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3 1 | junho 2016
RUMO A UM NOVO ANCORADOURO: Ásia como
método
A história é conhecida: o interesse pelo estudo ON ROUTE TO A NEW BERTH: Asia as method |
é nulo, e o vínculo com a universidade, mantido This article seeks to contribute to changing the
current conditions of knowledge production by
apenas para garantir que não cessem os proven-
presenting the proposal to take Asia as Method,
tos vindos de casa. Com ou sem culpa, não im- from its establishment by Yoshimi Takeuchi in the
porta. O tempo e o dinheiro gasto com livros, mid 20th century, to its current form as established
aulas, o mínimo para manter o status quo. Ou by Kuan-Hsing Chen. | Art, knowledge
production, art history, Asian studies.
para dispor de um bom álibi. Se além disso o es-
tudo servir de desculpa para viajar, ou ao menos
distanciar-se de casa, tanto melhor.
Se a história é conhecida, ao menos em nossa versão, o personagem não muito. Yoshimi Takeuchi (1910-
1977), sinólogo japonês recuperado nas últimas décadas graças à atenção de Richard Calichman,2 na es-
teira da publicação de suas obras completas no Japão,3 embora tenha gerado grande polêmica com suas
ideias estranhas – duras críticas, ora conservadoras, ora progressistas, às relações sino-japonesas –, foi
cedo posto de lado. É possível que à época tenha causado incômodo também pelo modo como apresen-
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tava suas ideias, e não apenas pelo que propunha. rera no Japão, não poderia dar certo. Mas aquilo
O tom confessional do verdadeiro bildungsroman que o marca realmente é a comparação feita en-
com o qual introduz e no qual é baseada sua pro- tre os dois países, ou seja, o que permite ao autor
posta, embora ganhasse as páginas da literatura americano chegar a tal conclusão: falar do Japão
japonesa há algum tempo, não deveria vir à tona a partir da China. Takeuchi voltaria ao continente
em uma palestra. Tampouco a contundência das outras vezes: entre 1937 e 1939 para estudar, e
suas acusações. Não no Japão. alguns anos depois para servir no front, de 1943
a 1946. Sua vivência na China será elaborada em
É a partir de uma visita à China que Takeuchi, ain-
um texto publicado pouco depois de seu retorno,
da em seus anos de formação, tem uma espécie
em 1948, no qual defende que existiriam muitas
de revelação. Não havia literatura chinesa recente
“modernidades possíveis” além da negativa ex-
no currículo: “ninguém nunca me disse que tinha
periência recente do Japão. Para isso, compara o
gente morando lá”. Estudar literatura chinesa, era
Japão e a China, dois tipos diferentes de resposta
estudar os clássicos, a tradição. A língua também
à questão. No primeiro caso, de fora para den-
foi um problema, pois ele não falava chinês, e o
tro, imposta, e no segundo, de dentro para fora,
mês que decidiu passar em Beijing, visando apri-
autoimposta. Em sua opinião, o Japão se deveria
morá-lo, mostrou-se insuficiente. As limitações
mirar não nos Estados Unidos ou na Europa, mas
apontadas no currículo refletem seu desinteresse.
em seu vizinho, a China. A autocrítica da proposi-
Ele declara: “tirei meu diploma sem dar a mínima,
ção incomoda, bem como o fato de focar a China
no descuido”.4
como modo de repensar o Japão do pós-guerra.
Takeuchi desenvolveu boa parte de seu pensa-
A comparação com o Ocidente não precisaria ser
mento crítico sob impacto do desconforto oriun-
descartada, mas seria preterida, perderia sua exclu-
do desse hiato, da grande distância entre o pensa-
sividade, em favor de uma triangulação. Sua suges-
mento japonês sobre a China e a existência “real”
tão era reduzir o papel da dupla hegemônica Esta-
da China, da China do seu tempo, dos chineses. dos Unidos-Europa, de único parâmetro possível,
E tem consciência disso, pois recorda: “Seria dife- a simplesmente mais um referencial, entre outros.
rente se tivéssemos ido à Europa ou aos Estados E incluir o exemplo da China, ou levar os vizinhos
Unidos e nos sentido inferiorizados”.5 Incomo- em consideração, ao pensar o Japão. É essa a pro-
dava-o a incapacidade de seus compatriotas de posta que Takeuchi termina por nomear Ásia como
entrar no coração das pessoas que viviam logo ao método, em uma palestra realizada em janeiro de
lado. Para ele não importa, Kangaku, a sinologia 1960, para um círculo de intelectuais em Tóquio, e
japonesa tradicional, da universidade de Tóquio, publicada também por lá, no ano seguinte.
ou Shinagaku, a nova, ocidentalizada, da univer-
O idiossincrático pan-asianismo desenvolvido por
sidade de Quioto, eram ambas disciplinas mortas.
Takeuchi carrega em sua base uma disputa que
Na volta para casa, lê os artigos de John Dewey não é apenas política, mas estética. De acordo
(1859-1952) escritos durante a visita do nor- com Shigemi Inaga – sem se referir a Takeuchi,
te-americano à China, em 1919. E concorda com pois seu foco são as artes visuais e não a literatura
a aproximação premonitória de Dewey, de que a –, autores que se dedicam à história institucional
modernização sob impulso externo, como ocor- do modernismo no Japão apontam a história da
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do aquela elaborada por Inaga. Segue, pois os Arte, não merece o próprio nome, pois se trata,
seminários de Elkins, com certa frequência, pro- no máximo, de uma associação internacional de-
duzem respostas às suas provocações bem depois dicada mormente ao estudo da arte ocidental; as-
de concluídos, e às vezes chegam a gerar novos siste ao esforço da entidade para rebatê-la, com
seminários para tratar da pergunta. A extensão destaque para o congresso de Naruto, no Japão,
da avaliação de Inaga, de seu comentário crítico em 2013, cujo tema foi Between East and West:
de um ponto de vista do Extremo Oriente, nos reproductions in art, e para o 34o Congresso do
faz terminar sua leitura convencidos de que ele Comitê, sob o título Terms, a ser realizado em
deveria integrar a seção três da publicação, ou Beijim em 2016. O Brasil também integra o novo
seja, ter tomado parte da mesa-redonda na qua- rumo, tendo vinculado o 35o Colóquio do Comitê
lidade de participante do seminário, e não na de Brasileiro de História da Arte à conferência inter-
comentador. Ao contrário de outros participantes nacional do Ciha Novos mundos: fronteiras, inclu-
do seminário, Inaga não perde tempo dissecando são, utopias, no Rio de Janeiro, em 2015.
a pergunta. Simplesmente a reformula: a história
Inaga também comenta a fragilidade que cerca
da arte é globalizável? Ao fazê-lo, aproxima-se
a emergência do novo arcabouço teórico, quan-
dos que acreditam que a noção de história da arte
do se pinçam, aqui ou acolá, termos autóctones,
global seja contingente, ou seja, dos otimistas
alçando-os a categorias classificatórias mais ge-
que acreditam que pode ser, ou vir a ser verdadei-
rais. O advento ou o recurso a tais conceitos, na
ra em algumas condições, e que não será em ou-
maioria dos casos, emerge da necessidade de ex-
tras. Ele não diz isso, sou eu a alinhá-lo, mas, ao
plicar algo para um grupo de não iniciados, que
reformular a pergunta servindo-se do neologismo
se encontra em posição linguística dominante, em
“globalizável”, está claro que o que pretende com
solo estrangeiro, por parte do informante nativo,
seu texto é averiguar as condições de sua possibi-
lidade. A resposta à pergunta de Elkins, do modo por sua vez em posição linguística subordinada,
como está formulada, é simples, e todos sabem ou seja, falando em idioma que não é o seu, ele
bem: um lacônico e redondo não. explica, e se valendo de conceitos que, em casa,
jamais lhe ocorreria usar ou ter de explicar. O con-
A conclusão de Inaga é de que a própria noção de ceito de ma – que ganha uma exposição em Pa-
história da arte global é elusiva, além de mover-se ris em 1978, mas cujo curador, o arquiteto Arata
em órbita elíptica, em torno de dois centros, a Isozaki (1931- ), recusa-se a apresentá-la em solo
saber, a China e o Ocidente. Para enfrentar sua
nipônico, sob a alegação de que seria tautológico
própria versão da pergunta, ele formula uma nar-
explicar o entre-espaço japonês aos japoneses –
rativa japonesa dos esforços de diálogo, dividindo
é o exemplo paradigmático, ao qual Inaga tam-
sua resposta em três eixos: problemas institucio-
bém faz referência, entre outros. Se tais conceitos
nais relativos à disciplina; fronteiras geográficas e
surgiram na cena artística, foi graças ao interesse
conformações espaçotemporais; conceitos, ter-
ocidental, e é em seu arcabouço conceitual que
mos-chave e sua aplicabilidade, todas elas marca-
ganharam relevância, ele acredita. O problema
das pelas relações de poder centro/periferia.
também é trabalhado em direção oposta: termos
A primeira crítica institucional feita por ele, a de correntes como “expressão” e “representação”7
que o Ciha, o Comitê Internacional de História da perderiam sua estabilidade semântica ao ser leva-
de característica da disciplina. Mas apropriar-se do século, quando o Museu de Arte de Xangai resol-
outro para benefício próprio, adverte Inaga, não ve transformar sua bienal no maior evento de arte
nos levará a uma história da arte global. do país, passando por iniciativas como a exposi-
ção Living in Time, realizada em Berlim em 2001,
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Sul, Ásia quer dizer China, às vezes
Índia. Já a China considera-se ain-
da o centro, não sem razão, pois
termina impondo certa geografia
imaginária, tendo às suas mar-
gens o Sudeste Asiático, no Sul da
Ásia, etc.
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do fenômeno que estudamos, como os pes- da ao paroxismo, a sugestão de Chen poderia
quisadores dos estudos asiáticos que atuam também ser aplicada a situações regionais, entre
na Ásia.20 Brasil e América Latina, por exemplo. Ou den-
tro do próprio Brasil. O que importa é alterar
Às intrínsecas e necessárias premissas teórico-me-
o referencial teórico, abandonando nosso vício
todológicas, capazes de definir o campo e per-
de emular sempre o norte. E sair do isolamento,
mitir nossa atuação, reservamos, com frequência
pois não estamos falando de apropriação, mas
suspeita, papel secundário. A tão falada crise da
de inter-referência, o que pressupõe interação,
história da arte, ao colocar em questão nossas
e não nossos solilóquios disfarçados de diálogos
ferramentas e hábitos interpretativos, ao contrá-
com autores mortos ou distantes, como é regra
rio de produzir alternativas e vigor crítico, além
em nosso meio.
de diluição, trouxe acirramento, um tipo de virada
conservadora semelhante à que vemos hoje, em A manobra foi descrita pela neurociência e se
outras áreas. chama ancoragem imaginária. Trata-se de su-
gerir uma referência, um apoio, uma âncora, de
Chen não está preocupado com história da arte,
disciplina eurocêntrica demais para merecer a onde o cérebro possa partir para responder ao
atenção dos que se dedicam a estudos culturais, novo, àquelas experiências ou mensurações para
salvo para ser alvo de críticas. No entanto, ele as quais não possui parâmetros. Na falta deles,
acredita que tomar a Ásia como método criaria tendemos a usar o que está à mão. É um viés
novas possibilidades para todo tipo de trabalho cognitivo também chamado focalismo, que con-
intelectual, uma nova perspectiva, capaz de trazer siste basicamente em confiar demais, tomando
um conjunto diferente de questões sobre a histó- uma referência do passado na qual se apoiar. A
ria mundial. E não se trata apenas da Ásia, pois: tendência pode ser considerada inútil, irracional
ou mesmo prejudicial. Ou positiva. No nosso
O propósito da metodologia de análise inter-
caso, do ponto de vista teórico-metodológico,
referencial é evitar julgar qualquer país, região
ou cultura como superior ou inferior a qual- o que dispomos – o que está à mão – é uma
quer outra, e trazer à tona transformações série de autores, europeus, norte-americanos,
históricas como uma entidade-base, a partir que não estão produzindo nenhuma teoria uni-
da qual as diferenças possam ser explicadas. 21 versalista, como já foi dito, mas apenas seus pró-
prios estudos de área. Tomá-los, portanto, como
Tivemos a oportunidade de apresentar, em outra
parâmetros universalmente válidos, cedendo ao
situação, os ganhos que tal metodologia poderia
imperativo de utilizar os mesmos princípios, só
gerar, ao substituir a exclusiva comparação com
denuncia nosso colonialismo intelectual.
os centros metropolitanos pela investigação da
experiência de importação de modelos de ensino Nas mãos de Chen, a ancoragem imaginária –
artístico, em outras geografias. A entidade-base Ásia como método – converte-se em estratagema
sugerida por Chen, no caso, foi o assim chama- heurístico, buscando reverter algo que fazemos
do ensino acadêmico, e a comparação a que me viciosa e erroneamente e torná-lo positivo. Porque
refiro, entre a Academia na Índia e no Brasil.22 o que é preciso mudar são as condições de pro-
Se tomada efetivamente como método, e leva- dução de conhecimento. Não basta a denúncia.
1 Tradução de Leminski para “nen nen ni/kiku ni 13 Freitas, Rosana Pereira de. Onde fica a fronteira
omowan/omowaren” de Shiki, um discípulo de entre a China e o Brasil? In: Novos mundos: fron-
Bashô. Em outra versão, sempre do curitibano, o teiras, inclusões, utopias. Rio de Janeiro: CBHA,
haicai fica assim: “todo ano/pensando nos crisân- 2015b.
temos/sendo pensado/pelos mesmos”.
14 Chaterjee, Partha. Whose imagined commu-
2 Calichman, Richard. What is Modernity? Writin- nity? In: The Nation and its Fragments: Colonial
gs of Takeuchi Yoshimi. New York: Columbia Uni- and Postcolonial Histories. Princeton: Princeton
versity Press, 2005. University Press, 1993.
3 Takeuchi, Yoshimi. Takeuchi Yoshimi zenshu. Tó- 15 “Asia as method ceases to consider Asia as the
quio: Chikuma Shobo, 1980-1982. object of analysis and becomes a means of trans-
forming knowledge production” (Chen, 2010:
4 Calichman, op. cit.: 234.
216).
5 Id., ibid.
16 Freitas, Rosana Pereira de. Lá e cá: academias,
6 Inaga, Shigemi. Is Art History Globalizable? A
escolas, tradições. In: Compartilhamentos na arte.
Critical Commentary from a Far Eastern Point of
Santa Maria: Anpap, 2015a.
View. In: Elkins, James (Ed.). Is Art History Global?
New York: Routledge, 2007. 17 Id., ibid.
7 “A rede etimológica das línguas europeias difi- 18 Chen, Kuan-Hsing. A formação de um inte-
cilmente pode sobreviver quando remodelada em lectual diaspórico. In: Hall, Stuart. Da diáspora.
combinações de ideogramas chineses” (Inaga, op. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
cit.: 269. UFMG, 2003.
9 Wang, Hui. Imagining Asia: A Genealogical Princeton: Princeton University Press, 2007.
Analysis. Inter-Asia Cultural Studies, London, v.8, 21 Id., ibid.: 250.
n. 1, 2007.
22 Freitas, 2015a.
10 Said. Orientalismo. O Oriente como invenção
do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. Rosana Pereira de Freitas é professora do De-
partamento de História e Teoria da Arte da Escola
11 Chen, Kuan-Hsing. Asia as Method:
de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Overcoming the Present Conditions of Knowledge
Janeiro, com atuação no PPGAV e no curso de
Production. In: Asia as Method. Durham/London:
graduação em história da arte, no qual responde,
Duke University Press, 2010: 214.
entre outras, pelas disciplinas de arte oriental e
12 Referência ao artigo de Roland Barthes, no Le historiografia da arte.
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