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Alves, Rubem. Histórias de quem gosta de ensinar. 17ª ed. São Paulo:Cortez, 1994. Pp.

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Os hábitos alimentares da ciência

Eu gosto de contar histórias. É que elas dizem o que tem a dizer de forma curta e
descomplicada. Não precisam de muitas explicações E qualquer um entende. Isto, além de se
darem ao luxo de permitir que se junte uma pitada de humor ao que se conta. O que provoca o
riso numa das partes da torcida, que irá repeti-las muitas vezes daqui para frente... Uma boa
risada vale mais que muitos argumentos. A outra parte da torcida, é claro, vai ficar danada da
vida, como o rei que se descobriu de cuecas no meio da parada... E aqui vai mais uma...
Muitos anos atrás um cordeiro, totalmente comprometido com o ideal do conhecimento objetivo,
decidiu que já era tempo de se descobrir a verdade sobre os lobos. Até aquele momento só ouvira
estórias escabrosas, sempre contadas por testemunhas suspeitas, gente que tinha preconceito
contra os pobres bichos. Quem eram os lobos? Ele decidiu que, para se ter a verdade, seria
necessário abandonar, como indignos de confiança, os testemunhos de terceiros. Ninguém
conhecia os lobos melhor que os lobos. Que se fosse diretamente a eles. O Cordeiro escreveu
então uma carta ao filósofo-lobo com uma questão simples e direta: O que são os lobos? O
filósofo-lobo respondeu imediatamente, como convém a alguém que pertence à comunidade do
saber. E disse tudo. As formas dos lobos, tamanhos, cores, hábitos sociais, tendências estéticas...
Vez por outra ele parava para pensar se a cozinha dos lobos e suas predileções alimentares eram
questões de interesse filosófico e ontológico. E sempre riscava a primeira linha do relatório. Afinal
de contas, ele dizia, os hábitos alimentares dos lobos são acidentais, culturalmente condicionados.
Não pertencem à nossa essência. O Cordeiro, ao receber a carta, deu pulos de alegria. Ele estava
certo. Quantas mentiras tinham sido espalhadas acerca dos lobos. Mas, agora, testemunha de
primeira mão, sabia finalmente quem eram os lobos, almas irmãs, animais de carne e osso neste
mundo de Deus. E até resolveu visitar lobo, para debates filosóficos face a face. E foi só então
que ele aprendeu, tarde demais, que alguma coisa não fora dita no relato do lobo. Ah! Faltavam
as informações sobre os seus hábitos alimentares. Descobria agora, de forma final e irremediável
que, para um cordeiro, um lobo é, antes de mais nada, um bicho cuja comida favorita é churrasco
de cordeiro...

Toda história tem uma moral... A desta é muito simples: se você quiser saber quem são
os loucos, não pergunte a eles. É mais seguro acreditar nos cordeiros.
Esta moral não é novidade. Sabedoria da velha, a “arte da desconfiança”. Não me
entendam mal. Não estou denegrindo a moral dos lobos. E nem estou dizendo que eles têm
más intenções. O problema é pior. Na realidade eles não possuem alternativas... Os lobos
estão condenados a ver o mundo como lobos... Maneira única de ver o universo, metafísica
própria, ontologia singular: os deuses são sempre lobos e os cordeiros, por ordenação divina,
estão destinados (ó nobre vocação!) a ser comidos pelos lobos. Não adianta aos lobos
expandir sua ciência: os resultados confirmaram sempre a sua hipótese de trabalho. E é por
isso que é necessário ouvir o outro lado, as vítimas...
Para minha surpresa, quando comtei esta história pela primeira vez, a aplicação de sua
moral provocou um inesperado tumulto e protestos indignados. Vou explicar. Tudo aconteceu
numa reunião internacional em que cientistas, técnicos, estudantes e representantes de credos
religiosos se reuniram para conversar sobre o futuro incerto deste belo mundo em que vivemos.
E, como não poderia deixar de ser, especialmente considerando-se o lugar, o MIT, santuário da
técnica, a coisa começou com uma fala sobre a Ciência. Discurso lindo, gerado em
observatório astronômico, no êxtase da contemplação de galáxias distantes, vistas e pensadas
em meio à abundância de ciência de observatório de país rico, protegido das coisas
mesquinhas e efêmeras da Terra. Ah! Como é belo e tranquilizante contemplar o Universo,
impassível e misterioso... Também eu amo os céus estrelados e, se pudesse, trataria de fazer
algo para que a meninada de nossas escolas aprendesse a ouvir as vozes do firmamento. Elas
nos fazem mais modestos e humildes. Talvez mais sábios. Mas o problema apareceu
justamente aí: aquele homem astrônomo, íntegro no seu trabalho, apaixonado pelo seu saber,
acima dos demais mortais, estava condenado a falar sobre a Ciência a partir da beleza pura de
sua bolha de sabão. E suas palavras foram descrevendo a Ciência, maravilhosa e livre de
enganos, madona virginal, ser angelical... Nenhuma palavra sobre os seus hábitos
alimentares...
E foi aqui que apareceu o desdobramento perverso da primeira parte da moral da estória.
Se você quiser saber quem são os lobos, não pergunte a eles. É mais seguro acreditar nos
cordeiros. Se você quiser saber o que é a Ciência, não pergunte aos cientistas. Pergunte às
vítimas.
Foi então que o pandemônio se estabeleceu. Claro que me assustei. Porque pensei que
não estava dizendo nada de insólito. Tratava-se apenas de uma pequena pitada de sabedoria
que não inventei, coisa já velha, que tem a ver com a teoria das ideologias e com a psicanálise,
para não nos referirmos a textos Sagrados milenares, que dizem que devemos prestar pouca
atenção aquilo que as pessoas dizem e observar com atenção o que elas fazem. Pobre
cordeiro: se tivesse sabido disto, não teria virado churrasco... O que ofendeu a todos foi
imaginar que a ciência pudesse ter hábitos alimentares...
Todos concordam em que, para se conhecer a polícia, é preciso não levar muito a sério
as declarações oficiais que seus altos funcionários produzem. É necessário ouvir falar dos que
sofrem porque equívocos e não-equívocos. E se se deseja saber sobre os bancos, será sábio
não acreditar nos comerciais de televisão, com xícaras de café e gerentes sorridentes, chaves
mágicas e celebrações de ações de graças. Há outras histórias para serem contadas. E se se
deseja saber sobre as instituições religiosas, que se procurem, do outro lado das Celebrações,
os testemunhos dos equívocos, das intolerâncias e das inquisições... Isto é procedimento
científico que vale para todas as instituições. Seria ridículo que a Ciência apenas não quisesse
aplicar a si mesma a “arte da desconfiança” que ela aplica, como o cirurgião, sobre as outras
instituições. Afinal de contas, a receita do purgante é dela mesma. Que ela não tenha medo da
cura que ela mesma receita.

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