em 1906 e foram
retomadas neste período. A figura 4 mostra a reforma feita e os dois galpões construídos
até o fim desse governo em 1928 e que viria a modificar permanentemente a paisagem.

Figura 4 – Galpões do Porto: Bloqueio visual e físico (1927/1928)

Fonte: Acervo do Arquivo Geral do Município de Vitória

Esse legado encerra o segundo período de grandes transformações na paisagem


física e também na dinâmica social de uma cidade que tentou a todo custo se inserir no
processo de modernização que atingia todas as partes do mundo com grandes reflexos
no Brasil.

1.3 Terceiro Momento

O terceiro momento ao qual nos referimos diz respeito ao processo de


verticalização da cidade de Vitória. A população da capital continua a se expandir em


5
Apelidada de Cinco Pontes por possuir cinco módulos de estrutura metálica que foram comprados na
Alemanha e montados em 1928. Disponível em: http://www.iia.com.br/guias/pontes.asp



658

todas as direções: Novo Arrabalde, área central e também para o oeste da ilha, tendo
como destaque a construção da rodovia Serafim Derenzi que vem interligar a região
central com a parte oeste. É na década de 1940 que começam a ser aprovados projetos
de edifícios na região do Parque Moscoso e também nas imediações da avenida
Florentino Avidos que irão gerar grande impacto visual.

A construção desses edifícios vai desencadear o início do processo de


verticalização que viria a causar uma severa ruptura visual na
paisagem da cidade através das alturas, da massa, da escala e da forma
das edificações no contexto da paisagem natural. (KLUG, 2009, p.45).

O processo tem continuidade na década de 1960 com aterros na ilha do Príncipe


e novas construções que podiam agora ter até vinte e cinco pavimentos. Já não era mais
possível vislumbrar o mar. O elemento histórico estava agora incrustado entre as
grandes construções que ditavam a nova paisagem da capital. A década de 1970 é
marcada por um crescimento populacional desordenado na ilha. A partir de 1975, há
dois aterros significativos que mudaram novamente a paisagem da ilha, aumentando
assim a área habitável. Um dos aterros em questão ocorreu na Ilha do Príncipe abrindo
espaço para a construção da nova ponte que iria ligar Vitória à Vila Velha, a Ponte do
Príncipe6. O segundo aterro é considerado de maior impacto para a urbanização da Ilha
de Vitória. Ele ocorre na região da Praia do Suá e incorpora as ilhas presentes no litoral
expandindo significativamente seu território.
A interação entre os habitantes e sua história encontra-se agora reduzida, uma
vez que não é mais possível ver a composição do território de forma clara, diminuindo
assim a memória coletiva da cidade.

A barreira visual criada pela cortina de edifícios obstruiu a percepção


de grande parte do antigo núcleo da cidade e do Maciço Central. A
paisagem natural aparece como pano de fundo para a paisagem
construída, elemento de maior intensidade e destaque (KLUG, 2009,
p. 56-57).

Inicia-se em meados de 1970 a construção da Ponte Darcy Castelo de


Mendonça7, conhecida como Terceira Ponte, figura 5, fato que impulsionou a expansão


6
Mais conhecida como Segunda Ponte liga Vila Velha a Vitória e Cariacica, dando acesso também a BR
262. Disponível em: http://www.iia.com.br/guias/pontes.asp.
7
Um dos maiores símbolos arquitetônicos da cidade, possui 3,33km de extensão, 70m de altura e 200m
de distância de um pilar a outro, permitindo o acesso de navios de grande porte.



659

para a região do Novo Arrabalde e adjacências. Através dela é possível observar as Ilhas
do Boi e do Frade, a Pedra dos Olhos, o maciço central, elementos que haviam sido
escondidos pelas construções.

Figura 5 – Vista de Vitória – Lado esquerdo, sentido Vila Velha/Vitória

Fonte: Jsuave. Disponível em < http://br.worldmapz.com/photo/214056_es.htm>. Acesso em 25 Jun


2016.

Em 1984 é criado o Primeiro Plano Diretor que visa normatizar a expansão e


especulação imobiliária, traçando regras para a construção de edificações. Observa-se
uma preocupação em proteger as paisagens e o valor histórico da cidade, porém isso não
ocorre exatamente do modo como deveria. Após dez anos, fez-se necessário uma
reformulação do Plano, criando o Segundo Plano. No que diz respeito ao centro de
Vitória, as restrições se mantiveram, ficando ainda mais rigorosas e tendo de certa
forma, maior efetividade na preservação do sítio histórico restante no meio da cidade
verticalizada instalada ao seu redor.
A necessidade em se estabelecer políticas efetivas de preservação dos elementos
naturais é de suma importância para que seja restaurado na população a ideia de
pertencimento ao seu próprio espaço. O resgate da memória e a incorporação desses
elementos como parte da realidade faz-se necessário para que essas ações sejam
validadas e para que a cidade seja de fato espaço amplo de educação, humanização e
transformação.


É a maior obra pública realizada no Estado e o principal meio de ligação Vitória - Vila Velha e com o
litoral sul do Estado. Disponível em: http://www.iia.com.br/guias/pontes.asp.



660

[...] podemos afirmar que o cidadão, habitante da cidade, ao apropriar-


se dos conceitos científicos e culturais, com a mediação do educador,
atinge o estágio de cidadão mais completo, integrado à cidade e à
sociedade (CHISTÉ E SGARBI, 2015, p.10).

2 Educação na cidade

Começaremos essa sessão chamando a atenção para o conceito de direito à


cidade extraído de Lefebvre (2001) que define esse direito como o processo de inclusão
de toda a sociedade aos benefícios gerados pela vida urbana. Para tanto, é necessário
tomar o ato de habitar a cidade como sendo não só a moradia em si, mas sim um
movimento de apropiração do espaço e todas as suas potencialidades, se aprofundando
na teia urbana da maneira mais íntima possível. A esse movimento Lefebvre (2001)
atribui o direito à cidade, título que deu a uma de suas obras e que é um desafio a ser
superado, ficando latente no trecho:

O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos:


direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao
habitar. O direto à obra (à atividade participante) e o direito à
apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados
no direito à cidade. (LEFEBVRE, 2001, p.134).

A cidade nos é apresentada então como espaço máximo de nossas vivências


enquanto cidadãos, sendo construída há muito tempo ao nosso redor pelas nossas
próprias mãos e devendo ser usufruída por nós mesmos. Buscar compreender o papel
dessa cidade que educa quase de maneira simbiótica a todos os que pertencem a ela, se
torna objeto de análise na medida em que aproximamos os sujeitos e as diversas
configurações de espaços presentes na cidade. Promover de forma consciente o fato
descrito quase como orgânico faz com que se estabeleçam relações de maior
aproveitamento desses espaços e apropriação do mesmo como pertencente a si próprio,
explorando conceitos de cidadania na cidade que educa a todos os seus habitantes e
oferece a eles as oportunidades para que tal educação ocorra.
No entando, para que esse processo ocorra de maneira eficaz, Chisté e Sgarbi
(2015, p. 03) nos chamam atenção para o fato de que “para o individuo se constituir
como ser humano, é preciso que internalize as produções humanas que foram
sistematizadas na trajetória da humanidade sendo a cidade um exemplo dessas
produções.” Afirmam ainda que essa internalização deve ocorrer no processo de



661

educação vista como mediadora, um processo constante que visa contribuir para a
transformação dos individuos através das relações que eles estabelecem entre si, com os
outros e com o mundo. Chisté e Sgarbi (2015) argumentam sobre o conceito da
educação na cidade, corroborando com os pensamentos propostos por esse trabalho,
afirmando que
[...] todo ser humano é um educador ou um educando. O que define
isso e a postura de cada um. Depende do modo como se comporta no
ambiente em que vive ou no que está a conhecer. E assim que os
espaços passam a ser realmente espaços educativos. (CHISTÉ;
SGARBI, 2015, p. 6).

Assim, consideramos que a educação possui papel fundamental para contribuir


com as reflexões sobre os modos como se configura a cidade e, em especial, como se
configurou o processo de modernização da cidade, aspecto que consideramos pouco
discutido no espaço escolar.
De modo a apresentar os passos que intentaremos dar para a sistematização desta
pesquisa apresentamos, na próxima seção, os seus aspectos metodológicos.

3 Procedimentos e metodologia de pesquisa


Como apontado na introdução deste artigo os sujeitos da pesquisa serão


professores do Ensino Médio. Consideramos fundamental que o professor consiga
contribuir com a apropriação de conhecimentos relacionados com o estudo da cidade.
Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio de História é
importante a abordagem da cidade como espaço de transformações; de metropolização;
de problemas urbanos e ambientais, sendo possível assim estabelecer relações entre o
patrimônio histórico cultural do lugar onde vivem e as memórias e identidades locais,
nacionais e mundiais. Esse documento reforça a importância da cidade como meio
educativo.
Além dessa necessidade institucionalizada, partimos do pressuposto de que é
preciso proporcionar reflexões sobre o espaço urbano tendo em vista que dele
participamos e, poucas vezes, são nos dadas condições para analisar o modo como ele
está configurado e os motivos que levaram tal configuração.
Na busca por contribuir com essas discussões pretendemos elaborar um roteiro
de visita aos espaços da cidade de Vitória que possuem potencial para discussão dos



662

processos de modernização que ocorreram. Assim, de posse desse percurso propomos


que parte do curso de formação de professores seja uma visita ao centro histórico de
Vitória. Esse momento visa aproximar os docentes envolvidos na pesquisa – de cunho
participativa com ações colaborativas (Ibiapina, 2008; Freitas, 2010) – ao objeto da
investigação proposta e também da elaboração de todo seu processo educativo.
Consideramos que a pesquisa colaborativa é importante, pois como afirma Ibiapina
(2008, p. 15):

[...] a investigação-ação emancipatória é prática social empreendida


pelos pesquisadores e professores com o objetivo de melhorar ou
modificar a compreensão de determinada realidade e as condições
materiais na qual o trabalho docente é realizado.

Além disso, cabe apontar que como se trata também de uma pesquisa aplicada,
pretende intencionalmente interferir na realidade escolar, como aponta Saviani (1997
apud Chisté e Sgarbi, 2016, p. 03) ao dizer que “a educação é o processo de reprodução
social que tem como função construir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo, a
humanidade que e produzida histórica e coletivamente pelos homens”. Assim,
consideramos que a intencionalidade de educar relaciona-se com a necessidade de
intervir na realidade, ou seja, de contribuir com a prática pedagógica. Desse modo,
consideramos a partir de Freitas (2010) que intervenção é uma mudança no processo,
uma tranformação, ressignificação dos pesquisados e do pesquisador, uma ação
mediada. A autora afirma ainda que

[...] não se trata de intervir para obter resultados mensuráveis. A


pesquisa nesta abordagem está centrada no processo, na relação entre
sujeitos, relação dialógica que, portanto provoca compreensão ativa de
seus participantes. [...] Na relação entre sujeitos, que caracteriza esse
tipo de pesquisa, a compreensão ativa mostra o objetivo que se busca
perseguir. (FREITAS, 2010, p. 7).

Portanto, motivados por compreender o processo de modernização da cidade de


Vitória buscaremos mapear e descrever os espaços com potencial que possibilitem essa
discussão; elaborar material educativo que apresente espaços da cidade de Vitória que
possam proporcionar debates sobre o seu processo de modernização por meio do estudo
dos contextos histórico, social, cultural e político; e planejar, acompanhar e executar
formação de professores para compartilhar, validar e reelaborar o material educativo
construído.



663

A partir do referencial metodológico apresentado consideramos a cidade como


espaço latente de aprendizado, retratada com suas construções, contradições, conflitos e
memória. Assim, buscaremos criar uma proposta de roteiro que será disponibilizado aos
docentes envolvidos para que tal percurso seja compartilhado, validado e reescrito por
meio da troca de conhecimentos e apropriação de diversos conceitos. Assim, após essa
análise e reestruturação do roteiro, ele poderá ser transposto pelo professor para as
práticas de sala de aula vindo a enriquecê-las, buscando contribuir com a formação dos
alunos de modo crítico e ampliado. Esperamos que os educandos sejam, a partir das
intervenções do professor, capazes de compreender a realidade reificada, e no caso da
pretensa investigação, capazes de compreender os processo urbanos formatados na
cidade que reafirmam um modelo de sociedade que considera, muitas vezes, os espaços
da cidade como modos de apresentar o poder de uma classe dominante que afasta a
classe popular dos locais feitos para o convívio das elites.
O resgate do modo como tais mudanças se consolidaram ao longo da história da
cidade de Vitória e a compreensão de como essas mudanças ocorreram ajuda a
compreender o processo de formação da sociedade em que vivemos e tal consciência
deve fazer parte do imaginário dos alunos, sendo amplamente difundido no meio
docente, pois para que haja transformação da prática social é preciso que haja
conscientização dos sujeitos envolvidos no processo. Para Saviani (2009) uma das
funções da educação é possibilitar o acesso aos conhecimentos sistematizados para que
os educandos possam se apropriar dos mesmos mudando assim a realidade em que estão
inseridos, tornando a educação elemento fundamental e mediador no processo de
emancipação do ser humano, e proporcionando uma perspectiva da luta contra uma
ideologia dominante. Saviani compreende que tal processo contribui para

[...] desarticular dos interesses dominantes aqueles elementos que


estão articulados em torno deles, mas não são inerentes à ideologia
dominante e rearticulá-los em torno dos interesses populares, dando-
lhes a consistência, a coesão e a coerência de uma concepção de
mundo elaborada, vale dizer, de uma filosofia. (SAVIANI, 2009, p.
3).

Pretendemos elaborar tanto o material educativo quanto o panejamento da


formação de professores a partir dos momentos pedagógicos da Pedagogia Histórico-
Crítica. De acordo com Saviani (2011, p. 422),



664

[...] isso significa que a educação é entendida como mediação no seio


da prática social global. A prática social põe-se, portanto, como o
ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa. Daí
decorre um método pedagógico que parte da prática social em que
professor e aluno se encontram igualmente inseridos, ocupando,
porém, posições distintas, condição para que travem uma relação
fecunda na compreensão e no encaminhamento da solução dos
problemas postos pela prática social. Aos momentos intermediários do
método, cabe identificar as questões suscitadas pela prática social
(problematização), dispor os instrumentos teóricos e práticos para a
sua compreensão e solução (instrumentalização) e viabilizar sua
incorporação como elementos integrantes da própria vida dos alunos
(catarse).

Assim, a partir do conhecimento dos momentos pedagógicos vistos não como


um passo-a-passo didático, mas como momentos filosóficos e reiterativos, pretendemos
elaborar as intervenções da pesquisa.

4 Proposta de material educativo (roteiro histórico-cultural) para análise dos


processos de modernização da cidade de Vitória

Nessa seção pretendemos delimitar quais as nossas intenções quanto ao roteiro


histórico-cultural que iremos sistematizar para discutir os processos de modernização da
cidade de Vitória, ES. Serão escolhidos locais que sofreram impacto com as
intervenções arquitetônicas como o centro Histórico de Vitória com proposta de analisar
as mudanças do início do século XX, neste texto definido como momento 1 e 2.
Também será abordado o momento 3 através de uma visita à Enseada do Suá para
analisar e problematizar a verticalização ocorrida a partir da década de 1970.
Após realizar o roteiro dialogando sobre as principais mudanças sofridas, tendo
anteriormente sido apresentado aos professores participantes do projeto qual era a
configuração desse mesmo espaço, poderemos tratar considerações pertinentes às
transformações físicas e quais eram os diversos cenários políticos, sociais e culturais às
quais essas mudanças estavam inseridas e como elas se refletem no cotidiano da cidade.
Durante a formação de professores iremos propor a visita a esses espaços, e
buscaremos compartilhar na ocasião um material educativo que apresente a história de
cada um deles, textos que promovam a análise do processo de modernização da cidade
de Vitória, bem como questionamentos e imagens referentes às localidades visitadas.



665

6 Resultados alcançados e esperados

A pesquisa acima descrita busca contribuir com a formação de professores e


posteriormente com suas práticas pedagógicas em sala de aula ao ratificar os espaços da
cidade como potencialmente educativos. Esses espaços fazem parte da configuração da
história do estado e do país e carregam em si a memória de toda uma sociedade
estabelecida em seu entorno.
Algumas ações relacionadas com a pesquisa já foram desenvolvidas, sobretudo a
partir do Grupo de Pesquisa sobre Educação na Cidade (Gepech) que se debruça a
estudar os processos de urbanização das cidades e suas relações com a educação. Muitas
leituras, palestras e visitas a diferentes espaços da cidade e discussões acerca desta
temática já ocorreram. Avançamos na construção dos conceitos necessários para
entender a importância e a representatividade educativa da cidade bem como a história
das cidades, o processo de urbanização que muitas vêm sofrendo, em especial a cidade
de Vitória, no Espírito Santo.
Conforme apontado, estamos iniciando a parte de elaboração do roteiro de visita
aos espaços de Vitória. Consideramos que como o trabalho será realizado de forma
colaborativa, os docentes envolvidos na pesquisa participarão do processo como
protagonistas, tornando-se capazes de modificar sua prática, ampliando assim sua ação
em sala de aula.

Referências

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Paulo Jan./June 2015. Disponível em:
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suas Tecnologias. Brasília: MEC/SEF, 2000. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/CienciasHumanas.pdf >. Acesso em: 25 jun 2016

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542X-tem-2014203619.pdf> Acesso em: 18 jun 2016.

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666

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político-pedagógico e práticas em processo. In: GADOTTI, Moacir; PADILHA, Paulo
Roberto; CABEZUDO, Alicia. Cidade-educadora: princípios e experiências. São Paulo: Côrtez,
2004.

FERREIRA, Gilton Luis, Um desejo chamado metrópole: a modernização da cidade de


Vitória no limiar do século XX. 2009. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo.

______. A reinvenção da cidade: A transformação das ruas e o reordenamento da vida na


cidade de Vitória/ES – 1890/1928. 2016 Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal do Espírito Santo.

FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Discutindo sentidos da palavra intervenção na


pesquisa de abordagem histórico-cultural. In: FREITAS, Maria Teresa da Assunção;
RAMOS, Bruna Sola. Fazer pesquisa na abordagem histórico-cultural: metodologias em
construção. Ed. UFJF, 2010.

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conhecimentos. Brasília: Ed. Liber Livro, 2008.

LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. São Paulo: Moraes, 2001.

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(org.). Caderno de resumos & Anais do 2º. Seminário Nacional de História da Historiografia.
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SCHUTZ-FOERSTE, Gerda Margit. Relendo imagens, atribuindo significados: as cidades


que devem ser esquecidas/ Gerda Margit Schutz-Foerste; Sônia Maria de Oliveira Ferreira;
Raquel Félix Conti (Org.) Vitória: GM Gráfica e Editora, 2011

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A RELAÇÃO TRABALHO-SAÚDE E A DOCÊNCIA


NA EDUCAÇÃO ESPECIAL

Kiara Karizy G. De Melo (UFG)1

Resumo: Esse artigo discute a relação trabalho-saúde e a docência na educação especial. Este
texto de natureza teórica foi construído tendo como referência autores críticos do campo da
educação, educação especial e do campo do trabalho. Nosso objetivo foi aproximar os estudos
destes campos para darmos visibilidade ao “sofrimento” enfrentado pelos professores no
processo de inclusão. Para tanto apresentamos um breve histórico da educação da pessoa com
deficiência no Brasil, em seguida discutimos sobre a relação saúde-trabalho na docência, na
perspectiva da educação inclusiva, e concluímos o texto sintetizando os assuntos tratados ao
longo do mesmo.

Palavras-chave: Educação Especial. Inclusão. Trabalho. Trabalho-Saúde.

Introdução

A construção deste texto foi motivada pelas aulas e leituras realizadas na


disciplina “Trabalho docente: teoria e produção do conhecimento2”. Ao nos
aproximarmos dos conteúdos/conceitos desenvolvidos durante a disciplina nos sentimos
instigados a pesquisar sobre a docência e a relação trabalho-saúde. Como nossa vivência
enquanto professora foi prioritariamente com pessoas com deficiência, decidimos
delimitar o estudo tendo como referência o professor que atua na educação especial3 na
perspectiva da educação inclusiva.


1
Kiara Karizy G. De Melo, mestranda em Educação, da Faculdade de Educação, da Universidade Federal
de Goiás, Brasil. E-mail: kiarakarizy@yahoo.com.br
2
Disciplina que compõe o Programa de Pós-Graduação em Educação, da Faculdade de Educação, da
Universidade Federal de Goiás.
3
A educação especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades,
realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a
sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular. Na
perspectiva da educação inclusiva, a educação especial passa a integrar a proposta pedagógica da escola
regular, promovendo o atendimento às necessidades educacionais especiais de alunos com deficiência,
transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Nestes casos e outros, que
implicam em transtornos funcionais específicos, a educação especial atua de forma articulada com o
ensino comum, orientando para o atendimento às necessidades educacionais especiais desses alunos. A
educação especial direciona suas ações para o atendimento às especificidades desses alunos no processo


668

Para discorrermos sobre este tema nos embasamos em obras de autores críticos
da educação, em artigos que discutem o trabalho dos professores que atuam com o
público alvo da educação especial e em artigos que investigam o trabalho e o trabalho
docente em geral, sob a perspectiva da atividade.
Iniciaremos as discussões apresentando de maneira sintética como o processo de
inclusão das pessoas com deficiência ocorreu na educação brasileira, e como o mesmo
se consolidou com as políticas públicas. Em seguida discutiremos a relação saúde-
trabalho na docência, na perspectiva da educação inclusiva e encerraremos o texto
apresentando nossas considerações finais.

1 Breve histórico da educação da pessoa com deficiência no Brasil

A história da educação da pessoa com deficiência no Brasil constituiu-se de


forma paralela ou independente a educação “regular”. As primeiras iniciativas de
institucionalização ocorreram no final do século XIX, com a criação do Instituto dos
Meninos Cegos (1854), hoje Instituto Benjamim Constant (IBC), e o Instituto dos
Surdos-Mudos (1857), hoje Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES).
(MENDES, 2010).
De acordo com Jannuzzi ( apud MENDES, 2010), o início da educação da
pessoa com deficiência no Brasil foi norteado por duas vertentes: uma de caráter
médico-pedagógico, que subordinava as práticas escolares às orientações e ao
diagnóstico médico; e outra de caráter psicopedagógico, que não independia do médico,
mas fundamentava as práticas pedagógicas nos princípios psicológicos. A autora
ressalta o descaso do poder público com a educação da pessoa com deficiência e da
educação da população em geral, no período colonial, pois até então a educação não
havia se tornado “necessária” para a população que era predominantemente rural.
Segundo Mendes (2010), o surto industrial pós-primeira Guerra Mundial (1914-
1918) e as mudanças do modelo econômico brasileiro, demandaram o processo de
popularização da escolarização primária da população, que na década de 20 era
composta por cerca de 80% de analfabetos. (ARANHA apud MENDES, 2010). Nesse
período a educação da pessoa com deficiência, guiada pelos preceitos psicopedagógicos,


educacional e, no âmbito de uma atuação mais ampla na escola, orienta a organização de redes de apoio, a
formação continuada, a identificação de recursos, serviços e o desenvolvimento de práticas colaborativas.
(BRASIL, 2008, “não paginado”).



669

sofrera a influência do ideário escolanovista. Este ideário permitiu que a psicologia


adentrasse a escola e que fossem inseridos testes de inteligência para identificar os
alunos com deficiência intelectual. Pizzoli (apud KASSAR, 2011, p.2) em publicação
da época revela que antes mesmos da inserção dos testes psicológicos, os próprios
professores já eram orientados a identificar possíveis “anormalidades”,

O aspecto externo (atitude geral, a fisionomia, o vestuário, a postura


espontânea) caracteriza e revela a condição psicológica da criança [...]
O primeiro cuidado do professor será distinguir o typo inteligente
normal médio do typo débil de espírito (imbecilidade, deficiências por
parada de desenvolvimento, atrasos e etc.).

Diante disso o aluno que fosse diagnosticado como deficiente era retirado das
classes regulares e passava a frequentar escolas públicas especiais ou classes especiais
dentro das escolas regulares. E é neste cenário que nascem as instituições privadas de
caráter filantrópico, especializadas no atendimento a pessoa com deficiência.
Uma das primeiras instituições especializadas do Brasil foi o Instituto Pestalozzi
de Canoas, Rio Grande do Sul, criado em 1926, por Thiago M. Würth. No entanto, o
Movimento Pestalozziano se tornou forte e conhecido com o apoio da psicóloga russa
Helena Antipoff, que veio para o Brasil em 1929, a convite do governo de Minas Gerais
para integrar a Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico de Belo Horizonte, e que em
1932 fundou a Associação Pestalozzi de Belo Horizonte. (FASPEGO, 2013).
Mendes (2010) ressalta a importância de Antipoff que influenciou a criação da
Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), em 1954, e a formação de um
grande número de profissionais que passaram a se dedicar a educação especial.

Analisando a influência do movimento escolanovista na educação


especial de nosso país, Cunha (1988) considera que apesar de
defender a diminuição das desigualdades sociais, ao enfatizar as
características individuais, a proposição de ensino adequado e
especializado, a adaptação de técnicas de diagnóstico e
especificamente do nível intelectual, muito contribuiu para a exclusão
dos diferentes das escolas regulares naquela época. (MENDES, 2010,
p. 97).

Ou seja, o ideário escolanovista acabou por “justificar” a exclusão dos alunos


com deficiência da escola regular, pois os mesmos não se adequavam ao padrão de
ensino que era ofertado, portanto deveriam ser direcionados a um atendimento
especializado que “garantisse” seu aprendizado.



670

Mendes (2010) destaca que com a promulgação da LDBEN de 1961 as


instituições privadas, de caráter filantrópico, se fortaleceram e tiveram seus serviços
ampliados de forma significativa, pois como não havia uma política para a educação das
pessoas com deficiência, a sociedade se viu forçada a organizar instituições
especializadas para atender a este público. Estas instituições eram financiadas pelo
governo através de recursos da assistência social, e acabavam por desobrigar o governo
de ofertar nas escolas públicas regulares educação para as pessoas com deficiência.
Com o crescimento expressivo das instituições que atuavam em prol da pessoa
com deficiência, tronou-se necessário criar órgãos que regulamentassem tais serviços.
De acordo com Silva (2014), a partir de 1973 ocorre à institucionalização da educação
especial no Brasil, caracterizando-se pela criação de órgãos normativos nas instâncias
federais e estaduais, bem como a promoção de políticas sociais de equidade.
Já a partir de 1990 com os processos de reforma do estado e da educação,
fortemente influenciados por organismos internacionais, a educação especial brasileira
começa a se orientar pelos princípios inclusivistas (educação inclusiva e inclusão total).
Silva (2014) ressalta que neste período a discussão sobre a inclusão escolar de pessoas
com deficiência ganha destaque em eventos políticos e científicos, e a própria legislação
brasileira de educação (LDBEN nº. 9394/96) dedica um capítulo (Cap. V) à educação
especial. “Assim, a EEs, que até então estava à parte do sistema educacional comum de
ensino, passou a se situar como modalidade da educação escolar, oferecida
preferencialmente no ensino regular”. (SILVA, 2014, p. 78, grifos nossos).
Diante das reformas “a escola regular precisa organizar-se para receber todas as
crianças cujas diferenças sejam ou não explícitas” (MICHELS, 2006, p. 418). Este
processo de inclusão ganha forças com a Resolução CNE/CEB nº 2, que instituiu em
2001 as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica.
Destacamos desta resolução o Art. 7º: “O atendimento aos alunos com necessidades
educacionais especiais deve ser realizado em classes comuns do ensino regular, em
qualquer etapa ou modalidade da Educação Básica.” (p. 2, grifos nossos).
Diferente da LDBEN n. 9394/96 que apresenta em seu texto a palavra
“preferencialmente” no ensino regular, o texto da resolução é mais diretivo. Diante
disso os alunos com deficiência que estavam matriculados nas escolas especiais
privadas, em sua maioria, são matriculados nas escolas regulares públicas, e é neste
momento que o professor da rede regular de ensino se “depara” com o desafio de
ensinar alunos com características muito particulares, alunos com deficiência.



671

2 A relação saúde-trabalho na docência, na perspectiva da educação inclusiva.

De acordo com Michels (2006, p. 417), as maneiras de apropriação do debate


sobre a educação da pessoa com deficiência ocorrem de maneiras distintas. Ao analisar
as principais publicações da educação especial e educação inclusiva a autora aponta
divergências quanto à apreensão das políticas de inclusão, identificando, principalmente
quando se fala do aluno com deficiência, que as produções da área podem ser
caracterizadas em duas tendências: uma denominada por ela propositiva e a outra
analítica. Sobre a tendência analítica;

[...] as obras que: a) analisam a possibilidade de inclusão levando em


consideração as questões sociais mais amplas (história, política,
economia); b) discutem a educação especial articulada ao debate da
educação geral; e c) investigam a proposição inclusiva para a área
fazendo uma análise crítica desse momento histórico, compõem a
perspectiva chamada aqui de analítica.

Segundo Michels (2006), na perspectiva analítica as questões históricas da


sociedade, educação e educação especial são a base para desenvolver uma análise das
condições concretas da educação e inclusão.

Penso que nossa luta é pelo enfrentamento às condições geradoras de


alienação e do esvaziamento ou empobrecimento do homem, da sua
realização como homem cultural e livre, em prol da criação e do
suprimento de novas necessidades. Meu empenho educacional diz
respeito á formação do homem rico, apresentando ou não deficiência.
(BARROCO apud BARROCO, 2007b).

O professor nesta perspectiva não é o responsável pela inclusão, mas um dos


atores que juntamente com o aluno, participa deste processo. Nesta perspectiva a luta,
como afirma Barroco, deve ser pela formação do homem rico e para isso são necessárias
condições concretas que extrapolam o tabalho docente. No entanto, este cenário muda
na perspectiva propositiva;

A perspectiva propositiva compreende as produções que: a) tomam a


inclusão como um modelo predefinido; b) propõem indicações
explícitas de como deve ocorrer a inclusão; c) a partir da
sensibilização dos professores, indicam que estes devem ter
desenvolvido suas competências para incluir os mais diferentes
alunos; e d) discutem a inclusão sem levar em conta as suas reais
possibilidades. (MICHELS, 2006, p. 419).



672

Nessa perspectiva o foco da inclusão recai sobre o professor, ou seja, o sucesso


e/ou fracasso da inclusão/educação do aluno com deficiência depende somente das
competências do professor. As condições concretas, sociais, culturais e materiais para
que esta inclusão ocorra são colocadas de lado e ao professor é dada a “missão de
incluir”. Michels (2006) reproduz um excerto de Sassaki (1997) que explicita bem esta
perspectiva. Vejamos:

Para com estudantes com impedimento auditivo, o professor deverá:


• Sentar-se na frente da sala.
• Usar recursos visuais.
• Falar claramente.
• Se o estudante usa a língua dos sinais, aprender os sinais e estimular
outros estudantes a aprendê-los também. (SASSAKI apud MICHELS,
2006, p. 419).

Sassaki lista o “como fazer” para o professor ter sucesso na inclusão, mas não
analisa de maneira crítica a realidade da profissão docente, da escola pública, da
sociedade. Segue alguns questionamentos sobre as proposições do autor: Em que
momento o professor irá aprender a língua de sinais? Sua carga horária será alterada
para que o mesmo frequente um curso de formação? Os recursos visuais a que o autor se
refere fazem parte dos materiais de ensino da escola ou o professor terá que adquiri-los?
Para tencionarmos sobre estes questionamentos traremos a fala de duas professoras,
entrevistadas por Matos e Mendes (2015), em escolas públicas do interior da Bahia, e
que têm em suas salas de aula regular alunos com deficiência;

[...] falta disponibilidade de tempo para o professor, nós, que temos 40


horas, nós não somos dispensados para procurar o Núcleo de Inclusão,
e o Núcleo também não vem à escola. (PA)

[...] Por exemplo, eu vou chegar na sala com meus meninos e vou
trabalhar com eles hoje multiplicação, mas eu tenho meus meios, eu
tenho livro, eu tenho meu jogo, eu tenho alguma coisa pra eu
trabalhar com eles, e com ela (AB)? Se eu não tenho materiais
adequados, recursos didáticos pra ela? (PB). (MATOS; MENDES,
2015, p. 12-13, grifos nossos).

As professoras deixam claro que as condições para se efetivar uma real inclusão
dos alunos com deficiência não dependem só delas. No entanto, o discurso das
publicações propositivas analisadas por Michels (2006) condizem com o discurso
levantado nas reformas educacionais do fim do século XX, onde o professor é colocado
no centro do debate educacional e a ele é imputado o êxito da educação escolar.
(ALVES, 2016).



673

Os professores são extremamente demandados no seu trabalho e com


frequência se sentem responsáveis pelo desempenho de seus alunos e
da escola (Oliveira, 2006). Segundo Lüdke e Boing (2007, p. 1.188),
“as críticas externas ao sistema educacional cobram dos professores
cada vez mais trabalho, como se a educação, sozinha, tivesse que
resolver todos os problemas sociais”. (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA,
2009, p. 354).

E toda esta responsabilização do professor sem condições efetivas para realizar o


trabalho provoca nos mesmos, ansiedade e agonia como vemos neste relato “[...] e até
eu preciso de psicólogo! Porque às vezes eu fico assim, agoniada pra resolver logo uma
coisa, eu quero que a menina AD já saiba logo; agora como é que eu faço? (PD)”.
(MATOS; MENDES, 2015, p.18, grifos nossos).
E essa impossibilidade de fazer ou o fazer sem êxito “o drama dos fracassos”
(Clot et al. apud BRITO E ATHAYDE, 2003, p. 242), que compõem a atividade4
docente pode levar os professores ao adoecimento, pois “a atividade impedida ou
contrariada também requer esforços internos ao indivíduo” (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA,
2009, p. 263). No caso do ensino para pessoas com deficiência os esforços por parte do
professor são ainda maiores, principalmente para os que não possuem uma formação
teórica sólida e experiência para atuar com este público, pois as demandas são muitas e
as frustações quanto ao aprendizado podem ser maiores e mais recorrentes, pois o tempo
de aprendizagem e as formas de aprendizagem se diferem significamente dos alunos
sem deficiência.

[...] A gente já recebe essas crianças na escola, a gente quer fazer um


trabalho que contemple todos em sala de aula, mas não existe esse
apoio de profissionais especialistas, que nos oriente no dia a dia do
trabalho com esta criança em sala de aula, pra que a gente não
atrapalhe, não exclua os outros alunos. (PE) [...] Salas super lotadas,
falta de auxiliares, no caso de AA ela tem uma cuidadora, mas os
outros, não. Eu não estou preparada. (PA). (MATOS; MENDES,
2015, p.13 grifos nossos).

Nesses relatos podemos perceber a intensificação5 do trabalho das professoras,


pois as “salas super lotadas” e sem a presença do profissional de apoio (que auxilia a

4
[...] a atividade não se resume ao que é feito, o que a Ergonomia da Atividade denomina trabalho real.
Para os autores, que se baseiam nas contribuições da escola russa de Psicologia fundada por Vigotski —
para quem “o homem é, a cada minuto, pleno de possibilidades não realizadas” (Vigotski, 1994, p. 41) —,
a atividade de trabalho envolve também o que não se faz, o que se busca fazer sem conseguir, o que
poderia ter sido feito, o que há para refazer e até o que se faz sem querer. (BRITO; ATHAYDE, 2003, p.
242).
5
A intensificação do trabalho pode decorrer do crescimento da produção sem alterações do efetivo, ou da
diminuição do efetivo sem haver mudança na produção (MELCHIOR, 2008 apud ASSUÇÃO E
OLIVEIRA, 2009, p. 354). [...] a intensificação diz respeito não somente à expansão e ao acúmulo de



674

professora com os alunos com deficiência) ampliam suas demandas. São mais
atividades para ser elaboradas e corrigidas, maior desgaste na manutenção da disciplina
em sala, além disso, as professoras precisam confeccionar materiais e atividades
adaptados às potencialidades dos alunos com deficiência. E fica evidente no relato que a
professora não se sente preparada para atender a este público. Nesse sentido toda vez
que os professores não encontram formas adequadas para desenvolver o trabalho
pedagógico, seja por formação docente inicial e continuada ineficiente, e/ou por falta de
condições materiais, estruturais e etc. negam ao aluno com deficiência o direito ao
conhecimento que foi produzido historicamente pelo homem, e que sistematizado pela
escola deveria ser transmitido ao aluno, ou seja, nega-se ao homem a sua humanidade
(SAVIANI, 2013).

Quando entrevistadas, as professoras referem uma espécie de culpa


quando não é possível conduzir a sala como gostariam ou quando a
meta estipula um cenário menos prazeroso do que aquele criado por
elas em outra situação mais controlada por elas próprias. (NEVES;
SILVA, 2006; NORONHA, ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2008 apud
ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p. 362).

Como vimos na citação acima esta situação de impossibilidade de atender as


necessidades dos alunos, de cumprir ao planejado, de conduzir a sala de aula como
gostariam despertam nos professores uma espécie de culpa. E este sentimento de culpa
somado à desvalorização da profissão, a carga extenuante de trabalho e as relações
desabilitadas com os colegas podem levar os professores ao adoecimento.
(ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009).

Os dados sobre afastamento do trabalho por doença não autorizam a


estabelecer associações diretas desses problemas com o trabalho
desenvolvido pelos professores. Contudo, tais fatores são indicadores
que permitem elaborar hipóteses articuladas às cargas de trabalho
mencionadas anteriormente. (ASSUNÇÃO; OLIVEIRA, 2009, p.
363).

Como as autoras afirmam não podemos fazer associação direta com a


intensificação do trabalho docente ao afastamento dos professores, mas podemos inferir


constrangimentos de tempo durante a realização do trabalho, mas também às transformações impingidas à
qualidade do serviço, do produto e, de maneira global, do trabalho. Sob essa ótica, está embasada a
análise da intensificação tanto em termos qualitativos, caracterizados pelas transformações da atividade
sob pressão temporal, quanto em termos quantitativos, relacionados ao aumento do volume de tarefas.
(DAVEZIES, 2007 apud ASSUÇÃO E OLIVEIRA, 2009, p. 354).



675

que às altas demandas a que os professores têm sido expostos podem levá-los ao
adoecimento.

Considerações Finais

“[...] não podemos negar que na perspectiva filosófica, a inclusão é uma questão
de valor, ou seja, é um imperativo moral”. Diante disto não existe a possibilidade de
retorno, e a busca deve ser por uma inclusão verdadeira, que não exclua nenhum
envolvido, que não culpabilize nenhum dos sujeitos, que considere as questões
históricas, sociais e materiais que envolvem este processo. (MENDES, 2010, p.106).
Na construção deste texto percebemos que grande parte dos estudos referentes à
docência na educação especial e educação inclusiva, levantam as dificuldades
encontradas pelo professor na educação do aluno com deficiência, mas em sua maioria
não o fazem com o referencial do trabalho, da atividade, e, por conseguinte só apontam
o “despreparo” do professor frente às demandas que lhe são atribuídas neste momento
histórico, não são debatidos nestes estudos o sofrimento, as angústias e as
impossibilidades que vivem os professores por não conseguirem “produzir direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens” (SAVIANI, 2013, p. 13), por não saberem
lidar com tantas diferenças, por ter que “excluirem” os alunos com deficiência no canto
da sala para poderem conduzir a aula. Essa “[...] atividade impedida, ‘contrariada’,
‘paralisada’, ‘suspensa” (LHUILIER, 2012, p. 23) não são objeto de estudo dos
pesquisadores.
Com esse artigo procuramos iniciar esta discussão para que em pesquisas futuras
que envolvam o docente que trabalha com alunos com deficiência, as análises, as
interações, possam ser embasadas também no referencial do trabalho para que se
revelem essas “dramáticas do uso de si” (SCHWARTZ apud BRITO E ATHAYDE,
2006, p. 247); pois, de acordo com Alves (2016, p. 198), “[...] quando se trata do
trabalho humano, temos ainda um continente para conhecer ou, talvez, reconhecer”.

Referências

ALVES, W. F. Avaliar e gerir: força e miséria de um ideário presente nas políticas educacionais
contemporâneas. Revista Brasileira de Educação v. 21 n. 64 jan.-mar. 2016.



676

ASSUNÇÃO, A. A.; OLIVEIRA D. A.. Intensificação do trabalho e saúde dos professores.


Educ. Soc. , Campinas, vol 30, n. 107, p. 349-372, maio/ago. 2009.

BARROCO, S. M. S. “Pedagogia histórico-crítica, psicologia histórico-cultural e


educação especial: em defesa do desenvolvimento da pessoa com e sem
deficiência”. In: A. C. G. MARSIGLIA (Org.), Pedagogia histórico-crítica: 30
anos. Campinas: Autores Associados, 2011, p. 169-196.

BRASIL. Conselho Nacional de Educação (CNE). Resolução 2 CNE/ CEB de 11 de setembro


de 2001. Institui Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica. Diário
Oficial da União, Brasília, DF, 14 set. 2001.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de


Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008.

BRITO, J.; ATHAYDE, M. Trabalho, educação e saúde: o ponto de vista enigmático da


atividade. Trabalho, Educação e Saúde, 1(2): 239-265, 2003.

FEDERAÇÃO DAS ASSOCIAÇÕES PESTALOZI DO ESTADO DE GOIÁS – FASPEGO.


Acessado em: 03 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.faspego.org.br/index2.html

KASSAR, M. C. M. Educação especial na perspectiva da educação inclusiva: Desafios da


implantação de uma política nacional. In: Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 41, p. 61-79,
jul./set. 2011.

LHUILIER, D. A invisibilidade do trabalho real e a opacidade das relações saúde-trabalho.


Trabalho & Educação, Belo Horizonte: UFMG, v. 21, n. 1, p. 13-38, jan./abr. 2012.

MATOS, S. N.; MENDES, E.G. Demandas de Professores Decorrentes da Inclusão Escolar.


Rev. Bras. Ed. Esp., Marília, v. 21, n. 1, p. 9-22, Jan.-Mar., 2015.

MENDES, E. G. Breve histórico da educação especial no Brasil. Revista Educación y


Pedagogía, Medellín, Universidad de Antioquia, Facultad de Educación, vol. 22, n. 57, mayo-
agosto, 2010. p. 93-109.

MICHELS, M. H. Gestão, formação docente e inclusão: eixos da reforma educacional brasileira


que atribuem contornos à organização escolar. Revista Brasileira de Educação v. 11 n. 33
set./dez. 2006.

SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações, 11ª ed. Campinas: Autores


Associados, 2013.

SILVA, R. H. dos R. Contribuições da pedagogia histórico-crítica para a educação especial


brasileira. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, nº 58, p. 78-89, set. 2014.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

BOGDANOV- BELSKY, Nikolai Na porta da


escola. 1897. Óleo sobre tela, 127,5 x 72 cm.


GT6 – EDUCAÇÃO, IDENTIDADES SOCIAS E LUTA DE CLASSES

O GT “Educação, Identidades Socias e Luta de Classes” procurou congregar trabalhos que


apresentassem resultados de pesquisas parciais ou concluídas que, fundamentados no materialismo histórico
dialético, tratassem das relações entre educação e classe social e o processo de constituição das identidades
sociais presente na luta de classes e nos processos educativos.



SUMÁRIO (GT6)

A HEGEMONIA DO LEMA “APRENDER A APRENDER”: DA ESCOLA PROGRESSIVA À


EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI ........................................................................................679
POR UMA RELAÇÃO DIALÉTICA NO CONTEXTO ESCOLAR: PRÁTICAS
TRANSFORMADORAS E FAVORÁVEIS À COMPREENSÃO DA COMPLEXIDADE
SISTÊMICA DO EDUCANDO....................................................................................................693
GRAÚNA DAS MERCÊS: UM CANTO FEMININO DE RESISTÊNCIA: AS CHARGES DE
HENFIL COMO POSSIBILIDADES DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NAS
ESCOLAS.......................................................................................................................................705
BERTOLT BRECHT E O TEATRO EDUCADOR: A CRÍTICA NA ESCOLA - JULIANA
GONÇALVES GOBBE.................................................................................................................721
POR QUE FALAR EM EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DA CLASSE
TRABALHADORA? .....................................................................................................................732
DESIGUALDADE, CONHECIMENTO E PRESSUPOSTOS PÓS-MODERNOS:
ATRAVESSAMENTOS NA ESCOLA ........................................................................................747
A PERSPECTIVA TERRITORIAL DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO ................759
AS (CONTRA) REFORMAS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO CONTEXTO DO
CAPITALISMO PARASITÁRIO ................................................................................................773
CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DOS ESTUDOS
MARXISTAS PARA UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A DESIGUALDADE DE
GÊNERO ......................................................................................................................................789
ESCOLA E EMANCIPAÇÃO: A INCUMBÊNCIA DO CONHECIMENTO PARA A VIDA
.........................................................................................................................................................804
SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO: POSIÇÕES EM DEBATE .....................................818
MEDIAÇÕES DA RELAÇÃO FORMAÇÃO E INSERÇÃO PROFISSIONAL: ANÁLISE DAS
DEMANDAS POR MÃO DE OBRA E A OFERTA DE CURSOS FICS NO ESPÍRITO SANTO
NO ANO DE 2012 .......................................................................................................................834
A MARGINALIDADE PELA VIA DA EDUCAÇÃO COMPENSATÓRIA: CONTRIBUIÇÕES
DA TESE FILOSÓFICO-HISTÓRICA DA PEDAGOGIA DA ESSÊNCIA E DA PEDAGOGIA
DA EXISTÊNCIA NA ATUALIDADE ........................................................................................850
RELATO DE EXPERIÊNCIA A PARTIR DO CURSO DE APERFEIÇOAMENTO E
ESPECIALIZAÇÃO EM PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA PARA AS ESCOLAS DO
CAMPO .........................................................................................................................................864


Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A HEGEMONIA DO LEMA “APRENDER A APRENDER”:


DA ESCOLA PROGRESSIVA À EDUCAÇÃO PARA O SÉCULO XXI

Camila Azevedo Souza (UFF)1

Resumo: O trabalho tem por objetivo analisar o conteúdo pedagógico do lema “aprender a
aprender”, tendo em vista o processo histórico que o legitimou no ideário pedagógico do Brasil,
com sua consolidação a partir da década de 1930 e seu revigoramento desde a década de 1990.
Considerando que a adesão às pedagogias do aprender a aprender implica a adesão às
concepções de mundo da classe dominante, busca-se identificar os fundamentos da educação
progressiva defendida por Anísio Teixeira e os norteamentos da educação para o século XXI
disseminada pela Unesco. Com base no materialismo histórico e nas contribuições da pedagogia
histórico-crítica, o trabalho evidencia que o lema “aprender a aprender” está atravessado por
estratégias hegemônicas que operam um esvaziamento perverso da educação escolar, o que
exige da luta contra-hegemônica consolidar uma concepção de educação fundamentada na
socialização do conhecimento historicamente elaborado.

Palavras-chave: pedagogias do aprender a aprender; hegemonia; educação progressiva;


educação para o século XXI.

Introdução

No contexto das relações sociais capitalistas, as concepções de mundo


hegemônicas são legitimadas em políticas educacionais que materializam os interesses
da classe dominante na realidade concreta das instituições escolares, contribuindo com o
movimento histórico em que as ideias da classe dominante são as ideias dominantes,
pois “a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua
força espiritual dominante”. (MARX & ENGELS, 2007, p. 47).
Analisando as mudanças ocorridas nas primeiras décadas do século XX,
Gramsci (2000, p. 244) define os Estados democráticos contemporâneos como
“sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção”. Nessa
perspectiva, a difusão dos modos de pensar, agir e sentir da classe dominante no
conjunto das relações sociais está atravessada por um processo de hegemonia, que
procura subordinar moral e intelectualmente toda a sociedade, tendo como mecanismo


1
Camila Azevedo Souza, Doutoranda em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Rio de
Janeiro, Brasil. E-mail: camilaazevedosouza@gmail.com.


680

um complexo processo educativo para transformar ideias e concepções particulares em


algo aceito como universal por todos. (GRAMSCI, 2000).
No movimento contemporâneo de mundialização do capital, cuja base é a
especificidade da dimensão financeira de um processo de valorização do capital privado
iniciado na década de 1980 (CHESNAIS, 1996), a hegemonia da cultura burguesa na
educação escolar vem sendo reafirmada, notadamente, pela noção de sociedade do
conhecimento, que é disseminada pela classe dominante para conformar concepções de
mundo afinadas com uma suposta “nova ordem social mundial”, defendendo “a
existência de um mundo mais integrado” caracterizado pela “evolução do
conhecimento” e pelas “novas possibilidades de acesso à informação e comunicação”.
(MARTINS; NEVES, 2015, p.35).
Segundo Duarte (2003), a construção ideológica da chamada sociedade do
conhecimento está vinculada às pedagogias do aprender a aprender, buscando orientar
as relações sociais da realidade concreta por meio das seguintes ilusões: “o
conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje”; “a capacidade para lidar de forma
criativa com situações singulares no cotidiano […] é muito mais importante que
aquisição de conhecimentos teóricos”; “o conhecimento não é a apropriação da
realidade pelo pensamento, mas sim uma construção subjetiva resultante de processos
semióticos intersubjetivos”; e “o apelo à consciência dos indivíduos [...] constitui o
caminho para a superação dos grandes problemas da humanidade”. (DUARTE, 2003,
p.14-15).
Considerando que a adesão às pedagogias do aprender a aprender “implica
necessariamente a adesão a todo um ideário educacional afinado com a lógica da
sociedade capitalista contemporânea” (DUARTE, 2006, p.42), o objetivo do presente
trabalho é analisar o conteúdo pedagógico do lema “aprender a aprender” evidenciando
o processo histórico que o legitimou no ideário pedagógico do Brasil, haja vista sua
consolidação a partir da década de 1930 e seu revigoramento desde a década de 1990.
Para tanto, serão analisados, por um lado, os fundamentos da educação progressiva
defendida por Anísio Teixeira, um intelectual que concebe a “educação como elemento
do processo de inovação e modernização da sociedade” (SAVIANI, 2011a, p.222); e,
por outro lado, os norteamentos da educação para o século XXI disseminada pela
Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, cujos
pilares revelam “uma concepção de educação como um processo permanente” que exige
a capacidade de aprender a adaptar-se. (DUARTE, 2006, p.51).



681

Cabe destacar que o ideário pedagógico do Brasil está imbricado nas


metamorfoses do Estado brasileiro, cujas forças do capital consolidaram, no período de
1930 a 1980, um modelo de Estado burguês intervencionista e corporativista, marcado,
predominantemente, “pela presença de uma dominação sem hegemonia”. Atualmente, a
burguesia busca consolidar o modelo neoliberal caracterizado por um padrão “liberal-
corporativo”, combinando “sua dominação com formas de direção hegemônica” com o
objetivo de “consagrar a pequena política e a pseudo-ética do privatismo desenfreado
como elementos fundamentais de um senso comum que sirva de base à sua hegemonia”
(COUTINHO, 2006, p.182-192).
No que se refere às especificidades do processo histórico das ideias pedagógicas
do Brasil, Saviani (2011a) evidencia que o lema “aprender a aprender” está enraizado
no ideário escolanovista. Tendo em vista a crítica à pedagogia tradicional, o
escolanovismo traduz o movimento de reforma que resultou do processo de elaboração
e difusão de uma teoria da educação, cujo alicerce é a “pedagogia de inspiração
experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia”
(SAVIANI, 2008, p.8), evidenciando uma concepção de ensino como processo de
pesquisa:

Na verdade, o que o movimento da Escola Nova fez foi tentar articular


o ensino com o processo de desenvolvimento da ciência, ao passo que
o chamado método tradicional o articulava com o produto da ciência.
Em outros termos, a Escola Nova buscou considerar o ensino como
um processo de pesquisa; daí por que ela se assenta no pressuposto de
que os assuntos de que trata o ensino são problemas, isto é, são
assuntos desconhecidos não apenas pelo aluno, como também pelo
professor. (SAVIANI, 2008, p,37)

Também é importante ressaltar que o lema “aprender a aprender” foi


ressignificado no processo histórico das ideias pedagógicas no Brasil: por um lado, o
escolanovismo, consolidado no período de 1932 a 1969, está marcado pela ênfase na
“capacidade de buscar conhecimentos por si mesmo” para valorizar a convivência no
processo de adaptação à sociedade; por outro lado, o neoescolanovismo, reafirmado
desde 1991, está marcado pela ênfase na “necessidade de constante atualização” para
atender à necessidade de “ampliar a esfera da empregabilidade”. (SAVIANI, 2011a, p.
432).
Segundo Duarte (2006), o revigoramento do lema “aprender a aprender”,
vinculado à construção ideológica da chamada sociedade do conhecimento, está



682

atravessado pelas forças sociais tanto da ideia pedagógica escolanovista como da ideia
pedagógica construtivista, cujos principais alicerces convergem para a ênfase no
processo biológico de adaptação dos organismos ao meio ambiente:
Nessa direção, “tanto no ideário escolanovista como no construtivista, o lema
‘aprender a aprender’ sempre carrega alguns posicionamentos valorativos”, os quais
enunciam que é mais desejável “as aprendizagens que o indivíduo realiza por si mesmo,
nas quais está ausente a transmissão, por outros indivíduos, de conhecimentos e
experiências”; que é “mais importante adquirir o método científico do que o
conhecimento científico já existente”; que a atividade verdadeiramente educativa é
“impulsionada e dirigida pelos interesses e necessidades da própria criança”; que o
objetivo de uma educação nova é “preparar os indivíduos para acompanharem a
sociedade em acelerado processo de mudança”. (DUARTE, 2006, p. 34-41).
A hegemonia do lema “aprender a aprender” está vinculada à força do
escolanovismo, que, por sua vez, “tendeu a classificar toda transmissão de conteúdo
como mecânica e todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo
como negação da liberdade”, revelando a legitimação de uma concepção de educação
que secundariza a socialização do conhecimento historicamente elaborado. (SAVIANI,
2011b, p.17).
Diante desse processo hegemônico, cabe à luta contra-hegemônica avançar na
proposta de uma formação omnilateral fundamentada na concepção gramsciana de
escola unitária de cultura geral, compreendendo o trabalho como princípio educativo.
Isso significa lutar contra a tendência que busca “afrouxar a disciplina do estudo” e
“tornar fácil o que não pode sê-lo sem ser desnaturado” (GRAMSCI, 2001, p.51),
evidenciando que, no processo de instrução da criança,

[...] será sempre necessário que ela se fatigue a fim de aprender e que
se obrigue a privações e limitações de movimento físico, isto é, que se
submeta a um tirocínio psicofísico. Deve-se convencer a muita gente
que o estudo é também um trabalho, e muito fatigante, com um
tirocínio particular próprio, não só muscular-nervoso mas intelectual
[...]. (GRAMSCI, 2001, p.51).

Nessa direção, a pedagogia histórico-crítica se constitui em fundamentação


teórico-metodológica indispensável, uma vez que resgata a especificidade da educação
escolar, evidenciando sua “função especificamente educativa, propriamente pedagógica,
ligada à questão do conhecimento”, além de considerar o trabalho educativo como “o



683

ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade


que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”. (SAVIANI,
2011b, p.13-84).
O trabalho segue com a análise para apreender os fundamentos da escola
progressiva, vinculada ao escolanovismo, e os norteamentos da educação para o século
XXI, articulada ao neoescolanovismo, considerando que explicitar as bases das
concepções de educação hegemônicas significa evidenciar contradições que trazem
elementos importantes para a luta contra-hegemônica.

1 Escolanovismo e educação progressiva de Anísio Teixeira


A disseminação das ideias pedagógicas da Escola Nova no Brasil, cujo marco


principal é o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova”, de 1932, está atravessada
pelo processo de urbanização e industrialização do país, fundamentado no modelo de
“substituição de importações”, que resultou na incorporação da orientação fordista pela
burguesia industrial de 1920 e no movimento histórico da Revolução de 1930
(SAVIANI, 2011a).
É importante destacar que foi a partir de 1930 que as relações capitalistas foram
consolidadas e generalizadas no Brasil, cujas metamorfoses do processo de
modernização conservadora foram sedimentadas “com a implantação da ditadura do
Estado Novo, quando se promove, sob a égide do Estado, um intenso e rápido processo
de industrialização pelo alto”. (COUTINHO, 2006, p.177).
Nessa conjuntura, o movimento renovador da Escola Nova foi consolidado na
década de 1930, tendo em vista as forças sociais que atravessaram a fundação da
Associação Brasileira de Educação (ABE), em 1924, que “aglutinou os educadores
novos, os pioneiros da educação nova”, formando as condições objetivas e subjetivas
para esses sujeitos lançarem seu manifesto, em 1932, bem como travarem a polêmica
com os católicos, referente ao capítulo da Constituição de 1934. (SAVIANI, 2008,
p.41).
É importante ressaltar que, segundo Fernandes (2010, p. 214), os educadores do
movimento brasileiro da Escola Nova são “rebentos da burguesia” que atuaram como
reformadores sociais por meio de “uma consciência utópica”, antecipando “[...]
mudanças, que seriam potencialmente possíveis e necessárias, numa sociedade
capitalista, mas que as classes dominantes brecaram, impediram”.



684

Considerando esse contexto histórico, Saviani (2011a, p. 207) aponta a formação


de uma “trindade cardinalícia” do movimento brasileiro da Escola Nova, constituída por
Lourenço Filho, Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, que definiram,
respectivamente, as bases psicológicas, as bases sociológicas e as bases filosóficas e
políticas da renovação escolar.
No livro “Pequena Introdução à filosofia da Educação: a escola progressiva ou a
transformação da escola”, publicado pela primeira vez em 1934, Anísio Teixeira
apresenta uma teoria da educação fundamentada no pensamento pedagógico de John
Dewey, com destaque para a incorporação da análise de que a filosofia é a teoria geral
da educação, defendendo a acepção do professor como filósofo, que, além “da
informação e da técnica, deve possuir uma clara filosofia da vida humana, e uma visão
delicada e aguda da natureza do homem”. (TEIXEIRA, 2000, p.173).
Indicando que a vida moderna é caracterizada pelo desenvolvimento da ciência,
com destaque para as influências do método experimental, do industrialismo e da
tendência democrática, o autor evidencia que o principal objetivo da escola progressiva
é “preparar o homem para uma existência em permanente mudança da qual ele fará
permanente progresso”. (TEIXEIRA, 2000, p.114).
Ressalta, também nessa direção, um contexto em que a democracia passa a
exigir uma nova formação humana fundamentada na personalidade e na cooperação,
com base na sedimentação de um senso novo de segurança e de responsabilidade,
articulando a noção de liberdade aos norteamentos de uma “autoridade interna” e
enfatizando como “nova finalidade da escola” a preparação de “cada homem para ser
um indivíduo que pense e que se dirija por si”, uma vez que é fundamental cada homem
ter “as qualidades de um líder”. (TEIXEIRA, 2000, p.36).
Com base na ênfase no método científico, o autor aponta que o essencial “é dar
ao educando a atitude científica, com os seus hábitos de reflexão, de inquérito, de
análise, de crítica e de sistematização”. Nesse sentido, a visão do ato de aprender, com
base em uma nova psicologia, está alicerçada na obtenção de um modo de agir que
significa a “aquisição de uma determinada habilidade”. (TEIXEIRA, 2000, p.44-89).
Considerando a criança como centro da escola, a educação é abordada como
“uma função complexa de adaptação e crescimento do organismo total da criança”, o
que exige a reconstrução dos programas escolares com base nas “[...] atividades da vida
presente” e nos “processos adquiridos pela experiência humana”, bem como uma



685

“organização psicológica” das matérias escolares, cujo ponto de partida é a experiência


da criança (TEIXEIRA, 2000, p. 61-77).
Trata-se, portanto, da defesa de uma escola de experiência, com alunos ativos,
que busca “trazer a vida para a escola”. (TEIXEIRA, 2000, p.40).

Para a escola progressiva as matérias são a própria vida, distribuída


por “centros de interesse ou projetos”. Estudo – é o esforço para
resolver um problema ou executar um projeto. Ensinar – é guiar o
aluno na sua atividade e dar-lhe os recursos que a experiência humana
já obteve para lhe facilitar e economizar esforços. (TEIXEIRA, 2000,
p.49)

O conjunto de elementos evidenciado revela que a escola progressiva se inspira


no lema “aprender a aprender” para fundamentar uma educação centrada no método
científico, reafirmando uma concepção de educação voltada para a revolução cultural
através da mudança de hábitos e costumes, na perspectiva da revolução democrática
liberal, ou seja, a principal direção é “aprender a aprender” tendo em vista a valorização
da convivência no processo de adaptação à sociedade. (SAVIANI, 2011a, p. 225-432).
A ênfase da escola progressiva no método científico revela, ainda, uma
fundamentação na “pedagogia de inspiração experimental”, o que significa conceber o
ensino como “um processo de pesquisa” e os assuntos trabalhados no ensino como
“problemas” (SAVIANI, 2008, p.8), além de considerar que o papel do professor é
“auxiliar o aluno em seu próprio processo de aprendizagem” (SAVIANI, 2011a, p. 431),
contribuindo para a legitimação de uma concepção de educação que serve de alicerce
para o processo que busca secundarizar a socialização do saber historicamente
elaborado.
Diante da hegemonia desse movimento histórico, destaca-se a importância da
luta contra-hegemônica por uma pedagogia fundamentada na formação omnilateral,
“para além dos métodos tradicionais e novos, superando por incorporação as
contribuições de uns e de outros”, com o objetivo de construir métodos de ensino que

estimularão a atividade e iniciativa dos alunos sem abrir mão, porém,


da iniciativa do professor; favorecerão o diálogo dos alunos entre si e
com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a cultura
acumulada historicamente; levarão em conta os interesses do aluno, os
ritmos de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem
perder de vista a sistematização lógica dos conhecimentos, sua
ordenação e gradação para efeitos do processo de transmissão-
assimilação dos conteúdos cognitivos. (SAVIANI, 2008, p.56).



686

Cabe ressaltar que no livro Educação não é privilégio, de 1957, Anísio Teixeira
defende, em consonância com a dinâmica da sociedade liberal e progressiva, uma
educação comum “para a formação do cidadão comum da democracia” (TEIXEIRA,
1957, p.69), evidenciando a perspectiva de organizar a escola – pública, universal e
gratuita – como “miniatura da comunidade”, tendo em vista uma escola prática, de
iniciação ao trabalho, de formação de hábitos de pensar, de fazer, de trabalhar e de
conviver e participar em uma sociedade democrática. (TEIXEIRA, 1957, p.50).
Esses hábitos são explicitamente reafirmados na década de 1990, como
demonstram os pilares “aprender a conhecer”, “aprender a fazer”, “aprender a viver
juntos” e “aprender a ser” da educação para o século XXI disseminada pelo relatório da
Unesco “Educação: Um Tesouro a Descobrir”, documento que será analisado a seguir
considerando o contexto histórico de revigoramento do lema “aprender a aprender”.

2 Neoescolanovismo e educação para o século XXI da Unesco


Com a consolidação do neoliberalismo na América Latina, cujo marco principal


é o Consenso de Washington, de 1989, que definiu um conjunto de recomendações
considerado como a única receita para superação do déficit público e estabilização das
economias, configurou-se um contexto de equilíbrio fiscal com corte nos gastos
públicos, rígida política monetária, desregulação do mercado, privatização e abertura
comercial. Nessa conjuntura, as ideias pedagógicas no Brasil passaram “a assumir no
próprio discurso o fracasso da escola pública”, advogando “também no âmbito da
educação, a primazia da iniciativa privada regida pelas leis de mercado”. (SAVIANI,
2011a, p.428).
Cabe ressaltar que, na dinâmica da mundialização do capital, as reformas
educacionais implementadas nos países dependentes, em que pesem as especificidades
locais, passam a seguir as mesmas orientações traçadas pelos organismos internacionais,
consolidando um processo de mundialização da educação. Esse fenômeno faz parte do
processo de condução de um novo bloco histórico, cujas mudanças foram
implementadas a partir dos anos 1990, repercutindo na construção da sociabilidade
capitalista e na difusão do projeto neoliberal com a intenção de uniformizar a
“integração global” e instituir novas condicionalidades para empréstimos e doações para
a área educacional. (MELO, 2003 e 2005).



687

É nesse contexto que se insere a elaboração e a disseminação do relatório da


Unesco “Educação: Um Tesouro a Descobrir”, escrito em 1996 pela Comissão
Internacional de Educação para o Século XXI, sob a coordenação de Jacques Delors. No
Brasil, o relatório foi publicado em 1998, “com apoio do Ministério da Educação e com
apresentação assinada pelo ministro Paulo Renato de Souza”. (DUARTE, 2006, p.45).
É importante destacar que a orientação disseminada pelo Relatório Delors
também foi assumida no Brasil “como política de Estado por meio dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) elaborados por iniciativa do MEC para servir de
referência à montagem dos currículos de todas as escolas do país”. (SAVIANI, 2011a,
p.433).
Abordando uma nova ordem social mundial para o século XXI, o Relatório
Delors caracteriza uma “aldeia global” atravessada, dentre outras tensões, pela tensão
entre “o longo prazo e o curto prazo”, com destaque para a “supremacia do efêmero e
do instantâneo”. Nessa perspectiva, o documento considera uma educação para o século
XXI fundamentada na atualização do conceito de educação ao longo da vida, cuja
“tensão entre o extraordinário desenvolvimento dos conhecimentos e as capacidades de
assimilação do homem” é apontada para alertar que os “currículos escolares estão cada
vez mais sobrecarregados”, justificando a necessidade “de fazer escolhas, com a
condição de preservar os elementos essenciais de uma educação básica que ensine a
viver melhor pelo conhecimento, pela experiência e pela construção de uma cultura
pessoal”.
A concepção de educação ao longo da vida está voltada para “a capacidade de
aprender a aprender” (UNESCO, 2010, p.12), tendo em vista uma “‘sociedade
educativa’ na qual tudo pode ser uma oportunidade para aprender e desenvolver os
talentos”. (UNESCO, 2010, p. 12-32).

[...] parece-nos que é imperativo impor o conceito de educação ao


longo da vida com suas vantagens de flexibilidade, diversidade e
acessibilidade no tempo e no espaço. É a ideia de educação
permanente que deve ser, simultaneamente, reconsiderada e ampliada;
com efeito, além das necessárias adaptações relacionadas com as
mudanças da vida profissional, ela deve ser uma construção contínua
da pessoa, de seu saber e de suas aptidões, assim como de sua
capacidade para julgar e agir. Ela deve permitir que cada um venha a
tomar consciência de si próprio e de seu meio ambiente, sem deixar de
desempenhar sua função na atividade profissional e nas estruturas
sociais. (UNESCO, 2010, p.12).



688

Nessa direção, a adesão da Unesco ao lema “aprender a aprender” traduz a


ênfase na capacidade adaptativa para atender à dinâmica de constante atualização nos
marcos das exigências de empregabilidade (SAVIANI, 2011a). Trata-se, portanto, de
uma concepção de educação baseada na formação voltada para a “adaptação aos
ditames do processo de produção e reprodução do capital”. (DUARTE, 2006, p.42).
No que se refere à formação docente, o Relatório Delors reafirma essa
perspectiva adaptativa ao considerar que os professores também devem responder ao
“imperativo de atualização dos conhecimentos e das competências”, evidenciando um
discurso coercitivo ao ressaltar que a vida profissional dos professores “deve ser
organizada de tal modo que estejam em condições, até mesmo, sejam obrigados a
aprimorar sua arte e a se beneficiar de experiências vividas em diversas esferas da vida
econômica, social e cultural”. (UNESCO, 2010, p.35).
Ao indicar “as rápidas alterações suscitadas pelo progresso científico”
(UNESCO, 2010, p.13), o Relatório Delors revela a perspectiva de explorar os “talentos
que, à semelhança de tesouros, estão soterrados no interior de cada ser humano”
(UNESCO, 2010, p.14), enfatizando que a educação ao longo da vida está baseada em
quatro pilares:

• Aprender a conhecer, combinando uma cultura geral,


suficientemente ampla, com a possibilidade de estudar, em
profundidade, um número reduzido de assuntos, ou seja: aprender a
aprender, para beneficiar-se das oportunidades oferecidas pela
educação ao longo da vida.
• Aprender a fazer, a fim de adquirir não só uma qualificação
profissional, mas, de uma maneira mais abrangente, a competência
que torna a pessoa apta a enfrentar numerosas situações e a trabalhar
em equipe. Além disso, aprender a fazer no âmbito das diversas
experiências sociais ou de trabalho, oferecidas aos jovens e
adolescentes, seja espontaneamente na sequência do contexto local ou
nacional, seja formalmente, graças ao desenvolvimento do ensino
alternado com o trabalho.
• Aprender a conviver, desenvolvendo a compreensão do outro e a
percepção das interdependências – realizar projetos comuns e
preparar-se para gerenciar conflitos – no respeito pelos valores do
pluralismo, da compreensão mútua e da paz.
• Aprender a ser, para desenvolver, o melhor possível, a personalidade
e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de
autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. Com essa
finalidade, a educação deve levar em consideração todas as
potencialidades de cada indivíduo: memória, raciocínio, sentido
estético, capacidades físicas, aptidão para comunicar-se. (UNESCO,
2010, p.31).



689

Considerando que o Relatório Delors apresenta um discurso marcado pela


estratégia de equilíbrio e conciliação, que mistura “princípios oriundos de distintas
concepções filosóficas e políticas” (DUARTE, 2006, p.53) com o objetivo de
naturalizar as contradições das sociedades capitalistas, cabe ressaltar que a suposta
conciliação de “uma cultura geral, suficientemente ampla” com “um número reduzido
de assuntos”, traduz, na verdade, a ênfase nos denominados saberes básicos de “ler,
escrever e contar”. (UNESCO, 2010, p.15).
Isso converge com as contradições do movimento histórico das relações sociais
capitalistas, em que a escola é hipertrofiada ao mesmo tempo em que é secundarizada,
tendo em vista o interesse de elevação do patamar mínimo de racionalidade em
consonância com um mínimo positivo para a ordem capitalista. (SAVIANI, 1994).
Atualmente, a classe dominante difunde o discurso da hipervalorização da
educação dentro de um movimento em que as promessas de inclusão e sucesso são
acompanhadas pelas noções de empreendedorismo e empregabilidade, sendo coerente
com os interesses dominantes de elevação do patamar mínimo de racionalidade, o que
não significa se comprometer com uma real democratização do acesso à educação
(RUMMERT, 2011). Nesse cenário, verifica-se, conforme acepção gramsciana, que há
uma multiplicação artificial de ofertas educativas e a continuidade da marca social da
escola. (RUMMERT, 2011).
A estratégia de equilíbrio e conciliação do Relatório Delors também pode ser
verificada na relação entre público e privado, uma vez que apresenta a educação como
“um bem coletivo que deve ser acessível a todos” para justificar a combinação de
“recursos financeiros do setor público e privado” (UNESCO, 2010, p.22), traduzindo o
interesse na “implantação de parcerias”. (UNESCO, 2010, p.36).
Articulado ao movimento de mundialização da educação, essa proposta do
documento de articular parcerias revela os interesses da classe dominante em
(con)formar um padrão de sociabilidade na ótica do capital, buscando consolidar
políticas de formação para o trabalho simples nos moldes do suposto capitalismo de
face humanizada, defendendo a possibilidade de conciliar os fundamentos de uma
economia de mercado com justiça social. (MARTINS; NEVES, 2015, p.59).
Nessa direção, cabe destacar que os quatro pilares defendidos no Relatório
Delors se constituem em desdobramentos do lema “aprender a aprender”, legitimando a
concepção de educação como processo permanente por meio de um discurso que “acaba
por jogar água no moinho dos esforços internacionais para adequar a educação ao



690

processo de sobrevivência do capitalismo” (DUARTE, 2006, p.54), o que consolida um


“esvaziamento completo” da educação.
Diante desse processo de esvaziamento da educação, torna-se determinante para
a luta contra-hegemônica resgatar a centralidade da socialização do saber historicamente
elaborado, situando

[...] a especificidade de educação como referida aos conhecimentos,


ideias, conceitos, valores, atitudes, hábitos, símbolos sob o aspecto de
elementos necessários à formação da humanidade em cada indivíduo
singular, na forma de uma segunda natureza, que se produz,
deliberada e intencionalmente, através de relações pedagógicas
historicamente determinadas que se travam entre os homens.
(SAVIANI, 2011b, p.20).

Isso significa situar o conhecimento historicamente elaborado como o interesse


do aluno concreto, tendo em vista a necessidade de distinguir entre o aluno empírico e o
aluno concreto, uma vez que “[...] os educandos, enquanto concretos, também
sintetizam relações sociais que não escolheram”, ou seja, “enquanto síntese das relações
sociais, o aluno está situado numa sociedade que põe a exigência do domínio desse tipo
de conhecimento”. (SAVIANI; DUARTE, 2012, p. 79-80).

Considerações finais

No movimento histórico de legitimação das pedagogias do aprender a aprender,


o ideário pedagógico hegemônico operou um esvaziamento perverso que contribui para
a manutenção das relações sociais capitalistas. Isso está traduzido no processo de
ressignificação do lema “aprender a aprender”, passando da ênfase na adaptação para
revolução cultural, da escola progressiva, à ênfase na adaptação para empregabilidade,
da educação para o século XXI.
Um aspecto emblemático dessa diferença de ênfase é a metamorfose na
concepção de professor, passando da defesa do professor como filósofo para a
caracterização de um professor apto a atualizar conhecimentos e competências.
Enquanto os fundamentos da escola progressiva estão vinculados,
declaradamente, à dinâmica da sociedade liberal e progressiva, na perspectiva de formar
hábitos em consonância com a revolução democrática liberal; os norteamentos da
educação para o século XXI estão atravessados por um discurso híbrido orquestrado
pela estratégia neoliberal de conciliação, tendo em vista uma sociedade em acelerado



691

processo de mudança que exige uma (con)formação voltada para o mercado,


culminando na definição de currículos escolares “esvaziados”.
Diante desse esvaziamento perverso nos limites das concepções de mundo
hegemônicas, cabe destacar a crítica de Anísio Teixeira à “deformação monstruosa” que
substitui “o regime do compulsório, desagradável e deseducativo da escola tradicional
pelo regime do caprichoso, extravagante e igualmente deseducativo de uma falsa escola
nova”. (TEIXEIRA, 2000, p. 18).
Considerando que a análise do conteúdo pedagógico do lema “aprender a
aprender” evidencia contradições que trazem elementos importantes para a luta contra-
hegemônica, cabe lembrar as contribuições da pedagogia histórico-crítica,
principalmente no que se refere à importância de consolidar uma concepção de
educação alicerçada na formação omnilateral e na socialização do conhecimento
historicamente elaborado. Isso se inspira na tese de Saviani e Duarte (2012, p. 2) de que
“a luta pela escola pública coincide com a luta pelo socialismo”, o que significa somar
esforços na construção coletiva da pedagogia histórico-crítica enquanto um “trabalho
educativo na perspectiva de superação do modo de produção capitalista”. (SAVIANI &
DUARTE, 2012, p.5).

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Rio de Janiero: Civilização Brasileira, 2001.

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FERNANDES, Florestan. O desafio educacional. In: OLIVEIRA, Marcos Marques de.


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692

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MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução de Rubens Enderle, Nélio
Schneider e Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MELO, Adriana Almeida Sales de. A mundialização da educação: o projeto neoliberal de


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NEVES, Lúcia Maria Wanderley (org.). A nova pedagogia da hegemonia: Estratégias do
capital para educar o consenso. São Paulo: Xamã, 2005.

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FERRETTI, C. J. et al. (Orgs.). Novas tecnologias, trabalho e educação:um debate
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TEIXEIRA, Anísio. Pequena Introdução à Filosofia da Educação – A Escola Progressiva,


ou, a Transformação da Escola. – 6. Ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

__________. Educação não é privilégio. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1957.

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um tesouro a descobrir: relatório para a Unesco da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI. Brasília, DF: Unesco, 2010.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

POR UMA RELAÇÃO DIALÉTICA NO CONTEXTO ESCOLAR: PRÁTICAS


TRANSFORMADORAS E FAVORÁVEIS À COMPREENSÃO DA
COMPLEXIDADE SISTÊMICA DO EDUCANDO

Marcos Antonio da Silva1 - UNESA CABO FRIO/RJ


Mônica Castello Branco de Oliveira2 - UNESA CABO FRIO/RJ

Resumo: O presente trabalho contempla uma atenção diferenciada frente às queixas


apresentadas pelas principais matrizes relativas à compreensão da complexidade sistêmica do
educando e objetiva qualificar a participação real na relação dessas matrizes do
desenvolvimento escolar da criança, favorecendo um diálogo articulado e mediado pelos
profissionais do Núcleo de Escuta e Orientação Educativo-Pedagógica para Atendimento à
Escola e à Família com Criança em Situação Escolar. O NEOFE é um programa de extensão do
Curso de Pedagogia da UNESA/Cabo Frio, que atende crianças da rede municipal local. As
crianças encaminhadas pelas UEs apresentam dificuldades para entrar em atividade, não,
necessariamente, de aprendizagem. O programa tem como preceito ressignificar os indicadores
socioculturais que estruturam a identidade de crianças despotencializadas frente a seus direitos e
aos fenômenos concretos da vida social numa perspectiva histórico-dialética.

Palavras-chave: Educação; Práxis transformadora; Integração social.

Introdução

Por conta da ausência de compreensão da complexidade sistêmica que envolve o


desenvolvimento da criança no contexto escolar e as contradições emergentes na relação
entre as suas principais matrizes, uma outra relação possível torna-se imprescindível
para se assegurar os princípios gerais instituídos desde a Declaração dos Direitos da
Criança, aprovada pela Assembleia da ONU em 1959, até as leis mais recentes
relacionadas às questões relativas à criança em situação escolar.
Percebe-se que a prática educativa familiar e escolar, supostamente neutra, ainda
se faz presente na educação familiar e na educação escolar, dificultando o avanço na

1
Mestre em Ciências Sociais: Universidade Técnica de Lisboa - Portugal. Professor auxiliar III da
Universidade Estácio de Sá / Campus Cabo Frio, Especialista em Psicopedagogia/UFRJ e Orientador
Educacional da Prefeitura Municipal de Cabo Frio e de Araruama/Ensino Fundamental. E-mail:
ppmarsilva@uol.com.br.
2
Mestre em Literaturas de Língua Inglesa: Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Professora auxiliar
III da Universidade Estácio de Sá / Campus Cabo Frio, Especialista em Psicopedagogia/FERLAGOS e
Professora de Língua Inglesa do Estado do Rio de Janeiro/Ensino Médio. E-mail:
xxmoninfante@yahoo.com.br.


694

luta por uma “educação libertadora, transformadora”, proposta por Freire (1983, p. 11).
Uma educação que contribua efetivamente para uma conscientização estratégica que
permita, principalmente, à criança uma travessia prazerosa no fazer com limites, mas
com a possibilidade do vir e ser e de atuar com base no princípio da atividade,
associando-se à ação e não à passividade junto à sociedade, desenvolvendo assim os
princípios de liberdade, de criatividade e de autoridade como propunha Borges (2000, p.
55). Ao referenciar “a crise da mudança de valores” e a necessidade de “muita reflexão,
análise, pesquisa sobre a relação ensinante/aprendente no processo de educação e
saúde”, a autora ressalta as ações participativas, solidárias e democráticas, capazes de
transformar a sociedade pela comunicação entre os sujeitos de relações e, sempre que
possível, transcender ideologias, sentimentos, metodologias e propostas apenas
generosas para, enfim, promover uma educação humanizante, “uma educação com
alma”.
Para Saviani (2012, p. 11), “...a compreensão da natureza da educação passa pela
compreensão da natureza humana”, uma vez que “...a educação é um fenômeno próprio
dos seres humanos”. Sendo a pedagogia a ciência da educação, o autor propõe a
Pedagogia Histórico-crítica que nos convida a reorganizar a prática educativa de modo a
viabilizar o acesso ao saber elaborado (ciência), possibilitando, concomitantemente, a
descoberta da humanidade em cada um de nós:

O trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente,


em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e
coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação
diz respeito, de um lado à identificação dos elementos culturais que
precisão ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que
eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à
descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo.
(SAVIANI, 2012, p.13).

A construção da proposta Programa de Escuta e Orientação Educativo-


Pedagógica para Atendimento à Escola e à Família com Criança em Situação Escolar
contempla uma atenção diferenciada frente às queixas apresentadas pela matriz escola e
pela matriz família relativas às vicissitudes da criança no processo acadêmico.
O programa objetiva qualificar a participação real na relação dessas matrizes do
desenvolvimento do educando, favorecendo um diálogo articulado e mediado pelos
profissionais do NEOFE – Núcleo de Escuta e Orientação Educativo-Pedagógica para
Atendimento à Escola e à Família com Criança em Situação Escolar.



695

O NEOFE é um programa de extensão do Curso de Pedagogia da Universidade


Estácio de Sá/Campus Cabo Frio, criado em 2014, a partir da demanda da
brinquedoteca que atende crianças matriculadas na rede municipal local, das escolas
situadas em bairros próximos ao campus da universidade. Desde a sua origem, o
NEOFE tem como um de seus preceitos ressignificar os indicadores socioculturais que
estruturam a identidade de crianças despotencializadas frente a seus direitos e aos
fenômenos concretos da vida social numa perspectiva histórico-dialética.
As crianças atendidas na brinquedoteca foram indicadas pelas equipes gestoras
das Unidades Escolares por apresentarem aproveitamento insatisfatório nas avaliações
formais e/ou dificuldade para as atividades em grupo. Cabe ressaltar que essas crianças
foram encaminhadas por apresentarem dificuldade de aprendizagem, fato que, durante o
desenvolvimento das atividades na brinquedoteca, revelou-se, muitas vezes, como
dificuldade para entrar em atividade, em movimento.
As intervenções educativo-pedagógicas, teóricas e práticas, produzidas na
brinquedoteca, priorizam o mundo dos brinquedos, das brincadeiras, dos jogos, das
atividades artísticas e da cultura corporal do movimento.
Paralelo ao tempo do trabalho sistematizado na brinquedoteca, percebeu-se a
importância da inclusão dos responsáveis pelas crianças, que ficavam ociosos pelo
campus da universidade, em um espaço de debate sobre a dinâmica da brinquedoteca,
que abre possibilidades para o estímulo do pensamento abstrato na medida em que a
criança opera com significados. A partir desses debates, foi possível compreender que
as famílias também tinham suas queixas em relação ao fazer escolar, dificuldades de
entenderem a função da escola e as contradições nela produzidas a partir das demandas
dos educandos.
Em virtude dessa realidade, a opção metodológica para o desenvolvimento do
NEOFE consta, prioritariamente, de observação sistemática, escuta, diálogo e
orientação para desvendar as interações dos cotidianos escolar e familiar, levando
sempre em conta a importância dos processos afetivo-cognitivos, e, assim, entender os
aspectos constitutivos do desenvolvimento e das aprendizagens do educando,
desconstruindo o engessamento instituído nas relações institucionais e, possivelmente,
inaugurando outros fazeres necessários para a ressignificação das revelações em
contexto, que valorize a real disponibilidade das matrizes estruturantes do
desenvolvimento ecológico da criança identificada.



696

Desenvolvimento

O sonho pela humanização, cuja concretização é sempre processo, e


sempre devir, passa pela ruptura das amarras reais, concretas, de
ordem econômica, política, social, ideológica etc., que nos estão
condenando à desumanização. O sonho é assim uma exigência ou uma
condição que se vem fazendo permanente na história que fazemos e
que nos faz e re-faz. (FREIRE, 1992, p.99).

A escola surge com a finalidade de transmitir às novas gerações o saber


historicamente produzido pelo ser humano. Hoje, sua missão engloba a construção da
subjetividade e a formação de habilidades para interpretar, inferir, ler o mundo, ler o
outro e a si mesmo. Ela deve cumprir a sua função sociocultural, garantindo ao
educando uma qualificação objetiva do processo de construção e reconstrução do
conhecimento e sua consequente apropriação. Saviani (2012, p.13) elucida que a
educação não se limita ao ensino, que é um de seus aspectos e afirma que, por ter a
educação uma identidade própria, é possível “a institucionalização do pedagógico
através da escola”.
É relevante ratificar que o movimento de indiferenciação-diferenciação na
produção escolar deve promover uma consciência crítica sobre o ato de apropriar-se,
que não significa tornar-se dono de algo, e sim tornar seu o que era desconhecido, o que
era indiferente. Isso nos remete a uma reflexão acerca dos cuidados humanizantes:

A escola, como lócus da educação sistematizada, não pode passar ao


largo do próprio conceito de educação em sua inteireza, como
apropriação da cultura. Esta tem a ver com a própria concepção de
homem que constrói sua especificidade e se constrói enquanto ser
histórico à medida que transcende o mundo natural pelo trabalho. Ao
transcender a mera natureza (tudo aquilo que não depende de sua
vontade e de sua ação), o homem ultrapassa o nível da necessidade
natural; é algo construído pelo homem à medida que constrói sua
própria humanidade. (PARO, 2001, p. 103).

Historicamente, a escola não cumpre o seu papel de promoção de saberes


sistematizados pela humanidade e, tão pouco, o de ampliar o despertar pelo querer
aprender, realizar novos fazeres e, sobretudo, favorecer um constante construir, um
caminhar dinâmico e prazeroso na relação dos sujeitos, enquanto produtores de
conhecimento para a cidadania – ser de diálogo – intensificando e ampliando as
possibilidades de criação buscando adquirir, progressivamente, consciência do meio
onde vivem. Uma escola que contribua efetivamente para uma conscientização



697

estratégica e que permita o desenvolvimento ampliado de seus educandos, numa


perspectiva transdisciplinar que englobe, para além e através dos conhecimentos
disciplinares, o olhar empático para o ser e o saber com o outro, favorecendo as relações
de identidade, de realidade crítica e de integração social em função de princípios
significativos para a existência individual e coletiva.
Estudos referentes às teorias pedagógicas pontuam reflexões críticas sobre
relevantes aspectos da dinâmica participativa na relação escola-sociedade e sinalizam
importantes princípios para a necessária transformação do fazer escolar frente aos novos
desafios contemporâneos.
A escola como uma matriz de relações sociais é um espaço específico de
desenvolvimento social, que precisa, junto às famílias, construir uma modalidade de
parceria favorável à escuta e à orientação educativo-pedagógica no acompanhamento do
educando em contexto, pois urge uma compreensão sobre a expressiva contradição entre
a percepção do cotidiano e a concepção de participação em nível de discurso, trazendo à
tona a indiferença de visão sobre o constructo “participação” e a necessária superação
de uma aparência de participação. Para algumas pessoas, participar é um compromisso
“institucionalizado”, um movimento de exigência social, de imposição externa; para
outras, implica em manipular os fatos a fim de obter seus próprios objetivos,
previamente estabelecidos; e ainda têm os que acreditam que participar é aproveitar as
oportunidades concedidas, legitimando-as em seus envolvimentos e, desse modo,
fortalecendo a ideia de estar exercendo um direito sem se dar conta de que isso não
corresponde à realidade.
Percebe-se, de fato, que ao participar da vida escolar do educando, a família,
inconsciente ou conscientemente, promove uma sensação de prazer e de alegria e
assegura-lhe o desejo de crescer e de se autorizar a conhecer. A comunicação existente
na relação família-escola exige uma interlocução atenta para a identificação de desejos e
intenções não ditas, assim como para a troca sobre as experiências vividas pela criança
no contexto familiar e escolar. A comunicação na relação família-escola é um indicador
que potencializa o constante construir de uma cultura participativa nessa relação,
ampliando-se, possivelmente, para as relações sociais como um todo.
Sabe-se, no que diz respeito à concepção de escola, sua relação com as famílias e
vice-versa, que a escola representa uma matriz significativa de inclusão social da
criança ao constatar a realidade da vida escolar e a considerar a escola como um



698

significativo espaço de construção do conhecimento e de valores de cultura para o


desenvolvimento equilibrado das potencialidades da pessoa humana.
Em especial, alguns estudos referenciam que a qualidade participativa na relação
escola-sociedade implica no acolhimento da família dos educandos e precisa ser
repensada e melhor organizada pela instituição acadêmica, para que o processo
participativo da escola seja ampliado e real, no sentido de que a escola e sociedade
reflitam juntas. Os direitos à educação precisam ser garantidos e algumas atenções
levadas em consideração sem a transferência de responsabilidade para as matrizes-
referência que estruturam o processo de desenvolvimento educativo-pedagógico da
criança. Família e Escola se acomodam na situação de queixa - seja de defesa e/ou de
ataque - e o diálogo não emerge e nem é promovido.
Se a confusão está na escola ou na família, nas relações dessas matrizes, a
proposta é mudar o ambiente e promover um “espaço de confiança”, como sugere
Fernández (1990, p.14), ao problematizar questões relacionadas às contradições que
dificultam a inserção institucional. Nesse novo ambiente, a unidade escolar, a família e
o sujeito identificado (o educando) têm a oportunidade de sair de seus cômodos lugares
para ouvir, ter voz e buscar compreender o que os aprisionou na queixa.
Segundo Bronfenbrenner (1996, p. 87), um ambiente diferente leva a diferentes
padrões de “papel, atividade e relação” para os que desse ambiente participam, o que
não equivale a dizer que o indivíduo não terá continuidade em seu comportamento ao
mudar de ambiente, mas que esta continuidade será diferenciada por influências
contextuais.
Ainda, segundo o autor, nas experiências do dia a dia, essa assertiva é fácil de ser
verificada: uma criança age de maneira distinta em casa e na escola, assim como seus
pais também o fazem no trabalho e em casa. Todavia, a mesma assertiva não se torna
evidente na pesquisa desenvolvimental sendo, muitas vezes, desconsiderada, o que traz
problema para se interpretar e generalizar os fenômenos.

[...] existe um fenômeno notável pertencente aos ambientes: dentro de


qualquer cultura ou subcultura, ambientes de um determinado tipo –
como as casas, as ruas ou os escritórios – tendem a ser muito
semelhantes, ao passo que entre as culturas elas são distintamente
diferentes. É como se dentro de cada sociedade ou subcultura existisse
uma planta, um esquema, para a organização de cada tipo de
ambiente. Além disso, este esquema pode ser modificado, resultando
em que a estrutura dos ambientes numa sociedade pode ser
nitidamente alterada e produzir mudanças correspondentes no



699

comportamento e desenvolvimento. (BRONFENBRENNER, 1996, p.


6).

Nesse sentido, o NEOFE inaugura um espaço fértil, de confiança e de desejo,


cujas práticas educativo-pedagógicas envolvem ações integradas e dialógicas,
ampliando a compreensão das contradições existentes nas condições da vida humana e
afastando um possível desequilíbrio na escola, na família e/ou na relação dessas
matrizes, o fracasso escolar e os encaminhamentos errôneos para um atendimento
médico.
Os profissionais responsáveis pelo programa postulam a necessidade de
contextualização histórica e social do aluno. Por seu intermédio, possivelmente, serão
identificadas as situações proximais de cada aluno, sua condição de existente de maior
ou menor risco e circunstâncias. É fundamental que haja um trabalho de compreensão
sobre os contextos integrados, aliado a uma ressignificação de crenças, especialmente
nos campos do querer ser, querer aprender e querer pertencer, atento à singularidade do
objeto de trabalho que é, ao mesmo tempo, sujeito, um ser humano, com anseios e
vontade própria, considerando, sobretudo, que “seu objeto-sujeito precisa querer para
que a produção se realize”, Paro apud Bastos (2002, p.64).
O querer aprender é, também, um valor cultivado e cabe ao educador-profissional
despertar esse querer. Neste sentido, Rios (2007, p. 48) argumenta que o profissional
competente é o que sabe fazer bem, o que envolve uma dupla dimensão da palavra
competência. Segundo a autora, o saber fazer bem tem a dimensão técnica, que se refere
ao saber propriamente dito, e a dimensão política, que está ligada “... a necessidades
historicamente definidas pelos homens de uma determinada sociedade”.
Acreditando que a descrição da metodologia não deve ser apresentada como algo
criado a priori para organizar o formato desse programa, a opção metodológica foi
concebida na própria gênese e criação do ato de conhecer a realidade objetiva – a do
conhecimento vivenciado e não apenas pensado e refletido; a de um conhecimento
percebido e sentido no dia a dia escolar - uma metodologia referenciada na pesquisa
transdisciplinar, cujo viés permeia a troca, a abertura à comunicação e a um saber para
além dos manuais didáticos, o conhecimento do ser - um conhecimento essencial e
“primeira condição de uma nova escuta, de um novo real”, como ressalta Random,
(2000, p. 10). Trata-se de uma opção coerente e consistente com os interesses que
estruturam a base de uma sociedade educada, frente à perspectiva epistemológica
relacional, de base interacionista, e contrária ao aparelho científico dominante.



700

[...] não deveríamos fazer da ciência um fetiche, como se fosse uma


entidade com vida própria, capaz de reger o universo e de determinar
a forma e o contexto de nossa sociedade, tanto presente quanto futura.
[...] A ciência é apenas um produto cultural do intelecto humano que
responde a necessidades coletivas concretas – inclusive aquelas
consideradas artísticas, sobrenaturais e extracientíficas – e também
aos objetivos específicos determinados pelas classes sociais
dominantes em períodos históricos precisos. Todos sabem que a
ciência é construída pela aplicação de regras, métodos e técnicas
sujeitas a certo tipo de racionalidade convencionalmente aceita por
uma pequena comunidade de indivíduos chamados de cientistas que,
por serem humanos, estão por isso mesmo, sujeitos a motivações,
interesses, crenças e superstições, emoções e interpretações do seu
envolvimento social, cultural e individual. Consequentemente, não
pode haver valores absolutos no conhecimento científico porque este
irá variar conforme os interesses objetivos das classes envolvidas na
formação e na acumulação de conhecimento, ou seja, na sua produção
(BORDA, 1981, p. 43).

O primeiro passo foi o de organizar uma sequência de ações, a partir da


observação sistemática, não somente a de ver e entender, mas, efetivamente, a de
examinar e auscultar a comunidade envolvida no programa. Uma ação básica para
absorver os elementos estruturantes e formar um panorama da situação inicial,
prosseguindo com ações mais dirigidas no sentido de aproximar-se do caminho mais
eficaz pela busca das possíveis indicações para a orientação necessária sobre a questão
identificada.
Ratifica-se, portanto, que a opção metodológica construída, passo a passo,
configura a organização do programa em ações contínuas na sistematização do mesmo:
• Primeira ação: Acolhimento da situação trazida pela equipe gestora da Unidade
Escolar, referente às vicissitudes apresentadas pelo educando;
• Segunda ação: Diálogo com a família para a escuta das diferentes vozes;
• Terceira ação: Diálogo com o educando / sujeito identificado;
• Quarta ação: Orientação educativo-pedagógica para escola e família, numa
perspectiva operativa e dialógica sobre o fazer da escola, o fazer da família e o fazer
com a escola, para pontuar informações significativas sobre relevantes aspectos da
realidade escolar vivida pelas matrizes, que estruturam o desenvolvimento do
educando em situação escolar, dentro e fora da escola. Tais informações, na maioria
das vezes, provocam desdobramentos reflexivos sobre a relação família-escola na
continuidade/descontinuidade do processo construtivo para o desenvolvimento
educativo-pedagógico do educando, evidenciando, portanto, a importância da
inclusão da família na investigação sobre a temática em questão.



701

• Quinta ação: possíveis desdobramentos - supervisão e/ou encaminhamento...


Na fase atual do desenvolvimento do programa, com ênfase na reflexão de Freire
(1978, p. 81) frente ao movimento da “educação como prática de liberdade”, a proposta
construída a partir das vozes confirma um caminho fértil, coerente e consistente ao que
se objetiva, uma vez que ratifica o sentido do trabalho em desenvolvimento, gera
mudanças qualitativas na organização da identidade pessoal e institucional e nos
comportamentos de reciprocidade no interjogo de interação social.
Durante o primeiro ano do desenvolvimento do programa, o NEOFE acolheu treze
educandos com questões complexas do desenvolvimento humano em contexto:
sentimento de abandono pelos responsáveis, dificuldade real de aprendizagem,
resistência aos limites e descrença nas possibilidades, falta de acesso ao conhecimento
científico, baixa autoestima... Desses educandos encaminhados, apenas dois não
participaram de todas as etapas do programa por motivos não justificados. Os demais
participaram de forma integrada, contemplando as etapas desde o processo de
acolhimento de suas queixas, superando as tensões que envolveram as diferentes
temáticas de carências afetivas e de contradições socioculturais, até a devolução da
exposição segura e confiante frente às angústias iniciais, ressignificando o seu olhar e o
seu fazer com o outro e com o mundo e, assim, confirmando a importância do “espaço
de confiança” favorecido pelo NEOFE.
Cabe ressaltar que para três acolhimentos houve necessidade de ampliação do
número de etapas previstas, uma vez que o grau de complexidade da situação-problema
exigiu um justo tempo para a acomodação conceitual e relacional das partes e
consequente ação operativa dos profissionais envolvidos.
É fato que nesse tempo globalizado, de perturbações identidárias, de agudização
do capitalismo e de violências tecnoconsumistas, urge a promoção de ações projetivas,
orientadas por conteúdos da humanização, contemplando, sobretudo, práticas
participativas, dialógicas e de justiça social, cotidianamente.
Atentos para a importância do compromisso com a cidadania como ato de
libertação individual e social, torna-se necessária a compreensão de que “Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua
vez, se volta problematizando aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles
novo pronunciar.” Freire (1978, p. 92).
Integrar saberes e não saberes é, sem dúvida, um caminho para enfrentar a
absorção do banalizado, um caminho de marcas para se refazer a história e reconstruir



702

sentidos e significados do valor da vida humana. Numa perspectiva dialética, os


procedimentos de construção e reconstrução de conhecimento superam a representação
da realidade externa e exigem um consenso construído por sujeitos históricos, da
educação, que estão juntos, por uma luta de linguagem convergente. Esta incorporação
do conceito de construção coletiva se dá, por meio da prática participativa real,
constituindo socialmente conteúdos priorizados pela cultura de Paz, que cultiva as
pessoas e as instituições sociais, conferindo-lhes o sentido e o significado de
emancipação cidadã, imprescindível à dignidade da vida humana na sociedade do seu
tempo e à felicidade pessoal, familiar ou institucional. É fundamental o
desenvolvimento e o cultivo dessas categorias nas relações pessoais e institucionais na
atualidade.

Conclusões

Não é possível pensar na Escola sem pensar na Família e vice-versa, quando a


questão em discussão é o desenvolvimento ecológico da criança, independente do ciclo
escolar. Por esse caminho, o pensar, discutir, registrar, sistematizar, fazer e refazer
estudos e pesquisas sobre a prática educativa familiar e escolar promove a ampliação de
novas perspectivas para a busca de uma melhor prática do processo de construção de
conhecimento para a vida cidadã, favorecendo as relações de identidade, de realidade
crítica e de integração social a partir de princípios significativos para a existência
individual e coletiva. Nesse sentido, Saviani (2007) ratifica a importância das relações
entre educação e sociedade, conferido à educação “um papel decisivo na conformação
da sociedade evitando sua desagregação”.
A escola pode e deve agir como instrumento de mudança e transformação da
sociedade se objetivar estímulos à participação da família, respeitando seus valores
culturais nas relações recíprocas. Aqui está implícita a contribuição do NEOFE, quando
parte de uma comunicação relacional, que se integra aos objetivos de uma ação
educativa. Assim, o trabalho confirma que uma correlação interacionista entre a família
e a escola, no que diz respeito à transparência das ações construídas e participativas,
favorece a visibilidade das práticas educativas e o valor social da educação
institucionalizada.



703

O próprio procedimento da dinâmica da proposta transforma-se numa situação de


orientação favorável à participação política por uma educação para a saúde integrada e
para a construção de uma cultura de paz.
Destaca-se, para reflexão em movimento e relacional, uma ação de parceria
família-escola, com base nas escutas, no diálogo e nas orientações possíveis. Dessa
forma, o processo educativo pressupõe uma constante interação sociocultural entre as
partes, o que, efetivamente, favorece a incorporação de mudanças mais profundas e
significativas para o desenvolvimento educacional da criança em situação escolar.
Considerando que “... a verdadeira racionalidade não é apenas teórica, apenas
crítica, mas também autocrítica” como argumenta Morin (2001, p. 24) e tendo clareza
da incompletude da proposta, o agendamento para o acolhimento de novas demandas
será suspenso a partir do mês de outubro de 2015, com reinício previsto para março de
2016. Nesse período, o NEOFE entrará em processo de avaliação e ressignificação
teórico-prática.

Referências

BASTOS, João B. (Org). Gestão Democrática. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.

BORDA, Orlando F. Aspectos Teóricos da Pesquisa Participante: considerações sobre o


significado e o papel da ciência na participação popular. In: Brandão, Carlos R. (Org.).
Pesquisa Participante. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981, p. 43.

BORGES, Aglael Luz. A travessia no desenvolvimento e aprendizado: a constante relação entre


subjetividade e objetividade. In: Scoz, Beatriz (Org.). (Por) uma educação com alma: a
objetividade e a subjetividade nos processos de ensino/aprendizagem. Petrópolis, RJ: Vozes,
2000.

FERNÁNDEZ, Alícia. A Inteligência Aprisionada. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio


de Janeiro, Paz e Terra, 1992.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

MORIN, E. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2001.

RANDOM, Michel. O pensamento transdisciplinar e o real. São Paulo: Triom, 2000.

RIOS, Terezinha A. Ética e Competência. São Paulo: Cortez, 2000.



704

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 11 ed. Campinas,


SP: Autores Associados, 2012.

_________, Dermeval. Escola e Democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses
sobre a educação política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

GRAÚNA DAS MERCÊS: UM CANTO FEMININO DE RESISTÊNCIA


AS CHARGES DE HENFIL COMO POSSIBILIDADES DE
TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NAS ESCOLAS

Giovanna Carrozzino Werneck (IFES/Vitória)1


Priscila de Souza Chisté (IFES)2

Resumo: O artigo apresenta uma pesquisa em andamento que visa problematizar no ambiente
escolar a violência contra a mulher a partir do trabalho com charges do cartunista Henfil focadas
na personagem Graúna das Mercês, considerando os fundamentos da Pedagogia Histórico-
Crítica e da Pesquisa de Abordagem Histórico-Cultural. A pesquisa explicitada no artigo é
analisada à luz dos cinco momentos propostos por Dermeval Saviani e culminará com a
elaboração de um material educativo para os alunos, objetivando a formação de leitores críticos
a partir da concepção de leitura como processo dialógico de construção de significados.

Palavras-chave: Leitura; Henfil; violência; mulher; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

O presente artigo aborda uma pesquisa que está sendo desenvolvida pelo
Programa de Mestrado Profissional em Letras (Profletras), no Instituto Federal do
Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo, e integra o grupo de pesquisa "Artes Visuais,
Literatura, Ciências e Matemática", registrado no Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na linha de pesquisa "Arte e
Literatura: diálogos possíveis".
O objetivo da pesquisa é compreender a linguagem das histórias em quadrinhos,
especificadamente, as charges do cartunista Henfil, a fim de propor novas práticas,
(compiladas em material educativo a ser desenvolvido) que promovam a formação
crítica do leitor através de discussões e leituras relativas à violência contra a mulher
tratadas em charges do referido cartunista, as quais dialogam com outros gêneros

1
Giovanna Carrozzino Werneck, Mestranda em Letras, Instituto Federal do Espírito Santo, Vitória,
Espírito Santo, Brasil. gcarrow@uol.com.br.
2
Priscila de Souza Chisté, doutora em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES),
professora do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES), Espírito Santo, Brasil.
E-mail: pchiste@ifes.edu.br


706

discursivos que abordam a mesma temática, como reportagens jornalísticas, anúncios


publicitários, músicas, poemas, imagens de grafites e posts do Facebook. A pesquisa
está sendo desenvolvida em turmas do último ano do Ensino Fundamental de uma
escola pública da rede municipal de Cachoeiro de Itapemirim.
O artigo inicia-se com uma explanação do universo discursivo das charges do
cartunista Henfil, que exteriorizam a rebeldia, a contestação política, a crítica aos
costumes da época em que vivia, através do humor e da ironia. Ao mesmo tempo, serão
abordados aspectos relativos à vida do cartunista e ao contexto histórico em que foi
produzida sua obra e de que forma ela pode oferecer contribuições para a
complexificação nas escolas do tema violência contra a mulher, a partir da utilização
das charges da personagem Graúna das Mercês e, ao mesmo tempo, contribuir para a
formação de um leitor crítico.
Na segunda seção, serão apresentados os fundamentos da Pedagogia Histórico-
Crítica, as interlocuções com a obra de Henfil e o trabalho com suas charges em sala de
aula voltadas para a problematização da violência contra a mulher. Ressalta-se que todo
o trabalho realizado com os alunos está sendo (re) pensado e produzido a partir dos
referenciais teóricos da Pedagogia Histórico-Crítica e da Pesquisa de Abordagem
Histórico-Cultural. Nessa seção também será explicitada a pesquisa detalhadamente e as
possíveis interlocuções entre a leitura das charges da Graúna e a educação voltada para
a emancipação humana. Também será possível compreender a elaboração do material
educativo a ser proposto para o trabalho educativo com os alunos, baseado nos
fundamentos da Pedagogia Histórico-Crítica e na Pesquisa de Abordagem Histórico-
Cultural.

1 Henfil: o humor engajado

Mineiro de Ribeirão das Neves, radicado no Rio de Janeiro e nascido em 5 de


fevereiro de 1944, Henrique de Souza Filho, mais conhecido como Henfil, era de
origem familiar modesta e sua condição socioeconômica o possibilitou verificar in loco
as mazelas da sociedade brasileira, as quais serviram de inspiração para a criação dos
enredos e das tramas vividas por suas personagens: "Cresci no berço que qualquer Celso
Furtado desejaria ter para discorrer sobre o subdesenvolvimento". (HENFIL apud
MORAES, 1996, p. 28).



707

Henfil tornou-se um dos principais representantes da linhagem carioca da


imprensa alternativa, principalmente durante a ditadura militar iniciada em 1964 no
Brasil. Durante esse período, além dos problemas econômicos e da injustiça social que
se agravavam, desenvolviam-se aqueles derivados da ostensiva repressão política após a
publicação do Ato Institucional nº 5 (o AI-5, de 13 de dezembro de 1968), como a
pulverização dos movimentos artísticos, estudantis e sociais, somados ao represamento
da luta sindical, da subjugação da classe trabalhadora e da intensificação da coerção e
da censura sobre os agentes produtores de cultura no Brasil (PIRES, 2008). Foi nesse
contexto que a imprensa alternativa se transformou num dos principais veículos
utilizados por diversos atores sociais para expressar a oposição ao regime militar
instaurado, ao modelo econômico proposto, bem como à defesa dos direitos
fundamentais garantidos por uma sociedade democrática.
Em 1969, Henfil passou a integrar a equipe do jornal alternativo Pasquim, a
principal janela de suas críticas ao regime militar e aos costumes da época, assumindo
uma postura combativa e irreverente contra o autoritarismo no âmbito político e dos
costumes. Há em sua obra uma visível preocupação em fazer do humor um instrumento
de crítica social e política através de personagens notáveis, como: os Fradim (Baixinho
e Cumprido); a ave Graúna das Mercês; a onça Glorinha; o cangaceiro e capitão
Zeferino; o bode Orelana; Ubaldo, o paranoico; o Cabôco Mamadô, referência a uma
entidade da umbanda e do catimbó; a feminista Zilda-Lib; o operário Orelhão; o Preto-
que-ri, que reage ao racismo com sonoras gargalhadas; o delegado Flores, que reprime
às avessas, dentre outros. (MALTA, 2008a).
Henfil valia-se da ridicularização e da zombaria como elementos fundamentais
para a deterioração da imagem pública dos símbolos do poder (MINOIS, 2003),
sobressaindo em seus traços os contornos mais nítidos do humor político, elemento
essencial da sua estética cartunística. (MALTA, 2008a).
Utilizamos em nossa pesquisa as charges da Turma da Caatinga,
especificadamente, aquelas da ave Graúna das Mercês, que podem oportunizar
momentos de reflexão em sala de aula sobre temas relativos à violência contra e mulher,
como machismo, misoginia, feminicídio, cultura patriarcal, etc. A Turma da Caatinga
surgiu em 1972, no Jornal do Brasil, e seus personagens teciam críticas contra a
censura, a desigualdade social, a corrupção, o machismo e a educação burguesa, com
seu modelo de família nuclear e os estereótipos que marcavam um papel submisso para
a mulher na sociedade da época. A trinca de personagens da caatinga é composta por



708

personagens sertanejos: o cangaceiro e capitão Zeferino, que se destaca pela rusticidade


do nordestino; o bode Francisco Orelana, um animal culto, que se informa comendo
livros, revistas e jornais, e a ave Graúna das Mercês (MALTA, 2008b).
Em Pires (2008), encontramos as seguintes características da personagem: ao
contrário dos outros personagens da caatinga, a Graúna não traz em si nenhum
apetrecho externo que contribua para sua caracterização, havendo apenas pequenos
traços pretos que definem seu corpo e compõem algo similar a um ponto de
exclamação; apresenta um delicado e saliente bico e grandes olhos que se dirigem aos
leitores envolvendo-os em construções argumentativas. Graúna estabelece com Zeferino
um tipo de relação com teor sexual marcadamente sadomasoquista, caracterizando uma
personagem que personifica os ideais de submissão da mulher presentes em uma
sociedade patriarcal:

Para além de uma questão de dominação masculina, o jogo


sadomasoquista que permeia este relacionamento (Zeferino que bate
e Graúna que gosta de apanhar), possui um sentido social, colocado
em relevo com frequência pelo bode Orelana, na medida em que
reproduz uma estrutura de luta de classes, além de solidificar a
hierarquia de forças entre os personagens. (PIRES, 2008, p. 258).

Por outro lado, percebe-se nessa atitude masoquista da Graúna em aceitar as


formas de violência de seu parceiro, um gesto de reiteração de certos paradigmas que
naturalizam a dominação masculina e, consequentemente, a violência contra a mulher.

[...] uma tal incorporação da dominação não exclui a presença de


variações e manipulações por parte dos dominados. O que significa
que a aceitação pelas mulheres de determinados cânones não significa,
apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente,
construir um recurso que lhes permitam deslocar ou subverter a
relação de dominação. Compreende, dessa forma, uma tática que
mobiliza para seus próprios fins uma representação imposta – aceita,
mas desviada contra a ordem que a produziu. (PIRES, 2008, p. 259).

Dessa forma, a ação da Graúna indica uma resistência quando se identifica o


exercício contra seu próprio dominador através de uma reapropriação e, ao mesmo
tempo, um desvio, uma subversão dos instrumentos simbólicos que instituem a
dominação masculina. A Graúna torna-se, então, uma personagem que reafirma as
demandas dos movimentos feministas censurados na época e coloca em discussão as
imposições às mulheres em nome de valores e convenções sociais conservadores.



709

[...] fica patente que a hierarquização de forças é rompida nos


momentos em que a Graúna, com a astúcia que lhe é singular,
silenciou, venceu e/ou colocou em estado de suspensão o cangaceiro
evidenciando suas fragilidades e instaurando uma nova e inversa
condição hierárquica. Tem-se, então, uma abordagem carnavalizada
sobre o conflito social e de gênero, na medida em que referenciais e
identidades preestabelecidos (homem, macho e violento x ave, fêmea
e frágil) são destronados e invertidos. (PIRES, 2008, p. 259).

Considerando o exposto, ratifica-se a importância de trabalhar as charges da


Graúna que tratam de questões relativas à violência contra a mulher, tendo em vista o
atual contexto nacional em que temas como o estupro, a culpabilização da vítima
(quando é mulher), os direitos reprodutivos e sexuais da mulher, a naturalização do
machismo e do sistema patriarcal encontram-se na pauta de discussões nacionais,
tornando emergencial levar tais discussões para a escola a fim de instrumentalizar o
aluno para atuar criticamente sobre a realidade e, possibilitando, assim, a sua
transformação.
Ao mesmo tempo, a pesquisa com as charges contribui para a formação de
leitores críticos a partir da concepção de leitura como processo dialógico de construção
de sentidos que envolvem o contexto dessa produção, o conhecimento prévio dos
envolvidos, a visão de mundo dos sujeitos e das diferentes vozes que se incorporam no
processo do discurso, conforme nos aponta Bakhtin (2003).
Em relação à leitura e formação de leitores críticos, Silva (2011) expõe que a
leitura não pode ser concebida como simples decodificação de sinais ou como a
reprodução mecânica de informações, pois isso transformaria o leitor em um mero
consumidor passivo de mensagens não significativas e irrelevantes, descaracterizando a
leitura como processo dialógico de construção de significados.

A leitura se manifesta como a experiência resultante do trajeto seguido


pela consciência do sujeito em seu projeto de desvelamento do texto.
É essa mesma experiência (ou vivência dos horizontes desvelados
através do texto) que vai permitir a emergência do ser leitor. Por sua
vez, os novos significados apreendidos na experiência do leitor fazem
com que esse se posicione em relação ao documento lido, o que pode
gerar possibilidades de modificação do texto evidenciado através do
documento, ou seja, a incrementação dos seus significados. (SILVA,
2011, p. 110).

Para atingir nosso objetivo, utilizamos os fundamentos da Pedagogia Histórico-


Crítica, os quais fundamentam nossa práxis e pressupõem práticas educativas voltadas
para a promoção da liberdade, da emancipação humana, principalmente, das mulheres, e



710

de valores que entram em contradição com a lógica capitalista marcada pela injustiça,
desigualdade, dominação e exclusão.

2 Fundamentos da Pedagogia Histórico-Crítica

A Pedagogia Histórico-Crítica tem como fundamento o materialismo histórico-


dialético e foi desenvolvida a partir do pensamento de Dermeval Saviani, que entendia a
educação como atividade mediadora no interior da prática social global e como agente
de transformação social. A educação encontra-se, então, [...] incluída no processo social
e histórico de humanização, no qual os homens produzem a sua existência por
intermédio do trabalho [...]". (CHISTÉ, 2016).
A Pedagogia Histórico-Crítica está comprometida com um projeto educativo
fundado em uma visão de ser humano como ser singular e ser genérico e de sua relação
com o trabalho determinado pelo materialismo histórico-dialético. Entende-se o ser
humano como ser singular porque é dotado de capacidades situadas sócio-
historicamente e porque "[...] sua atividade, por mais que reproduza as formações
sociais que o circunda, possui mediação de abstrações subjetivas" (BUENO, 2011, p.
94), que dependem das possibilidades a ele dadas de apropriação dos elementos do
gênero humano constituído. É também ser genérico, pois envolve

[...] o conjunto das relações humanas e das objetivações por elas


alcançadas no decorrer da história, desde os modos de produção da
existência material desenvolvidos, até as expressões culturais mais
complexas como o direito, a política, a arte e a filosofia. (BUENO,
2011, p. 94).

Ressalta-se que na sociedade capitalista o trabalho é exterior ao trabalhador, não


pertencendo à sua essência e há uma separação entre atividade material e imaterial, na
medida em que o trabalho, ao invés de ser uma atividade de autorrealização dos
indivíduos, é apenas um meio para a sobrevivência. (DUARTE, 2011).
Duarte (2011) propõe a implementação de um modelo de sociedade que rompa
com o capitalismo e onde o trabalho torna-se "[...] autoatividade, ou seja, atividade na
qual o indivíduo desenvolve sua personalidade e por meio da qual ele deixa a marca de
sua individualidade na riqueza humana" (DUARTE, 2011, p. 16). É dessa forma que na
nova sociedade o ser humano trabalha não como meio para sobreviver, pois o trabalhar
significa uma atividade plena de sentido, isto é, dá sentido à vida humana e possibilita o



711

desenvolvimento do indivíduo de maneira universal e livre a partir de relações plenas de


conteúdo.

O trabalho humano pode ser material ou não material e ambos


estão relacionados. O trabalho material produz objetos concretos
e está ligado à garantia de subsistência humana, enquanto o
trabalho não material está associado à produção de valores,
conceitos, habilidades, etc. A educação é um trabalho não
material, pois não produz resultados físicos (objetos) e sim
ideias, valores, conceitos, etc., sejam de manutenção ou
transformação da ordem vigente. (MARSIGLIA, 2011, p. 103).

Nesse sentido, ao considerar a educação como uma forma de trabalho não


material e produtora de sentidos, a Pedagogia Histórico-Crítica fundamenta-se numa
ação transformadora, que visa à emancipação dos sujeitos sociais e à politização do
fazer pedagógico através de uma concepção de educação escolar como mediação no
seio da prática social global (CHISTÉ, 2016), a qual tem o papel de garantir a
transmissão dos conteúdos e dos elementos culturais construídos historicamente e, por
conseguinte, permitir que os alunos compreendam, posicionem-se e participem da
sociedade de forma crítica e transformadora (SAVIANI, 2003).

A rigor, a grande questão que se põe no século XXI para o paradigma


marxista é perscrutar a potencialidade desse modelo de compreender o
papel do indivíduo e da subjetividade na conformação dos indivíduos
e das relações sociais. Em última instância, reinstalar a concepção de
que os indivíduos transformados serão os que, em longo prazo,
induzirão o processo de transformação nas estruturas sociais, e não o
contrário. Marx, em reiteradas ocasiões, assinalou que "os homens
fazem a história". (TAMBARA, 2011, p. 16).

Dessa forma, o conhecimento sistematizado tomado no seu aspecto objetivo e


transmitido pela escola, possibilita aos alunos evidenciar as contradições da realidade e
as repercussões dela na vida de cada um, bem como a constatação de que a história é
(re) constituída pelo homem e só pode ser transformada por ele a partir de uma tomada
de decisão diante da realidade tal como ela é.

Assim, a educação não deve ser encarada como ideologicamente


neutra. Ela possui um caráter valorativo que possibilita ao indivíduo
tomar uma posição ético-política diante das contradições que a
realidade apresenta. Por isso, a formação escolar não deve ser tomada
como meio de inserção do indivíduo no mercado de trabalho ou de
adaptação ou conformismo em relação à realidade em que vive, mas
como forma de humanização dos indivíduos provenientes da classe



712

trabalhadora, de tal forma que permita aos indivíduos não ser


indiferente em relação aos outros e à realidade onde vive (BUENO,
2011, p. 98-99).

Diante do exposto, adotar a Pedagogia Histórico-Crítica como fundamentação


para a presente pesquisa preconiza a defesa de um posicionamento a favor da efetiva
transmissão, assimilação e socialização dos conhecimentos historicamente construídos
em nossa sociedade através da escola, retirando-os da esfera da lógica privada da
sociedade capitalista, isto é, do âmbito exclusivo dos detentores dos meios de produção,
para promover de forma efetiva a emancipação humana através da transformação da
realidade e a não adequação dos indivíduos à exploração do mercado de trabalho do
modo de organização capitalista.
É desta maneira que a prática educativa é concebida nessa pesquisa: como "[...]
o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade
que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens" (SAVIANI, 2003,
p. 13), sintetizando a complexidade e a relevância que envolvem a atividade de ensino.
Porém, para Saviani (2003), a transmissão do saber sistematizado não basta para a
existência da escola, sendo igualmente necessária a criação de condições de transmissão
e assimilação desse saber, permitindo que o educando adquira gradativamente, e o
máximo possível, tanto o domínio do saber elaborado, quanto o modo como se produz
esse saber.
Nessa acepção, a atividade docente é fundamental, pois objetiva realizar e
conduzir a mediação pedagógica que possibilita a apropriação dos conhecimentos
significativos produzidos ao longo da história (o que ensinar), indispensáveis tanto para
a compreensão da realidade concreta quanto para a humanização dos indivíduos. Em
outras palavras, a consecução dessa intenção passa, necessariamente, pela seleção e
organização sistemática dos conteúdos relevantes produzidos ao longo da história e que
precisam ser apropriados pelas novas gerações para que adquiram a natureza social
humana decorrente das realizações humanas em vista da produção de sua existência
através do trabalho. (LAVOURA; MARSIGLIA, 2015).

2.1 Os momentos pedagógicos e o trabalho com charges na sala de aula

Saviani (2008) propõe cinco momentos interdependentes e articulados que


podem pautar o trabalho pedagógico, os quais, conforme assevera Martins (2011),



713

devem ser considerados como uma metodologia de cunho filosófico e não


procedimental.

Assim, consideramos que tais momentos ultrapassam o âmbito da


didática, não havendo uma correspondência linear entre eles e a
organização dos tempos e conteúdos constitutivos da aula em si, ou
seja, consideramos que a conversão dos referidos passos em
procedimentos de ensino encerra o risco de culminar numa leitura
reducionista em relação às proposições do autor (MARTINS, 2011, p.
226).

Chisté (2016) reitera:

[...] ao se apropriar dos momentos pedagógicos da Pedagogia


Histórico-Crítica o professor necessita ter em mente que eles referem-
se, inicialmente, a momentos filosóficos amplos. Desse modo, a
utilização de tais momentos no trabalho educativo necessita de
atenção para não se reduzir tal abordagem teórica a procedimentos
vazios de sentido, ou seja, a conversão dos referidos momentos em
procedimentos de ensino que podem culminar numa leitura
reducionista em relação às proposições de Saviani. (CHISTÉ, 2016, p.
9-10).

Diante do exposto, o método proposto para o trabalho educativo se apresenta nas


seguintes etapas: ponto de partida da prática educativa (prática social); problematização;
instrumentalização; catarse; e ponto de chegada da prática educativa, que corresponde à
prática social modificada (MARSIGLIA, 2011b).
Sendo o foco de nossa pesquisa o trabalho com charges do cartunista Henfil que
têm como temática a violência contra a mulher, explicitaremos as etapas acima
relacionadas aos momentos de interação entre a pesquisadora e os alunos no decorrer do
processo educativo. Ressaltamos que a nossa pesquisa busca também a elaboração de
um material educativo para os alunos com as atividades e proposições de análise e
leitura das charges de Henfil focadas na personagem Graúna em diálogo com outros
textos de gêneros variados e, para tanto, utilizaremos uma abordagem Histórico-Cultural
que parte do pressuposto de que as intervenções em educação, principalmente, aquelas
relacionadas ao processo ensino/aprendizagem apresentam potencial para,
simultaneamente, propor novas práticas pedagógicas (ou aprimorar as já existentes),
produzindo conhecimento teórico nelas baseado (FREITAS, 2009).
Para efeito de exemplificação, serão apresentadas apenas três charges no
presente artigo e que fazem parte do material educativo proposto. As charges foram
copiadas de uma página do Facebook (Instituto Henfil) e foram publicadas pela primeira



714

vez na Revista Fradim, nº 21, de 1977, sendo parte de uma sequência de 12 charges que
se encontram na íntegra no material educativo dos alunos.

Fig. 1 – Henfil, Turma da Caatinga, sequência 1

Fonte: www.facebook.com/instituto.henfil

Fig. 2 – Henfil, Turma da Caatinga, sequência 2

Fonte: www.facebook.com/instituto.henfil



715

Fig. 3 – Henfil, Turma da Caatinga, sequência 3

Fonte: www.facebook.com/instituto.henfil

O ponto de partida da prática educativa corresponde ao primeiro momento e é


nele que procuro conhecer a realidade social dos meus alunos e nela reconhecer aquilo
que deve servir como ponto de partida do processo. O início se dá com a apresentação
das três charges, uma de cada vez, isto é, em sequência, sendo feitas perguntas aos
alunos a respeito da temática abordada. Aproveito para situar o aluno em relação às
charges, explicando suas características e explanando sobre Henfil e o contexto
histórico da charge, que foi criada há 39 anos. Assim, é nesse momento que questiono
os alunos a respeito de suas experiências do cotidiano em relação à violência contra a
mulher, a opinião deles sobre o assunto, o que ouviram através da mídia, família,
religião, bem como procurar saber com as alunas se elas acreditam já ter passado por
alguma situação que envolvia violência. Aproveito para também explicar sobre os
vários tipos de violência, que não se restringem à violência física. Para Saviani (2008),
o ponto de partida determina os problemas da prática social que devem ser
compreendidos em totalidade na busca de superação e modificação e contribui, ao
mesmo tempo, para a estruturação do início da atividade pedagógica. Conforme nos
aponta Marsiglia (2011):

Nesse primeiro momento, o professor tem uma síntese precária, pois


há conhecimento e experiência em relação à prática social, mas seu
conhecimento é limitado, pois ele ainda não tem claro o nível de



716

compreensão dos seus alunos. Por sua vez, a compreensão dos alunos
é sincrética, fragmentada, sem a visão das relações que formam a
totalidade inicial [...] baseado no senso comum de forma fragmentada
e caótica. Com isso, se pode dizer que esse momento deve, com base
nas demandas da prática social, selecionar os conhecimentos
historicamente construídos que devam ser transmitidos, traduzidos em
saber escolar. O ponto de partida da prática educativa é a busca pela
apropriação, por parte dos alunos, das objetivações humanas.
(MARSIGLIA, 2011a, p. 105).

No segundo momento, o da problematização, há o levantamento de questões


postas pela prática social. "São levantadas as questões que precisam ser resolvidas e o
conhecimento necessário para respondê-las para além de uma compreensão caótica e
superficial da realidade" (CHISTÉ, 2016). É nesse momento que apresento aos alunos
as razões pelas quais o tema "violência contra a mulher" está inserido no planejamento
das aulas. Destarte, apresento os números oficiais que envolvem a violência contra a
mulher no Brasil, inclusive aqueles que envolvem casos de estupro. Compartilho com
eles os conceitos de misoginia, feminicídio e culpabilização da mulher e peço que os
relacionem aos assuntos discutidos. Em seguida, relato a história das mulheres citadas
na primeira charge, pois os quatro casos estão associados à violência contra a mulher e
tiveram grande repercussão na época. Também utilizo o laboratório de informática (caso
todos tenham acesso à internet pelo celular, esse recurso pode ser utilizado na própria
sala) para que pesquisem em sítios virtuais reportagens ou notícias sobre o tema e
relacionem com aquilo que já havia sido dito por eles em relação ao saber do cotidiano
de cada um e que é permeado por estereótipos e preconceitos. Para Marsiglia (2011a):

Trata-se de colocar em xeque a forma e o conteúdo das respostas


dadas à prática social, questionando essas respostas, apontando suas
insuficiências e incompletudes; demonstrar que a realidade é
composta por diversos elementos interligados que envolvem uma série
de procedimentos e ações que precisam ser discutidas. No momento
da problematização, o professor precisa ter claro como orientará a
aprendizagem, baseando-se naquilo que já tem como material da etapa
anterior e seus objetivos de ensino. (MARSIGLIA, 2011a, p. 106).

A etapa da instrumentalização refere-se aos conteúdos disponibilizados aos


alunos e à forma como são abordados para que efetivamente se tornem instrumentos da
prática social. Assim, conforme propõe Marsiglia (2011b):

Tendo sido evidenciado o objeto da ação educativa e feita a


mobilização dos alunos para o conteúdo que está em questão, é
preciso instrumentalizar os educandos para equacionar os problemas



717

levantados no momento anterior, possibilitando-lhes, de posse dos


instrumentos culturais que lhes permitam compreender o fenômeno
em questão de forma mais complexa e sintética, dar novas respostas
aos problemas colocados. (MARSIGLIA, 2011b, p. 25).

É assim que na instrumentalização procuro trazer novos recursos pedagógicos,


como músicas, posts do Facebook, propagandas, reportagens, filmes, pequenos
documentários, que tratam não só da violência contra a mulher de modo direto, mas que
também instrumentalizem o aluno para que ele possa relacionar o machismo nas
propagandas e piadas, a objetificação da mulher, a falta de representatividade política, a
misoginia, a culpabilização da vítima (quando essa é mulher), o abuso sexual, as
relações desiguais entre os gêneros, o desrespeito à mulher nas pequenas ações do
cotidiano, como no trânsito, nas "cantadas impróprias e em locais indevidos", as
discrepâncias relacionadas ao mercado de trabalho, etc.
Na catarse, etapa culminante do processo educativo, "[...] o aluno não tem mais
uma visão parcial e fragmentada do fenômeno, mas sim a compreensão do todo, o
sentido de sua complexidade e do contexto do fato. Há uma transformação e a
aprendizagem efetiva acontece" (MARSIGLIA, 2011b, p. 107). Ressalta-se que a
catarse não se dá em um único momento, pois ela opera uma mudança na consciência
individual e no mundo do aluno, fazendo com que ele veja suas relações e seu cotidiano
de forma diferente. A catarse, então, ocorre sempre que o aluno, já de posse do
conhecimento sistematizado e considerando as problematizações em sala mediadas por
mim, saem do sincretismo caótico inicial e passam a se relacionar intencional e
conscientemente com o conhecimento. Para Saviani (2008, p. 57), nesse momento
ocorre "[...] a efetiva incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em
elementos ativos da transformação social".
O ponto de chegada da prática educativa corresponde ao momento em que o
aluno, tendo adquirido e sintetizado o conhecimento relativo às práticas sociais
patriarcais que contribuem para o aumento dos casos de violência contra a mulher no
Brasil e de sua responsabilização (mesmo sendo a vítima), passa a ter entendimento e
senso crítico para problematizar a prática social, evoluir da síncrese (conhecimento
concreto empírico) para a síntese (novo conhecimento elaborado; o concreto pensado,
visto em suas múltiplas determinações), estando no caminho da compreensão do
fenômeno analisado em sua totalidade.



718

Conclusão

A partir do exposto sobre os fundamentos político-filosóficos da Pedagogia


Histórico-Crítica e da explanação de uma pesquisa desenvolvida a partir desses
fundamentos e de uma abordagem Histórico-Cultural, torna-se evidente a ética a que
esta pedagogia se direciona: a educação escolar como instrumento de humanização dos
homens e a prática pedagógica caracterizada pela transmissão de um saber
sistematizado. Ao mesmo tempo, a partir da formação do ser humano como ser
histórico-social, concreto e genérico, o indivíduo passa a possuir a compreensão de que
o outro não é somente um objeto que serve como meio de obtenção de algum fim, sendo
também sujeito possuidor de individualidade própria, estando diretamente ou não, em
constante relação consigo e com o conjunto da humanidade.
Dessa forma, de acordo com Saviani (2007), o indivíduo, mesmo só, não deixa
de ser um ser social e histórico. Tal entendimento do real permite um posicionamento
diante da realidade desvendada a partir da apropriação do conhecimento. Abre-se, então,
diante desse indivíduo – agora, emancipado e autônomo – o conhecimento dos limites e
das possibilidades lançadas historicamente. Esses postulados sustentam uma educação
escolar que tem como objetivo a formação do homem como um ser histórico,
conhecedor da realidade concreta que determina sua existência na sociedade de classes,
bem como das possibilidades de transformação consciente dessa realidade. Nessa
perspectiva, é imprescindível delimitarmos o papel histórico-social da escola no
desenvolvimento da luta de classes evidenciando também sua relação com as demais
instituições, suas transformações históricas e as repercussões de tal processo.
Fundamentalmente, não podemos perder de vista o horizonte ético da luta dentro e fora
da escola: a emancipação humana. Conforme nos aponta Saviani (2011):

[...] concluí que o papel da escola não é mostrar a face visível da lua,
isto é, reiterar o cotidiano, mas mostrar a face oculta, ou seja, revelar
os aspectos essenciais das relações sociais que se ocultam sob os
fenômenos que se mostram à nossa percepção imediata. (SAVIANI,
2011, p. 201).

Considerando a pesquisa apresentada, acreditamos nessas possibilidades de


transformação de uma sociedade patriarcal pelos próprios sujeitos implicados nessa
realidade, a partir do momento em que se apropriam de um saber sistematizado
culturalmente e conseguem também, ao mesmo tempo, transformá-lo e ressignificá-lo



719

em prol de uma sociedade em que as relações entre os gêneros sejam mais igualitárias a
partir de uma educação escolar emancipadora.

Referências

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DUARTE, Newton. Fundamentos da Pedagogia Histórico-Crítica. In: MARSIGLIA, Ana


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LAVOURA, Tiago Nicola; MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão. A Pedagogia Histórico-Crítica


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SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas:


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__________________. Antecedentes, origem e desenvolvimento da Pedagogia Histórico-


Crítica. In: MARSIGLIA, Ana Carolina Galvão (Org.). Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos.
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SILVA, Ezequiel Theodoro da. O ato de ler: fundamentos psicológicos para uma nova
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TAMBARA, Elomar. Karl Marx: contribuições para a investigação em História da Educação no


século XXI. In: FILHO, Luciano Mendes de Faria (Org.). Pensadores sociais e História da
Educação. 3 ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. p. 11-27.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

BERTOLT BRECHT E O TEATRO EDUCADOR: A CRÍTICA NA ESCOLA

Juliana Gonçalves Gobbe (UNICAMP)1

Resumo: Esse trabalho tem por objetivo trazer à tona as discussões que encerram o teatro
brechtiano, num processo de aproximação ao campo pedagógico identificando no teatro de
Brecht instrumentos políticos viabilizadores da formação humana. Trata-se aqui de esboçar
alguns elementos da arte crítica, num processo descaracterizador da arte pela arte tão fomentada
em muitos espaços universitários. Para tanto, valemo-nos de esforços no sentido de colocar o
teatro brechtiano em seu contexto histórico.

Palavras-chave: Brecht; Teatro; Política; Formação humana.

Introdução

O presente trabalho tem por objetivo a compreensão do papel do teatro como


instrumento pedagógico no processo de formação humana. Sabe-se que o teatro vem
sendo largamente utilizado nas instituições educacionais, sejam elas públicas ou
particulares, ora como fonte de entretenimento, ora como muleta pedagógica.
O viés dado à representação caberá aos interesses acordados entre alunos e
professores, muitas vezes de forma apenas a cumprir alguma lacuna do calendário
acadêmico, ou até mesmo no ensejo de representar uma data cívica.
Por sua vez, o aluno, no esteio dessas intenções difusas passa a encarar o fazer
cênico com muito pouco entusiasmo, pois sobre este fazer pouco se reflete em conjunto,
colocando-se em pauta apenas ações mecânicas, cujo resultado, já se conhece bem: a
apresentação de peças que pouco contribuem para a formação do educando.
Do ponto de vista da formação em arte, podemos inferir a consequência de um
senso estético empobrecido pela mídia, pois o “mercado” da arte contribui cada vez
mais para a imbecilização dos adultos, quando elabora, por exemplo, livros de colorir
para “gente grande” num processo cada vez mais frenético de estupidez e ganância.
Mas, afinal, o que a arte tem suscitado em nós ao longo dos séculos?


1
Juliana Gonçalves Gobbe. Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. São Paulo –
Brasil. E-mail: julianagobbe@gmail.com.


722

De acordo com Bosi:

É preciso refletir sobre este dado incontornável: a arte tem


representado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser
humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos estados
psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu sentido nessas
operações. Estas decorrem de um processo totalizante, que as
condiciona: o que nos leva a sondar o ser da arte enquanto modo
específico de os homens entrarem em relação com o universo e
consigo mesmos. (BOSI, p. 8).

Dada a riqueza de possibilidades que a arte traz consigo, pois quem a produz
são homens reais, determinados pela história, é impossível que ela não nos toque de
maneira a nos transformar de algum modo, pois a recepção da arte, como diria Umberto
Eco, é aberta, ou seja, cada receptor tem o direito de assegurar a si as muitas variantes
embutidas em uma obra artística.
No entanto, o que se vê hoje em dia é a total descaracterização de implicações
sociais no bojo da arte. Ora, se são os homens que estão a produzir a arte, e, estes vivem
em sociedade, notadamente determinada pelas questões sociais e econômicas, nada mais
justo que se encerre dentre as discussões sobre este assunto os adventos sociais.
Do ponto de vista do que chamo aqui de “fazedores da cultura”, nada mais
importante que a história, guardiã da arte, seja vislumbrada, pois todo homem, é homem
de seu tempo, vivenciando as delícias e agruras de sua época, sempre sobre o cajado
impiedoso de um sistema de produção brutalizado e brutalizador.
Do ponto de vista da luta, é bom que se enfatize que o engajamento em arte pode
ser visto de diversas maneiras, pois a arte pode ser engajada com tudo, desde as estrelas
até o umbigo do artista criador. O que temos que enfatizar é que espécie de
engajamento, professores, alunos e artistas tem em relação ao objeto artístico. E como
esta postura pode ser crítica.
O que se torna providencial é compromisso político e, consequentemente uma
prática que atente para seu caráter transformador da sociedade.
Uma vez, estimulada, eis que surge entre nós a chamada crise do realismo, ou
seja, a pós-modernidade anda alimentando em muita gente conceitos que de tão surreais,
beiram ao ridículo em exposições, encenações que nada mais fazem que evidenciar o
“nonsense” dos nossos dias.



723

Como predominante está a falsa noção de que as pessoas tem ojeriza da


caracterização do real, assim fosse, Ron Mueck não lotarias as galerias mundo a fora
com seu olhar peculiar e realista do corpo humano.
Portanto, evidencia-se que:

A criação artística bem-sucedida é aquela que consegue organizar as


contradições por ela representadas em função de uma visão de
conjunto (não necessariamente clarificada e explicitada
conceitualmente, mas sempre efetiva) de tais contradições. Toda
criação artística implica, assim, uma síntese e pressupõe uma opção do
artista ante a multiplicidade do real: “A arte consiste sempre – diz
Lukács – em reter o significativo e o essencial e em eliminar o
acessório e o inessencial”. (KONDER, p. 139).

Quando, assim encarada, a face artística, nos mostra seus contrários, nunca dantes
observados. Para tanto, utilizava seu tempo num trabalho extenuante, pois:

A arte é uma produção; logo supõe trabalho. Movimento que arranca o


ser do não ser, a forma do amorfo, o ato da potência, o cosmos do
caos. Techné chamavam-na os gregos: modo exato de perfazer uma
tarefa, antecedente de todas as técnicas dos nossos dias. (BOSI, p. 13).

Infelizmente, também o que se alardeia entre o senso comum é que o chamado


“trabalho imaterial” não é trabalho, pois não gera “mais valia”.
No Brasil isso é muito acentuado em relação aos intelectuais das palavras, leiam-
se aqui, escritores, mas também músicos e dramaturgos.
Parece que a arte se constitui num passatempo de desocupados que se dedicam
aos seus trabalhos, não são reconhecidos, e ainda por cima são mal pagos por isso. Para
Vázquez:

Como atividade prática, a arte é produção de uma nova realidade na


qual culmina um processo que teve seu ponto de partida na
consciência sob a forma de uma intenção, um esboço ou um projeto
que foi se modificando ao longo desse processo até adquirir uma
realidade objetiva; trata-se, portanto, de um produto que transcende os
atos subjetivos que se deram no decorrer do processo prático ao
mesmo tempo em que os mantêm objetivados. (VÁZQUEZ, p. 336).

É na prática que os homens se forjam, atingem o amadurecimento do que antes


fora pensado, como Picasso que passou muito tempo desenhando num projeto cada
parte da famosa Guernica até que ela fosse executada com perfeição, assim são todos os
artistas, antes a obra pensada, depois a prática para seu término.



724

O teatro como forma de expressão

Dentre as expressões artísticas, uma que vem ao longo dos tempos, encantando e
intrigando muita gente é o teatro, pois é ele a manifestação dos homens em atos daquilo
que foi de alguma forma vivenciado, seja na realidade coletiva, seja na individual.
É preciso, no entanto, destacar aqui aquele que dentre tantas coisas dedicou-se
também a esta arte, escrevendo sua Poética, trata-se do filósofo grego Aristóteles:

O primado da Poética de Aristóteles na teoria do teatro, bem como na


teoria literária, é incontestável. A Poética não apenas é a primeira obra
significativa na tradição como os seus conceitos principais e linhas de
argumentação influenciaram persistentemente o desenvolvimento da
teoria ao longo dos séculos. A teoria do teatro ocidental, em essência,
começa com Aristóteles. Sem dúvida, alguns escritos anteriores
chegaram a tocar ligeiramente no assunto, embora, se pusermos à
parte algumas observações dispersas de Isócrates ( 436-338 a. C), os
únicos comentários de algum peso que ainda restam sobre o drama
antes de Aristóteles se encontrem em Aristófanes ( c. 448-380 a. C. ) e
Platão ( c. 427 -347 a. C.). (CARLSON, p.01).

Em Aristóteles está o berço da tragédia em suas ações dramáticas, foi com a


Poética que o mundo tomou conhecimento das primeiras noções de representação.
No entanto, um outro filósofo chamado Heráclito nos apontou a constante
mudança a qual estamos submetidos, por isso, a Poética foi aos poucos sendo
substituída por outros conceitos.
Não se isenta aqui que o grande responsável pelas mudanças na representação
teatral no século XX foi o alemão Bertolt Brecht, no início com seu teatro chamado
épico e depois com a mudança para teatro dialético numa clara analogia ao marxismo,
pois o dramaturgo em certa altura de sua carreira se identificou profundamente com as
questões abordadas por Marx e Engels, num movimento enriquecedor das suas peças.
Cabe aqui, mais uma vez em alusão à Poética, ressaltar que:

O caráter fragmentário do que nos restou da Poética fez desaparecer a


sólida conexão existente entre as suas partes, como também a
hierarquização de cada uma destas dentro do todo. Só esse fato explica
que observações marginais, de escassa ou nenhuma importância,
tenham sido consideradas conceitos centrais do pensamento
aristotélico.(BOAL, p. 63).



725

Desse modo, até mesmo a apreensão por parte de muitos leitores e pesquisadores
ficou comprometida, pois a obra perdeu sua coesão interna devido aos inevitáveis
estragos do tempo.
Na nossa existência real, tangenciada por uma série de acontecimentos que ditam
as regras do nosso viver, cabe nos perguntar quem são os heróis, tão alardeados outrora
pela tragédia aristotélica. Certamente os encontraremos nos meios midiáticos, pois
normalmente são os vencedores dentro de um modo de produção que exalta o mérito e
abafa a desigualdade.
O caminho indicado por Brecht, certamente abalou as bases conservadoras
sustentadoras da arte ocidental, no entanto, ao historicizar o teatro ele coloca em
evidência as lutas de seu tempo.
Nesse caminho dialético (me refiro aqui à dialética marxista) muitas indagações
foram levantadas, muitas contradições foram mostradas ao público alemão de sua
época, e posteriormente ao mundo inteiro.
Assim, a luta de classes foi racionalizada, pois romantizada já vinha sendo há
tempos mostrada pela burguesia. Seu teatro épico estabeleceu-se com a seguinte
concepção teatral:

O “teatro épico” de Brecht, retornando a esse “filão”, o concebe a


ação teatral como o instrumento através do qual determinada atitude
nas confrontações da vida e da história atuais pode ser eficazmente
transmitida a um vasto público; as técnicas de “transmissão” serão
usadas em razão da funcionalidade das mesmas. (CHIARINI, p. 106).

Brecht queria entender o ser humano, não em sua singularidade, marcada pela
subjetividade burguesa, mas por meio das contradições do cotidiano dentro de sua
historicidade. Pois, segundo Benjamin:

O teatro épico questiona o caráter de diversão atribuído ao teatro.


Abala sua validade social ao privá-lo de sua função na ordem
capitalista. E ameaça a crítica em seus privilégios. Estes residem num
saber especializado, que habilita o crítico a fazer certos comentários
sobre a direção e a interpretação. (BENJAMIN,1987, p.86).

Para Brecht, o que realmente importava era a devida historicização dos clássicos:

Quando vamos encenar uma obra clássica, devemos ter isso em mente.
Devemos encarar a obra com um olhar novo e não nos prender à
versão degradada e consagrada que o teatro de uma burguesia em
declínio nos apresentou. Não devemos buscar as “inovações” formais,



726

puramente exteriores e estranhas à obra. Precisamos iluminar seu


conteúdo ideológico original, extrair sua importância nacional e,
portanto internacional; precisamos estudar a situação histórica da
época em que a obra foi escrita, a natureza particular do autor e a
perspectiva que adotou. (BRECHT, p. 270).

Ao trazermos Brecht para os dias de hoje, constatamos não só sua atualidade, mas
o vigor de uma obra denunciadora da exploração em torno do trabalho. Para Brecht era
preciso formar o homem e assim este viria a transformar o mundo.

Uma vez que possamos dominar os novos assuntos, podemos passar


às novas relações, que no momento são imensamente complicadas e
só podem ser simplificadas por meios formais . A forma em questão
só pode ser conseguida, entretanto, através de uma mudança completa
no objetivo do teatro. Só um novo objetivo pode conduzir a uma nova
arte. O novo objetivo é a pedagogia. (BRECHT, p. 48).

Aqui encontramos em Brecht muitos apontamentos que coincidem com a


perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica fundada e fundamentada numa obra ímpar
como a de Dermeval Saviani.
Brecht com suas peças didáticas foi antes de tudo um educador no teatro, pois as
instruções dirigidas à classe trabalhadora serviam para conscientizar e levantar
questionamentos críticos.
Como o teatrólogo alemão tornou-se um clássico do teatro ocidental cabe aqui
apontá-lo como o arauto de um tipo de arte enviesada basicamente, assim como a
Pedagogia Histórico-Crítica no marxismo.

Teatro e Pedagogia Histórico-Crítica

Durante o fim da ditadura brasileira e o processo de redemocratização anunciava-


se aquela que viria a ser uma proposta orientada a estabelecer um forte laço entre
educação, homem e trabalho. A PHC nasce no Brasil no começo da década de 80,
embora já muito antes venha sendo engendrada por seu fundador: Dermeval Saviani.
Sobre ela Saviani afirma:

A pedagogia histórico-crítica vai tomando forma à medida que se


diferencia no bojo das concepções críticas; ela diferencia-se da visão
crítico-reprodutivista, uma vez que procura articular um tipo de
orientação pedagógica que seja crítica sem ser reprodutivista. Esta
colocação parece-me importante porque boa parte dos debates que se
travaram e das objeções que se levantaram a essa tendência acabaram



727

desconsiderando que ela está além do crítico-reprodutivismo, e não


aquém. As críticas formuladas pelo crítico- reprodutivismo são algo
que se considera superado.(Saviani, 2012, p.57) .

Essas diferenças são colocadas no livro Escola e Democracia, hoje considerado


um clássico da educação brasileira. A orientação superadora das teorias então vigentes
na educação brasileira encontraram na crítica um rico elemento para a contestação e
transformação tão necessárias ao quadro educacional brasileiro. Saviani pondera:

Na busca da terminologia adequada, concluí que a expressão


histórico-crítica traduzia de modo pertinente o que estava sendo
pensado. Porque exatamente o problema das teorias crítico-
reprodutivistas era a falta de enraizamento histórico, isto é, a
apreensão do movimento histórico que se desenvolve dialeticamente
em suas contradições. A questão em causa era exatamente dar conta
desse movimento e ver como a pedagogia se inseria no processo da
sociedade e suas transformações. Então, a expressão histórico-crítica
de certa forma, contrapunha-se a crítico-reprodutivista. É crítica,
como esta, mas, diferentemente dela, não é reprodutivista, mas
enraizada na história. Foi assim que surgiu a denominação. Assim,
atendendo à demanda dos alunos, ministrei, em 1984, a disciplina
pedagogia histórico-crítica e, a partir desse ano, adotei essa
nomenclatura para a corrente pedagógica que venho procurando
desenvolver. (Saviani, 2012, p. 119).

E acentuando suas características na história, com ênfase na obra marxista, bem


como nos estudos da obra gramsciana, a PHC introduz-se no país como uma espécie de
“alento” aos educadores progressistas que tinham como ideário o atrelamento da escola
à sociedade num processo dialético caracterizador da escola na sociedade capitalista.
Para Saviani:

[...] a pedagogia histórico crítica, interessada em articular a escola


com as necessidades da classe trabalhadora, está empenhada em pôr
em ação métodos de ensino eficazes. Situa-se para além dos métodos
tradicionais e novos, visando a superar por incorporação as
contribuições dessas duas tendências pedagógicas. (Saviani, 2008,
p.129).

Não se trata de apenas se contrapor a escola tradicional ou à escola nova, mas de


superá-las com horizontes que se espraiem no materialismo histórico dialético e
aperfeiçoem suas práticas para que os filhos da classe trabalhadora possam também
receber como ensinamento tudo aquilo que foi historicamente acumulado pela
humanidade. De acordo com Saviani:



728

É nesse quadro que se procurou fazer uma análise mais aprofundada


da questão educacional em geral e da própria teoria crítico-
reprodutivista, ou seja, submetê-la à crítica, pondo em evidência o seu
caráter mecanicista e, portanto, o seu caráter não dialético, a-histórico.
Em verdade, o que fazia, no fundo, a concepção crítico reprodutivista?
Considerava a sociedade capitalista, de classes, como algo não
suscetível a transformações, um fenômeno que se justifica a si mesmo;
uma estrutura que se impõe compactamente, portanto, de forma não
contraditória. Em outros termos, não considerava esta sociedade
contraditória, dinâmica e, portanto, em transformação.(Saviani, 2012,
p.78).

Para além de uma escola ensimesmada, pois quer se pensar somente entre suas
paredes, inclusive na concepção de um aluno ideal e inexistente, a PHC traça um
caminho dialético para se pensar uma educação realmente fértil em matéria de
conteúdos, com o objetivo de ensinar e dar a chance dos alunos terem contatos com os
clássicos. Segundo Saviani:

Ora, a opinião, o conhecimento que produz palpites, não justifica a


existência da escola. Do mesmo modo, a sabedoria baseada na
experiência de vida dispensa e até mesmo desdenha a experiência
escolar, o que, inclusive, chegou a cristalizar-se em ditos populares
como: “mais vale a prática do que a gramática e “as crianças
aprendem apesar da escola”. É a exigência de apropriação do
conhecimento sistematizado por parte das novas gerações que torna
necessária a existência da escola. (SAVIANI,2012, p. 14).

E a apropriação desses conhecimentos exige da escola que esta seja mais que um
amontoado de gente, ou seja, exige-se uma instituição viva que rechace a opacidade das
relações sociais e passe a reforçar a luta de classes por meio artístico.
Há aí a necessidade de um diálogo há muito esquecido pelo meio acadêmico, o
diálogo com a existência, em detrimento da essência, pois a vida dos alunos está para
além dos muros institucionais, e suas necessidades são bem maiores do que os
educandos “imaginam”. Em síntese a educação deveria ao menos:

Do ponto de vista da educação o que significa, então,promover o


homem? Significa tornar o homem cada vez mais capaz de conhecer
os elementos de sua situação para intervir nela transformando-a no
sentido de uma ampliação da liberdade,da comunicação e
colaboração entre os homens.Trata-se,pois de uma tarefa que deve
ser realizada. Isso nos permite perceber a função da valoração e dos
valores na vida humana.Os valores indicam as expectativas, as
aspirações que caracterizam o homem em seu esforço de
transcender-se a si mesmo e à sua situação histórica;como tal
,marcam aquilo que deve ser em contraposição àquilo que
é.(SAVIANI,2009, p.46).



729

Embebidos da arte pela arte não avançamos no sentido de uma formação que
valorize o ser social contemplando sua historicidade e, também não dialogamos com
os meios de produção que lhe conferem os dissabores de uma existência voltada
exclusivamente para a venda da “força de trabalho”.

Considerações finais

No início de 2016 defendemos na Unicamp sob a orientação honrosa de


Dermeval Saviani a dissertação: O Teatro político de Brecht no processo de formação
humana. Com as várias leituras e horas dedicadas à pesquisa, vislumbramos que o
teatro pode ser trabalhado nas escolas de forma crítica e emancipadora.
No curto espaço deste artigo não pudemos esmiuçar toda a potencialidade do
teatro brechtiano encarado numa perspectiva de horizonte dialético coincidente com a
Pedagogia Histórico-Crítica. Mas colocamos aqui que a arte quando imbuída de afeto
e racionalidade pode realmente transformar pessoas.
Como fica evidente, trabalhar o teatro de Brecht na escola, seja ela de tempo
integral ou não, é trazer de volta aos alunos a criticidade escamoteada pela barbárie
neoliberal.
A importância de se ler Brecht e interpretá-lo, faz parte de se trazer para as
escolas, principalmente as que encontram-se instaladas em países capitalistas; as
demandas sociais do nosso tempo.
Outro aspecto importante é o caráter político de suas peças, caráter este que nos
convoca à luta e nos tira da inércia destes momentos sombrios em que o capital se
arvora a apagar nossa humanidade. Pois, nas palavras de Lênin:

O capitalismo transformou-se num sistema universal de subjugação


colonial e de estrangulamento financeiro da imensa maioria da
população do planeta por um punhado de países “avançados”. A
partilha desse espólio efetua-se entre duas ou três potências rapaces,
armadas até os dentes (Estados Unidos, Inglaterra, Japão), que
dominam o mundo e arrastam todo o planeta para a sua guerra, pela
partilha do seu espólio. (LÊNIN, 2012, p. 27).

E nos dias atuais mais e mais países encontram-se no bojo da sanha desmedida
por altos lucros à custa da dignidade, bem como da vida de trabalhadores. Ainda em
Lênin:



730

A produção passa a ser social, mas a apropriação continua a ser


privada. Os meios sociais de produção continuam a ser propriedade
privada de um reduzido número de indivíduos. Mantém-se o quadro
geral da livre concorrência formalmente reconhecida, e o jugo de uns
quantos monopolistas sobre o resto da população torna-se cem vezes
mais pesado, mais sensível, mais insuportável. (LÊNIN, 2012, p.48).

Diante dessas questões é papel das escolas dar condições e instrumentos de luta
aos alunos, principalmente através da arte, importante veículo de formação humana.
Como enxergou Brecht:

Aos vanguardistas nem ocorre a idéia de modificar a engrenagem,


pois creem tê-la na mão, a serviço do seu poder inventivo, que se
exerce sem qualquer condicionamento; creem que ela se modifica por
si, de acordo com os seus pensamentos. Mas, embora o creiam, não é
livre de qualquer condicionamento que eles inventam. A engrenagem
é que desempenha, com ou sem eles, a sua função; os teatros
representam todas as noites, os jornais saem umas tantas vezes ao dia,
e uns e outros absorvem o de que necessitam, ou seja, uma certa
porção de material, pura e simplesmente. (BRECHT,2005, p.27).

Os condicionamentos históricos são reais, mesmo que a pós-modernidade os


ignore. À arte cabe uma visão comprometida que não se submeta aos ditames da
burguesia. Por isso, a importância de estudar e, acima de tudo historicizar os clássicos
para o entendimento de cada época e suas manifestações artísticas.
Aqui estabelecemos à guisa de conclusão, não um receituário, mas alguns
indícios da importância do teatro brechtiano para o fomento da perspectiva de luta
dentro do espaço escolar.

Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: brasiliense,1987.

BOAL, Augusto. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira,1970.

BOSI, Augusto. Reflexões sobre a arte. São Paulo: Ática,1991.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

BRECHT, Bertolt.Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: Estudo histórico-crítico dos gregos à atualidade.


São Paulo: Unesp, 1995.

CHIARINI, Paolo. Bertolt Brecht. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1967.



731

KONDER, Leandro. Marx – Vida e obra. Rio de Janeiro: José Álvaro,1968.

KONDER, Leandro. Os marxistas e a arte. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

LENIN, V.I. Imperialismo, Estágio Superior Do Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Expressão
Popular, 2012.

PICASSO, Pablo. Espanha, 1937. 1 painel.:óleo., color.: 3,49m x 7,77 m. Museu Nacional
Centro de Arte Reina Sofia.

SAVIANI, Dermeval. A pedagogia no Brasil – História e Teoria. 1. ed.Campinas: Autores


Associados, 2008.

SAVIANI, Dermeval. Educação – Do senso comum à consciência filosófica. Campinas:


Autores Associados.2009.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica. Campinas: Autores Associados, 2012.

VÁZQUEZ,Adolfo.Filosofia da práxis. São Paulo: Expressão Popular,2011.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

POR QUE FALAR EM EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS


DA CLASSE TRABALHADORA?

Adriana de Almeida (UERJ)1

Resumo: Este artigo tem como finalidade discutir a categoria classe social e apresenta
discussões sobre as concepções da Educação de Jovens e Adultos descritas no Parecer nº
11/2000 que instituiu as Diretrizes Curriculares para esta modalidade de ensino. O estudo
realizado utiliza-se do materialismo histórico dialético para a análise crítica do conceito de
experiência, tido como um dos principais requisitos para a garantia da especificidade dos
sujeitos da EJA. Para o aprofundamento teórico, citamos os estudos de Edward Palmer
Thompson, por entender a relevância de seus debates para compreendermos a gênese identitária
da EJA enquanto classe trabalhadora.

Palavras-chave: classe social, educação de jovens e adultos, experiência.

Introdução

A educação de jovens e adultos é constituída por práticas e reflexões que não se
restringem a escolarização, pois envolve processos formativos variados, em que se
aglutinam iniciativas de qualificação profissional, desenvolvimento comunitário,
formação política, cultural em espaços escolares e não escolares. Trata-se, de um
universo pedagógico importante para a realização plena da indissociabilidade entre
teoria e prática e dos processos de emancipação humana.
As práticas pedagógicas realizadas na EJA distinguem-se em inúmeras
concepções acerca dos processos didático-metodológicos e a maneira como os sujeitos
(legisladores, diretores, coordenadores pedagógicos, professores e profisisonais da
educação ) identificam a especificidades dos jovens e adultos. As concepções restritas
veem a EJA apenas em seu caráter marginal e secundário, camuflando os aspectos
políticos, culturais e pedagógicos. Sob uma abordagem sistêmica, a EJA é tratada como


1
ALMEIDA, Adriana de, Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense, Professora
Adjunta da Faculdade de Formação de Professores/UERJ, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
adryanaalmeida@gmail.com


733

parte da história da educação do país, e sendo assim, uma modalidade importante no


processo de democratização do direito à educação. (DI PIERRO, 2001).
O objetivo deste artigo é, no entanto, para além dessas concepções, compreender
a EJA enquanto classe social que se sustenta a partir de suas experiências coletivas.
Elegendo como campo de correlação de forças, as políticas de escolarização básica de
jovens e adultos, o artigo propõe inicialmente uma análise das conquistas legais,
remetendo-a em seguida as discussões de Edward Palmer Thompson acerca das
categorias classe social e experiência. Exemplificamos essas categorias nas diretrizes
curriculares para a EJA e também por meio da exposição dos documentos de um dos
programas de Educação Profissional propostos para a EJA, o Programa de Integração da
Educação Profissional à Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e
Adultos, Proeja.
Primeiramente, é necessário salientar que jovens e adultos trazem para a relação
educativa suas experiências2 sociais, advindas de suas condições subalternas de
sobrevivência, ou seja, do seu lugar de classe. A afirmação da categoria classe
trabalhadora se refere a uma opção teórico-metodológica que não abandona o fato de
que a distribuição desigual de oportunidades educacionais continua a ser uma questão
derivada da origem socioeconômica e das assimetrias de poder daí advindas. Trata-se,
portanto, de uma questão de classe. (RUMMERT, 2007, p.80).
Ao relatar o trabalho realizado com os jovens e adultos na Inglaterra, Thompson,
ressalta que aquilo que diferencia o estudante adulto é a experiência que ele traz para a
relação. Essa experiência transforma, de maneira sutil ou radical, todo o processo
educacional e influencia os métodos de ensino, a seleção e aperfeiçoamento dos mestres
e o currículo, “podendo até mesmo revelar pontos fracos ou omissões nas disciplinas
acadêmicas tradicionais e levar à elaboração de novas áreas de estudo”. (THOMPSON,
2002, p.13).
O autor esclarece que, a experiência necessita permear vários universos,
inclusive a universidade, como forma de consolidar a democracia. No entanto,
reconhece que é difícil estabelecer o equilíbrio entre o rigor intelectual e o respeito pela
experiência.


2
Realizamos a opção pelo conceito de experiência em Thompson, todavia, não desconsideramos que
existem outros autores que já discutiram e aprofundaram o conceito de experiência, porém, esses
estudos, embora relevantes não atendiam os objetivos de nossa pesquisa, tampouco a escolha de nosso
método de análise.



734

Thompson (2002) revela que pelo aprofundamento do conceito de experiência


foi possível ampliar o conceito de classe. É por essa razão que tomarei o conceito de
experiência como essencial na reflexão sobre o Proeja, pois o autor considera as
categorias fundantes do materialismo histórico dialético, classe e luta de classes. Para
aprofundar essa categoria, é importante pontuar como a palavra experiência é
referenciada, no que tange as orientações para a EJA e para o PROEJA.
Os programas voltados à EJA abrangem um público heterogêneo, com perfil
diferenciado em relação à idade, expectativas e comportamento. Em geral, frequentam a
EJA jovens e adultos historicamente excluídos, seja pela impossibilidade de acesso à
escola, ou por não continuidade do ensino regular ou supletivo. A prioridade à
educação das crianças e adolescentes, porém, tem direcionado uma política de
marginalização das ações para a EJA, que cada vez mais ocupam lugar secundário no
interior das políticas educacionais.

1. A formação das classes sociais

A ação do homem ao longo de sua própria história conduz a pensar a concepção


de classe enquanto fenômeno histórico. A apropriação do conceito de classe social
como relação e um processo de formação em cada período histórico, é desenvolvida por
Thompson. Segundo esse autor,

[...] nenhuma categoria histórica foi mais incompreendida,


atormentada, transfixada e des-historizada do que a categoria de classe
social; uma formação histórica autodefinidora, que homens e mulheres
elaboram a partir de sua própria experiência de luta, foi reduzida a
uma categoria estática, ou a um efeito de uma estrutura ulterior, das
quais os homens não são os autores mas os vetores. (2002a, p.57).

Thompson (2004, p. 12) alega que a classe é uma relação estabelecida, e não
uma coisa. Essa relação está assegurada pelas pessoas e contextos reais, portanto, “[...] a
classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é
sua única definição”. Nesse sentido, o ser humano se vê numa sociedade estruturada, em
particular, pelas relações de produção, e suportam a exploração (ou têm uma relação de
poder sobre os explorados). Desse modo, identificam os interesses antagônicos e, no
decorrer do processo de luta, descobrem a si mesmos como uma classe, o que significa
compreender a sua consciência de classe. No entanto, faz-se necessário apontar que, em
função da ideologia e da alienação do trabalho, este processo não é espontâneo, natural.


735

Para Thompson, a categoria classe social foi des-historicizada, isto é, reduzida a


uma categoria estática. Assim, considera que a noção de classe é construída por homens
e mulheres com suas experiências de luta e não de forma experimental. A classe pode
ser compreendida por meio do tempo e implica ação e reação, mudança e conflito.
Desse modo, é necessário investigar a experiência construída por grupos de
profissionais que integram a identidade de interesses entre si, contra os interesses
antagônicos, durante um período de mudanças sociais; em outras palavras, é importante
observar padrões nas relações, ideias, tradições, valores e instituições.
Thompson inicia o prefácio de A formação da Classe Operária Inglesa
esclarecendo que a classe operária, por exemplo, não surgiu repentinamente ou foi
determinada, mas, surgiu em seu próprio fazer-se. O Fazer-se designa um processo ativo
que se deve tanto à ação humana quanto aos seus condicionamentos e determinantes.
Dessa maneira, a classe social origina-se a partir do homem histórico, inserido no
processo de formação social e cultural em um determinado lapso espaciotemporal.
A formação da sociedade inglesa, objeto de estudo de Thompson, apresentava
discursos, ideias particulares e confrontos entre gentry, pleble, comerciantes,
trabalhadores, pessoas do campo. O autor demonstra como esses protagonistas da
sociedade londrina são absolvidos, mas a repressão se torna constante devido à larga
abrangência da comunidade. Assim, surge a pluralidade de costumes e tradições na
cidade de Londres, como a união dos movimentos populares que percebem a sociedade
como construção de uma organização operária. Essa sociedade, portanto, ao estabelecer
uma relação complexa com a tradição, fez originarem-se rupturas e permanências que
caracterizam o processo do continuumda formação da classe operária que acontece em
um movimento de luta de classes.
Em A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade é possível
identificar um exemplo desse movimento, quando Thompson descreve sobre a
sociedade londrina da correspondência de 1792, em que, durante um mês, artesãos,
artífices mecânicos e lojistas discutiram sobre se tinham direito de obter uma Reforma
Parlamentar e, após intenso debate e questionamentos, decidiram que assim o fariam.
Já a obra A formação da classe operária inglesa: a força dos trabalhadores
destaca o final da década quando as lutas entre a Velha Corrupção e a Reforma
atingiram seu clímax e foi possível pensar uma nova forma de consciência dos
trabalhadores em relação aos seus interesses e à sua situação enquanto classe.



736

Perante a própria experiência e com a instrução errante e arduamente obtida, os


trabalhadores formaram um quadro político da organização da sociedade. Apreenderam
suas vidas como parte de uma história de conflitos. Amadurecia, portanto, uma
consciência de classe, em que os trabalhadores estavam cientes de prosseguir por conta
própria em lutas antigas e novas.
Entende-se que o ser do indivíduo acontece em seu processo de vida real
envolvido em inúmeras determinações históricas; desse modo, as relações só poderão
ser compreendidas em seu contexto. A classe modela-se pelo modo como os indivíduos
vivem suas relações de produção, ao que está determinado e, segundo a experiência das
situações em que se encontram, no interior do conjunto de relações sociais juntamente
com a cultura e as expectativas que lhes são transmitidas e com base na maneira pela
qual se valeram dessas expectativas em nível cultural.
Thompson (2010, p. 9) analisa a classe como um fenômeno histórico que
“unifica uma série de acontecimentos díspares e aparentemente desconectados, tanto na
matéria-prima da experiência como na consciência”. A classe acontece efetivamente e
pode ser demonstrada nas relações humanas:

A classe acontece quando alguns homens, como resultado de


experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos
interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus. A experiência de
classe é determinada, em grande medida, pelas relações de produção
em que os homens nasceram – ou entraram involuntariamente.
(THOMPSON, 2010, p.10).

Nesse sentido, a classe constitui uma relação entre seres humanos em uma
relação dialética de experiência de classe, quando as experiências vividas são
partilhadas e no processo de luta de classes, a classe realiza o processo de consciência
de classe. Essa dinâmica pressupõe que não há uma relação hierárquica, mas relações
históricas que ocorrem à medida que no processo social e cultural há mediações de
reciprocidade e particularidades que definem a maneira pela qual homens e mulheres
vivem e realizam a sua história. Thompson sublinhou os conflitos entre classes e
intraclasses. É nas contradições internas e na luta intra e entreclasses, nas frações de
classe, que o capitalismo assume suas particularidades e configurações desiguais em
formações histórico-sociais específicas.
A classe enquanto categoria não estática não pode explicar-se pelas raízes de
cunho positivista, difundidas na tradição sociológica, pois suas características não



737

podem ser quantificadas ou medidas. As classes se definem de acordo com o modo


como tal formação acontece efetivamente. Uma classe não pode existir sem um tipo
qualquer de consciência de si mesma. Thompson (2010), no Séc. XIX, ao se referir à
sociedade inglesa em “Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular
tradicional”, já alertava que, embora existissem os costumes e a reivindicação dos
direitos no momento de desenvolvimento da ciência, com as pressões da reforma,
ocorria a alienação da cultura da plebe e da patrícia. O autor menciona a influência da
gentry sobre a plebe na determinação dos costumes, e ressalta a importância da cultura
popular situar-se em um lugar material. Assim, observa:

No estudo desses casos, espero que a cultura plebeia tenha se tornado


um conceito mais concreto e utilizável, não mais situado no ambiente
dos significados, atitudes, valores, mas localizado dentro de um
equilíbrio particular de relações sociais, um ambiente de trabalho de
exploração e resistência à exploração, de relações de poder
mascaradas pelos ritos de paternalismo e da deferência. Desse modo,
assim espero, a cultura popular é situada no lugar material que lhe
corresponde. (THOMPSON, 2010, p.17).

Thompson destacou os aspectos de sua interpretação da classe como fenômeno


histórico e da luta de classes como conceito prévio, que lhe permitiram valorizar os
aspectos culturais do processo da formação da classe, sem nunca tomá-los por
independentes das condições objetivas. Nesse sentido, as classes não existem como
realidades separáveis, mas somente na dialética de sua luta. Elas, no entanto, não
desaparecem quando as formas mais vivas ou mais conscientes da luta se atenuam.
Thompson nos conduz a pensar sobre a importância da cultura e da experiência
na formação da classe social. A classe e a consciência de classe surgem da mesma
maneira em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma.

2 A abordagem da experiência nas Orientações para EJA e as reflexões de


Thompson sobre essa categoria

Thompson (2002, p. 36) afirma que, durante um século ou mais, a maior parte
dos educadores da classe média não conseguia distinguir o trabalho educacional do
controle social, e isso impunha com demasiada frequência uma repressão à validade da
experiência da vida dos alunos ou sua própria negação. “[...]. Os trabalhadores que, por
seus próprios esforços, conseguiam penetrar a cultura letrada viam-se imediatamente no



738

mesmo lugar de tensão, onde a educação trazia consigo o perigo da rejeição por parte de
seus camaradas e a autodesconfiança. Essa tensão ainda permanece”.
No Prefácio do volume 2 da trilogia A formação da classe operária inglesa, a
palavra fazer-se é utilizada para ressaltar o movimento de “autofazer-se” das classes
sociais ao longo da história. Ao refletir sobre as classes sociais, Thompson, aponta para
a importância da experiência nesse processo e afirma que a classe acontece quando
alguns homens, como resultado de experiências comuns, sentem e articulam a
identidade de seus interesses entre si, sendo contrários aos interesses de outros homens
que se opõem aos seus.
A experiência de classe distingue-se, em grande proporção, pelas relações de
produção em que o indivíduo nasceu, ou entrou involuntariamente. Portanto, a
consciência de classe é a forma como essas experiências são acordadas em termos
culturais, incorporadas em tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais.
Para se pensar a formação histórica e social da humanidade, inclusive, no que se refere
à formação das classes sociais, o autor argumenta que, o conhecimento de classe torna-
se impossível sem a compreensão das experiências que emergem dos confrontos entre
classes em função das diferenças entre as várias culturas, políticas, religião, valores,
convenções. A experiência, para Thompson (1981, p. 182), é um termo que necessita de
aprofundamento. Para exemplificar, apresenta-se o seguinte trecho:

O que descobrimos (em minha opinião) está num termo que falta:
experiência humana. [...] Os homens e mulheres também retornam
como sujeitos, dentro deste termo – não como sujeitos autônomos,
indivíduos livres, mas como pessoas que experimentam suas situações
e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e
como antagonismos, em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua
consciência e sua cultura.

Thompson (1978) aprofunda o conceito de experiência, retratando a experiência


vivida e a experiência percebida. Dessa forma, a experiência constitui e nega, opõe e
resiste, estabelece mediações; é espaço de prática, intervenção, obstacularização, recusa;
é processo de formação de identidades de classe e, podemos adicionar, de gênero, de
geração, de etnias.
A experiência, portanto, expressa de forma privilegiada os processos
dialeticamente articulados. Nessa perspectiva, observa-se que Thompson distancia-se do
conceito vulgar de experiência que estabelece sua equivalência com a empiria ou
experimentação.



739

Mesmo porque, como sublinham Moraes e Torriglia (2000, p. 53), “[...] a


construção empiricista da experiência induz ao relativismo e à passividade e à aceitação
de todo o status quo”, posição que está na contramão da proposta intelectual e de vida
do historiador.
Thompson afasta-se, por outro lado, das interpretações culturalistas do termo e
de sua negação de determinações materiais ou estruturais na formação da identidade dos
sujeitos sociais. Em contraposição a essas interpretações, Thompson (1978, p. 232-235)
indica que “[...] na medida em que uma noção é endossada pelas evidências, temos
então todo o direito de dizer que ela existe ‘lá fora’, na história real”. O solo ontológico
da experiência é a história real e não a cultura ou a linguagem.
É importante refletir, por exemplo, que uma experiência singular – a prática e o
saber docente, o currículo, as políticas educacionais, o cotidiano escolar, entre outras –
não “permanece submissa” ao ser investigada, mas pulsa dentro do ser social e, neste
movimento, se fortalece contra a consciência social prevalecente. Nesse caso, a
experiência aparece sem anúncio, exerce pressões, propõe novas questões e oferece os
dados a serem lidos pelos exercícios intelectuais.
Moraes e Müller (2003) destacam que tratar a experiência nessa concepção
significa reconhecer que o conhecimento é provisório e incompleto, seletivo, limitado e
definido pelas perguntas dirigidas à evidência (e os conceitos que informam tais
perguntas) e que a verdade só pode ser pensada no interior do campo assim definido.
Desse modo, frequentemente, surgirão novas formas de interrogar o objeto ou de
evidenciarem os aspectos até então desconhecidos e, por esse fato, o produto da
investigação estará sempre sujeito a modificações.
No que se refere à utilização do termo “experiência” nos Documentos do Proeja,
ao que nos parece ele designa apenas experimentações, situações vividas pelos jovens e
adultos no decorrer de sua existência, carecendo de uma especificação teórica. A
primeira vez em que a palavra aparece no Documento Base está evidenciada em uma
nota de rodapé, a qual se refere ao Parecer n.º 11/2000 que trata das Diretrizes
Curriculares para a Educação de Jovens e Adultos. Essa nota é utilizada para esclarecer
o uso do termo “modalidade” e enfatiza que os jovens e adultos são sujeitos com
saberes e experiências de estar no mundo. Ao esclarecer o currículo do Programa,
define que este “[...] articula dinamicamente, experiências, trabalho, valores, ensino,
prática, teoria, comunidade, concepções e saberes observando as características,



740

econômicas e socioculturais do meio em que o processo se desenvolve”. (BRASIL,


2000, p.49).
Mais adiante, o Documento ressalta que os professores necessitam considerar a
experiência do aluno na construção do conhecimento e trabalhar os conteúdos
estabelecendo conexões com a realidade do educando, tornando-o mais participativo.
No item 4.3 “da avaliação”, a experiência é tomada como fator preponderante,
conforme destacamos:

A aprendizagem não ocorre de maneira imediata e instantânea e nem,


apenas, pelo domínio de conhecimentos específicos ou informações
técnicas; a aprendizagem requer um processo constante de
envolvimento e aproximações sucessivas, amplas e integradas,
fazendo com que o educando possa, a partir das reflexões sobre suas
experiências e percepções iniciais, observar, reelaborar e sistematizar
seu conhecimento acerca do objeto em estudo. (BRASIL, 2000, p.53).

Thompson (1981, p. 189) sinaliza que a experiência não é algo para ser tomado
apenas com ponto de partida com respeito aos saberes, mas consiste em uma
“exploração aberta do mundo e de nós mesmos” (p.189). Esse fator evidencia que “essa
exploração faz exigências de igual rigor teórico, mas dentro do diálogo entre a
conceptualização e a confrontação empírica”. O que significa, para Thompson: “[...] a
estrutura é transmutada em processo, e o sujeito é reinserido na história”.
No Parecer n.º 11/2000, o uso da palavra experiência é recorrente ao longo do
texto. O Parecer, inicialmente, ressalta a importância de não se considerar a EJA apenas
como um processo inicial de alfabetização, mas com o objetivo primordial de formar e
incentivar um indivíduo que possa ser um leitor de livros e das múltiplas linguagens
visuais, em conjunto, com as dimensões do trabalho e da cidadania. O que significa
reconhecer que esses sujeitos são pessoas maduras e “talhadas por experiências mais
longas de vida e de trabalho”. (BRASIL, 2000, p. 9).
Porém, essa não é apenas uma tarefa para ser reforçada àqueles que estão na
terceira idade, mas estende-se aos jovens, como aponta o Parecer (BRASIL, 2000,
p.33):

Muitos jovens ainda não empregados, desempregados, empregados


em ocupações precárias e vacilantes podem encontrar nos espaços e
tempos da EJA, seja nas funções de reparação e de equalização, seja
na função qualificadora, um lugar de melhor capacitação para o
mundo do trabalho e para a atribuição de significados às experiências
socioculturais trazidas por eles. O importante a se considerar é que os



741

alunos da EJA são diferentes dos alunos presentes nos anos adequados
à faixa etária. São jovens e adultos, muitos deles trabalhadores,
maduros, com larga experiência profissional ou com expectativa de
(re)inserção no mercado de trabalho e com um olhar diferenciado
sobre as coisas da existência, que não tiveram diante de si a exceção
posta pelo art. 24, II, c. Para eles, foi a ausência de uma escola ou a
evasão da mesma que os dirigiu para um retorno nem sempre tardio à
busca do direito ao saber.

O que se observa na citação acima é a experiência associada a elementos


culturais e a limitação de que a escola realizaria uma transformação na vida dos jovens e
adultos de modo que esses superem toda a história de exploração a que foram
submetidos. Outra questão é a ênfase em validar a experiência profissional sem oferecer
a esses jovens o conhecimento científico que possa transformar a sua realidade social.
Um exemplo dessa validação é o Proeja Fic3 que se preocupa em certificar nas
funções elementares, operacionais e o mais simples possível, trabalhando com arcos
operacionais. É importante salientar que a preparação profissional voltada para a
execução do trabalho simples, de natureza indiferenciada, que se constituía em
“dispêndio de força de trabalho simples, a qual, em média, todo homem comum, sem
educação especial, possui em seu organismo”. (MARX, 2012, p. 66).
O que se precisa buscar é a categoria experiência relacionada à categoria
trabalho, e se faz legítima aproximá-la dessa categoria, porém, sempre considerando os
elementos fundantes dessa categoria. Também é importante tratar a experiência não
apenas como uma categoria abstrata, mas entender as bases materiais que a engendram,
“a experiência, descobrimos, foi em última instância gerada na vida material, foi
estruturada em termos e classe e, consequentemente, o ser social determinou a
consciência social”. (THOMPSON, 1981, p.189).
Dessa maneira, “laStructure ainda domina a experiência”, contudo é necessário
considerar que “as maneiras pelas quais qualquer geração viva, em qualquer agora,
manipulam a experiência, desafiam a previsão e fogem a qualquer definição estreita de
determinação”. (THOMPSON, 1981, p.189).
O Parecer destaca que a EJA é momento significativo de reconstruir as
experiências da vida ativa e de ressignificar conhecimentos de etapas anteriores da

3
O Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de
Jovens e Adultos (Proeja), na Formação Inicial e Continuada (Fic) com ensino fundamental, tem por
objetivo oferecer educação profissional a jovens e adultos que não tiveram acesso ao ensino fundamental
na idade regular. O programa prevê que os cursos tenham carga horária mínima de 1.400 horas, sendo
1.200 para formação geral, equivalente ao ensino fundamental, e 200 para a qualificação profissional. É
desenvolvido em parceria pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SETEC/MEC), os
Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia e os municípios.



742

escolarização, articulando-os aos saberes escolares. A validação do que se aprendeu


“fora” dos bancos escolares é uma das características da flexibilidade responsável que
pode aproveitar estes “saberes” produzidos a partir destes “fazeres”. Na sessão
posterior, a lei complementa que a contextualização a ser realizada para esse público
refere-se aos modos como esses estudantes podem dispor de seu tempo e de seu espaço.
A heterogeneidade do público da EJA carece de uma atenção minuciosa, pois a ela se
dirigem adolescentes, jovens e adultos, com suas múltiplas experiências de trabalho, de
vida e de situação social, “aí compreendidos as práticas culturais e valores já
constituídos” (BRASIL, 2000, p. 34-61).
Nessa citação, percebe-se novamente nas propostas para EJA, a cultura
relacionada à experiência. A experiência, nesse caso, distancia-se de nossas defesas do
conceito de experiência discutido por Thompson. Partimos, da premissa do caráter
social do conceito de experiência, dos conceitos históricos da classe trabalhadora.
Verifica-se que, integrando experiência e cultura, pode-se vislumbrar um novo
ponto de junção, porque as pessoas não experimentam sua experiência apenas como
ideias no âmbito do pensamento e de seus procedimentos; ao contrário, elas também
provam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura,
como normas, obrigações familiares e de parentesco, e reciprocidades como valores ou
(através de formas mais elaboradas) na arte ou nas convicções religiosas. Essa metade
da cultura (e é uma metade completa) pode ser descrita como consciência afetiva e
moral. (THOMPSON, 1981, p.189).
O Parecer n.º 11/2000 também aborda a exigência de uma formação específica
para a EJA, uma formação que leve em conta uma relação pedagógica com sujeitos
trabalhadores ou não, mas que trazem experiências vitais. Em outra passagem ressalta
que as experiências de vida se qualificam como componentes significativos da
organização dos projetos pedagógicos inclusive pelo reconhecimento da valorização da
experiência extraescolar (Art. 3, X). Tal recontextualização ganha com a flexibilidade
posta no Art. 23 da LDB 9.394/96 cujo teor destaca a forma diversa que poderá ter a
organização escolar tendo como um critério a base na idade.
O discurso de uma formação específica e valorização da experiência extraescolar
é recorrente nos documentos e, também, uma padronização curricular no país, em todos
os níveis da educação básica. A justificativa anunciada para esse conjunto de ações, no
âmbito do processo de expansão da Educação Profissional e implantação do Proeja, foi
a necessidade de adequar a educação brasileira às mudanças ocorridas no cenário



743

econômico mundial e local, que trariam como imperativo a extensão da escolaridade


obrigatória. Em muitos dos dispositivos legais, em particular no que se refere às
proposições curriculares para o Proeja, constata-se o seu atrelamento às “exigências
postas pelo mundo do trabalho”.
Os princípios éticos, políticos e estéticos, estabelecidos para a organização
curricular, convergem, nas diretrizes e parâmetros curriculares, em torno do
desenvolvimento das “competências” necessárias à vida em sociedade e à inserção no
trabalho. Propõe-se que o currículo seja organizado em torno de competências a serem
desenvolvidas e adquiridas com vistas a certificação. O conceito de “competências”
vem associado ao de “tecnologias”, que, juntos, condensam o ideal de formação na
reforma curricular, qual seja, o da adaptação da escola e da formação humana às
demandas decorrentes do processo de reestruturação social e produtiva.
No entanto, do ponto de vista conjuntural, qual é a importância da presença
(contraditória) desses conceitos, para a classe trabalhadora por uma perspectiva e para a
burguesia por outra? Enquanto para a burguesia seriam instrumentos de
“amortecimento” das lutas sociais e serviriam para a construção de um consenso
funcional à hegemonia do capital, poderiam contraditoriamente, potencializar as lutas da
classe trabalhadora?
Porém, temos defendido, a necessidade de romper com essas bases estruturais
em um processo que ultrapasse tanto a visão da EJA enquanto reposição de
escolaridade, na lógica do ensino supletivo ou como o aligeiramento da prática
pedagógica, na lógica da certificação. Para isso, trabalhar com o conceito de experiência
aproxima-nos dos propósitos de emancipação humana.
Portanto, convém observar que,

Estas remociones, estos acontecimientos, si bien forman parte del ser


social, parecen a menudo acometer a la conciencia social existente,
asaltarla, chocar contra ella. Plantean nuevos problemas y, sobre todo,
dan continuamente lugar a experiencia, categoría que, por imperfecta
pueda ser, ES indispensable para el historiador, ya que incluye la
respuesta mental y emocional, ya sea de un individuo o de un grupo
social, a una pluralidad de acontecimientos relacionados entre sí o a
muchas repeticiones del mismo tipo de acontecimiento.
(THOMPSON, 1978, p.19).

Portanto, homens e mulheres são sujeitos, não são exatamente sujeitos


autônomos ou livres, “sino como personas que experimentan las situaciones y las



744

relaciones dadas en que se encuentran en tanto que necesidades e intereses y en tanto


que antagonismos”. (THOMPSON, 1978, p.253).
Nessa relação elaboram suas experiências dentro das coordenadas de sua
consciência e sua cultura. Perante essa situação, homens e mulheres estarão “actuando
luego a su vez sobre su propia situación (a menudo, pero no siempre, a través de las
estructuras de clase a ellos sobrevenidas)”. (THOMPSON, 1978, p.253).
Thompson reconhece os limites para contextualizar o conceito de experiência
historicamente. Relaciona, por exemplo, que o camponês conhece as estações, assim
como o marinheiro conhece o mar; no entanto, eles podem ser enganados com os temas
da monarquia e da cosmologia. Nesse sentido, o autor afirma que:

La experiencia surge espontáneamente en el interior del ser social,


pero no surge sin pensamiento; surge porque los hombres y las
mujeres (y no solo los filósofos) son racionales y piensan acerca de lo
que les ocurre a ellos y a su mundo. Si optamos por emplear la idea –
de dificultosa intelección – ¿de que el ser social determina la
conciencia social, cómo debemos suponer que ocurre? Ciertamente,
no deberemos suponer que a un lado está el ser, como basta
materialidad de la que ha sido separada toda idealidad y que la
conciencia (como idealidad abstracta) está al otro lado. Porque no es
posible imaginar ningún tipo de ser social con independencia de sus
conceptos organizadores y de sus expectativas, ni tampoco el ser
social podría reproducirse a sí mismo ni siquiera un solo día sin
pensamiento. Lo que se quiere decir es que dentro del ser social tienen
lugar cambios que dan lugar a experiencia transformada: y esta
experiencia es determinante, en el sentido en que ejerce presiones
sobre la conciencia social existente, plantea nuevas cuestiones y
proporciona gran parte del material de base para los ejercicios
intelectuales más elaborados. (THOMPSON, 1978, p.19-20).

Em síntese, para Thompson (2000),a noção histórica da dialética entre o ser


social e consciência social é extraordinariamente poderosa e importante. Thompson,
seguindo os referenciais de Marx e Engels, vê as classes sociais em sua historicidade,
como Ser social em movimento. Nesse sentido, o movimento dialético é característica
do processo de constituição das classes, as quais não nascem prontas, aliadas ao
processo de consciência em si e para si, mas isto não as elimina enquanto classes
objetivamente existentes e potencialmente em desenvolvimento.



745

Considerações finais

As mudanças ocorridas nas relações sociais e na compreensão da EJA como


modalidade de ensino, nos fez questionar o seu real sentido no interior das relações
escolares e do seu lugar pedagógico no processo de emancipação humana. O estímulo
ao trabalho e a relevância da experiência nas Diretrizes Curriculares, fixadas pelo
Parecer nº11/2000 demarcam a produção de alterações substantivas no processo de
legitimação da expropriação do conhecimento, por meio de representações do contexto
da experiência enquanto “respeito” e do trabalho como “inserção profissional”. A
ausência de ações para a tomada de consciência das condições de exploração do homem
pelo homem e da força coletiva do jovem e adulto revela a apropriação privada do
poder, assumindo novos contrastes, mantendo inalteradas os fundamentos centrais de
uma educação para à EJA de segunda ordem e prioridade.
Reconhecer-se enquanto classe trabalhadora no antagonismo de classes ainda é
um desafio para EJA. O que se pretende é formular uma concepção que se torne
hegemônica, capaz de superar a concepção dominante. Para isso, “é necessário dispor
de instrumentos lógico-metodológicos, cuja força seja superior àqueles que garantem a
força e coerência da concepção dominante”. (SAVIANI, 2011, p.97).
A escola fragmentada em níveis e modalidades representa a forma como tem
sido organizado o conhecimento sob as bases da divisão social e técnica do trabalho,
que se traduzem nos programas descontínuos e ações pouco efetivas, desarticuladas das
práticas sociais vivenciadas e percebidas nos cotidianos dos jovens e adultos.
A orientação neoliberal e a reforma e redefinição do papel do Estado em curso
no Brasil desde os anos de 1990, incidem diretamente sobre as escolas e sistemas
educacionais e redefinem a natureza da própria educação passando de direito social à
mercadoria e, no centro destes embates, colocam-se também as questões relativas à
educação de jovens e adultos. Trata-se de investigar a natureza, limites, potencialidades
e aspectos contraditórios apresentados com discursos e documentos que, se por um lado
aparentam incluir demandas sociais e categorias de uma educação crítica e com
referência social na perspectiva da classe trabalhadora (como a formação humana
integral, o trabalho como principio educativo e a emancipação humana, entre outros),
por outro lado, seja pela ressignificação destas categorias ou pela “colonização” das
mesmas ao campo da sociabilidade do capital; resultando assim na reiteração da



746

negação do direito educacional aos trabalhadores e até mesmo na progressiva


desativação das escolas que ofertam turmas de EJA.
Por outro lado, reforçar a EJA enquanto uma educação da classe trabalhadora,
ancorados pela concepção de experiência de Thompson, é uma luta importante para
entendermos a escola como um lugar estratégico para a formação intelectual do homem
coletivo, onde os sujeitos podem compartilhar um mesmo modo de pensar e de agir, de
percepção e reconhecimento da produção da vida, da compreensão das relações sociais
formadas historicamente e também do lugar de cada jovem e adulto nessas relações, do
“fazer-se” classe social.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação. Referenciais Curriculares Nacionais para Educação de


Jovens e adultos. Parecer nº 11/2000. Brasília, 2000.

MARX, Karl. O capital: crítica a economia política: livro I. Tradução Reginaldo Sant`Anna. 30.
ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012.

MORAES, M.C.; MULLER, R.G. História e experiência: contribuições de E.P. Thompson à


pesquisa em educação.Perspectiva, Florianópolis, v. 21, n. 02, p. 329-349, jul./dez. 2003.

RUMMERT, S. M. Gramsci, trabalho e educação: jovens e adultos pouco escolarizados no


Brasil actual. Lisboa: Olímpio Ferreira, 2007.

SAVIANI, D. O problema metodológico: diversas maneiras de abordar a noção de sistema


educacional; justificativa do ponto de vista adotado. In: D.G. VIDAL (Org.). Dermeval
Saviani: pesquisador, professor e educador. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. 4. ed.


São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. v. I - A árvore da liberdade. Rio


de Janeiro: Paz e Terra, 2004.

THOMPSON, E.P. Educação e experiência. In: Os Românticos. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2002.

THOMPSON, E.P. The poverty of theory and other essays. London: Merlin, 1978.

THOMPSON, E.P. Miseria de la teoria. Traducción castellana de Joaquim Sempere.


Barcelona: Editorial Crítica, 1981.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

DESIGUALDADE, CONHECIMENTO E PRESSUPOSTOS PÓS-MODERNOS:


ATRAVESSAMENTOS NA ESCOLA

Luciana Pimentel Rhodes Gonçalves Soares (CEI CRIARTE/UFES)1


Vania Carvalho de Araújo (PPGE/UFES)2

Resumo: Esse texto considera a realidade de uma escola pública municipal explicitada a partir
de um estudo de caso realizado por ocasião do Mestrado em Educação tendo como pressuposto
teórico-metodológico o materialismo histórico-dialético. Transcende os objetivos da pesquisa
inicial e se coloca diante de outro objetivo: refletir a respeito das relações entre desigualdade;
acesso ao conhecimento e formulações teóricas pós-modernas no contexto educacional. Nesse
sentido, afirma que as desigualdades sociais se revelam explicitando a negação de direitos
sociais justapostos à negação do acesso ao conhecimento, entendido como um desses direitos.
Destaca a força das formulações teóricas pós-modernas, pois centradas na manutenção do status
quo; na ideia de que a sociedade é constituída pela simples soma de indivíduos; na defesa de
valores assentes na subjetividade, descolados da práxis social.

Palavras-chave: desigualdade social; conhecimento; pós-modernidade; educação

Introdução

Conforme Berger e Luckmann (2005), testemunha-se na contemporaneidade


uma crise de sentido; uma radical mudança das condições básicas da vida humana, uma
crescente transformação dos valores sociais, o que revela a condição de estar em um
mundo onde o que é valorizado é o fugaz, o aparente, o superficial, o sem sentido.
Diante desse cenário, a educação parece trilhar outro caminho que não o de um pensar
cuidadoso em frente às inúmeras alternativas que se mostram. A desestabilização dos
valores em torno do bem comum, garantidores de uma consciência coletiva cedem lugar
à lógica individualista, centrada na racionalização instrumental de todos os aspectos da
vida. Em consequência, os conhecimentos que deveriam ser privilegiados no intuito de
melhorar a vida, em resposta aos valores hegemônicos, se voltam a essa lógica
instrumental, reafirmando uma perspectiva prático-utilitarista cujo enfoque é o
desenvolvimento de competências e habilidades em detrimento do pensar e

1
Luciana Pimentel Rhodes Gonçalves Soares, Mestrado em Educação, Centro de Educação Infantil
Criarte da Universidade Federal do espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: lucianaprgs@gmail.com
2
Vania Carvalho de Araújo, Pós-Doutorado em Educação, Programa de Pós-graduação em Educação da
Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: lucianaprgs@gmail.com


748

compreender, sem, portanto, considerar o homem como a medida de todas as coisas,


mas tendo-o meramente como meio para alcance dos fins. (FRIGOTTO, 2005).
Diante disso, os valores apregoados parecem apontar a uma conformidade com
as condições de vida atual contribuindo para a degradação do humano. Valores que
mascaram os elitismos, as diversas formas de discriminação, o modelo excludente e
injusto que se insere a sociedade. Os espaços que visam pensar a condição humana se
tornam cada vez mais restritos; não se efetiva o que diz respeito à formação humana3,
considerando a importância dessa perspectiva e as condições para sua concretização.
No campo teórico, ao que parece, muitas reflexões acerca da educação, assentes na
perspectiva do “paradigma emergente” pós-moderno corroboram essa crise de sentido
anunciada ao não considerarem as injustiças que se colocam diariamente.
As desigualdades se revelam colocando diante de nós a explícita negação de
direitos, em que muitos sujeitos, apesar das condições precárias a que estão submetidos,
de um modo ou de outro, insistem em tomar para si o direito à educação; mesmo diante
das dificuldades cotidianas frequentam a escola, seja porque é premissa obrigatória, seja
porque vislumbram maiores oportunidades a partir da certificação. Diante dessa
contradição, esse texto se coloca. Considera a realidade de uma escola pública
municipal explicitada a partir de um estudo de caso realizado por ocasião do Mestrado
em Educação tendo como pressuposto teórico-metodológico o materialismo histórico
dialético.
Os critérios considerados para escolha da escola sede da pesquisa foram
específicos, consoante aos objetivos investigativos outrora traçados e, por estarem
assentes na perspectiva materialista-dialética em que o objeto da pesquisa é percebido
como produção humana e, portanto, compreensível em sua totalidade, é possível
transcender tais objetivos e avançar nas problematizações. Kosik nos convida a pensar
nessa direção ao afirmar que “[...] as coisas, as relações e os significados são
considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como
sujeito real do mundo social”, sendo assim, os fenômenos sociais são compreensíveis se
considerados em sua totalidade. Totalidade, conforme o autor, entendida não como
acúmulo de “todos os fatos”, nem a partir da dicotomia “partes/todo” ou mesmo da ideia
banal de que tudo está em conexão com tudo, ou que o todo é superior às partes, mas

3
Formação humana relaciona-se à ideia de que “[...] A educação não é apenas um processo institucional e
instrucional, seu lado visível, mas fundamentalmente um investimento formativo do humano, seja na
particularidade da relação pedagógica pessoal, seja no âmbito da relação social coletiva (SEVERINO,
2006, p. 621, grifo do autor).



749

totalidade entendida como um todo estruturado e dialético, em que um fato é abstraído


para ser compreendido racionalmente. (KOSIK, 1989, p. 18, grifo do autor).
Assim sendo, o viés de condução desse texto transcende os objetivos da pesquisa
inicial e se coloca diante de outro objetivo: tecer reflexões a respeito das relações entre
desigualdade; acesso ao conhecimento entendido como direito social e as premissas das
formulações pós-modernas no contexto educacional. Consideradas essas três variáveis,
inevitavelmente, nos colocamos diante dos valores sociais, pois “[...] o valor é uma
relação de não indiferença que o homem estabelece com os elementos com que ele se
defronta. Na medida em que o homem não é indiferente às coisas, é que essas coisas
possuem valor”. Sendo assim, por não sermos indiferentes às desigualdades manifestas
no campo educacional e por defendermos valores assentes na justiça social4 propomos
tais reflexões. (SAVIANI, 1996, p. 42).
Tomamos os dados5 recolhidos no campo investigado de modo a estabelecer
relações teórico-práticas em torno das três variáveis anteriormente explicitadas. Para
tanto, apresentamos o contexto onde se procedeu a recolha dos dados com vistas a
destacar as condições materiais de vida dos sujeitos que compuseram essa investigação
e, a partir dessa apresentação avançamos nas reflexões a respeito das contradições
quanto ao acesso ao conhecimento e às ideias legitimadas pelas teorias pós-modernas.

1 “A teoria tem consequências!”6: desdobramentos teórico-práticos


Ao chegar ao endereço da escola que sediou a pesquisa pela primeira vez, foi
difícil identificar o imóvel, dadas as condições da estrutura física. Naquele momento
não havia nenhuma placa com o nome da instituição. Na verdade, não
necessariamente uma dificuldade, mas um estranhamento em frente à precariedade.
Todos os espaços eram bem reduzidos representando claramente limitações ao
desenvolvimento do trabalho pedagógico e a momentos de lazer e liberdade aos
alunos. Dada a construção antiga do prédio, era visível que carecia de reformas e que

4
O entendimento de justiça social, aqui defendido, fundamenta-se na perspectiva radical apresentada por
Estêvão em Educação, Justiça e Democracia (2004). O autor salienta ser impossível exercer os direitos
políticos e civis se não forem garantidos os direitos econômicos e sociais.
5
A significação de “dados” é tomada conforme sugere Triviños (1987, p. 140, grifo nosso): “Antes de
qualquer definição do que entendemos por ‘Dados’ e/ou ‘Materiais’, é indispensável que o pesquisador
tenha claro, ao iniciar uma pesquisa, que dados será aquilo que procurará, fundamentalmente, em torno do
fenômeno que pensa estudar”.
6
A frase “A teoria têm consequências!” foi proferida em 1979 pelo historiador marxista inglês E. P.
Thompson em um debate em Oxford. (MORAES, 2009).



750

há muito não contemplava a demanda que atendia, seja pelo tamanho dos espaços,
seja pelo estado de conservação.
O bairro onde se localiza a escola possui também uma infraestrutura precária e
insuficiente, reflexo de seu histórico de constituição (ocupação desordenada);
atualmente percebe-se certo desenvolvimento, ainda que as condições estejam longe
de representar uma vida digna a seus moradores. Outro traço importante a ser
destacado é a violência no bairro, ligada especialmente ao tráfico de drogas.
Realidade que se revela explicitamente dentro da escola e, em conjunto com outras
demandas e questões, coloca em xeque o sentido que a escola pretende.
Alguns trechos do diário de campo explicitam as condições de tal contexto e
revelam os atravessamentos nos modos de existir de grande parte dos alunos e os
desafios dos professores, desafios não apenas de ensinar, mas, sobretudo de se fazer
aprender:

Enquanto grande parte agita demasiadamente as aulas (socos,


empurrões, xingamentos, guerra de livros, de lápis, de tudo...)
outros são completamente pacatos diante do que acontece
cotidianamente ali. (DIÁRIO DE CAMPO, 22/07/2013).

São constantes episódios de furtos, agressões físicas/verbais,


resistências... Alguns alunos cantaram hoje, bastante desenvoltos,
músicas que aludem à violência e admiram-se com os gestos de
manuseio de armas. Impressiona-me o fato de sentirem-se fortes,
poderosos, se na brincadeira conseguem bater ou matar. (DIÁRIO
DE CAMPO, 24/07/2013).

A sensação é de que a professora está mais empenhada na proposta


da aula do que os próprios alunos. [...] A relação crianças/crianças é
sempre muito conflituosa, intensifica-se constantemente culminando
em agressões físicas. (DIÁRIO DE CAMPO, 05/08/2013).

O trato das crianças umas com as outras vai além dos conflitos
“comuns” na relação entre crianças. Há um constante apelo à
violência (“Vou te matar”; “te dar um tiro”). (DIÁRIO DE
CAMPO, 05/08/2013).

Essa realidade nos faz pensar como Gentili (2002, p. 1063) ao afirmar que

Quando se trata de um direito, não há, digamos assim, uma


‘inclusão pela metade’. A soma de ‘partes’ de um direito não
garante a realização das condições que lhe dão sentido e lhe
atribuem necessidade histórica [...].

Ou seja, no que tange à educação, a garantia da matrícula escolar não é



751

sinônimo de acesso ao conhecimento, na mesma medida em que o acesso à escola não


pode ser vislumbrado sem a garantia e a efetividade de outros direitos sociais. No
contexto da pesquisa foi possível perceber com muita intensidade a relação entre a
falta de recursos materiais, expressa na ausência da garantia de direitos, e o acesso ao
conhecimento.
Foi possível perceber que as famílias reconhecem a escola como positiva na
vida de seus filhos, mas muitas vezes - a família e os filhos - demonstraram não saber
bem o porquê de se estar na escola. Sabem apenas que se trata de algo importante; o
propósito por eles traçado parece ser distante do presente; estar ali é obrigação e não
desejo. Para as famílias a escola é lugar legítimo. Há uma confiança no professor.
Ainda que distante do que é defendido como escola pública, foi possível perceber que
a escola representa, para muitos de seus alunos e para suas famílias, talvez o único
lugar onde tenham atenção e cuidado. Ainda que esteja longe de alcançar uma
qualidade ideal, foi destacada como lugar seguro para deixar os filhos.

[...] com a escola eles [pais dos alunos] têm uma boa relação; os
problemas deles estão lá, nunca interferiram na escola não... nunca
teve interferência dos problemas da comunidade com os da escola;
reflete na escola, mas diretamente não, pelo contrário, eles acham
que a escola é até um porto seguro. Todos aí, de todos os
movimentos [refere-se à dinâmica própria do tráfico de drogas no
bairro], contra ou a favor, todos colocam os filhos aqui, eles
preferem essa escola, eles gostam da escola, então assim... aqui pra
eles é um porto seguro. (COORDENADORA - informação verbal).

Muitos sujeitos entrevistados atuavam na escola há muitos anos, e afirmaram


que muitas famílias mantém, ao longo do tempo, a mesma condição de miséria e
dilemas dos avós/pais/filhos mais velhos outrora alunos ali naquela instituição. O
sentido da escola diante de condições marcadamente desiguais é alheio a uma
expectativa que possa pelo menos desejar romper com essa situação. Alguns
momentos registrados no diário de campo, em relação à atitude dos alunos em frente
às regras, às propostas pedagógicas e mesmo em frente à autoridade dos professores,
balizam essa afirmação:

As crianças não dão atenção ao que a professora fala e se


envolvem em outros assuntos, brincadeiras e brigas. (DIÁRIO DE
CAMPO, 22/07/2013).

A professora contou uma história cujo objetivo era sensibilizar as



752

crianças sobre a importância da natureza e também do outro. No


entanto, os alunos não mostraram interesse em frente à proposta
.(DIÁRIO DE CAMPO, 22/07/2013).

Como ensinar os “conteúdos” se os pequenos não parecem ver


sentido no que lhes é “obrigado” pela professora? (DIÁRIO DE
CAMPO, 22/07/2013).

A proposta da professora para as crianças é interessante: conta


histórias, propõe sequências didáticas; percebo que se preocupa em
modificar o que não tem dado certo, no entanto, não consegue o
envolvimento dos alunos. Um desafio! As crianças (tenho essa
sensação) vão à escola obrigadas, não consigo visualizar prazer no
que fazem (na maioria das vezes). Não atribuem importância ao que
a professora propõe. (DIÁRIO DE CAMPO, 24/07/2013).

Os alunos que ainda não leem (acredito que esses) realizam o que é
proposto, mas sem muito entender o que fazem. A aula segue, ainda
que a professora exija que todos cumpram o dever, há aqueles que
não entenderam o porquê de escreverem tal coisa. (DIÁRIO DE
CAMPO, 21/08/2013).

Conteúdos que deveriam ter sido assimilados em anos anteriores


ainda não se consolidaram. Os alunos não parecem ver sentido no
que aprendem. (DIÁRIO DE CAMPO, 26/08/2013).

Moraes (2009) afirma que os ideários ao redor da pós-modernidade ganharam


maior destaque no bojo da reestruturação produtiva iniciada especialmente nos anos
de 1960 e, inspirada em Medeiros, a autora afirma que, embora sob várias influências
teóricas o pensamento pós-moderno conserva três premissas básicas: 1) a
naturalização do capital, ou seja, a manutenção do status quo; 2) a ideia de que a
sociedade é constituída pela simples soma de indivíduos; 3) a defesa de valores
assentes na subjetividade, descolados da práxis social. Nessa configuração, não há o
reconhecimento efetivo de que se possa transcender a ordem das coisas.
Diante de realidades como essa apresentada, é comum o apelo ao subjetivismo de
que trata Moraes (2009), responsabilizando os alunos, suas famílias, os docentes e
demais profissionais das escolas pelos fracassos e pela má qualidade da educação.
Perspectivas dessa natureza desconsideram a totalidade, conforme considerada por
Kosik (1989) e despotencializam a escola na medida em que obscurecem causas
legítimas do seu insucesso. A naturalização desses processos contribuem para a
manutenção da ordem das coisas e da ideia de que a sociedade é meramente a soma de
partes auto-responsáveis.
A lógica da responsabilização individual, perceptível pela responsabilização dos



753

professores em promover mudanças no contexto escolar superando os problemas


atuais e, ainda, na responsabilização dos próprios alunos ao considerar que todos os
dilemas sociais pelos quais são atravessados podem ser driblados, leva a crer que
apenas considerar a “realidade do aluno” em seu processo educacional é suficiente
para superar as “dificuldades de aprendizagem”. Reduzem, portanto, toda amplitude
desse debate a aspectos metodológicos e didáticos circunscritos às salas de aula; aos
sujeitos diretos desse processo.
No contexto investigado não foram raras as vezes em que a “realidade do aluno”
foi considerada no sentido de exigir-lhe e oferecer-lhe menos. E, nesse sentido,
invocamos aqui a segunda variável considerada nesse texto: o acesso ao
conhecimento.
A consideração dessa realidade assume-se subjetivista e se coloca muito mais
como justificativa para abreviar os objetivos educacionais para os alunos que, de fato,
busca estratégias para superar as condições que os impedem de ir além. Nessa
direção, Fanfani (2007) é emblemático ao afirmar que a massificação da escola tem
aumentado a distância entre a certificação e o conhecimento. À medida que a exclusão
social aumenta, registra-se um aumento da inclusão escolar, mas a igualdade de
oportunidades de acessar a escola não tem passado pela igualdade social.
Fanfani (2007, p. 21, tradução nossa) destaca ainda que

[...] a inclusão escolar em muitos casos está ocultando a exclusão do


conhecimento. Mas como o conhecimento é um capital (riqueza que
produz riqueza), quem não o possui em quantidade suficiente é
excluído de outros bens sociais tão estratégicos como a integração
social, a capacidade expressiva e produtiva, a riqueza e o poder. [...]
a desigualdade e a exclusão social são ao mesmo tempo causa e
consequência da exclusão cultural.

Ora, estamos diante de meras coincidências do que nos faz pensar os


postulados pós-modernos, quando reduzem a compreensão da realidade a uma
perspectiva subjetivista e de conformidade com o sempre mesmo?
A perspectiva pós-moderna se coloca em uma posição contrária à da teoria
crítica e se torna difícil precisar a base de seus argumentos uma vez que estão
fundados em várias influências teóricas. Entretanto, pode-se destacar alguns aspectos
em comum, como assevera Harvey (2012) ao salientar que o pós-modernismo aceita o
efêmero, o fragmentário, o descontínuo e o caótico como maneira de legitimar-se,



754

assim sendo, não toma a história como referência, pelo contrário, a despreza como
continuidade e memória, não se esforçando para sustentar valores, crenças ou
descrenças. Logo, não considera empreendimentos que possam produzir um futuro
radicalmente diferente.
Harvey (2012) considera pensadores como Nietzsche, Foucault, Lyotard e
Derrida para compreender as assertivas do pensamento pós-moderno e afirma que
esses discursos diferem da assertiva moderna ao não terem como foco uma
perspectiva identificável do que se defende, mas um modo fluido de significações que
se rearranjam continuamente em torno de interesses diversos, todos legítimos e
equivalentes.
Embora esses discursos tratem da alteridade e da diversidade, afirmando a
importância da valorização e do reconhecimento de cada sujeito consoante a sua
história e a seu contexto de vida, sem problematizar as questões subjacentes ao não
reconhecimento e não garantia dos direitos sociais de todos, obscurecem as relações
de dominação e de desigualdade, naturalizando esses processos.
E desse modo, nossa terceira variável, os postulados pós-modernos, ao “[...]
aceitar a fragmentação, o pluralismo e a autenticidade de outras vozes e outros
mundos traz o agudo problema da comunicação e dos meios de exercer o poder
através do comando”. (HARVEY, 2012, p. 53).
Pode-se dizer que esses discursos contribuem para o surgimento de um
pluralismo de valores, conforme assinalado por Berger e Luckman (1974); eleva-se o
ser em detrimento do vir-a-ser, ou seja, configurações de ordens privadas ganham
status em frente ao interesse comum. Sequer o interesse comum expresso na ideia de
coletividade é considerado como possível.
Apesar das questões já explicitadas, poderia-se ainda perguntar: o que tem a
ver esses discursos com a vida diária? Ou, de outra maneira: em que esses
pressupostos teóricos impactam na realidade objetiva da vida? É aqui que a atenção
deve ser invocada àquilo que Berger e Luckman (1974) chamaram de história das
ideias, pois as teorias ao mesmo tempo que advêm da problematização da realidade,
da busca pelo seu entendimento, também são responsáveis pela modificação da
realidade na medida em que legitimam modos de pensar a respeito de determinado
fenômeno.
Moraes (2009), afirma que a teoria em seu lado positivo fornece bases para um
posicionamento racional e crítico e, em contrapartida, em seu lado negativo pode



755

acentuar tanto o ceticismo generalizado quanto o relativismo ontológico. Portanto,


“[...] a teoria tem consequências!”. (THOMPSON apud MORAES, 2009, p. 586).
Nesse entendimento, o conhecimento, a verdade e a justiça correm o risco de
tornarem-se sem sentido uma vez que tendências teóricas defendem que para
compreensão do mundo basta “deitar o olhar” sobre o que se mostra de imediato, sem,
no entanto, considerar em profundidade os fenômenos sociais. Assim,

[...] por atestar que ideias, teorias etc. opostas não podem ser
objetivamente comparadas, conclui-se a impossibilidade da crítica,
de cotejar as várias correntes de pensamento, pois mesmo
reconhecendo o real, conclui-se que não se pode ter um
conhecimento objetivo a seu respeito (MORAES, 2009, p. 588).

Sendo assim, que consequências há de ter as premissas pós-modernas no


campo educacional? Ao mesmo tempo em que se afirma cada vez mais a centralidade
do conhecimento na vida social, mais se avança na direção de

[...] um conhecimento empobrecido, reduzido a um dos múltiplos


“saberes” que germinam com rapidez na academia e fora dela, no
qual se rompe a íntima cumplicidade e reciprocidade entre teoria e
prática no processo cognitivo, ganhando esta última absoluta
prerrogativa. (MORAES, 2009, p. 590).

Portanto, ganham relevância as “epistemologias da prática”, tal como


defendem Tardife7 e Schön8 ao afirmarem que a prática imediata é equivalente ao
saber escolar. Assim, continua Moraes (2009, P. 592), o conhecimento “[...] é
hierarquizado por sua utilidade e identificado com o vocabulário da prática”. Se assim
o fosse, qual o motivo de haver escolas? Qual seria sua importância? Nessa
compreensão, não se vislumbra um deve ser, mas um futuro aberto em que a falta de
profundidade impossibilita que as complexas relações sociais sejam captadas e
problematizadas. Não se trata de desprezar as atitudes cotidianas, pelo contrário, a
escola tem como ponto de partida a experiência imediata do aluno, no entanto, deve

7
Ver TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários: elementos
para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências em relação à
formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 13, p. 5-24, jan./abr. 2000.
Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n13/n13a02.pdf>. Acesso em 11 fev. 2013.
8
Ver SCHÖN, Donald. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, Antônio. Os
professores e sua formação. Dom Quixote, Lisboa, 1992. p. 72-92. Disponível em:
<http://profmarcusribeiro.com.br/wp-content/uploads/2012/04/Formar-Professores-como-Profissionais-
Reflexivos-donald-schon.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2013.



756

propiciar o acesso ao que está além do cotidiano, o conhecimento elaborado - o


científico, o filosófico, a ética, as artes. Pois,

O aprofundamento teórico possibilitado pelas formas mais


sofisticadas de conhecimento permite um alargamento do escopo da
práxis humana, fazendo com que o que se apresentava como
paradoxo à experiência imediata passe a ser compreendido como
verdade científica. (MORAES, 2009, p. 594).

Todavia, uma vez considerada a capacidade criativa humana, essa verdade é


sempre provisória - não como defendem os pós-modernos - porque tem a história
como sua aliada, a partir da qual se orienta e se critica e porque compreende o mundo
como totalidade, logo busca captar a profundidade fenomênica.
Em meio aos discursos que se contentam com a espontaneidade da realidade
essa compreensão tem se perdido. Assim, a lógica desigual vem sendo naturalizada
sob o prisma do relativismo cultural, em que as várias vozes têm sido consideradas
equivalentes, correndo-se o risco de se relativizar a justiça e a verdade; o imediato
ganha status de maior importância em frente a um olhar esclarecedor do passado e a
prática ganha prerrogativa diante da teoria. Torna-se urgente transcender essa
condição empobrecedora do existir a favor de uma interiorização de condições que
legitimam a vida, que propiciem novas formas de pensar e de sentir. A educação pode
contribuir se for capaz de propor a reelaboração do passado a fim de pensar a
sociedade em seu devir, em seu vir-a-ser, mas se pensada na totalidade das condições
de existência, compreendendo que o futuro é gestado no presente.

Considerações finais

Diante das constatações evidenciadas, podemos afirmar que a escola tem


assumido outros sentidos mais expressivos que uma aproximação crítica ao legado
outrora descoberto e potente de ser ampliado. Seu sentido caminha ao encontro dos
sentidos interpostos socialmente de maneira a transmutar sua função legítima de
garantir o acesso ao conhecimento histórico de modo a potencializar a vida, ainda
que, concomitantemente, a escola tensione os sentidos que a atravessam. As
condições materiais de vida estão diretamente relacionadas a esse processo, mas não
têm a centralidade que clamam. Assim, a garantia do acesso a escola não tem passado
pela efetividade do direito de acessar o conhecimento e, portanto, novas



757

possibilidades de pensar a realidade se tornam um desafio. Apesar do pouco interesse


dos alunos, seja pelas situações sociais destes, seja pela própria maneira como a
escola tem se organizado em torno do ensino do conhecimento, seja pela lógica
pragmática que impera na atualidade, a escola é um importante espaço de acesso aos
bens culturais. E, para alguns, esse acesso se circunscreve tão somente ao que a escola
oferece. Mas, como adverte Gentili (2002), não há direito pela metade.
É claro que não são todos os alunos que não parecem ver sentido na escola e nem
todos os que estão em uma condição de abandono material, afetivo e intelectual. Há
aqueles que tiram o máximo de proveito da escola precária que lhes é oferecida; há
famílias que temem a violência que lhes cerca dia a dia e que com grande esforço
individual conseguem manter um caminho mais seguro e “confortável” para seus filhos.
Mas, os direitos precisam ser garantidos nos planos teórico, formal e prático. São todos
os alunos que têm direito a uma escola digna. Portanto, deve ser reafirmada como lócus
privilegiado de acesso ao conhecimento; é importante que favoreça aos que nela estão
uma formação que permita o “[...] alcance de um modo de ser, mediante um devir,
modo de ser que se caracterizaria por uma qualidade existencial marcada por um
máximo possível de emancipação [...]”. Trata-se da própria humanização do homem ao
apreender a realidade; trata-se de considerar que o homem constrói sua natureza ao
abrir-se para o mundo. (SEVERINO, 2006, p. 621).
Sob esse olhar, ainda que em frente a momentos em que se torna difícil reinventar a
existência, haja vista o processo de construção da escola massificada contrapondo-se ao
ideal de democracia e formulações teóricas que obscurecem os princípios assentes na
justiça social, acredita-se que é possível uma educação entendida como processo de
formação humana, conforme destaca Severino (2006) e tantos outros autores
comprometidos com esses ideais.

Referências

BERGER, Peter Ludwig.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado


de sociologia do conhecimento. 2. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1974.

BERGER, Peter Ludwig.; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, pluralismo e crise de


sentido: a orientação do homem moderno. 2. ed. Tradução de Floriano de Souza Fernandes.
Petrópolis: Vozes, 2005.

ESTÊVÃO, Carlos V. Educação, justiça e democracia: um estudo sobre as geografias da


justiça em educação. São Paulo: Cortez, 2004.



758

FRIGOTTO, Gaudêncio. Concepções e mudanças no mundo do trabalho e o ensino médio. In:


CIAVATTA, Maria.; FRIGOTTO, Gaudêncio.; RAMOS, Marise. Ensino Médio Integrado:
concepções e contradições. Rio de Janeiro: Cortez, 2005. p. 57-82.

GENTILI, Pablo. A educação e as razões da esperança numa era de desencanto. In: Cecília
Irene Osowski (Org.). Educação e mudança social por uma pedagogia da esperança. 15 ed.
São Paulo: Loyola, 2002, v. 1, p. 25-40.

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 22. ed. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria
Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

MORAES, Maria Célia Marcondes de. A teoria tem consequências: indagações sobre o
conhecimento no campo da educação. Educação e Sociedade, Campinas, v. 30, n. 107, p.585-
607, mai/ago. 2009. Disponível em: <http://www.cedes.unicamp.br >. Acesso em: 13 mai.
2012.

SAVIANI, Dermeval. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Autores
Associados, 1996.

SCHÖN, Donald. Formar professores como profissionais reflexivos. In: NÓVOA, Antônio. Os
professores e sua formação. Dom Quixote, Lisboa, 1992. p. 72-92. Disponível em:
<http://profmarcusribeiro.com.br/wp-content/uploads/2012/04/Formar-Professores-como-
Profissionais-Reflexivos-donald-schon.pdf>. Acesso em: 11 fev. 2013.

SEVERINO, Antônio Joaquim. A busca do sentido da formação humana: tarefa da filosofia da


educação. Educação e Pesquisa, São Paulo. v. 32. p. 619-637, set./ dez. 2006.

TARDIF, Maurice. Saberes profissionais dos professores e conhecimentos universitários:


elementos para uma epistemologia da prática profissional dos professores e suas consequências
em relação á formação para o magistério. Revista Brasileira de Educação, São Paulo, n. 13, p.
5-24, jan./abr. 2000. Disponível em: <http://educa.fcc.org.br/pdf/rbedu/n13/n13a02.pdf>.
Acesso em 11 fev. 2013.

TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em ciências sociais: a pesquisa


qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A PERSPECTIVA TERRITORIAL
DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO

Juliana Argollo Silva (UFRJ) 1


Vânia Cardoso da Motta (UFRJ) 2

Resumo Esse artigo discute dois projetos de constituição do Sistema Nacional de Educação
(SNE), um elaborado no interior da Secretaria de Articulação com os Sistemas de Ensino
(SASE), e o outro em tramitação no Congresso, por meio do Substitutivo ao Projeto de Lei
nº413/2014. Identifica que ambos trazem as perspectivas ‘territorial’ e de regime de colaboração
horizontal, nos moldes do que se configurou no âmbito do MEC/CNE na Resolução nº01/2012,
como “arranjo de desenvolvimento da educação”. E os problematiza à luz dos princípios e
pressupostos teórico-metodológicos da pedagogia histórico-crítica.

Palavras-chave: Sistema Nacional de Educação; Territoriedade; Arranjo de desenvolvimento


da educação; Pedagogia Histórico-Crítica.

Introdução

Esse artigo apresenta uma análise comparativa entre dois projetos de


constituição do Sistema Nacional de Educação, um elaborado no interior da Secretaria
de Articulação com os Sistemas de Ensino (SASE) e outro em tramitação no Congresso,
por meio do Substitutivo ao PL nº413/2014. Identifica que trazem a perspectiva
territorial e de parcerias público privadas para formatar um regime de colaboração de
novo tipo, horizontal, nos moldes do que se configurou no âmbito do Ministério da
Educação (MEC) e do Conselho Nacional de Educação (CNE) por meio da Resolução
nº01/2012, como “arranjo de desenvolvimento da educação” (ADE). E os problematiza
à luz dos princípios e pressupostos teórico-metodológicos da pedagogia histórico-
crítica.
Na primeira parte apresenta a análise comparativa dos dois projetos. Segue
discorrendo sobre a origem da concepção de ‘território’ no SNE proposto. E por último
realiza a análise crítica em confronto com os princípios da pedagogia histórico-crítica.

1
Juliana Argollo Silva, Doutoranda em Políticas Públicas e Instituições Educacionais, pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, RJ, Brasil. E-mail: julianaargollo@gmail.com.
2
Vânia Cardoso da Motta, Doutora em Serviço Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, RJ,
Brasil. E-mail: vaniacmotta@gmail.com.


760

Esperamos contribuir com alguns elementos postos nos encaminhamentos de


políticas públicas da educação brasileira sobre a constituição do SNE para iniciar debate
sobre as implicações dessas propostas em curso.

1 Uma análise crítica e comparativa entre dois projetos de Sistema Nacional de


Educação (SNE) em curso

Para analisar as propostas de institucionalização do SNE no atual contexto


político optamos por realizar um recorte do que é essencial para a presente pesquisa, em
relação a crescente hegemonia do empresariado organizado nos encaminhamentos das
políticas públicas da educação brasileira e na formação ampla da opinião pública.3 Em
específico, tomamos a influência que esse empresariado exerce na elaboração dos
instrumentos jurídicos que regulamentam a relação articulada e colaborativa entre a
União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios para a manutenção e
desenvolvimento da educação básica.
O primeiro projeto analisado refere-se à proposta de “descentralização
qualificada do SNE”,4 elaborada pela extinta Secretaria de Articulação com os Sistemas
de Ensino (SASE), o qual propõe uma agenda instituinte do SNE que articule quatro
dimensões para materializar a nova organização da educação nacional: alterações na Lei
de Diretrizes e Base da Educação Brasileira (LDB); regulamentação do Artigo 23 da
Constituição Federal – ou a Lei de Responsabilidade Educacional; adequação das regras
de financiamento; e adequação dos sistemas de ensino às novas regras nacionais.
Para tanto, delimita, em linhas gerais, a importância da regulamentação de uma
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a valorização do profissional do magistério
e a avaliação institucional, em nível nacional, como garantia da gestão democrática, esta


3
O debate sobre a institucionalização do SNE remete a problemática desenvolvida pelo movimento dos
escolanovistas quando do lançamento ‘Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova’, em 1932, no Brasil.
Para Saviani (2010), a originalidade deste projeto corresponde à defesa de uma política educacional que
garantisse uma escola pública, financiada, integralmente, pelo Estado, como prerrogativa de um regime
Republicano e democrático. No entanto, ao compreender as limitações da perspectiva liberal do
movimento, no que concerne às disputas entre centralização versus descentralização da política
educacional, Saviani (2013) reitera a pauta política da necessidade e importância de institucionalização de
um SNE de caráter unitário, e desenvolve a tese que a ausência desta política culminou em consequências
deletérias na organização da educação pública no Brasil, e por isso funcionou como um empecilho
estrutural para a universalização da educação básica com alto padrão de qualidade.
4
A proposta de “descentralização qualificada do SNE” é delineada pelo documento elaborado e expedido
pela SASE cujo título é “Instituir um Sistema Nacional de Educação: agenda obrigatória para o país”.
(BRASIL, 2015).



761

caracterizada pelo “fortalecimento dos Conselhos Escolares até o Órgão Executivo do


Município, do Estado, do Distrito Federal e da União”. (BRASIL, 2015, p. 05).
Quanto à política de financiamento da educação básica, esse projeto destaca a
revisão do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), visto
que este está previsto para ser finalizado em 2020, junto com a função supletiva da
União no regime de colaboração: “entendida como um meio pelo qual a União, à vista
de uma incapacidade justificada de o ente federado dar conta de um padrão mínimo de
qualidade, subsidia, provisoriamente, aquele ente em termos financeiros”. (BRASIL,
2015, p. 09).
No entanto, quando a SASE ressalta a importância das instâncias de participação
e pactuação entre a sociedade civil e o Estado, na perspectiva de fortalecer as
atribuições do Conselho Nacional de Educação (CNE) e dos Conselhos Estaduais e
Municipais de Educação e de criar a “Instância Permanente de Negociação Federativa”
com a articulação do MEC, do Conselho Nacional dos Secretários de Educação
(Consed) e União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o faz
segundo a perspectiva da “descentralização qualificada” do SNE. Esta incorpora em
seu bojo uma concepção de sistemas de ensino enquanto territórios municipais e
estaduais articulados às políticas educacionais em nível nacional5. (BRASIL, 2015, p.
8).
Outro detalhe, não menos importante e imbricado com o conceito de
territorialização dos municípios e estados, está na composição e no papel que essa
instância de pactuação vem ocupando na formulação e implementação das políticas
educacionais na atualidade. Pois, a grande presença dos intelectuais orgânicos do
empresariado no CNE, no Consed) e na Undime, como exemplo, fazem valer a
representação de uma sociedade civil que atende a perspectiva privatista da educação
pública, contradizendo a suposta democratização do SNE. (ARGOLLO, 2015).
Na segunda proposta, expressa no Substitutivo ao PL nº413/2014 (BRASIL,
2014a) em tramitação no Congresso Nacional, que visa instituir o SNE e fixar normas

5
A análise da proposta de SNE elaborado pela SASE, pelo presente artigo, incorporou todos os
pronunciamentos oficiais expedidos pela Secretaria, e que se encontra disponível ao público no site da
SASE/MEC. Como também, os Relatórios de Gestão elaborados pela Secretaria, de 2011 a 2013,
destacando, em específico, a instalação do Grupo de Trabalho (GT-ADE) “para elaborar estudos sobre o
fortalecimento do regime de colaboração mediante os arranjos de desenvolvimento de educação (ADE),
instituído nos termos da Portaria nº 1.238/2012” (BRASIL, 2012b/2013, p/s, 9/14). Disponível:
http://portal.mec.gov.br/secretaria-de-articulacao-com-os-sistemas-de-ensino--sase/sase-transparencia;
http://pne.mec.gov.br/conhecendo-opne/instituindo-o-sne. Acesso: 24/08/2015.



762

de cooperação entre os entes federados, também é visualizada a perspectiva privatista-


empresarial. Ou seja, o entende enquanto um conjunto de sistemas, Municipais,
Estaduais (Distrito Federal) e Federal, regionalizado em territórios específicos, mas
articulados por uma política nacional que abre possibilidades de incluir no “regime de
colaboração” parcerias com o empresariado, formulando um tipo novo de regime de
colaboração, “horizontal”, ou melhor, “regime de colaboração com o empresariado”.
(ARGOLLO, 2015).
Antes de especificar e analisar a origem dessas duas perspectivas territoriais de
regime de colaboração, que será abordado adiante no texto, destacamos nos elementos
centrais que constituem o Substitutivo ao PL nº413/2014 a incorporação de um modelo
de gestão gerencialista na constituição do SNE, comparando-o criticamente à proposta
de “descentralização qualificada” elaborado pela SASE.
Quando o Substitutivo ao PL nº413/2014 dispõe sobre os princípios e diretrizes
do SNE, incorpora, logo em seu primeiro parágrafo do Artigo 2º, a proposta do novo
modelo de regime de colaboração horizontal, conforme definido na Resolução nº
1/2012 (BRASIL, 2012a). Este tipo “horizontal” de regime de colaboração foi
denominado de Arranjos de Desenvolvimento de Educação (ADE), por meio dos quais
se instituiriam as parcerias público-privadas enquanto instrumento de gestão eficaz para
atingir a ‘qualidade’ do ensino nas redes municipais de ensino.
Em relação aos objetivos do SNE, no Artigo 3º, o ingresso na carreira do
magistério exclusivo por concurso público é omitido, como delimitado pela LDB, Lei
9.394/96, e destaca-se a incorporação das tecnologias de informação e do conhecimento
nas práticas pedagógicas, o compartilhamento de experiências pedagógicas e gerenciais
entre os entes da federação, a promoção do uso dos sistemas de avaliação para
desenvolver práticas pedagógicas, entre outros.
No Capítulo II, sobre Avaliação e Planejamento da Educação, no Artigo 7º, a
integração do SNE com um sistema de avaliação é especificada no sentido de avaliar e
divulgar experiências exitosas na Federação Brasileira. O sistema de avaliação ganha
centralidade na formulação e na revisão das políticas educacionais, especificando que a
União instituirá órgão autônomo para tal. Concepção que é retomada no Artigo 9º que
também versa sobre a avaliação dos sistemas de ensino.
Quanto à política de financiamento, o Substitutivo ao PL nº 413/2014 se
aproxima da proposta da SASE em relação: à meta de aplicação de recursos público em
educação com proporção do Produto Interno Bruto (PIB), estabelecida pela Lei



763

13.005/2014 (BRASIL, 2014b), à definição do Custo Aluno-Qualidade (CAQ) como


padrão nacional de investimento na educação básica e, o destaque na função supletiva e
redistributiva da União aos sistemas de ensino que não conseguirem atingir o CAQ.
Ademais, segundo o referido Substitutivo, a assistência técnica e financeira da
União será realizada por uma Comissão Tripartite de Cooperação Federativa (CTC) que
definirá metas vinculantes à ação supletiva da União, como a Norma Operacional
Básica (NOB), em relação aos sistemas estaduais e municipais de educação, que em
certos contextos não atendam o padrão mínimo do CAQ. Assim como é definido que a
relação de colaboração entre os entes federados da União, Estados, DF e Municípios
ocorrerá mediante a instituição de Comissões de Cooperação Federativa, com
composição paritária entre os entes federados, denominados de: Comissão Tripartite de
Cooperação Federativa (CTC), no âmbito Federal; Comissão Bipartite de Cooperação
Federativa (CBC), no âmbito estadual; e Comissão do Polo Regional de Educação
(CPR), no âmbito local.
Dentre as atribuições das Comissões de Cooperação Federativa destacam-se a
centralização da CTC em exercer todas as competências atribuídas a Comissão
Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade do
FUNDEB e as competências do Comitê Estratégico do Plano de Ações Articuladas
(PAR), de elaborar diretrizes de avaliação institucional e de desempenho de
aprendizagem nas instituições de ensino públicas.
Entretanto, para a presente pesquisa, merece atenção a possível regulamentação
da Comissão do Polo Regional de Educação (CPR), entendido pelo Substitutivo ao PL
nº413/2014 como uma instância de cooperação entre territórios municipais, com o
objetivo “de integrar o planejamento, a organização e a execução dos serviços de
educação” (BRASIL, 2014a, p.17). As CPR’s serão instituídos pelos Estados, em
articulação com os municípios, podendo postular a colaboração da União na formação e
instituição dos mesmos. São atribuições das CPR’s:

I. Promover o intercâmbio de experiências pedagógicas, de gestão


e assistência técnica entre os Sistemas Municipais de Educação;
II. Articular ações de integração dos sistemas de ensino para
compartilhar informações sobre os alunos e acompanhar sua
progressão pelos e níveis e etapas da educação básica;
III. Articular a elaboração e o cumprimento das metas dos Planos
de Educação dos municípios e estados integrantes do Polo;
IV. Estimular e viabilizar a gestão colaborativa local;



764

V. Colaborar para a seleção e formação continuada dos


profissionais de educação que integrem os sistemas de ensino do Polo;
VI. Colaborar na ação supletiva da União e dos Estados aos
sistemas municipais integrantes do Polo;
VII. Produzir e organizar dados sobre os sistemas municipais de
ensino;
VIII. Outras atribuições delegadas pela CBC de seu Estado ou pela
CTC. (BRASIL, 2014a, p.19; grifo nosso).

Conforme esta perspectiva de gestão local da educação básica, no Artigo 29, é


instituída a possibilidade de formação de Consórcio Público dotados dos mesmos
direitos administrativos e operacionais competentes aos Polos Regionais de Educação,
constituídos como referência para as transferências de recursos voluntários do Estado e
da União aos sistemas municipais de ensino.
Não obstante, também demarca, no Artigo 30 e 31, um conceito de “gestão
colaborativa” flexível, isto é, que dá prioridade de financiamento e assistência técnica
por parte da União a esses novos formatos de colaboração territorial que compreendam
a constituição dos consórcios públicos, convênios de cooperação ou Arranjos de
Desenvolvimento de Educação (ADEs). Prevendo a possibilidade da transferência total
ou parcial de encargos, recursos financeiros, serviços, pessoal e bens essenciais à
continuidade dos serviços transferidos dos entes federados para estas jurisdições
administrativas territoriais.
Da comparação entre estes dois projetos de SNE, em linhas gerais, pode-se
inferir a convergência para uma concepção de regime de colaboração flexível e
descentralizado, no qual, qualifica o sentido jurídico e institucional das redes
municipais e estaduais de ensino como instâncias administrativas territoriais, que
deverão executar as diretrizes pedagógicas ‘pactuadas’ pela União, Estados e
Municípios, configurando uma ressignificação do regime de colaboração entre os
sistemas educacionais, conforme definido na LDB/96. Portanto, convergem para uma
proposta de sistema de cooperação que tem como pressuposto ratificar no SNE a
autonomia dos entes federados, mas que segmenta a manutenção e o desenvolvimento
da educação básica segundo uma diversidade de experiências organizativas locais, a
gosto das demandas territoriais dos governos articulados com a iniciativa privada e/ou
o suposto “terceiro setor”, como o caso dos ADE’s.



765

2 A origem da concepção de ‘território’ no SNE

Conforme constatado anteriormente, tanto a proposta de “descentralização


qualificada do SNE” quanto à perspectiva traçada no Substitutivo ao PL nº413/2014
objetivam ressignificar o regime de colaboração entre os entes federados, por meio da
institucionalização do SNE, nas perspectivas horizontal e territorial.
Os instrumentos de gestão erigidos em ambas às propostas de institucionalização
do SNE, como a regulamentação de instâncias de pactuação entre os entes federados
para a formulação, implementação e acompanhamento das políticas educacionais, de
forma descentralizada, dialoga com os princípios e diretrizes do Plano de
Desenvolvimento de Educação (PDE) que, pioneiramente, regulamentou o “arranjo
educativo” como instrumento de gestão e focalização das políticas educacionais
segundo as diferenças territoriais (locais) do país, estas entendidas como distinções
sociais, culturais e, principalmente, econômicas. (BRASIL, 2007).
Portanto, este modelo de “cooperação territorial” que homogeneíza a ideia de
território como instituição jurídica de ordenação e articulação entre os municípios, com
os estados e a União, tem raízes no PDE, é retomado pelo Substitutivo ao PL
nº413/2014 e vem se constituindo como padrão de referência no trato da
regulamentação do regime de colaboração e, consequentemente, na institucionalização
do SNE.
Como exemplo empírico, o PDE avança na materialização dos seus objetivos,
pois em 2012 o CNE regulamentou o novo formato de regime de colaboração entre os
sistemas de ensino, do tipo “horizontal” – o já citado Arranjos de Desenvolvimento de
Educação (ADE’s) criado pelo movimento empresarial Todos Pela Educação (TPE) –, e
que insere as parcerias público-privadas como um novo dispositivo do regime de
colaboração entre os municípios, junto aos estados, DF e a União.
Uma vez que as políticas expressas no PDE e no Substitutivo ao PL nº413/2014
têm como pressupostos superar as “desigualdades de oportunidades educacionais”
locais, visando atingir os padrões mínimos de ‘qualidade’ requeridos para a “equidade”
dos sistemas de ensino, e articular a educação com o “desenvolvimento socioeconômico
do território”, o elemento determinante será as “potencialidades” econômicas dos
territórios e não mais o caráter universal do direito à educação. Haja vista que a palavra
universalização da educação básica pública é ausente tanto no PDE como no
Substitutivo ao PL nº413/2014.



766

O que se constata, com o mapeamento e análise dessas políticas públicas do


setor educacional, é o avanço de um “regime de colaboração com o empresariado” na
educação pública no nível básico e, com ele, a regulamentação de instrumentos de
gestão que operacionalizem tal tarefa, como o caso do Plano de Ações Articuladas
(PAR), do Índice de Desenvolvimento de Educação (IDEB) e dos ADE’s. Pois, estes
instrumentos quando colocados em uma perspectiva sistêmica, como proposto pelo
PDE, ressignifica e flexibiliza o sentido público da educação básica mantida e
desenvolvida pelo Estado. Primeiro, porque altera os princípios da Constituição Federal
de 1988 no que concerne ao regime de colaboração entre os entes federados ao inserir a
cooperação com a iniciativa privada, e/ou com o “terceiro setor”. Segundo, circunscreve
a ‘qualidade’ da educação pública segundo o modelo de gestão gerencial advindo do
setor empresarial e das necessidades do mercado local: uma política centralizada e
voltada para consecução de resultados educacionais imediatos e restritos, aferidos pelas
avaliações externas e responsáveis por gerar índices de desempenho das instituições de
ensino públicas, como o caso do IDEB; a supervalorização de uma suposta eficiência de
uma política de financiamento ‘racionalizada’ e direcionada para consecução de metas
de desempenho e resultados exitosos, sistematizada pelo PAR; e a inscrição, em
legislação nacional, de uma perspectiva territorial do sentido social da educação
pública. (ARGOLLO, 2015).
Esse último elemento aparece como nó górdio das orientações do MEC e do
SNE a ser institucionalizado pelo Substitutivo ao PL nº413/2014. Pois, é a partir de uma
política descentralizada nos territórios que a organização da educação pública poderá
ser contextualizada, diversificada e articulada ao mundo do trabalho, mas segundo as
demandas socioeconômicas locais do setor produtivo, portanto, das demandas do
empresariado e do mercado de trabalho local.
Conforme elucida o MEC, por meio do PDE, uma das funções institucionais dos
Institutos Federais de Educação e Tecnologia (IFET) tem como objetivo “orientar a
oferta de cursos em sintonia com a consolidação e o fortalecimento dos arranjos
produtivos locais”. Destacando que é na “educação profissional e tecnológica que o
vínculo entre educação, território e desenvolvimento se torna mais evidente, e os efeitos
de sua articulação mais notável”. (BRASIL, 2007, p. 32. grifo nosso).
Dessa forma, deixa explícito que o sentido social da educação básica está
intimamente relacionado com um modus operandi do capital e suas especificidades
locais, e que é na educação profissional e tecnológica que esta relação é evidenciada,



767

com o enlace entre a política educacional e o desenvolvimento econômico-social dos


territórios. Não por acaso, a passagem do regime de colaboração entre os entes
federados para uma colaboração territorial e horizontal entre os sistemas de ensino,
referenciam-se no modelo de gestão empresarial dos Arranjos Produtivos Locais
(APL’s).
Com efeito, a 4º Conferência Brasileira de Arranjos Produtivos Locais, realizada
no dia 29 de outubro de 2009, teve como contribuição estudos sobre a criação e
expansão dos IFET’s, destacando que estes devem atender de forma ágil e eficaz as
demandas crescentes na formação de recursos humanos em todos os níveis de
escolaridade, na difusão dos conhecimentos científicos, dando suporte aos APL’s.
Tendo como foco a formação do trabalhador necessário para a cadeia produtiva local,
seja como força de trabalho vivo ou como empreendedor voltado para a geração de
trabalho e renda para os cidadãos, porém, sempre nos limites das demandas do
empresariado local. (SCHNEIDER, 2009).
Por conseguinte, pode-se situar a origem do conceito de território no SNE a
partir das políticas públicas que fomentam a criação dos APL’s como instrumento de
capilarização das empresas. Compreendendo um modelo de gestão empresarial que
entendido como um conglomerado ou clusters de empresas que gozam de proximidade
geográfica, e que tenha em comum uma mesma dinâmica econômica, entre outras
características que favoreçam a articulação entre empresas em um mesmo território6.
Portanto, o objetivo central dos APL’s é gerar capacidade produtiva para atuação
das empresas e expandir possibilidades competitivas, logo, lucrativas. É nesse sentido
que os “APL’s estão para o desenvolvimento local, assim como o desenvolvimento
local esta para o sistema produtivo local”. Entretanto, deve-se a ater aos efeitos de uma
política educacional imbricada e, de certa maneira, conformada à política de
desenvolvimento do capital. Pois, como ressalta Filho (2011) sobre os APL’s7, a
“solidariedade entre o sistema produtivo e o território” nem sempre é uma experiência

6
Disponível: http://www.cgimoveis.com.br/tecnologia/o-que-e-um-arranjo-produtivo-local. Acesso:
16/06/2016.
7
Filho (2011) analisa os Sistemas de Arranjos Produtivos Locais e sua relação com o território no qual é
inserido, temporariamente, tendo em vista que estes têm o seu ciclo dividido entre o nascimento, vida e
morte, ocorrendo uma assimetria com as demandas dos indivíduos e famílias que residem nos territórios.
Portanto, esta análise explicita que as demandas do setor produtivo são desenvolvidas segundo a lógica
mercantil, da expansão de mercado e do lucro das empresas, ressalvando que o território não pode
desenvolver uma relação de dependência com os APL’s, visto que estes estão imbuídos de valores morais,
éticos e culturais, que por vezes vão contradizer as expectativas de desenvolvimento dos territórios, como
a manutenção das taxas de emprego, de geração de renda, retenção das divisas nas regiões onde se realiza,
ou se realizou as atividades produtivas.



768

‘exitosa’, e que “nem sempre, o que é bom para o sistema produtivo também seja bom
para o território e vice-versa”. Acrescentamos: muito menos para o trabalhador.
(FILHO, 2011, p. 192-197).
No que concerne às possíveis consequências da incorporação deste modelo de
gestão empresarial na constituição do SNE, destaca-se o sentido atribuído à ‘qualidade’
do ensino público relacionada com a oferta de “oportunidades educacionais”, esta
circunscrita na colocação ‘temporária’ no mercado de trabalho e, consequentemente,
supressão da socialização do conhecimento científico, visto que este modelo territorial
do SNE materializa um projeto pedagógico educacional parcelado, focalizado e
segmentado nas demandas específicas de desenvolvimento do setor produtivo local, e
segundo as especificidades de um capitalismo subdesenvolvido e dependente.
(FERNANDES, 1981)8.
Portanto, a partir da identificação destes elementos se analisa os Polos Regionais
de Educação enquanto instrumentos de gestão voltados para ampliar a possibilidade de
adaptação dos objetivos pedagógicos das instituições escolares aos interesses
específicos dos diferentes segmentos produtivos. Proposta já em curso com a
regulamentação dos ADE’s e do PDE, que objetiva o cumprimento de metas e
resultados educacionais ditos exitosos, que de fundo tem por finalidade a ‘oferta’ de
uma educação básica minimalista, que apenas “massifica”, em vez de socializar os
instrumentos rudimentares para o possível acesso ao saber sistematizado. De forma que
não só a educação profissional e tecnológica esteja organizada por esta perspectiva
territorial dos APL’s, como também o Ensino Fundamental.
Por conseguinte, o sentido social do SNE na perspectiva territorial, segundo o
formato dos Polos Regionais de Educação que compreendem os consórcios públicos, os
ADE’s, entre outros instrumentos de gestão, corrobora para que já no primeiro ciclo da
educação e escolarização da juventude, ensino fundamental, o projeto político-
pedagógico esteja a serviço de uma conformação ideológica, intelectual e moral da
juventude brasileira às demandas produtivistas da economia de mercado. Isto é, a

8
É dessa relação conflituosa entre capital e trabalho no capitalismo subdesenvolvido e dependente
(FERNANDES, 1981) que abordamos as atuais políticas educacionais, pois as ações dos governos para o
aumento da escolaridade da população brasileira e a complexificação dos processos formativos no âmbito
global estão associados à uma expansão da educação básica no Brasil voltada para a formação ampliada
de uma força de trabalho simples, de baixa complexidade científico-tecnológica, submetida às exigências
estritas do mercado de trabalho interno e para a manutenção do ‘conformismos social’. (MOTTA, 2009;
LEHER; MOTTA. No prelo, 2014).



769

relação entre desenvolvimento do capital, educação e território traçada pelas políticas


analisadas, demonstram uma reorganização da educação nacional sob a crescente
hegemonia dos setores dominantes empresariais na atual conjuntura.

3 Um diálogo com a Pedagogia Histórico-Crítica

Dialogando com os princípios, pressupostos teóricos e práticos da Pedagogia


Histórico-Crítica infere-se que há um antagonismo em relação ao conteúdo e à forma do
novo modelo de cooperação territorial do SNE que está para ser aprovado. Trazendo a
perspectiva da especificidade e do papel da “educação enquanto mediação e dimensão
pedagógica que subsiste no interior da prática social global”, pressupõe-se disputas de
visões de homem, sociedade e de educação na sociedade capitalista, tendo em vista a
processualidade da luta de classes. (SAVIANI, 2011, p. 120).
Com referência a este caráter ‘relacional’ e contraditório da instituição escolar, o
movimento histórico-crítico defende que a função nuclear da escola básica corresponde
à socialização do saber sistematizado e científico para toda a sociedade; trazendo os
princípios da universalização e da educação como direito social. Com isso, compreende
a especificidade da educação escolarizada como uma relação contraditória e antagônica
à pedagogia organizada conforme os interesses burgueses, que converte o conhecimento
historicamente produzido pela sociedade em um meio de produção apropriado
privadamente para a acumulação e reprodução do capital.
Portanto, a contradição da função social da escola consiste em sua finalidade
histórica de transmitir os instrumentos rudimentares e necessários que possibilitam o
acesso e a apropriação da ciência. No entanto, as “formas mais adequadas para atingir
este objetivo”, como aprender a ler, escrever, contar, ter acesso aos rudimentos das
ciências naturais e das ciências sociais, embora delimitem o epicentro da estruturação
do currículo escolar na atualidade, não garantem que os fins a atingir com a
institucionalização de um SNE estejam circunscritos na socialização da ciência.
Em sua forma e conteúdo, compreendemos que as políticas públicas de educação
voltadas para constituição de um SNE na perspectiva territorial inserem a manutenção
dos interesses das frações da classe dominantes e a visão utilitária, fragmentada e
restrita de conhecimento historicamente produzido pela humanidade. O que limita
possibilidades de transformação social e de elevação cultural e intelectual, além de
intensificar, naturalizando, a histórica dualidade da educação brasileira.



770

A partir dos princípios fundantes da Pedagogia Histórico-Crítica pode-se


delimitar que para a organização de um SNE que tenha como ponto de partida a
socialização do conhecimento sistematizado historicamente, entendido como
instrumento necessário a democratização das relações sociais, é imprescindível ter como
ponto de chegada a transformação e superação dos elementos mediadores que
engendram a manutenção desta mesma sociedade, como a fragmentação e apropriação
privada do conhecimento científico segundo as demandas da economia mercantil
capitalista.
Nesse sentido, a Pedagogia Histórico-Crítica coloca-se como alternativa
político-pedagógica ao parcelamento e fragmentação do conhecimento operado pela
educação na ordem capitalista, como parece requerer o modelo territorial do SNE.
Uma vez que este restringe o trabalho educativo aos interesses mercantis do setor
produtivo – apropriação privada dos bens produzidos pelos trabalhadores para garantir a
produção e reprodução da acumulação do capital – e focaliza nas especificidades
produtivas locais ou regionais local ou regional, gerando múltiplas formações escolares,
sobretudo, um processo arguto de captura da consciência do trabalhador, frente a atual
crise do capital e de desemprego estrutural.
Logo, dialeticamente, coloca-se a possibilidade e a necessidade de construção de
um SNE que se apresente como uma alternativa a esta proposta pedagógica encarnada
pela sociabilidade burguesa no Brasil, ao reivindicar a possibilidade de transformação
da função social da escola, mediante apreensão e superação das contradições inerentes a
esta instituição de ensino, levando as últimas consequências sua natureza e
especificidade constitutiva.

Considerações finais

A constituição do Sistema Nacional de Educação insere um processo longo de


disputas na educação brasileira. No entanto, de forma um tanto escamoteada e encoberta
por outras discussões que se fizeram destaque, vemos a retomada de sua constituição,
porém atrelada a novos elementos conceituais: territoriedade, regime de colaboração
horizontal e arranjos de desenvolvimento da educação.
Fica claro nesse atual encaminhamento o protagonismo do empresariado
organizado para influir nas políticas públicas de educação. O que pode sinalizar mais
um mecanismo de retrocesso à luta pela educação pública como direito social e



771

formação humana, bem como, de aprofundamento da dualidade no SNE. Sobretudo, o


caráter que empreende de políticas focalizadas e restritamente vinculadas às
necessidades imediatas de acumulação e reprodução do capital, no tocante à “captura”
da consciência do trabalhador.
Os apontamentos de alguns elementos regressivos que compõem a proposta de
SNE na perspectiva territorial não se esgota neste artigo, ao contrário, visa a provocar a
necessária mobilização reflexiva e política sobre seu conteúdo e forma.
Compreendemos nessas análises preliminares que as relações entre luta de classes e
educação escolar na perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica são fundantes para
detonar essa urgente discussão e perpetrar mecanismos de resistências.

Referências

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colaboração de ‘novo’ tipo e mecanismo de reformulação do Sistema Nacional de Educação sob
a direção do empresariado brasileiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação
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Brasília: MEC/INEP, 2007.

BRASIL. Substitutivo ao Projeto de Lei Complementar nº413/2014. Regulamenta o art. 23,


parágrafo único e art. 211 da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Educação e dá
outras providências. Câmara dos Deputados. Comissão de Educação, 2014a.

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implementação do regime de colaboração mediante arranjos de desenvolvimento da educação.
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BRASIL. Resolução nº1, de 23 de janeiro de 2012. Dispõe sobre a implementação do regime


de colaboração mediante Arranjo de Desenvolvimento da Educação (ADE), como instrumento
de gestão pública para a melhoria da qualidade social da educação, 2012a.

BRASIL. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação


nacional. Diário Oficial da União, Brasília, OF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação- PNE e
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Brasília: MEC/SASE, 2015.



772

FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. 4º Edição. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1981.

FILHO, Jair. Sistemas e Arranjos Produtivos Locais. Planejamento e Políticas Públicas.


Brasília: IPEA, 2011.

LEHER, Roberto; MOTTA, Vânia. Capitalismo dependente reserva um futuro hostil para a
juventude: educação, precariado, exército industrial de reserva e irrupção das jornadas de junho
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MOTTA, Vânia. Ideologias do Capital Humano e do Capital Social: Da Integração à Inserção e


ao Conformismo. Trabalho Educação e Saúde. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; EPSJV. v. 6 n. 3,
p. 549-571, nov.2008/ fev.2009.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica. 11º Edição. Campinas: Autores


Associados, 2011.

_________________.Sistema nacional de educação articulado ao plano nacional de educação.


Revista Brasileira de Educação. Brasília: INEP, v. 15 n. 44 maio/ago, 2010.

__________________.Sistema Nacional de Educação e participação popular: desafios para as


políticas educacionais. In. SAVIANI, D. Aberturas para a história da educação. Campinas:
Autores Associados, 2013.

SCHNEIDER, Maria Clara. Contribuição dos Institutos Federais de Educação, Ciência, e


Tecnologia para as Organizações Produtivas e o Desenvolvimento Local. Brasília:
Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços, 2009. Disponível:
http://www.desenvolvimento.gov.br/conferenciaapl/modulos/arquivos/MariaClara
KaschnySchneider.pdf. Acesso: 29/06/2016.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

AS (CONTRA) REFORMAS DA EDUCAÇÃO SUPERIOR NO CONTEXTO DO


CAPITALISMO PARASITÁRIO

Fernanda Meneghini Machado (UFES)1

Resumo: Este trabalho é parte dos resultados da pesquisa de mestrado em Política Social. Trata-
se da tentativa de verificar como ocorreram as medidas contrarreformistas do ensino superior no
contexto do Capitalismo Parasitário. Para tanto, apresenta os pressupostos teóricos pelos quais o
tema foi analisado, o contexto atual do capitalismo e considerações sobre as contrarreformas
universitárias dos anos 1990 em diante.

Palavras-chave: Contrarreformas; Ensino Superior; Capitalismo Parasitário.

1 Introdução

Esse trabalho é parte da pesquisa de mestrado em Política Social finalizado em
Junho de 2016. Tal pesquisa teve como objetivo compreender o processo de
financiamento e gasto público com a política de assistência estudantil na Universidade
Federal do Espírito Santo. Contudo, para compreensão desse tema, foi necessário
explorar os aspectos das medidas de contrarreformas na educação superior que vem
sendo implementadas no Brasil desde a década de 1990.
Nesse artigo, em específico, apresentamos a relação entre as contrarreformas do
ensino superior com a necessidade de aceleração da rotação do capital. Para tanto,
buscamos apresentar as bases teóricas que explicam a atual fase do capitalismo, com a
predominância do capital fictício, e como essas novas formas de acumulação requisitam
alterações na condução das políticas sociais por parte do Estado. Nesse sentido,
observamos que a forma específica como ocorre o projeto de sociabilidade burguesa na
contemporaneidade se expressa também na educação superior brasileira.
Esse trabalho foi dividido três partes além da introdução e considerações finais:
primeiramente o item denominado “Pressupostos teóricos para o debate”, onde
abordamos a perspectiva teórica utilizada para analisar esse objeto; o item “Capitalismo
atual e políticas sociais” no qual observamos a relação entre o capitalismo atual e as

1
Fernanda Meneghini Machado, Assistente Social, Mestre em Política Social, Universidade Federal do
Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-mail: fernanda.machado@ufes.br.


774

transformações nas políticas públicas conduzidas pelo Estado capitalista; e, por fim, o
item “As reformas na Educação Superior no Brasil pós anos 1990”, onde verificamos as
medidas no âmbito do ensino superior e seu caráter contrarreformista.

2 Pressupostos teóricos para o debate

Na teoria marxiana, o trabalho é condição de existência da vida humana,


portanto, a categoria fundamental para compreender as suas relações. Por meio do
trabalho, o homem é capaz de intervir na natureza, criando para si os elementos
necessários a sua existência. Quando o dispêndio de força altera a natureza e produz
elementos direcionados para atender as suas necessidades, diz-se que estes produtos
possuem valor de uso. Trata-se da produção de materiais por meio do trabalho para
garantia de condições de sobrevivência e de outras necessidades humanas. Essa relação
que o homem estabelece com a natureza é o primeiro estado real da história humana. É
a partir da produção de suas condições de existência que é determinada a consciência do
homem. (MARX; ENGELS, 2007)2
Saviani (2007) acrescenta que a educação é também uma atividade
especificamente humana. Destaca que, inicialmente, trabalho e educação possuíam uma
relação de identidade - no ato de produzir, os homens aprendiam como produzir, ou
seja, no manejo com a natureza e nas relações estabelecidas entre os seus pares, os
homens aprendiam e educavam-se uns aos outros - aprendiam a trabalhar, trabalhando.
Esta forma de educação coincidia muito com as formas primitivas de organização
social, nelas, a educação tinha total identificação com a vida.


2
A obra A Ideologia Alemã de Marx e Engels (2007) lança as premissas da teoria
materialista. Na visão destes autores as condições materiais da vida que determinam a
consciência, e não o contrário, como defendiam os filósofos hegelianos. Nessa
perspectiva, o homem deixa de ser tratado como ser abstrato para ser compreendido
como ser real dentro do seu contexto histórico. A obra faz a crítica ao idealismo alemão
demonstrando que a ideologia dominante é o conjunto de ideias da classe dominante,
servindo portanto para encobrir a realidade concreta e manter a dominação. A ideologia,
no entanto, não se reduz a uma falsa concepção da história, podendo estar relacionada a
concepção da realidade e identidade social e/ou política, vinculada aos interesses das
diferentes classes sociais.


775

A partir da garantia das necessidades imediatas, novas necessidades foram


sendo construídas, exigindo, portanto, a produção de novos elementos de satisfação.
Num processo dialético, com necessidades mais complexas, novos produtos foram
sendo requisitados, desenvolvendo-se novas relações e uma nova forma de vida. A
complexificação da produção e das relações sociais resultou gradualmente no aumento
da produtividade, dando origem a divisão do trabalho.

Com a divisão do trabalho, na qual todas essas contradições estão dadas


e que, por sua vez, se baseia na divisão natural do trabalho na família e
na separação da sociedade em diversas famílias opostas umas às outras,
estão dadas ao mesmo tempo a distribuição e, mais precisamente, a
distribuição desigual, tanto quantitativa quanto qualitativamente, do
trabalho e de seus produtos; portanto, está dada a propriedade, que já
tem seu embrião, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os
filhos são escravos do homem. [...] Além do mais, divisão do trabalho e
propriedade privada são expressões idênticas – numa é dito com relação
à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao produto da
atividade. (MARX; ENGELS, 2007, p.36-37, grifo nosso).

Com a divisão das funções, a exteriorização do trabalho e a propriedade privada,


surgiram as contradições entre o interesse dos indivíduos ou das famílias singulares e o
interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionavam mutuamente no modo de
produção primitivo. A terra, principal meio de sobrevivência, foi apropriada a partir dos
interesses privados, surgindo então a divisão dos seres humanos em duas classes
fundamentais: a classe dos proprietários dos meios de produção e dos não proprietários.
O trabalho, ao gerar mercadoria, gera não somente valor de uso, mas também
valor e valor de troca. Com a generalização das trocas, as conexões entre os homens
deixam de ser somente para manutenção de sua existência, e as relações sociais ocorrem
mediadas pelos produtos do trabalho humano. As mercadorias contém, de acordo com
as relações sociais estabelecidas, uma quantidade de trabalho/valor que pode ser
comparada com outros produtos, que quando equivalentes, podem ser trocadas entre si.
(MARX, 2013).
Com a transformação da força de trabalho em mercadoria para o capital, se
consolida o processo se alienação. Esse processo significa a exteriorização da essência
humana por meio do trabalho e o não reconhecimento desta atividade enquanto tal. Da
alienação decorrem dois subprocessos: a reificação ou coisificação e o fetichismo. Com
isso, o trabalho humano condensado nas mercadorias é ocultado. Dessa forma, o
trabalhador torna-se coisa e a coisa por ele criada passa a ter alma e a guiar suas



776

relações. Como se as mercadorias tivessem vontade própria.


Continua verdade que os seres humanos não podem viver sem trabalhar, no
entanto, se nas sociedades primitivas o modo de produção era coletivo, no contexto da
propriedade privada ele se individualiza e o homem proprietário dos meios de produção
passa a viver do trabalho dos despossuídos. O trabalho deixa de ser apropriado pelo
produtor, numa relação exterior do operário com a natureza e consigo próprio. A divisão
da sociedade em classes suscita a divisão social do trabalho (a relação entre esses dois
processos tem via de mão dupla), promovendo alterações também na educação. Na
sociedade capitalista, a divisão social do trabalho e a educação estão subordinadas a lei
do valor.

Ora, essa divisão dos homens em classes irá provocar uma divisão
também na educação. [...] A partir do escravismo antigo passaremos a
ter duas modalidades distintas e separadas de educação: uma para a
classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres, e
outra para a classe não proprietária, identificada como a educação dos
escravos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na
arte da palavra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a
segunda, assimilada ao próprio processo de trabalho [...] essa nova
forma de educação passou a ser identificada com a educação
propriamente dita, perpetrando-se a separação entre educação e
trabalho. [...] Estamos, a partir desse momento, diante do processo de
institucionalização da educação, correlato do processo de surgimento da
sociedade de classes que, por sua vez, tem a ver com o processo de
aprofundamento da divisão do trabalho. (SAVIANI, 2007, p.155).

É uma nova dimensão histórica do trabalho, e como afirma Saviani (2007),


configura-se também uma nova dimensão da educação. Esse autor explica que o
processo de institucionalização da educação é consequência da divisão da sociedade em
classes e se relaciona ao aprofundamento da divisão do trabalho. Ou seja, a
institucionalização da educação está assentada na divisão da sociedade entre capitalistas
e trabalhadores, aparecendo como funcional a esta relação de desigualdade.
Na perspectiva da educação, o modo de produção capitalista colocará o Estado
como protagonista na oferta do ensino, "forjando a ideia da escola pública, universal,
gratuita, leiga e obrigatória", e separada do processo de produção3. (SAVIANI, 2007,
p.157).


3
Essa separação entre escola e produção reflete, por sua vez, a divisão que se foi
processando ao longo da história entre trabalho manual e trabalho intelectual
(SAVIANI, 2007). Uma discussão crítica interessante sobre esta separação podemos
encontrar em Tavares (2012).


777

Nesse sentido, este trabalho parte do suposto de que existe uma relação entre o
desenvolvimento do capitalismo e a formação escolar separada do processo produtivo
que, ao mesmo tempo, reproduz as relações de produção capitalistas visando atender as
suas demandas e garantir a ideologia dominante.
Uma vez que a condução das políticas sociais está subordinada à lei do valor, a
nossa análise buscou compreender o ensino superior articulado ao contexto social,
histórico e econômico no qual está inserido, ou seja: a análise da política de educação
não ocorre a partir dela mesmo, e sim, considerando a totalidade na qual está inserida.

3 Capitalismo atual e políticas sociais



Carcanholo e Sabadini (2009) denominam a atual fase do sistema de
"Capitalismo Especulativo". De acordo com os autores, essa etapa se inicia no final dos
1970 e início de 1980, período em que se percebe a dominância do que eles chamam de
"capital especulativo parasitário". O que marca essa fase é a predominância do capital
fictício em relação ao capital substantivo. Neste modelo, que surge como uma forma de
resposta aos limites de expansão do capital nos moldes anteriores, tem-se que os lucros
não derivam somente da mais-valia nem do excedente valor. Essa transformação, que
resulta num novo regime de acumulação, aparece como mais uma contratendência à
queda da taxa de lucro e essa aparente solução não tem origem apenas na mais-valia,
como tentaremos explicar adiante.
Esse regime de acumulação é desencadeado, ainda em etapas anteriores, pela
generalização do sistema de crédito que gera diferentes resultados, tendendo a:

[...] por um lado, desenvolver a mola propulsora da produção


capitalista, o enriquecimento pela exploração do trabalho alheio, num
sistema mais puro e colossal de jogo e fraude, e limitar cada vez mais
o número dos poucos que exploram a riqueza social; por outro lado,
porém, constituir a forma de passagem para um novo modelo de
produção. (MARX, 1984, p. 335).

Com o desenvolvimento do crédito, o capital a juros, inicialmente com o


objetivo de financiar o capital produtivo, se redimensiona. O capital a juros, na condição
de financiador da produção de mercadorias não é considerado fictício, pois a
remuneração desse capital ocorre pela transferência de mais-valia (do capital produtivo
para o capital a juros) - embora essa relação ocorra de forma mistificada. "Quando o
direito a tal remuneração está representado por um título que pode ser comercializado,



778

vendido a terceiros, converte-se em capital fictício". (CARCANHOLO, SABADINI,


2009, p. 42).
Assim, o capital fictício não é a mesma coisa que o capital a juros, embora
advenha da generalização deste. O capital a juros financia a produção e é remunerado
pela exploração do trabalho. Quando o direito à remuneração se representa por meio de
títulos e esses títulos podem ser comercializados, sendo eles contabilizados mais de uma
vez, o capital a juros se converte em capital fictício. Neste sentido, o título
comercializável é uma das representação deste modelo. (CARCANHOLO, SABADINI,
2009).
Por trás do título desse capital fictício não há o vínculo direto com uma
substância equivalente real. Esse capital não financia a produção. Assim, a conexão com
o processo de valorização não é mais direta, ocorrendo um processo de autonomização
relativa do capital fictício. No nível da aparência, é como se ele se valorizasse nele
mesmo, "sob a forma de capital fictício ele [o capital] assume um aspecto ainda mais
complexo e mais desmaterializado. Aparentemente, ele se desenvolve de maneira
independente da dinâmica da produção". (CARCANHOLO, SABADINI, 2009).
Marx, neste sentido, ofereceu instrumentos para desvendar o processo que,
ilusoriamente, aparece como ciclo D – D’4. Vejamos:

[...] com o desenvolvimento do capital portador de juros e do sistema


de crédito, todo capital parece duplicar e às vezes triplicar pelo modo
diverso em que o mesmo capital ou simplesmente o mesmo título de
dívida aparece, em diferentes mãos, sob diversas formas. A maior
parte desse "capital monetário" é puramente fictícia. Todos os
depósitos, excetuando o fundo de reserva, são apenas créditos contra o
banqueiro, mas nunca existem em depósito. (MARX, 1985, p. 14).

E ainda afirma que,

[...] como duplicatas que são, em si mesmas, negociáveis como


mercadorias e, por isso, circulam como valores-capitais, elas são
ilusórias e seu montante de valor pode cair ou subir de modo
inteiramente independente do movimento do valor do capital real [...].
(MARX, 1985, p. 20).

Esse processo de formação de capital fictício é denominado por Marx como


capitalização. "Toda a conexão com o processo real de valorização do capital se perde


4
O circuito D-D' consiste na ilusão de que poderia se fazer dinheiro com o próprio dinheiro, sem passar
pelo processo de produção. Este processo somente é possível quando considerada somente a perspectiva
individual do capitalista. Na totalidade, não é capaz de gerar riqueza sem trabalho humano.



779

assim até o último vestígio, e a concepção do capital como autômato que se valoriza por
si mesmo se consolida". (MARX, 1985, p. 11).
A característica particular do capital fictício e o que o diferencia do capital a
juros é que a remuneração deste (que é garantida pelos juros) advém de forma direta da
mais valia produzida pelo trabalho humano. Em contrapartida, o capital fictício assume
uma lógica própria de valorização especulativa (dos diferentes ativos: títulos que
representam um ganho regular, tais como ações e títulos da dívida pública dos Estados)
que, de fato, não passa pelo investimento produtivo gerador de mais-valia.
Fica evidente, assim, que o capital fictício não corresponde diretamente ao
trabalho humano e sua remuneração se dá através do rendimento de diferentes tipos de
títulos comercializáveis no espectro da ficção. É caracterizado por Carcanholo e
Sabadini (2009) como parasitário porque busca a obtenção de renda sem
necessariamente passar pelo processo de produção de riqueza material.
Há duas formas principais de manifestação deste tipo de capital capazes de gerar
lucros fictícios: as ações e os títulos da dívida pública. As ações representam o
patrimônio de uma empresa (são consideradas fictícias porque são contabilizadas no
mínimo duas vezes: como valor do patrimônio que elas representam e como valor delas
mesmas) e os títulos da Dívida Pública são papéis emitidos para financiar atividades
governamentais.
É neste contexto, de uma conjuntura marcada pela generalização da valorização
fictícia de capitais, que a educação superior se efetiva enquanto intervenção do Estado,
apresentando características que vão ao encontro do processo de valorização do capital
na esfera financeira. Assim, as duas formas resultantes da reestruturação do modo de
produção capitalista, as ações e a dívida pública, alteram significativamente a política de
Educação Superior. No campo da educação privada, muitas instituições são
incorporadas aos grandes conglomerados educacionais com capital aberto e
investimento na bolsa de valores5. No ensino público, além dos aspectos formativos, há
uma retração do financiamento de políticas sociais em prol do acúmulo dos superávits
primários para pagamento das despesas da dívida, uma vez que o fundo público é
absorvido com essa finalidade.
No Brasil, os impactos dessas novas formas de acumulação são mais visíveis a

5
Mais sobre esse tema podemos ver nos estudos de Sebim (2014), o qual teve como
objetivo investigar o impacto das mudanças trazidas para o trabalho docente decorrentes
do processo de inserção da educação superior na Bolsa de Valores.


780

partir do final da década de 1980, quando o capitalismo especulativo resulta em


mudanças econômicas e sociais no país. São assistidas algumas transformações de
forma mais intensa, tais como: a diluição das fronteiras nacionais de acordo com o
interesse dos países centrais; a emergência de novas instituições financeiras (em que
instituições não bancárias, tais como fundos de investimento e fundos de pensão passam
a ter cada vez mais representação); e o capital fictício passa a ter papel cada vez mais
importância em detrimento de outras formas funcionais do capital.
O Brasil, por estar inserido na economia global, com o predomínio da
desregulamentação comercial, da privatização do sistema produtivo e da liberalização
financeira fica refém dos ciclos de crise mundial. Nos momentos de crise, formam-se
elevados déficits públicos e o aumento da dívida pública, momento em que o fundo
público passa a utilizar cada vez mais recursos advindos de tributos para sustentar sua
política de socorro ao capital. (SALVADOR, 2010b).
Ainda que grande parte dos recursos do orçamento federal (mais de 40%) seja
direcionada para pagamento de juros e amortização da dívida pública, é difundida a
ideia de que é necessário cortar gastos na área social para resolver o problema da crise
fiscal. Com isso, a população sofre cotidianamente com a escassez de políticas públicas
e a baixa qualidade dos serviços prestados, num contexto de sucessivas medidas
contrarreformistas no campo das políticas sociais.
Nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT) (2003 -2016) foi verificada
uma busca por respostas às lutas históricas contra a desigualdade social. No entanto, as
políticas sociais implementadas são expressivamente voltadas para os mais pobres,
afastando-se da concepção de seguridade social. Com políticas de cunho compensatório
e sem deixar de atender a burguesia, o PT, na gestão, pouco avançou na luta real contra
a exploração sobre a classe trabalhadora. (LEITE, 2013).
As políticas sociais, assim, vem assumindo características como a focalização na
pobreza extrema, a privatização, a centralidade nos programas de transferência de renda
e a regressividade tributária. Nesse sentido, justiça social perde lugar para a lógica do
consumo, permitindo a lucratividade por meio da oferta de políticas que deveriam ser
públicas. (LEITE, 2013).
As medidas econômicas e sociais adotadas pelos governos desde o princípio da
década de 90 em busca do superávit primário geraram consequências na efetivação dos
direitos adquiridos. O país, que nunca teve um Estado de Bem-estar Social, sofre com o
crescimento do desemprego, precarização do trabalho, baixo nível de saneamento, baixa



781

qualidade de educação, falta de moradia, precarização da saúde entre outros. A


consequência disso é um país com elevadíssimos índices de desigualdade que só serão
possíveis de ser superadas via transformações estruturais, uma vez que no regime de
acumulação atual (e no sistema capitalista como um todo) não é possível uma sociedade
plenamente justa.

4 As reformas na Educação Superior no Brasil pós anos 1990


As reformas implementadas no Brasil a partir da década de 1990 aparecem como


respostas sistemáticas e articuladas das elites locais à crise estrutural do capital, que se
inicia, no plano mundial, na década de 1970.
A abertura e liberação econômicas, as políticas de Estado Mínimo e
desregulamentação dos mercados nos países periféricos ocorrem justamente no sentido
das instituições financeiras alcançarem novos espaços de valorização. Nos países
subdesenvolvidos, tal processo se dá, especialmente, na década de 1990, quando são
"convidados" a aceitar os termos do Consenso de Washington, e a realizarem ajustes
estruturais que vão ao encontro da economia de mercado. (SALVADOR, 2010a).
Diante da crise de acumulação, ocorre também alterações nas formas de
produção social. O novo modelo produtivo, denominado acumulação flexível ou
toyotismo, é marcado pela

[...] flexibilização da produção através de trabalhadores polivalentes,


tornando a relação homem-máquina em equipe-sistema automatizado;
a produção horizontalizada, o que aprofundou o processo de
terceirização; cria-se um novo léxico no ambiente fabril que não
supera a divisão entre concepção e execução, mas tem a
intencionalidade de se apropriar não só dos gestos rápidos do
trabalhador, mas de seu saber tácito, de sua capacidade intelectual, de
sua subjetividade. (MORAES, 2014, p. 144).

Esse novo modelo requer, assim, uma força de trabalho “diferenciada”,
reivindicando, portanto, um novo sistema educacional capaz de formar um trabalhador
flexível, polivalente, proativo e inteligente.
A ideologia neoliberal, que contribui para legitimação do novo modelo de
acumulação, aponta o Estado como oneroso e ineficiente, requisitando alterações
políticas e econômicas e conformando a chamada Reforma do Estado.



782

Em essência, a lógica das reformas encontraria sua expressão teórica


no que seria denominado, mais tarde, o Consenso de Washington.
Assim, deve ser pensada dentro dos limites desse processo de
reestruturação do capitalismo e, no caso brasileiro, de abandono das
pretensões nacionalistas de desenvolvimento autônomo, das novas
formas de associação da burguesia nacional com a grande burguesia
internacional, e a execução de uma série de reformas no sentido de
promover essa readaptação necessária do Estado brasileiro às novas
exigências da acumulação. A Reforma do Estado, em suas principais
ações, caracteriza-se, portanto, como um processo de crescente
descontrole sobre a reprodução social. (MINTO, 2005, p.213).

As orientações dos organismos multilaterais envolvem tanto o que se refere à


política fiscal, quanto às intervenções sociais do país, no sentido de garantir eficiência e
produtividade das atividades estatais indispensáveis. Barreto e Leher (2008) explicam
que a agenda do Banco Mundial é implementada pelos países periféricos pela situação
de subordinação que esses estão em no interior do capitalismo mundializado. O Banco
Mundial, na condição de avalista, impõe como condicionalidades que sejam realizadas
reformas de ajuste estruturais como contrapartida aos empréstimos. Seu poder decorre
da lógica de acumulação atual, que o instrumentaliza enquanto fiador das transações
financeiras internacionais.
Neste contexto, se as conquistas na área da educação instituídas na CF/1988
indicavam que o Brasil seguiria na contramão do resto do mundo, o que ocorreu de fato
é que a educação superior não foi poupada pela avalanche do neoliberalismo. As
contrarreformas burguesas se intensificaram, exigindo novos marcos regulatórios na
década seguinte.
Nos novos formatos da economia, que impõem a mercantilização de todas as
esferas da reprodução social, a educação foi redefinida visando atender aos processos de
integração do Brasil ao neoliberalismo. Nesse sentido, a contrarreforma da educação
superior está inserida dentro do pacote de contrarreformas do Estado brasileiro.
(MÉSZÁROS, 2002).
Como já assinalado, nesta lógica do capitalismo mundializado e dependente, os
países periféricos são demandados a atender as orientações internacionais na condução
da política econômica e das políticas sociais. Neste sentido, foi construído o documento
La Enzañanza Superior: las lecciones derivadas de la experiencia que objetiva
"ensinar" o Brasil e outros países periféricos como executar a política de educação de
forma eficiente. O documento elaborado pelo Banco Mundial na verdade é um
diagnóstico que responsabilizava também as universidades públicas pelo adensamento



783

da crise do Estado, considerando que elas aplicavam mal os recursos da educação.


(BANCO MUNDIAL, 1994).

Em muitos países em desenvolvimento o ensino superior é


caracterizado pela baixa relação aluno e professor, serviços
subutilizados, duplicação de programas, elevadas taxas de evasão e
retenção e uma alta proporção de recursos destinados a gastos não
educacionais, como moradia, alimentação e outros serviços
direcionados ais estudantes. (BANCO MUNDIAL, 1994, p.3,
tradução nossa).

De acordo com estas instituições, qualquer custeio que não seja estritamente
voltado para a formação barata e rápida da força de trabalho requisitada pelas novas
formas de produção, são recursos mal gastos. Desta maneira, o sistema educacional que
prevê: o tripé ensino, pesquisa e extensão; uma formação com garantias de boas
condições de trabalho para os docentes, infraestrutura adequada para desenvolvimento
das atividades dentro e fora da sala de aula e recursos para assistência ao estudante, é
considerada uma educação onerosa e que gera prejuízos para o Estado. Ademais, para
um país periférico, que está em situação desfavorável na divisão internacional do
trabalho, não é necessário formação de ponta.
As orientações sobre educação superior para os países periféricos elaboradas
pelo Banco Mundial na década de 1990 e na primeira década do século XXI possuem
como diretriz a diversificação dos tipos de instituições de ensino superior, dos cursos e
das formas de financiamento para solucionar os problemas por ele apontado. Lima
(2011) adverte que, uma análise atenta dos documentos do BM evidencia que o termo
educação, embora amplamente utilizado nos documentos, aparece de forma a gerar
equívocos, pois tais documentos se referem, na verdade, a um

[...] ensino massificado, concebido como transmissão de informação,


treinamento, instrução e capacitação, absolutamente desarticulado da
pesquisa e da produção de conhecimento crítico e referenciado nas
lutas históricas da classe trabalhadora. (LIMA, 2011, p.93).

Esse modelo de educação atende às requisições do capitalismo contemporâneo,


que exige um ensino tecnocrático e voltado para o lucro. Em 1995, o Banco Mundial
apresenta um novo documento defendendo a cobrança de matrículas e mensalidades e o
corte de verbas públicas para atividades por eles não consideradas de educação, como
assistência estudantil. Também dentro da lógica da diversificação das formas de
financiamento das universidades públicas, o BM propõe o uso de verbas privadas



784

advindas de empresas e administradas pelas fundações de direito privado. Para


possibilitar as parcerias e a administração dos recursos, prega a implementação de
estruturas administrativas mais flexíveis. (BANCO MUNDIAL, 1994).
Barreto e Leher (2008, p. 425) fazem uma análise do discurso e das
condicionalidades do Banco Mundial e, sobre a publicação de 1995, destacam três
pressupostos:

a) a educação superior para grupos desprivilegiados deve ser


substituída por treinamento de baixo custo; b) os países, incluindo os
"desprivilegiados", estarão aptos a competir no mercado global; e c) se
alguns países não alcançarem esse patamar, será por culpa dos
próprios.

De acordo com Minto (2011), a adequação destas grandes diretrizes para o Brasil
foi estabelecida pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Para o
autor, a LDB/1996 foi construída num contexto de disputa entre dois polos: por um
lado, o movimento de defesa da educação pública, interessado em avançar por meio da
regulamentação das conquistas da CF/1988 e, do outro lado, as forças conservadoras,
interessadas na efetivação das ideias de reforma do Estado. O resultado, segundo a
mesma visão, foi uma lei com conteúdo genérico que não explicitou os conteúdos mais
polêmicos e reivindicados pelos movimentos pela educação pública, como autonomia
universitária, exclusividade de recursos públicos para as escolas públicas e
indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão
O conteúdo genérico e indefinido dessa legislação dificultou a capacidade
regulatória por parte do Estado, dando condições para que as forças do mercado
ampliassem suas frentes de influência sobre o ensino superior. Desta forma, os
interesses privados, que sempre existiram no contexto de ensino superior no Brasil,
foram fortalecidos, contribuindo para ressignificar a universidade autônoma e crítica
prevista na CF/1988. (MINTO, 2011).
Assim, na década de 1990, em consonância com as orientações internacionais e
subordinado à necessidade de valorização do capital, assistiu-se, no Brasil, a uma forte
mercantilização da educação superior a partir de duas vertentes: a primeira, pela
liberalização dos serviços educacionais, da qual germinaram várias instituições
privadas; e a segunda, pela privatização interna das universidades públicas, por meio
das fundações de direito privado, a partir da cobranças de taxas e mensalidades e
estabelecimento de parcerias entre universidades públicas e empresas para realização de



785

pesquisas e consultorias. (LIMA, 2011).


Em 2003, o Partido dos Trabalhadores (PT) ganhou as eleições presidenciais. O
que poderia significar alterações substanciais nas políticas econômica e social, por se
tratar de um partido historicamente comprometido com as lutas sociais, na verdade
consolidaram-se governos comprometidos com a causa do capital, com algumas
concessões para a classe trabalhadora nos períodos de crescimento econômico.
Os governos da época continuaram sendo orientados pelos documentos dos
organismos internacionais no que se refere a condução das políticas macroeconômicas e
sociais. Nesta perspectiva, o BM consagrou, em 2002, o documento intitulado Construir
Sociedades de conocimiento: nuevos desafios para la educacion terciária, destacando a
educação como força motriz para o desenvolvimento dos países chamados por essa
instituição de emergentes. As novas orientações ratificaram a diversificação das
instituições de ensino superior expressas no documento de 1995, e inauguraram a ideia
de que qualquer curso pós-médio poderia ser considerado ensino terciário. (LIMA,
2011, p.89).
Nesse contexto, conformou-se, no início do século XXI, um marco normativo
congruente com os documentos do Banco Mundial e que delineia a atual contrarreforma
da educação superior no Brasil. Lima (2011) agrupa essas normativas e exemplifica suas
ações em quatro fundamentos básicos:

1) o fortalecimento do empresariamento da educação superior; 2) a


implementação das parcerias público-privadas na educação superior;
3) a operacionalização dos contratos de gestão, eixos condutores da
reforma neoliberal do Estado brasileiro de Bresser-Cardoso a Paulo
Bernardo-Lula da Silva e 4) a garantia da coesão social em torno das
reformas estruturais realizadas pelos governos Cardoso e Lula da
Silva. (LIMA, 2011, p. 90).

O primeiro fundamento, o fortalecimento do empresariado da educação superior,


se efetiva por meio do aumento considerável do número de Instituições de Ensino
Superior (IES) privadas e pela privatização interna das universidades com a oferta de
serviços educacionais condicionados a pagamento6. Essa lógica foi possível com a
elaboração de legislações como Decreto 5.205/2004 que regulamenta as parcerias entre

6
Para uma visão de como se instituem fundações e seu significado no contexto da
ausência de autonomia universitária e de transformação do espaço público em espaço de
quase-mercado, ver Sguissardi (2002).



786

universidades públicas e fundações de direito privado e a Lei 10.973/2004 que


estabelece incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica e permite que
docentes das universidades públicas prestem serviços para a iniciativa privada. (LIMA,
2011).
O segundo fundamento, sobre parcerias público-privadas na educação superior,
tem como exemplo o Programa Universidade para Todos (ProUni) instituído pela Lei
11.096/2005 (BRASIL, 2005), o qual define que o setor privado será beneficiado com
isenções fiscais em troca de vagas públicas. Outro exemplo parte da Lei de Inovação
Tecnológica (BRASIL, 2007), que permite o envio dos projetos de pesquisa a comissões
formadas pelos Ministérios da Educação, Ciência e Tecnologia e Ministério da Indústria
e Comércio para formação de catálogos que são enviados às empresas que, se
interessadas na implementação dos projetos, recebem isenção fiscal inversamente
proporcional ao direito de propriedade. (LIMA, 2011).
O terceiro fundamento trata da operacionalização dos contratos de gestão, como
eixos condutores da reforma neoliberal do Estado brasileiro de Bresser-Cardoso a Paulo
Bernardo-Lula da Silva. Temos como principal exemplo o Programa de Apoio a Planos
de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais, mais conhecido como Reuni
e apresentado pelo Decreto 6.096/2007 (BRASIL, 2007). O Reuni tem como objetivos
centrais aumentar a relação aluno x professor, ampliar o número de vagas e diversificar
as modalidades de ensino. As universidades que aderiram ao plano de metas do
programa tiveram como contrapartida um acréscimo de recursos, condicionado a
dotação orçamentária. (LIMA, 2011).
O quarto fundamento, sobre a garantia da coesão social em torno das reformas
estruturais realizadas pelos governos Cardoso e Lula da Silva, refere-se às medidas de
ampliação do acesso no ensino superior, medidas classificadas como"democratizantes".
O ProUni, o Reuni e o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES), destinado a financiar
a graduação na educação superior de estudantes matriculados em instituições não
gratuitas, e a assistência estudantil são as principais ações que contribuem para a
massificação do ensino superior disfarçada de democratização do acesso. (LIMA, 2011).
O que aparece como democratização na legislação, se efetiva como
massificação. Inegavelmente se ampliou o acesso, mas o crescimento do ingresso
ocorreu acompanhado da precarização das instituições de nível superior, do aumento da
relação aluno/professor; da fragilização das condições de trabalho dos servidores
técnicos administrativos e servidores docentes, da separação do ensino da pesquisa, de



787

estruturas inadequadas, da certificação em grande escala, omitindo assim a


desresponsabilização do Estado e acentuando privatizações internas e externas à
universidade.
Entre os anos 1995 e 2014, houve um aumento de 345% no número de
estudantes matriculados no ensino superior. No entanto, as matrículas de graduação em
instituições privadas permaneceram sendo maioria, ultrapassando 60% das vagas em
todo o período. O aumento do número de matrículas em instituições públicas foi de
180%, enquanto nas instituições privadas foi de 454% MEC (2015).
Estas medidas, que caracterizam a reforma do ensino superior, resultam na
proeminência do mercado educacional com questionável regulação estatal, aparecendo
como convenientes para suprir as demandas de valorização do capital em um momento
em que tudo deve ser transformado em mercadoria.

Considerações

A ampliação do acesso, inegavelmente é um avanço, no entanto, não podemos


desconsiderar que esse aumento ocorre vinculado à lógica do atendimento a um número
cada vez maior de estudantes, com menor tempo e com orçamento limitado. Além disso,
há de se considerar que a ampliação ocorreu acentuadamente via vagas em instituições
privadas. Com aspectos reprodutivistas, o ensino superior, embora mais abrangente,
continua atrelado aos interesses da classe dominante.
A concepção de homem e de mundo que norteia esta forma de educação não
permite a superação da exploração do homem pelo homem. Muito pelo contrário, forma
mão de obra habilidosa e obediente a intervir na manutenção desse sistema. A análise de
como se consolida a contrarreforma do ensino superior nos permite verificar que as
relações produtivas estão fortemente entrelaçadas com as relações educacionais, como
já anunciara Saviani (2007). Desta forma, enquanto houver a apropriação privada dos
meios de produção e alienação do trabalho, não será possível práticas pedagógicas
autônomas e libertadoras, voltadas para as necessidades essencialmente humanas.

Referências

BANCO MUNDIAL. La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia.


Washington, 1994.

BARRETO, Raquel Goulart; LEHER, Roberto. Do discurso e das condicionalidades do Banco



788

Mundial, a educação superior “emerge” terciária. Revista Brasileira de Educação, Rio de


Janeiro, v. 13, n. 39, p. 423-436, 2008.

BRASIL. Decreto Nº 6.096, de 24 de abril de 2007: Programa de Apoio a Planos de


Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil. Brasília, 25 abr. (2007).

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Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, nº 24. Rio de Janeiro: junho 2009.

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA E DOS


ESTUDOS MARXISTAS PARA UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA SOBRE A
DESIGUALDADE DE GÊNERO

Cláudia Ramos de Souza Bonfim (FDB/UNICAMP)1

Resumo: Pretende-se com esta pesquisa qualitativa-bibliográfica, esclarecer: A teoria de


Saviani e os estudos marxistas contribuem para o debate crítico sobre a desigualdade de gênero?
Objetiva-se discutir a desigualdade de gênero e a emancipação da mulher tendo como
referencial teórico a pedagogia histórico-crítica e o materialismo histórico-dialético,
fundamentando-se em Saviani, Kollontai e Redd. Considera-se, que estes estudos nos oferecem
argumentos fundamentais para pensar a condição da mulher na sociedade e, por consequência,
sobre a divisão sexual do trabalho e a exploração sexual da mulher. E que, na mesma linha de
pensamento, é possível pensar ainda hoje, as origens e causas do preconceito de gênero numa
perspectiva emancipatória denunciando a natureza perversa e contraditória do capital, a pseudo
libertação sexual da mulher advinda especialmente do capitalismo e da mercantilização da
sexualidade e a necessidade de superação do patriarcalismo.

Palavras-chave: Pedagogia histórico-crítica. Materialismo histórico dialético. Condição da


mulher. Preconceito. Desigualdade de gênero;

Introdução

As condições que engendraram a desigualdade e violência de gênero são


históricas e ainda hoje, condicionam as relações sociais, sendo reproduzidas em
diferentes espaços e instituições, especialmente através da educação, seja na família ou
na escola e atualmente através da mídia, perpetua-se uma educação sexista, enraigada
no patriarcalismo. Por outro lado, a sociedade capitalista tenta vender a ideia de que as
mulheres nos dias hoje conquistaram sua liberdade.
Cabe esclarecer, que entendemos que o sexismo refere-se às discriminações
sofridas por determinado gênero ou orientação sexual, onde um deles é privilegiado e o


1
Cláudia Ramos de Souza Bonfim, Doutora em Educação na área de História Filosofia e Educação
(Unicamp), Docente e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sexualidade da
Faculdade Dom Bosco (FDB) financiado pelo Programa de Educação Tutorial (PET) do Ministério da
Educação (MEC) e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Cornélio Procópio,
Paraná, Brasil; Pesquisadora Colaboradora do Grupo Paideia, Faculdade de Educação-Unicamp;. E-mail:
claudiasbonfim@gmail.com


790

outro discriminado. Mas as mulheres são mais atingidas por esta prática advinda de uma
cultura falocrática, patriarcal e machista onde as mulheres são desqualificadas e
inferiorizadas. Sexismo e machismo seguem a mesma lógica de dominação e de
discriminação. Onde se designa papeis e julgamentos distintos para homens e mulheres,
repugnando comportamentos e atitudes feminilizadas.
Sobre o machismo, Drumont (1980, p. 81-82), conceitua como “[...] um sistema
de representações simbólicas, que mistifica as relações de exploração, de determinação,
de sujeição entre o homem e a mulher.” Usando o “argumento do sexo [...] reduzindo-
os a sexos hierarquizados, divididos em polos dominante e pólo dominado”. Esse
binarismo dominação-sumissão precisa ser rompido. Essa educação com uma dupla
moral para homens e mulheres, ainda traz resquícios da educação patriarcal e machista
reproduz e consolida a inferiorização, a submissão e opressão da mulher na sociedade.
Partindo de Saviani (2005, p.XII), que não considera a educação como saída
para os problemas sociais, mas afirma, ser “é necessário alterar as próprias relações
sociais que a determinam [...]”, este estudo defende a tese, que a partir da formação da
cosnciência crítica e do acesso ao conhecimento científico socialmente produzido, que
traga à luz as condições histórico-sociais que determinam a opressão da mulher, será
possível engendrar sua superação.
Busca-se esclarecer: Como os estudos de Saviani e as teorias marxistas
contribuem para o debate crítico sobre a desigualdade de gênero? Parte-se da premissa
que essas concepções trazem uma significativa contribuição para o debate e formação
da consciência crítica sobre os condicionantes sociais que engrendraram a opressão da
mulher. Pressupõe-se que essas teorias são basilares para entendermos as relações
sociais que engendraram e ainda perpetuam as desigualdades de gênero e que impedem
a emancipação da mulher.
O objetivo central é discutir a desigualdade de gênero tendo como referencial
teórico a pedagogia histórico-crítica e o materialismo histórico-dialético, utilizando-se
de pesquisa bibliográfica-explicativa e fundamentando-se nos escritos propositivos de
Saviani, Kollontai, Redd, entre outros estudiosos que abordam a temática do estudo
nesta perspectiva teórica. Esses estudos nos oferecem argumentos fundamentais para
pensar a condição da mulher na sociedade e, por consequência, nos ajudam a pensar
sobre a divisão sexual do trabalho e sobre a exploração sexual. E, na mesma linha, é
possível pensar, ainda hoje, as origens e causas do preconceito de gênero numa
perspectiva emancipatória a partir destes estudos denunciando a natureza perversa e



791

contraditória do capital e a pseudo libertação sexual da mulher advinda especialmente


do capitalismo e da mercantilização da sexualidade e necessidade de superação do
patriarcalismo.

1 As Contribuições dos Escritos de Saviani e dos estudos pautados no


Materialismo Histórico Dialético para uma Reflexão Filosófica sobre Desigualdade
de Gênero

Nos dias de hoje, mesmo com diversos direitos conquistados e a inclusão da


mulher em espaços sociais e profissionais, que se deram especialmente através da luta
do movimentos femininistas na sociedade, o machismo, a desigualdade, o preconceito e
a violência contra a mulher continuam existindo, isso nos convoca a uma profunda
reflexão filosófica sobre esta problemática. Pautando-se em Saviani (1996, p. 15),
considera-se a filosofia a principal ferramenta de afrontamento da realidade,
colocando-a, essencialmente, como reflexão, esclarecendo que esta: “[..] significa
"voltar atrás". É, pois, um re-pensar, ou seja, um pensamento em segundo grau. [...].
Esta é um pensamento consciente de si mesmo, capaz de se avaliar, de verificar o grau
de adequação que mantém com os dados objetivos, de medir-se com o real”.
Ainda segundo Saviani (1996, p.15), “[...] refletir é o ato de retomar,
reconsiderar os dados disponíveis, revisar, vasculhar numa busca constante de
significado. É examinar detidamente, prestar atenção, analisar com cuidado. E é isto o
filosofar.” Considera-se que a emancipação ocorre através de um profundo processo de
reflexão das relações sociais que são produzidas, condicionadas e reproduzidas através
educação, portanto, a superação das condições objetivas decorrem de uma retomada
crítica dos condicionantes histórico-sociais que determinam/condicionam as condições
subjetivas. Pois, como afirma Saviani (2005, p.7), “[...] a produção não material, isto é,
a produção espiritual, não é outra coisa senão a forma pela qual o homem apreende o
mundo, expressando a visão dai decorrente de diversas maneiras. [...]”.
Pautando-se na pedagogia histórico-crítica, considera-se que : “[...] o homem
não se faz homem naturalmente; ele não nasce sabendo ser homem, vale dizer ele não
nasce sabendo sentir, pensar, avaliar, agir. Para saber, pensar e sentir; para saber querer,
agir ou avaliar é preciso aprender, o que implica o trabalho educativo”. Ressaltando que
transformação social não se dá apenas na pessoa isoladamente, mas a partir dela,
enquanto ser social. Pois como afirma Saviani (2005, p. XIII):



792

Faz-se necessário retomar o discurso crítico que se empenha em


explicar as relações entre a educação e seus condicionamentos sociais,
evidenciando a determinação recíproca entre a prática social e a
prática educativa, entendida, ela própria, como uma modalidade
específica da prática social. E é esta, sem dúvida, a marca distintiva
da pedagogia histórico-crítica.

Saviani (1996, p. 16), no entanto, esclarece que, para que a reflexão seja
filosófica, precisa questionar criticamente a realidade, assim suas teorias são essenciais
para o debate sobre a desigualdade de gênero. “[...] a reflexão filosófica, para ser tal,
deve ser radical, rigorosa e de conjunto.”
1) Radical, porque necessita ir “até às raízes da questão, até seus fundamentos [...]”,
pois precisa de uma profunda reflexão.
2) Rigorosa, pois exige um procedimento rigoroso, sistematizado, “segundo métodos
determinados, colocando-se em questão as conclusões da sabedoria popular e as
generalizações apressadas que a ciência pode ensejar.”
3) De conjunto, necessitando que a problemática não seja analisade de maneira
fragmentada e sim, em seu , “[...] conjunto, relacionando-se o aspecto em questão
com os demais aspectos do contexto em que está inserido. [...] a filosofia, embora
dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a
examina em função do conjunto.” (SAVIANI, 1996, p. 16)
Pafraseando Luxemburgo, nós mulheres precisamos sentir as correntes que, em
pleno século XXI ainda nos prendem, a maioria delas invisíveis, atreladas aos interesses
dominantes, ocultas dentro do processo educativo, trazendo inconscientemente, as
amarras das gerações passadas e perpetuando o preconceito e a desigualdade. Assim, os
escritos de Saviani (1996), tornam-se imprescindíveis nesse processo de reflexão, pois
apontam a importância de se compreender criticamente os fios que tecem as relações
sociais e explicam como se dá a passagem do senso comum à consciência filosófica.
Compreender a profundidade da trama e os fios que as sustentam, constroem e
reconstroem a história, é que possibilitará seu desenrolar. Só podemos perceber isto
quando adquirirmos consciência da profundidade com que elas nos cegam, prendem e
condicionam sem que consigamos perceber. Nesse sentido, a educação na perspectiva
histórico-crítica pode contribuir para a superação de muitos preconceitos de gênero que
ainda são disseminados, ao socializar criticamente “[...] o saber objetivo produzido
historicamente, sobre a condição histórica-social da mulher na sociedade”. ( SAVIANI,
2005, p. 7).



793

Assim como a educação escolar traz como conteúdo tantos fatos históricos,
defende-se a necessidade de trazer a discussão na educação escolar a condição histórica
da mulher na sociedade, a luta dos movimentos feministas em prol dos direitos da
mulher, numa perspectiva histórico crítica pautada no materialismo histórico dialético e
neste sentido, pois a proposição da pedagogia histórico-crítica vem ao encontro de
nossa defesa, pois implica na:

a) Identificação das formas mais desenvolvidas em que se expressa o


saber objetivo produzido historicamente, reconhecendo as condições
de sua produção e compreendendo as suas principais manifestações
bem como as tendências atuais de transformação;
b) Conversão do saber objetivo em saber escolar de modo a torná-lo
assimilável pelos alunos no espaço e tempo escolares;
c) Provimento dos meios necessários para que os alunos não apenas
assimilem o saber objetivo enquanto resultado, mas apreendam o
processo de sua produção bem como as tendências de sua
transformação. (SAVIANI, 2005, p.9).

Romper com preconceitos de gênero significa necessariamente transcender a


visão senso comum e compreender criticamente o contexto histórico-cultural que em
que fomos ideologicamente educados e educadas.

Passar do senso comum à consciência filosófica significa passar de


uma concepção fragmentária, incoerente, desarticulada, implícita,
degradada, mecânica, passiva e simplista a uma concepção unitária,
coerente, articulada, explícita, original, intencional, ativa e cultivada.
(SAVIANI, 1996, p. 2).

Saviani (1996), aponta claramente a necessidade da superação o senso comum


para a compreensão dos condicionantes sociais, pois esta visão decorre da cultura, sendo
repassadas através das gerações de maneira a-crítica. Faz-se necessário entender, que a
emancipação sexual da mulher engloba diversas dimensões que não estão separadas:
política, social, intelectual, econômica e inclusive sexual-erótica. Esse conjunto de
liberdades é que revolucionariamente, torna possível a real libertação.
Historicamente, a mulher sempre esteve envolta por uma dominação que passava
do pai para o marido. Hoje essa dominação ainda ocorre no seio familiar, mas há as que
libertaram-se desse jugo e caíram nas garras pseudolibertárias da sociedade mercantil,
que a tornou produto-objeto, sem que ela se dê conta disto. No entanto, nessa nossa
defesa não há maldade do homem contra a mulher, como se houvesse uma guerra entre
os sexos. Mas, que a economia é que engendra dispositivos que definem papeis sexuais
e identidades sociais. Como afirmou Machel (1980, p. 26):


794

No nosso seio aparecem pequenas manifestações desta ofensiva


lógica. Ouvimos aqui e ali mulheres murmurarem contra os homens,
como se a diferença dos sexos fosse a causa de sua exploração, como
se os homens fossem uns monstros sádicos que tiram o seu prazer da
opressão da mulher. Homens e mulheres são produtos e vítimas da
sociedade exploradora que os criou e educou. É contra ela
essencialmente que mulheres e homens unidos devem combater. A
nossa experiência prática tem provado que os progressos obtidos na
libertação da mulher resultam dos sucessos obtidos no nosso combate
comum contra o colonialismo e imperialismo, contra a exploração do
homem pelo homem, pela construção da nova sociedade.

Assim, Machel (1980, p. 27) aponta três aspectos que considera essenciais para a
emancipação da mulher: o primeiro é o engajamento político consciente; o segundo o
engajamento nas tarefas de produção; e o terceiro aspecto é o da educação científica e
cultural. Em relação ao “engajamento político consciente”, Machel (1980, p. 28), diz:

É a prática revolucionária que destrói a sociedade exploradora, é ela


que desencadeia o combate interno, faz desmoronar as concepções
erradas que trazemos, é ela que liberta o nosso sentido crítico e
iniciativa criadora. Exige-se neste contexto que a mulher se mobilize
para o combate interno e para o combate das massas, e que ela se
organize. Assim poderá assumir a linha política para desencadear a
ofensiva. Ela deve engajar-se na batalha da educação política das
novas gerações, na batalha da mobilização e organização das massas
em grande escala. Assim o seu engajamento na luta de libertação
tornar-se-á um ato concreto, levá-la-á a participar nas decisões que
afetam o destino da nação.

A sociedade pós-moderna com suas sedutoras ideologias pseudolibertárias


vendem a promiscuidade, a pornografia e a prostituição da mulher com ares de
libertação, como se fossem escolhas conscientes, tornando a exploração e a
objetificação do corpo “consentida”, profissionalizada ocultando a alienação. É a
mercantilização do corpo da mulher vendendo a ideia de autonomia, quando no fundo
esconde e torna aceitável para si mesma e para a sociedade que seu corpo tenha se
tornado uma mercadoria. Isso vem denunciar a natureza perversa e contraditória do
capital. Como afirma Nunes (2003, p. 98):

[...] o capitalismo apreendeu a sexualidade como o grande grito e a


incorporou à sua máquina de consumo: toda a propaganda passa a
falar de sexo, a estimular e referir-se aos anseios sexuais de nosso
tempo. Até mesmo as coisas mais simples são vendidas com o
distintivo do sexo. A luta da mulher é estigmatizada e a mulher é a
"garota propaganda" do consumismo. Seu próprio corpo é consumido.



795

Machel (1980, p. 27), nessa mesma linha de pensamento, afirmou:

O combate pela emancipação da mulher exige uma clarificação das


idéias (sic) como ponto de partida. Essa clarificação impõe-se tanto
mais quanto pululam concepções erradas sobre a emancipação da
mulher. Há quem conceba a emancipação como uma igualdade
mecânica entre o homem e a mulher. Essa concepção vulgar
manifesta-se muitas vezes no nosso seio. A emancipação seria, então,
a mulher o homem fazerem as mesmas coisas, dividirem
mecanicamente as tarefas do lar. “Se hoje lavei pratos, amanhã você
os lavará quer esteja ou não ocupado, quer tenha ou não tempo”... A
emancipação concebida mecanicamente leva, como vemos por
exemplo nos países capitalistas, a reclamações e atitudes que
deturpam inteiramente o sentido de emancipação da mulher. A mulher
emancipada é a que bebe, fuma, é a que usa calças e mini-saias, a que
se dedica à promiscuidade sexual, a que se recusa a ter filhos, etc.

Já sobre o “engajamento nas tarefas de produção”, Machel (1980, p.28),


esclarece que: “[...] a libertação das forças produtivas, o desencadeamento do
processo de desenvolvimento econômico conduzirão ao aprofundamento ideológico,
tornarão mais sólido o conhecimento da realidade: a sociedade e a natureza”.
Assim, “[...] trata-se de explicitar como as mudanças nas formas de produção da
existência humana foram gerando historicamente novas formas de educação, as quais,
por sua vez, exerceram influxo sobre o processo de transformação do modo de produção
correspondente”. (SAVIANI, 2005, p.2).
No que se refere à “educação científica e cultural”, Machel (1980, p.28)
considera que:

A base científica e cultural permite à mulher aceder a uma concepção


correta das suas relações com a natureza e a sociedade, destruindo
assim os mitos gerados pelo obscurantismo que a oprimem
mentalmente e a privam de iniciativa. Assim progressivamente a
mulher acederá a todos os níveis de concepção, decisão e execução, na
organização da vida das crianças e hospitais, das escolas e das
fábricas, do exército e da diplomacia, da arte, ciência e cultura, etc.

E, ressalta ainda, que “[...] o conjunto destas necessidades não são exclusivos da
mulher, porque o homem também, como ela, aparece alienado, ainda que sob formas
diferentes” (MACHEL, 1980, p.29). Já Kollontai (1982, p. 46) afirma que:

Quem conhece as teses fundamentais do materialismo histórico sabe


que os homens são impotentes para modificar a seu bel prazer as



796

forma de sua vida social, já que essas formas decorrem logicamente


das relações de produção econômicas existentes.

Todas as pessoas, homens e mulheres, têm direito a viver uma sexualidade


plena, ao erotismo, à autonomia sobre seu corpo, mas para dispor de si mesma a pessoa
precisa também humanizar a natureza do sexo, que exige a consciência profunda de si e
do mundo, o equilíbrio emocional e racional, para que a neurose e a alienação não
roube nossa humanidade. Contudo, essa libertação se dá através da profunda mudança
de consciência.
Assim, romper a estrutura global da dominação implica num processo
revolucionário especialmente numa sociedade que mercantilizou a própria sexualidade.
Especialmente a partir da sociedade tecnológica, através da cultura de massas tem-se a
falsa ideia de que a sociedade não está mais dividida em classes, difundindo a ideia de
direitos iguais e homogeneização, padronizam-se comportamentos. A cultura de massas
apoderou-se dos arquétipos, transformando-os em estereótipos para vender mais.
Esclarecendo que arquétipos segundo Muraro, “[...] são as aspirações fundamentais do
ser humano que este projeta fora de si sob a forma de mitos e com que depois se
identifica”. A análise de Muraro, ainda que seus escritos sejam num tempo histórico
diferente, é imprescindível para a compreensão da realidade atual e nos leva a um
profundo pensar sobre a liberdade sexual que acreditamos viver nos dias de hoje. “A
cultura de massas retrata uma vida livre da dominação, uma vida antropologicamente
livre, além dos mais a cultura de massas supera a morte, camufla o céu nesta terra, e a
religião mítica da era tecnológica.” (MURARO, 1975, p. 51).
Evidentemente não se pode negar que, historicamente houve uma negação do
corpo e do prazer, especialmente sobre o corpo feminino, relegado dentro do casamento
à procriação e fora dele à prostituição. É relativamente recente pensar sobre o prazer
feminino como direito de todas as mulheres e especialmente na possibilidade erótica
para além dos limites do matrimônio. Mas o que tratamos aqui ultrapassa os limites
morais, pois trata-se de pensar na questão ética da vivência da tão apregoada liberdade
sexual que muitas mulheres teoricamente teriam conquistado.
O prazer, sem dúvida, é um direito e uma necessidade salutar para nossa
humanização, mas quando banalizado ultrapassa os limites éticos, assim, Muraro (1975,
p. 58), afirma que “[...] o homem moderno chega à beira da insanidade”. A repressão
sobre o corpo, antes negado hoje volta através da cultura de massas como a outra ponto
do iceberg, da repressão sexual ao sexo compulsivo, um prato cheio para que a cultura



797

de massas propagasse o consumo da pornografia. “Juventude, sexo e nudez


clandestinas” são, hoje buscados exaustivamente pelo homem e especialmente pelas
mulheres antes reprimidas, o que dialeticamente foi o começo do fim do puritanismo
remete hoje à uma liberalidade exacerbada.
A liberdade sexual vai muito além da vivência sexual afetiva e erótica, para
sermos livres temos que ter antes efetividos direitos iguais no tocante a condições
igualmente dignas de trabalho e salário, educação, emancipação econômica e respeito às
nossas potencialidades intelectuais e humanas, e consequentemente, ao prazer, Mas
ressaltando que este não é o aspecto central, mas consequência da verdadeira
emancipação que, só é possível, através da superação da exploração do homem pelo
homem. (BONFIM, 2015).
Sendo assim, Kollontai (1982, p. 41), anuncia que: “Só uma transformação
radical das relações de produção pode criar as condições sociais indispensáveis para
evitar à mulher os aspectos negativos da fórmula elástica do ‘amor livre’”. E ressalta
que, o que as feministas de esquerda exigiam era que se instaurasse uma: “[...] ‘moral
única’, igualmente obrigatória para o homem e a mulher, insurgimo-nos contra o
desregramento dos costumes sexuais de hoje, proclamamos que só é pura a união livre
fundada em um amor verdadeiro”.
E ainda segundo Kollontai (1979, p. 41) a emancipação da mulher só é possível
com “[...]o acesso das mulheres a um trabalho independente e à autonomia
econômica.” Mas alerta que, “[...] a dependência da mulher com relação ao capital
permanece, e esta dependência se agrava à medida que cresce o número de mulheres
proletárias levadas a vender sua força de trabalho e nos dias de hoje, seria vender a
objetificação erótica de seu corpo.
Kollontai afirma que as mudanças econômicas e interesses capitalistas geraram
uma crise sexual. O homem não soube transpor a barreira entre a repressão e a
liberdade, e foi de um extremo ao outro, estimulado por uma sociedade que banalizou e
mercantilizou as relações sexuais e os corpos, culminando no desenvolvimento de
relações vazias de afeto, meramente instintivas, onde especialmente a mulher
transforma-se em objeto sexual.

Além do individualismo extremado, defeito fundamental da psicologia


da época atual, de um egocentrismo transformado em culto, a crise
sexual agrava-se muito mais com outros dois fatores da psicologia
contemporânea: a idéia (sic) do direito de propriedade de um ser sobre



798

o outro e o preconceito secular da desigualdade entre os sexos em


todas as esferas da vida. (KOLLONTAI, 1979, p. 48).

Vivemos nos dias de hoje, a proclamação de uma pseudo-liberdade sexual, pois,


“[...] sob o jugo de um todo repressivo, a liberdade pode ser transformada em
dominação”. O que era para nos tornar livre ao mesmo tempo nos escraviza, vivemos
num mundo que segrega, mutila, transforma nossa sexualidade em partes estanques. Na
sociedade ocidental especialmente as diferenças entre os sexos, são relativas ao gênero
consolidadas por diferenças de vestimentas, de comportamentos, de papeis sexuais e de
privilégios historicamente repassados como socialmente corretos e aceitos.
(MARCUSE, 1979, p.28).
Assim, segue-se a contradição, retomando Muraro (1975, p. 64), ainda hoje
grande parte dos homens e mulheres compreendem seu papel em relação um ao outro e
ao mundo.

Nem mulher nem homem conhecem seu exato papel em relação um ao


outro. Ora o homem considera a mulher como objeto erótico e,
portanto, a recusa-a como mulher, ora a cerca de um respeito
assexuado que também é recusa da sua feminilidade. Quanto à mulher,
ora encara o homem como um dado absoluto da qual ela seria o
relativo (um espécie de substantivo do qual ela seria o adjetivo...) ou
passa a competir com ele como se fosse também ela um homem, em
ambos os casos, desconhecendo as suas necessidades profundas.

O que nos leva a compreender que na sociedade há uma pseudolibertação do


corpo, pois a nudez erótica, a prostituição e a pornografia são extremamente lucrativas e
amplamente divulgadas e até defendidas. E Muraro (1975, p. 66), complementa: “ Na
nudez clandestina dos strips-teases e das revistas ditas pornográficas, a mulher chega ao
máximo de objetificação e desaparece como pessoa”. A pseudo liberdade sexual abre
ainda mais espaço para a objetificação da mulher, que alienada, acredita ter hoje
autonomia sobre seu corpo. Não é esse tipo de liberdade que buscamos e sim uma
liberdade emancipatória, essa nudez mercantil nos torna produtos e objetos.
Marcuse (1979, p. 230), é leitura base para pensarmos sobre o significado da
liberdade, palavra primordial nas discussões de gênero quando a pauta é liberdade
sexual. Em seus escritos nos “convida” a libertarmo-nos das falsas "liberdades" tão
presentes na sociedade industrial, onde a "liberdade" é transformada em dominação,
sem que consigamos perceber. “Libertar a imaginação do modo que lhe possam ser
dados todos os seus meios de expressão pressupõe a repressão de muito do que agora é



799

livre e que perpetua uma sociedade repressiva.” E alienados, acreditamos que todas as
lutas que imperam nos movimentos contemporâneos são de fato pela liberdade.
Marcuse (1979), nos "mostra" que a "liberdade" que acreditamos vivenciar é
simplesmente uma nova forma de controle da sociedade onde há a supressão da
individualidade na mecanização de desempenhos socialmente "necessários". Os direitos
e liberdades que buscamos, muitas vezes, funcionam como um "livre" empreendimento
da sociedade e são usados para promover e proteger os interesses dos dominantes e
capitalistas e não os interesses dos oprimidos como muitas vezes acreditamos.
No mais, há que se esclarecer que liberdade não é fazer tudo que se tem vontade,
Emancipar-se é acima de tudo, adquirir a capacidade de pensar criticamente e agir de
maneira ética em todos as dimensões humanas, sociais e sexuais. Reed (1980, p. 87),
afirma que, “[...] os problemas que se nos apresentam devem ser situados no contexto
da luta de classes.”

A “questão feminina” pode ser resolvida somente com a aliança dos


homens e das mulheres trabalhadoras, contra os homens e as mulheres
que detém o poder. Isto significa que os interesses comuns dos
trabalhadores, como classe, são superiores aos das mulheres como
sexo.

Kollontai (1979), assim como Reed, também afirmou que a “questão da


mulher”, precisa necessariamente ser analisada a partir do interesses de classe. Em
Bonfim (2015) afirma-se que é basilar para o entendimento das relações e opressão de
gênero na sociedade, conseguimos compreender que as questões de gênero, se inter-
relacionam diretamente com a dominação de classe. E especialmente com a dominação
patriarcal no seio da família. Partindo deste entendimento, podemos afirmar que
enquanto não superarmos a opressão patriarcal-capitalista, não conseguiremos superar
as condições de escravidão doméstica e os preconceitos de gênero culturalmente criados
e reproduzidos, há que se ter necessariamente uma profunda transformação da sociedade
A desigualdade de gênero foi engendrada a partir das transformações
econômicas da sociedade de classes através da divisão entre dominados e dominantes
(as mulheres enquanto seres considerados inferiores e o homem detentor do poder
dentro da unidade familiar). E que essa dominação se agrava a partir do modelo burguês
de família, que na sociedade capitalista teve como objetivo acumular capital, onde a
mulher sofre opressão sexual por recair sobre ela a manutenção do “status quo” e o
peso da dupla moral sexual.



800

Esta é uma questão histórica, pois as finalidades da educação sempre estiveram


vinculadas aos interesses das classes dominantes, detentoras do poder político e
econômico, as quais, objetivando a manutenção de seus privilégios, utilizam-se de um
plano ideológico para, mascaradamente, designar às classes desfavorecidas (que
SAVIANI chama de “dominados”) definindo quais serão suas posições ou seus papeis
na sociedade; conduzindo-as a assimilar e repassar às futuras gerações a ideia de que
não é possível mudar essa realidade.
Na perspectiva que defendemos a superação de toda e qualquer desigualdade
social e sexual perpassa pela formação da consciência crítica, pela aquisição do
conhecimento científico para que possamos superar o saber ingênuo através de uma
“consciência filosófica”. Ainda que a educação não seja determinante para a
transformação da sociedade, oferece as ferramentas para que uma pessoa possa, por si,
engendrar as mudanças, pois a educação é um instrumento de luta. Assim como Saviani
(1987, p.36), consideramos que a constituição de uma nova sociedade não será possível
sem a elevação do nível cultural de massas. E que, para contra-hegemonia, faz-se
necessário criar uma cultura popular que estabeleça uma nova visão de mundo, normas
e valores; de uma nova sociedade capaz de substituir o consenso da burguesia. Para isto,
as camadas desfavorecidas terão que dominar os conteúdos do ensino escolar:

Se os membros das camadas populares não dominarem os conteúdos


culturais, eles não podem fazer valer os seus interesses porque ficam
desarmados contra os dominadores, que se servem exatamente desses
conteúdos culturais para legitimar e consolidar a sua dominação [...] O
dominado não se liberta se ele não vier a dominar aquilo que os
dominantes dominam.

Nesse sentido, consideramos que a escola, como espaço privilegiado para a


transmissão do saber historicamente produzido, pode e deve também contribuir para
formar consciências éticas para a vivência do amor e da sexualidade através de
intervenções que possam informar de maneira crítica e científica como a sexualidade foi
historicamente construída, como forma de oferecermos ferramentas que ajudem a abrir
mentes e superar preconceitos que consolidam a desigualdade social e sexual. A
violência contra a mulher, a opressão sofrida durante séculos ainda se faz presente no
cotidiano. E a escola lócus de diversidade e, quer queira ou não, de formação de
subjetividades pode abrir possibilidades e debates para a formação ética e estética, visto



801

que é também espaço de humanização, pois, consideramos como Saviani (2005, p. 7),
que:

A natureza não é dada ao homem mas é por ele produzida sobre a


natureza biofísica. Consequentemente, o trabalho educativo é o ato de
produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a
humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjuntos
dos homens.

Não podemos deixar de ressaltar que a escola, assim como a religião e, hoje em
dia, a mídia, foram e ainda são, os principais mecanismos ideológicos e culturais de
dominação. Sendo assim, consideramos que um marco inicial para superação da
opressão da mulher na sociedade se dá a partir da formação da consciência crítica e da
aquisição do conhecimento e consecutivamente, do discernimento necessário para
formar e transformar suas concepções de mundo e lutar para ampliar seus espaços de
atuação na sociedade.
Não somente, mas, a partir da aquisição de conhecimento, que homens e
mulheres passam a se olhar como seres humanamente e intelectualmente capazes de
contribuir igualmente para a transformação das relações sociais e, consequentemente, da
sociedade. Reiteramos que o conhecimento, a argumentação científica oferece
instrumentos para que possamos exigir igualdade de direitos e deveres.
Como afirma Kollontai (1982, p. 51): “se se quer lutar para libertar a mulher do
jugo familiar, é preciso dirigir as armas não contra as próprias formas de relação
conjugais, mas contra as causas que as engendraram.” E essas causas, como já apontava
Engels (2009, p.94), estão nas bases econômicas dos modos de produção da sociedade
assim dizia que, “a desigualdade legal de ambos, herdamos de condições sociais
anteriores, não é causa e sim efeito da opressão econômica da mulher.”
A emancipação da mulher é ainda hoje uma utopia lúcida, e esta real libertação
não se dá sem luta. É preciso necessariamente que as mulheres saiam da posição de
vítimas e ocupem seus espaços como sujeitos sociais, que devem participar igualmente
das decisões políticas e assumirem um compromisso consigo mesmas para a superação
da desigualdade social e sexual de gênero.

Considerações finais

Assim, considera-se que através desse processo de reflexão e aquisição crítica do


conhecimento historicamente produzido, das relações produzidas, reproduzidas,



802

condicionadas e consolidadas na prática educativa é que adquire-se a visão do contexto


histórico, econômico, social, superando a visão ingênua possibilitando a construção de
novas relações sociais pautadas na igualdade.
A concepção de Saviani, assim os estudos referenciados em nosso estudo que
são pautados o materialismo histórico dialético, nos convocam à formação da
consciência crítica, apontando a reflexão crítica filosófica da realidade como a
ferramenta inicial para a compreensão dos condicionantes sociais que permeiam as
relações sociais e que são reproduzidos e consolidados na prática educativa e social.
Assim, a superação de tantos problemas sociais, aqui incluímos a desigualdade de
gênero, são fundamentais para compreendermos o contexto e os mecanismos
dominantes que nos condicionaram para que possamos iniciar o processo de libertação
dos determinismos do senso-comum. Defendendo, assim, “a educação como
instrumento de luta”.
A explicação para a dominação da mulher não se encontra na relação com o
homem, mas na relação com o trabalho, com a economia. Acreditamos que a plena
emancipação da mulher só pode se dar a partir da construção de uma base econômica,
social e educacional capazes de lhe proporcionar a formação da consciência crítica e,
consequentemente oferecer-lhe as ferramentas para que possa se tornar independente do
domínio da classe dominante e romper com as amarras morais que a escravizam social e
sexualmente.
A dualidade educativa, a diferenciação de papeis sociais, de comportamentos e
sentimentos precisa ser extinta em todos os espaços. É preciso reconhecer que homens e
mulheres são humanamente iguais, afinal homens e mulheres são constituídos
socialmente e ambos precisam ser reeducados e conscientemente transformados para
viverem em igualdade. Essa dualidade do papel e do espaço destinado ao homem e à
mulher, ainda hoje, necessitam de intervenções que busquem promover rupturas de
alguns comportamentos de gênero socialmente naturalizados e legitimados, tanto para a
mulher quanto para o homem.
A emancipação da mulher só ocorrerá através da aquisição da consciência crítica
sobre sua condição histórica e da opressão que sofreu e ainda sofre na sociedade, mas
não numa guerra entre os sexos, mas no combate veemente das causas que engendraram
a desigualdade de gênero. Somente através da compreensão crítica da historicidade da
sexualidade e dos discursos legitimados sobre as diferenças entre os sexos é que
poderemos superar esses resquícios opressores, repressores, dogmáticos, patriarcais.



803

O acesso ao conhecimento científico precisa ser sempre o início e nunca o fim,


mas a ferramenta que nos auxilie na luta para a transformação das relações sociais e
sexuais. E a superação da desigualdade de gênero, não se dá sem luta, assim almejamos
que a educação seja uma ferramenta nesta batalha pela emancipação e a igualdade
social, sexual e política.

Referências

BONFIM, C. A Condição Histórica da Mulher e a Construção Social do Amor na


Perspectiva Socialista: um estudo da trajetória e produção de Alexandra Kollontai. 2015.
Relatório (Pós-Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de
Campinas, Campinas-SP.

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81-85, 1980.

ELEY, G. Forjando a democracia: a história da esquerda na Europa, 1850-2000. São Paulo:


Perseu Abramo, 2005.

ENGELS, F. A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado. 3. ed. São Paulo:


Escala, 2009.

KOLLONTAI, A. A nova mulher e a moral sexual. 3. ed. São Paulo: Global, 1979.

______. Marxismo e Revolução Sexual. São Paulo: Global Editora, 1982.

MACHEL, S. A Libertação da Mulher é uma necessidade da Revolução, garantia da sua


continuidade, condição do seu triunfo. In: MACHEL, S. et al. A Libertação da Mulher. 2. ed.
São Paulo: Global Editora, 1980.

MARCUSE, H. A ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional. 5. ed. Rio de


Janeiro: Zahar Editores, 1979.

MARX, K.; ENGELS, F.L'idéologie allemande. Paris: Éditions Sociales, 1970.

MURARO, R. M. A Mulher no Terceiro Milênio. 2. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos,
1992.

REDD, E. Sexo contra Sexo ou Classe contra Classe. São Paulo: Versus, 1980.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. 13. ed. Campinas, SP:
Autores Associados, 2000.

______. Ensino Público e algumas falas sobre Universidade, 4. ed. São Paulo: Cortez, 1987.

______. Pedagogia Histórico-crítica. 9. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2005.

______. Escola e Democracia. 32. ed. Campinas,SP: Autores Associados,1999.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

ESCOLA E EMANCIPAÇÃO:
A INCUMBÊNCIA DO CONHECIMENTO PARA A VIDA

André de Souza Santos (FDB)1


Cláudia Ramos de Souza Bonfim (FDB/Unicamp)2

Resumo: Propôs-se através de pesquisa de abordagem qualitativa e caráter explicativo-


bibliográfico responder o seguinte questionamento: qual a relação entre a apropriação e uso do
saber e a emancipação? Objetivou-se tratar de especificidades do fenômeno educativo à luz de
questões contemporâneas, além de buscar esclarecer sobre a necessidade do saber como
elemento essencial a uma vivência crítica e emancipada. Sucedeu-se uma releitura do conceito
de marginalizado de Saviani em Escola e Democracia, pensando-o na contemporaneidade.
Posteriormente, refletiu-se sobre as ações necessárias para que a dimensão do “conhecer” seja
potencializada dentro da educação, e ainda se tratou de questões relativas à importância da
apropriação dos conteúdos clássicos, função docente, e a incumbência do saber para a
emancipação humana. Concluiu-se ao final do trabalho que a condição de marginalizado, bem
como nossa própria existência, só serão entendidas e modificadas por intermédio do saber
histórico.

Palavras-chave: escola; marginalização; emancipação.

Introdução

Como nos conta Saviani, o homem racional – diferente de outros seres vivos –
por intermédio de sua história, evidencia-se como único, legítimo e consciente
construtor de sua própria existência – considerando para isto a determinação de
influências e experiências em sua vida –, modificando seus espaços, sistemas, caminhos
e tudo que habita a seu redor. Não é difícil afirmarmos que, por esta constatação, somos
responsáveis majoritários pela produção de nossas próprias formas de vivência, a


1
Licenciado em Educação Física; Especialista em Metodologia do Ensino Superior, Acadêmico do Curso
de Pedaogogia Faculdade Dom Bosco- Cornélio Procópio, Paraná, Brasil; Membro Bolsista do Grupo de
Estudos e P esquisas em Educação e Sexualidade ( GEPES PET MEC FDB); Agência Financiadora:
FNDE – PET- MEC. E-mail: andre_prof_ef@hotmail.com
2
Cláudia Ramos de Souza Bonfim, Doutora em Educação na área de História Filosofia e Educação
(Unicamp), Docente e Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação e Sexualidade da
Faculdade Dom Bosco (FDB) financiado pelo Programa de Educação Tutorial (PET) do Ministério da
Educação (MEC) e pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), Cornélio Procópio,
Paraná, Brasil; Pesquisadora Colaboradora do Grupo Paideia, Faculdade de Educação-Unicamp;. E-mail:
claudiasbonfim@gmail.com


805

qualificação ou degradação destas. Além disso, em suma, enxergamos que, enquanto


seres ativos, produzimos para nós e inevitavelmente para a própria sociedade, já que
nosso ser encontra-se substancialmente integrado a esta.
Também recobramos nesta perspectiva, profundamente delineada pelo autor
supracitado, a compreensão de que o trabalho humano subdivide-se em categorias
específicas, como o material e não-material – que também se ramificam –, e consistem
no grande arcabouço cultural de nossa espécie, isto é, uma herança, que se cria e se
dissemina a cada momento histórico e tem como princípio básico, informar e formar as
próximas gerações destes saberes outrora descobertos. Saviani classifica a educação
como trabalho não-material, pela natureza de suas especificidades, e ainda argumenta
sobre o que trata o elemento educativo. Segundo o autor (1984, p. 2):

[...] o objetivo da educação diz respeito, de um lado, à identificação


dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos
da espécie humana para que eles se formem humanos e, de outro lado
e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para
atingir esse objetivo.

Assim sendo, uma pessoa sem acesso à educação – neste caso, formal – e seus
elementos, situa-se à margem das exigências sócio históricas, tornando-se frágil e
passível à exploração por sua ingenuidade e acriticidade. Este fenômeno da
marginalização, especialmente em um modelo capitalista de Estado, acentua-se, já que a
suposta qualificação e democratização do ensino apontam-se como inimigas da
manutenção deste status quo, pelo risco da potencialização dos questionamentos das
classes populares, motivada pelo “conhecer” de sua historicização.
Partindo dessa premissa, definimos a seguinte questão norteadora: qual a relação
entre a apropriação e uso do saber, e nossa emancipação? Acreditamos que as
resoluções para esta problematização, por mais obvias, sejam determinantes para
trabalharmos em uma perspectiva de desenvolvimento escolar, voltada à especificidade
da escolarização, e isto, por necessidade, já emerge como coerente justificativa para a
elaboração deste trabalho.
Objetivamos tratar de especificidades do fenômeno educativo, à luz de questões
contemporâneas como a massiva inserção estudantil, a maximização de cursos de
formação docente, articulação entre ensino, pesquisa e extensão, além de buscar
esclarecer sobre a necessidade do saber como elemento essencial a uma vivência crítica
e emancipada.



806

Nossa intenção, incialmente, é propor uma releitura do conceito de


marginalizado revelada por Dermeval Saviani em Escola e Democracia, pensar este
marginalizado na contemporaneidade, sugerindo novas reflexões no tocante ao processo
de marginalização. Posteriormente, refletiremos sobre as ações necessárias para que a
dimensão do “conhecer” seja potencializada dentro da educação e as questões relativas à
importância da apropriação dos conteúdos clássicos como mecanismo para a apreensão
do real, função docente, e ponderaremos sobre a incumbência do saber para a
emancipação humana.

1 O conceito de marginalizado em Escola e Democracia e a contemporaneidade

Na clássica obra – e leitura obrigatória – Escola e Democracia, Saviani apresenta


as naturezas do entendimento de “marginalizado” para a educação e suas características.
O autor aponta como cada corrente compreendeu este ser que se encontra à margem do
desenvolvimento social e, além disso, as crenças em que cada movimento acreditava,
como forma de obtenção da democracia, considerando seus ideários, perspectivas e
formas de trabalho.
Nessa seção, analisam-se os movimentos não críticos, críticos reprodutivistas e
críticos “progressistas”. Devemos esclarecer que nosso objetivo é centralizar a análise
nos conceitos de marginalizado, propondo uma releitura e singelos posicionamentos
sobre estes. A edição de Escola e Democracia utilizada como referencial foi do ano
2012, da “Coleção polêmicas do nosso tempo, vol. 5.

1.1 O marginalizado e as teorias educacionais

O tradicionalismo educacional, com origens e estruturação associadas à


metodologia de trabalho jesuítica, entendia o marginalizado como aquele desprovido de
conhecimentos científicos, o “ignorante” e, dessa forma, podemos acrescentar que a
compreensão desta condição surge da ideia de que o indivíduo desprovido de saberes
não consegue viver ou subsistir com qualidade, visto que “conhecer” é a especificidade
da autonomia.
Esta perspectiva não deixava de ser verdadeira, porém, parcial, pois o acúmulo
de conhecimentos, por si só não é capaz de melhorar ou mesmo esclarecer os membros
de determinada sociedade, visto que estes só nós seriam úteis se pudéssemos vinculá-los



807

à nossa realidade prática, implicando em nossa conscientização como seres além de


reprodutores, mas, acima disto, transformadores e construtores de cultura.
Para a Escola Nova ou “Escolanovismo”, o marginalizado se encontra a par dos
grupos e comunidades, isto é, “rejeitado” pela sociedade. Teóricos e teóricas como
Decroly e Montessori, influenciaram esta pedagogia, a princípio com as “constatações”
dos denominados “anormais”, classificando-os por intermédio da análise de suas
especificidades educacionais e o desvio de padrão de aprendizagem e socialização
perante aquilo que se considera adequado. Evidencia-se então aquilo que Saviani (2012,
p. 7) nomeia como “biopsicologização da sociedade, da educação e da escola”.
Entende-se que esta tendência, apesar de suas intenções inclusivas, tornou-se
ferramenta essencial para a inferiorização da escolarização oferecida às classes
populares, por meio do que nomeia Saviani (2012, p.10) o “[...] afrouxamento da
disciplina e a despreocupação com a transmissão de conhecimentos”. Além disso, por
suas características de trabalho em grupo, socialização, integração, articuladas aos
conteúdos escolares (cuidadosamente “organizados e sempre exigidos” pela burguesia à
sua casta), contribuiu ao aprimoramento das classes dominantes, garantindo a
continuidade de seus privilégios.
Na pedagogia tecnicista superam-se as identificações de marginalizado como o
ignorante ou rejeitado e recusa-se a ênfase antes direcionada ao trabalho e figura do
professor na Escola Tradicional ou a centralização do processo de ensino-aprendizagem
no aluno da Escola Nova diretiva e não-diretiva, entendendo-se neste momento o
marginalizado como o “improdutivo”, isto é, aquele que não acrescenta ao sistema,
desprovido de competência e que não pode contribuir para o sucesso social.
Não é difícil compreendermos que, além da operacionalização do trabalho
pedagógico e “desautorização” da autonomia do educador, o foco desta abordagem tem
íntima relação com a intenção de expansão econômica e mercadologização da educação,
já que esta se torna utensílio de maximização produtiva, tendo como principal dever a
“fabricação” de força de trabalho capaz de estabelecer uma segura base de sustentação
para a indústria, comércio, e empreendimentos de quaisquer natureza.
Até aqui temos a impressão de que a escola almeja a superação da
marginalidade, contudo, sem a clareza necessária para distinguir o trabalho educativo e
suas peculiaridades, além não de utilizá-lo como meio de promoção da busca pela
equidade, mas para a realização ou obtenção de alguma “compensação” ou “reparo” às
deficiências do Estado, sejam sociais, econômicas, culturais, etc.



808

Após as teorias não críticas, temos a explanação do autor no tocante às


concepções crítico-reprodutivistas – nome alusivo à concepção de escola dependente e
reprodutora da própria sociedade em que se estabelece. Saviani realiza apontamentos
sobre as principais teses dessa corrente enfatizando a “teoria do sistema de ensino como
violência simbólica”; a “teoria da escola como aparelho ideológico do estado (AIE)”, e
a “teoria da escola dualista”.
Na primeira, encontramos o marginalizado como integrante de todo “grupo ou
classe dominada”. Esta referida dominação se dá por intermédio da ausência dos
recursos materiais e culturais destas pessoas, constituindo-se na “violência simbólica”,
não passível de alteração, já que a educação formal, ramificação dependente e originária
de sua própria sociedade e contexto, atua na manutenção destas condições. Para Saviani
(2012, p. 20): “[...]a teoria não deixa margem a dúvidas. A função de educação é a de
reprodução das desigualdades sociais. Pela reprodução cultural, ela contribui
especificamente para a reprodução social”.
Sobre a escola como AIE, esclarece Saviani (2012, p. 23) que “[...] o fenômeno
da marginalidade inscreve-se no próprio seio das relações de produção capitalista que se
funda na expropriação dos trabalhadores pelos capitalistas. Marginalizada é, pois, a
classe trabalhadora”. Neste sentido, com a inculcação através de todos os aparelhos
ideológicos, incluindo-se dentre esses, a escola, a ideia de equalização social se torna
nula, já que cada instituição atua na afirmação e reprodução dos ideais da dominação.
Tratando-se da “teoria da escola dualista”, entende-se o fator de marginalização
associado ao próprio organograma e ação escolar, visto que a função desta instituição,
permeada pela ideologia burguesa, reforça os valores da dominação, considerando a
própria legitimidade da luta de classes e o fator preponderante da ideia de progresso,
como elementos repressores ao ideário proletário, elevando-se a ideia de “superação”
pela classe dominada, porém, negligenciando a luta de classes, através do disfarce
“pequeno-burguês”, como aponta Saviani (2012, p. 27-28) que:

No quadro da “teoria da escola dualista”, o papel da escola não é,


então, o de simplesmente reforçar e legitimar a marginalidade que é
produzida socialmente. Considerando-se que o proletariado dispõe de
uma força autônoma e forja na prática da luta de classes suas próprias
organizações e sua própria ideologia, a escola tem por missão impedir
o desenvolvimento da ideologia do proletariado e da luta
revolucionária. Para isso ela é organizada pela burguesia como um
aparelho separado da produção. Consequentemente, não cabe dizer
que a escola qualifica diferentemente o trabalho intelectual e o



809

trabalho manual. Cabe, isto sim, dizer que ela qualifica o trabalho
intelectual e desqualifica o trabalho manual, sujeitando o proletariado
à ideologia burguesa sob um disfarce pequeno-burguês. Assim, pode-
se concluir que a escola é ao mesmo tempo um fator de
marginalização relativamente à cultura burguesa assim como em
relação à própria cultura proletária.

Essa determinada e inalterável condição escolar se homogeneíza com as


perspectivas primárias dos críticos-reprodutivistas, já que estes, apesar de entenderem a
escola integralmente como aparelho da e para a burguesia – com a ressalva na teoria
AIE da “escola dualista”, que acrescentam o “duplo” fator de marginalização (para o
proletário e a própria burguesia) –, não acreditam em sua utilidade como auxiliar à
transformação da sociedade, compreendendo este âmbito como uma instância da própria
cultura capitalista, que se realiza por intermédio de seus mecanismos.
Aponta Saviani (2012, p. 29) que essas teorias: “Empenham-se, pois, em mostrar
a necessidade lógica, social e histórica da escola existente na sociedade capitalista,
pondo em evidência aquilo que ela desconhece e mascara: seus determinantes
materiais”. Além disso, não apresentam propostas pedagógicas pela certeza de sua
inutilidade em relação a uma possível conscientização dos educandos.

1.2 Marginalidade e a contemporaneidade: a ilusória inclusão

Saviani apresenta a marginalidade dentro das teorias educacionais, analisando-as


com precisão e evidenciando que internamente não poderiam resolver este problema, já
que o primeiro grupo (teorias não críticas) objetivava ingenuamente a superação desta
condição, sem, entretanto, dispor dos instrumentos essenciais para esta mudança. O
segundo (crítico-reprodutivistas) argumenta sobre os motivos do não êxito. (SAVIANI,
2012).
Evidentemente, a expansão escolar seria determinante a diminuição e posterior
extinção da marginalidade, já que ofereceria aos membros de toda a sociedade a
oportunidade de acesso à sala de aula, conteúdos, a história, e todos os elementos
necessários à transformação de sua situação de dominado. Contudo, alguns fatores
devem ser pesados para o esclarecimento desta perspectiva.
Esta lógica da quantificação sem a proporcional qualificação nos leva a ideia de
maximização das demandas produtivas, isto é, o pensamento fabril-industrial,
transferindo a razão e o formato capitalista para a escola – ideários difundidos



810

especialmente no período civil-militar no Brasil de 1964 a 1985 – emergindo-se como


solução social. Isso significar dizer que, o processo de inclusão escolar implica em um
único ponto: a superlotação de instituições como forma de combate e diminuição da
marginalização. Esta forma de trato com a educação leva-nos a duas consequências
incontestáveis: primeiramente, a urgente ampliação de cursos de formação (fato
extremamente bem aproveitado pelo “mercado” educacional) para o avolumamento da
demanda de professores e professoras que possam dar conta desta expansão e a massiva
inclusão estudantil na Educação Básica pública sem respeitar as devidas condições
estruturais e humanas para tal situação.
Relativo ao primeiro tópico, verificamos, a cada dia, o oferecimento de mais
cursos presenciais ou à distância, cada vez mais aligeirados, levando-nos a crer que, no
tocante à qualidade, o encurtamento dessas trajetórias pode significar a diminuição dos
atributos para os futuros profissionais da educação e sua carga de estudos, inserindo-os
em sala de aula sem condições mínimas para a escolarização coerente com demandas
sociais. Posteriormente, entendemos o fenômeno da desproporcional distribuição do
alunado, à luz daquilo que Kuenzer (2005) denomina “inclusão excludente”, isto é, uma
forma de oferecer o acesso através da legalidade do direito, mas negar a legítima
possibilidade de emancipação do educando. Segundo a autora:

[...] as estratégias de inclusão nos diversos níveis e modalidades da


educação escolar aos quais não correspondam os necessários padrões
de qualidade que permitam a formação de identidades autônomas
intelectual e eticamente, capazes de responder e superar as demandas
do capitalismo; ou, na linguagem toyotista, homens e mulheres
flexíveis, capazes de resolver problemas novos com rapidez e
eficiência, acompanhando as mudanças e educando-se
permanentemente. (KUENZER, 2005, p. 92).

Se a escola não pode oferecer a qualidade necessária ao progresso de cada aluno,


entendendo este (progresso), como sua conscientização a respeito de sua intervenção na
sociedade, como ser esclarecido, provido de criticidade, e condições de apreender
influências ao seu redor, como a política, mídia, poder público, não cumprirá sua função
social primordial e contribuirá para a manutenção desse sistema, como alegam os
crítico-reprodutivistas.
Nesse caso, corre-se o risco do deslocamento da ideia de marginalizado às
pessoas ou grupos, apreendendo-se um panorama de “escola marginalizada” pelo
Estado e suas políticas – negligenciadas ou mesmo, ausências destas (políticas) – que



811

têm a responsabilidade de fiscalizar, avaliar e qualificar as instituições e seus


profissionais, e também emerge a ideia da “escola marginalizadora”, situando-se como
um âmbito que não pode oferecer nada mais que a ideologia “pequeno-burguesa”, como
consequência do esquecimento e desatenção deste próprio Estado.
Por isso, ainda nesta escola, encontramos um núcleo confuso e conflitante, já
que a função do profissional de educação, na esfera pública, é lutar pela melhoria do
processo educativo e com isso, a ascensão da classe trabalhadora, através de sua prática
pedagógica, o que, porém, torna-se inviável, com suas formações precárias e
aligeiradas, como supracitado, formações continuadas ritualísticas e burocratizadas, e a
constante desvalorização de sua função, bem como de seu âmbito de trabalho. Dessa
forma, o processo de ensino e a formação dos jovens tornam-se secundarizadas, já que o
discursivismo e a doutrinação político-ideológico tornam-se primárias dentro deste
organograma educacional.
Faz-se necessário esclarecermos aqui, que não se trata de negar os
condicionantes políticos e a necessidade de seu debate no interior da escola. Mas, antes
disso, enfatizar e efetivar aquilo que Saviani denomina como conteúdos clássicos, para
que, partindo destes saberes, qualifiquem-se as argumentações e entendam-se as
relações entre educação, política e sociedade. Caso, contrário, verificaremos mais uma
marginalização: “do processo educativo”.

2 Conhecimento, Educação Básica e Ensino Superior: articulações necessárias

A condição do conhecer implica em uma série de responsabilidades, fatalmente


ligadas às mentes que, por este privilégio, devem contribuir ao desenvolvimento
humano. O saber pauta-se na apreensão complexa e aprofundada da realidade, isto é, o
entendimento de que aquilo que vemos é apenas uma das possíveis facetas analíticas de
determinado objeto, ideologia, ação.
Apreender está associado à capacidade expansiva de reflexão, visto que
conceitos, símbolos, aparências constroem significações superficiais e que, em suma,
podem não sintetizar a essência daquilo que averiguamos, já que o visual, dotado de
concreticidade, não tem condições, por si só, de nos evidenciar suas dimensões
abstratas, subjetivas, entendendo-se estas como o que não se pode mensurar.
Nesse caso, queremos enfatizar a importância do pesquisador e do professor,
como capacitados a intervirem nesta realidade como mediadores, partindo de premissas



812

constatadas por intermédio de aprofundamento teórico e prático e que se tornam a base


dos conhecimentos presentes na escola ou em qualquer instituição que tenha como
objetivo o processo educativo qualificado.
Os trabalhos produzidos nas instituições de ensino superior (IES), por meio da
pesquisa científica, devem ser difundidos massivamente em seu próprio âmbito, bem
como na Educação Básica entre os segmentos Infantil, Fundamental e Médio, e suas
modalidades, qualificando o ofício destes profissionais (da Educação Básica) que, em
contrapartida, devem buscar atualizações neste segmento (Ensino Superior), além de
socializarem seus conhecimentos experienciais em simpósios, congressos, seminários,
como elementos fundamentais para a potencialização e aproximação das investigações
oriundas nas IES, as necessidades educativas de todos os segmentos. Segundo Rosa e
Pinheiro (2012, p. 4):

[...] o conhecimento não circula apenas na academia como um grande


centro “avatar” em que os alunos saem, colhem informações e voltam
com possibilidades para o aperfeiçoamento de suas investigações que,
muitas vezes, ficam expostas em bibliotecas ou acervos virtuais com
pouca utilidade. Antes pelo contrário, se o ensino, a extensão e a
pesquisa forem articuladas com as reais necessidades sociais e
culturais é possível construir um circuito interativo, produzindo outros
conhecimentos a partir da experiência. E essa é uma das funções das
universidades que é instituída e empoderada a convocar seus
professores para tal articulação. Tal movimento não se dá apenas neste
ou naquele nível do ensino superior, ou seja, a pesquisa e a extensão
precisam compor os níveis de graduação e pós-graduação sob pena de
distanciar ou de desfazer a tríade constituída.

Isso implica dizer que o distanciamento entre ensino, pesquisa e extensão pode
ser preponderante à não qualificação de práticas em sala de aula, ou em outra instância
escolar, já que este âmbito depende, dentre outros saberes, daquilo que se produz em
bancos universitários, que, porém, não podem se aproximar da realidade do processo
educativo, se não interagirem com os saberes experienciais.
Afirmamos ainda a inevitabildiade e necessidade de aproximação dos
profissionais da educação de todos os segmentos à pesquisa, já que sem esta articulação
qualquer fator externo – como as pesquisas sobre o cotidiano escolar – será sempre
identificado como invasivo ou mesmo incorente do ponto de vista da particularidade de
cada educador, devendo isto ao fato da produção não estar relaciana ao seu próprio
cotidiano escolar.



813

Neste sentido, o único caminho viável é a unificação dos trabalhos referentes à


prática pedagógica, compreendendo que a intervenção qualificada só pode insurgir por
intermédio da articulação do trabalho de pesquisa, ensino e extensão, isto é, considerar
os elementos emergidos na rotina educativa como caminhos da exploração e não
fragmentos descontínuos e objetificados, considerados símbolos para produções
acadêmicas, mas não de qualidade de ensino.
Necessitamos esclarecer ainda que, não entendemos a sala de aula como
labóratório de experiências e não queremos relativizar o processo de escolarização à
pesquisa, nem tampouco, o inverso. O que almejamos nesta perspectiva é argumentar a
respeito da necessidade daqueles que estão em sala de aula diariamente entenderem que
seu trabalho está inevitavelmente associado à matriz e ao resultado da pesquisa, e o
pesquisador, por sua vez, perceber-se como um parceiro do profissional do ensino, que
objetiva as mesmas metas, a qualificação da educação.

3 Conhecimento, docência e libertação através da escola

Nossa concepção de libertação corrobora com a concepção de Saviani,


simbolizada pela célebre e lúcida reflexão no tocante a condição de superação –
superar-se no sentido do distanciamento da situação de explorado –, acima de tudo, das
classes desfavorecidas dentro do sistema capitalista: "[...] o dominado não se liberta se
ele não vier a dominar aquilo que os dominantes dominam. Então, dominar o que os
dominantes dominam é condição de libertação". (SAVIANI, 2007, p. 61)
Nesse ponto, devemos afirmar que é somente por intermédio da apropriação
daquilo que denominados herança cultural produzida pela humanidade, organizada e
ramificada entre os conteúdos disciplinares que teremos a possibilidade de nos enxergar
como seres dinamicamente interventores, em nosso espaço e tempo.
Saviani defende a ideia de que a educação pode auxiliar no processo de
conscientização dos mecanismos que podem nos conduzir a uma nova forma de viver e
apreender nossa realidade, por isso o processo educativo deve estar voltado ao
aproveitamento daquilo que a comunidade oferece, aliando-se às ciências desenvolvidas
historicamente em cada área do saber. Para o autor:

A escola existe, pois, para propiciar a aquisição dos instrumentos que


possibilitam o acesso ao saber elaborado (ciência), bem como o



814

próprio acesso aos rudimentos desse saber. As atividades da escola


básica devem se organizar a partir dessa questão. Se chamarmos isso
de currículo, poderemos então afirmar que é a partir do saber
sistematizado que se estrutura o currículo da escola elementar.
(SAVIANI, 1984, p. 3).

A escola, como âmbito formal, mas, antes disso, social, é dotada de profissionais
da educação que buscam o pleno desenvolvimento dos sujeitos da educação – o alunado
– e desta forma, buscam desenvolver em seu ofício as qualidades necessárias para
atender estes educandos da melhor maneira.
Obviamente, não podemos negar que a sala de aula é o ponto ápice da formação
discente e este caminho da libertação tem no professor o referencial primário, que
poderá contribuir solidamente para a apropriação de conhecimento por estes alunos, por
intermédio de sua prática social, em síntese, simbolizando a principal possibilidade de
“apropriação dos instrumentos” necessários para o acesso ao “saber elaborado”. Diz
Saviani (2012, p. 80):

Tal contribuição consubstancia-se na instrumentalização, isto é, nas


ferramentas de caráter histórico, matemático, científico, literário etc.,
cuja apropriação o professor seja capaz de garantir aos alunos. Ora,
em meu modo de entender, tal contribuição será tanto mais eficaz
quanto mais o professor for capaz de compreender os vínculos da sua
prática com a prática social global. Assim, a instrumentalização
desenvolver-se-á como decorrência da problematização da prática
social, atingindo o momento catártico que concorrerá na
especificidade da matemática, da literatura etc., para alterar
qualitativamente a prática social de seus alunos como agentes sociais.

Fica claro que a condição de libertação só pode se efetivar se o professor se


conscientizar de seu papel fundamental, considerando os vínculos de sua própria
prática, a prática social global, concentrando-se rígida e seriamente em sua atividade
pedagógica, seus instrumentos, objetivos, que se constituirão no caminho de libertação
do aluno. Além disso, suas reivindicações sobre justos direitos e qualificação das
estruturas escolares, bem como sobre qualquer direito social negligenciado, devem ser
feitas concomitantemente à realização de seu ofício, para evitar o risco de secundarizar
sua majoritária função: escolarizar com a máxima qualidade possível e para isto é
preciso fazer com responsabilidade, afinco e cobrar com veemência.
Esta libertação do aluno, grupo, associa-se obrigatoriamente à ideia de que o
educador deve entender que o único caminho possível para a ascensão da classe
trabalhadora é sua apropriação consciente das ferramentas necessárias à compreensão de



815

sua condição histórica, isto é, deve-se priorizar o efetivo trabalho pedagógico para esta
meta, e evitar o ideologismo que, por si só, não pode propiciar o entendimento da
realidade material aos educandos, tornando-se apenas discursivismo. É somente com o
domínio – condição de utilização – dos conteúdos clássicos, de todas as ciências, e
reflexão sobre estas que a libertação ocorrerá, não como em uma “escola redentora”,
mas uma escola responsável e comprometida com os anseios da comunidade.

3.1 Conhecimento e emancipação

Acreditamos que o fim último desta almejada libertação, encontra-se na concreta


emancipação humana, isto é, em uma real condição de apreensão de sua realidade
individual e coletiva, compreendendo-se como ser interventor, transformador, criador.
Emancipar-se é, em outras palavras, a tentativa de livrar-se das arramas, paradigmas,
dogmas ou qualquer outro estado que nos alienie de nossa própria existência.
Corroboramos a Nunes, que evidencia esta ação emancipatória de maneira
categórica, primando pelo esclarecimento desta possibilidade para nosso ser, em todas
as suas dimensões e perspectivas, trazendo à tona, a necessidade de lucidez e reflexão
de nossas próprias atitudes que, de fato, podem se ressiginifcar por intermédio do saber.
Segundo o autor:

A ação emancipatória torna-se efetiva quando articula a teoria, a


reflexão analítica, com a ação consistente, metódica, politicamente
determinada com a intencionalidade propositiva. Chamamos
emancipatória a perspectiva que visa produzir autonomia crítica,
cultural e simbólica, esclarecimento científico, libertação de toda
forma de alienação e erro, de toda submissão, engodo, falácia ou
pensamento colonizado, incapaz de esclarecer os processos materiais,
culturais e políticos. Ao mesmo tempo que liberta, aponta a
emancipação, significa também a prática da autonomia ética, o ideal e
o propósito de constituir valores que justifiquem nossas condutas
morais, indica ainda a responsabilidade social pelas escolhas e opções
que fazemos, até constituir-se num ideal de elevação estética. De
cultivo de ideais justos e carregados de generosa identificação com o
que é bom, belo, adequado, o ideal de realização estética para todos.
Por fim, emancipação significa coerência, autonomia, convicção e
libertação política, a constituir-se em grupos e comunidades de
pessoas esclarecidas pela ciência e motivadas pelos ideais e virtudes
coletivas. (NUNES, 2003, p. 35).

Esta perspectiva, como aponta o autor, articula o conhecer teórico, a ação e,


neste caso, assegurada pela constante reflexão. A emancipação não se reduz a um



816

comportamento, aliás, se caracteriza pela suplantação de padrões, paradigmas,


doutrinações, almejando a autonomia de cada ser em seu espaço/tempo, e como grande
dimensão humana, é dependente, e constituída em nossas vivências, através de todos os
ambientes e contextos por nós situados, e, especialmente, na escola.
A educação formal, como elemento necessário à formação humana, atua
dinamicamente em auxílio a este processo, complementando, aproveitando,
reorientando e potencializando saberes por nós apropriados informalmente. Contudo,
não pode ser considerada única e nem ao menos majoritária no processo educativo, já
que o exercício desta escola, não é outro diferente de escolarizar.
Por isso, a emancipação só pode ser atingida por intermédio da articulação
pacífica, paciente, adulta, esclarecida, entre família, escola, poder público, além do
cuidado e esclarecimento do que há de positivo em relação a discursos, teorias ou fatos
oriundos e disseminados por “aparelhos ideológicos” como as mídias, âmbitos
religiosos ou qualquer outro espaço de socialização, etc.
Apesar dessas colocações, reiteramos a escola, por sua especificidade, como
único local capaz de propiciar a gestação desta possibilidade de emancipar, já que é
somente nesta que se evidenciam os utensílios capazes de embasar nossa ação e o
conhecimento da história e seus determinantes, para nós, a única forma coerente de
legitimar a função social escolar.

Considerações Finais

Por intermédio destes estudos, não nos fica difícil afirmar que a prerrogativa da
obtenção de conhecimentos para a melhoria da vida, mesmo que repetitiva, não deixa de
ser uma verdade inquestionável. Contudo, este conhecer, para nós, não se associa à ideia
reducionista de mecanização ou mesmo memorização de saberes, mas às condições de
melhoria que este saber oferece a nossa existência.
Compreender nosso “papel” como social e culturalmente construído, em
decorrência de nossas experiências, torna-se essencial do ponto de vista crítico, já que
só a tomada de consciência deste “papel” pode nos oferecer a chance de discernirmos se
aquilo que expressamos e realizamos, condiz com um interesse coletivo,
verdadeiramente social, que demanda originalmente a negação do individualismo.
Este discernimento, em nossa forma de ver, só se obtém por intermédio dos
conteúdos clássicos, e seus instrumentos, como esclarece Saviani, e, para isto, a



817

potencialização educacional é a chave e ponto de partida para o despertar da criticidade,


que vislumbra a autonomia e consciência da própria condição de ser histórico em
constante transformação.
Sobre nossa questão norteadora para este trabalho, entendemos que a
apropriação e uso do saber para nossa emancipação só pode ser considerada efetiva se
este saber e posterior ação estiverem vinculados à criticidade e ao poder de reflexão
permanente e contínuo, concebendo este pensar como estado primário da percepção de
nossas características, direcionamentos e particular humanidade.
Complementa-se ainda, como anteriormente refletido, que libertação e
emancipação não podem ser objetificadas, coisificadas, em outras palavras, libertar-se e
emancipar-se são acima de tudo, conscientizações de nossa vivência provisória,
inacabada, contínua e que necessita, a cada momento, regenerar-se e reinventar-se para
além da mundanidade, para a transcendentalidade.

Referências

KUENZER, A. Exclusão includente e inclusão excludente: a nova forma de dualidade estrutural


que objetiva as novas relações entre educação e trabalho. In: LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D.;
SANFELICE, J. L. Capitalismo, trabalho e educação. 3. ed. Campinas, SP: Autores
Associados, HISTEDBR, 2005.

LOMBARDI, J. C.; SAVIANI, D.; SANFELICE, J.L. (Orgs.). Capitalismo, trabalho e


educação. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2005.

MOITA, F. M. G. S. C.; ANDRADE, F. C. B. Ensino-pesquisa-extensão: um exercício de


indissociabilidade na pós-graduação. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 14, nº
41. Ago. 2009.

NUNES, C. Educar para a emancipação. Florianópolis, SC: Sophos, 2003.

ROSA, S. M. O.; PINHEIRO, C. G. A “nova” aliança entre a educação básica e o ensino


superior: um avatar científico ou uma prática discursiva necessária? IX ANPED SUL.
Seminário de Pesquisa em Educação da Região Sul, Universidade de Caxias do Sul, 2012.

SAVIANI, D. Sobre a natureza e especificidade da educação. Em aberto, Brasília, ano 3, n.


22, jul./ago. 1984.

______. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a
educação política. 39. ed. Campinas: Autores Associados, 2007.

______. Escola e democracia. 42. ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2012.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO: POSIÇÕES EM DEBATE

Rosinery Pimentel do Nascimento (UFES)1


Tatiana Gomes dos Santos Peterle (UFES)2

Resumo: Esse trabalho objetiva abordar alguns enfoques que têm sido difundidos ao longo do
processo histórico no campo educacional de modo que possamos sinalizar tendências, de forma
sintetizada, e algumas visões, retratadas por alguns autores em nossa contemporaneidade que
versam sobre a temática do Sistema Nacional de Educação (SNE). Com base em autores
orientados por uma concepção marxiana, optamos pelo materialismo histórico-dialético o qual
compreende a história com base no desenvolvimento material. Consideramos assim, a partir do
movimento do real que se faz necessário levantar proposições que sinalizem possibilidades de
consolidar uma proposta de SNE que se efetive, retirando essa questão de séculos perdidos
numa história idealizada.

Palavras-chave: Sistema Nacional de Educação; história da Educação; Organização da


Educação Nacional.

Introdução

As problematizações deste artigo apresentam aspectos históricos no que tange


aos impasses na consolidação do SNE e a difusão de conceitos em torno da definição de
um SNE. Este movimento busca identificar as rupturas e permanências na história
educacional do país, bem como a compreensão dos legados deixados em cada época que
se relacionam à organização da educação nacional no Brasil. Desse modo uma análise
que leve em conta o movimento dialético do real faz-se importante na medida em que
nos oferece uma compreensão mais ampla dos condicionantes e das condições objetivas
que se impõe no contexto atual e nas relações estabelecidas na esfera política.
Assim, trazer a questão colocada em torno da organização de um Sistema
Nacional de Educação torna-se fundamental, pois suscita o interesse em novas
problematizações à temática, haja vista que, conforme Saviani (2008), a constituição do
SNE marcou a história da educação brasileira no Século XX. Contudo, o que vemos é


1
Rosinery Pimentel do Nascimento, Mestrado em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil, rose@rosenerypim.com
2
Tatiana Gomes dos Santos Peterle, Mestranda em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo,
Brasil, tgs.peterle@hotmail.com


819

que o desafio tem perdurado em pleno Século XXI, sem uma definição mais precisa
para a construção.
Desde o final do Império já se idealizava uma organização nacional para o
ensino, mas somente na república (1889), que a educação brasileira apontou um
horizonte de esperanças para a organização de uma Educação Nacional. No âmbito dos
estados, podemos situar o estado de São Paulo que definiu ações na direção de um
sistema orgânico nacional por via da reforma de instrução pública paulista na tentativa
de abranger os ensinos primários, normal, secundário e superior, mesmo não se
consolidando tornou-se referência para outros Estados.
Na década seguinte temos um período marcado pela cultura do “novo3”,
expressada por um movimento de reformas. Destaca-se nesse período a tentativa de
institucionalização da política educacional por meio da criação do Ministério da
Educação e Cultura (MEC), que propõe uma articulação da educação com a política;
outro ponto relevante foi o manifesto dos Pioneiros que de acordo com SAVIANI
(2006) foi um importante legado, expresso como documento doutrinário e de política
educacional, constituindo-se num marco, influenciando o texto da Constituição de 1934,
visto que “estabeleceu como competência da União- fixar o Plano Nacional de
Educação, compreensivo de todos os graus e ramos, comuns especializados; e coordenar
e fiscalizar a sua execução, em todo território do país”. (BRASIL, 1934, p.35).
Esta posição evidencia a tentativa de uma organização nacional, prevendo o
estabelecimento de diretrizes que abrangesse o território brasileiro. Nesse sentido de
1930 a 1971, as reformas tiveram um cunho nacional influenciando diversos setores da
sociedade. O Brasil não tinha um sistema de educação definido, compreendendo que:

No Brasil muito ainda estava por ser feito. Apesar da introdução do


grupo escolar desde fins do século XIX, este era um modelo restrito a
poucas cidades em todo país [...]. Propor a renovação escolar no Brasil
tinha então o interessante aspecto de a renovação ser feita numa
realidade em que a escola ainda se fazia pouco presente, não havia
uma tradição acumulada de escolarização ampliada na qual a maioria
da população pudesse identificar os sinais de esgotamento. As críticas
mais elaboradas somente foram possíveis por parte do restrito grupo
que teve acesso a uma vivência escolar. (VEIGA, 2007, p.272).


3
Confere ao termo cultura do novo o contexto marcado pelas reformas na revolução de 30, o movimento
escola nova, o estado novo, retratados no artigo “O novo, o velho, o perigoso: relendo a cultura brasileira
- contido na obra: - “A escola e a república e outros ensaios” de Carvalho (2003).



820

A mentalidade republicana carregava a ideia de civilizar a sociedade,


constituindo um processo de homogeneização cultural, vendo na escola campo fértil
para favorecer a formação do novo homem da sociedade moderna. Esse contexto marca
a complexidade que permeia a educação brasileira e a relação direta do processo de
escolarização com o desenvolvimento econômico e de constituição do próprio Estado
brasileiro, tensionado num campo marcado por ideologias e interesses da classe
burguesa.
Nesse sentido, é importante questionar: porque não foi possível no Brasil a
construção do SNE? Vale destacar que a História da Educação Brasileira integra uma
série de conjunturas, políticas, sociais e históricas que constituíram a sua organização
educacional em tempos diferenciados de desenvolvimento, identificando condições
distintas na construção do processo de consolidação dos Sistemas Nacionais de
Educação, contrastando com países na Europa, na América do Norte e na América
Latina a exemplo do Chile, Argentina e Uruguai que constituíram seus Sistemas
Nacionais de Educação entre os séculos XIX e XX. No Brasil está questão atravessou o
final do império até os dias atuais não consolidando uma educação para todos e
tampouco erradicando o analfabetismo no país. Logo, a criação do SNE foi adiada.
Dessa forma podemos afirmar, com base nas palavras de Anísio Teixeira em um artigo
publicado em 1953, com o título “A crise Educacional brasileira4” que:

Durante toda a monarquia, a expansão do sistema escolar se fez com


inacreditável lentidão. A consciência dos padrões europeus era muito
viva, para que se pensasse poder abrir escolas como se abrem lojas ou
armazéns. Por outro lado, o desenvolvimento do país era tão lento e as
condições até a Abolição, de certo modo, tão estáveis, que a nação não
se ressentiu demasiadamente da escassez de sua armadura
educacional. Com a Abolição e a República, entramos, porém, no
período de mudanças sociais, que a escola teria de acompanhar. O
modesto equilíbrio dos períodos monárquicos, obtido em grande parte
às custas da lentidão do nosso progresso e do número reduzido de
escolas, em que se buscava conservar a todo transe os melhores
padrões, rompe-se definitivamente, e começamos a expandir o sistema
escolar, sem maior reflexão nem prudência. (TEIXEIRA, 1953,
p.314).

A partir desse cenário, ficam reveladas as rupturas e os impasses postos na época


para a consolidação e organização de um SNE marcando uma trilha de indefinições,


4
Publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 19, n. 50,abr./jun.1953.Reimpressão
realizada pela revista Est. pedag., Brasília, v. 80, n. 195, p. 310-326, maio/ago. 1999.o artigo preserva as
características da publicação original.



821

imprecisões e omissões, que resultou ao longo da história em uma educação de


privilégios para as elites, em que tivemos secundarizado o plano de uma educação que
se efetivasse para todos.
Cabe ressaltar, que este processo apresentou muitas contradições, configurando
um cenário que inaugurava a independência nacional (1822) e a coexistência de um
regime escravocrata que perdurou até 1888, numa base centralizada pelas decisões do
governo central, observamos um deslocamento da escola como meio para assegurar os
aspectos econômicos e políticos, que identificava a concepção de SNE, associado à
expressão de um espírito nacional ligado aos processos de modernização.
Assim, este processo elucidou dificuldades estruturais, conceituais e ideológicas.
As questões estruturais refletiram nos aspectos econômicos ao longo da história na
vinculação e desvinculação dos recursos para com a educação pública demarcado em
nossas Constituições, e no âmbito político com as descontinuidades nas políticas
educacionais, identificadas nas reformas educativas, criando um movimento pendular,
reforçando a tensão entre centralização e descentralização do ensino. Nesse bojo, as
dificuldades conceituais e ideológicas decorrem das influências das correntes
pedagógicas que definem as concepções de mundo, de homem e sociedade delineando o
projeto educativo, em que tivemos como influência uma visão tradicional, liberal e o
cientificismo, ressaltando que a visão liberal baseava-se na não intervenção estatal e as
orientações cientificistas pautadas em princípios positivistas que afirmavam a
desoficialização do ensino. Essas correntes sinalizaram obstáculos para a consolidação
do SNE, compreendendo que: “uma ideia monolítica é tão avessa à ideia de sistema
como uma multiplicidade desarticulada”, de modo que um SNE busca constituir um
todo articulado. Nesse debate, decorrem das desigualdades econômicas e sociais, bem
como os investimentos periféricos de recursos técnicos e financeiros que separavam a
educação dos ricos e dos pobres. (SAVIANI, 2009, p.63).
É importante considerar que o papel desempenhado pelo Estado educador
assumiu várias faces e fases no Brasil, sendo, inclusive, ponto de dissenso por grupos
políticos que não concordavam com essa intervenção. Com isso, de acordo com Saviani
(2007, p. 168), as dificuldades para a constituição do SNE no Brasil se apresentaram no
plano das condições materiais e nos aspectos representados pela mentalidade
pedagógica, com forte influência sobre os fins e os meios para o alcance da organização
nacional da educação.



822

Desse modo, no Brasil o contraste estabelecido com relação a grande parte dos
países, principalmente os europeus, que conseguiram consolidar os seus sistemas
educacionais e difundir a escola pública, trouxe para o Brasil consequências,
compreendendo que:

Tal opção contribuiu para que a nossa história educacional fosse


tributária de políticas públicas, cuja marca tem sido a da exclusão,
revelada pelo, ainda, alto índice de analfabetismo, pela pouca
escolaridade dos brasileiros, pelo frágil desempenho dos estudantes,
pela não universalização da educação básica e não democratização de
acesso à educação superior. Tudo isso resultando de uma lógica
organizativa fragmentada e desarticulada do projeto educacional do
país. (GRACINDO, 2010, p. 54).

Assim, as dificuldades estruturais, conceituais e ideológicas apontadas


colaboram para pensar a educação brasileira em um contexto ampliado, com a devida
atenção para as formulações colocadas, na busca de obter clareza sobre quais diretrizes
defendemos e quais direções estamos definindo para a educação brasileira, uma vez que
toda política se configura num campo tênue de tensões, interesses, num processo
intenso de correlações de forças, expresso de modo dinâmico e plural, caracterizando
um ciclo constante de formulações políticas na implementação das políticas
educacionais.

2 Algumas definições e enfoques sobre o SNE

Como aporte teórico-metodológico, orientados por uma concepção marxiana,


utilizaremos o materialismo histórico-dialético o qual compreende a história com base
no desenvolvimento do real, e definido por Saviani (2000, p. 102) como uma
possibilidade de “compreensão da história a partir do desenvolvimento material, da
determinação das condições materiais da existência humana”.
Dialeticamente, nos cabe observar, que a escolha dos princípios políticos
doutrinários para a construção de um SNE terão implicações para a promoção da
qualidade social e para a superação do desafio de uma educação nacional. Portanto,
objetivamos nesse trabalho registrar alguns enfoques, difundidos ao longo do processo
histórico no campo educacional, de modo que possamos sinalizar tendências, de forma
sintetizada, e algumas visões, retratadas por alguns autores em nossa
contemporaneidade que versam sobre essa temática.



823

Identificamos que, muitos estudiosos e educadores, têm dedicado pesquisas e


análises com variados enfoques sobre a temática, dos quais podemos destacar alguns
autores, como Saviani (2008), Cury (2010), Abicalil (2010) e Frago (2001). Sendo
assim, faz-se necessário discutir e analisar os diferentes enfoques na definição de um
SNE. Entre as abordagens, podemos citar o pensamento de Cury (2008) e Saviani
(2008) que se coadunam com a possibilidade de uma organização de educação e não um
SNE, no entanto Cury (2008) destaca uma análise mais jurídico política, sinalizando os
desafios das contingências históricas do pacto federativo e as dificuldades em se
estabelecer um federalismo cooperativo, destacando que:

Um sistema de educação supõe, como definição, uma rede de órgãos,


instituições escolares e estabelecimentos – fato; um ordenamento
jurídico com leis de educação – norma; uma finalidade comum valor;
uma base comum – direito. Esses quatro elementos devem coexistir
como conjunto, como conjunto organizado, como conjunto organizado
sob um ordenamento, como conjunto organizado sob um ordenamento
com finalidade comum (valor), sob a figura de um direito. (CURY,
2008, p.18).

Sendo assim, afirma-se uma perspectiva pautada no direito à cidadania e à


educação, retratada pelo que o autor considera como um “federalismo autêntico” que
busque a redução das desigualdades e promova a consolidação de uma educação mais
justa e de qualidade, pautada no direito à cidadania, ao direito à educação. Outra
definição indicada, sobre essa temática é a elaborada por Saviani (2008, p. 77),
assumindo uma abordagem mais filosófica, definindo o sistema como uma unidade na
diversidade, tornando necessária a articulação de elementos diferentes, afirmando que
não pode haver sistema de educação sem educação sistematizada, destacando os
seguintes itens para caracterizar a noção de sistema: a)-intencionalidade; b)-unidade; c)-
variedade; d) coerência interna; e)-coerência externa.

2 Distinguindo os termos: estrutura e sistema

De início situamos que por Estrutura entendemos, segundo Saviani (2010, p.


380) como resultado coletivo “inintencional de práxis intencionais individuais” e por
Sistema o “produto da ação sistematizada, isto é, da capacidade humana de agir
intencionalmente segundo objetivos previamente formulados, o sistema educacional é
resultado da educação sistematizada”.



824

A compreensão dos termos nos permite ampliar nossa visão quanto às relações,
complementaridades dos termos, bem como a distinção de sentidos e significados no
campo educacional, nos permitindo relacionar os usos e desusos dos termos nas
variáveis que se apresenta, pois quando toma-se a expressão estrutura do sistema
educacional fica reduzida a noção de sistema que não inclui um caráter sistematizado da
educação, compreendendo que a estrutura: “Comporta-se como um sistema que o
homem não fez (ou fez sem o saber). Além disso, o sistema aparecerá ao outros (que
não o fizeram) como caráter de estruturas que serão por eles modificadas”. (SAVIANI,
2008. p. 91).
Fazendo essa distinção não há que descartar a relação da estrutura na
constituição de um sistema, considerando que nelas estão a possibilidade de
intervenção, atuando de modo sistematizado, direcionado à reflexão que integre as
necessidades educacionais numa análise local e total. Assim a construção de um sistema
inclui uma articulação com o contexto social, histórico e político, resultado da ação
sistematizada pelo homem. Nesse sentido de acordo com Saviani (2008), “para se ter
um sistema educacional - deverá preencher três requisitos apontados a saber:
intencionalidade (sujeito-objeto), conjunto (unidade-variedade), coerência (interna-
externa)” (p.86).
Nessa proposição, o sistema assume um caráter dialético, considerando que é
preciso “atuar de modo sistematizado no sistema educacional para que ele continue
sendo “sistema”; do contrário, ele irá se degenerar em “estrutura”. A formalização da
prática conduz a esse risco que, na época atual, está caracterizada no burocratismo”.
Nessa direção o sistema requer uma intencionalidade, uma atividade coletiva, que não
se resume apenas a um conjunto de unidades escolares ou redes de ensino. (SAVIANI,
2008, p.91).
Na composição desse debate, Abicalil (2010), subsidiado pelas posições de Cury
(2010) e Saviani (2008), reforça as permanências que estão presentes e que constituem
os obstáculos para a organização do SNE e aponta para a necessidade de instrumentos
de avaliação para os problemas da política pública, a exemplo do Plano Nacional de
Educação (PNE) e do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Chamando a
atenção para o conceito de educação que validamos, resgata, em suas análises, a
relevância da Conferência Nacional de Educação (Conae) como ação política
importante para a promoção de iniciativas educacionais, afirmando que, “[...] Se, por
um lado, o pressuposto inicial deste tema é a ausência, por outro, é a experiência



825

histórica. Daí o desafio. O imperativo da construção se coloca sobre uma complexa


realidade de relações no interior de cada um dos termos e entre eles:
educação/Estado/sociedade”. Assim, o autor defende ampliação dos processos de gestão
e a afirmação da diversidade como valor, o direito à igualdade como princípio, e a
unidade como fio condutor. (ABICALIL, 2010, p. 79-98).
Dentre as análises temos também a direção tomada por Fernandes (1983),
registrando nos seus estudos a abordagem sistêmica aplicada a educação, contemplando
um macrossistema educacional, cumprindo o que lhe foi destinado a partir de dois
sistemas “o político educacional que prevê a orientação dos meios a definição dos
rumos da educação e o educacional que realiza a aplicação dos meios. Os elementos
básicos que caracterizam essa abordagem estruturam-se na ideia de (entrada- processo-
saída) e são considerados parâmetros essenciais para a configuração do sistema. Sendo
assim:

Ao determinar metas, fases, recursos, condições de execução e


prioridades, a estratégia educacional permite a nação organiza-se no
sentido de passar à ação, ou seja, fazer funcionar o seu sistema
educacional nesta ou naquela direção, fixada pelo sistema político
educacional, entendido, também, como uma das posturas do sistema
político. (FERNANDES, 1983, p. 21).

Essa formulação refere-se a uma indicação de um modelo de educação,


característico de uma perspectiva funcionalista defendida por Parsons5, que confere uma
visão de sistema global subdividida em subsistemas interdependentes com o papel da
conservação do equilíbrio social, utilizando-se do mercado como mecanismo para
manter a ordem, a partir de um contínuo ajustamento dos interesses vigentes, o que
tende a reforçar a lógica de um Estado sistêmico em que, segundo Bobbio (1987), se
assume uma relação entre as instituições políticas e o sistema social, representado no
seu conjunto numa relação de demanda e resposta (input-output), identificando nesse
modelo sistêmico uma concepção mecanicista instaurada desde o início da
modernidade, carregando uma permanência histórica em que:


5
“Talcott Parsons (1902-1979), Lecionou na Universidade de Harvard, foi considerado um importante
sociólogo americano defensor da concepção funcionalista, seu projeto foi elaborar uma teoria geral das
ciências sociais, concebia a sociedade como um sistema orgânico, caracterizado pelas funções que cada
subsistema desempenha para o equilíbrio social, fazendo que sejam reciprocamente independente para sua
harmonia e funcionamento”. (CORDOVA, 2007, p. 257-276).



826

As respostas das instituições políticas são dadas sob a forma de


decisões coletivas vinculatórias para toda a sociedade. Por sua vez,
estas respostas retroagem sobre a transformação do ambiente social,
do qual em consequência ao modo como são dadas as respostas,
nascem novas demandas, num processo de mudança contínua que
pode ser gradual quando existe correspondência entre as demandas e
respostas. (BOBBIO, 1987, p. 60).

Nessa relação de Estado focada na visão sistêmica as respostas nem sempre


serão satisfatórias para a garantia e atendimento das reais necessidades da sociedade,
tanto do ponto de vista conceitual como prático da efetiva ação. Em contrapartida,
pensar em um sistema educacional significa considerá-lo de modo integrado,
constituindo a Educação como direito social, o que torna necessário avaliar esse
processo com cautela para que a constituição do SNE não se efetive de modo reduzido.
Outra abordagem que podemos citar está registrada por Frago (2007, p.17) em
que o autor numa perspectiva histórica, traz uma análise dos sistemas educativos na
Espanha, relacionando às culturas escolares e as reformas educativas, afirmando que os
“sistemas educativos nacionais implicam a existência de uma rede ou conjunto de
instituições educativas de educação formal”, assumindo características diferenciadas
entre níveis e ciclos, mas relacionadas entre si, orientadas por agências e agentes
públicos, indicação de seu financiamento, pelo menos parcial pela administração
publica, admissão de professores formados e pagos em sua totalidade ou em partes, por
fundos públicos, pressupõe facultativo “credenciais reguladas, em termos de seu valor
formal de sua expedição, pelos poderes públicos”. As análises enfatizam um olhar sobre
as instituições docentes e as relações que são estabelecidas, as características
representam tanto o sistema no âmbito privado quanto público, embora admita que nem
sempre coincidem e que até se contrapõem. Por esse viés percebe-se que o enfoque dado
ao sistema nacional é orientado muito mais dentro de sua esfera organizacional. Frago
(2007, p.3), questiona qual será o futuro da escolarização, das novas práticas educativas
e de aprendizagens, diante dessas indagações destaca alguns indícios do fim dos
sistemas educativos: a) Ressalta a reconfiguração da intrução escolar e das novas formas
de ensino e aprendizagem, oportunizadas por meio da tecnologia, tensionado a sociedae
da informação e do conhecimento; b)Enfatiza o deslocamento das formas da oferta
educacional no âmbito nacional e local, internacional evidenciadas pelos processos de
globalização e mundialização e a inserção das agências privadas, integradas ao sistema
educativo sobre a forma de privatização.



827

Desse modo, essas configurações podem compromoter e enfraquecer o Sistema


Nacional e o seu carater de estado. Para tanto, é importante destacar que em meio a
tantas abordagens e formulações acerca de um ideal de SNE, vemos a necessidade de
aprofundar e analisar as articulações propostas em torno da constituição de um sistema
de educação, destacando os impasses no campo político educacional, bem como
observando as lacunas que ainda se apresentam quanto às apropriações de suas
formulações.
Diante dessas questões, consideramos a posição de Cury (2011, p. 8) que afirma
que o sentido “nacional” nunca foi fácil para o Brasil, refletindo alguns desafios para a
construção do SNE, identificados pela própria dualidade da nossa sociedade, que opera
em um caráter de desigualdades social que se contitue no capitalismo com a regulação
dos meios de produção e a organização do trabalho e o movimento produzido pelos
próprios trabalhadores, por essa via coexistem dois sistemas escolares paralelos.
Essa lógica expressou um conflito social entre a educação de privilégios,
determinadas pelas condições econômicas e pelos interesses de classe e a educação pela
via do direito, ressaltando a educação para todos como dever do estado. Assim, quando
a discussão sobre o SNE esteve presente no curso da história “ele foi motivo de intensos
debates e polêmicas sempre que o adjetivo nacional aliado ao substantivo sistema entrou
em pauta. Seu não acolhimento até a Emenda n. 59/09 se deveu a várias justificativas”.
E mesmo com as relevantes modificações provocadas pela emenda no capítulo da
Educação da Constituição Federal da República de 1988 (CF), a mesma não deixa claro
o que se define enquanto um Sistema Nacional de Educação, reforçando seu carater
controverso, anunciando a necessidade de avançar o debate da institucionalização do
SNE, problematizando a complexa relação entre a proposição e a materialidade da
política.
Nesse sentido, cabe problematizar os consensos, os dissensos, as correlações de
interesses nas representações políticas e intelectuais, fazer uma análise critica do
contexto histórico a exemplo dos impactos que compuseram a dualidade dos sistemas
de ensino na esfera pública e privada, bem como as reconfigurações atuais, considerar
as influências da concepção liberal e das mudanças sociais e econômicas na atualidade,
localizar a imposição herdada das culturas externas, que colonizaram nossa identidade
na inculcação de valores, hábitos e doutrinas que direcionaram as ideias pedagógicas no
país.



828

3 Percursos provisórios...

Compreendemos que a política educacional o Brasil vem registrando


significativos avanços no que tange a ampliação do acesso e outras melhorias no âmbito
da qualidade e do direito social à educação básica, fruto de reformas legais que
atravessam a gestão, da educação básica, regadas por muita luta e embates que
envolveram toda a sociedade. Contudo, muitas ainda são as fragilidades presentes na
educação e que ainda não foram superadas e que comprometem a garantia plena ao
direito à educação de qualidade para todos. Entendemos que a qualidade da Educação
pressupõe o atendimento dos interesses sociais de cada comunidade escolar de modo
que os princípios, as finalidades e os objetivos da educação previstos na LDB sejam
contemplados. Desse modo:

Temos uma grande batalha pela frente: mudar a cultura política vigente
por meio da pressão das bases da sociedade e por um forte e
organizado movimento dos educadores que se revele capaz de se
sobrepor à sem-cerimônia dos empresários que, tendo como linha
auxiliar suas organizações ditas não governamentais, vêm procurando
hegemonizar o campo educacional. (SAVIANI, 2014, p.97).

Com efeito, esses são espaços de interesses em disputas que se inserem no


debate educacional, marcado por um cenário de desigualdades sociais, econômicas e
politicas, tornado em muitos momentos difuso o debate do SNE. Assim, a questão do
SNE se tornou matéria Constitucional com Emenda Constitucional 59, de 2009, que
altera o art. 214, tomando como objetivo do PNE, articular o SNE em regime de
colaboração e a exigência definida no PNE Lei 8035/14 que estabelece um prazo de
dois anos para o cumprimento Emenda Constitucional. Cabe observar as contradições
que se estabelecem e que não se reduzem, para que o SNE se efetive.
A Emenda Constitucional 59/09 atribui ao PNE o objetivo de articular o SNE, o
que, segundo Saviani (2013), se constituiu numa impropriedade, haja vista que o SNE
precede o PNE e se configura de modo permanente, ao contrário do PNE que se
constitui de forma transitória. Outra inversão se configura na articulação, que é inerente
ao sistema e não o contrário. O PNE por sua vez, retoma a prioridade do sistema sobre o
plano indicando a necessidade de uma nova Lei.
Para Saviani (2013, p. 264) no âmbito legal, podem emergir dificuldades de duas
ordens: a primeira se refere à forma que o SNE pode assumir e as disputas em torno da



829

sua definição e a segunda se constitui numa possível aprovação da Lei apressada,


criando apenas um novo nome para aquilo que já existe, sem uma mudança significativa
na organização da educação nacional.
Desse modo, cabe então a indagação: o que fizemos nós diante das diferentes
conjunturas políticas da educação brasileira, da contradição estrutural, recorrente, fruto
do desenvolvimento desigual e combinado e da inserção do país na economia-mundo?
Essa inquietação nos remete a necessidade considerar os caminhos que estão se
configurando no cenário da política educacional no país, faz-se necessário analisar as
perspectivas atuais para a educação, na tentativa de levantar proposições que sinalizem
possibilidades de consolidar uma proposta que se efetive, retirando essa questão de
séculos perdidos numa história idealizada, mas que não foi realizada, instituindo desde
o sec. XIX uma lacuna no campo educacional, marcado pela indefinição e pouca clareza
do termo no âmbito legal, pela banalização do termo e pouca atenção política.
Sobre o cenário político atual, no que se refere a efetivação da Lei 13.005/14 do
Plano Nacional de Educação PNE, no tocante da meta 20 que prevê em sua estratégia.nº
20.9, a regulamentação do art.23 e do art.211 da Constituição Federal (CF), no prazo de
dois anos, por Lei complementar, pautando neste item a constituição de um SNE até
junho de 2016.
Nesse cenário que ainda hoje se move num terreno de disputas para a
consolidação de um SNE, podemos destacar propostas que circulam a cerca do SNE: a
proposta da Secretaria de Articulação dos Sistemas de Ensino (SASE) Ministério da
Educação, publicada em junho de 2015; a proposta do Fórum Nacional de Educação
(FNE) que aprovou em 04/16 um Documento propositivo para o debate Ampliado do
SNE; o Projeto de Lei Complementar (PLP) 15/11 do Deputado Deputado Felipe
Bornier (PHS/RJ); o Projeto de Lei Complementar (PLP) 413/14 do Deputado Ságuas
Moraes (PT/MT);
Após a mobilização fomentada pela CONAE6, visou-se maior participação do
Ministério da Educação (MEC) e em 2011 foi criada a Secretaria de Articulação com os
Sistemas de Ensino (SASE), vinculada ao (MEC), que tem como função o
desenvolvimento de ações para a criação do SNE. Dentre os debates promovidos, e

6
Trata da Conferência Nacional de Educação- lançada em 2009, percorrendo os estados e municípios
com sua realização no ano de 2010, com o tema: Construindo um Sistema Nacional Articulado de
Educação: o Plano Nacional de Educação diretrizes estratégias e ação, introduz via MEC e sociedade civil
a discussão sobre a educação brasileira, tendo como tema central O Sistema Nacional Articulado de
Educação, estruturada em 6 eixos temáticos de discussão.



830

publicações da SASE, em 24 de junho de 2015, instituiu a portaria N. 619, que


estabelece uma instância Permanente de Negociação Federativa no MEC. Destacada em
seu Art. 1º: “O objetivo de fortalecer os mecanismos de articulação entre os sistemas de
ensino, por intermédio do desenvolvimento de ações conjuntas, para o alcance das
metas do Plano Nacional de Educação - PNE e a instituição do SNE”. Em junho desse
mesmo ano, foi publicado um texto base intitulado: “Instituir um Sistema Nacional de
Educação: agenda obrigatória para o país”, que discute uma proposta para construção do
SNE e define quatro dimensões para a instituição do Sistema Nacional: “alterações na
LDB; a regulamentação do Artigo 23 da Constituição Federal ou a Lei de
Responsabilidade Educacional; a adequação das regras de financiamento e a adequação
dos sistemas de ensino às novas regras nacionais (BRASIL. MEC/SASE. 2015, p.3)”. O
documento destaca aspectos conceituais relevantes, mas demanda de uma definição
mais abrangente em torno das dimensões e a sua concretização no arranjo federativo.
A proposta do FNE busca colaborar com o debate junto ao MEC, outros órgãos e
agentes no campo da educação, o documento define bases conceituais, identifica os
objetivos e a organização do SNE, ressaltando a cooperação e a colaboração entre os
entes como condição para efetiva materialização do SNE, evidenciando um esforço para
o cumprimento do PNE, contudo ação do fórum em monitorar o PNE, configura hoje
um desafio da continuidade do processo, haja vista que parte da equipe da Secretaria
Executiva junto ao MEC foi exonerada pelo atual presidente em exercício, vemos que o
movimento de discussão pretendido pela proposta não alcançou mobilização expressiva
entre os entes federados, limitando a continuidade do processo.
O PLP15/11, do Deputado Felipe Bornier (PHS/RJ), e o PLP 413/2014, do
Deputado Ságuas Moraes (PT/MT), vale destacar que os PLPs foram apresentados em
audiência Pública N. 64/2015, pelo Deputado Glauber Braga (PSB-RJ), designado
relator na Comissão de Educação. De acordo com Glauber Braga:

Trata-se, portanto, de proposições com elevado grau de dificuldade,


extraordinário impacto potencial sobre a organização federativa da
educação brasileira e reflexos significativos sobre a autonomia
administrativa dos entes federados. As matérias, porém, abrangem
outros assuntos de relevante repercussão para a organização e as
políticas públicas educacionais. Entre elas, a definição e a estruturação
do Sistema Nacional de Educação, em todas as suas imensões.
(BRASIL, Comissão de Educação. 2015, p. 3).

As proposições apontam mudanças na organização educacional, na



831

regulamentação do art. 23 da CF. de1988 e nos princípios da Lei de Responsabilidade


Educacional. Assim, este processo de construção de um projeto nacional de educação
possui variáveis demarcadas por confrontos e interesses que definem as possibilidades e
os limites do projeto que se pretende construir .(BEISIEGEL, 2006, p. 124).
Esses impasses constituem nosso maior desafio que é efetivar o direito social à
educação e consolidar um Sistema de Educação democrático e de qualidade,
reconhecendo a dinâmica e as especificidades federativas, num processo articulado de
mediação entre as esferas governamentais, que possam vincular responsabilidades
integradas a uma colaboração efetiva, reduzindo as desigualdades sociais e políticas de
nossa organização educacional.
No que diz respeito à construção do Sistema Nacional de Educação, Saviani
(2010) destaca a cinco posições necessárias a consolidação do SNE:
• Aponta um conceito de SNE, isto é, “[...] um conjunto unificado que articula
todos os aspectos da educação no país inteiro, com normas comuns válidas para todo o
território nacional e com procedimentos também comuns visando assegurar educação
com o mesmo padrão de qualidade a toda a população do país” (p. 384);
• Fortalecer o caráter público do SNE, pois nas palavras do autor não se deve
“enfraquecer o caráter público do Sistema Nacional de Educação a pretexto de que a
educação é uma tarefa não apenas do governo, mas de toda a sociedade” (p. 385);
• Enfatiza o caráter normativo e deliberativo do sistema que deverá ser “[...]
exercida por um órgão determinado, que corresponde, hoje, ao Conselho Nacional de
Educação (CNE)”, já que é um “órgão de Estado e não de governo” (p. 386);
• Reforça a arquitetura para constituir o SNE “com base no ponto de referência do
regime de colaboração entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios,
conforme disposto na Constituição Federal, efetuando repartição das responsabilidades
entre os entes federativos, todos voltados para o mesmo objetivo de prover educação
com o mesmo padrão de qualidade a toda a população (p. 386);
• Discute o desafio da formação humana no âmbito do sistema, o autor alerta para
os perigos da racionalidade técnica, afirmando a necessidade de caminhar na “[...]
direção de uma cultura de base científica que articule, de forma unificada, num
complexo compreensivo, as ciências humano-naturais, que estão modificando
profundamente as formas de vida, passando-as pelo crivo da reflexão filosófica e da
expressão artística e literária” (p. 388).



832

De acordo com Telles (1999), é na articulação entre movimentos sociais e


práticas associativas, direitos e espaços públicos democráticos, que identificamos
registros de uma sociedade em formação, viabilizando alargar a ideia de sistema para
além de uma organização reducionista que anuncia uma cadeia de sistemas desiguais,
competitivos e desarticulados, intensificando uma lógica pautada em resultados e
processos de rankeamento, baseados na responsabilização e na meritocracia, com ações
paliativas, num jogo em que as cartas já nos são velhas conhecidas, fixando nosso
desafio em ampliar os processos de mediação entre Estado e sociedade, não tomando
como natural os interesses privados. Dessa forma, as disputas pelo projeto educativo
evidenciam fortemente a regulação das políticas educacionais, que assumem uma
perspectiva fundamentada nos princípios neoliberais.
Nessa lógica o Estado permanece como financiador e avaliador das políticas
sociais, ofertadas por distintos agentes privados, e mesmo quando a atividade
permanece como propriedade do Estado tem sido gerenciada pela lógica do mercado,
inserindo na conjuntura atual um forte movimento do público não-estatal destacando a
constituição de uma instituição privada de direito público, limitando as possibilidades
para que o SNE se efetive.

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TELLES, Vera da Silva. Direitos sociais afinal do que se trata? Belo Horizonte: Ed.
UFMG,1999.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

MEDIAÇÕES DA RELAÇÃO FORMAÇÃO E INSERÇÃO PROFISSIONAL:


ANÁLISE DAS DEMANDAS POR MÃO DE OBRA E A OFERTA DE CURSOS
FICS NO ESPÍRITO SANTO NO ANO DE 2012

Renan dos Santos Sperandio (UFES)1


Marcelo Lima (UFES)2

Resumo: O presente trabalho faz uma análise das políticas públicas de trabalho no estado do
Espírito Santo no período de 2012-2013, tendo como objeto de estudo a demanda e a oferta de
qualificação dos programas de qualificação social e profissional implementados na forma de
oferta de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC), no eixo de infraestrutura, com base
nos indicadores de emprego e de oferta de tais cursos para identificar e debater a eficácia dos
programas. Numa perspsectiva histórico-crítica, este estudo problematiza os limites dos
resultados preconizados pelo discurso da empregabilidade e da teoria do capital humano (TCH)
segundo os quais bastaria aos indivíduos se qualificarem para terem acesso ao emprego. Pata
tanto, considerou-se o papel parcial da escolarização neste processo que combinada com a
experiencia profissional e formação profissional mediam a relação entre formação e inserção
profissional.

Palavras-chave: Formação Inicial e Continuada; Empregabilidade; Teoria do Capital Humano

Introdução

Definir em que medida a qualificação e a escolarização interferem no processo


de inserção no emprego no Brasil atual é uma tarefa difícil e complexa. Até porque a
oferta de cursos, por si só, não tende a resolver a demanda por mão de obra, e isso se dá
por uma questão bem objetiva: Se não há demanda de mão de obra para determinada
área, não faz sentido ofertar cursos. A oferta de cursos para uma determinada profissão
que não demanda por mão de obra tende a criar duas situações: Ampliar o lucro das
instituições de ensino que ministram treinamentos e cursos de qualificação, e criar um
cadastro de reserva que favorece, apenas, ao mercado capitalista. De nada adianta uma
disseminação de cursos de qualificação incapazes de garantir egressos que se insiram no


1
Renan dos Santos Sperandio, Graduado em Pedagogia, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito
Santo, Brasil. E-mail: renansperandio@hotmail.com
2
Marcelo Lima, Doutor em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Espírito Santo, Brasil. E-
mail: Marcelo.lima@ufes.br


835

mercado de trabalho, inclusive quando o cenário é de incapacidade de absorção dessa


mão de obra.
É nítido perceber que existem funções que são exercidas pelo trabalhador que
não exigem certos conhecimentos teóricos aprofundados para sua execução, podendo o
trabalhador ir executando-as no cotidiano de seu trabalho e no cotidiano se constituir
cada vez mais apto para executar determinada função. Isso porque existem ocupações
nas quais o aprendizado se dá no ato da produção e que uma separação entre o ato de
produzir e aprender não faria sentido, ou seja, um auxiliar de pedreiro, por mais que
faça um curso que o “capacite” para o exercício de sua função, não terá uma formação
efetiva enquanto não atuar no cotidiano da produção, de modo que o curso pouco
acrescenta na sua intervenção na realidade.
Diante disso, entende-se que é a conjuntura econômica que vai definir que num
determinado momento se tenha um profissional “qualificado” ou não. O que leva a cada
uma das possibilidades colocadas são momentos antagônicos. Quando há um “boom”
no mercado, uma necessidade de intensificar a produção e o mercado carece de mão de
obra, ocorre uma inserção de mão de obra “sem qualificação” para que a produção
consiga atingir as metas definidas.
Sendo assim relacionar cursos de qualificação social ao aumento de emprego e
renda não faz sentido, tendo em vista que se faz necessário fazer uma análise da
conjuntura do mercado e quais as exigências do empregador para determinado
momento. Portanto, o presente trabalho se lança a pesquisar essa realidade para que seja
possível discutir a mediação da relação formação e inserção profissional, fazendo alguns
recortes metodológicos.
Como metodologia será usado a combinação de dados que partem de diversas
fontes (CAGED, SECTTI, A GAZETA, Sites de Instituições que ofertam cursos de
qualificação Social e profissional), com o intuito de identificar quais vagas de emprego
são mais demandadas no estado do Espírito Santo no ano de 2012, nos atendo ao eixo
tecnológico de infraestrutura.
As vagas mais demandadas serão comparadas com o perfil que é exigido pelo
empregador e com os cursos ofertados pelas instituições que participam dos diversos
programas de qualificação, fazendo um comparativo e analisando os dados obtidos. O
caminho metodológico empreendido neste trabalho utiliza-se da combinação de quatro
recortes do fenômeno estudado. Uma das fontes desta pesquisa é o site do Ministério do
Trabalho, mais especificamente dados extraídos pelo CAGED (Cadastro Geral de



836

Empregados e Desempregados) que informa dados mensais de diversas contratações e


demissões nos diversos setores empregadores no Espírito Santo e em outras unidades
federativas.
Para a referida pesquisa, nos atemos a extrairmos os dados de contratações na
área de infraestrutura, indicando admissões, desligamentos e de um saldo de
empregados no eixo tecnológico de infraestrutura. Os cursos pertencentes a este eixo
tecnológico estão relacionados com à construção civil e ao transporte. Mobilizando, de
forma articulada, saberes e tecnologias relacionadas ao controle de trânsito e tráfego,
ensaios laboratoriais, cálculo e leitura de diagramas e mapas, normas técnicas e
legislação. O eixo de infraestrutura abarca ocupações como: Técnico em edificações,
técnico em Estradas, técnico em Portos, agente de limpeza e conservação, ajudante de
obras, pedreiro de alvenaria, dente outras ocupações que contemplem ações de
planejamento, operação, manutenção, proposição e gerenciamento de soluções
tecnológicas para infraestrutura.
Para evitar duplicidade de dados, foi elaborado um banco de dados que organiza
cada profissão dentro da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO, fazendo um
recorte da mão de obra do estado do Espírito Santo no período de 2012. Outra fonte
deste trabalho foi o site da SECTTI que elenca as profissões que mais tiveram “peso”
nas demandas por emprego publicadas, o que indica um alto índice de exigência de tais
funções.
Foi feito um comparativo entre os dados obtidos pelo CAGED e os da SECTTI
de modo que seja possível identificar se as profissões que mais aparecem nas
publicações da secretaria são as que mais contratam. A fonte 02 é o jornal “A Gazeta”
coluna de empregos. Definido as ocupações mais demandadas, serão analisados os pré-
requisitos explicitados nos anúncios publicados no jornal, dentro do eixo tecnológico de
infraestrutura e articulando os anúncios com as profissões que foram demandadas no
mesmo período, buscando identificar as exigências que são pautadas pelos
empregadores. Outra fonte foi o jornal “A gazeta” que nos seus anúncios publicados na
coluna oportunidades registra os pré-requisitos para a inserção no emprego. Além disso,
também se verificou nos sites das instituições de educação profissional e imprensa em
geral a oferta de cursos de educação profissional.
Para classificação das demandas por mão de obra procede-se aqui um
agrupamento das demandas por semestre do referido ano em três categorias: a) as
ocupações que “não exigem qualificação”. Esse grupo composto geralmente por



837

auxiliares e ajudantes não possuem função definida ou exigem pouco conhecimento de


entrada; b) as ocupações que podem ou não exigir aqui denominadas de “qualificação
relativa” caracterizam-se por funções cujo conhecimento profissional adquire-se dentro
e fora da escola e do trabalho (exemplo: pedreiro); e c) as ocupações que sempre
exigem uma formação aqui denominada de ocupações com “qualificação pré-
determinada”. Esta compreende-se por profissionais cuja atuação está regulamentada
(exemplo: técnicos em edificações – carteira do CREA e diploma de curso técnico de
nível médio).
Por fim, faremos uma correlação entre os dados, no qual será possível identificar
as similitudes entre demanda de mão de obra e oferta de cursos de qualificação,
identificando se existe minimamente uma coesão entre o que o mercado “exige” e o que
as instituições ofertam de cursos para inserção no mercado. Além disso, será possível
fazer um balanço da qualidade e funcionalidade destes cursos para as profissões
demandadas, com uma análise crítica da necessidade de pensar determinados cursos de
qualificação. De modo, que seja possível repensar, reconstituir, reformular estruturas
curriculares de cursos de formação profissional.

1 A Teoria do Capital Humano e o discurso da empregabilidade como estratégias


do Capital.

Partindo por hipótese inicial considera-se a Teoria do Capital Humano e o


discurso da empregabilidade como forma de linguagem e de ideologia difundida pelo
capital para a) justificar as causas do desemprego; b) culpabilizar o trabalhador que se
encontra fora do mercado formal de trabalho e desprovido de certos tipos de
conhecimentos, habilidades e competências apontados pelo capital como
indispensáveis; c) atribuir uma falsa centralidade à educação na sua relação com o
trabalho e d) criar um mercado de formação.
Segundo Frigotto (2006), Theodore Schultz foi um dos grandes nomes a propor
essa concepção, segundo a qual a educação e economia teriam uma relação direta, de
modo que seria possível “justificar” a riqueza de uma nação ou indivíduo pelo nível de
qualificação que este/esta possui. Deste modo os problemas dos países da periferia do
capital não seriam apenas a extração de suas riquezas e a intensa exploração de mão de
obra nem as mais diversas condições impostas pelo imperialismo. Mas o simples fato de
que estes não possuem um investimento em educação capaz de qualificar sua mão de



838

obra para as demandas do mercado e deste modo promover uma gradativa ascensão
social e uma divisão de renda mais justa e igualitária. Vale dizer que tal perspectiva, que
apresenta a qualificação como um tipo de “capital”, denominando-se como “Teoria do
Capital Humana”, expressou a ação da classe empresarial para construir a hegemonia da
ideia de que a via da qualificação é suficiente para ascender socialmente.
Tal abordagem de análise econômica veio como resposta ao crescente e
vergonhoso índice de desigualdade que se acentuava, pondo em risco a própria
sustentação do sistema capitalista. No Brasil, a chaga da desigualdade manchava a
imagem que se tinha do “milagre econômico” que o país havia vivenciado. O
coeficiente de Gini, que mede a desigualdade, na qual zero corresponde a um alto índice
de distribuição de renda, e um significa que poucos possuem toda a riqueza produzida
pelo país, esta taxa estava atingindo, na década de 80, a faixa de 0,56 pontos. O poder
público passa então a ser culpabilizado por não “se esforçar” em realizar uma maior
distribuição de renda. De modo que se intensificam os discursos de que seria necessário
o investimento no “capital humano” para fazer o país/indivíduo ter condições de
aumentar/potencializar sua força produtiva e diminuir a desigualdade e resolver o
problema do desemprego. Deste modo:

A fórmula seria simples: Maior investimento social ou individual em


educação significaria maior produtividade e, consequentemente, maior
crescimento econômico e desenvolvimento em termos globais e
ascensão social do ponto de vista individual. (FRIGOTTO, 2006, p.
9).

Portanto, a educação passa a ser vista como um fator decisivo para o


desenvolvimento econômico. Porém, “o que a teoria do capital humano evade e esconde
são as relações capitalistas efetivas de produção, cuja lógica é ao mesmo tempo, de
acumulação, concentração e exclusão”, pois para subsistir o capitalismo exige a
contínua concentração de capital e uma expansão geográfica sem limites. (FRIGOTTO,
2006, p. 9).
Como bem apontava Marx (2003) a necessidade de um mercado sempre em
expansão impele a burguesia a invadir e se perpetuar por todo o globo, estabelecendo-se
em toda parte, explorando em toda parte, criando vínculos em toda a parte.



839

2 O Emprego no Espírito Santo em 2012

Num primeiro recorte toma-se como referência a fonte 01, o site da secretaria de
ciência, tecnologia, trabalho e inovação do estado do Espírito Santo, nos quais as vagas de
emprego são ofertadas para indicar as ocupações mais demandadas no estado do Espírito
Santo. Com base na 1ª fonte, analisa-se informações disponíveis no site
www.sectit.es.gov.br que informa semanalmente as vagas de emprego mais demandas no
ano de 2012 dividido por semestre, classificando as ocupações mais demandadas em cada
semestre no estado do Espírito Santo por eixo tecnológico dentro da categoria de “ocupação
sem qualificação”, “ocupação com qualificação relativa” e “ocupação com qualificação
determinada”.
§ 1º Semestre de 2012
No primeiro semestre de 2012 as ocupações mais demandadas pelos empregadores,
em freqüência de 0 a 100 (em ordem decrescente), informadas pelo sine estadual vinculado à
sectit, para as ocupações sem qualificação foram: (84,58) Empregado Doméstico, (84,57)
Vendedor, (79,15) Gari, (52,77) Ajudante de carga e descarga, (45,28) Ajudante de obra,
(33,32) Vendedor de serviços, (28,96) Auxiliar de serviços gerais, (25,52) Vendedor interno,
(25,51) Auxiliar de laboratório, (21,82) Auxiliar de linha de produção, (16,32) Servente de
obras, (16,31) Atendente de telemarketing, (16,30) Auxiliar de escritório, (16,29) Servente
de limpeza, (14,63) Auxiliar de crédito, (10,93) Ajudante de eletricista e (7,8) Ajudante
florestal (ver anexo).
Para as ocupações com qualificação relativa, em freqüência de 0 a 100 (em ordem
decrescente), foram: (80,84) Pedreiro, (79,15) Oficial de serviços gerais, (71,35)
Carpinteiro, (60,42) Operador de martelo pneumático, (59,95) Montador de móveis, (53,12)
Caldeireiro, (47,78) Mecânico, (35,05) Costureira, (34,9) Cozinheiro, (29) Marteleiro,
(27,76) Encanador, (27,75) Eletricista, (18,07) Encarregado de concreto, (18,06) Eletricista
de manutenção, (18,05) Meio Oficial, (18,04) Encarregado de pedreiro, (18,05) Operador de
máquinas, (16,32) Cobrador de ônibus, (16,31) Corretor de imóveis, (16,30) Encanador
Industrial, (14,63) Assistente administrativo, (10,89) Consultor de vendas e (8,29)
Cabeleireiro (ver anexo).
Para as ocupações com qualificação determinada, em freqüência de 0 a 100 (em
ordem decrescente), foram: (14,63) Motorista de caminhão, (14,60) Motorista de ônibus
urbano, (10,93) Tratorista agrícola e (10,89) Motorista (ver anexo).



840

Utilizando-se a classificação das ocupações por eixo tecnológico, obtem-se outra


classificação das vagas mais demandadas no primeiro semestre de 2012, em ordem
decrescente com freqüência de 0 a 1000: (714,4) Infraestrutura (Ajudante de carga e
descarga, Ajudante de eletricista, Encarregado de concreto, Ajudante de obra, Eletricista de
manutenção, Meio Oficial, Encarregado de pedreiro, Auxiliar de serviços gerais,
Carpinteiro, Encanador, Cobrador de transporte coletivo, Eletricista, Servente de obras,
Montador de móveis, Motorista, Empregado Doméstico, Motorista de caminhão, Motorista
de ônibus urbano, Oficial de serviços gerais, Pedreiro, Assistente administrativo, Atendente
de telemarketing, Auxiliar de crédito, Corretor de imóveis, Auxiliar de escritório, Consultor
de vendas, Vendedor interno, Vendedor de serviços e Vendedor); (224,71) Controle e
processos Industriais (Caldeireiro, Operador de martelo pneumático, Encanador Industrial,
Mecânico, Marteleiro, Operador de máquinas e Auxiliar de linha de produção); (129,28)
Ambiente e Saúde (Auxiliar de laboratório, Cabeleireiro, Servente de limpeza e Gari);
(106,4) Recursos Naturais (Agricultor, Ajudante florestal e Tratorista agrícola); (35,05)
Produção Cultural e Desgn (Costureira) e (34,9) Turismo, Hospitalidade e lazer (Cozinheiro)
(ver anexo).
§ 2º Semestre de 2012
No primeiro semestre de 2012 as ocupações mais demandadas pelos
empregadores, em freqüência de 0 a 100 (em ordem decrescente), informadas pelo sine
estadual vinculado à sectit, para as ocupações sem qualificação foram: Vendedor
(200,64), Ajudante de obra (137,03), Ajudante de carga e descarga (76,12), Auxiliar de
linha de produção (40,79), Repositor (35,94), Embalador (35,04), Empregado
Doméstico (35,01), Carregador de caminhão (32,15), Ajudante de reflorestamento
(26,44), Operador de caixa (25,33), Auxiliar de corte (24,33), Frentista (24,25),
Ajudante de Cozinha (23,61), Auxiliar de armazenamento (18,77), Auxiliar de estoque
(18,66), Conferente de mercadoria (18,55), Auxiliar de lavanderia (14,57),
Recepcionista (14,50), Auxiliar de produção (12,74), Balconista de açougue (12,64),
Vendedor permissionário (11,59), Ajudante de embarque de cargas (10,61), Auxiliar de
serviços gerais (9,68), Ajudante de motorista (8,39), Atendente de telemarketing (8,30)
e Atendente de balcão (7,82).
Para as ocupações com qualificação relativa, em freqüência de 0 a 100 (em
ordem decrescente), foram: Pedreiro (189,05), Serrador (155,02), Costureira (135,87),
Oficial de serviços gerais (133,45), Mecânico (129,19), Carpinteiro (76,33), Garçom
(68,5), Agricultor (67,01), Eletricista (66,03), Mecânico montador (61,47), Encanador



841

Industrial (60,08), Caldeireiro (55,19), Armardor de ferragens (44,95), Açougueiro


(32,01), Operador de marketing de rede (23,56), Cozinheiro (21,65), Cobrador de
transporte coletivo (21,65), Aux. Téc de controle de qualidade (21,39), Marceneiro
(18,13), Acabador de mármore (14,57), Salva vidas (14,57), Eletricista veicular (13,93),
Arquivista (13,93), Assistente administrativo (13,93), Representante comercial (13,93),
Fiscal de lavoura (11,97), Operador de máquinas (10,61), Pintor de automóveis (9,68),
Copeiro (9,68), Estoquista (8,71), Aux. Controle de qualidade (8,71), Cabeleireiro
(8,39), Cozinheiro de restaurante (7,82), Instalador de alarme (7,82), Montador (7,82),
Fiscal de loja (7,82), Abastecedor de linha de produção (7,82) e Soldador (7,82).
Para as ocupações com qualificação determinada, em freqüência de 0 a 100
(em ordem decrescente), foram: Motorista de entrega (52,11), Motorista (47,65),
Motorista de ônibus urbano (21,65), Motorista rodoviário (18,77), Professor (16,94),
Motorista carreteiro (16,52), Motorista de caminhão (11,97), Engenheiro de
Planejamento (9,98), Engenheiro de segurança (9,98), Téc. Construção civil (9,98),
Engenheiro de produção (9,98), Téc. Controle ambiental (9,98) e Analista ambiental
(9,98).
Utilizando-se a classificação das ocupações por eixo tecnológico, obtem-se outra
classificação das vagas mais demandadas no primeiro semestre de 2012, em ordem
decrescente com freqüência de 0 a 1000: Turismo, Hospitalidade e lazer (139,08)
[Ajudante de Cozinha, Cozinheiro de restaurante, Atendente de balcão, Copeiro,
Cozinheiro e Garçom]; Infraestrutura (1144,35) [Ajudante de carga e descarga,
Ajudante de embarque de cargas, Ajudante de motorista, Carregador de caminhão,
Ajudante de obra, Armardor de ferragens, Auxiliar de armazenamento, Auxiliar de
serviços gerais, Carpinteiro, Cobrador de transporte coletivo, Eletricista veicular,
Eletricista, Auxiliar de lavanderia, Frentista, Instalador de alarme, Engenheiro de
Planejamento, Engenheiro de segurança, Marceneiro, Montador, Téc. Construção civil,
Motorista, Motorista de entrega, Motorista carreteiro, Empregado Doméstico, Motorista
de caminhão, Motorista de ônibus urbano, Motorista rodoviário, Oficial de serviços
gerais e Pedreiro]; Gestão e Negócios (392,32) [Arquivista, Assistente administrativo,
Atendente de telemarketing, Auxiliar de estoque, Conferente de mercadoria, Estoquista,
Fiscal de loja, Representante comercial, Operador de caixa, Recepcionista, Repositor,
Vendedor de serviços, Vendedor e Vendedor permissionário]; Desenvolvimento
Educacional e Social (16,94) [Professor]; Controle e processos Industriais (377,61)
[Caldeireiro, Pintor de automóveis, Embalador, Mecânico montador, Encanador



842

Industrial, Mecânico, Abastecedor de linha de produção, Operador de máquinas e


Soldador; Informação e Comunicação (23,56) [Operador de marketing de rede];
Produção Industrial (263,2) [Acabador de mármore, Auxiliar de linha de produção,
Aux. Téc de controle de qualidade, Engenheiro de produção, Aux. Controle de
qualidade, Auxiliar de produção e Serrador; Recursos Naturais (125,38) [Agricultor,
Analista ambiental, Fiscal de lavoura, Téc. Controle ambiental e Ajudante de
reflorestamento]; Segurança (14,57) [Salva vidas]; Produção Alimentícia (44,75)
[Balconista de açougue e Açougueiro]; Produção Cultural e Design (160,2)
[Costureira e Auxiliar de corte] e Ambiente e Saúde (16,94) [Cabeleireiro].

3 Análise das demandas por força de trabalho

Nesse item compararemos cada profissão colocada em análise, de modo que seja
possível perceber os distanciamentos e proximidades que existem entre as fontes
levantadas, buscando articular os dados obtidos, e identificar se a teoria do capital
humano e o discurso da empregabilidade tem logrado êxito na resolução do problema
do desemprego em nosso estado. Bem como será possível identificar se os cursos
ofertados pelas instituições estão em consonância com: a) exigência do empregador; b)
demanda de vagas no mercado.
A partir da pesquisa, foi possível perceber que as ocupações que mais
demandam vagas são as que mais demitem, ocasionando uma alta rotatividade no setor.
Por exemplo, quando observado os dados obtidos no site do CAGED é possível notar
que a ocupação de pedreiro admitiu, no segundo semestre de 2012, cerca de 5.326
trabalhadores, mas no mesmo semestre foi responsável pelo desligamento de mais de
6.000 funcionários. Com isso, mais de 674 trabalhadores que estavam no exercício da
função perderam seus empregos. Neste mesmo ano, só o SENAI ofertou cursos de 220
vagas para “qualificar” mão de obra para atuar no ramo da alvenaria.
Ora, a partir do exposto acima percebe-se que esses trabalhadores, ou serão
reabsorvidos pelo mercado, ou serão contemplados por políticas públicas passivas; tal
como o seguro desemprego. Afinal, um operário do ramo da alvenaria com experiência
de atuação não fará um curso para “aprender” o que ele já faz. Inclusive, pelo fato de
nas exigências do empregador não se exigir como pré-requisito de contratação um curso
de qualificação, e quando exige, também é contratado um trabalhador que, na ausência
do curso, apresenta certo nível de experiência de atuação no ramo, este trabalhador



843

conseguiria a vaga sem precisar fazer um curso para o “qualificar”. Portanto, diante
desse recorte feito apenas com a profissão de pedreiro, se percebe que, a oferta desse
curso vem, de certo modo, piorar o que já está ruim, pois ao invés de “capacitar” o
trabalhador para atuar em um ramo com pouca mão de obra, forma um exército de
reserva “qualificado” para se inserir nesse alto índice de rotatividade que apresenta a
referida profissão.
Ademais, foi possível perceber, a partir das publicizações do site da SECTTI,
que as ocupações que mais demandavam mão-de-obra, eram as que apresentavam um
maior número de cursos. Por exemplo, tomando como referência a ocupação de
Pedreiro, que teve um peso nas publicações do SECTTI de 79,15% no primeiro
semestre de 2012, vemos que no mesmo ano tivemos a oferta de 220 vagas no SENAI.
Além disso, observa-se no Edital Nº29/2012 da Sedu (Secretaria Estadual de Educação
do Estado do Espírito Santo), que todos os cursos ofertados tem uma correlação direta
com as profissões que se enquadram na classificação de “qualificação relativa” e que
são publicizadas no site da SECTTI. Ou seja, as profissões que mais contratam são as
que mais ofertam cursos, mesmo que estes cursos não tenham um fator seletivo na hora
da contratação. Partindo dessas compreensões, foi possível identificar, a partir dos
resultados à cima citados, que quanto maior a demanda por mão de obra, dentro de um
espaço-tempo, maior será a oferta de curso e maior será a exigência do empregador.
Outrossim, observando a ocupação de mestre de obras, que por ser uma
profissão na qual não se necessita de um quantitativo elevado de trabalhadores, não foi
possível verificar cursos voltados para qualificação destes profissionais. Portanto, a
partir de um levantamento realizado no eixo de infraestrutura, confrontando a abertura
de vagas no mercado de trabalho com os cursos e a demanda por pessoal, percebemos
que nas ocupações que mais apresentavam trabalhadores desempregados, mais cursos
eram ofertados. Com isso, o empregador tem à sua disposição trabalhadores “mais
qualificados” para contratar.
Os cursos ofertados vão de encontro as ocupações que mais possuem mão de
obra, que mais demitem, que possuem um alto índice de rotatividade, que exigem pouca
escolaridade, e são cursos de curta duração. Além disso, os cursos ofertados ajudam a
formar mais trabalhadores “desempregados”, pois tais cursos, não surgem numa lógica
de capacitar o profissional da área, mas de formar novos profissionais. Por exemplo, um
pintor de obras que trabalha no ramo há dez anos, provavelmente não fará um curso de
pintor de obras para aprender a fazer o que ele já faz. Portanto, quem fizer tal curso virá



844

de outro ramo; ou seja, se a profissão de pintor tinha desligado 846 trabalhadores, o


mercado de formação ainda acrescentará a este número cerca de 165 alunos-
trabalhadores. Portanto, esses programas de qualificação amplia o número de operários
em busca por emprego, fazendo oscilarem de uma profissão para outra, “vendendo”
uma incerteza que é a vaga em determinada ocupação.
Ademais, foi possível perceber que das vagas ofertadas, muito do que se era
exigido pelo empregador não era sequer a qualificação em si, mas a experiência no
ramo de atuação. Com isso, a promessa de se conseguir emprego de forma rápida
prevista no Decreto 5.154/2004 que apresentava como perspectiva uma rápida
formação, buscando aproximar o mundo do trabalho do universo da educação, não
consegue encontrar efetividade; tendo em vista que na hora da contratação não se é
exigido qualquer certificação de qualificação na referida ocupação. Isso não quer dizer
que o empregador na hora de selecionar o profissional não aproveite aquele que além da
experiência possua cursos de qualificação, mas essa não é a questão, pois o que se está
em análise é que a oferta de cursos toma um caráter que forma trabalhadores para atuar
em ramo que na prática se quer exigem alguma qualificação; ou seja, o aprendizado se
dá no ato da produção e a separação do ato de aprender e do ato de produzir não se faz
necessária.
É importante dizer que o investimento em políticas de qualificação profisisonal
tem se dado a nível nacional, muito pelo discurso da Teoria do Capital Humana já
apresentada no início do presente trabalho. E esse investimento tende a corresponder
com a situação econômica que vive o país. Por exemplo, no ano de 2003, segundo
Toledo e Rummert (2009), os recursos provenientes do FAT para o investimento em
políticas de qualificação tem um crescente até o ano de 2005 e um refluxo no ano de
2008. Segundo as autoras, em 2003, o governo Lula investiu R$ 34.069.297,00 para
a qualificação profissional, contra R$ 24.000.200,00 em 2008.
Do mesmo modo, a presidenta Dilma, na aplicação do PRONATEC, em 2011,
pretendeu investir cerca de R$ 1 bilhão em 2011, totalizando em 2014, um
investimento de R$ 14 bilhões de reais que já havia sido dispensado ao programa.
Porém, estima-se que para 2016, contrariando a expectativa do governo em investir R$
4 bilhões, a proposta orçamentária prevê apenas R$ 1,6 bilhão, abrindo pouco mais de 6
milhões de vagas entre 2016 e 2019 contra uma meta anterior que era abrir 12 milhões
de novas vagas até 2018. Portanto, percebe-se que tanto em 2008, quanto em 2014/2015
o país passava por instabilidades econômicas, o que reflete diretamente nos



845

investimentos do governo para a aplicação de recursos para a execução desses


programas. Os investimentos se dão de formas variadas refletindo a situação
econômica que atravessa o país, de modo que em contextos de contenção de
gastos, as rubricas destinadas a tais políticas tendem a diminuir.
O governo do Estado do Espírito Santo, apoiando-se nos altos investimentos
ocorridos em 2011, 2012 por parte do governo federal, gastou com os programas da
Rede Formar mais de R$ 150 milhões até 2013. Logo, uma quantia como esta,
mostra o quanto é importante ter pesquisas que visem atestar, ou não, a eficácia dos
programas de qualificação social e identificar os ganhos ou perdas que se tem obtido
pela aplicação de tais políticas públicas de trabalho.
É preciso pensar uma formação profissional que esteja articulada a
escolarização, numa perspectiva que garanta ao trabalhador uma formação omnilateral,
segundo a qual Saviani vai definir como sendo aquela capaz de desenvolver ao máximo
o potencial dos indivíduos, entende-se que a educação profissional deve estar pautada
num processo que ensine para além da prática laboral, de modo que garanta o refletir de
uma práxis para o não conformismo de uma realidade social. Mas isso não será possível
dentro dos marcos de meras reformas nos programas ou nas políticas de qualificação
que se pautem nas “eternas” parcerias público-privado. (SAVIANI, 1994).
Por mais que seja possível alcançar algumas melhorias na oferta dos programas
de qualificação profissional, enquanto estes estiverem sendo executados dentro da ótica
capitalista sempre encontraremos limitações, pois o capitalismo pressupõe a lógica da
exploração e do desemprego. Portanto todas as melhorias alcançadas acabarão por se
adaptar a lógica do capital. Sendo assim é preciso organizar uma contraproposta a essa
lógica formativa, que para lograr êxito precisa superar os marcos do sistema capitalista;
ou seja, é preciso levantar a bandeira do socialismo, sem o qual não será possível
alcançar a socialização dos saberes acumulados e dos meiso de produção. Portanto,

[...] a bandeira básica da luta do socialismo é a socialização dos meios


de produção. Ora, é sobre a base da questão da socialização dos meios
de produção que consideramos fundamental a socialização do saber
elaborado. Isso porque o saber produzido socialmente é uma força
produtiva, é um meio de produção. Na sociedade capitalista, a
tendência é torná-lo propriedade exclusiva da classe dominante.
(SAVIANI, 2011, p. 66).



846

Conclusão

Esse trabalho buscou, por meio de uma breve sistematização da bibliografia


específica e análise documental, problematizar o mito da qualificação e da formação
profissional como solução para o desemprego. A discussão que envolve a temática da
qualificação se mostrou atrelada as questões que englobam o emprego e a renda. Essa
correlação surgiu em meados dos anos 70, no auge do capitalismo monopolista, com
uma tentativa de propor saídas para duas questões que constrangia o capital; a latente
desigualdade social e o problema do desemprego.
Theodore Schultz, foi um dos grandes nomes a propor essa concepção, segundo
a qual a educação e economia teriam uma relação direta, de modo que seria possível
“justificar” a riqueza de uma nação ou indivíduo pelo nível de qualificação que este/esta
possui. Deste modo, os problemas de países explorados (os denominados de terceiro
mundo) não seria a extração de suas riquezas e a intensa exploração de mão de obra,
nem as mais diversas condições impostas pelo imperialismo, mas o simples fato de que
estes não possuem um investimento em educação capaz de qualificar sua mão de obra
para as demandas do mercado e deste modo promover uma gradativa ascensão social e
uma divisão de renda mais justa e igualitária.
A partir de então, se disseminou essa concepção que ao cair no senso comum,
comum realizou a tarefa precípua de construir o consenso ativo dos dominados,
realizando a hegemonia, que só foi possível devido ao período anterior de expansão do
capitalismo.
Ao realizar a pesquisa utilizando dados do CAGED, SECTTI e anúncios da
coluna de empregos do jornal “A Gazeta”, foi possível perceber que a lógica de
qualificação que vem sendo executada pelos governos, não é para o conjunto mais
expressivo das massas de trabalhadores. Tais políticas são executadas sem integrar as
ações de escolarização e de qualificação, oferecendo cursos de estreita terminalidade
que se caracterizam pela pequena carga horária e pela desarticulação com a escola
comum, não permitindo aos educandos continuidade de estudos para além do mercado
de trabalho.
Foi possível perceber que atualmente, o mercado tem valorizado muito mais a
experiência profissional do que a qualificação e a escolarização, inclusive, foi possível
comprovar que a maioria das demandas por emprego é cada vez maior para as
profissões que menos exigem algum tipo de formação.



847

O mito da qualificação cria uma situação que põe o trabalhador como grande
culpado pelo seu desemprego, que individualiza a responsabilidade pela não inserção no
trabalho, turvando assim a compreensão das determinações econômicas mais gerais que
produzem e reproduzem estruturalmente as desigualdades. Mesmo que o trabalhador se
qualifique, ainda assim não está livre da culpa, pois tais perspectivas o culpabilizam
pela sua não empregabilidade. A TCH força cada vez mais o trabalhador a “acreditar”
que quanto mais “capacitado” ele for, mais chance ele tem de se inserir no mercado.
É óbvio que é de interesse do capitalista contratar profissionais melhores
formados a um custo baixo, porém, o problema da falta de emprego não é uma questão
de fazer cursos, “reciclagens”, “qualificações”, etc., pois nenhum curso de qualificação
social e profissional tem condições de criar vagas no mercado, a não ser para
determinados setores que veem na mercantilização da educação e da privatização do
ensino como um meio de angariar mais capital. Conforme FRIGOTTO (2006), a
educação é determinada pelas relações de produção e não seu determinante. O tipo de
educação ofertada é consequências das escolhas em torno do modelo desenvolvimento e
não causa do mesmo. Portanto, não é porque se têm mais cursos que haverá mais
empregos. Simplesmente pelo fato de que se não existir demanda no mercado que
absorva estes trabalhadores eles não terão como trabalhar mesmo sendo “qualificados”
para tal. Portanto, o que vemos são inúmeros trabalhadores que fazem vários cursos, na
esperança de ampliarem sua empregabilidade e percebem que, o que de fato se
tornaram, foi numa camada de desempregados qualificados.
A grande questão é que a TCH e o discurso da empregabilidade, e agora do
empreendedorismo, vem ganhado força por ter um “poder” de contenção de massas
indiscutível. A tática de culpabilizar o trabalhador e por nele a responsabilidade para seu
sucesso ou fracasso profissional, evita o despertar de uma consciência coletiva que
perceba o sistema capitalista como o maior problema para a falta de emprego.

Referências

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848

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Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

A MARGINALIDADE PELA VIA DA EDUCAÇÃO COMPENSATÓRIA:


CONTRIBUIÇÕES DA TESE FILOSÓFICO-HISTÓRICA DA
PEDAGOGIA DA ESSÊNCIA E DA PEDAGOGIA DA EXISTÊNCIA
NA ATUALIDADE

Rafael de Lima Bilio1

Resumo: O presente artigo tem o objetivo de analisar a reflexão teórica, elaborada por
Demerval Saviani (1989, 2012a, 2012b), a respeito das teses filosófico-históricas da pedagogia
da essência e da pedagogia da existência, sendo esta de caráter reacionário e, aquela, de caráter
revolucionário. Para tal, o artigo apresenta uma breve reflexão sobre os elementos sócio-
históricos da ascensão da burguesia, enquanto classe revolucionária, em seu processo de
transformação em classe consolidada no poder, bem como sobre o gradual deslocamento da
pedagogia da essência para a pedagogia da existência. A partir dos fundamentos da tese
filosófico-histórica de Saviani, bem como na perspectiva interpretativa e metodológica
materialista-histórica, este texto busca compreender como o conceito de marginalidade que, na
atualidade é pensado pela via da educação compensatória, se apresenta.

PALAVRAS-CHAVE: Pedagogia da essência; pedagogia da existência; educação compensatória.

Introdução

Com esse artigo, temos a intenção de apresentar uma análise sobre o referencial
teórico da tese filosófico-histórica, elaborada por Demerval Saviani (1989, 2012a,
2012b), a respeito do caráter revolucionário da pedagogia da essência e do caráter
reacionário da pedagogia da existência, buscando compreender como o conceito de
marginalidade é apresentado e discutido, na atualidade, considerando que este conceito
é pensado, atualmente, pela via da educação compensatória.
Trata-se de uma reflexão de extrema importância, dado o momento social e
político que a sociedade brasileira vem vivenciando nos últimos tempos. Considerando
o contexto a que esta reflexão se debruça - a da educação -, o estudo busca transcender,
isto é, aprofundar o espaço da generalidade abstrata das discussões educacionais,
considerando a reprodução social da classe trabalhadora como elemento de mediação
histórica para se compreender a totalidade dos fenômenos. Nesse sentido, a temática ora

1
Formado em Pedagogia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, mestre e doutorando em
educação pela Universidade Federal Fluminense. Vinculado ao Núcleo de Estudos, Documentação e
Dados sobre Trabalho e Educação - NEDDATE (UFF). rafaelbilio@ig.com.br


851

tratada encontra-se inscrita em um período de intensas ações governamentais de criação


de programas que demarcam um deslocamento da política educacional para uma
“hipertrofia” da pedagogia da existência, deslocamento este, que vem reduzindo a
educação para uma concepção de política social compensatória e de equalização social.
A consideração da particularidade histórica do caráter revolucionário da
pedagogia da essência e do caráter reacionário da pedagogia da existência - que são os
elementos norteadores do artigo - podem indicar caminhos para a compreensão da
miríade de programas educacionais governamentais contemporâneos, fundamentados na
pedagogia da existência. É nessa direção que pretendemos desenvolver este texto. Para
dar conta desta tarefa, apresentamos, inicialmente, uma reflexão que articula alguns
elementos sócio-históricos da ascensão da burguesia, enquanto classe revolucionária,
em seu processo de transformação em classe consolidada no poder, com o gradual
deslocamento da pedagogia da essência para a pedagogia da existência. Na sequência,
complementaremos essa reflexão, apresentando uma análise da metamorfose sócio-
histórica da educação compensatória, a qual se sustenta por meio de uma quantidade
elevada de programas educacionais atravessados por uma efervescência de políticas
sociais e, também, recolocando o problema da superação e/ou estabilização da
marginalidade, como ponto central do capitalismo contemporâneo.
Além dos fundamentos buscados em Saviani, também temos como referencial
teórico as bases do materialismo histórico, uma que este estudo busca compreender o
ser humano como histórico-social, e a sociedade, como síntese contraditória de relações
sociais de produção que se constroem na luta pela superação das necessidades em busca
da emancipação humana. (MARX, 1977, 1996). Essa realidade, inquietante e
instigadora, motiva-nos à reflexão proposta neste texto, mas, contudo, trata-se de uma
tarefa desafiadora, uma vez que, numa concepção dialética, a realidade concreta não nos
é apresentada de forma clara e harmoniosa, ou seja:

[...] o concreto é tanto o ponto de partida como o resultado do


processo de conhecimento (cf.1977:218-9); sua aparência, caótica no
começo, na imediaticidade da primeira percepção, tanto esconde a
essência do fenômeno – cria, ao empirista e ao sujeito atuante, a
imagem de identidade entre o imediatamente aparente e sua essência –
como é o verdadeiro ponto de partida para seu desvendamento,
permitindo atingir a essência e o fundamento do seu movimento.
(MARX apud MONTAÑO, 2003,p. 269).

Marx (1977), ao desenvolver o caminho do concreto caótico ao concreto



852

pensado, utiliza-se, como suporte de sua reflexão, as mediações que dão significação ao
método da economia política na superação da imediaticidade alienante. Segundo ele,
para apreendermos as mediações da totalidade social (e os fenômenos que a
constituem), precisamos romper com a visão imediatista e utilitarista. Para isso, o
materialismo histórico nos auxilia na superação da antinomia entre cotidianidade e o
processo histórico. Em outros termos, trata-se de um estudo onde se pretende captar
mediações para além da aparência do fenômeno (KOSIK, 2002), o que exige a
compreensão das particularidades e da realidade social, onde se constrói a educação dos
trabalhadores.

1 O caráter revolucionário da pedagogia da essência e o caráter reacionário da


pedagogia da existência

Para compreender o aspecto revolucionário da pedagogia da essência, enquanto


instrumento da classe revolucionária burguesa, Saviani (2012a, 2012b) destaca três teses
políticas: a primeira, denominada “tese filosófico-histórica”, explicita o caráter
revolucionário da pedagogia da essência, bem como, o caráter reacionário da pedagogia
da existência; a segunda, “tese pedagógico-metodológica”, expõe sobre o caráter
científico do método tradicional e do caráter pseudocientífico dos métodos novos; por
fim, a terceira,“tese especificamente política” possui uma dimensão política da
articulação da democracia no interior da escola.
Para a análise desse texto, daremos destaque à primeira tese de Saviani - a tese
“filosófico-histórica”. Temos consciência que tal recorte é indissociável das demais
teses, acerca do desvelamento e da destruição da pseudo-concreticidade dos fenômenos
educacionais contemporâneos. Porém, trata-se de um recorte necessário em função do
tempo e do espaço que a reflexão das três teses demandaria.
Assim, tendo como base a tese “filosófico-histórica” de Saviani, o estudo busca
responder à seguinte questão norteadora: Por que a pedagogia da essência apresenta um
caráter revolucionário e por que a pedagogia da existência apresenta um caráter
reacionário?
A resposta a essa pergunta demanda uma retomada histórica de como pedagogia
da essência foi se consolidando, tendo como fundamento a concepção filosófico-
essencialista, durante a Idade Média, concepção essa, que apresenta uma trajetória de
submissão e sustentação da classe burguesa em ascensão. Imersa nesse contexto, a



853

concepção essencialista relaciona a essência humana com a criação divina, para quem a
questão do destino predefinido acompanha uma essência determinada. Nesse cenário,
enquanto classe em ascensão, a burguesia direcionava e tencionava para a
transformação da concepção essencialista, tendo como argumento a defesa da igualdade
essencial entre os homens. E a liberdade, como categoria política burguesa, emerge
sobre a base de igualdade dos homens, demandando, assim, uma reforma da sociedade.
Na época, esse debate é fomentado por Jean Jacques Rousseau (2008 e 2011),
nas obras Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade (1755) e O
Contrato Social (1762), por meios das quais, Rousseau propõe a modificação da
característica da sociedade com base no direito natural para uma sociedade contratual.
Ou seja, a liberdade funda-se na igualdade natural entre os homens podendo dispor de
um livre arbítrio no uso dessa liberdade. A esse respeito, Saviani (2012b) reflete que o
desenvolvimento de uma sociedade contratual, mediada pelos acontecimentos e
repercussões do contexto sócio-histórico que antecedem a revolução burguesa, foi
potencializado pela ascensão da classe burguesa, de modo que a ênfase passa a basear-
se em uma igualdade formal (“todos são iguais perante a lei”).
Esse foi um dos caminhos que, após a Revolução Francesa de 1789, deu-se a
passagem da ascensão da classe revolucionária burguesa para uma classe consolidada
no poder, tornando-se dominante. Essa nova consolidação da classe burguesa em classe
dominante acabou acionando modificações na estrutura da pedagogia da essência, as
quais serviram de modelo para a estruturação do sistema nacional de ensino2 da época,
bem como para a proposta de escolarização para todos, fortemente influenciada do
iluminismo. A escolarização era vislumbrada como elemento indissociável da
participação política3, além de servir como instrumento para alimentar a razão e o
espírito. Nesse contexto, a formação comum era compreendida como a construção da
igualdade dos cidadãos, em relação à cultura e ao seu acesso, baseando-se na ideia de
um patrimônio reconhecidamente comum. Por essa ótica, construir a razão significava
construir os alicerces da autonomia política e da participação ativa do indivíduo na
construção da vida coletiva. Portanto, o ser cidadão era concebido como indissociável
do ser autônomo, possibilitado através da conquista da razão (Kant, 2002). Assim, o

2
Quando é mencionada a construção do sistema nacional de ensino, referimo-nos à construção do modelo
público de educação francês, que influenciou, em grande medida, as construções dos sistemas nacionais
de ensino pelo mundo, adquirindo certas especificidades sócio-históricas em cada região.
3
A democratização plena do saber pela especificidade da educação escolar é uma construção social do
capitalismo, “mas não se pode efetivar inteiramente nele”. (SAVIANI, 2012a,p.45).



854

projeto de um sistema de escolarização comum permanece ligado ao projeto de


democracia burguês. De modo que o direito de todos ao acesso da educação escolar está
relacionado aos interesses da classe burguesa enquanto consolida-se no poder.
Na estruturação do modelo educacional, o iluminismo exerceu uma hegemonia
que resultou em uma concepção de formação como instrumento para a razão se fazer.
As obras de Immanuel Kant (2002) exerceram forte influência no debate da apropriação
do saber, instituindo, por um lado, a ideia de uma educação racional, cognitiva, e, por
outro, de uma educação ética, moral e estética. É o conceito de subjetividade
transcendental kantiano que melhor expressa essa conquista da razão e o entendimento
de que se pode atingir, a-priori, a essência das coisas. Dessa forma, os conhecimentos
alimentariam a formação dos espíritos, na denominada “época das luzes”, havendo uma
sobrevalorização da educação, uma vez que esta é entendida como o meio mais eficaz
de ampliar “as luzes”.
A ideia iluminista de educação como fomento da razão está no pólo atitético da
compreensão da marginalidade, vista como “ignorância” (SAVIANI, 2012b). Nessa
ótica, a escola emerge para combater o problema da marginalidade e da ignorância,
desenvolvendo as disposições humanas e partindo do estado inculto para um estado
cultivável. Para sintetizarmos alguns pontos da transição da classe burguesa, como
classe revolucionária, para a consolidação no poder, retomamos uma passagem de O
Mestre Ignorante4, de Ranciere, a fim de exemplificar a efervescência do período:

[...] Em suma, o ato essencial do mestre era explicar, destacar os


elementos simples dos conhecimentos e harmonizar sua simplicidade
de princípio com a simplicidade de fato, que caracteriza os espíritos
jovens e ignorantes. Ensinar era, em um mesmo movimento, transmitir
conhecimentos e formar espíritos, levando-os segundo uma progressão
ordenada, do simples ao complexo. Assim, progredia o aluno, na
apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto,
até onde sua destinação social o requeria, preparando-se para dar à sua
educação uso compatível com essa destinação: ensinar, advogar ou
governar para as elites; conceber, desenhar ou fabricar instrumentos e
máquinas para as novas vanguardas que se buscavam, agora, arrancar
da elite do povo; fazer, na carreira das ciências, novas descobertas
para os espíritos dotados desse gênio particular. (RANCIERE,
2002,p.3).

4
Jaques Ranciere escreve o referido livro a partir de pesquisas realizadas no período mencionado, através
do personagem clássico de Joseph Jacotot, que surgiu inicialmente na obra intitulada A Noite dos
proletários. O “Mestre Ignorante” aborda questões cruciais para o entendimento da pedagogia,como a
criação da cientificidade, na formação humana e nos atos e mitos da pedagogia.



855

Em termos sintéticos, a pedagogia da essência é equivalente ao denominado


ensino tradicional, que se estruturou por um método pedagógico expositivo de matriz
teórica Herbatiana, fundamentado em cinco passos: preparação, apresentação,
comparação, assimilação e generalização5. Assim, prevalece no período pós Revolução
Francesa, o entendimento da organização do ensino associado à ideia dos
conhecimentos partindo do simples para o complexo, bem como a estruturação do
sistema de ensino hierarquizado em níveis e séries. Nesse contexto, as críticas da
pedagogia da existência, sobre a pedagogia da essência,centram-se, principalmente, nos
métodos tradicionais, cujas práticas pedagógicas eram desenvolvidas por meio do
ensino mecânico e repetitivo. Desse modo, a burguesia vai construindo os argumentos
em defesa do abandono da pedagogia da essência, como uma construção dela própria.
Com isso, demarca um gradual abandono da Escola Tradicional, propondo, em seu
lugar, uma pedagogia fundada na existência, no igualitarismo e na legitimação das
desigualdades de classe, norteando a ideia oculta do aprendizado para uma finalidade
social dada a-priori. Contraditoriamente, um dos méritos da pedagogia da existência
refere-se à denúncia do caráter mecânico e desatualizado dos conteúdos próprios da
escola tradicional. Entretanto, ao apontar criticamente para os métodos e práticas
pedagógicas tradicionais, a pedagogia da existência, não considerou as consequências
produzidas historicamente pela pedagogia da essência. (SAVIANI,2012b).
A gradual implementação da pedagogia da existência fez com que aqueles
elementos da Escola Tradicional relacionados com dimensões transformadoras
ganhassem contornos de manutenção do status quo. O deslocamento da compreensão de
que “os homens não são necessariamente iguais” para “os homens são essencialmente
diferentes” vem acompanhada do discurso do mérito, que substitui a participação
democrática. Assim, o movimento de implementação da pedagogia da existência
corresponde a um mecanismo de transformação dos interesses burgueses em interesses
populares, reivindicando uma reforma da escola que atenderia a toda a sociedade, além
de contemplar as diferentes classes em uma pseudo-harmonia social.(SAVIANI,
2012b). Dessa forma, a pedagogia da existência contribuiu para que a transmissão de
conhecimentos fosse “[...] secundarizada e subordinada a uma pedagogia das diferenças,


5
Saviani (2012b) ressalta que o método Herbatiano é influência do método cientifico indutivo, a partir da
construção do movimento filosófico do empirismo, que foi a base do desenvolvimento da ciência
moderna.



856

centrada nos métodos e processos: a pedagogia da existência ou pedagogia nova”.


(SAVIANI, 2012b,p.65).
A reflexão até então apresentada demonstra que o horizonte da igualdade real e a
historicidade dos conteúdos culturais6 dos conhecimentos demarcam o aspecto
revolucionário da pedagogia da essência. Portanto, o caráter revolucionário desta
pedagogia centra-se na questão da igualdade essencial entre os homens. Por outro lado,
o horizonte da igualdade real, da pedagogia da essência, implica em desafios históricos
que precisam ser confrontados com a pedagogia da existência, como, por exemplo, a
igualdade de acesso aos conteúdos culturais. Nesse sentido, a secundarização e a
subordinação da importância da transmissão dos conhecimentos, acabou promovendo
uma hipertrofia educacional dos métodos e processos, desenvolvidos anteriormente pela
pedagogia da existência. Saviani reflete sobre essa questão com a seguinte
argumentação:

A ampliação da influência da pedagogia da existência pela rede de


escolas públicas, que continuavam com as condições da pedagogia da
essência, contribuiu para desorganizar o ensino nas referidas redes de
escolas rebaixando o nível da educação destinada às classes populares.
(SAVIANI, 2012b, p.47).

Saviani (1989, 2012a, 2012b) também ressalta o surgimento, no Brasil,de uma


“Escola Nova Popular”, fomentada pelo “Movimento Paulo Freire de Educação”, com
fortes influências do existencialismo cristão e da concepção humanista moderna de
filosofia da educação. A diferença dessa “Escola Nova Popular”, em relação a outros
movimentos da Escola Nova, é a formulação de uma concepção pedagógica que articula
e atende aos interesses populares. Precisamos lembrar que Paulo Freire é influenciado
pela Teologia da Libertação e ambos-a “Escola Nova Popular” (de Freire) e os outros
movimentos da Escola Nova” -preconizam uma espécie de novo humanismo cristão.
Um dos elementos importantes, na obra de Paulo Freire7 (1996, 2009),refere-se à defesa
da educação como prática de liberdade,através da pedagogia do oprimido. Assim, há um
constante diálogo das duas perspectivas -da Escola Nova Popular, de Freire e dos outros
movimentos da Escola Nova -que comungam em favor da superação da opressão,
evidenciando o processo libertador dentro de uma práxis político-educativa. A proposta

6
O desafio decorre da “transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais,
dinâmicos, atualizados e concretos”. (Saviani, 2012b, p.64).
7
Algumas características das obras de Paulo Freire são marcantes: a ação dialógica, a garantia da
horizontalidade da relação educador-educando, a relação oprimido/opressor.



857

da Escola Nova Popular é fortemente desestruturada pelo golpe militar de 1964, que
passa a atuar como mecanismo de recomposição da hegemonia burguesa, atribuindo
grande importância à pedagogia tecnicista, a qual propõe que a formação escolar se dê
por intermédio dos meios de comunicação de massa e das tecnologias de ensino.
Qualquer que seja a análise do caráter revolucionário da pedagogia da essência e
do caráter reacionário da pedagogia da existência, esta não pode deixar de considerar
que ambas apresentam uma ausência tanto da perspectiva historicizadora como dos
condicionantes dos processos sócio-históricos da educação. Além disso, ambas as
pedagogias compreendem a escola como mecanismo redentor da humanidade. Por um
lado, a pedagogia da existência partilha de um idealismo às avessas, uma vez que a
educação na condição de elemento determinante da estrutura social. (SAVIANI, 2012a,
2012b). Por outro, a pedagogia da essência não identifica a educação como
determinante principal das transformações sociais, mas, sim, como elemento secundário
e determinado, apesar de influenciar o elemento determinante da estrutura social. Esse é
um importante aspecto para desvelar a realidade, quando se analisa o caráter de correção
da marginalidade e equalização social da pedagogia da existência, sob o discurso
redentor educacional moderno. A marginalidade mantém-se como justificativa para
ofertas de inúmeros programas educacionais e em estreita correlação com essa
pedagogia. Nas últimas quatro décadas, tais programas serviram para fundamentar as
bases do projeto de reestruturação socioeconômica de cunho neoliberal, com a
“constituição de um novo contrato social” que, por sua vez, substitui aquele
característico do período fordista/keynesiano. (MONTAÑO,2003,p.144).

2 A marginalidade como estado permanente pela via da educação compensatória

As consequências sócio-históricas do aprofundamento da pedagogia da


existência seguiram processos de intensificação da qualificação do trabalho intelectual e
da desqualificação do trabalho manual. Com isso, a pedagogia nova acabou
consolidando na escola brasileira o acesso aos subprodutos da cultura burguesa,
principalmente na rede pública voltada para as camadas populares. (SAVIANI, 2012a,
2012b).
O uso da expressão “pedagogia nova” equivale ao da “pedagogia da existência”,
por ambas possuírem o fundamento da “concepção humanista moderna de filosofia da



858

educação, abrangendo movimentos filosóficos como o vitalismo, o historicismo, o


existencialismo e a fenomenologia”. (SAVIANI, 2012b,p.43).
Nesse contexto, a pedagogia da existência ou pedagogia nova compõe as
denominadas teorias não críticas, ao compreender a educação como um fator de
equalização social e correção da marginalidade. Assim, diferentemente da pedagogia da
essência, onde o marginalizado é entendido como “ignorante”, na pedagogia da
existência/nova, o marginalizado é visto como o rejeitado. A respeito da marginalização
sustentada pela educação compensatória, Saviani argumenta:

A marginalidade é, pois, um fenômeno acidental que afeta


individualmente um número maior ou menor dos seus membros, o
que, no entanto, constitui um desvio, uma distorção que não só pode
como deve ser corrigida. A educação emerge aí como um instrumento
de correção dessas distorções. Constitui, pois, uma força
homogeneizadora que tem por função reforçar os laços sociais,
promover a coesão e garantir a integração de todos os indivíduos no
corpo social. Sua função coincide, no limite, com a superação do
fenômeno da marginalidade. Enquanto esta ainda existir, devem
intensificar-se os esforços educativos; quando for superada, cumpre
manter os serviços educativos num nível pelo menos suficiente para
impedir o reaparecimento do problema da marginalidade. (SAVIANI,
2012b, p. 4).

Em outros termos, tanto a pedagogia da existência/nova como a pedagogia da


essência concebem a educação como fator de equalização social, como fator que serve
de instrumento para superação da marginalidade, na medida em que inserem e ajustam
os indivíduos à sociedade, tendo em vista a construção de uma harmonia social. Afinal,
em dias atuais, não tem sido exatamente a situação de marginalidade vivida pelas
camadas populares que constitui a razão de ser de inúmeros programas de educação
compensatória? Essa posição é reforçada por Saviani (2012b, p. 32):

Assim, uma vez que se acumulavam as evidências de que o fracasso


escolar, incidindo predominantemente sobre os alunos
socioeconomicamente desfavorecidos, se devia a fatores externos ao
funcionamento da escola, tratava-se de agir sobre esses fatores.
Educação compensatória significa, pois, o seguinte: a função básica da
educação continua sendo interpretada em termos de equalização
social. Entretanto, para que a escola cumpra sua função equalizadora,
é necessário compensar as deficiências cuja persistência acaba
sistematicamente por neutralizar a eficácia da ação pedagógica.



859

Portanto, a “educação compensatória”8 está diretamente relacionada à teoria da


“pedagogia nova”, uma vez que, para compensar as carências dos educandos, baseia-se
na diversificação metodológica e técnica, bem como no tratamento diferenciado e de
respeito às diferenças individuais. (SAVIANI, 2012b).
Na contramão dessa perspectiva, o “sucesso” dos programas de educação
compensatória que objetivam combater a marginalização seriam levados à sua
autodissolução por meio de uma transformação dos sujeitos marginalizados em sujeitos
integrados. Ora, por que se expandem cada vez mais esses programas e o fenômeno
ganha novas dimensões, nomenclaturas e slogans? Porque a marginalização9, em vez de
ser concebida como uma etapa, como uma anomalia,passou a ser vista como um estado
permanente de existência social. Essa é a grande diferença assumida pelas teorias não
críticas na atualidade: a marginalidade é assumida como um estado permanente e
representa uma forma de existência social peculiar. Para as camadas populares, as ações
de educação compensatória conduzem para um estado intermediário entre a exclusão e a
inserção definitiva. O horizonte proclamado não produz a erradicação da marginalidade,
mas a sua conformação e estabilização, em níveis seguros, para evitar uma convulsão
social.
Todo esse contexto justifica o fato de o termo “exclusão” ter sido entendido, nas
últimas décadas, como equivalente ao conceito de “marginalidade”, além de revelar
imprecisões na forma como vem sendo utilizado. Para Castel (2008), a “exclusão” não é
uma ausência de relação social, mas um conjunto de posições, cujas relações com seu
centro são mais ou menos distendidos: trabalhadores que ficam desempregados por um
longo período, jovens que não conseguem emprego, trabalhadores que não “possuem as
competências” requeridas pela produção. Os excluídos são, assim, os “vulneráveis” que
transitam nos limites da sociedade. Portanto, faz-se imprescindível a compreensão do
termo “exclusão”, na medida em que há uma interdependência dos fenômenos, por
várias dinâmicas de mudança do padrão de acumulação do capital.
Na contramão dessa reflexão, Martins (1997), analisa que ninguém se encontra
totalmente excluído, somente os mortos e, mesmo assim, após uma lenta morte

8
Para SAVIANI (2012 a, 2012b), a educação compensatória não é uma teoria educacional, no sentido de
uma interpretação do fenômeno educativo que acarreta determinada proposta pedagógica (como é o caso
das teorias não críticas, em especial a pedagogia da existência, mas apresenta muitas similaridades).
9
A marginalização em certos discursos conservadores apresenta uma reinvenção do conceito de
vagabundos, antes da revolução industrial e/ou sobre os miseráveis do século XIX.



860

simbólica. Entretanto, esse posicionamento de Martins tem o mérito de apontar para a


ampliação da pobreza contemporânea e para as novas formas de desigualdade social, as
quais reduzem decisivamente as formas e a esperança de mobilidade social.
Na verdade, do refletido até aqui, importa destacar o desvelamento de uma
lógica econômico-social de fragmentação que, ao invés de integrar, polariza e diferencia
os seres humanos, evidenciando os processos precários de inclusão no capitalismo.

Considerações finais

O artigo evidenciou breves elementos sócio-históricos, acerca da ascensão da


burguesia como classe revolucionária, para compreender o deslocamento da pedagogia
da essência para a sobrevalorização da pedagogia da existência, nas fases de
consolidação da burguesia no poder. A fase subsequente de ascensão da burguesia, que
se consolida como classe hegemônica, produz mudanças nas relações sociais e
econômicas, incluindo a implementação da pedagogia da existência.
O conflito entre as pedagogias da essência e as pedagogias da existência pode
ser traduzido na diferença entre o educar guiado por um ideal abstrato de ser humano10 e
o educar, objetivando as realizações da existência individual. (Saviani,2012 a). A marca
da pedagogia da essência, que aponta o seu caráter revolucionário, é a transmissão dos
conteúdos, enquanto conhecimentos culturais que são históricos.
Embora este artigo não tenha explorado as outras duas teses apresentadas por
Saviani, a compreensão da primeira aqui analisada - a tese “filosófico-histórica”-
permite-nos compreender importantes mecanismos de desvelamento de fenômenos na
construção de programas educacionais compensatórios contemporâneos. A pedagogia
da existência, ao ser analisada como um fenômeno histórico, que é um fenômeno social,
deve ser assim examinada:

[...] como momento de um determinado todo; desempenha, portanto,


uma função dupla, a única capaz de dele fazer efetivamente um fato
histórico: de um lado, definir a si mesmo, e de outro, definir o todo;
ser ao mesmo tempo produtor e produto, ser revelador e ao mesmo
tempo determinado; ser revelador e ao mesmo tempo decifrar a si
mesmo; conquistar o próprio significado autêntico e ao mesmo tempo
conferir um sentido a algo mais. Esta recíproca conexão e mediação
da parte e do todo significam a um só tempo: os fatos isolados são
abstrações, são momentos artificiosamente separados do todo,os quais

10
Sendo definida por uma essência humana não histórica.



861

só quando inseridos no todo correspondente adquirem verdade e


concreticidade. (KOSIK, 2002,p.49).

O ocultamento da funcionalidade da pedagogia da existência e da educação


compensatória para o projeto burguês de sociedade abrange uma totalidade de
fenômenos que possibilitam interpretações equivocadas e conceitos imprecisos. Hoje, é
possível levantar esse tipo de questão, onde as políticas de educação compensatória já
são desenvolvidas com maior intensidade há mais de 40 anos. No começo, as políticas
de educação compensatória apresentam um caráter pontual e improvisado e se propõem
a ser provisórias e experimentais. Entretanto, sua consolidação progressiva foi
marcando a marginalidade,como um modo de existência baseado no provisório, sempre
à espera de uma integração definitiva no corpo social.Os programas de educação
compensatória podem ser atravessados para impedir riscos de explosões de violência
nas zonas de fragilidade urbana, melhorar as condições de escolarização da juventude,
combinadas com uma precária qualificação profissional direcionada para o trabalho
simples e/ou para melhorar a socialização das pessoas em situação de vulnerabilidade
social. (CASTEL, 2008).
Na verdade, não se abandona completamente essas camadas populares; apenas
se tece, em torno delas, uma rede de atividades, de iniciativas e de projetos. Na
atualidade, a ideia de equalização social, pela via da educação compensatória, reside na
construção de espaços de socialização secundária, colocando o indivíduo em um
submundo de instituições da denominada “sociedade civil” e/ou dos programas
governamentais. Em torno do status de “marginalizado”, a educação compensatória vem
dando forte ênfase à problemática da proteção social. A marginalidade apresenta-se
como uma condição de limite do processo de exclusão, fomentada pela precariedade da
relação com o trabalho e pela fragilidade dos serviços essenciais do Estado à população.
(CASTEL, 2008).
Os programas de educação compensatória acabam colocando, sob a
responsabilidade da educação, uma série de problemas que não são especificamente
educacionais, o que significa, na verdade, a persistência na crença ingênua do poder
redentor da educação, em relação à sociedade. Nesse contexto, a educação, por meio da
ação pedagógica, amplia os seus limites, ao assumir um conjunto de papéis que abarcam
diferentes modalidades de política social. Tudo isso resulta em um modelo de educação



862

compensatória, compreendida como um conjunto de programas destinados a compensar


deficiências de diferentes ordens.
O direito de obter os meios adequados de existência não seria um simples direito
à assistência, mas, sim, o modo como a sociedade compreende a reprodução social dos
seus membros. É nesse ponto que Saviani apresenta o desafio de compreender o
conceito de “trabalho educativo” como aquele situado numa perspectiva que supere a
opção entre a essência humana abstrata e a existência empírica. Assim, a essência
humana abstrata é recusada na medida em que a humanidade, que as forças essenciais
humanas, são concebidas como cultura humana objetiva e socialmente existente, como
produto da atividade histórica dos seres humanos. (SAVIANI, 2012a). Para Saviani, o
desafio reside no fato de que a

[...] pedagogia revolucionária situa-se além das pedagogias da


essência e da existência.Supera-as, incorporando suas críticas
recíprocas numa proposta radicalmente nova. O cerne dessa novidade
radical consiste na superação da crença na autonomia ou na
dependência absolutas da educação em face das condições sociais
vigentes. (SAVIANI, 2012b, p. 66).

Entretanto, nos dois últimos séculos, prevaleceu na estruturação do ensino


burguês a hierarquização em níveis, em séries e em finalidades diferentes. Nesse
horizonte, a cientificidade na formação humana baseia-se num conhecimento
desencarnado, num saber exato e prescritivo sobre o homem. A partir de tais
considerações, o distanciamento entre a escola e a realidade vai sendo efetivado, no
período posterior à Revolução Francesa, com o temor em relação à classe social, à
cultura popular e à educação. Para exemplificar, temos o relato de Thompson:

Durante um século ou mais, a maior parte dos educadores da classe


média não conseguia distinguir o trabalho educacional do controle
social, e isso impunha com demasiada frequência uma repressão à
validade da experiência da vida dos alunos ou sua própria negação, tal
como a que se expressava em dialetos incultos ou nas formas culturais
tradicionais. O resultado foi que a educação e a experiência herdadas
se opunham uma à outra. E os trabalhadores que, por seus próprios
esforços, conseguiam penetrar na cultura letrada viam-se
imediatamente no mesmo lugar de tensão, onde a educação trazia
consigo o perigo da rejeição por parte de seus camaradas e a
autodesconfiança. (THOMPSON, 2011, p. 36).

Consequentemente, este processo foi e continua sendo efetivado com “enorme


sucesso”, no século XXI, resultando na velha dicotomia da educação capitalista entre


863

trabalho intelectual e trabalho manual. O resultado dessa separação do teórico, que tem
por embasamento determinada apreensão do real que conduz a prática, é a reprodução
da visão conservadora do real.

Referências

CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2008.

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____________. O que é esclarecimento. 1784. Disponível em


www.serchris_e_diana_livros1.kit.net/kantrespondeperguntaesclarecimento.doc. Acesso em
18/07/2014.

KOSIK, K. A dialética do concreto. Rio de Janeiro: Vozes, 1986.

MARTINS, J.S. Exclusão social e a nova desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

MARK, K. O capital. São Paulo: editora Nova Cultural, 1996. v. I e II.

MARK, K. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977.

MONTAÑO, C. Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção


social. São Paulo: Cortez, 2003.

RANCIERE. J.J. O mestre ignorante. Belo Horizonte: Autêntica, 2002

ROUSEEAU, J.J. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade. São Paulo:


L&PM,2008.

____________. O Contrato Social. São Paulo: Saraiva,2011.

SAVIANI, D. Educação: do senso comum à consciência filosófica. São Paulo: Cortez, 1989.

____________. DUARTE, Newton. Pedagogia histórico-crítica e luta de classes na educação


escolar. São Paulo: Autores Associados, 2012 a.

____________. Escola e Democracia. São Paulo: Autores Associados,2012 b.

THOMPSON, E. P. Formação da Classe Operária Inglesa: A Força dos Trabalhadores. Ed:


Paz e Terra, 2011.



Seminário Dermeval Saviani e a Educação Brasileira
Construção coletiva da Pedagogia Histórico-Crítica
Universidade Federal do Espírito Santo
18 a 20 de outubro de 2016

RELATO DE EXPERIÊNCIA A PARTIR DO CURSO DE


APERFEIÇOAMENTO E ESPECIALIZAÇÃO EM PEDAGOGIA HISTÓRICO-
CRÍTICA PARA AS ESCOLAS DO CAMPO

Celi Nelza Zulke Taffarel (FACED UFBA)1


Erica Cordeiro Cruz Sousa (FACED UFBA)2
Sicleide Gonçalves Queiroz (FACED UFBA) 3

Resumo: Este artigo apresenta a experiência do Programa Escola da Terra, enquanto ação do
Programa Nacional de Educação do Campo (PRONACAMPO), desenvolvida na Universidade
Federal da Bahia (UFBA) por meio da Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física e
Esporte e Lazer (LEPEL) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação do Campo (GEPEC).
Trata da realização de um Curso de Aperfeiçoamento (200 horas) com complementação de 160
horas caracterizando Especialização, com carga horária de 360 horas, em Pedagogia Histórico-
Crítica para as Escolas do Campo à professores que atuam em classes multisseriadas do campo
no estado da Bahia A experiência demonstra necessidade da continuação deste trabalho, em
novas versões, aperfeiçoadas, a partir da crítica, ao que já foi realizado. Isto porque em sua
execução disputam-se recursos públicos, rumos na formação humana e, em última instância, o
projeto histórico para além do capital, o projeto histórico socialista.

Palavras-chave: Educação; Educação do Campo; Escola da Terra.

Introdução

A análise das condições materiais a partir das quais está imbricada a educação da
classe trabalhadora em geral e, em especial, a educação dos trabalhadores do campo,
parte de três teses fundamentais: a) a educação é uma conquista histórica no processo de
humanização, condição indispensável à existência humana; b) no modo de produção
capitalista, a educação escolar é mecanismo de hegemonização da classe burguesa; c) a
educação escolar não revoluciona a sociedade sozinha, mas sem ela a revolução tardará


1
Celi Nelza Zulke Taffarel, Pós-doutorado em Ciências do Esporte, Universitat de Oldenburg, Baixa
Saxônia, Alemanha. E-mail: taffarel@ufba.br
2
Erica Cordeiro Cruz Sousa, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal da Bahia, Bahia, Brasil. E-mail: sousa.e.c@hotmail.com
3
Sicleide Gonçalves Queiroz, Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Federal da Bahia, Bahia, Brasil. E-mail: siqueiroz@yahoo.com.br


865

rumo ao projeto histórico de emancipação de humana, ou seja, da superação da


sociedade de classes.
Aos trabalhadores(as) do campo é colocada a necessidade histórica de luta pela
garantia da existência no campo, diante do avanço do latifúndio e do agronegócio, a
estagnação da reforma agrária, a insuficiência das políticas públicas para os
trabalhadores e o aumento dos conflitos no campo, aspectos que indicam que a luta de
classes se acirra e coloca desafios aos movimentos de luta social do campo no plano
teórico e programático. Nessa luta destacamos o direito a uma Educação Pública e de
qualidade, voltada aos interesses dos trabalhadores(as). (TAFFAREL, 2013, p.46).
Partindo do interesse de contribuir com a educação do campo no plano teórico e
programático, a Universidade Federal da Bahia (UFBA), Faculdade de Educação
(FACED), por meio da Linha de Estudo e Pesquisa em Educação Física e Esporte e
Lazer (LEPEL) e do Grupo de Estudos e Pesquisa em Educação do Campo (GEPEC),
desenvolveram o Curso de Aperfeiçoamento (200 horas) com complementação de 160
horas caracterizando Especialização em Pedagogia Histórico-Crítica para as Escolas do
Campo, assentado na teoria histórico-cultural, com carga horaria de 360 horas, em
parceria com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e
Inclusão (Secadi), Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, Ministério da
Educação (ME) e as Secretarias de Educação dos Municípios e do Estado da Bahia.
Relatamos a experiência do trabalho realizado através do Programa Escola da
Terra, sendo este uma ação do Eixo nº 1 do Programa Nacional de Educação do Campo
(PRONACAMPO), Programa lançado pelo Governo Federal em 20 de março de 2012,
Portaria nº 86 de 02 de fevereiro de 2013, que define ações específicas de apoio quanto
à efetivação do direito à educação dos povos do campo e quilombola, considerando as
reivindicações históricas oriundas dessas populações.
O trabalho foi desenvolvido buscando aproximações com o Materialismo
Histórico Dialético enquanto teoria do conhecimento, por identificar neste a
possibilidade de compreender o real concreto superando a pseudoconcreticidade,
passando do real aparente indo em busca da realidade em sua essência, a partir de um
processo histórico em suas múltiplas condições e relações. Para apresentação, análise e
critica desse trabalho traçamos o seguinte caminho: no primeiro item tratamos da
natureza da educação enquanto trabalho educativo e a especificidade da educação
escolar no trato com o conhecimento sistematizado. No segundo item, abordamos a
experiência do Programa Escola da Terra, destacando como fundamento da formação



866

dos professores atuantes em classes multisseriadas do campo, a proposta da Pedagogia


Histórico-Crítica. No terceiro item apresentamos as considerações finais.

1 A essência da educação em geral e da educação escolar em particular para a


humanização e superação do capitalismo

Partimos do entendimento de que a “educação é um fenômeno próprio dos


seres humanos. Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela
compreensão da natureza humana” (SAVIANI, 2008, p.11). Deste modo, a base de
nossa análise é o reconhecimento da existência de características especificamente
humanas, que não estão inscritas na genética, e que por isso, não são naturais, mas,
sim, produtos da construção histórica.
A condição de desnaturalização humana desenvolveu-se pela necessidade de
garantia da existência humana. Diferentemente dos outros animais que se adaptam à
natureza para garantir a existência, o homem necessita adaptá-la as suas necessidades
para garantir a própria existência, ato que explica a essência do trabalho. Nesse
sentido, trabalho e atividade educativa são indissociáveis, pois o trabalho é uma ação
intencional, adequada a garantia da existência, e a atividade educativa é “[...] ao
mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela
própria, um processo de trabalho”. (SAVIANI, 2008, p. 12).
Nessa relação entre trabalho e atividade educativa vale reiterar que no
capitalismo, a dimensão produtiva do trabalho se sobrepõe a dimensão ontológica,
uma vez que na organização produtiva do capitalismo, o trabalho não é tido como
princípio educativo, e sim como mecanismo de exploração do homem pelo homem.
Na perspectiva de superação das determinações deste modo de produção na educação,
Saviani (2008, p. 13) afirma que, “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e
intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida
histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”
De acordo com Saviani (2008, p. 12), a educação é uma categoria de produção
do trabalho não-material, pois trata da “produção do saber, seja do saber sobre a
natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana”. O
autor esclarece que a educação enquanto trabalho não-material diz respeito às
atividades em que o produto não se separa do ato de produção, dando como exemplo a



867

relação entre a educação e o ensino, próprios do fenômeno educativo. Ainda de


acordo com Saviani, o objeto da educação diz respeito a duas faces: “de um lado, à
identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos
da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e
concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir este
objetivo” (SAVIANI, 2008, p.13).
Quanto à primeira face, o conteúdo trata-se de identificar o essencial e o
acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório, ou seja, trabalhar
com o “clássico”, que, diferentemente do tradicional, é aquilo que se firmou como
fundamental para a garantia da humanidade produzida historicamente; e, quanto à
segunda face, a forma, trata-se de descobrir os mecanismos mais adequados ao
desenvolvimento do trabalho pedagógico para a garantia da elevação teórica da classe
trabalhadora, que para tal, o método da Pedagogia Histórico-Crítica apresenta-se
como o que temos de mais avançado enquanto proposição teórico-metodológica.
Os conteúdos são de extrema relevância para a aprendizagem, visto serem
instrumentos de participação política da classe trabalhadora. Saviani adverte que sem
o domínio dos conteúdos culturais, os membros das camadas populares “[...] não
podem fazer valer os seus interesses, porque ficam desarmados contra os
dominadores, que servem exatamente desses conteúdos culturais para legitimar e
consolidar a sua dominação”. O autor afirma ser uma condição de libertação, “[...]
dominar o que os dominantes dominam”. (SAVIANI, 2012, p.55).
A divisão das classes, e, portanto, a divisão da produção intelectual
(conhecimento, cultura, arte etc.) entre proprietários e não proprietários que não é
instituída no modo de produção capitalista; ela se complexifica nessa sociedade, em
função do avanço das forças produtivas e da escola, enquanto, instrumento de
manutenção da classe dominante. Como consequência, institui-se um sistema
educacional que expulsa a classe trabalhadora da escola, expropriando-lhe o saber e
condicionando-a a exploração de sua força de trabalho e manipulação da sua
consciência diante à realidade. Saviani alerta que a Pedagogia Histórico-Crítica “foi
pensada para ser implementada nas condições da sociedade brasileira atual, na qual
predomina a divisão do saber”. (2012, p.80).
Assim, “[...] é a exigência de apropriação do conhecimento sistematizado por
parte das novas gerações que se torna necessária a existência da escola”. (SAVIANI,
2008, p.15). Os estudos da psicologia histórico-cultural, articulados à proposta da



868

pedagogia histórico-crítica, abordam a necessidade do reconhecimento do papel da


educação escolar no desenvolvimento dos indivíduos quando aos conteúdos e a forma
veiculados por ela, ao tratar do seu objeto de estudo, o psiquismo humano como
sistema interfuncional complexo na formação da imagem subjetiva da realidade
objetiva. Martins (2013) destaca duas observações à formação da imagem subjetiva da
realidade objetiva:

A primeira delas diz respeito à afirmação da possibilidade de que na


relação ativa sujeito-objeto se construa o conhecimento objetivo da
realidade, tornando-a inteligível. No esteio do materialismo
dialético, o referido conhecimento se identifica com a construção
dessa imagem por meio da captação, pela consciência, daquilo que
existe fora e independente dela [...].
A segunda observação refere-se à própria concepção marxista de
realidade, isto é, afirmação de que a realidade, e tudo que a
constitui, possui existência objetiva, de maneira que as sensações, as
idéias, os conceitos etc. não emergem da consciência humana a
partir dela mesma, mas originam-se da materialidade do real [...].
(MARTINS, 2013, p. 273).

A formação da imagem subjetiva da realidade objetiva é responsável pela


orientação do homem, subjetiva e objetivamente, na realidade concreta. Por isso,
Martins (2013, p. 2) ressalta que não é todo conteúdo ou conhecimento que possibilita
o desenvolvimento do psiquismo humano, destacando a relevância da educação
escolar “cuja função precípua deve ser a promoção do desenvolvimento dos
indivíduos na direção da conquista e da consolidação dos comportamentos complexos
culturalmente formados”.
Nesse sentido, é importante destacar que no trabalho educativo escolar não é
qualquer conteúdo e nem qualquer forma de desenvolvê-lo que possibilitará o alcance
do objetivo de produzir a humanidade nos indivíduos; é preciso que a escola
desenvolva a qualidade da imagem subjetiva da realidade a ser construída, aliada a um
projeto de humanização.
Não podemos perder de vista que os estudos da Psicologia Histórico-Cultural e
da Pedagogia Histórico-Crítica pouco ou jamais fazem parte do currículo de formação
de professores no Brasil. No capitalismo, a formação do educador passa pelo crivo da
política neoliberal e das pedagogias do “aprender a aprender” que são, segundo
Duarte (2004), apropriações neoliebrais e pós-modernas da teoria vigotskiana,
baseadas no construtivismo e no escolanovismo, com o objetivo de produção e
reprodução do modo de produção da vida a partir de um trabalho pedagógico



869

esvaziado de sentido para a formação humana e desprovido de proposição histórica de


superação.
Nesse sentido, o educador precisa reconhecer o quão essencial é o seu papel
dentro da escola, rumo ao projeto histórico de uma sociedade sem classes, mas isso
não vai acontecer sem o domínio de uma consistente base teórica, ou seja, sem uma
teoria revolucionária.
Lombardi (2013) afirma que “o educador precisa romper com as pedagogias
escolares articuladoras dos interesses da burguesia e vincular sua concepção e sua
prática a uma perspectiva revolucionária de homem e de mundo” (p.14). O autor
aponta a tripla tarefa dos educadores na perspectiva da construção do projeto
comunista: 1. Empreender uma radical e profunda crítica da educação burguesa; 2.
Organizar uma educação crítica aos trabalhadores; 3. Organizar uma formação
política para a luta revolucionária. (LOMBARDI, 2013, p.15).
Sintetizamos esse primeiro momento de análise, o que é o horizonte e o
fundamento da pedagogia histórico-critica, com uma afirmação de Newton Duarte
(2011) que articula a essência da educação, em geral, e a educação escolar, na
perspectiva da Pedagogia Histórico-Crítica, em particular: “A plena humanização das
relações entre os indivíduos alcançada por meio da revolução comunista que
transforme a riqueza material e espiritual universal do gênero humano em conteúdo
universal da vida de cada indivíduo”. (DUARTE, 2011, p. 20).

2 A problemática da educação dos(as) trabalhadores(as) do campo e a


experiência do Programa Escola da terra – UFBA

A exploração capitalista surge da extração das riquezas naturais brasileiras


pelos portugueses para fins comerciais no mercado da Europa do século XVI. Esse
processo intensificou-se ao longo de mais de 500 anos de história do Brasil, com a
implementação da Lei nº 601, de 1850, que “[...] regulamentou e consolidou o modelo
da grande propriedade rural, que é a base legal, até os dias atuais, para a estrutura
injusta da propriedade de terras no Brasil”. (STEDILE, 2011, p.23).
A luta da população do campo pela terra, a partir da Reforma Agrária, está
relacionada à garantia de mecanismos de produção e reprodução da vida no campo,
para que se evite a continuidade da expulsão em massa da população do campo para a
cidade. Taffarel (2013) evidencia a “inexistência e/ou insuficiência de políticas



870

públicas, econômicas e sociais no campo que beneficiem o contingente de


trabalhadores rurais que vivem efetivamente do trabalho do campo” (p.48).

Educação, Saúde, Comunicação, Lazer, Segurança Pública,


Saneamento Básico, Infraestrutura pública para a produção – colheita,
armazenagem e transporte da conheita -, inexistem ou são
insuficientes para os pequenos agricultures. O que há é a iniciativa
privada assegurando aos latifundios os seus benefícios. O caso da
maior seca dos últimos quarenta anos, que assolou o nordeste
brasileiro, é um exemplo da falta de políticas públicas para o campo.
Outro fator é a insuficiencia da universalização da educação, em todos
os seu graus e níveis, para os jovens do campo. Os dados mostram que
a escolarização das crianças e dos jovens é menor do que as cidades.
(TAFFAREL, 2013, p. 48-49).

De acordo com Saviani (2013, p. 8), a subordinação do campo à cidade e da


agricultura à indústria é uma tendência do desenvolvimento histórico e que se expressa
na crescente urbanização do campo e industrialização da agricultura. Segundo o autor,
esta tendência é considerada como um avanço, assim constataram Marx e Engels no
Manifesto do Partido Comunista, pois a “burguesia desempenhou na História um papel
eminentemente revolucionário”, rompendo “as relações feudais, patriarcais e idílicas”.
Assim, o autor aponta, dentre os vários aspectos que revelam o caráter revolucionário da
burguesia, no Manifesto, a relação cidade-campo:

A burguesia submeteu o campo à cidade. Criou grandes centros


urbanos; aumentou prodigiosamente a população das cidades em
relação à dos campos e, com isso, arrancou uma parte da população do
embrutecimento da vida rural. Do mesmo modo que subordinou o
campo à cidade, os países bárbaros ou semibárbaros aos países
civilizados, subordinou o campo à cidade, os países bárbaros ou
semibárbaros aos países civilizados, subordinou os povos camponeses
aos povos burgueses, o Oriente ao Ocidente. (MARX; ENGELS apud
SAVIANI, 2013, p. 8).

Desse modo, considerando o desenvolvimento da humanidade a partir da relação


cidade-campo, constatamos que na Antiguidade os homens viviam na cidade, mas do
campo; na Idade Média, os homens passaram a viver no campo e do campo; e na Época
Moderna, passaram a viver na cidade e da cidade. Na sociedade contemporânea, a
relação cidade-campo é marcada pelo processo crescente de urbanização do campo e
industrialização da agricultura e é nesse contexto que a escola se constitui na forma
principal e dominante de educação. (SAVIANI, 2013, p. 06).



871

É justamente esse movimento histórico de dominação da cidade em relação ao


campo, direcionado pelo modo de produção capitalista, que o Programa Escola da Terra
foi elaborado a partir de uma base científica capaz de habilitar os professores a
construírem um projeto superador de educação do campo, visto que

[...] tem-se observado que os elementos metodológicos presentes em


documentos oficiais para a Educação do Campo são de base
neoliberal, escolanovista e construtivista, o que requer uma profunda
reorganização para a Educação do Campo de qualidade.
(MARSIGLIA; MARTINS, 2014, p. 177).

É nesse sentido que o Curso Aperfeiçoamento (200 horas) com complementação


de 160 horas caracterizando Especialização em Pedagogia Histórico-Crítica para as
Escolas do Campo, explora elementos da teoria pedagógica histórico-crítica, tais como
origem, fundamentos e organização do trabalho pedagógico, buscando enfrentar um dos
problemas centrais da Educação do Campo no Brasil - e intensificado nas regiões Norte
e Nordeste -, que é a baixa escolaridade dos professores, e fortalecendo a construção de
um projeto de educação do campo de acordo com os interesses dos trabalhadores.
O curso foi destinado para professores que atuam em classes multisseriadas. Foi
estruturado considerando parâmetros teórico-metodológicos do materialismo-histórico-
dialético, da teoria psicológica histórico-cultural, da pedagogia histórico-critica. É uma
abordagem que está sendo discutida e implementada no Nordeste do Brasil como uma
alternativa que nasce da crítica à realidade das escolas do campo, às tendências
idealistas da Educação e à atual organização do trabalho pedagógico na escola do
campo, buscando avanços na base teórica de formulação e intervenção dos professores
que atuavam com o Programa Escola Ativa, hoje denominado de Escola da Terra.
Em 2014 implementamos o Curso de Aperfeiçoamento em Pedagogia histórico-
critica para as Escolas do Campo - PRONACAMPO – AÇÃO ESCOLA DA TERRA,
atendendo 750 professores atingindo 42 municípios da Bahia, nesta segunda versão
atendemos cerca de 650 professores, dezoitos (18) municípios, entre eles, Itiúba,
Retirolândia, São Domingos, Serrinha, Tucano, Monte Santo, Abaré, Chorrochó, Glória,
Macururé, Andorinha, Antônio Gonçalves, Caldeirão Grande, Filadélfia, Pindobaçu,
Senhor do Bonfim e Rodelas, os quais distribuídos dentre os quatros (4) Polos de
Formação, Serrinha, Paulo Afonso, Monte Santo e Senhor do Bomfim.
O Curso foi organizado na modalidade de alternância (semipresencial), em
quatro (4) módulos sequenciados com dez (10) horas presenciais e quarenta (40)



872

semipresenciais, tendo quatro (4) momentos de planejamento com (8) horas com
formadores, pesquisadores e tutores. Em cada módulo buscou articular o conhecimento
teórico-prático a partir da problematização, da análise dos fundamentos, das
possibilidades epistemológicas, e das proposições sopradoras.
Os módulos foram desenvolvidos através de seminários interativos, de oficinas
de experiências e aprendizagens para a formação docente. Os módulos foram também
articulados em torno de quatro (4) sistemas de complexos: a) O modo de produção da
vida e o trabalho como princípio educativo; b) A ontologia do ser social, o
desenvolvimento humano, a teoria do conhecimento e as aprendizagens sob
responsabilidade da escola; c) A organização do trabalho pedagógico, o currículo,
projetos, programas segundo um programa de vida; d) As políticas públicas
educacionais que organizam a rede de ensino, as escolas e a sala de aula na perspectiva
da emancipação humana.
O curso teve períodos de concentração com atividades em sala de aula, aqui
denominado “momento de interação pedagógica – MIP” (Interação entre
Conhecimentos clássicos já produzidos e as experiências práticas dos envolvidos no
processo pedagógico sob a condução e participação ativa dos professores da rede
pública que participam do curso como monitores e tutores), e os momentos de Interação
no Trabalho (MIT), o qual refere-se ao período de intervenção prática. Interação com o
processo de trabalho, com as ações existentes em sua área de abrangência, auto
condução mediante roteiro e orientação do assessor pedagógico, no qual foram
realizadas as atividades de intervenção prática com supervisão em campo.
No início do Curso, além da apresentação da proposta pedagógica do curso, foi
trabalhada a concepção sobre modo de produção e do trabalho em geral ao trabalho
pedagógico como princípio educativo. No primeiro módulo foram tratados os
fundamentos sobre Modo de Produção, do trabalho em geral ao trabalho pedagógico. Os
professores trataram quatro eixos fundamentais: a Concepção de Educação do Campo;
Projeto Político Pedagógico da escola do campo, Organização do Trabalho Pedagógico
e Currículo para as Escolas do Campo e o Financiamento das escolas do campo.
O segundo módulo tratou do desenvolvimento do psiquismo e sua relação com a
Educação Escolar. As dimensões a serem desenvolvidas da personalidade das crianças.
A ontologia do ser social, a teoria do conhecimento e do processo ensino-aprendizagem
foram tratados, juntamente com a função social da escola, como meio de acesso aos
produtos culturais das diferentes áreas do conhecimento.



873

No terceiro módulo foram tratados os fundamentos e bases do processo de


alfabetização e letramento das crianças na multisseriação, tendo como eixo norteador as
concepções de desenvolvimento e aprendizagem (Psicologia Histórico-Cultural e
Pedagogia Histórico-Critica). Neste módulo foram trabalhadas as pesquisas e práticas
pedagógicas na educação do campo, estudando a Prática Pedagógica, Planejamento de
Ensino e o trabalho com as áreas do conhecimento.
No quarto módulo foram trabalhadas as questões de gestão educacional das
escolas do campo no estado da Bahia, com o intuito de que o professor compreendesse a
gestão educacional e escolar do campo na perspectiva histórico-crítica, identificando as
possibilidades da gestão do espaço escolar e da comunidade, mediadas por práticas
educativas superadoras, fundamentando-se na concepção de gestão educacional a partir
da pedagogia histórico-crítica.As orientações no tempo universidade subsidiaram a
elaboração de relatórios técnico-científicos a serem entregues, segundo normas técnicas,
como requisito para conclusão do curso.
Ao término do curso, os alunos apresentaram o relatório técnico cientifico como
trabalho de conclusão de curso versando sobre a pedagogia histórico-crítica e o projeto
de intervenção na escola com esta base teórica.
Em síntese, buscou-se a elevação teórica na formação continuada dos
professores do Estado da Bahia, que atuam nas classes multisseriadas, nas Escolas do
Campo, tratando de conteúdos científicos sobre modo de produção, função social da
escola, teorias que explicam o processo de ensino-aprendizagem e organização do
trabalho pedagógico em classes multisseridas. A constatação sobre a assimilação destes
conhecimentos foi possível de ser verificada na comparação do domínio do
conhecimento no inicio e no final do curso expresso nos relatórios dos professores.

À guisa de conclusão de um trabalho em construção

Do experiência do Curso de Aperfeiçoamento (200 horas) com complementação


de 160 horas, preenchendo um total de 360 horas, caracterizando Especialização em
Pedagogia Histórico-Crítica para as Escolas do Campo, destacamos avanços relevante à
formação de professores das classes multisseriadas do campo. Esses avanços são claros,
por exemplo, nos depoimentos e intervenções feitas pelos professores cursistas no
Tempo Universidade, expressos nos relatórios dos formadores e do apoio técnico-
pedagógico do curso.



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Um dos depoimentos unanimes é de que a consistente base teórica, assegurada


nas exposições teóricas, nas indicações das leituras dos referenciais bibliográficos
utilizadas e nas orientações para o tempo escola permitiram avanços na compreensão,
explicação e capacidade de proposição na escola, para o trabalho pedagógico, dos
participantes dos Cursos. Outro depoimento unanime é que a unidade teórico
metodológica assegurada no trato com os conteúdos abordados no curso, com base em
bibliografias disponíveis asseguraram que fosse possível avanços na capacidade
explicativa sobre teoria educacional e pedagógica para as escolas do campo.
Reconhecemos que nessa empreitada muitos são os limites e desafios postos4,
que materializam a luta de classes, dentre os quais podemos destacar a falta de recursos
materiais necessários ao desenvolvimento do projeto em condições propostas
inicialmente, limite de tempo para apropriação do conhecimento teórico pelos
formadores, tutores e professores cursistas, reduzindo a possibilidade de um estudo mais
aprofundado, e resistência por parte de alguns professores cursistas, principalmente
gestores municipais à base teórica a qual está embasada o projeto do curso de formação.
A elevação da capacidade teórica dos cursistas está, de fato, acontecendo a partir
do que temos de mais avançado enquanto produção de conhecimento em educação,
(Pedagogia Histórico-Crítica), psicologia (Psicologia Histórico-Cultural) e processo
histórico (Concepção Materialista e Dialética da História), teorias cientificas que
comungam com o entendimento de que o homem é resultado de seus atos e que seu
desenvolvimento é um processo histórico.
Portanto, o Programa Escola da Terra embora imbricado nos limites da execução
de uma proposta pedagógica revolucionária frente às determinações do modo de
produção capitalista, coloca a história em movimento rumo a um novo projeto de
educação, de sociedade e de vida no campo, que não se restringe só ao campo, mas sim,
à humanidade como um todo.
Defendemos, por fim, que o Curso de Aperfeiçoamento/Especialização em
Pedagogia histórico-critica tenha continuidade, em novas versões, aperfeiçoadas, a
partir da critica, ao que já realizamos. Isto porque em sua execução disputam-se

4
Em 2016 a Universidade Federal da Bahia - apresentou a terceira a (3ª) versão Curso de
Aperfeiçoamento em Pedagogia histórico-critica para as Escolas do Campo, inserindo-se no -
PRONACAMPO – Ação Escola da Terra, Todavia, ocorreu neste interim, mudança de Governo e de
Gestão do MEC, ainda em curso. Os responsáveis pelo Setor de Planejamento e Orçamento da SECADI
foram orientados a aguardar novas deliberações superiores, não sendo possível continuar a tramitação.
Logo, os recursos não foram liberados devido ao profundo contingenciamento orçamentário para
execução. Isso, demonstra claramente os avanços de forças destrutivas, que retiram direitos dos
trabalhadores, impõem retrocessos sociais!



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recursos públicos, rumos na formação humana e, em última instância, o projeto


histórico para além do capital, o projeto histórico socialista.

Referências

DUARTE, Newton. Fundamentos da Pedagogia histórico-crítica: a formação do ser humano


na sociedade comunista com referência para a educação contemporânea. In: MARSÍGLIA. Ana
Carolina Galvão (org.). Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos. Campinas/SP: Autores
Associados, 2011.

DUARTE, Newton. Vigotski e o “aprender a aprender” Critica às aproximações


neoliberais e pós-modernas da teoria vigostskiana. 3 Ed. Campinas/SP: Autores Associados,
2004.

LOMBARDI, José Claudinei. Notas sobre a educação da infância numa perspectiva


marxista. In: MARSIGLIA. Ana Carolina Galvão.(Org.) Infância e pedagogia histórico-crítica.
Campinas, SP: Autores Associados, 2013.

MARSIGLIA. Ana Carolina Galvão.(Org.) Pedagogia histórico-crítica: 30 anos. Campinas,


SP: Autores Associados, 2011.

MARSIGLIA. Ana Carolina Galvão.(Org.) Infância e pedagogia histórico-crítica. Campinas,


SP: Autores Associados, 2013.

MARSIGLIA, A.C.G. e MARTINS, L. Contribuições gerais para o trabalho pedagógico em


salas multisseriadas. In: Nuances: estudos sobre Educação, Presidente Prudente-SP, v. 25, n. 1,
p. 176-192, jan./abr. 2014.

MARTINS, Lígia. O desenvolvimento do psiquismo e a Educação Escolar: Contribuições à


luz da psicologia cultural e da pedagogia histórico-crítica. Campinas-SP: Autores Associados,
2013.

SAVIANI, Dermeval; DUARTE, Newton. (Orgs.) Pedagogia Histórico-Crítica e luta de


classes na educação escolar. Campinas-SP: Autores Associados, 2012.

SAVIANI, Dermeval. Pedagogia Histórico-Crítica: primeiras aproximações. Campinas-SP:


Autores Associados, 2008.

SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia. Campinas-SP: Autores Associados, 2012.

SAVIANI, Dermeval. A Pedagogia Histórico-Crítica na Educação do Campo. In: III


Seminário Nacional de Pesquisas sobre Educação do Campo. UFSCar, 2013.

STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil: o debate tradicional – 1500/ 1960, 2.ed.
São Paulo: Expressão Popular, 2011.

TAFFAREL, Celi et al. Círculos de estudos, esporte, lazer e artes com a juventude em áreas
de reforma agrária. Revista Pedagógica. V. 15, n. 3, jul/dez. 2013.

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