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12/05/2021
Número: 0703017-45.2021.8.07.0018
Classe: PROCEDIMENTO COMUM CÍVEL
Órgão julgador: 5ª Vara da Fazenda Pública e Saúde Pública do DF
Última distribuição : 12/05/2021
Valor da causa: R$ 500.000,00
Assuntos: Cirurgia
Segredo de justiça? NÃO
Justiça gratuita? NÃO
Pedido de liminar ou antecipação de tutela? SIM
Partes Advogados
DEFENSORIA PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL (AUTOR)
DISTRITO FEDERAL (REU)
INSTITUTO DE GESTÃO ESTRATÉGICA DE SAÚDE DO
DISTRITO FEDERAL - IGESDF (REU)
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Id. Data da Documento Tipo
Assinatura
91466756 12/05/2021 Petição Inicial Petição Inicial
15:43
EXCELENTÍSSIMO(A) SENHOR(A) JUIZ(A) DE DIREITO DA ___ VARA DE FAZENDA
PÚBLICA DO DISTRITO FEDERAL
em desfavor do DISTRITO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público interno, que deverá ser intimado
e citado na pessoa do Procurador-Geral do Distrito Federal, que pode ser encontrado no SAM, Projeção I,
Edifício Sede da Procuradoria-Geral do Distrito Federal, CEP 70620-000, telefone 3325-3367; e do
INSTITUTO DE GESTÃO ESTRATÉGICA DE SAÚDE DO DISTRITO FEDERAL – IGESDF,
pessoa jurídica de direito privado, inscrito no CNPJ sob o nº 28.481.233/0001-72, sediado no SHMS Área
Especial, Quadra 101, Bloco A, Brasília-DF, CEP: 70.335-900), pelas razões de fato e de direito a seguir
elencadas.
A presente ação leva ao conhecimento desse renomado Juízo o seguinte problema social:
a) A saúde pública do Distrito Federal enfrenta total interrupção no atendimento aos pacientes para a
realização do procedimento de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) no âmbito do
Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal.
b) Na rede SUS local, apenas duas unidades possuem o aparelho necessário à realização do procedimento
e são responsáveis pelo atendimento dos pacientes no Distrito Federal: o Hospital de Base do Distrito
Federal e o Hospital Regional de Taguatinga.
c) Foram suspensas as admissões de novos pacientes no Hospital de Base do Disitro Federal e no Hospital
Regional de Taguatinga em maio de 2021, sob a justificativa de que os aparelhos localizados em cada
unidade tiveram seu funcionamento interrompido, sem qualquer previsão de retorno, além de problemas
com falta de equipe para atendimento.
d) Em abril de 2021, a oferta de vagas para a realização de CPRE no Hospital de Base foi de apenas 12
pacientes. Não há qualquer previsão de vagas para atendimento durante o presente mês, maio de 2021.
g) A principal consequência dessa situação é a imposição sofrimentos mais intensos e mais prolongados
aos pacientes, bem como necessidade de maior quantidade de cirurgias exploradoras e terapêuticas (e
cirurgias mais longas, mais complexas e de pior prognóstico) para resolução das doenças que poderiam ser
resolvidas pela realização oportuna deste procedimento mais barato e menos invasivo, a CPRE.
i) Apesar da situação descrita, o Distrito Federal não tem logrado êxito no planejamento e execução de
políticas públicas voltadas para a normalização do atendimento de colangiopancreatografia retrógrada
endoscópica (CPRE).
a) Informações detalhadas e atualizadas sobre o atual quadro da fila de espera do SUS local para a
realização do procedimento de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE);
1. INTRODUÇÃO
A presente ação civil pública tem por objetivo garantir acesso aos serviços de saúde pelo Sistema Único de
Saúde do Distrito Federal, especificamente para aqueles pacientes com indicação médica para realização de
colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE).
Conforme será demonstrado na presente ação, no âmbito do Distrito Federal é crescente o número de
pessoas com indicação médica para realização de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE)
que não conseguem acesso conforme suas necessidades terapêuticas em razão da interrupção na oferta do
referido procedimento.
O Hospital de Base do Distrito Federal é uma das duas unidades hospitalares que realizam o procedimento
de CPRE nos pacientes da rede pública de saúde local. Ocorre que o serviço no âmbito do HBDF está
interrompido desde 07 de abril de 2021, conforme processo administrativo anexo (autos SEI 00401-
00006891/2021-37). Tal fato contribuiu para a sobrecarga da outra unidade hospitalar executante, o Hospital
Regional de Taguatinga, e, consequentemente, para o aumento da demanda reprimida por acesso ao
tratamento.
A existência de apenas uma unidade hospitalar disponível para o atendimento de todos os pacientes em
necessidade de realização do referido procedimento já é configurada como um cenário precupante e em
necessidade de especial atenção para sua resolução. Ocorre que, diferente do que espera sob a lógica
administrativa, a situação veio a ser agravada pela interrupção do serviço também no Hospital Regional de
Taguatinga, fato que ocorreu a partir do dia 26 de abril de 2021. Desde então, não há vagas para
atendimento de pacientes que necessitam da realização de CPRE em qualquer unidade hospitalar do Distrito
Federal
Este problema social foi percebido pelo Núcleo da Saúde da Defensoria Pública do Distrito Federal, que,
diariamente, atende aos familiares dos pacientes que seguem internados em unidades hospitalares
aguardando realização de CPRE na rede SUS local, sem êxito.
Por meio desta demanda, objetiva-se a adoção de estratégias resolutivas desse problema, que permitam o
atendimento dos pacientes com indicação médica para colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
(CPRE), com foco especial àqueles que já sofrem com os efeitos nefastos do não atendimento. A
perpetuação do atual quadro expõe a risco número significativo de vidas e coloca em xeque o fluxo de
atendimento entre as unidades hospitalares do SUS, além de impor a rápida multiplicação de ações judiciais
individuais.
Inicialmente, antes de adentrar ao mérito, imperioso tecer alguns comentários sobre a importância do serviço
de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE).
A colangiopancreatografia retrógrada endoscópica, usualmente nomeada CPRE, “é uma das técnicas mais
[1]
efetivas no manejo das doenças pancreatobiliares, seja para diagnóstico ou realização de terapêutica.”
Assim, pela introduução de um aparelho – duodenoscópio - pela via oral do paciente, é possível que o
fígado, a vesícula biliar, as vias biliares e o pâncreas sejam examinados e, caso necessário, tratados na
mesma oportunidade pela coutilização de diferentes técnicas.
O relatório médico anexo, de lavra do Dr. Francisco Job Neto (CRM – DF 20515) , relata, para que se
viabilize maior compreensão quanto ao objeto da presente, as situações para as quais o procedimento é
indicado, bem como a forma com que deve ser realizado. Na oportunidade, transcreve-se trecho do aludido
relatório médico:
“É o exame de eleição quando existe uma elevada probabilidade do diagnóstico ser verdadeiro, já que, ao
contrário de exames mais simples, a CPRE permite fazer o diagnóstico sem necessidade de cirurgia
exploradora e, principalmente, permite tratar aqueles problemas mais simples, retirando as pequenas
pedras que estejam impactadas no local (fotografia abaixo) e drenando um canal obstruído mediante
papilotomia e evitando desfechos fatais quando existe infecção da bile represada (colangite infecciosa).”
Foram relatados, ainda, os motivos pelos quais a realização do referido procedimento se mostra como
medida urgente e essencial ao tratamento de pacientes internados, ainda que seja classificado, usualmente,
como um procedimento eletivo:
“Normalmente é um exame realizado eletivamente, mas que guarda urgência relacionada às doenças para
as quais está indicado, haja vista que, por exemplo, a bile represada pode infectar-se e acarretar uma
Há, ainda, pacientes em aguardo para a realização de CPRE sem a necessidade de internação, mantendo-se a
real importância deste atendimento para o tratamento de suas enfermidades. É o caso, por exemplo, de
pacientes que se fazem do procedimento para a retirada de amostras de tecido (biópsia) na suspeita de
tumores na via biliar. Mais uma vez, transcreve-se trecho do mencionado relatório:
“Da mesma maneira, o diagnóstico histológico de um tumor maligno deve ser feito com a maior brevidade,
de maneira a permitir seu tratamento precoce e melhorar o prognóstico para o paciente, cuja vida depende
do estadiamento.”
Por fim, o Dr. Francisco Job Neto registra as consequências da interrupção da oferta de tal procedimento nos
hospitais da rede pública distrital, veja-se:
“A interrupção da realização deste procedimento diagnóstico-terapêutico tem impacto nos pacientes, que
padecerão sofrimentos mais intensos e mais prolongados, mas, igualmente, impacta negativamente todo o
sistema de saúde por suscitar uma maior quantidade de cirurgias exploradoras e terapêuticas (e cirurgias
mais longas, mais complexas e de pior prognóstico) para resolução das doenças citadas, que poderiam ser
resolvidas pela realização oportuna deste procedimento mais barato e menos invasivo.”
No âmbito do Distrito Federal, são duas unidades executantes do procedimento de CPRE: o Hospital de
Base do Distrito Federal (atual IGESDF) e o Hospital Regional de Taguatinga.
Ocorre que, pela interrupção do funcionamento das máquinas necessárias à realização do procedimento, a
oferta de vagas para o serviço sofreu redução durante o mês de abril, e total interrupção a partir de maio de
2021, o que desencadeou aumento importante no tempo em aguardo e, consequentemente, formação de
significativa fila de espera.
Em que pese os esforços do Distrito Federal para lidar com a situação, ao longo desta petição será possível
perceber que o ente distrital ainda não tomou medidas capazes de solucionar este problema social.
O Núcleo da Saúde da Defensoria Pública do Distrito Federal identificou nos atendimentos individuais a
crescente demanda para o serviço de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) do âmbito
O ofício para a Central de Regulação Ambulatorial foi enviado em 29 de abril de 2021, processo SEI 00401-
00006891/2021-37.
Em resposta, enviada à DPDF em 30 de abril, foi noticiado o fato de que o Hospital de Base e o Hospital
Regional de Taguatinga promoveram a suspensão deste atendimento, sem previsão concreta de retorno
regular. A suspensão foi comunicada pelos técnicos administrativos de ambos os hospitais à Central de
Regulação Ambulatorial (CERA) sob o argumento de que o funcionamento das máquinas necessárias à
realização do procedimento foi interrompido. Em documento anexo, observa-se a recomendação dos
hospitais no sentindo de interromper o agendamento de atendimentos por prazo indeterminado (emails
enviados ao Complexo Regulador do DF).
HBDF 68 12 0
HRT 24 32 0
Total de vagas 92 44 0
A não disponibilização de vagas pelos mencionados hospitais se deu em razão da já mencionada inoperância
das máquinas utilizadas na realização do procedimento. Destaca-se que, até o momento, não houve a
retomada de admissões nos serviços deste hospital.
Naquela data, haviam 74 pacientes em aguardo para atendimento, sendo, dentre estes, 63 em classificação de
risco vermelha e 11 em classificação de risco amarela. Observa-se, assim, que os dados já apontavam uma
oferta inferior à demanda pelo serviço.
A CERA informou, ainda, as datas das inserções mais antigas de acordo com as prioridades de classificação
de risco, sendo estas as seguintes:
· Vermelho: 05/04/2021
· Amarelo: 29/04/2021
A partir dessas informações, ainda em 30 de abril de 2021, a Defensoria Pública do Distrito Federal oficiou
a Presidência do IGES/DF e a Direção do Hospital Regional de Taguatinga a fim de obter um detalhamento
acerca da situação apresentada, bem como acerca de eventuais medidas a serem tomadas pelos gestores de
cada unidade hospitalar com vias a regularizar o atendimento. Assim, foi requisitado que cada unidade
fornecesse as seguintes informações:
iii) quais medidas são necessárias para retomada dos serviços e quais iniciativas já foram implementadas
para resolução do problema?
“Em contado com o servidor auxilar da CPRE no HRT , fomos informados que o aparelho do IGEF DF
encontra-se quebrado , e que o servidor do HRT esta em férias retornando em 24-5-2021, nao havendo
quem o substitua na função.”
As demais informações requisitadas, como a razão de tal inoperância, as medidas a serem tomadas para a
retomada do serviço e previsão para o reestabelecimento dos atendimentos não vieram a ser prestadas.
O IGES-DF, por outro lado, apenas fez tramitar o processo administrativo e, até a presente data não veio a
apresentar resposta.
Da análise dos fatos acima, em que pesa a Secretaria de Saúde não tenha fornecido dados detalhados quanto
à demanda reprimida atual, é possível se depreender ter havido um aumento significativo no número de
solicitações por CPRE. Ora, este se configura como um procedimento a ser requisitado frequentemente e,
ante a total inoperância das unidades executantes, por óbvio, as filas de pacientes em aguardo de tal
atendimento somente aumentará. Sem medidas efetivas, em poucos dias teremos fila com centenas de
pacientes aguardando procedimento urgente e imprescindível ao seu tratamento. Essa espera sem qualquer
perspectiva promoveu uma judicialização individual massiva.
Conclui-se, portanto, que é dramática a situação dos pacientes que aguardam a realização de procedimento
de colangiopancreatografia retrógrada endoscópica (CPRE) na rede pública de saúde do Distrito Federal.
Isso porque a espera na fila para disponibilização do serviço torna cada vez mais distante o atendimento no
momento terapêutico adequado. Nesse cenário, os pacientes seguem lotando os hospitais e correm risco de
vir a óbito sem atendimento adequado.
Destarte, para melhor expor a complexidade do quadro atual, cumpre fazer breve exposição acerca da
judicialização dos casos individuais deste ano.
Inicialmente, cumpre destacar que já foram ajuizadas ao menos 12 (doze) ações judiciais por intermédio da
Defensoria Pública do Distrito Federal, neste ano, de pacientes buscando a condenação do Distrito Federal à
realização do procedimento de CPRE na rede pública de saúde local. Veja-se:
0705635-66.2021.8.07.0016
0709622-13.2021.8.07.0016
0709224-66.2021.8.07.0016
0709570-17.2021.8.07.0016
0711968-34.2021.8.07.0016
0713201-66.2021.8.07.0016
0715015-16.2021.8.07.0016
0716174-91.2021.8.07.0016
0720822-17.2021.8.07.0016
0724044-90.2021.8.07.0016
0725003-61.2021.8.07.0016
0725009-68.2021.8.07.0016
0726279-30.2021.8.07.0016
O quadro acima, vale registrar, tem novas ações acrescidas a cada semana, pois a escassez de oferta tem
obrigado ao ajuizamento de novas ações praticamente todas as semanas.
Demais disso, destaque-se que o caminho tortuoso não se encerra na obtenção de um provimento
jurisdicional. Isso porque salta aos olhos a reiteração no descumprimento das ordens emanadas.
Assim, o que ora se expõe é problema coletivo grave e dramático, que deita raízes na falha estrutural do
sistema, que submete os pacientes do SUS local a uma angustiante espera por atendimento adequado e
eficiente.
O debate jurídico da questão controvertida nesta causa pressupõe o reconhecimento de que a Constituição
Brasileira, por um lado, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à vida (art. 5º, caput) e, por outro, impõe ao Poder Público assegurar a saúde a todos, mediante
políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso
universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (art. 196).
Esses deveres objetivam ao atendimento do direito humano à saúde, previsto no art. 25, item I, da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos seguintes termos: “Toda a pessoa tem direito a um nível
de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à
alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais
necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou
noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade”.
O direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental, por meio da criação de
condições que assegurem a todos assistência médica e serviços médicos em caso de enfermidade, também
está consignado no art. 12 do Pacto Internacional de Proteção dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais.
No âmbito do Distrito Federal, a Lei Orgânica do Distrito Federal é clara em afirmar a responsabilidade
desse ente político em garantir o direito à saúde de todos, objetivando o bem-estar físico, mental e social
do indivíduo e da coletividade, à redução do risco de doenças e outros agravos e o acesso universal e
igualitário às ações e serviços de saúde, para sua promoção, prevenção, recuperação e reabilitação (art. 204,
incs. I e II).
Bem por isso, de acordo com a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal “cabe ao Distrito
Federal, por meio da rede pública de saúde, auxiliar todos aqueles que necessitam de tratamento,
Essa orientação jurisprudencial está em absoluta conformidade com dois dos princípios que regem as ações
e serviços públicos de saúde: I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de
assistência; e II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e
serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de
complexidade do sistema (art. 7º da Lei Federal n. 8.080/1990, que dispõe sobre as condições para a
promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços
correspondentes).
O reconhecimento jurídico do direito à saúde como direito humano fundamental, no plano jurídico-objetivo,
proíbe a ingerência dos poderes públicos na esfera jurídica individual da parte, e, no plano jurídico-
subjetivo, implica no poder de exercer positivamente esse direito (liberdade positiva) e de exigir dos poderes
públicos que evitem ações e omissões lesivas a tais direitos (liberdade negativa), segundo leciona J.J. Gomes
CANOTILHO (Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 1993, p. 541).
É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a
atribuição de formular e de implementar políticas públicas, pois, nesse domínio, o encargo reside,
primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.
Tais direitos não se expõem, em seu processo de concretização, a avaliações meramente discricionárias da
Administração Pública nem se subordinam a razões de puro pragmatismo governamental. Subtrair as
políticas públicas na área da saúde ao controle jurisdicional apenas contribuiria para agravar o presente
quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais.
De fato, “seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido
com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à
realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido
princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do
judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Em casos
excepcionais, quando a administração extrapola os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem
razão, ou fugindo da finalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a
corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada” (STJ, REsp 1041197/MS, Rel. Ministro
HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 16/09/2009).
Não se ignora que a destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar
situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer,
também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí
resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por
determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face
dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder
a verdadeiras “escolhas trágicas”.
A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador incompetente, relapso ou
insensível à degradação da dignidade da pessoa humana, já que é impensável que possa legitimar ou
justificar a omissão estatal capaz de matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A
escusa da "limitação de recursos orçamentários" frequentemente não passa de biombo para esconder a opção
do administrador pelas suas prioridades particulares em vez daquelas estatuídas na Constituição e nas leis,
sobrepondo o interesse pessoal às necessidades mais urgentes da coletividade.
O absurdo e a aberração orçamentários, por ação ou omissão, por ultrapassarem e vilipendiarem os limites
do razoável, as fronteiras do bom-senso e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo
Judiciário, não compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem indicando
rompimento do princípio da separação dos Poderes. "A realização dos Direitos Fundamentais não é opção
do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que depende
unicamente da vontade política. Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não
podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do administrador" (REsp.
1.185.474/SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, DJe 29.4.2010) (REsp 1068731/RS, Rel.
Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 17/02/2011, DJe 08/03/2012).
Precisamente por essa razão, a jurisprudência hegemônica reconhece o direito de acesso ao tratamento mais
adequado e eficaz, apto a ofertar ao enfermo maior dignidade de vida e menor sofrimento, ainda que seja
alto o custo do insumo ou complexo o procedimento médico indicado ao paciente.
Cabe ao Poder Público, por meio da rede pública de saúde, auxiliar todos aqueles que necessitam de
tratamento, disponibilizando profissionais, equipamentos, hospitais, materiais, acesso a exames indicados e
remédios prescritos, já que os cidadãos pagam impostos para também garantir a saúde aos mais carentes de
recursos, sendo dever do Estado colocar à disposição os meios necessários, mormente se para prolongar e
qualificar a vida e a saúde do paciente em conformidade com os pareceres dos médicos especialistas.
É isso o que se pretende, em favor dos pacientes que necessitam do serviço de CPRE, por meio desta causa.
Tal processo de judicialização alcançou tanto o campo político quanto as relações sociais. A judicialização
da política pode ser observada no acesso ao Judiciário por meio de ações diretas para controle de
constitucionalidade, situação que ganhou destaque e se tornou “escoadouro do conflito entre sociedade e
[4]
Estado” . Tais instrumentos, além de servirem à clássica defesa de minorias, também passaram a ser
[5]
utilizados como “recurso institucional estratégico de governo” . A judicialização das relações sociais
tomou corpo, por exemplo, com a constitucionalização dos juizados especiais (art. 98, inciso I, CF) que, ao
[6]
facilitar o acesso à Justiça, criou novo canal de expressão para o processo de democratização social.
No campo das políticas sociais, como a política de saúde, abre-se também um novo campo de atuação do
[7]
Sistema de Justiça, movimento comumente denominado de “judicialização das políticas públicas” , que se
torna viável a partir da construção, na jurisprudência e na doutrina constitucional, do entendimento de que as
[8]
prestações relativas a direitos sociais são direitos exigíveis na condição de direitos subjetivos . Tal
construção jurídica veio ao encontro dos anseios de dar efetividade aos direitos sociais conquistados na nova
ordem constitucional de 1988. A necessidade de atuação estatal mais ostensiva na seara social, de fato, se
fazia presente, especialmente quando observada a forma mais rápida como os direitos sociais foram
[9]
positivados no Brasil, vis-à-vis o processo desenvolvido no ocidente europeu.
Assim, com base na Constituição e nas normas que ampliam o rol de comprometimento com direitos
concretamente definidos, o plano da política ficou obrigado a executar as políticas públicas “com as
[10]
quais se compromete por meio do processo de legislativo” . A proteção jurídico-constitucional dos
direitos sociais ganhou relevância como instrumento para veicular reivindicações relativas à concepção das
políticas públicas, bem como para exigir prestações específicas nas hipóteses em que as políticas estão
ausentes, são insuficientes ou mesmo descumpridas. Tal proteção, assim utilizada, passou a proporcionar o
“empoderamento” dos cidadãos no plano individual e no coletivo, ainda que a ação concreta exigida não se
[11]
mostre idealmente a mais efetiva.
A judicialização das políticas públicas tem alcançado, assim, várias políticas sociais, a exemplo da educação
[14] [15]
pública e da assistência social , todavia, é na seara da saúde que encontra desenvolvimento mais
acentuado, seja pela repercussão alcançada no âmbito da Administração Pública, seja pela receptividade que
o Poder Judiciário deu à questão. Conforme cediço, a denominada judicialização da saúde tem se
intensificado, e a ela têm-se atribuído significativas consequências sociais, institucionais e orçamentárias.
Nesse passo, a judicialização é essencialmente uma reação ao contexto de exclusão social que se manifesta
de diversas formas, mas que conduz aos mesmos resultados de iniquidade na distribuição dos cuidados e na
precarização dos serviços de saúde ofertadas às classes populares (pessoas pobres) – quando não à completa
negativa de acesso. Tal situação é subproduto tanto do descompasso entre normas e práticas institucionais,
quanto da dubiedade governamental, que produz políticas de saúde pública inspiradas em um modelo
universalista e políticas econômicas e regulatórias desenhadas para estimular outro modelo – privatizado e
segmentado. A insurgência contra tais iniquidades historicamente construídas é ato de afirmação da
cidadania e do regime democrático, afinal, o caminho escolhido pelo Brasil a partir de 1988 claramente não
[20]
é o da exclusão . O uso do direito e do Sistema de Justiça para dar braços e armas a esta insurgência é tão
legítimo e democrático quanto a consagrada mobilização política oriunda da participação social.
Ocorre que, além de legítima e democrática, a judicialização da saúde tem sido, para muitos indivíduos e
grupos, alternativa mais viável e efetiva do que os mecanismos atuais de participação social, em que pese o
histórico engajamento e os avanços obtidos por Instituições de Participação, como o Conselho Nacional de
Saúde. Além das limitações gerais já destacadas, a participação social na seara da saúde, no que tange aos
interesses das classes populares, esbarra exatamente na dificuldade desse grupo de excluídos de se organizar
adequadamente em grupos de interesse e, assim, exercer a pressão política e articular os lobbies tão
característicos do funcionamento do sistema político brasileiro. A participação é limitada, ainda, pelo
desinteresse das elites econômica e burocrática e, notadamente, da própria classe média pelo fortalecimento
do SUS, tendo em vista a acomodação de seus interesses na organização segmentada ofertada pelo mercado
privado – parcialmente subsidiada pelo Estado, não olvidemos. Telma Menicucci bem resume essa situação:
A ausência de suporte político por parte de grupos sociais relevantes e pelos principais afetados
positivamente por uma política de saúde inclusiva demonstra também a inexistência de um consenso
societário pela publicização efetiva da assistência à saúde, entendendo-se por isso a incorporação de todos
os cidadãos ao Sistema Único de Saúde (SUS), legalmente garantida nos princípios constitucionais, mas de
[21]
fato negada na realidade da assistência tal como ela tem se efetivado no país.
Nesse cenário, o suporte político mais relevante – ou a falta dele – é aquele representado pela classe média.
Nos países em desenvolvimento, como o Brasil, a disposição política da classe média é essencial para o
sucesso da adoção de sistemas de saúde universais. Nos países onde a classe média tem buscado cobertura e
tratamento por intermédio de planos de saúde ou mediante gastos privados, os esforços para estabelecer o
acesso universal à saúde têm sido frustrados, uma vez que há redução dos incentivos para que se estendam
[22]
os benefícios aos outros segmentos sociais.
Os fatos recentes têm denotado redução do engajamento da classe média brasileira pelo fortalecimento do
modelo público. Nesse sentido, vale salientar que, enquanto inciativas de desfinanciamento do SUS (Novo
Regime Fiscal) e de expansão do mercado privado (regulamentação dos planos “acessíveis”) seguem sendo
implementadas, praticamente não se debatem as isenções fiscais irrestritas aos gastos com saúde no mercado
privado, que têm aumentado ano após ano, ou os benefícios de saúde pagos com recursos públicos a
determinados segmentos do funcionalismo público. Tais comportamentos do governo e da classe média,
longe de serem imprevisíveis, seguem exatamente o caminho politicamente mais “seguro” e ameno, que é a
[23]
adoção de estratégias conservadoras e excludentes na defesa de interesses .
Não à toa, a tendência observada em âmbito internacional indica que as reduções de investimento público
Há amplo reconhecimento de que a atuação do Sistema de Justiça é instrumento legítimo para dar eficácia
[26]
material ao direito à saúde, previsto na Constituição , mas ela mesma não oferece os critérios para decidir
os exatos contornos desse direito, tarefa que fica reservada aos órgãos políticos competentes para “definição
[27]
das linhas gerais das políticas na esfera socioeconômica” . Em decorrência disso, há acirrado e complexo
debate em torno da determinação de qual conteúdo pode ser depreendido do texto constitucional e, por
[28]
conseguinte, exigido por intermédio dos instrumentos jurídicos . Em articulação com esse debate, há,
ainda, ampla reflexão sobre o escopo de qual tutela judicial deve ser assumida, se individual ou coletiva.
O grande volume de ações e o significativo impacto na gestão da saúde têm conduzido à intensificação das
reflexões no âmbito da pesquisa acadêmica, da mídia, da Administração Pública e do Legislativo. Nesse
contexto, são constantes as assertivas em prol da valorização da tutela coletiva em relação à tutela
[29]
individual , que é exatamente o que se pretende na presente ação civil pública – transformar os
problemas tratados em dezenas de ações individuais em uma solução coletiva para todos. Dessa forma,
a busca do Sistema de Justiça por garantir efetivo acesso à saúde se mostra uma alternativa relevante – senão
a única – em face da iniquidade e da exclusão decorrentes da desnaturação do modelo público de saúde
brasileiro. Dessa forma, fortalecer esse instrumento de afirmação da cidadania é combater os problemas
estruturais que comprometem a organização do sistema de saúde: a exclusão no acesso, o desfinanciamento
do SUS, a segmentação do cuidado, a precarização dos serviços públicos, dentre outros.
As ações de responsabilidade pela reparação de danos morais e patrimoniais causados a qualquer interesse
difuso e coletivo são reguladas pela Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n. 7.347/85), de conformidade
com a regra do art. 1º, inc. IV, da referida Lei.
A Lei da Ação Civil Pública, em seu art. 21, afirma: “aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos,
coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de
Defesa do Consumidor”.
O Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n. 8.078/90), em seu artigo 81, esclarece que a defesa
coletiva pode ser exercida quando houver lesão a interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos:
“Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo
individualmente, ou a título coletivo.
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de
natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”.
Na espécie, a ação civil pública é instrumento apropriado para a defesa de interesses coletivos das pessoas
que realizam tratamento de saúde no Distrito Federal, por meio do SUS, e que precisem de realização de
CPRE. Cuida-se, majoritariamente, de pessoas em situação de alta vulnerabilidade econômica e social.
Nesse cenário, a ação civil pública apresenta-se como eficaz instrumento de inclusão jurisdicional da
população em condição de vulnerabilidade, permitindo uma defesa eficaz e transindividual dos direitos
tutelados por meio desta demanda.
Os efeitos da coisa julgada nas ações coletivas são condizentes com o processo de massa e propiciam o
acesso coletivo à justiça. Nesse sentido, o art. 16 da Lei da Ação Civil Pública estabelece que “a sentença
civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o
pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá
intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova”.
Por outro lado, o artigo 103 do Código de Defesa do Consumidor prevê, de acordo com o direito
transindividual em questão, efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o resultado do julgamento ou o
resultado da prova, visando a beneficiar todas as pessoas ameaçadas ou lesadas em seus direitos por
determinado acontecimento.
A legitimidade da Defensoria Pública para a propositura de ações civis públicas é conferida pelos seguintes
dispositivos constitucionais e legais:
(a) pelo art. 134, da Constituição Brasileira, com a redação que lhe foi dada pela Emenda Constitucional nº
80, de 2014, o qual afirma ser a Defensoria Pública “instituição permanente, essencial à função
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático,
fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus,
judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados,
na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal”;
(b) pelo art. 114, da Lei Orgânica do DF, segundo o qual “a Defensoria Pública é instituição permanente e
essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe fundamentalmente, como expressão e
instrumento do regime democrático, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa
judicial e extrajudicial, em todos os graus, dos direitos individuais e coletivos de forma integral e gratuita
aos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal”;
(c) pelo artigo 5º, inciso II, da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal nº 7.347, de 1985, com a redação dada
pela Lei Federal nº 11.448, de 2007), que confere legitimidade à Defensoria Pública para ajuizar ações civil
públicas, cuja constitucionalidade já foi afirmada pelo STF (ADI 3943, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA,
(d) pelo artigo 4º, inciso VII, da Lei Complementar Federal nº 80, de 1994, que atribui à Defensoria Pública
a função de “promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada
tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder
beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes”;
(e) pelo artigo 4º, inciso VIII, da Lei Complementar Federal nº 80, de 1994, que atribui à Defensoria Pública
a função de “exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais
homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal”; e
(f) pelo art. 2º, inc. IV, da Lei Complementar Distrital n. 828/2010, que assegura a prestação de assistência
jurídica, por intermédio da Defensoria Pública do DF, “para proteger quaisquer direitos difusos, coletivos e
individuais dos necessitados, inclusive aqueles assegurados pela legislação de proteção à criança e ao
adolescente, à mulher vitimada pela violência doméstica, ao idoso, ao negro, aos portadores de
necessidades especiais ou de transtornos mentais, à vítima de crimes, ao condenado, ao preso provisório,
ao consumidor, ao usuário de serviço público, ao administrado e ao contribuinte”.
Cumpre ressaltar que, ao julgar o Recurso Extraordinário n. 733.433, com repercussão geral reconhecida, o
Supremo Tribunal Federal assentou a tese de que “a Defensoria Pública tem legitimidade para a
propositura de ação civil pública que vise a promover a tutela judicial de direitos difusos e coletivos de que
sejam titulares, em tese, pessoas necessitadas” (RE 733.433, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal
Pleno, julgado em 04/11/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-063
DIVULG 06-04-2016 PUBLIC 07-04-2016).
“A expressão, que qualifica, orienta e enobrece a atuação da Defensoria Pública, deve ser entendida, em
sentido amplo, de modo a incluir, ao lado dos estritamente carentes de recursos financeiros - os miseráveis
e pobres, os hipervulneráveis (isto é, os socialmente estigmatizados ou excluídos, as crianças, os idosos, as
gerações futuras), enfim, todos aqueles que, como indivíduo ou classe, por conta de sua real debilidade
perante abusos ou arbítrio dos detentores de poder econômico ou político, 'necessitem' da mão benevolente
e solidarista do Estado para sua proteção, mesmo que contra o próprio Estado" (STJ, EREsp 1.192.577-
RS, Corte Especial, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 21/10/2015, DJe 13/11/2015).
Nesse julgado, a eminente Ministra Carmem Lúcia, relatora do julgamento, citando o parecer da professora
Ada Pellegrini Grinover, adotou o entendimento de que o conceito de necessitado, para fins de atuação da
Defensoria Pública, abrange um caráter econômico e um organizacional. Confira-se:
“Nesse amplo quadro, delineado pela necessidade de o Estado propiciar condições, a todos, de amplo
acesso à justiça evidencia [a importância da garantia da assistência judiciária. E ela também toma uma
dimensão mais ampla, que transcende o seu sentido primeiro, clássico e tradicional. Quando se pensa em
assistência judiciária, logo se pensa na assistência aos necessitados, aos economicamente fracos, aos
"minus habentes". E este, sem dúvida, o primeiro aspecto da assistência judiciária: o mais premente, talvez,
mas não o único.
Isso porque existem os que são necessitados no plano econômico, mas também existem os necessitados do
ponto de vista organizacional.
E tanto assim é, que afirmava, no mesmo estudo, que assistência judiciária deve compreender a defesa
penal, em que o Estado é tido a assegurar a todos o contraditório e a ampla defesa, quer se trate de
economicamente necessitados, quer não. O acusado está sempre numa posição de vulnerabilidade frente à
acusação.
Dizia eu: "Não cabe ao Estado indagar se há ricos ou pobres, porque o que existe são acusados que, não
dispondo de advogados, ainda que ricos sejam, não poderão ser condenados sem uma defesa efetiva. Surge,
assim, mais uma faceta da assistência judiciária, assistência aos necessitados, não no sentido econômico,
mas no sentido de que o Estado lhes deve assegurar as garantias do contraditório e da ampla defesa.
Em estudo posterior, ainda afirmei surgir, em razão da própria estruturação da sociedade de massa, uma
nova categoria de hipossuficientes, ou seja a dos carentes organizacionais, a que se referiu Mauro
Cappelletti, ligada à questão da vulnerabilidade das pessoas em face das relações sócio-jurídicas existentes
na sociedade contemporânea.
Da mesma maneira deve ser interpretado o inc. LXXIV do art.5º da CF: "O Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos" (grifei). A exegese do termo
constitucional não deve limitar-se aos recursos econômicos, abrangendo recursos organizacionais,
culturais, sociais.
(...)
Assim, mesmo que se queira enquadrar as funções da Defensoria Pública no campo da defesa dos
necessitados e dos que comprovarem insuficiência de recursos, os conceitos indeterminados da
Constituição autorizam o entendimento - aderente à ideia generosa do amplo acesso à justiça - de que
compete à instituição a defesa dos necessitados do ponto de vista organizacional, abrangendo portanto os
componentes de grupos, categorias ou classes de pessoas na tutela de seus interesses ou direitos difusos,
coletivos e individuais homogêneos”.
Em seu douto voto, a Ministra Relatora salientou que, além de constitucional, a inclusão taxativa da defesa
dos direitos coletivos no rol de atribuições da Defensoria Pública é coerente com as novas tendências e
crescentes demandas sociais de se garantir e ampliar os instrumentos de acesso à Justiça.
No presente caso, a população protegida por meio desta ação civil pública é dotada de altíssima
vulnerabilidade, por constituir população usuária do serviço público de saúde e por apresentar disfunções
que comprometem gravemente o seu estado de saúde, ocasionando risco de óbito e exigindo tratamento
adequado por parte do Poder Público.
7. DA TUTELA DE URGÊNCIA:
O art. 12 da Lei da Ação Civil Pública (Lei Federal n. 7.347/85) afirma que o juiz poderá conceder mandado
liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo. Cuida-se da previsão do cabimento da
tutela de urgência.
O art. 300, do CPC/2015, afirma que a tutela de urgência será concedida quando houver elementos que
evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo.
A probabilidade do direito está respaldada pelas disposições constitucionais e legais que afirmam claramente
a responsabilidade do Poder Público em prover os cuidados de saúde demandados pelos pacientes.
De forma inequívoca, evidenciada está a necessidade de retomada da oferta de serviços de saúde no Distrito
Federal para assegurar, aos usuários do SUS, o tratamento adequado e tempestivo.
O risco de dano grave e irreparável aos pacientes caracteriza-se pela necessidade de obtenção do tratamento
de conformidade com os ditames normativos e com as boas práticas internacionais, bem como pelos riscos
de agravamento do quadro clínico de saúde dos pacientes, com o risco de óbito, decorrentes da demora no
atendimento.
Ademais, há possibilidade concreta de a espera pelo julgamento da presente ação acarretar significativo
prejuízo aos pacientes do SUS que necessitam da realização do referido procedimento, como piora do seu
quadro de saúde.
Além dos claros e presumidos prejuízos à saúde da população em geral e à saúde de cada paciente em
específico, a ausência de prestação de serviços adequados e tempestivos na prestação dos serviços de CPRE
provoca, diretamente, um impacto nefasto aos cofres públicos, em caso de sequestro de verbas públicas nas
ações individuais. Indiretamente, o custo é inestimável, pois abrange a ofensa à dignidade dos pacientes e ao
direito à saúde e à vida.
É necessário, portanto, dar ao presente caso tratamento semelhante ao que foi atribuído a outro problema
social grave: a demanda reprimida por cirurgias oftalmológicas de vitrectomia. Para garantir o direito à
saúde dos pacientes com retinopatias, o Juízo Especializado da 5ª Vara da Fazenda Pública e da Saúde
Pública proferiu sentença nos autos da ação n. 0712573-13.2017.8.07.0018 que assim determinou:
“Diante do exposto, JULGO PROCEDENTE em parte o pedido para condenar o Distrito Federal a
obrigação de fazer, consubstanciada no dever de:
I – atender a todos os pacientes regulados para cirurgia de vitrectomia com classificação de risco
“vermelha” e esgotar a fila de espera no prazo de 45 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máxima de cinco dias;
II – atender a todos os pacientes regulados para cirurgia de vitrectomia com classificação de risco
“amarela” e esgotar a fila de espera no prazo de 60 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máximo de 10 dias;
III – atender a todos os pacientes regulados para cirurgia de vitrectomia com classificação de risco
“verde” no prazo de 80 dias, e manter tal classificação de risco com lista de espera máxima de 20 dias;
IV – atender a todos os pacientes regulados para cirurgia de vitrectomia com classificação de risco “azul”
no prazo de 100 dias, e manter tal classificação de risco com lista de espera máxima de 30 dias.”
Ao tomar tal medida, este Tribunal de Justiça cotejou o princípio da eficiência com a necessidade prática de
atendimento da população e traçou critérios claros, justos e objetivos para atendimento dos cidadãos do
Distrito Federal.
Assim, absolutamente adequado que entendimento semelhante seja aplicado ao presente caso, observado
apenas que o procedimento de CPRE, por envolver tratamento essencial à manutenção da vida, necessita
observar prazos mais curtos de atendimento, especialmente na prioridade vermelha.
7. DOS PEDIDOS
(1) a concessão dos benefícios da gratuidade judiciária, com fulcro no art. 18 da Lei da Ação Civil Pública;
(2.1) Seja emitida ordem judicial para impor ao Réu Distrito Federal obrigação de fazer consistente em
apresentar em Juízo, no prazo máximo de 72 horas, informações das seguintes informações relacionadas aos
procedimentos de COLANGIOPANCREATOGRAFIA RETRÓGRADA ENDOSCÓPICA (CPRE):
(2.1.1) a quantidade de pessoas aguardando em lista de espera (prioridades vermelho, amarelo, verde e azul);
(2.1.2) a média estimativa de novas solicitações mensais com base nas informações dos últimos 3 meses;
(2.1.3) a média estimativa da oferta mensal de procedimentos de CPRE nos últimos 3 meses;
(2.1.4) a média estimativa de tempo de espera para um paciente recém-inserido no sistema de regulação, ou
seja, qual a expectativa de espera de um usuário do SUS que tiver sua solicitação inserida neste mês de maio
de 2021, consideradas as quatro hipóteses de priorização (vermelho, amarelo, azul, verde).
(2.2) Seja emitida ordem judicial para impor aos Réus, solidariamente, obrigação de fazer consistente em:
(2.2.1) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“vermelha” e esgotar a fila de espera no prazo de 20 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máxima de 72 (setenta e duas) horas;
(2.2.2) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“amarela” e esgotar a fila de espera no prazo de 60 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máximo de 10 dias;
(2.2.3) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“verde”, caso existam, no prazo de 80 dias, e manter tal classificação de risco com lista de espera máxima de
20 dias;
(2.2.4) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
(2.3) a intimação pessoal do Secretário de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES/DF) e do Presidente do
Instituto de Gestão Estratégica do Distrito Federal (IGESDF) para a tomada de todas as providências
necessárias ao fiel cumprimento da decisão judicial, sob pena de cominação de multa diária a ser arbitrado
por esse Juízo (art. 11, da Lei nº 7.347/85) para o caso de eventual descumprimento de cada uma das
determinações acima;
(3) a publicação de edital no órgão oficial, a fim de que os interessados possam intervir no processo como
litisconsortes, sem prejuízo de ampla divulgação pelos meios de comunicação social por parte dos órgãos de
defesa do consumidor (art. 94, do CDC);
(4) a intimação do Ministério Público, para atuar como fiscal da lei ou como litisconsorte ativo (art. 5º, §1º,
da Lei da Ação Civil Pública);
(5) a produção das provas, por todos os meios juridicamente cabíveis, a serem oportunamente
especificados;
(6.1) condenar o Réu Distrito Federal na obrigação de fazer consistente em apresentar em Juízo cadastro
atualizado das seguintes informações relacionadas aos procedimentos de colangiopancreatografia
retrógrada endoscópica (CPRE):
(6.1.1) a quantidade de pessoas aguardando em lista de espera (prioridades vermelho, amarelo, verde e azul);
(6.1.2) a média estimativa de novas solicitações mensais com base nas informações dos últimos 3 meses;
(6.1.4) a média estimativa de tempo de espera para um paciente recém-inserido no sistema de regulação, ou
seja, qual a expectativa de espera de um usuário do SUS que tiver sua solicitação inserida neste mês de maio
de 2021, consideradas as quatro hipóteses de priorização (vermelho, amarelo, azul, verde);
(6.2.1) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“vermelha” e esgotar a fila de espera no prazo de 20 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máxima de 72 (setenta e duas) horas;
(6.2.2) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“amarela” e esgotar a fila de espera no prazo de 60 dias, bem como manter tal classificação de risco com
lista de espera máximo de 10 dias;
(6.2.3) – atender a todos os pacientes regulados para procedimento de CPRE com classificação de risco
“verde” no prazo de 80 dias, e manter tal classificação de risco com lista de espera máxima de 20 dias;
(7) a intimação pessoal do Secretário de Estado da Saúde do Distrito Federal (SES/DF) e do Presidente do
Instituto de Gestão Estratégica do Distrito Federal (IGESDF) para a tomada de todas as providências
necessárias ao fiel cumprimento da decisão judicial, cominando multa diária (art. 11, da Lei nº 7.347/85),
para o caso de eventual descumprimento de cada uma das determinações acima;
(8) por fim, a condenação das partes demandadas ao pagamento das verbas sucumbenciais conforme Art. 85,
§ 2º do CPC e nos termos do art. 4º, XXI, da Lei Complementar n. 80/94;
(9) Sejam observadas as prerrogativas institucionais de intimação pessoal e prazos processuais em dobro,
nos termos do art. 44, I, da LC n. 80/94 e art. 186, caput e parágrafo 1º, do CPC/2015.
8. VALOR DA CAUSA:
Atribui-se à causa o valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais) – valor fixado de forma estimativa. No
entanto, caso o entendimento desse Juízo divirja quanto ao valor dado à causa, pede-se que este seja
corrigido de ofício, nos termos do art. 292, §3º, do CPC/2015.
Defensor Público
Defensor Público
Defensor Público
Defensora Pública
Defensora Pública
[2] COELHO, I. M.. Intepretação Constitucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1997, pp.
97-98.
[3] DUTRA, Roberto; CAMPOS, Mauro Macedo. Por uma sociologia sistêmica da gestão de políticas
públicas. Conexão Política, Teresina, v. 2, n. 2, pp. 11-47, ago. dez., 2013, p. 34.
[4] VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de
judicialização da política. Tempo Social, São Paulo, v. 19, n. 2, pp. 39-85, nov. 2007, p. 43.
[6] VIANNA, L. W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro:
Revan, 2a ed., 2014, p. 43.
[7] MENICUCCI, T.; MACHADO, J. Judicialization of health policy in the definition of acess to public
goods: Individual Rights versus Collective Rights. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 4, n. 1, pp. 33-
68, 2010, p. 33.
[8] SARLET, Ingo W.. Direitos Fundamentais a Prestações Sociais e Crise: Algumas Aproximações.
Espaço Jurídico Journal of Law, Editora UNOESC, Joaçaba, v. 16, n.2, pp. 459-488, jul. dez. 2015, p.
461-462.
[9] SANTOS, Boaventura de S.. Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007,
p. 20.
[10] DUTRA, R.; CAMPOS, M. M.. Por uma sociologia sistêmica da gestão de políticas públicas. Conexão
Política, Teresina, v. 2, n. 2, pp. 11-47, ago./dez., 2013, p. 34.
[14] Para estudo sobre a judicialização das políticas públicas educacionais, conferir: MIGUEL FERREIRA,
L. A.; JAMIL CURY, C. R.. A judicialização da educação. Revista CEJ, v. 13, n. 45, p. 32-45, 2009.
[15] Para um amplo estudo da judicialização no âmbito da assistência social, conferir: MINISTÉRIO DA
JUSTIÇA. As relações entre o Sistema Único de Assistência Social - SUAS e o Sistema de Justiça.
Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos (SAL): IPEA, 2015.
[16] Boaventura de Souza Santos, ao se deparar com a judicialização, assevera que “as pessoas, que têm
consciência dos seus direitos, ao verem colocadas em causa as políticas sociais ou de desenvolvimento do
Estado, recorrem aos tribunais para as protegerem ou exigirem a sua efectiva execução” (SANTOS, B. S..
Para uma Revolução Democrática da Justiça. São Paulo: Cortez, 2007, p. 29).
[20] SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F.. Algunas consideraciones sobre el derecho fundamental a la
protección y promoción de la salud a los 20 años de la Constitución Federal de Brasil de 1988. In:
COURTIS, C.; SANTAMARÍA, R. (Orgs.). La Protección judicial de los derechos sociales. Quito:
Ministério de Justicia y Derechos Humanos, 2009, p. 256.
[21] Nesse sentido: MENICUCCI, T. M. G.. Público e privado na política de assistência à saúde no
Brasil: atores, processos e trajetória. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007, p. 292.
[22] BRITNELL, M. In Search of the Perfect Health System. Londres/Nova Iorque: Macmillan
Education/Palgrave, 2015, p. 157.
[23] UNGER, R. M.. Democracia realizada: a alternativa progressista. São Paulo: Boitempo, 1999, pp.
17-18.
[24] TUOHY, C. et al. How Does Private Finance Affect Public Health Care Systems? Marshaling the
Evidence from OECD Nations. Journal of Health Politics, Policy and Law, Duke University Press, v. 29,
n. 3, pp.359-396, 2004, p. 388.
[25] BAHIA, Ligia et al. Private health plans with limited coverage: the updated privatizing agenda in the
context of Brazil's political and economic crisis. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 32, n. 12, 2016, p.
3.
[26] Para um exemplo, conferir: DALLARI, S. G. NUNES JÚNIOR, V. S. Direito Sanitário. São Paulo:
Verbatim, 2010, p. 93.
[27] SARLET, I. W.. Direitos Fundamentais a Prestações Sociais e Crise: Algumas Aproximações. In
Espaço Jurídico Journal of Law, Editora UNOESC, Joaçaba, v. 16, n.2, p. 459-488, jul. dez. 2015, p. 471.
[28] SARLET, I. W.; FIGUEIREDO, M. F.. Algunas consideraciones sobre el derecho fundamental a la
protección y promoción de la salud a los 20 años de la Constitución Federal de Brasil de 1988. In:
COURTIS, C.; SANTAMARÍA, R. (Orgs.). La Protección judicial de los derechos sociales. Quito:
Ministério de Justicia y Derechos Humanos, 2009, p. 252.