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Asodomia
Asodomia
Resumo: Esse trabalho trata das relações sexuais entre mulheres perseguidas pela
Inquisição durante a Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil. Analisei as Ordenações
Filipinas e as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, que eram o conjunto de
leis que vigoravam naquela época, e percebi que não explicam de que forma poderia se
dar a sodomia, praticada entre homens ou entre mulheres e até mesmo entre um homem
e uma mulher. Esse assunto permite uma melhor compreensão de como a sociedade
colonial se defrontava com as relações sexuais quando se tratava de pessoas do mesmo
sexo e principalmente, quando essas relações se restringiam apenas ao gênero feminino.
Palavras-chave: Mulheres – Sodomia – Inquisição
Abstract: This work is about sexual relations among chased women by the Inquisition
during the First Visit of the Saint Workmanship to Brazil. I analised the Filipines Orderings
and the First Constitution of Bahia´s Archbishop, which were a group of laws that
vigorated at that time, and I could realized that they don´t explain which way could happen
sodomy, practiced between men or between women and even between a man and a
woman. This subject allows a better comprehension of how colonial society dealt with
sexual relations when these were about people of the same gender e specially, when
these relations were limited to the female gender.
Keywords: Woman – Sodomy – Inquisicion
heresias, julgados até então pela justiça secular, foram relegados ao foro inquisitorial a
partir de 1553.3
As confissões inquisitoriais eram distintas das que se faziam em confessionários.
Estas eram um sacramento no qual o fiel narrava seus pecados e recebia absolvição em
troca de penitências espirituais. Nas outras se tratava de confessar os erros de fé, que
eram crimes passíveis de pena secular, até a morte na fogueira. Enquanto a confissão
sacramental tratava de pecados, a confissão inquisitorial tratava de heresias. De acordo
com o Edital da Fé, os fiéis eram convocados a confessarem e delatarem as culpas
pertinentes ao Santo Ofício no prazo máximo de trinta dias, sob penas de excomunhão
maior. Muitas vezes relatavam pecados que passavam longe de serem considerados
como heresia. Faziam isso por medo, para colaborarem, para ocultar as verdadeiras
culpas e às vezes por ingenuidade ou pânico. Durante as confissões, o confitente
acusava outros indivíduos de culpa semelhantes ou de cumplicidade, outras vezes
transferiam a responsabilidade pelas suas falhas a outras pessoas. Mesmo depois de ter
confessado, muitos acabavam presos, por contarem menos do que sabiam e foram
denunciados ou porque mentiram ou perjuraram4.
Baseando-se nas Ordenações Filipinas, século XVI, e nas Constituições Primeiras
do Arcebispado da Bahia, 1707, escrita pelo 5º arcebispo da Bahia D. Sebastião Monteiro
da Vide, que foram um conjunto de leis regentes na época do Brasil colonial, os
inquisidores convocavam para confessar ou mandavam prender suspeitos na fé.
As punições previstas em tais leis tinham, sobretudo a finalidade de suscitar o
medo, explicitar a norma e dar o exemplo a todos aqueles que assistissem as sentenças
e as penas sofridas pelos culpados, fossem humilhações perante todo o público, fosse a
flagelação do seu corpo ou até mesmo a morte na fogueira, chamada de pena capital.
Essas punições possuíam menos o intuito de punir os culpados do que espalhar o terror,
a coerção, o receio. Elas espalhavam um verdadeiro temor, fazendo com que as pessoas
que presenciassem esses espetáculos punitivos examinassem suas consciências,
refletissem acerca de seus delitos. O ritual punitivo era uma cerimônia política de
reativação do poder e da lei do monarca5.
A sodomia propriamente dita, segundo o livro Quinto das Ordenações Filipinas,
se equiparava ao de lesa-majestade e se estendia tanto aos homens quanto às mulheres
que cometessem o pecado contra a natureza6. Todos os culpados seriam queimados e
feitos por fogo em pó7, seus bens confiscados para a coroa e seus filhos e netos seriam
tidos como infames e inábeis. Os menores não estavam compreendidos no crime de
sodomia, estes ficavam a arbítrio do juíz. Os que tivessem ajuntamento com alimária8
seriam queimados e feito por fogo em pó, e também o animal com quem tivesse sido
cometido o crime.
3
seus benefícios14. Assim como nas Ordenações Filipinas, aqui também a molície parece
se referir a práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo.
Mais uma vez, as penas relativas às mulheres são bem mais amenas em relação
às penas reservadas aos homens que cometessem o mesmo pecado. Nas Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, as relações sexuais entre mulheres ficaram relegadas
apenas ao crime de molície, já que somente nesse delito era reservado algum tipo de
castigo a elas. No 13º parágrafo do Regimento de 1640, a sodomia entre mulheres foi tida
como matéria duvidosa. Chegou-se a conclusão de que a Inquisição não deveria tomar
conhecimento de tal crime até nova ordem, e esse parágrafo foi repetido até o último
Regimento, de 1774, ordenado pelo inquisidor geral Cardeal da Cunha durante o reinado
de D. José.
Tanto nas Ordenações Filipinas como nas Constituições Primeiras do
Arcebispado da Bahia, não há nenhuma explicação que indique de que maneira poderia
se dar a sodomia, seja entre homens, seja entre mulheres ou até mesmo entre um
homem e uma mulher. Outro fato bastante notório é que já naquela época (séculos XVI,
XVII e XVIII), existia uma grande preocupação em condenar as relações sexuais entre
pessoas do mesmo sexo. Exemplo disso, são as previsões que as Ordenações Filipinas e
as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia fazem ao pecado da molície,
caracterizando-o como masturbação entre homens ou entre mulheres. E se existia
tamanha preocupação é porque com certeza havia também uma enorme incidência
desses casos.
A sodomia feminina sempre foi tratada como um tema ambíguo e os
inquisidores nunca conseguiam chegar a um consenso sobre como ela poderia ser
praticada entre mulheres. Por isso, em 1640 as relações sexuais entre mulheres
passaram a não mais pertencer à alçada inquisitorial.
Em A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial, Lígia
Bellini analisa registros das Confissões e denúncias que tratam de relações afetivas e
sexuais entre mulheres do Nordeste brasileiro no século XVI. A autora analisa várias
opiniões, estudos e pontos de vista de como era tratada a sodomia feminina, como ela
poderia ser caracterizada e se realmente seria considerada como praticas sexuais entre
duas mulheres. Fez um estudo sobre o tratado De Sodomia de Luigi-Maria Sinistrari, que
foi escrito um século depois, aproximadamente, da primeira visitação do Santo Ofício
português ao Brasil.
...“No corpo feminino se encontra uma parte que
os anatomistas chamam “clitóris”. Esta parte é
composta dos mesmo elementos que o pênis do
homem, isto é, de raízes, artérias, carne, etc. Ela
6
Com isso, somente se uma mulher possuísse um clitóris nessas condições, ela
poderia deflorar outra e chegar até a cometer a sodomia. Então, mesmo não sendo em
vaso impróprio, a sodomia poderia se dar entre duas mulheres se ela utilizasse o clitóris,
possuindo um membro de acordo com as condições descritas anteriormente, para
penetrar a outra, já que esse tipo de coito não seguia geração. Segundo esses critérios,
a mulher poderia cometer a sodomia com um outro sexo, no vaso anterior ou posterior
de uma mulher e também no vaso posterior de um homem. As mulheres com o clitóris
mais desenvolvido estavam mais aptas às tentações carnais e aquele passava a ser a
prova do crime18.
Para outros autores, a utilização de instrumentos no ato sexual entre mulheres
constituía um agravante na pena. Caracterizavam como atos sodomíticos e previam a
pena de morte. A sodomia era considerada crime dos mais atrozes porque o esperma
era derramado em vão, já que o sêmen era lançado em lugar estéril. Para Sinistrari, era
um crime que não prescrevia jamais, não importando para a acusação o tempo que
havia passado desde que houvesse sido cometido. A acusada deveria ser examinada
por parteiras ou senhoras de crédito a fim de verificar se possuía um clitóris “avantajado”,
ou então poderia se utilizar da tortura para fazer revelar-se a verdade do fato19.
O corpo da mulher e seu funcionamento eram concebidos com estranheza e
imprecisão. Havia a noção de que o corpo feminino seria inferior ao do homem e mais
imperfeito. De acordo com o Tratado Hipocrático, o médico tinha pouco acesso ao corpo
feminino, ele era conhecido por meio de confissões de parteiras ou das próprias
mulheres. A prática da dissecação que trouxe melhores esclarecimentos sobre a
anatomia e fisiologia feminina só foi autorizada no século XV e praticada no século XVI20.
Diante disso, os atos torpes praticados entre mulheres, caso não cumprissem
os requisitos para serem qualificados como sodomia, eram tidos por molície, que era
caracterizada por tocamentos, abraços e beijos entre pessoas do mesmo sexo,
masturbação, felação e outros que não tinham a gravidade da sodomia21.
Esse quadro indefinido sobre a sodomia feminina, se deve ao fato de teólogos,
juristas e inquisidores se basearem no conhecimento do corpo masculino e nas suas
possibilidades de transgressão. Era mais fácil supor um corpo feminino monstruoso do
que questionar e rever critérios desenvolvidos com base na anatomia do corpo
masculino, como fez Sinistrari. Portanto, as mulheres não eram julgadas em sua
especificidade anatômica. As relações lascivas entre elas, eram vistas como se pelo
menos uma delas tivesse um falo. Comportando-se como homem, a mulher no papel de
ativa, termo esse que vem desde a Antigüidade, desrespeitavam o princípio da divisão
entre gêneros e como sugeriu Montaigne, era chamado de contra a natureza pois ocorria
contra o costume22.
8
que outra”. Embora tal raciocínio não condene o sexo entre mulheres, como todas as
outras criaturas, elas tentavam ascender a um estado mais perfeito da natureza32.
E ainda, as descobertas de médicos e anatomistas em relação aos órgãos
reprodutores femininos influenciaram muito as visões sobre a sexualidade lésbica.
Apesar de ser comum a crença de que as mulheres tinham testículos, o que mais tarde
vieram a ser chamadas de ovários, que produziam sêmen, pensava-se que fosse mais
frio, menos ativo e menos importante na reprodução humana do que o do homem. A
idéia de que elas podiam contaminar-se umas com as outras como os homens pelo
derramamento de sêmen no recipiente errado, era geralmente descartada. Portanto, a
perda de sêmen masculino era considerada uma ofensa pior às leis de Deus e da
natureza do que o desperdício do sêmen ou dos órgãos reprodutivos das mulheres33.
Por tudo isso, as penalidades para atos sexuais entre mulheres tendiam a ser
mais brandas em relação às penalidades para atos sexuais entre homens. As discussões
sobre esse tema, seja na literatura médica, legal ou de outros tipos, segundo Judith
Brown traem uma ignorância básica sobre o que as mulheres fazem umas com as outras
e com isso se encaixa nas categorias sexuais estabelecidas e nos crimes sexuais. Tanto
é que as dificuldades conceituais que os homens da época enfrentavam em relação à
sexualidade lésbica se refletem na falta de uma terminologia adequada. A sexualidade
lésbica não existia, nem mesmo lésbicas. Essa palavra não foi usada habitualmente até
o século XIX e era mais aplicada a uma série de atos do que a uma categoria de
pessoas. Essas mulheres eram chamadas fricatrices ou tríbades34.
O fato é que esse tipo de relação não era interessante para a sociedade, portanto,
não se tornou um problema relevante. Isso também explica porque inquisidores, teólogos
e estudiosos da época vaziam uma certa vista grossa em relação aos atos sexuais
praticados entre mulheres e nunca chegaram a um consenso sobre a prática da sodomia
feminina. Tais atos passavam um tanto quanto desapercebidos pela sociedade da época
e daí a dificuldade em encontrar obras e fontes que tratem a respeito do assunto.
1
Pecado Nefando, sensual, tem esse nome da palavra Sodoma, cidade antiga da Palestina cujos
habitantes o praticavam. ALMEIDA, Cândido Mendes. Código Fhilipino. Typografia do Instituto
Philomantico, 14ª edição, Rio de Janeiro, V.1, 1870, p. 1162. A mais influente definição de
sodomia, foi a de Santo Tomás de Aquino, construída pela Escolástica, “a união sexual de
homem com homem e de mulher com mulher, sendo que o coito anal entre machos seria a
sodomia perfeita”.
2
Ato sexual com animais irracionais.
3
VAINFAS, Ronaldo. Confissões da Bahia. São Paulo, Cia das Letras, 1997,p. 11.
4
Idem, p. 20 – 27.
5
LARA, Silvia Hunold. Ordenações Filipinas – Livro V. São Paulo, Cia das Letras, 1999, p. 21.
6
Natureza são as partes da geração. ALMEIDA, Cândido Mendes. Op. Cit., p. 1162.
11
7
O culpado era queimado vivo e não previamente estrangulado como no caso de heresia.
ALMEIDA, Cândido Mendes.Op. Cit., p. 1162.
8
Animalia, nome genérico que convém a toda espécie de animal irracional. Idem, p. 1162.
9
Fornicari (latim) ou pornoi (grego) eram termos que, inicialmente, designavam os pecadores
carnais em geral. Por muito tempo, a palavra conservou esse significado genérico, próximo ao da
luxúria. Às vezes, porém, era usada como sinônimo de adultério, no sentido de quebra eventual da
fidelidade. Com o passar do tempo, a fornicação adquiriu um sentido mais preciso, alusivo à
cópula genital ilícita, isto é, efetuada fora do casamento, entre pessoas solteiras (fornicação
simples), ou envolvendo situações pecaminosas como o incesto, o adultério, a violação, o rapto e
o sacrilégio (fornicação qualificada). VAINFAS, Ronaldo. Casamento e Amor no Ocidente Cristão.
São Paulo, Editora Ática, 1986, p. 88.
10
FERREIRA, Idellfonso Xavier. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Typograpfia 2
de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, São Paulo, 1853,p.. V.
11
Idem, p. 331 e 332.
12
Idem, p. 332.
13
Idem, p. 333.
14
Idem, p. 333 e 334.
15
SINISTRARI. apud BELLINI, Lígia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil
Colonial. São Paulo, editora brasiliense, 1987,p. 43
16
BARTHOLIN. Idem, p. 42
17
SINISTRARI. Idem, p. 43.
18
BELLINI, Lígia. A Coisa Obscura: Mulher, Sodomia e Inquisição no Brasil Colonial. São Paulo,
editora brasiliense, 1987,p. 45.
19
Idem, p. 45, 46 e 47.
20
Idem, p. 55 – 58.
21
Idem, p. 68.
22
Idem, p. 69 e 70.
23
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989, p. 157.
24
Idem, p. 176 e 177.
25
VAINFAS, Ronaldo. Sodomia, Mulheres e Inquisição: Notas sobre Sexualidade,
Homossexualismo Feminino no Brasil Colonial. Originalmente apresentado no I Congresso Luso-
Brasileiro sobre Inquisição. São Paulo, Maio/1987, p. 2
26
VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos Pecados. Op.Cit.,p.. 180.
27
Idem, p. 139 – 150.
28
Idem, p. 180.
29
BROWN, Judith C. Atos Impuros: A vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença. São
Paulo, editora brasiliense, 1986, p. 15.
30
Idem, p. 18.
31
Idem,p. 19, 20 e 21.
32
Idem, ibidem.
33
Idem.
34
Idem p. 22 – 28.