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A ética do cuidado na clínica psicanalítica

A ética do cuidado na clínica psicanalítica


Ethics or care in psychoanalytical clinic
Marcelo Wanderley Bouwman

Resumo
Partindo de considerações gerais sobre o cuidado, o texto aborda algumas contribuições feren-
czianas para a ética psicanalítica, enfocando a hospitalidade, a empatia e, especialmente, a saú-
de (cuidado de si) do analista como figuras do cuidado na clínica contemporânea. A questão
técnica da transferência negativa na situação analítica é destacada como um momento crucial
para o analista e decisivo na travessia de uma análise.

Palavras-chave: Cuidado, Ética, Técnica, Transferência negativa.

É preciso ter vivido afetivamente, experimentado na carne,


para atingir um grau de certeza que mereça o nome de ‘convicção’.
ferenczi

I – Cuidado se estabelecem com todas as coisas. No jogo


A palavra cuidado, segundo os dicionários de relações, na coexistência e convivência, o
clássicos de filologia, deriva do latim cura ser humano edifica seu próprio ser, sua au-
(coera) e era usada em contextos de relações toconsciência e sua própria identidade. Se-
de amor e amizade. Expressava a atitude de gundo Leonardo Boff (2000), existem duas
cuidado, de desvelo, de preocupação e de in- maneiras básicas de existir: pelo trabalho
quietação pela pessoa ou objeto estimados. e pelo cuidado. Logo, a construção da rea-
Outros filólogos consideram que a origem lidade passa a ter seu processo emergente a
da palavra encontra-se em cogitare-cogitatus partir dessas dimensões. Para a humanida-
e suas derivações coeydar, coidar, cuidar. de, o trabalho se transforma em um modo
O sentido é similar ao de cura: ter atenção, de ser consciente e assume a marca de um
interesse, atitude de desvelo e preocupação. projeto, com suas manobras de modelagem
Logo, o cuidado se apresenta quando algo ou de si mesmo e da natureza. Entretanto, a bus-
alguém tem importância para nós. A dedi- ca pela superação dos desafios impostos pela
cação e a disponibilidade de participação, o natureza levou o ser humano a aprofundar
sentimento de zelo e a responsabilidade rea- sua capacidade de interpretação e interven-
lizam o cuidado (SILVA JÚNIOR, 2005). ção. Essa racionalidade leva o ser humano
Nesse sentido, cuidado é um modo de ser a uma objetividade cada vez mais imediata
no mundo, que fundamenta as relações que por uma tecnologia que acaba por robotizar
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e fragmentar a ação humana, distanciando-o Jurandir Freire Costa comenta a ética em


da natureza. Ferenczi:
Para Boff, cuidar das coisas implica em:
ter intimidade, senti-las dentro, acolhê-las, Uma só intenção move Ferenczi; um único
respeitá-las, dar-lhes sossego e repouso. Cui- imperativo orienta sua teoria, o imperativo
dar é entrar em sintonia com, auscultar-lhes ético. O que fazer diante do desamparo; o que
o ritmo e afinar-se com ele. A razão analíti- fazer com quem sofre e não pode saber do
co-instrumental abre caminho para a razão que sofre; o que fazer quando dependemos
cordial, o espírito da delicadeza, o sentimen- da linguagem para ser o que somos, embora
to profundo. A centralidade não é mais ocu- venha dela o que nos traumatiza? Diante de
pada pelo logos razão, mas pelo pathos sen- perguntas como estas, Ferenczi não hesita:
timento. experimenta! Faz, desfaz e refaz. Pensa no
Do ponto de vista existencial de Heide- impensado, retifica o que pensou, duvida das
gger, o cuidado acontece antes de qualquer certezas, e a soma é uma magnífica peça de
comportamento humano, o que significa di- invenção teórica e sensibilidade clínica (PI-
zer que é encontrado em toda atitude e si- NHEIRO, 1995, p.9-10).
tuação de fato. O cuidado é o modo de ser
essencial da humanidade. Está presente em Ferenczi constrói, desconstrói e recons-
tudo, portanto é o fenômeno ontológico- trói, realçando o valor da dúvida e o perigo
existencial básico, quer dizer, fundamental das certezas, dos dogmas e das ortodoxias.
para a interpretação do sujeito (BARRETO, Teresa Pinheiro ressalta a perspicácia de Fe-
2000). renczi:

II – Ferenczi, a ética É a partir de uma história, trágica ou dramá-


e a técnica do psicanalista tica, com seus encontros, desencontros e mal-
Passando para o campo da clínica psicanalí- entendidos, que o adulto pôde “tornar-se”. En-
tica, gostaríamos de pensar inicialmente em ganado por si mesmo, e pelos adultos de sua
uma atitude psicanalítica que seja acolhedora, infância, ele é aquele que traçou o seu cami-
mas que não infantilize o sujeito; que espere nho como pôde. Suas verdades, seus valores,
consequências de seus gestos, palavras, atos sua lucidez escondem geralmente alguém que
e ações, sem, no entanto, ser intrusiva; que se enganou e se perdeu. A ilusão que ele for-
favoreça a regressão e o relaxamento em bus- ja de uma lógica onde tudo se encadeia nada
ca de acesso aos traumatismos fundamentais mais é que um outro equívoco, mas é por aí
do sujeito, mantendo o regime de frustração que ele se reconhece. O que ele é e a história
necessário para viabilizar a travessia da aná- de seus investimentos são o seu maior tesou-
lise; em suma, uma postura que não atenda ro, mesmo que às vezes seja pesado carregá-lo
à maioria das necessidades, desejos e vonta- (PINHEIRO, 1995, p.40-41).
des do paciente, mas que o ampare diante do
horror do traumático e testemunhe com ele Ferenczi (1992) afirma que “é preciso ter
os momentos de júbilo na retomada da ilusão vivido afetivamente, experimentado na car-
de onipotência, tão importante no desenvol- ne, para atingir um grau de certeza que me-
vimento e aquisição do sentido de realidade. reça o nome de ‘convicção’”.
Para embasar esse pensamento pretende- Os artigos predominantemente técnicos
mos fazer uma contextualização de algumas de Freud estão situados ao longo da década
contribuições realizadas por Sándor Feren- de 1910. Com efeito, de 1912 até 1918, Freud
czi no âmbito da teoria e da clínica psicana- escreveu, pelo menos, seis textos fundamen-
lítica. tais para o desenvolvimento da técnica. São

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eles: 1. A dinâmica da transferência (1912), 2. III – Hospitalidade


Recomendações aos médicos que exercem a Em “A adaptação da família à criança” (1927),
psicanálise (1912), 3. Sobre o início do trata- Ferenczi falará da importância da hospitali-
mento (1913), 4. Repetir, recordar e elaborar dade nos primeiros anos de vida. Este ensaio
(1914), 5. Observações sobre o amor trans- constitui um marco na história da psicaná-
ferencial (1915) e 6. Linhas de progresso na lise. Em meio às questões trazidas por Otto
terapia psicanalítica (1918). Rank sobre o trauma do nascimento, Feren-
Após o trabalho de Freud, de 1920, “Além czi opera uma efetiva mudança de paradigma
do princípio do prazer”, a compulsão à re- teórico: seu olhar passou a recair não mais na
petição vai colocar impasses para a clínica pressuposta experiência individual do sujei-
psicanalítica. Do ponto de vista da técnica, é to pulsional e na evidente adaptação do bebê
Ferenczi quem vai ser o porta-voz do enfren- ao seu meio, mas ressalta a percepção de que
tamento clínico dessas questões espinhosas cabe ao ambiente se adaptar àquele que che-
trazidas com o advento da pulsão de morte ga, acolhendo-o de maneira ativa. Assim, o
no âmbito da metapsicologia e traduzidas estado de desamparo primordial só se tor-
por estagnações no processo psicanalítico. nará traumatizante se receber como destino
Em um certo sentido, podemos pensar as as figuras do abandono ou da intrusão, tão
certezas, os dogmas e as ortodoxias como re- presentes na clínica dos ‘pacientes difíceis’
petições do mesmo e, portanto, representan- que buscavam socorro no divã de Ferenczi.
tes no pensamento da pulsão de morte. É justamente a ênfase no ambiente e nas ex-
De 1919 a 1926, há toda a experimenta- periências transubjetivas o que lhe permite
ção com a técnica ativa, que privilegiava a di- afirmar alto e bom som que “o nascimento
mensão econômica das pulsões e o princípio é um verdadeiro triunfo”. De fato, na expe-
da abstinência. As tentativas de revitalizar o riência do nascimento, não apenas o bebê
processo analítico através de ordens, interdi- está pronto como também a família busca se
tos ou sugestões paradoxalmente vão revelar adaptar às particularidades do novo membro
o potencial de submissão do dispositivo ana- – seja protegendo-o da intensidade dos estí-
lítico para o paciente. O tratamento clássico mulos externos, seja atendendo prontamen-
reproduzirá, para muitos pacientes difíceis, te às suas necessidades. Assim, as primeiras
uma situação de traumatismo infantil vivido experiências vitais do bebê trariam a marca
pela criança do paciente e repetido transfe- da alegria de existir e da exuberância onipo-
rencialmente na situação analítica. Com as tente, que favoreceriam o gesto espontâneo
contraindicações da técnica ativa, em 1926, a e a expansão psíquica em direção à consti-
atenção de Ferenczi se voltará para o poten- tuição do campo dos objetos e também ao
cial regressivo da situação analítica e para o sentido de realidade (KUPERMANN, 2009).
estudo do traumatismo precoce infantil. Podemos intuir que Ferenczi se antecipou a
Em 1927 e 1928, Ferenczi escreve três ar- Winnicott.
tigos fundamentais para o desenvolvimento Complementando este trabalho, em “A
da técnica psicanalítica, a partir do enfrenta- criança mal acolhida e sua pulsão de morte”
mento desses impasses vivenciados na clínica (1929), Ferenczi irá falar dos pacientes trau-
com pacientes traumatizados: “A adaptação matizados como tendo sido “hóspedes não
da família à criança” (1927), “Elasticidade da bem-vindos na família”. Foram “crianças que
técnica psicanalítica” (1928) e “O problema registraram bem os sinais conscientes e in-
do fim da análise” (1928). Explicita em cada conscientes de aversão ou de impaciência da
um deles, e em seu conjunto, os princípios mãe” e tiveram “sua vontade de viver desde
éticos que o analista deverá cultivar no cui- então quebrada. Os menores acontecimen-
dado “flexível” com estes doentes. tos, no decorrer da vida posterior, eram bas-

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tantes para suscitar nelas a vontade de mor- mesmo jeito que a família precisa se adaptar
rer”. Possuíam uma capacidade insuficiente às necessidades da criança, a técnica do ana-
de adaptação e quando não utilizavam um lista deverá ser flexível e elástica para acolher
dos numerosos meios orgânicos para desa- e entrar em sintonia com o infantil presente
parecer rapidamente, conservavam um certo em cada paciente adulto.
pessimismo, ceticismo e desconfiança como A empatia é a tendência do analista ser
traços de caráter, além de algum grau de in- sensível às comunicações verbais e não ver-
fantilismo emocional. Diante de tais casos de bais de seu paciente, podendo colocar-se em
diminuição do prazer de viver é que Ferenczi seu lugar, sem, entretanto, perder os referen-
fez suas tentativas de elasticidade da técnica, ciais próprios e, a partir de então, sentir e
quando se viu pouco a pouco na obrigação pensar como se fosse o paciente. A empatia,
de reduzir cada vez mais as exigências quanto dessa forma, indica uma habilidade relacio-
à capacidade de trabalho dos pacientes: nal de identificação (KAHTUNI, 2009). Pos-
tular que sentimentos e ideias de analista e
Deve-se deixar, durante algum tempo, o pa- paciente podem entrelaçar-se e que o outro
ciente agir como uma criança [na situação à minha frente não é “uma representação de
analítica, permitindo-lhe] “desfrutar pela pri- meu ego”, mas um ser real com quem posso
meira vez a irresponsabilidade da infância, o me identificar, explicita um reconhecimento
que equivale a introduzir impulsos positivos do outro em termos éticos, em uma ampli-
de vida e razões para se continuar existindo. tude até então pouco valorizada nos textos
Somente mais tarde é que se pode abordar, psicanalíticos (COELHO JÚNIOR, 2004).
com prudência, essas exigências de frustra- O tato psicológico, por sua vez, designa
ção, que, por outro lado, caracterizam as nos- tanto a capacidade do analista de distinguir
sas análises (FERENCZI, 1992, p.51). e escolher o momento justo da intervenção
terapêutica adequada quanto o modo de re-
Ao preconizar o princípio do relaxamento alizar essa intervenção. O tato se relaciona
na situação analítica, Ferenczi pretendia dar com o ritmo e o tom da intervenção.
espaço às vivências traumáticas da infância. Para Ferenczi, os processos empáticos, de
Diferentemente da técnica ativa, o relaxamen- tato e de avaliação crítica de um analista bem
to e a neocatarse buscam uma repetição dife- analisado, não se desenrolarão no incons-
renciada, na medida em que o analista age de ciente, mas no nível pré-consciente. Ou seja,
forma diferente daquela vivida pelo paciente antes de valorizar a empatia como a marca
na infância. A posição do analista precisa do inefável, que teria sua origem nas pro-
oscilar entre a frustração e o acolhimento fundidades de um insondável inconsciente,
benevolente (MAIA, 2003). De acordo com Ferenczi criteriosamente situa a possibilida-
Ferenczi (1992), “a semelhança entre a situa- de empática de um analista (diríamos ‘bem
ção analítica e a situação infantil incita mais, analisado’) no nível pré-consciente.
portanto, à repetição; o contraste entre as
duas favorece a rememoração”(FERENCZI, V – Saúde do analista
1992, p.76). Com efeito, para Ferenczi, a análise profunda
do analista seria a segunda regra fundamental
IV – Empatia da psicanálise. Enquanto a regra fundamen-
Em “Elasticidade da técnica psicanalítica” tal (o uso da associação livre pelo paciente
(1928), Ferenczi destacará o valor da empa- e da atenção flutuante pelo analista) é uma
tia na situação analítica e do tato psicoló- recomendação técnica que visa à instauração
gico do analista frente às singularidades do da situação analítica, a segunda regra é, em
paciente e às dificuldades de cada caso. Do especial, uma exigência ética, ressaltando a

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responsabilidade do analista na condução destas por uma sessão, Phillips afirma: “Não
do processo de seus pacientes e a única base quero fazer parte da cultura que acredita que
confiável para uma boa técnica analítica. uma coisa é boa se for cara”. Sobre raramente
Em outro trabalho (BOUWMAN, 2009) aceitar celebridades como pacientes, ele re-
procuramos demonstrar como Ferenczi, ao força: “Essa é exatamente a cultura da qual
longo de sua trajetória clínica, esboçará uma eu não quero fazer parte”. Furtando-se a con-
“metapsicologia dos processos psíquicos do ferências profissionais, Phillips prefere falar
analista durante a análise”, revelando a com- a estudantes universitários, que “têm mais
plexidade do trabalho do analista. Ferenczi vida, são mais engajados, mais apaixonados
(1919) descreveu as diferentes tarefas do e mais destemidos” (NAPARSTEK, 2010).
analista durante cada sessão – atenção flutu- São exemplos que dão conta de um posicio-
ante, controle da contratransferência e ativi- namento do analista que visa, entre outras
dade intelectual – e, em “O problema do fim coisas, manter a sua saúde.
da análise” (1928), insistiu que, para exercer Entramos inevitavelmente no campo
a sua função, é indispensável para o analista da singularidade de cada analista e de suas
uma análise profunda, destacando o difícil idiossincrasias. Para cuidar dos outros é ne-
lugar do analista como objeto da transferên- cessário cuidar de si mesmo, logo a dinâmica
cia. Diante da dificuldade e especificidade de existencial entre saúde e doença do analista
seu ofício, o analista precisa cuidar de sua deve interferir em cada análise sob sua res-
saúde. ponsabilidade, em cada paciente sob seus
cuidados.
No decorrer de sua longa jornada de trabalho,
[o analista] jamais pode abandonar-se ao pra- VI – Xeque ao rei!
zer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao A figura do analista está em xeque, mas dis-
seu egoísmo, na realidade, e somente na fanta- põe de boas e diversas defesas para escapar
sia, por breves momentos. Não duvido de que do mate! Desenvolvendo um pouco mais
tal sobrecarga – que, por outra parte, quase essa metáfora, existem três defesas possíveis
nunca se encontra na vida – exigirá cedo ou contra um xeque no jogo de xadrez. Captu-
tarde a elaboração de uma higiene particular rar a peça agressora, colocar uma peça de de-
do analista (FERENCZI, 1992, p.40). fesa entre a agressora e o rei ou movimentar
o próprio rei. O analista pode se defender da
Cabe nesta reflexão ampliar o cuidado de “violência” transferencial com uma reação
si do analista para além de sua análise pesso- contratransferencial (atuação), com um ato
al. As questões que se colocam agora são de interpretativo (análise) ou dando movimen-
como o analista repõe as suas reservas aními- to à sua autoanálise (primeiro, sobrevivendo
cas (também as corporais e as mentais) para aos ataques, depois, controlando e analisan-
um bom exercício de sua função e de como do a sua contratransferência).
o analista se posiciona eticamente, perante a Não se trata de abafar uma reação agressi-
cultura atual e, por que não dizer, politica- va nem de medir forças com o analisante, mas
mente também. de manter a análise no nível simbólico, pro-
Sobre hospitalidade, empatia e saúde do movendo, quando possível, insights e trans-
analista me reporto a uma entrevista de Adam formações. A ideia de elasticidade da técnica
Phillips, psicanalista inglês, lida recentemen- trazida por Ferenczi diz respeito à atitude do
te, na qual ele ressalta, como única exigência analista de procurar colocar-se no diapasão
para aceitar um paciente, a de que se sinta afetivo do paciente, sentir com ele todos os
“sensibilizado com aquilo que faça o paciente seus caprichos, todos os seus humores, mas
sofrer”. Sobre o fato de cobrar quantias mo- também ater-se com firmeza, até o fim, à

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posição analítica ditada pela experiência. O adquirindo mais porosidade e sensibilidade.


essencial é a sobrevivência do analista aos Novos pontos de contato são acionados, tro-
ataques, como bem colocou Winnicott, res- cas mais satisfatórias começam a acontecer
saltando a importância de não haver retalia- neste novo território.
ção por parte do analista. Com autocontrole Muitas vezes é com humor que o sujeito
e controle da contratransferência, o analista se depara com a habilidade defensiva e sim-
pode parecer agir como um joão-bobo, se- bólica do terapeuta. Para que tanto esforço,
gundo a descrição de Ferenczi (1992): tanta luta, tanta agressividade, tanto sadis-
mo, tanta inveja? O humor é um dos meios
O analista no tratamento deve prestar-se, às de desestabilizar a tática de guerra do indi-
vezes durante semanas, ao papel de “joão- víduo: lance inusitado que faz a pessoa des-
teimoso”, em quem o paciente exercita seus confiar de si mesma, de suas intenções, de
afetos de desprazer. Se não só não nos prote- seus objetivos.
germos, mas, em todas as ocasiões, encorajar- A questão da neutralidade benevolente e
mos também o paciente, já bastante tímido, do não envolvimento subjetivo do analista
colheremos mais cedo ou mais tarde a recom- diante da pessoa que o procura é o que está
pensa bem merecida de nossa paciência, sob a efetivamente em xeque nas nossas reflexões.
forma de uma nascente transferência positiva Colocar-se empaticamente no lugar do ou-
(FERENCZI, 1992, p.35). tro, respeitando a sua individualidade e o seu
ritmo de caminhar, sem querer influenciá-lo
A transferência negativa, muitas vezes, ou educá-lo, é o que se espera do analista.
coloca o analista em seu limite, assim como Mas até que ponto isto é possível e desejável?
pode levar o processo a impasses difíceis de Qual o lugar dos valores e dos ideais suspen-
superação. Analisando a sua contratransfe- sos do analista durante a travessia analítica?
rência, o analista põe em movimento a sua Como se manifesta a singularidade do ana-
autoanálise e busca uma mudança de lugar, lista frente à alteridade do paciente?
tenta sair de sua paralisia e encontrar nova- Lembramos Ferenczi (1992), quando diz
mente o fio que o orientará no labirinto que que “todo paciente, sem exceção, registra as
se transformou aquela análise. menores particularidades do comportamen-
Nessa perspectiva, o bom terapeuta deve to, da aparência exterior, da maneira de falar
ser um mestre na arte da defesa, recusando- do médico”(idem, p.35). “Os pacientes pers-
se a empreender contra-ataques violentos e picazes não tardam em desmascarar toda
buscando recursos para lidar com os artifí- pose fabricada” do analista (idem, p.37).
cios e artimanhas de seu parceiro. Trata-se Mais do que neutralidade deveríamos
de um parceiro, não de um adversário, logo o falar da presença reservada do analista e de
jogo precisa continuar até atingir o seu obje- sua implicação pessoal em alguns momentos
tivo: desmontar o arsenal bélico do sujeito e cruciais da travessia analítica.
transformá-lo através da análise da agressivi- Uma situação pouco relatada é a vivida
dade e da sexualidade. O ponto nevrálgico do pela dupla terapêutica quando o analista pas-
jogo é justamente a vivência da transferência sa por um período de fragilidade ou de vul-
negativa, agressiva ou erótica, por parte dos nerabilidade. Quais as repercussões, na situ-
dois participantes. ação analítica, quando o analista atravessa
A verdadeira arte da defesa é aquela que uma doença ou um recente trabalho de luto?
promove, juntamente com a sobrevivência Como proceder de modo coerente diante de
do terapeuta, o potencial simbólico do en- cada paciente?
contro. Através de insights, o paciente vai Anos atrás, uma colega psicanalista foi
desconstruindo a sua couraça narcísica e surpreendida por uma crítica severa de uma

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paciente: “Vocês, psicanalistas, são muito Referências


dissimulados. Minha amiga fez um contra-
to com uma colega sua em dezembro do ano
passado e ela morreu em fevereiro do ano se- BARRETO, J.A.E.; MOREIRA, R.V.O. A decisão de
guinte, ou seja, três meses depois. Essa sua Saturno: filosofia, teorias de enfermagem e cuidado
humano. Fortaleza: Casa José de Alencar, 2000 (Co-
colega estava morrendo de câncer, doente há leção Alagadiço Novo).
muito tempo, e omitiu o fato num contrato
que seria de longo prazo! Não considero essa BOFF, L. Saber cuidar. Ética do humano – compaixão
uma atitude honesta!” Não havia contesta- pela terra. Petrópolis: Vozes, 2000.
ções a serem feitas, apenas concordar com a
BOUWMAN, M.W. Desafios da formação psicanalí-
indignação da paciente. São situações delica-
tica: reflexões em torno da análise do analista. In Estu-
das, muito comuns na clínica de cada analis- dos de Psicanálise, n.32, p.95-102, Aracaju, nov./2009.
ta, e que pouco se discutem nas jornadas e Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise.
nos congressos psicanalíticos.
Neste momento de nossa reflexão, esta- COELHO JUNIOR, N.E. Ferenczi e a experiência da
mos satisfeitos em levantar esses questiona- Einfühlung. In Ágora, v.VII, n.1, p.73-85, jan/jul 2004.
mentos, deixando o aprofundamento dessa FERENCZI, S. Do alcance da ejaculação precoce
problemática para pesquisas futuras. [1912]. In: FERENCZI, S. Obras Completas – I. São
Paulo: Martins Fontes, 1992.
Abstract
Starting from general considerations about FERENCZI, S. A técnica psicanalítica [1919]. In: FE-
RENCZI, S. Obras Completas – II. São Paulo: Martins
care, the author approaches the ferenczian
Fontes, 1992.
contributions to psychoanalytical ethics, and
focus the hospitality, the empathy, and spe- FERENCZI, S. A adaptação da família à criança
cially, the analyst’s health (self care), as figures [1927]. In: FERENCZI, S. Obras Completas – IV. São
on care in contemporary clinic. There is a par- Paulo: Martins Fontes, 1992.
ticular prominence on the subject of negative
FERENCZI, S. Elasticidade da técnica psicanalítica
transference in the analytical situation as a
[1928a]. In: FERENCZI, S. Obras Completas – IV. São
crucial moment to the analyst and conclusive Paulo: Martins Fontes, 1992.
to an analysis crossing.
FERENCZI, S. O problema do fim da análise [1928a].
Keywords: Care, Ethics, Technique, Negative In: FERENCZI, S. Obras Completas – IV. São Paulo:
transference. Martins Fontes, 1992.

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morte [1929]. In: FERENCZI, S. Obras Completas –
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FERENCZI, S. Princípio de relaxamento e neocatarse


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RECEBIDO EM: 04/08/2011


APROVADO EM: 29/08/2011

SOBRE O AU TOR

Marcelo Wanderley Bouwman


Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Pernambuco.
Médico da Clínica de Psicossomática e Saúde Mental
do Hospital Barão de Lucena / SUS.

Endereço para correspondência:


Praça Fleming, 117/1801 – Jaqueira
52050-180 – Recife/PE
Tel.: (81)3267-7753 / 9975-8028
E-mail: marcelo.bouwman@gmail.com

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