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Acontecimento de corpo

Marta Serra Frediani

Aquilo que chamamos de sujeito é efeito da linguagem, de


111odo que os significantes são capazes de introduzir nele mutações,
11ovos sentidos, o que dá valor à interpretação como deciframento.
1 'orém, o termo falasscr, introduzido por Lacan, em seu último en­
.i no, aponta para um mais aquém do sujeito, para o instante em
qne organismo, fluxo da-vida e significante se encontram e se eno­
dam, fixando um modo único e imodificável de gozar <,lo fato de ser
11 m vivente. Lacan chamou essa amarração de sinthoma e a quali­
l'icou ele acontecimento de corpo. 1
O termo acontecimento designa, na linguagem corn�n tl\ uma
1·uptura casual do CUrSO normal dos acontecimentos, ljlW, por Sl!US
..feitos, merece ser recordado. É a dimensão casual,� contingent.l\
que será crucial no acontecimento ele corpo.

Corpo parasitado: acaso e singularidade


A substância de que são feitos os outros seres vivos mantém
com a vida uma relação estável e previsível, suas funções básicas
estão programadas em seus genes e orientadas pelo instinto. É o
conceito de natureza.:i
Para os humanos, desprogramados em relação a esse previ­
sível, a vida que encarnará cada recém-chegado é impossível de an­
tecipar, inclusive para aqueles que o precedem para produzi-lo.

1
Lacan, ,J., "Joyce, o sintoma", Outros escritos, RJ, JZE, 2003, p.565.
'Moliner, M., Diccionario de uso dei espaiiol, Madrid, Gredos, 1998, v.l, p.40.
"Miller, J.-A., "O real no século XXI", Opção Lacaniana, SP, Eólia, n.63, p.12, 2012.
Em contrapartida, a essa desprogramação natural, o pro­
grama humano inclui duas características particulares: por um
lado, a matéria da qual cada um é constituído é suscetível de se afe­
tar pelas puras palavras sem significação� lalíngua, que o corpo en­
contra ao acaso, produzindo efeitos que têm forma de afetos. Assim,
em primeiro lugar, os humanos são organismos falados, e, por isso,
sua causalidade é contingente.
Mas, a partir desse encontro casual, são capazes de produzir
sentido, trançando essas palavras, articulando-as entre si, tor­
nando-se, então, corpos falantes recortados pela linguagem.

Certamente, nada é como deveria ter sido, uma vez que a


substância humana viva recebe a marca dos significantes: seu gozo
se desnaturaliza, tornando-se sempre sintomático.
Em verdade, a vida em si não tem nenhum sentido. A vida é,
simplesmente, existência, puro real. Porém, se o organismo hu­
mano, que é a única consistôncia material do falasser, chega a se
tornar corpo - permitindo a cada um se diforLmciar de outros, indi­
vidualizar-se e, portanto, pensar em si mesmo - é porque ele está
parasitado pela linguagem.

A linguagem impossibilita o humano siinplesmente de se iden­


tificar com o seu corpo, convertendo-o, ao contrário, em uma posses­
são. Os falantes não são um corpo, creem ter um corpo que, além
disso, adoram; 1 porque é o único sustentáculo psíquico de que dis­
põem para explorar e construir um sentido para a vida, "uma razão
de ser", tanto para o real que pulsa dentro como nos arredores.

Uma memória encarnada


,., De que lugar se recorda esse acontecimento de corpo? Não é
na memória dos pensamentos. É na memória da carne, em suas
zonas erógenas, na iteração do Um do gozo, nas pulsões que não são
senão,"[... ] no corpo, o eco do fato de que há um dizer". 5

1 Lacan J. O Seminário, Livro 23, O sinthoma, RJ, JZE 2007, p.64.


, , ,
'Ibidem, p.18.
Então, a linguagem cumpre uma dupla tarefa: por um lado, veta
:10 organismo humano um suposto gozo nâtural - que se torna, nesse
,·:1so, mítico e sempre almejado - ao passo que, por outro lado, pr_o�uz
, , mrpo como entidade .. O corpo acontece no encontro com Zalíngua.1 que ''Ir­
', introduz em um gozo único de si mesmo, um gozo autoerótico, autista,
, 111e possibilita realizar um circuito através de outros corpos ou objetos,
, , que dá ao falasser certo par-être6 relacional.

Se o sinthoma resta como acontecimento de corpo inaugural,


1iada impede que se produzam outros que ven·ham em ruptura, em
,·ontraposição a ele, produzindo efeitos com maior ou menor dura­
•Jio, desestabilizações e reamarrações, mais ou menos penosas. É
:1ssim que as palavras atingem o falasser.

Sem dúvida, o sujeito do século XXI se vê tentado pelo dis­


<'Urso que resulta da a}iança entre ciência e capitalismo; discurso
que promete poder subtrair seu corpo da contingência do encontro
. 1 .
,·om as palavras, anulando o acontecimento de corpo e reduzindo-o
:1 um puro organismo do qual poderá l\Xtrair go;,;o para sua conve­
niência, esquecendo que o corpo é mais conlinenle7 do que conteúdo.
Nesse sentido, promd.Pm-lhe que poderá eludir, apagar ou anteci­
par os acontecimentos de fala, sempre e quando consentir em se provm· os
aparelhos convenientes, aqueles que são utensílios para sua felicidade.
Para isso, só se exige que renuncie ú sua singularidade: um sujeito cks­
subjetivado e um corpo reduzido à produção do gozo que pensa querer.

O gozo, porém, aparelhado ou não, nunca é o que deveria ser,


reenviando o sujeito - mesmo o moderno - aos enigmas de seu de­
sejo e aos impasses de seu gozo.
É aí que a psicanálise pode jogar sua partida: levar o falasser
a se reconhecer não no que tem, senão no que é, apostando numa
nova relação possível de cada um com seu gozo, seu sintoma que,
afinal, é o que muitas pessoas têm de mais real. H

Tradução: Luis Francisco E. Camargo

'' Lacan, J., O Seminário, Livro 20, Mais, ainda, RJ, JZE, 1985, p.61.
· Lacan, op. cit., p.63.
'Lacan, J., "Conférence Yale University, 25.11.1975", Scilicet, Paris, Seuil, n.6/7, p.41, 1976.

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