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AQUISIÇÃO DA
LINGUAGEM E ESCRITA
Nancy Capretz Batista da Silva

Aquisição da Linguagem e Escrita

1ª edição

Londrina
Editora e Distribuidora Educacional S.A.
2019

2
Autoria: Prof. Nancy Capretz Batista da Silva
Revisão: Prof. Giani Vendramel de Oliveira
Como citar este documento: SILVA, Nancy C. B. da. Aquisição da linguagem e escrita. Valinhos: 2019.

© 2019 por Editora e Distribuidora Educacional S.A.

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AQUISIÇÃO DA LINGUAGEM E ESCRITA

SUMÁRIO
Apresentação da disciplina 5

Pensamento e linguagem 6

Linguagem escrita e linguagem oral 21

Comunicação e linguagem 37

Metodologia e didática: competências linguísticas e ensino 50

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Apresentação da disciplina

Caro aluno,

A disciplina “Aquisição da Linguagem e Escrita” apresenta um importante


corpo de conhecimento para os profissionais da área da Educação,
enquanto fundamentação para suas atuações no processo de
aprendizagem junto aos sujeitos envolvidos no seu contexto de trabalho.

Embora haja ênfase nos primeiros anos de desenvolvimento humano


para entendimento do processo em questão, a partir do que será
discutido sobre desenvolvimento do pensamento e da linguagem
no ser humano, construção da linguagem escrita e oral, criatividade
comunicativa e a expressão através da fala, da escrita e da leitura
e aquisição e ensino de competências linguísticas, você poderá
compreender de forma mais aprofundada características de uma
população dita como letrada. Verá que a maturação biológica apresenta
constante interação com o ambiente, mas é justamente no ambiente
que se pode atuar de forma eficaz para contribuir na aquisição
bem-sucedida e no desenvolvimento do uso da linguagem oral e,
principalmente, da linguagem escrita.

Verá também que a linguagem é diretamente relacionada aos


processos psicológicos e cognitivos, havendo um importante debate
no que se refere ao pensamento. Além disso, as interações sociais
são postas em destaque, contribuindo para que além da observação
da diversidade de falantes e escreventes, atente-se ainda ao contexto
político, social, econômico, entre outros subjacentes ao ato de
se comunicar. Neste sentido, quais as competências linguísticas
necessárias para ensinar de forma apropriada a língua?
Essas competências estão presentes nas escolas?

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Pensamento e linguagem
Autora: Nancy Capretz Batista da Silva

Objetivos

• Relacionar o desenvolvimento de linguagem


e de pensamento a partir de uma perspectiva
sociocultural.

• Identificar a análise psicolinguística de L. S. Vygotsky


sobre as relações entre pensamento e linguagem.

• Descrever o processo em que a fala se torna


intelectual e o pensamento se torna verbalizado
no significado da palavra.

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1. O desenvolvimento do pensamento e da
linguagem: Vygotsky e a perspectiva sociocultural
Você já se perguntou o que está por trás da aquisição da linguagem
e da escrita? Precisamos considerar que o desenvolvimento da
linguagem acontece a vida toda, mas adquire um nível suficiente para
a participação social ainda na infância. Na idade adulta tende a se
aprimorar e se modificar dependendo do contexto de vida da pessoa.
Quando os estudiosos da área tentaram elaborar uma compreensão
racional sobre a linguagem, se encontraram com outro processo
igualmente relevante, o pensamento.

Haveria distinção entre linguagem e pensamento? Em que ponto eles


nos auxiliam no ensino da escrita? Procure se debruçar sobre estas
questões com apoio teórico, considerando suas observações cotidianas.

Pensamento e linguagem sempre estiveram associados e constituíram-


se objeto de investigação para psicólogos e linguistas. Para alguns
teóricos, pensamento e linguagem diziam respeito ao mesmo processo
de forma indissociável e, segundo essa concepção, ficaria impossível
estudar cada um dos processos de forma independente. Para outros,
são processos independentes, com vínculo puramente externo.

Vílchez (2007) considera pensamento e linguagem condutas


interdependentes que se relacionam estreitamente entre si.
Por isso, o estudo destes processos é bastante complexo, exigindo
interdisciplinaridade por se referirem a diversos campos científicos.
A especificidade, profundidade e extensão dessas relações são admitidas
por autores como Piaget, a escola Soviética e o cognitivismo, porém a
maioria das escolas e dos autores coloca ênfase a um ou outro processo.

Para sua melhor compreensão do assunto, tenha em mente que uma


posição eclética deve prevalecer, pois qualquer redução a um dos
componentes pode trazer a perda de algum aspecto importante da
relação entre pensamento e linguagem. Alguns motivos para que se
considere pensamento e linguagem interdependentes:

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• O pensamento precisa da palavra para se objetivar de maneira
clara e articulada.
• Ao pensar falamos com nós mesmos (linguagem interna).
• A linguagem é facilitadora e inibidora do pensamento
(Bernstein, Sapir, etc.).
• A linguagem é reguladora da conduta (Luria).
• A linguagem é elemento facilitador na tarefa de solução de
problemas.
• A linguagem participa da formação e expressão de conceitos e
raciocínios.
• A linguagem é indicativa do tipo de pensamento de um sujeito
(estilo cognitivo) e de sua capacidade mental (hipótese de partida
de muitos testes de inteligências) etc. (VÍLCHEZ, 2007, p. 154).

Essa interdependência é significativa para diagnosticar e tratar os


transtornos do pensamento (esquizofrenia, obsessão, compulsão,
delírios) e da linguagem oral e escrita como, por exemplo: disartria,
disfonia, transtorno articulatório, afasia e dislexia entre outros.
Para Vygotsky (2000), a decomposição entre pensamento e linguagem,
cada um na sua forma pura, não elucida o que se observa quanto ao
pensamento discursivo durante a primeira infância. O autor propõe que
a palavra seja a unidade de referência para essa investigação uma vez
que se trata do que considerou “pensamento verbalizado” e, possuiria
propriedades relativas aos dois componentes.
Percebe-se, então, que para Vygotsky, é no significado da palavra que
se pode entender como se dá a relação entre pensamento e linguagem.
Como ficará explícito mais adiante, a palavra não se refere a um único
objeto, mas remete a todo um grupo ou classe de objetos.
Assim, o método de análise da relação entre pensamento e linguagem,
segundo Vygotsky, é semântico, do sentido da linguagem, do significado
da palavra. “Um pensamento pode ser comparado a uma nuvem parada,
que descarrega uma chuva de palavras” (VYGOTSKY, 2000, p. 478).

8
ASSIMILE
A teoria sócio-histórica, adotada aqui, coloca no significado
da palavra a relação de interdependência existente entre
os processos de pensamento e linguagem, pois se constitui
em pensamento verbalizado, possuindo, desta forma,
propriedades relativas aos dois componentes.

Skinner, entre os anos 1950 e 1960, explicou a relação entre linguagem


e pensamento por meio do que chamou de comportamento verbal.
Para ele, quando o ouvinte e o falante são uma única pessoa, esta se
engaja em atividades tradicionalmente descritas como “pensamento”.
“O falante manipula seu comportamento; ele o revê e pode rejeitá-lo ou
emiti-lo de forma modificada” (SKINNER, 1978, p. 26).

A linguagem possui duas importantes funções: permite a


comunicação e a generalização. Embora grande parte dessas duas
funções estejam diretamente relacionadas (a generalização facilita
a comunicação e vice-versa), é importante pensarmos nessas duas
funções de forma individualizada.

Por meio da linguagem é possível a comunicação social, enunciação e


compreensão. Desta forma, a linguagem, enquanto sistema de signos,
medeia a comunicação, a qual

[...] estabelecida com base em compreensão racional e na intenção de


transmitir ideias e vivências, exige necessariamente um sistema de meios
cujo protótipo foi, é e continuará sendo a linguagem humana, que surgiu da
necessidade de comunicação no processo de trabalho (VYGOTSKY, 2000, p. 11).

Já a generalização refere-se a um ato verbal do pensamento, de forma


que a linguagem possa refletir a realidade por meio de uma palavra,
a qual não se refere a um objeto isolado, mas a todo um grupo ou

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classe de objetos. Podemos nos referir com uma única palavra a toda
uma classe de objetos ou sensações. Por exemplo, ao nos referirmos
à palavra “árvore” permitimos a formação de toda uma gama imensa
de imagens de diferentes árvores que encontram-se reunidas sob um
único nome. Um outro exemplo seria a criança pequena olhar para o
cachorro da vizinha toda vez que o pai fala a palavra “cachorro”, que
inicialmente, para ela, refere-se somente a este ser; contudo, ao longo
do desenvolvimento desta criança, ela vai entrar em contato com
outros animais, com imagens de animais, vídeos de animais, e passará
a discriminar diferentes cachorros, usando o termo “cachorro” para
outros que não apenas aquele da vizinha e identificando o significado do
termo para todo um grupo que corresponde a uma espécie de animais.
Por isso que a palavra não se refere a um objeto isolado, porque
seu entendimento depende de uma construção mais abrangente de
conceitos compartilhados pelos falantes e ouvintes.

Segundo Vygotsky (2000), por meio do método clínico “os estudos


de Jean Piaget constituíram toda uma época no desenvolvimento da
teoria da linguagem e do pensamento da criança” (p. 19). A psicologia
tradicional explicava o pensamento infantil enfatizando suas lacunas e
deficiências, enquanto que Piaget mostrou seu aspecto positivo, suas
peculiaridades e propriedades distintivas.

Para Piaget (2012), a unidade de todas as peculiaridades do


pensamento infantil é o egocentrismo. O pensamento egocêntrico
seria uma forma transitória situada entre o pensamento autístico
e o pensamento inteligente dirigido, analisando-se de um ponto
de vista genético, funcional e estrutural. Assim, primeiramente, o
pensamento serviria à satisfação de necessidades, surgindo de forma
mais arbitrária como brincadeira ou fabulação. Apenas no final do
desenvolvimento pré-operatório o social apareceria e a linguagem
social sucederia a egocêntrica.

De forma oposta, para Vygotsky (2000), a linguagem da criança é


desde o início social, pois sua função primária é comunicar, relacionar

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10
socialmente, influenciar as pessoas à sua volta. Em uma determinada
faixa etária a linguagem da criança pode ser mais dirigida para si do que
comunicativa, mas ambas são funções sociais. Este teórico acredita que
até mesmo a linguagem egocêntrica é social porque a criança transfere
para o campo das funções psicológicas pessoais as formas sociais de
pensamento e as de colaboração coletiva. Desta forma, na evolução do
pensamento durante a infância, existe uma fase pré-verbal e raízes pré-
intelectuais da fala, que são conhecidas como gritos, balbucios e até as
primeiras palavras, que diferem do desenvolvimento do pensamento.
Nesta fase já se manifesta a função social da fala.

Nesta mesma linha, até mesmo por tratar-se de um estudioso


também de uma perspectiva sociocultural, A. R. Luria descreve que,
no início, a fala do adulto regula o comportamento da criança por suas
propriedades físicas (tom, intensidade, ritmo e outros), impulsoras
ou inibidoras. Por volta dos três anos de idade, a regulação torna-
se autônoma, mas ainda dependendo de que a fala autodirigida seja
audível por causa de suas propriedades impulsivas. Aproximadamente
aos quatro anos e meio o significado do que se diz começa a ser efetivo
(dimensão semântica) e, assim, a verbalização autorreguladora perde a
necessidade de ser audível, tornando-se, de acordo com a terminologia
original, interiorizada (COLL, PALACIOS & MARCHESI, 1995).

PARA SABER MAIS


Alexander Romanovich Luria (1902–1977) foi um famoso
neuropsicólogo soviético especialista em psicologia do
desenvolvimento. Foi um dos fundadores da psicologia
cultural-histórica, na qual se inclui o estudo das noções de
causalidade e pensamento lógico-conceitual da atividade
teórica enquanto função do sistema nervoso central
(OLIVEIRA, REGO, 2010).

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Destaca-se entre as contribuições de Luria a importância da função
autorreguladora na construção do psiquismo, salientando-se as
interações sociais envolvidas neste processo:

[...] a mediação verbal das ações modifica qualitativamente qualquer


outra função cognitiva, como, por outro, sua origem social, ou seja,
aprendemos a nos autorregular no decorrer de experiências interativas,
compartilhando a atividade com um companheiro capaz de guiá-
la verbalmente, antes de sermos capazes de mediar nossa atividade
autonomamente (COLL, PALACIOS, MARCHESI, 1995, p. 164).

1.1 Fala intelectual e pensamento verbalizado

As pessoas vivem na linguagem, falando e ouvindo constantemente a


fala, e em alguma transformação da linguagem falada acontece boa
parte do seu pensamento, sua imaginação e sua solução de problemas
silenciosos (LEAVITT, 2006). Assim, essa relação entre pensamento e
linguagem e como ela ocorre possui relevância substancial.

É importante ressaltar que da mesma forma que as raízes genéticas de


pensamento e linguagem são diversas, estes processos não caminham
em paralelo o tempo todo, mas convergem e divergem ao longo do
desenvolvimento. No pensamento do adulto, “a relação entre intelecto e
linguagem não é constante e idêntica para todas as funções e formas de
atividade intelectual e verbalizada” (VYGOTSKY, 2000, p. 114).

É aproximadamente aos dois anos de idade que pensamento e fala


cruzam-se e dá-se início a uma nova forma de comportamento muito
característica do homem. A fala se torna intelectual e o pensamento
verbalizado, sendo que a criança começa a perguntar sobre a nomeação
de coisas novas e seu vocabulário é ampliado ativamente, de forma
extremamente rápida e aos saltos. A criança passa a precisar nomear e
comunicar por meio dos signos, como se houvesse descoberto a função
simbólica da linguagem.

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Figura 1 – Crianças passam a nomear e comunicar por
meio dos signos por volta dos dois anos de idade

Fonte: SarahlWard/iStock.com.

O desenvolvimento da linguagem passa por quatro estágios, de acordo


com Vygotsky (2000):

1. Natural ou primitivo (linguagem pré-intelectual e pensamento


pré-verbal).

2. Psicologia ingênua (a criança assimila “estruturas e formas


gramaticais antes de assimilar as estruturas e operações lógicas
correspondentes a tais formas”, p. 138).

3. Linguagem egocêntrica (“signos exteriores, operações externas


que são usadas como auxiliares na solução de problemas
internos”, p. 138. Ex.: contar nos dedos).

4. ‘Crescimento para dentro’ (“as operações externas se interiorizam


[...] A criança começa a contar mentalmente, a usar a “memória
lógica”, isto é, a operar com relações interiores em forma
de signos interiores. No campo da fala, isto corresponde à
linguagem interior ou silenciosa”, p. 138).

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De acordo com Corrêa, existem diversas evidências experimentais
na pesquisa em aquisição da linguagem sob uma perspectiva
psicolinguística (ou seja, especificamente sobre o processo de aquisição
da língua considerando como o material linguístico é processado pela
criança) quanto às habilidades de percepção e linguagem da criança
antes do aparecimento da fala (CORRÊA, 2006).

Dados da psicologia sugerem que a palavra, por longo tempo, é para


a criança uma propriedade do objeto para só depois tornar-se um
símbolo do objeto, ou seja, é primeiro palavra-objeto para depois
assimilar sua estrutura interna ou simbólica. A linguagem interior
(para si) se desenvolve a partir de mudanças estruturais e funcionais.
Ela se separa da linguagem exterior (para os outros) das crianças
quando as funções social e egocêntrica da linguagem são diferenciadas.
Além disso, as estruturas da linguagem que a criança já domina
tornam-se básicas de seu pensamento.

Assim, o desenvolvimento do pensamento e da linguagem é mais que


um desenvolvimento biológico, mas trata-se de um desenvolvimento
histórico-social. Apenas a partir da unidade entre comunicação
e generalização (os processos de desenvolvimento dos aspectos
semântico e sonoro da linguagem em sentidos opostos, como
explicado mais adiante) é que se começa a compreender a relação
efetiva entre o desenvolvimento do pensamento da criança e o seu
desenvolvimento social.

E o desenvolvimento de conceitos ou significados das palavras


abstratas, como ocorre? Bem, para Piaget (2012), apenas na
adolescência a pessoa chega a esse tipo de pensamento. Já Vygotsky
(2000) estabeleceu experimentalmente que isso acontece durante
a idade infantil, havendo estágios básicos de desenvolvimento
desses significados. Assim, a mudança dos significados das palavras
e seu desenvolvimento diferem do postulado de todas as teorias
anteriores do pensamento e da linguagem de que haveria constância e
imutabilidade do significado da palavra.

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É interessante notar que o que se percebe no desenvolvimento da
linguagem da criança, no seu aspecto fásico (externo), é uma construção
das partes para o todo. A partir de uma palavra concatena-se duas ou
três palavras, depois tem-se uma frase simples e da concatenação de
frases tem-se proposições complexas e finalmente uma linguagem
coordenada e formada por uma série desenvolvida de orações. Assim, a
criança diz “au-au” para expressar que está vendo um cachorro passar
em frente à sua casa porque ainda não pronuncia outras palavras que
possam servir para expressar aquela situação e comunicá-la ao adulto
que lhe acompanha.

Contrariamente, para Vygotsky (2000),

No desenvolvimento do aspecto semântico da linguagem, a criança começa


pelo todo, por uma oração, e só mais tarde passa a apreender as unidades
particulares e semânticas, os significados de determinadas palavras,
desmembrando em uma série de significados verbais interligados o seu
pensamento lacônico e expresso em uma oração lacônica (p. 410).

O que se explica aqui é que a primeira palavra da criança significa uma


frase inteira: uma oração lacônica. Por exemplo, quando a criança
diz “água” ou um som parecido, ela quer dizer algo do tipo “Eu quero
beber água”. Apenas em uma palavra apresenta-se o significado do
sujeito e da ação em relação ao objeto. O significado do “eu” em relação
aos outros, dos verbos “querer” e “beber” ainda serão diferenciados.
Assim, o desenvolvimento do aspecto semântico transcorre do todo
para a parte, da oração para a palavra; já do aspecto fásico (externo)
transcorre da parte para o todo, da palavra para a oração.

Neste sentido, a linguagem não é expressão de um pensamento pronto,


pois este se reestrutura e se modifica ao transformar-se em linguagem,
se realizando na palavra. O desenvolvimento no sentido oposto aos
dois aspectos constitui, assim, a autêntica unidade de entendimento da
relação entre pensamento e linguagem.

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Retomando a linguagem egocêntrica, sua função é semelhante à
da linguagem interior: autônoma, ou seja, serve o pensamento da
criança quanto à orientação intelectual, tomada de consciência da
superação das dificuldades e dos obstáculos e reflexão. Ao longo do
desenvolvimento da criança, aproximadamente entre os três e os sete
anos de idade,

[...] por trás do declínio do coeficiente de linguagem egocêntrica esconde-


se o desenvolvimento positivo de uma das peculiaridades centrais da
linguagem interior – a abstração do aspecto sonoro da linguagem e
a diferenciação definitiva de linguagem interior e linguagem exterior
(VYGOTSKY, 2000, p. 435).

Cabe aqui destacar que, assim como exposto anteriormente, não


há coincidência direta entre o pensamento e a sua expressão
verbalizada. O pensamento ocorre em ato único, é algo integral, está
na mente de uma pessoa como um todo, permite simultaneidade e
é consideravelmente maior em extensão e volume que uma palavra
isolada. Em contrapartida, a expressão, o desenvolvimento da
linguagem, ocorre sucessivamente, é em palavras separadas, que
surgem gradualmente, por unidades isoladas.

Esta característica da relação entre pensamento e linguagem explica


porque “o processo de transição do pensamento para a linguagem é um
processo sumamente complexo de decomposição do pensamento e sua
recriação em palavras” (VYGOTSKY, 2000, p. 478). E assim retorna-se à
unidade de análise da relação entre pensamento e linguagem: o aspecto
interno da palavra, ou seja, o seu significado.

Por ele passa a expressão do pensamento em palavras e neste complexo


processo pode-se considerar as palavras imperfeitas e o pensamento
inexpressível. Neste processo, o pensamento é mediado internamente
pelos significados, e externamente, para tornar-se expressão verbal, é
mediado por signos, motivo para a falta de equivalência direta entre o
pensamento e a linguagem (VYGOTSKY, 2000).

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Resumindo, como pontua Corrêa (2006), bebês humanos aprendem
de forma bem-sucedida as palavras devido à sua capacidade de
descobrirem as unidades linguísticas e conceituais relevantes e a
sua correspondência. Desta forma, uma valiosa informação para
estimulação da criança é que, mesmo que o bebê ainda não fale,
nomear tem importantes consequências cognitivas.

Nesta Leitura Fundamental sobre pensamento e linguagem você pôde


analisar sob a ótica da teoria sócio-histórica que pensamento e
linguagem são condutas interdependentes e que é no significado
da palavra que se estabelece a relação entre esses processos.
O desenvolvimento do pensamento e da linguagem é mais que um
desenvolvimento biológico, trata-se de um desenvolvimento histórico-
social. Da mesma forma que as raízes genéticas de pensamento e
linguagem são diversas, estes processos não caminham em paralelo o
tempo todo, mas, aproximadamente aos dois anos de idade, cruzam-se:
a fala se torna intelectual e o pensamento verbalizado. Isso não significa
que haja coincidência direta entre o pensamento e a sua expressão
verbalizada. O desenvolvimento do aspecto semântico transcorre do todo
para a parte, da oração para a palavra; já do aspecto fásico (externo),
transcorre da parte para o todo, da palavra para a oração. Conclui-se,
ainda, que as funções da linguagem são a comunicação e a generalização.

TEORIA EM PRÁTICA
A educação brasileira estabelece a meta de aprendizagem
da escrita para os alunos na faixa etária de 6 anos, havendo
certa flexibilidade para que esta aprendizagem ocorra
dentro dos três anos seguintes. Imagine que você participará
de uma reunião com professores da educação infantil
de um município e precisa esclarecer a quais processos
importantes eles precisam se atentar no desenvolvimento
do pensamento e da linguagem de crianças para que

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possam aprimorar habilidades que serão relevantes na
aquisição da escrita. Quais pontos você destacaria? Inclua,
entre outros tópicos, explicações sobre o momento no
desenvolvimento em que a fala se torna intelectual e o
pensamento verbalizado e a questão dos limites biológicos e
possibilidades histórico-sociais do desenvolvimento.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA
1. Pensamento e linguagem, para Vygotsky:
a. Identificam-se, são o mesmo processo.

b. São processos independentes, com vínculo


puramente externo.

c. Constituíram-se objeto de investigação de terapeutas.

d. Apresentam como unidade de análise o significado


da palavra.

e. Reduzem-se a um componente da linguagem.

2. Pode-se dizer a respeito da comunicação:

a. Medeia a linguagem.

b. É uma função da linguagem.

c. É um sistema de signos.

d. Surgiu do processo de trabalho.

e. É uma função da generalização.

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18
3. Ainda sobre pensamento e linguagem, Vygotsky
afirma que:

a. Possuem as mesmas raízes genéticas.

b. São processos paralelos o tempo todo.

c. Convergem e divergem ao longo do desenvolvimento.

d. Sua relação é constante para as funções de atividade


intelectual e verbalizada.

e. Sua relação é idêntica para as formas de atividade


intelectual e verbalizada.

Referências bibliográficas
COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A. (Orgs.). Desenvolvimento psicológico e
educação: psicologia evolutiva. v. 1. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
CORRÊA, L. M. S. (Org.). Aquisição da linguagem e problemas do
desenvolvimento linguístico. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006.
LEAVITT, J. Linguistic relativities. In: JOURDAN, C.; TUITE, K. (Ed.) Language, culture,
and society: key topics in Linguistic Anthropology. Cambridge University Press,
2006. p. 47 - 81. Cambridge Books Online. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1017/
CBO9780511616792. Acesso em: 5 nov. 2019.
OLIVEIRA, M. K.; REGO, T. C. Contribuições da perspectiva histórico-cultural de Luria
para a pesquisa contemporânea. Educação e Pesquisa, v. 36, n. especial, p. 107-
121, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ep/v36nspe/v36nspea09.pdf.
Acesso em: 5 nov. 2019.
PIAGET, J. Seis Estudos de Psicologia. Trad. Maria Alice Magalhães D’Amorim e
Paulo Sérgio Lima Silva. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
SKINNER, B. F. O comportamento verbal. São Paulo: Cultrix: Ed. da Universidade
de São Paulo, 1978.
VÍLCHEZ, L. F. Transtornos do pensamento e da linguagem: tratamento educacional.
In: GONZÁLEZ, E. e cols. Necessidades educacionais específicas. Porto Alegre:
Artmed, 2007. p. 154-170.
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.

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Gabarito

Questão 1 – Resposta: D
Resolução: De acordo com este teórico, as investigações psicológicas
devem utilizar unidades de análise, as quais contêm propriedades
do todo. No caso da relação entre pensamento e linguagem,
acredita que a unidade que contém propriedades inerentes ao
pensamento verbalizado como uma totalidade pode ser encontrada
no aspecto interno da palavra, ou seja, no seu significado.
Feedback de reforço: Vygotsky apontou que enquanto componentes
interdependentes, os processos de pensamento e linguagem se
relacionam por meio de uma unidade específica de análise.
Questão 2 – Resposta: B
Resolução: A função da linguagem é comunicativa. Por meio
da linguagem é possível a comunicação social, enunciação e
compreensão. Desta forma, a linguagem, enquanto sistema de
signos, medeia a comunicação.
Feedback de reforço: Ao refletir sobre como a comunicação ocorre,
verificamos que existe um processo do qual ela resulta do próprio
do ser humano.
Questão 3 – Resposta: C
Resolução: Da mesma forma que as raízes genéticas de
pensamento e linguagem são diversas, estes processos não
caminham em paralelo o tempo todo, mas convergem e divergem
ao longo do desenvolvimento. No pensamento do adulto,
“a relação entre intelecto e linguagem não é constante e
idêntica para todas as funções e formas de atividade
intelectual e verbalizada” (VYGOTSKY, 2000, p. 114).
Feedback de reforço: Vygotsky enfatizou que pensamento
e linguagem seguem o desenvolvimento humano sem
constância ou igualdade.

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20
Linguagem escrita e
linguagem oral
Autora: Nancy Capretz Batista da Silva

Objetivos

• Destacar os fatores que colaboram no


desenvolvimento da linguagem oral e da linguagem
escrita, ora contrastando-os, ora interligando-os.

• Apresentar características relevantes das


linguagens oral e escrita com ênfase no processo
educacional e nos aspectos socioculturais.

• Discutir o domínio da língua e sua repercussão


na dinâmica social.

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1. A linguagem no centro da educação
No dia a dia do ser humano a linguagem oral é amplamente usada,
salvo em situações em que a fala e/ou a audição está ausente
ou comprometida. Da mesma maneira, a linguagem escrita tem
presença constante nas sociedades letradas, desde a visualização da
hora no despertador até as placas de sinalização em um prédio de
circulação pública.

Tanto a linguagem escrita como a linguagem oral são parte da


rotina humana, na maioria dos casos, e permeiam as relações, as
aprendizagens, os desenvolvimentos humanos e crescimentos sociais.
E hoje têm se modificado e ampliado com os meios digitais e conexões
em redes tecnológicas. Vamos ver como se dá o desenvolvimento da
linguagem oral e escrita, como se relacionam e os fatores que devemos
considerar ao trabalhar com esses processos humanos.

Na nossa sociedade atual as duas principais formas de linguagem


utilizadas pela espécie humana são: a linguagem oral e a escrita.
A linguagem oral depende de uma aprendizagem não formal, que
acontece durante a exposição do sujeito ao ambiente falante, enquanto
a linguagem escrita depende de uma aprendizagem formal e consciente,
uma vez que se trata de uma “invenção” humana e depende de uma
intervenção externa para que a sua aquisição aconteça.

Nessas duas formas de linguagem destacavam-se os processos de


decodificação e compreensão – para a linguagem escrita denominada
como leitura e para a linguagem oral como escuta e compreensão –, e os
processos de produção – na linguagem escrita trata-se do processo de
escrita e na linguagem oral refere-se à fala.

A leitura, ou melhor, a competência para operar com a linguagem escrita,


tem uma característica em nossa cultura que faz dela algo extraordinário:
deve ser adquirida, e em um altíssimo grau de perícia, por toda a
população. [...] aspiramos a que toda a população escolarizada possa
utilizá-la para adquirir novos conhecimentos ou reconstruir os próprios
pensamentos (SÁNCHEZ, 2004, p. 90, grifo do autor).

22
22
Ainda que, como salienta Sánchez, operar a linguagem escrita seja
uma condição de integração e cidadania na sociedade, muitas
crianças no Brasil podem ser consideradas como apresentando
distúrbios da aprendizagem ou como carentes culturais, quando
na verdade são vítimas da falta de oportunidades para aprender,
o que pode estar relacionado às políticas econômicas, sociais e
educacionais, cujas consequências as impedem de acessar bens
culturais como a escrita (ZORZI, 2003).

O domínio da linguagem oral está presente em todas as sociedades,


visto que é uma herança biológica, hereditária do ser humano, com
raízes filogenéticas, que também o diferencia de outras espécies.
Chomsky, inclusive, apresenta hipóteses sobre os “universais da
linguagem”, que dizem respeito aos aspectos estruturais que são
encontrados em todas as línguas, apesar de suas aparentes diferenças.
As condições naturais e espontâneas do convívio com falantes da língua
permitem às crianças o aprendizado da linguagem oral, que deve ter
início entre um e dois anos de idade (ZORZI, 2003).

Por outro lado, a linguagem escrita é uma herança cultural e não


está presente em todas as sociedades. Ela “depende de variáveis
ontogenéticas [...], é um produto da cultura que só se transmite pelo
ensino, ou seja, em geral por meio de uma intervenção social planejada”
(ZORZI, 2003, p. 11), que na sociedade atual é papel da escola.

É preciso entender os usos e funções da escrita para que ela seja


aprendida, além de ser capaz de atribuir-lhe graus variados de
significações. A capacidade de atribuir significados depende não
apenas de decodificar o que está escrito através da aprendizagem
escolar, mas também de experiências de vida que devem ser
consideradas de forma fundamental para que a linguagem escrita
possa se estabelecer e organizar. Muito se fala nas “funções básicas” ou
“funções neuropsicomotoras” que as crianças devem apresentar para
aprender a linguagem escrita adequadamente: habilidades motoras

 23
finas, coordenação motora e visual bem-estabelecida, noções espaciais,
noções de lateralidade, discriminação e memória visual e auditiva,
noções temporais, atenção, interesse, e outros (ZORZI, 2003).

Contudo, além desses pré-requisitos centrados na criança, a partir dos


quais a noção de fracasso, insucesso ou dificuldade escolar volta-se para
o aprendiz, devem-se considerar as situações reais que atribuem sentido
à essa linguagem. Esta deve estar presente no meio no qual a criança
cresce e vive para que possa compreender “como se escreve, o que se
pode escrever, com que objetivos se escreve, para quem se escreve,
quais as situações em que se escreve, o porquê de se escrever, e o
mesmo ocorrendo em relação à leitura” (ZORZI, 2003, p. 13).

Crianças em diferentes realidades sociais, vivendo em meios nos quais


a leitura e a escrita possam ter maior ou menor presença, podem
apresentar resultados muito diferentes em avaliações formais sobre
leitura e escrita. É importante que este fator seja considerado quando
se pensa em políticas de ensino. No entanto as propostas escolares
muitas vezes não consideram essas diferenças individuais, a “história
de vida de cada criança”. Propostas educacionais adequadas devem
considerar a diversidade dos alunos e seu conhecimento prévio sobre a
escrita, assim como o que é, como se forma e quais as características da
linguagem escrita (ZORZI, 2003).

Embora ter uma “boa fala” não seja pré-requisito para aprender a
escrever bem, na fala, uma série de aspectos e formalidades da escrita
são incorporados. Assim, falar bem é um produto de modificações
na linguagem oral produzidas por um processo de letramento. Neste
sentido, na sociedade existe uma atribuição de prestígio relacionada à
forma como a pessoa usa a linguagem oral (ZORZI, 2003).

O prestígio é marcado por condições de poder econômico e cultural de


um grupo ou região e essas podem ser temporárias. Não há, em termos
de língua, superioridade ou inferioridade. Todas as línguas, em todas
suas formas e variações, cumprem perfeitamente seu papel de permitir a
comunicação entre as pessoas (ZORZI, 2003, p. 23).

24
24
ASSIMILE
A linguagem é aprendida nos diversos ambientes dos
quais a criança faz parte, mas na escola é objeto e
ferramenta de aprendizagem. Por isso, aprende-se o uso
formal da linguagem, visando o acesso ao conhecimento
em diferentes formatos linguísticos e um padrão de
entendimento convencionado numa determinada cultura.

A linguagem está no centro da educação, porque além de ser objeto de


aprendizagem, é por meio dela que se adquirem outros conhecimentos,
sendo assim, é um instrumento de acesso que tem que ser previamente
ensinado. Nas etapas iniciais do ensino fundamental, o ensino da
leitura e da escrita é enfatizado, pois compreende meio de acesso ao
conhecimento por todo o sistema educacional. Por isso, situações reais
nas quais funções sociais são exigidas devem ser vivenciadas na escola
para desenvolvimento das habilidades de linguagem (ZORZI, 2003).

Sobre a aquisição da escrita enquanto instrumento de aprendizagem,


Montessori (apud VYGOTSKY, 2000) refere que:

Em diferentes processos de aprendizagem da escrita de crianças entre


quatro e meio e cinco anos, observa-se um emprego frutífero, rico e
espontâneo da escrita, que nunca se observa nas idades posteriores, o
que deu a ela o motivo para concluir que é precisamente nessa idade que
se concentram os prazos optimais de aprendizagem da escrita, os seus
períodos sensíveis (VYGOTSKY, 2000, p. 335).

1.1 Características e desenvolvimento das linguagens


oral e escrita

O desenvolvimento da escrita não se assemelha ao da fala, assim como


a escrita não se trata de “uma simples tradução da linguagem falada
para signos escritos, e a apreensão da linguagem escrita não é uma

 25
simples apreensão da técnica da escrita” (VYGOTSKY, 2000, p. 312).
O desenvolvimento da escrita, enquanto uma função específica da
linguagem de pensamento, de representação, requer um nível elevado
de abstração. Além disso, a linguagem escrita não possui interlocutor
direto, havendo aí mais um grau de abstração, o que torna mais difícil
a aquisição desta, ainda mais se for somado o fato de não haver para a
criança a mesma motivação que a levou a desenvolver a fala, tanto pela
necessidade quanto pelo entendimento da sua função. As interações
que se estabelecem a partir de situações como necessidades, dúvidas,
curiosidades, pedidos e explicações motivam a situação da fala. Já
a relação com a situação na linguagem escrita é representada no
pensamento e implica consciência da estrutura sonora da palavra, seu
desmembramento e sua restauração de forma voluntária nos sinais
escritos (VYGOTSKY, 2000).

A linguagem escrita, assim como a interior, são formas monológicas de


linguagem. Já a linguagem falada é um diálogo na maioria dos casos, o
que exige dos interlocutores que conheçam o assunto. Assim, é comum
que ocorra uma série de abreviações na linguagem falada e espera-se
que se veja o interlocutor, sua mímica e seus gestos, e que se perceba a
entonação da fala.

Em conjunto, ambos admitem aquela compreensão a meias palavras,


aquela comunicação através de insinuações [...]. Só na linguagem falada
é possível um diálogo que, segundo expressão de Gabriel Tarde, é
apenas o complemento de olhares que um interlocutor lança a outro
(VYGOTSKY, 2000, p. 454).

Por sua vez, a linguagem escrita é a forma mais desenvolvida, prolixa


e exata, pois por palavras transmite-se o mesmo que a entonação e a
percepção imediata da situação transmitem na fala (VYGOTSKY, 2000).
Diferentemente da linguagem falada, na escrita não são possíveis as
mesmas omissões, sendo necessários os detalhes da situação para
que o interlocutor possa compreendê-la e, por isso, trata-se de uma

26
26
linguagem muito mais desenvolvida (VYGOTSKY, 2000). Seu domínio
depende da aquisição de “habilidades que permitem passar da
ortografia das palavras à sua fonologia e ao seu significado
(ou, no caso da escrita, da fonologia à ortografia)” (SÁNCHEZ,
2004, p. 90). Dessa forma, as habilidades de reconhecimento das
palavras são muito específicas.
O domínio da escrita também depende da utilização dessas
habilidades para a comunicação com os outros, a qual por não
ocorrer no tempo e espaço imediatos “requer o desenvolvimento de
recursos retóricos e cognitivos extremamente sofisticados que se
assentam nas competências linguísticas orais, ao mesmo tempo em
que as transcendem” (SÁNCHEZ, 2004, p. 90). Esses dois aspectos, de
reconhecimento das palavras e de comunicação, devem integrar-se
progressivamente um no outro (SÁNCHEZ, 2004).

PARA SABER MAIS


Dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) apontaram que a taxa de
analfabetismo caiu de 2010 para 2018, contudo, entre
pessoas de cor preta ou parda com 15 ou mais anos
de idade a taxa foi de 9,1%, contra 3,9% entre pessoas
brancas. Isso mostra que embora o Brasil seja uma
sociedade letrada, não são todas as pessoas que têm
tido acesso ao domínio da escrita (SARAIVA, 2019).

Embora existam concepções tradicionais de que primeiro deve-se


ensinar a ler e a escrever para depois propiciar a compreensão e a
redação, existem posições que defendem que se deva criar situações
comunicativas nas quais os alunos usem a linguagem escrita de forma
relevante, adquirindo as habilidades específicas nestas experiências.
Nelas, os alunos têm que se comunicar (compreender e redigir),
testar e exercitar as habilidades para escrever e reconhecer palavras
escritas (SÁNCHEZ, 2004).

 27
A teoria da via dupla é a mais influente para explicar cognitivamente
como se dá o reconhecimento das palavras escritas: por meio da via
fonológica e por meio da via léxica. Pela via fonológica, os grafemas
(unidades da escrita) são transformados em sons, os quais são reunidos
em uma representação, que deve ser reconhecida, e os conhecimentos
semânticos associados à representação são atingidos. Pela via léxica o
reconhecimento da palavra acontece ao mesmo tempo que o acesso a
seu significado. Com o reconhecimento, chega-se à fonologia da palavra,
sendo possível lê-la em voz alta (SÁNCHEZ, 2004).

Para aprender a escrever é preciso que as crianças apresentem


conhecimento fonológico ou consciência fonológica. Esta refere-se
à consciência de que as palavras são constituídas por diversos sons
(fonemas) ou grupos de sons e que elas podem ser segmentadas
em unidades menores (letras, sílabas). Trata-se, portanto, de um
conhecimento metalinguístico a partir do qual pode-se refletir sobre as
características de estrutura da fala e manipulá-las. Existem quatro níveis
de conhecimento fonológico, sendo que os mais elaborados dependem
dos avanços na alfabetização da criança:

1. Sensibilidade à rima: nível mais elementar, quando a criança


descobre que algumas palavras têm no seu início ou no seu final
um mesmo conjunto de sons.

2. Conhecimento silábico: capacidade de dividir a palavra em sílabas.


Assim como a sensibilidade à rima, pode ser alcançado apenas
com a oralidade.

3. Conhecimento intrassilábico: as sílabas são subdivididas em


elementos menores do que ela mesma, chamados “onset” (a
consoante ou o conjunto de consoantes iniciais), mas maiores
do que um fonema, chamados de “rima” (aparecem a partir da
primeira vogal). Ex.: na palavra “prestar”, na sílaba “pres”, “pr” é
“onset” e “es” é “rima”.

28
28
4. Conhecimento segmental: compreender que as palavras são
formadas por fonemas, uma sequência de unidades sonoras.
Este conhecimento desenvolve a escrita, assim como a escrita
desenvolve este conhecimento.

Ainda se tratando de como se aprende a escrever, Ferreiro e Teberosky


(1986, apud ZORZI, 2003) apontam uma sequência psicogenética de
construção da escrita:

• Fase pré-silábica: as crianças já diferenciam desenho e escrita,


tentando reproduzir letras linearmente, considerando que há
“uma quantidade mínima de letras para que algo possa ser
lido ou escrito, assim como a hipótese de que os caracteres
devem ser variados, [...] da mesma forma que palavras
diferentes devem ser escritas de modos diferentes” (ZORZI,
2003, p. 31). Contudo, ainda não fazem correspondência
entre os sons das palavras e os elementos gráficos usados
para escrevê-las, chamada de pauta sonora, ou seja, ainda
não apresentam um conhecimento silábico (do conhecimento
fonológico). Nessa fase, atividades com direcionamento
para segmentar as palavras em sílabas poderiam ajudar no
desenvolvimento da correspondência entre a escrita e os sons
que compõem as palavras.

• Fase silábica: começa-se a considerar características sonoras


das palavras. A decomposição em unidades silábicas define a
quantidade de letras e sua pronúncia é projetada na sequência
de letras. Sua atenção às características sonoras das palavras
pode estar relacionada aos avanços na consciência fonológica
com o alcance do nível de conhecimento silábico. O mesmo pode
ser adquirido espontaneamente, contudo, seus desdobramentos
na escrita dependem da mediação de outras pessoas, sem a qual
a criança não descobre ou aprende o nome das letras, nem o som
que elas devem escrever.

 29
• Fase silábico-alfabética: a criança deixa de considerar a
sílaba como uma unidade, compreendendo que ela pode ser
segmentada em fonemas. Apenas ao escrever a criança começa a
prestar atenção nos elementos intrassilábicos.

• Fase alfabética: correspondência entre letras e sons, já com


conhecimento segmental quanto à consciência fonológica.
Neste ponto a criança está alfabetizada, pois segundo Ferreiro e
Teberosky (1986), “compreendeu a natureza da escrita” (ZORZI,
2003, p. 34). Contudo, ainda é necessário aprender as regras,
pois para se aprender a escrever, propriedades ou aspectos da
língua escrita que fazem parte do sistema ortográfico devem ser
compreendidos, como o fato de um som poder ser escrito por
diferentes letras e uma letra poder representar sons diversos.
Também deverá entender que existem diferenças entre o modo de
falar e o modo de escrever, isto é, que a escrita não significa realizar
transcrições fonéticas, que as palavras necessitam ser escritas
separadamente e precisará definir, com segurança, quantas e quais
letras são necessárias para escrever os sons das palavras. Ainda, entre
uma série de outros fatos, deverá também discernir a posição das letras
no interior das palavras, diferenciar entre letras semelhantes do ponto
de vista da forma gráfica e assim por diante (ZORZI, 2003, p. 34).

Por meio de estudos de casos, Zorzi (2003) apresenta possíveis


dificuldades de alunos no domínio do sistema ortográfico,
apresentando reflexões sobre o porquê e como se dão tais dificuldades
e intervenções possíveis de serem realizadas. Psicopedagogos,
psicólogos, neurologistas, fonoaudiólogos e professores são os
prováveis profissionais a trabalharem essas questões que surgem no
processo de aquisição da escrita. Embora alguns casos possam alertar
a possibilidade de um transtorno, a maioria das situações indicam
necessidade de manipulação ambiental com enriquecimento do
contexto de aprendizagem do indivíduo, que não se restringe ao espaço
escolar, mas acontece de maneira formal prioritariamente neste.

30
30
Figura 1 – Os professores podem intervir junto aos alunos com
dificuldades no domínio do sistema ortográfico

Fonte: FatCamera/iStock.com.

Por fim, Zorzi (2003) enfatiza um aspecto interessante envolvido na


aprendizagem da escrita e domínio do sistema ortográfico. Embora a
memória auxilie e faça parte da grafia correta das palavras, a escrita
depende também do conhecimento sobre as possibilidades oferecidas
pela língua. Para memorizar palavras a longo prazo, é preciso considerar
sua conservação, frequência de uso e competição com outras imagens
gravadas na memória das mesmas palavras. O que pode interferir na
memorização da forma como se escrevem as palavras são os processos
perceptivos e os gerativos generalizadores, os quais correspondem,
respectivamente, à memória visual (que depende do acesso ao modelo
correto e da frequência de ocorrência e uso da palavra) e pistas
fonológicas e gramaticais (permitem deduzir como palavras novas ou
pouco conhecidas devem ser escritas).

O tema linguagem oral e linguagem escrita apresentado permitiu


identificar que enquanto a primeira é uma herança biológica, a
segunda é uma herança cultural quando presente na sociedade
à qual o indivíduo pertence. A linguagem escrita é uma forma
monológica de linguagem, muito mais desenvolvida que a oral, a

 31
qual é, essencialmente, dialógica, e possui características como
entonação, expressões faciais e conhecimento compartilhado sobre
um assunto. Por apresentarem desenvolvimentos diferentes, a
escrita tem sido alvo de atenção por constituir-se não só objeto
de aprendizagem como também instrumento de acesso a outros
conhecimentos. É preciso entendimento dos usos e funções da
escrita para aprendê-la, além de atribuir-lhe graus variados de
significações. Seu processo de aquisição envolve o que conhecemos
como consciência fonológica. Conclui-se que propostas educacionais
adequadas devem considerar a diversidade dos alunos e seu
conhecimento prévio.

TEORIA EM PRÁTICA

Algumas crianças apresentam dificuldades para aprender


a escrever. Como profissional dessa área de processos
de aprendizagem, Rita se depara com situações diárias
em que médicos, professores e pais procuram sua
ajuda para saber o que acontece com uma criança com
dificuldade para adquirir a escrita e revela ser difícil
quebrar a expectativa da grande maioria das pessoas de
que o problema está na criança. Em muitos casos, ela
tem observado que o processo de desenvolvimento da
linguagem é desconsiderado quando se depara com um
desenvolvimento atrasado ou comprometido. Aponte
alguns aspectos que devem permear a avaliação de Rita
sobre o que acontece no contexto de aprendizagem dessas
crianças, que não estão aprendendo a linguagem escrita
de maneira desejável, e como é possível identificar em que
nível a criança está para planejar intervenções adequadas.

32
32
VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Além dos pré-requisitos centrados na criança,


a linguagem deve estar presente em situações
reais da sua vida para lhe atribuir sentido. O que
a criança compreende sobre a linguagem em suas
experiências de vida?

a. Como se escreve e noções espaciais.

b. Como se escreve e atenção e interesse.

c. Como se escreve e quais as situações em que


se escreve.

d. Como se escreve e habilidades motoras finas.

e. Como se escreve e noções de lateralidade.

2. Embora ter uma “boa fala” não seja pré-requisito para


aprender a escrever bem, falar bem é um produto de
quais modificações?

a. Falar bem é um produto de modificações na linguagem


oral produzidas por um processo de letramento.

b. Falar bem é um produto de modificações na linguagem


oral produzidas por um processo de imitação.

c. Falar bem é um produto de modificações na linguagem


oral produzidas por um processo de decodificação.

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d. Falar bem é um produto de modificações na linguagem
oral produzidas por um processo de oralização.

e. Falar bem é um produto de modificações na linguagem


oral produzidas por um processo de incorporação.

3. Para aprender a escrever é preciso que as crianças


apresentem conhecimento fonológico ou consciência
fonológica. Quais são os quatro níveis de conhecimento
fonológico, do menos para o mais elaborado?

a. Sensibilidade à rima, conhecimento intrassilábico,


conhecimento silábico e conhecimento segmental.

b. Sensibilidade à rima, conhecimento silábico,


conhecimento intrassilábico e conhecimento
segmental.

c. Conhecimento segmental, sensibilidade à rima,


conhecimento intrassilábico e conhecimento silábico.

d. Conhecimento segmental, conhecimento


intrassilábico, conhecimento silábico e
sensibilidade à rima.

e. Conhecimento intrassilábico, sensibilidade à rima,


conhecimento silábico e conhecimento segmental.

Referências bibliográficas
SÁNCHEZ, E. A linguagem escrita e suas dificuldades: uma visão integradora. In:
COLL, C.; MARCHESI, Á.; PALACIOS, J. (Orgs.). Desenvolvimento psicológico e
educação: transtornos de desenvolvimento e necessidades educativas especiais.
Porto Alegre: Artmed, 2004. vol. 3. p. 90-112.

34
34
SARAIVA, A. Indicadores de educação avançam, mas desigualdades regionais e
raciais persistem. Agência de notícias IBGE. Estatísticas sociais. 2019. Disponível
em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/24852-indicadores-de-educacao-avancam-mas-desigualdades-
regionais-e-raciais-persistem. Acesso em: 5 nov. 2019.
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
ZORZI, J. L. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e
educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

Gabarito
Questão 1 – Resposta: C
Resolução: Além das “funções básicas” ou “funções
neuropsicomotoras” que as crianças devem apresentar para
aprender a linguagem escrita adequadamente (habilidades motoras
finas, coordenação motora e visual bem-estabelecida, noções
espaciais, noções de lateralidade, discriminação e memória visual e
auditiva, noções temporais, atenção, interesse, e outros), devem-se
considerar as situações reais que atribuem sentido a essa linguagem,
para que possam compreender como se escreve, o que se pode
escrever, com que objetivos se escreve, para quem se escreve, quais
as situações em que se escreve e o porquê de se escrever.
Feedback de reforço: As situações em que a escrita faz sentido que
a criança observa em sua realidade a ajuda a aprender a linguagem
escrita adequadamente.
Questão 2 – Resposta: A
Resolução: Embora ter uma “boa fala” não seja pré-requisito
para aprender a escrever bem, na fala, uma série de aspectos e
formalidades da escrita são incorporados. Assim, falar bem é um
produto de modificações na linguagem oral produzidas por um
processo de letramento.
Feedback de reforço: O contato e a compreensão adequada da
linguagem escrita interferem na produção da linguagem oral.

 35
Questão 3 – Resposta: B

Resolução: Existem quatro níveis de conhecimento fonológico,


sendo que os mais elaborados dependem dos avanços na
alfabetização da criança: sensibilidade à rima (a criança descobre
que algumas palavras têm no seu início ou no seu final um mesmo
conjunto de sons), conhecimento silábico (capacidade de dividir
a palavra em sílabas), conhecimento intrassilábico (as sílabas são
subdividias em elementos menores) e conhecimento segmental
(compreender que as palavras são formadas por fonemas).

Feedback de reforço: A consciência fonológica se constrói num


crescente de reconhecimento de sons iguais entre palavras até a
percepção dos fonemas nas palavras.

36
36
Comunicação e linguagem
Autora: Nancy Capretz Batista da Silva

Objetivos

• Identificar a comunicação enquanto função


da linguagem.

• Relacionar o desenvolvimento da linguagem


às intenções e às interações dentro de uma
comunidade.

• Destacar os diferentes contextos no qual a


comunicação ocorre e a linguagem se desenvolve.

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1. Interações como palco do desenvolvimento
linguístico

O ser humano é um ser social e precisa do outro para sobreviver.


Isso implica que haja uma comunicação entre aqueles que interagem,
por meio de uma linguagem compartilhada. Nesta troca interativa,
temos palco para desenvolvimento da linguagem que permite uma
comunicação eficiente e o atendimento das necessidades humanas.
Isso acontece progressivamente, como é possível compreender ao
longo desta leitura.

A capacidade da linguagem é exclusivamente humana (CHOMSKY


apud VILLA, 1995). Para Chomsky, falar é uma capacidade
geneticamente determinada, o que quer dizer que adquirir linguagem
não passa de desenvolver algo inato. Em uma produção linguística
existe uma relação entre sua forma, a sintaxe, e aquilo que significa,
a semântica. Além disso, é preciso conhecer a realidade para poder
fazer uso da linguagem, o que para Piaget significava a necessidade do
surgimento prévio da função simbólica (VILLA, 1995b). Opostamente
a Chomsky, Piaget não pensa ser a linguagem o principal elemento
definidor da espécie humana, o qual seria uma capacidade cognitiva
geral, da qual a linguagem seria expressão.

Em meados dos anos setenta, atentou-se também para o


conhecimento sobre como usar regras fonológicas, semânticas e
sintáticas, ou seja, o uso funcional da linguagem denominado de
pragmática. O uso da linguagem surge de uma intenção, de uma
necessidade de estabelecer a comunicação. Isto significa que se usa a
linguagem para que algo que está na mente possa passar à consciência
do interlocutor. Desta maneira, aprende-se a falar aprendendo a
anunciar uma intenção e a compartilhar e comentar sobre um tema
com um interlocutor (VILLA, 1995).

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38
Assim, podemos empregar a linguagem para regular a conduta de outra
pessoa (venha; dê-me água; pegue a escova; chame-me às sete; etc.), para
informar sobre algo referente a nós mesmos (não gosto de água; vou
entrar em férias; estou cansado, etc.) ou para informar sobre algo que
nos cerca (o carro é vermelho; Maria não vem; é um lápis; o trem está
estragado; etc.). (VILLA, 1995b, p. 71)

Por isso, uma boa competência comunicativa é adquirida se há um


conjunto de habilidades e conhecimentos a respeito de quando falar
e quando não falar, com quem falar, sobre o que falar, onde, quando
e até mesmo de que maneira falar. Mas, além do desenvolvimento
funcional constituir apenas uma parte, a criança necessita aprender o
que é esperado de sua participação como interlocutora no contexto
em que está imersa, diferenciando entre diversos contextos e
interlocutores (VALMASEDA, 2004).

O bebê pronuncia suas intenções por meio de gestos faciais ou


corporais, balbucios ou mesmo através de ações, como ao arrastar o
adulto até um objeto. Porém, os meios verbais permitem agilidade e
economia de esforço na solução de seus problemas frente aos meios
não verbais. Assim, o desenvolvimento da linguagem começa cedo.
O recém-nascido, por exemplo, possui condutas específicas relacionadas
à linguagem humana (distingue os sons pa e ba, reage com movimentos
à voz humana, e outros). Os adultos, por sua vez, adequam suas
condutas àquelas observadas nos bebês, estabelecendo-se uma
protoconversação (conversação primitiva) (VILLA, 1995).

A interação social que acontece na rotina do bebê conjuntamente


com a regulação do adulto acrescida à sua percepção de objetos
a partir dos três meses de idade, permite que a comunicação e
suas regras se desenvolvam assim como que seja estabelecido um
progresso cognitivo. Entre os seis e os doze meses, aparecem gestos,
diversificação nas expressões faciais, uso do olhar para regular o
intercâmbio e vocalizações (VILLA, 1995).

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Assim, a fala se desenvolve seguindo o seguinte ritmo (VILLA, 1995):

• Vocalizações podem ser observadas nas crianças praticamente


desde o primeiro mês de vida (além dos sons típicos do choro, os
quais se diferenciam aos poucos).

• A partir de um mês e meio, qualquer fonema pode aparecer –


fase do balbucio.

• A partir dos seis meses, os bebês prestam cada vez mais atenção
aos sons falados ao seu redor, os quais são imitados, ainda que
imperfeitamente – fase da lalação.

• A linguagem da criança se aproxima cada vez mais daquela falada


em seu meio, quando aos 9-10 meses chega à fase da ecolalia.

• Até os nove meses, as primeiras vogais são claramente


pronunciadas (/a/ e /e/).

• Aos doze meses pronuncia-se corretamente as primeiras


consoantes (/p/, /t/, /m/).

• Durante o segundo ano, a aprendizagem da entonação vai sendo


incorporada pelas crianças, e observa-se o uso de expressões
(mesmo que sem significado) com inflexões, ritmos e pausas –
jargão expressivo.

• Aproximadamente aos dois anos de idade, as vogais, boa parte


das consoantes e alguns ditongos são pronunciados corretamente.

O domínio completo do sistema fonológico pode demorar até os cinco


anos. Desta forma, o Quadro 1 apresenta as etapas de construção do
sistema linguístico, indicando o panorama de aquisição da fala.

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40
Quadro 1 – Níveis de estruturação linguística
UNIDADE ESTÁGIO DE
NÍVEL EXEMPLO
MÍNIMA DESENVOLVIMENTO
[ka], [dadadada]
Fonético Som Pré-Fala (0 – 1;0)
[da ‘da]
Fonológico Segmento Sonoro Primeiras Palavras [ka] = CARRO
Lexical Palavra (1;0 – 1;6) [da] = DÁ
Estágio Telegráfico DÁ CARRO
Sintático Frase
(1;6 – 2;0) CARRO PAPAI
Organização e expansão
FAZI
Morfológico Forma dos subsistemas
PICOLERES_
(a partir de 2;0)
JÁ FAZI
Narrativo
Discursivo Texto AMANHÃ
(a partir de 4 anos)
(Protonarrativas)
Fonte: Teixeira, 1995, p. 3 apud ALMEIDA, 2007, p. 34.

No uso das primeiras palavras, as crianças se restringem ao contexto no


qual o adulto geralmente as emprega, até que comecem a generalizar
este uso em contextos não observados anteriormente, o que parece
referir-se à primeira noção conceitual, que se relaciona ao significado
da palavra. Neste processo, a criança entende cada vez mais o caráter
instrumental da linguagem e que esta reflete a realidade. A partir daqui
a memória é limitadora na aquisição de novas palavras (VILLA, 1995).

PARA SABER MAIS


“Quando nos referimos a conceito, estamos pensando
em um tipo de representação mental” (p. 32). Conceito
e categoria são frequentemente empregados como
sinônimos, contudo, categoria é o conjunto de membros
representados pelo conceito. Exemplo: conceito gato –
representação mental; categoria gato – todos os gatos
que já existiram, existem atualmente e existirão no
futuro (LOMONACO, 2000).

 41
Desta forma, no trabalho pedagógico, o conhecimento que a criança
já possui deve servir de base e seu vocabulário deve ser estendido e
aperfeiçoado por meio de sua participação em atividades motivadoras e
contextualizadas nas quais a negociação dos significados fornecidos pelo
adulto aconteça (VILLA, 1995).

1.1 Comunicação e interações sociais

Para dar prosseguimento ao entendimento da linguagem e da sua


função comunicativa, é retomado que a linguagem seria um “sistema
de signos que serve para expressar ideias e sentimentos” (VILLA,
1995, p. 150). Assim, além de sua forma (significantes) estudada na
morfologia, a sua definição reconhece a sua função (significados).
A linguagem torna-se então um instrumento da conduta, uma
ferramenta culturalmente elaborada para que ocorra a comunicação
no meio social. Função e forma integram um mesmo processo, são
indissociáveis, são adquiridas e evoluem em conjunto (VILLA, 1995).

Como também já visto em aulas anteriores, para haver comunicação


os interlocutores devem conferir o mesmo valor a suas expressões
linguísticas. Por isto que na aquisição da linguagem aprende-se a usá-la
para regular interações com os outros. Isso é feito de forma cada vez
melhor ao se conhecer e compartilhar os significados convencionais
existentes na comunidade (VILLA, 1995).

A aquisição e desenvolvimento da atividade linguística implica


participação em situações e atividades sociais motivantes (alimentação,
cuidado ou jogo), desde o início da vida. Nas interações sociais, a
comunicação se torna cada vez mais convencional na sua forma.
Assim, os significados elaborados socioculturalmente devem ser
compartilhados. Fonemas, palavras e orações devem ser combinados
em sequências compreensíveis aos demais e as regras gramaticais
devem ser utilizadas, já que estruturam de forma convencional as
relações forma-função na linguagem (VILLA, 1995).

42
42
Com as experiências pré-escolares e o ingresso, mais adiante, na
escola, dos quatro aos sete anos, a diversificação dos contextos
da fala exige maior clareza e compreensibilidade do que se
produz verbalmente (VILLA, 1995). Quando uma criança chega
à escola, [se não antes] por volta dos quatro anos, já possui um
conhecimento significativo das normas por trás da comunicação
e da linguagem, adquirido paulatinamente nas interações em sua
casa (VALMASEDA, 2004).

Em seguida, dos sete aos doze anos de idade, novos modelos de uso
da linguagem são apresentados, tanto pelas experiências na escola
e com os amigos, quanto pelo acesso compreensivo aos meios de
comunicação e à leitura, os quais proporcionam grande variedade de
conhecimentos (VILLA, 1995a).

Inicialmente, o veículo linguístico será a língua oral. Mais tarde, a


aprendizagem da leitura e da escrita ampliará enormemente as
possibilidades de conhecimento do mundo, ao mesmo tempo em que
enriquecerá a própria linguagem oral, convertendo-se em um instrumento
cada vez mais complexo. (VALMASEDA, 2004, p. 72)

No meio social, usualmente, um modelo de uso da linguagem


adaptado aos modos de vida e ao tipo de interações habituais
em que ocorrem é oferecido. Já é um modelo apropriado para os
hábitos e necessidades comunicativas existentes no meio, assim,
contextos interativos diferentes apresentam estilos e modos de
uso da linguagem distintos. É desta forma que dois grupos sociais
compartilham as generalidades do código (são falantes da mesma
língua), mas oferecem inputs linguísticos diferentes. Destaca-se,
portanto, a relevância da exposição a diversificados ambientes
sociais, nos quais há diferentes modelos, enriquecendo o input
linguístico (VILLA, 1995).

 43
ASSIMILE
O input linguístico seria o uso que os demais falantes
fazem da linguagem em suas interações (VILLA, 1995),
ou seja, o uso da linguagem que se ouve e observa em
uma comunidade.

O input linguístico identifica a comunidade ou o grupo falante e, do mesmo


modo que veicula seus modelos socioculturais, exerce uma pressão
socializadora sobre o uso individual da linguagem no interior dessa
comunidade ou grupo. Normalmente o indivíduo é sensível a esta influência
e adapta seu uso ao modelo tanto quanto for capaz. (VILLA, 1995, p. 157)

Na escola, comumente é oferecido um input linguístico elaborado


para a compreensão. Esse input apresenta similaridades com aquele
comumente utilizado nas famílias de crianças de classes média e alta
de forma a favorecê-las de forma diferenciada (VILLA, 1995). Esta é uma
reflexão de peso para a realidade de escolas brasileiras, visto que as
crianças com menos recursos linguísticos percebem uma dificuldade
adicional para o êxito escolar no uso da linguagem. Frente a este
dado, precisamos priorizar a consideração das diferentes bagagens
de aprendizado de cada educando, assim como aproximar os diversos
inputs linguísticos entre si e ao da escola, favorecendo a aquisição
da linguagem e escrita formais, que possam ser compartilhadas e
compreendidas por todos que fazem parte de uma sociedade.

Assim, “o universo vocabular de cada criança vai diferir de acordo com


a classe social e com os tipos de organização dos discursos orais com
os quais ela convive em seu cotidiano” (TULESKI, CHAVES & BARROCO,
2012, p. 38). Ingressando na escola, a ampliação do vocabulário e o
aperfeiçoamento da estrutura e da forma da linguagem oral podem
e devem acontecer. Por isso é importante que o professor das séries

44
44
iniciais, além de “contar” histórias para as crianças, diversifique a escolha
dos autores da literatura infantil, de clássicos a contemporâneos, para
que possa haver contato das crianças com estruturas linguísticas e
vocábulos variados, com ajuda do professor para compreensão destes
(TULESKI, CHAVES & BARROCO, 2012).

O respeito pela diversidade e a oportunização de experiências


enriquecedoras para aquelas crianças com universo vocabular mais
empobrecido deve ser regra. Muito se fala nas escolas sobre a origem
das crianças e, de fato, até mesmo as pesquisas revelam que há relação
entre variáveis psicossociais familiares e desempenho em leitura/
escrita em crianças, sendo que a presença de transporte próprio na
família, percepção dos familiares de que a criança teve dificuldades para
aprender a ler e no desempenho da leitura, maior índice de repetência
escolar e história familiar de dificuldade na leitura são algumas dessas
variáveis psicossociais da família (ENRICONE & SALLES, 2011), ainda
que não sejam determinantes. Por isso, o trabalho de parceria com
as famílias, fazendo com que elas se sintam motivadas a trocarem
com a escola e estimularem de forma adequada seus filhos, deve ser
parte do cotidiano escolar. Isso, somado à oferta de experiências mais
significativas e diversas, pode ajudar muito a superar a situação da
educação das crianças, principalmente em relação aos desafios da
aprendizagem da leitura e escrita.

A temática abordada nesta Leitura Fundamental permite concluir que


o uso da linguagem surge de uma intenção, que é a comunicação.
Para uma comunicação eficaz, a criança necessita aprender o que
é esperado de sua participação como interlocutora no contexto
em que está imersa, diferenciando entre diversos contextos e
interlocutores. Desta forma, observa-se um desenvolvimento da fala
em diferentes fases: protoconversação, balbucio, lalação, ecolalia,
jargão expressivo e fala. No uso das primeiras palavras, as crianças se
restringem ao contexto no qual o adulto geralmente as emprega, até

 45
que comecem a generalizar este uso em contextos não observados
anteriormente, o que parece referir-se à primeira noção conceitual.
Assim, contextos interativos diferentes apresentam estilos e modos
de uso da linguagem distintos. É importante ressaltar que a aquisição
e desenvolvimento da atividade linguística implica participação de
situações e atividades sociais motivantes. Por fim, observa-se que
crianças com menos recursos linguísticos percebem uma dificuldade
adicional para o êxito escolar no uso da linguagem. É preciso superar
essa adversidade e ofertar experiências mais significativas e diversas
nas escolas.

TEORIA EM PRÁTICA

No trabalho junto a instituições educacionais


ou escolas, é possível que você se depare com o
apontamento de outros profissionais sobre aquelas
crianças que possuem menos recursos linguísticos e a
percepção de suas dificuldades adicionais para o êxito
escolar no uso da linguagem. Este é um desafio que
precisa ser enfrentado em conjunto, ao mesmo tempo
que experiências mais significativas e diversas devem
ser promovidas. Enquanto profissional interessado
nos processos de aprendizagem, você não pode se
acomodar com a situação dessas crianças, mas deve
favorecer o engajamento de todos os envolvidos
para superar essa adversidade. Elenque as variáveis
apontadas no texto que podem ajudar você a
desenvolver um trabalho interdisciplinar de estimulação
adequada dessas crianças com possíveis resultados
satisfatórios no uso da linguagem.

46
46
VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. Em relação à comunicação e linguagem, em meados dos


anos setenta, atentou-se também para o conhecimento
sobre como usar regras fonológicas, semânticas e
sintáticas, ou seja:

a. A dialógica.

b. A pragmática.

c. A morfologia.

d. A ontogenética.

e. A filogenética.

2. O bebê pronuncia sua intenção por meio de gestos,


balbucios ou arrastando o adulto até esse objeto, mas
reconhece que há um meio mais econômico e eficaz.
Qual seria esse meio?

a. A linguagem.

b. A protoconversação.

c. A comunicação.

d. A fala.

e. A lalação.

 47
3. No processo de aquisição da linguagem, além
do desenvolvimento da comunicação, qual outro
progresso se observa na criança?

a. Pragmático.

b. Cognitivo.

c. Fonológico.

d. Semântico.

e. Sintático.

Referências bibliográficas
ALMEIDA, R. L. Aquisição das primeiras palavras: um estudo sobre aspectos
linguísticos em interação com ações intelectuais. Dissertação, Universidade Federal
da Bahia, 2007. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/28727/1/
DISSERTA%c3%87%c3%83O%20Risonete%20Lima%20de%20Almeida.pdf. Acesso
em: 5 nov. 2019.
ENRICONE, J. R. B.; SALLES, J. F. Relação entre variáveis psicossociais familiares e
desempenho em leitura/escrita em crianças. Revista Semestral da Associação
Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. v. 15, n. 2, 2011. p. 199-210.
LOMONACO, J. F. B. et al. Desenvolvimento de conceitos: o paradigma das
descobertas. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, v. 4, n. 2, p. 31-39,
dez. 2000.
TULESKI, S. C., CHAVES, M.; BARROCO, S. M. S. Aquisição da linguagem escrita e
intervenções pedagógicas: uma abordagem histórico-cultural. Fractal: Revista de
Psicologia, v. 24, n. 1, p. 27-44, 2012.
VALMASEDA, M. Os problemas de linguagem na escola. In: COLL, C.; MARCHESI, Á.;
PALACIOS, J. (Orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação: transtornos de
desenvolvimento e necessidades educativas especiais. Porto Alegre: Artmed, 2004.
vol. 3. p. 72-89.
VILLAVILLA, I. Aquisição da linguagem. In: COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A.
(Orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1995b. v. 1. pp. 69-80.
______. Desenvolvimento da linguagem. In: COLL, C.; PALACIOS, J.; MARCHESI, A.
(Orgs.). Desenvolvimento psicológico e educação: psicologia evolutiva. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1995a. v. 1. p. 149-164.

48
48
Gabarito
Questão 1 – Resposta: B
Resolução: Em meados dos anos setenta, atentou-se também para
o conhecimento sobre como usar regras fonológicas, semânticas e
sintáticas, ou seja, a pragmática. Aprende-se a falar aprendendo a
anunciar uma intenção e a compartilhar e comentar sobre um tema
com um interlocutor.
Feedback de reforço: Atenção foi dada à linguagem em diferentes
situações comunicativas.
Questão 2 – Resposta: D
Resolução: O bebê pronuncia sua intenção por meio de gestos,
balbucios ou arrastando o adulto até esse objeto antes de falar,
mas reconhece que a fala é mais econômica e eficaz do que os
métodos não verbais.
Feedback de reforço: Aprendemos a dizer as coisas em trocas
verbais, facilitando o entendimento das nossas intenções e o
atendimento das nossas necessidades..
Questão 3 – Resposta: B
Resolução: A interação social que acontece na rotina do bebê,
com regulação do adulto, e sua percepção de objetos a partir dos
três meses de idade, separados das pessoas, permitem que a
comunicação e suas regras se desenvolvam, assim como que haja
um progresso cognitivo.
Feedback de reforço: Os ganhos desenvolvimentais no processo de
aquisição da linguagem são percebidos para além desta área.

 49
Metodologia e didática:
competências linguísticas e ensino
Autora: Nancy Capretz Batista da Silva

Objetivos

• Observar o ensino, enfatizando as competências


linguísticas envolvidas neste processo.

• Relacionar pensamento, linguagem oral, linguagem


escrita e comunicação.

• Enumerar possíveis condições para que tais


aspectos possam ser estimulados de forma
apropriada e utilizados a fim de promover melhor
aproveitamento dos alunos.

50
50
1. Competência linguística, desenvolvimento e
aprendizagem
Esta Leitura Fundamental apresenta uma breve discussão sobre
como a competência linguística se relaciona aos processos de
desenvolvimento e aprendizagem no sentido de estimular propostas
de ensino condizentes com o papel da escola, que é ensinar aquilo que
o estudante ainda não sabe. A aquisição da linguagem e da escrita se
dá num processo contínuo e pode se desenvolver a partir de diferentes
elementos pedagógicos.

Você viu ao longo desta disciplina como pensamento e linguagem estão


interligados e como se desenvolvem o pensamento verbalizado e a
fala intelectual. Na sequência, aprofundou-se na aquisição da escrita
enquanto uma forma de linguagem que se diferencia da linguagem oral,
especialmente no seu aspecto culturalmente determinado. Então, foi
discutida uma das funções primordiais da linguagem: a comunicação.
Mais uma vez, neste ponto, as interações sociais foram postas em
destaque e agora cabe identificar o que é e como se dá a competência
linguística e sua relação com o ensino.

Desta forma, entende-se como competência linguística:

[...] o conhecimento que o falante/ouvinte possui de sua língua, o qual lhe


permite, em princípio, produzir e compreender o número infinito de sentenças
ou expressões linguísticas daquela língua, assim como distinguir enunciados
correspondentes ou não a sentenças da mesma. (CORRÊA, 2006, p. 27)

Mas como a competência linguística pode ser adquirida, desenvolvida,


em um país onde se identificam práticas de leitura e escrita circunscritas
ao cumprimento de exigências escolares? Em uma pesquisa realizada
em três escolas de formação de professores, constatou-se que, de
maneira geral, os alunos, ainda que incumbidos da tarefa de aprender a
ler e a escrever, não tinham oportunidade de experimentar a leitura e a
escrita reais, ou seja, com autoria e fruição (KRAMER, 2001).

 51
Para entender como é possível modificar esta realidade e trabalhar de
forma apropriada junto à aprendizagem de um indivíduo (que é o foco
de atenção de profissionais da educação), precisa-se ir mais a fundo nas
relações entre o ensino e a linguagem.

Aprendizagem e desenvolvimento são conceitos bastante conflitantes


entre as diferentes linhas de pesquisa. Para alguns, a aprendizagem da
linguagem escrita vem depois do desenvolvimento: se as funções estão
desenvolvidas, se a memória permite lembrar os nomes das letras do
alfabeto, se a atenção permite concentração durante certo período
em um assunto que não é do seu interesse, então o pensamento
amadureceu e a criança pode entender a relação entre os sinais
escritos e os sons que eles simbolizam, ou seja, o ensino da escrita
pode começar. Para outros teóricos os conceitos de desenvolvimento
e aprendizagem são um só, sendo que para ambas as teorias, a
aprendizagem não muda nada no desenvolvimento. Uma terceira teoria
concebe aprendizagem como processo estrutural e conscientizado, ou
seja, não só agrega o novo conhecimento, mas esse novo conhecimento
pode modificar todo o conjunto de conhecimentos previamente
adquiridos influenciando mais fortemente no desenvolvimento e não
apenas na aprendizagem em si (VYGOTSKY, 2000).

Em relação ao desenvolvimento do pensamento infantil no processo


de aprendizagem escolar, ou seja, na aquisição de conceitos científicos,
o princípio é o mesmo: ensinar novos conceitos e formas da palavra
ao aluno permitiria o desenvolvimento de conceitos já constituídos
na criança. Assim, ao investigarmos o nível de desenvolvimento do
pensamento é possível verificar o nível do pensamento para o início da
aprendizagem (VYGOTSKY, 2000).

Acontece que, para teóricos como Vygotsky, a aprendizagem está


sempre à frente do desenvolvimento. Dessa forma, a criança adquire
certos hábitos e habilidades antes de aprender a aplicá-los de forma

52
52
consciente e arbitrária. Isso indica que teríamos o processo
de aprendizagem escolar e o desenvolvimento das funções
correspondentes sempre discrepantes e nunca se observaria o
paralelismo (VYGOTSKY, 2000).

As pesquisas mostram que há uma interação entre as diferentes


matérias do ensino escolar no processo de desenvolvimento da criança.
Seu desenvolvimento intelectual não se divide de acordo com o sistema
de matérias (aritmética, escrita e outros), mas em alguma parte elas têm
um fundamento psicológico comum. “O pensamento abstrato da criança
se desenvolve em todas as aulas, e esse desenvolvimento de forma
alguma se decompõe em cursos isolados de acordo com as disciplinas
em que se decompõe o ensino escolar” (VYGOTSKY, 2000, p. 325).

Em colaboração a criança pode propiciar melhores condições de


aprendizagem do que observar-se-ia sozinha (simplesmente direcionada
pelos limites determinados pelo estado do seu desenvolvimento e pelas
suas potencialidades intelectuais), porém, o limite é o desenvolvimento.
Isto significa que a criança resolve com mais facilidade tarefas situadas
mais próximas do nível de seu desenvolvimento, até que a dificuldade
da solução cresça e se torne insuperável mesmo havendo colaboração.
A possibilidade de a criança passar do que sabe fazer sozinha para o
que sabe fazer em colaboração (zona de desenvolvimento imediato)
caracteriza a dinâmica do desenvolvimento (VYGOTSKY, 2000).

Para Vygotsky a imitação é a base para a aprendizagem da fala e


para a aprendizagem na escola. Neste contexto é preciso dizer que a
criança não vai à escola para aprender o que já sabe fazer sozinha, mas
para aprender o que ainda não sabe, que o professor dá acesso em
colaboração e sob sua orientação (VYGOTSKY, 2000).

 53
Figura 1.1 | O professor dá acesso ao que a criança
ainda não sabe fazer sozinha

Fonte: SolStock/iStock.com.

Neste sentido, as propostas de ensino-aprendizagem deveriam


estabelecer uma relação entre as “ideias das crianças” e os “requisitos
do ensino”, os quais seriam, respectivamente, “os processos
psicológicos de apropriação do conhecimento” e “o imperativo do
professor para fazer as crianças avançarem em uma área particular”
(TEBEROSKY, 1991, p. 13).

Desta forma, para proporcionar situações de ensino-aprendizagem,


saber quais expectativas se pode ter deve vir antes da discussão sobre o
que os professores podem e devem ensinar (TEBEROSKY, 1991). Assim, a
colaboração se dá de forma mais eficaz. E para saber quais expectativas
se pode ter, é preciso conhecer mais sobre desenvolvimento.

54
54
1.1 Linguagem, ensino e propostas de trabalho

Retomando, então, a questão da linguagem, é interessante que para


Teberosky (1991), a unidade da linguagem é o texto ou o discurso,
visto que grande parte dela não se desenvolve por meio de uma
palavra ou frase. Em povos, como os brâmanes, em que a cultura
predominante é de uma pedagogia oral, os analfabetos existem,
mas os textos são transmitidos entre as gerações, tornando-os não
ignorantes quanto à linguagem.

E essa pedagogia oral está presente também na sociedade atual,


na qual as crianças aprendem a falar e realizar outras coisas por
meio da pedagogia de transmissão oral, a qual mantém sua força
pela televisão, cinema e rádio. É importante ter esse conceito em
mente, pois educadores precisam reconhecer os múltiplos aspectos
envolvidos no processo ensino-aprendizagem, inclusive “recuperar
uma pedagogia de transmissão oral para ensinar a escrever”
(TEBEROSKY, 1991, p. 26), sabendo que as crianças não são ignorantes
quanto à linguagem escrita. Na verdade, como aponta Zorzi (2003),
em uma sociedade letrada, de modo diverso do que acontece em
uma sociedade oralizada, chama-se de analfabetismo a falta de
oportunidades de aprender a ler e escrever.

Por isso, para compreender a evolução da escrita nas crianças é


importante compreender a distinção entre os planos da grafia
(quantidade e forma) e da forma interna (de uma ideografia pura
passa ao fonetismo ou escrita silábica). Como já visto em aulas
passadas, para as crianças, primeiramente, a palavra é parte do objeto
e não constitui um signo, é uma propriedade, palavra-objeto, mais que
um símbolo do objeto.

 55
ASSIMILE
De acordo com o Curso de Linguística Geral (SAUSSURE,
2006, p. 80-81), “o signo linguístico une não uma
coisa a uma palavra mas um conceito a uma imagem
acústica [...] Propomo-nos a conservar o termo signo
para designar o total e a substituir conceito e imagem
acústica respectivamente por significado e significante;
estes dois termos têm a vantagem de assinalar a
oposição que os separa”.

O signo linguístico é, por sua vez, um signo artificial, pois, segundo


Ferdinand de Saussure (2006), remonta uma relação arbitrária entre um
significado e um significante. Pensando na linguagem verbal, a língua
é o código, os signos linguísticos, ou as palavras, são a representação
das ideias, pois as palavras faladas ou escritas permitem a associação a
determinadas ideias (SAUSSURE, 2006).

Assim como na linguagem, a princípio a escrita (conjunto de marcas


gráficas), para a criança, é um objeto, na forma de marcas que
acompanham um objeto ou uma imagem, e não é um objeto simbólico.
Depois, estabelece uma relação de pertinência entre o objeto ou o
desenho e o texto, e só mais tarde o texto é considerado um objeto
simbólico (TEBEROSKY, 1991).

Então, quando para a criança o conjunto de letras representa alguma


coisa, representa o nome de algo. Esta ideia tem relação “com o
aspecto denotativo da linguagem, ou de referência, quer dizer, o
fato de ligar expressões linguísticas com entidades do mundo real”
(TEBEROSKY, 1991, p. 32).

56
56
Desde o ambiente familiar até a entrada na escola, o nome da criança
lhe proporciona elementos importantes, como marcas e referências
ao seu mundo. Primeiro, a interpretação de sua escrita (do nome)
não depende do contexto; segundo, facilita o entendimento sobre a
ordenação não aleatória das letras. Mas como a escrita está relacionada
ao que existe, ao fato físico real, como explicado por Emília Ferreiro
(1981, apud TEBEROSKY, 1991), as crianças por volta dos cinco anos de
idade têm dificuldade em aceitar que se escreva sobre a ausência ou
uma informação falsa, por exemplo, “não há flores”.

Assim, escrever o próprio nome parece ser uma peça-chave para a


criança começar a compreender a forma de funcionamento do sistema
de escrita. Por isso, Teberosky (1991) propõe que a partir do próprio
nome se inicie o ensino da leitura e sua interpretação, visto que o nome:
1. é um modelo estável; 2. se refere a um único objeto; 3. tem valor
de verdade; 4. esta identificação faz parte dos intercâmbios sociais da
cultura; e 5. a coincidência entre a pauta linguística e o referente “facilita
a passagem de um símbolo qualquer para um objeto qualquer em
direção à atribuição de um símbolo determinado para indivíduos que [...]
são seres singulares e concretos” (TEBEROSKY, 1991, p. 35-36).

Teberosky (1991) propõe como trabalho pedagógico o uso de modelos


para a escrita do próprio nome, alternando com a escrita espontânea,
pois o modelo informa sobre as letras, sua quantidade, a variedade,
posição e ordem, assim como serve de referência para confrontar a
escrita espontânea com as convenções dela.

Machado et al. (2008) também incentivam a nomeação como atividade


para estimular a linguagem escrita de crianças com cinco anos de
idade. Mas, essas autoras não se limitam ao próprio nome da criança,
fazendo também referência ao nome de outras pessoas e de objetos
(MACHADO et al., 2008).

Entre os cinco e os oito anos de idade, as crianças se interessam por


enumerar o que conhecem. Assim, primeiramente listam jogos pedidos,

 57
desejos de presentes, objetos para levar a um passeio, receitas de
cozinha; depois enumeram os signos do zodíaco, os países, filmes vistos;
então, listam países e cidades, personagens públicos, animais, como um
exercício de memória e uma prova de informação. Pode-se aproveitar
este interesse em propostas pedagógicas. É interessante observar que,
nesta fase, a disposição do texto é espontaneamente vertical quando
se trata de listas e horizontal quando se trata de diferentes elementos
sintáticos (TEBEROSKY, 1991).

Além da escrita do nome e de listas, Teberosky (1991) aponta como


elementos pedagógicos interessantes, que consideram o conhecimento
linguístico da criança e a viabilidade de um enfoque interativo de
relação entre textos e leitor e entre as crianças, e que reflitam o ritmo
de desenvolvimento da criança com o reconhecimento de possíveis
dificuldades que possam ocorrer no processo de aquisição da escrita:

• A escrita de títulos (enunciados do conteúdo de um livro, de um


escrito qualquer ou de obras não escritas, como filmes, programas
de TV, pinturas). Exemplos de atividades: escrita de títulos,
interpretação das partes do enunciado, leitura do título, cópia
de um título, revisão e correção dos títulos, confecção de listas,
correspondência título-tema, utilização de subtítulos e elaboração
de slogans e frases de impacto.

• A reescrita de textos narrativos: produção coletiva, a qual implica


o intercâmbio sobre a organização daquilo que se quer escrever, o
equilíbrio entre o que já foi escrito e o que ainda não foi escrito e o
controle sobre o texto escrito e sobre aquilo que falta escrever.

• A escrita de poemas: composição (“atividade construtiva da


criança encaminhada a criar textos a partir da compreensão do
funcionamento do sistema alfabético de representação escrita
da linguagem”, p. 89) e reprodução (“recorrer-se a textos de
outros, de maneira direta ou indireta”, p. 89). De acordo com as
observações de classe de Teberosky, “a reprodução e a cópia

58
58
são atividades importantes na aprendizagem de ler e escrever”
(p. 89), embora a criatividade e a originalidade sejam igualmente
importantes e façam parte da rotina de atividades em classe.

• A escrita de notícias: a maioria das crianças apresentam


dificuldades na compreensão da leitura e na redação de textos
escritos, manifestadas muitas vezes pela falta de interesse pela
leitura e a escrita. As razões seriam a interação entre fatores de
ordem social e familiar, individuais e pedagógicas.

Segundo Teberosky, a escola contribui para aumentar as dificuldades


na compreensão da leitura e na redação de textos escritos ao oferecer,
frequentemente, limitadas possibilidades de leituras e de temas de
redação, pois, assim, as crianças com dificuldades também reduzem o
uso da escrita, observado quando evitam ler e escrever.

PARA SABER MAIS

O vídeo “A menina que odiava livros” mostra um pouco da


realidade da leitura de uma forma criativa e incentivando
este hábito que faz parte do desenvolvimento da linguagem
e escrita. Muito legal para assistir, inclusive, na companhia
de crianças! (National Film Board of Canada, 2006)

Esta Leitura Fundamental tratou da competência linguística, o


conhecimento que o falante/ouvinte possui de sua língua. Pontuou que
a aprendizagem é um processo estrutural e conscientizado, ou seja,
não só agrega o novo conhecimento, mas esse novo conhecimento
pode modificar todo o conjunto de conhecimentos previamente
adquiridos. Mostrou que como a aprendizagem está sempre à
frente do desenvolvimento, na colaboração de um adulto ou de
uma criança mais velha, a criança pode fazer mais do que sozinha
até limites determinados pelo estado do seu desenvolvimento e

 59
pelas suas potencialidades intelectuais. Desta maneira, a zona de
desenvolvimento imediato, proposta por Vygotsky (2000), representa a
possibilidade de a criança passar do que sabe fazer sozinha para o que
sabe fazer em colaboração. Conclui-se que, assim como na linguagem,
a princípio a escrita (conjunto de marcas gráficas), para a criança, é
um objeto, na forma de marcas que acompanham um objeto ou uma
imagem, e não é um objeto simbólico.

TEORIA EM PRÁTICA
Imagine que você foi contratado por uma escola para ajudar
os professores a estimular o aprendizado da escrita nas
crianças de uma forma interessante, ou seja, considerando
fatores motivacionais. Você logo pensa na escrita de nomes
de pessoas e de objetos. Uma professora comenta que já
tentou esta estratégia, propondo a atividade por meio de
escrita espontânea das crianças, mas não obteve sucesso
com parte delas, pois muitas fizeram desenhos e não
conseguiram escrever nada. Quais observações você faria a
esta professora no sentido de manter a atividade, mas alterar
a forma como ela foi proposta? Você poderia informar os
benefícios do uso de modelo como referência para a escrita.

VERIFICAÇÃO DE LEITURA

1. O que Kramer (2001) chama de experimentar a leitura e


a escrita reais?

a. Fazê-lo para cumprir exigências.

b. Fazê-lo com autoria e fruição.

60
60
c. Fazê-lo para aprender.

d. Fazê-lo com cuidado e ressalvas.

e. Fazê-lo despretensiosamente.

2. As propostas de ensino-aprendizagem deveriam


estabelecer uma relação entre as “ideias das crianças”
e os “requisitos do ensino” (TEBEROSKY, 1991, p. 13).
O que seriam as ideias das crianças e os requisitos do
ensino para Teberosky?

a. “Os processos psicológicos de apropriação do


conhecimento” e “o imperativo do professor para
fazer as crianças avançarem em uma área particular”.

b. “Os processos psicológicos da imaginação” e


“os requisitos do professor para ensinar os
conteúdos escolares”.

c. “Os processos psicológicos de apropriação do


conhecimento” e “os requisitos do professor para
ensinar os conteúdos escolares”.

d. “O imperativo das crianças para avançarem em uma


área particular” e “os processos psicológicos de
apropriação do conhecimento”.

e. “Os processos psicológicos da imaginação” e “as


características do desenvolvimento das crianças em
uma área particular”.

 61
3. Para Teberosky (1991), qual a unidade da linguagem?

a. A palavra ou a frase.

b. O fonema ou a sílaba.

c. A letra ou a vogal.

d. A palavra ou o fonema.

e. O texto ou o discurso.

Referências bibliográficas
CORRÊA, L. M. S. (Org.). Aquisição da linguagem e problemas do
desenvolvimento linguístico. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006.
KRAMER, S.; OSWALD, M. (Orgs.). Didática da linguagem: ensinar a ensinar ou ler e
escrever? Campinas, SP: Papirus, 2001.
MACHADO, M. A. M. P.; PEREIRA, A. F. F.; SPINARDI, A. C. P.; VITTI, S. V. Considerações
sobre a fonoaudiologia na educação infantil. In: LAMÔNICA, D. A. C. Estimulação da
linguagem: aspectos teóricos e práticos. [S.l.]: Pulso editorial, 2008. p. 287-314.
NATIONAL FILM BOARD OF CANADA. A menina que odiava livros. 2006.
Disponível em: https://youtu.be/y8hb5fsnrRM. Acesso em: 5 nov. 2019.
SAUSSURE, F. de. Natureza do signo linguístico. In: Curso de Linguística Geral.
São Paulo: Cultrix, 2006.
TEBEROSKY, A. Psicopedagogia da linguagem escrita. São Paulo: Trajetória
Cultural; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1991.
VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo:
Martins Fontes, 2000.
ZORZI, J. L. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e
educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

62
62
Gabarito
Questão 1 – Resposta: B
Resolução: Para Kramer (2001), experimentar a leitura e a escrita
reais é ler e escrever com autoria e fruição e não apenas ter
práticas de leitura e escrita circunscritas ao cumprimento de
exigências escolares.
Feedback de reforço: Aprender a ler e a escrever de verdade
envolve experiências próprias e naturais.
Questão 2 – Resposta: A
Resolução: As propostas de ensino-aprendizagem deveriam
estabelecer uma relação entre as “ideias das crianças” e os
“requisitos do ensino”, os quais seriam, respectivamente, “os
processos psicológicos de apropriação do conhecimento” e “o
imperativo do professor para fazer as crianças avançarem em uma
área particular” (TEBEROSKY, 1991, p. 13).
Feedback de reforço: É necessário um equilíbrio entre como as
crianças aprendem e o papel de ensino do professor.
Questão 3 – Resposta: E
Resolução: Para Teberosky (1991), a unidade da linguagem é o
texto ou o discurso, visto que grande parte dela não se desenvolve
por meio de uma palavra ou frase.
Feedback de reforço: A unidade da linguagem é aquilo com que
nos deparamos naturalmente nas interações, como um todo.

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