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A Heterogeneidade Epistemológica Da Psicologia Social
A Heterogeneidade Epistemológica Da Psicologia Social
RIO DE JANEIRO
2009
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FILIPE MILAGRES BOECHAT
RIO DE JANEIRO
2009
B669 Boechat, Filipe Milagres.
CDD 302
FILIPE MILAGRES BOECHAT
____________________________________________________
Profº Dr. Francisco Teixeira Portugal
Universidade Federal do Rio de Janeiro
____________________________________________________
Profª Drª. Rosane Azevedo Neves da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
____________________________________________________
Profº Dr. Marcelo Santana Ferreira
Universidade Federal Fluminense
AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, aos meus pais e ao meu irmão, pela confiança e pelo amparo
incondicionais.
Em segundo lugar, aos meus amigos e a todos os que estiveram ao meu lado quando
Agradeço, além disso, ao Professor Francisco Portugal, pela confiança e pela indiscutível
Ciências Humanas, pela compreensão e pela pronta ajuda nos momentos delicados de minha
pesquisa.
Tecnológico (CNPq) pela concessão do auxílio financeiro, sem o qual esse trabalho teria sido,
1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................9
6. CONCLUSÃO...............................................................................................................119
REFERÊNCIAS
RESUMO
The present work examines, firstly, the epistemological heterogeneity which defines the
changing and indefinite realm of the contemporary Social Psychology. In order to do that, I
enumerate and describe the main philosophical inspirations which are responsible for the
principal aspects of each area of the Social Psychology. After this exposition, I present some
considerations of Social Psychology history and historiography. Finally. I examine and
describe the two main movements (Social Constructionism and Social Neuroscience) which,
in the last three decades, have been considerably modifying the profile of this science, in
order to discuss, briefly, the present state of Social Psychology.
1. INTRODUÇÃO
psicólogo social norte-americano Kenneth J. Gergen declarava que a Psicologia Social, longe
de ser uma ciência experimental do comportamento social, deveria ser concebida, dali em
(2008, p. 475, 483)2. Isso porque, segundo Gergen, as regularidades que ela julgava expressar
sob a forma de leis ou “princípios da interação humana” (p. 475) – derivadas da manipulação
Seguramente, não é necessário muito esforço para que nos apercebamos da falha na
argumentação de Gergen ou, enfim, para que nos convençamos de que ela é, no mínimo,
simplesmente postula que os fenômenos humanos são, por assim dizer, de outra natureza que
os fenômenos naturais, o que desautorizaria todo esforço na direção de buscar neles (por
1
GERGEN, K. J. (1973) Social Psychology as History. J. Pers. Soc. Psychol.. v. 26, n. 2, p. 309-320.
2
Embora não pareça haver indícios de um vínculo direto entre a posição de Kenneth Gergen e aquela de Jürgen
Habermas, este último já havia declarado, em On the logig of social sciences (1967), que as ciências do homem
deveriam encaminhar-se na direção de uma “systematically generalized history”. De acordo com Thomas
McCarthy, Habermas argumenta que a análise dos sistemas sociais não poderia continuar a ser compreendida
como uma forma de ciência “empírico-analítica à maneira da Biologia”, devendo ser transformada numa “teoria
da sociedade historicamente orientada com objetivo ou propósito prático” (in HABERMAS, 1988, p. viii).
10
Apesar, porém, desta relativa insuficiência, é quase unânime entre os psicólogos sociais
contemporâneos a opinião de que a publicação daquele artigo marca uma data capital na
3
história da Psicologia Social . Segundo confissões reiteradas, sua publicação teria
permanecia vinculada desde o fim da Segunda Guerra Mundial (GERGEN, 1985; IÑIGUEZ,
2004).
Social já havia deixado de ser uma ciência exclusivamente comportamental. Embora, com
efeito, ela ainda sustentasse o desejo ou o ideal de tornar-se uma ciência experimental, o
relativo consenso entre seus representantes já não era, digamos, realidade. Nos Estados
Unidos, por exemplo, há cerca de duas ou três décadas antes da publicação do artigo de
humanismo, desde 1940, já se desenvolvia como uma “terceira força”, num amplo movimento
lado, e pela Psicanálise, de outro – consequência, em grande parte, das reflexões teóricas e
técnicas da psicologia clínica (WERTZ, 1998). Na União Soviética, por sua vez, dentre as
décadas de 1940 e 1970, o experimentalismo já não era, segundo González Rey, “cenário
absoluto” (2004, p. 27). Inspirados pelos trabalhos de Arthur Rubinstein (1889-1960) e Lev
3
Entre aqueles, é claro, que não sucumbiram ao “sectarismo doutrinário de outrora”, conforme as palavras de
Aroldo Rodrigues (1979, p. 18), o que exclui, se não toda psicologia social experimental, parcela considerável
dos partidários da tradição experimentalista.
11
de sentido socialmente produzidos” (p. 27). Na França, para citarmos um último caso, o
psicólogo social Serge Moscovici já havia publicado, há alguns anos, sua obra seminal,
intitulada A Psicanálise, sua imagem e seu público 5 , na qual lançara mão da figura do
sociólogo Émile Durkheim6 (1858-1917) para reformular a base teórica da Psicologia Social,
Esses e muitos outros acontecimentos dão-nos, portanto, indícios suficientes de que, mesmo
psicólogos sociais em torno de quais seriam seus conceitos fundamentais, seus fenômenos
específicos e seu método adequado já não existia; se a Psicologia Social, há mais de trinta
anos, já aparentava ser uma verdadeira “terra-de-ninguém da ciência” (ASCH, 1971, p. 4); se
comportamento social havia deixado de ser uma unidade de análise segura e um objeto de
4
De acordo com González Rey, a “esfera social”, na psicologia soviética anterior à década de 40, permanecia
reduzida a “operações com o objeto em contexto imediato”, ao “interpessoal”, numa concepção “ambientalista”
e objetivista da realidade social. Ainda segundo o autor, isso se deveria às limitações impostas pelo pensamento
marxista e seu projeto de fazer remontar todas as operações psíquicas às operações práticas e concretas
correspondentes, o que o teria conduzido a tornar-se uma espécie de “camisa-de-força para o desenvolvimento
da psicologia soviética” (2004, p. 29-32).
5
MOSCOVICI, S. (1961). La Psychanalyse, son image et son public. Paris: P.U.F..
6
O fato de Serge Moscovici ter recorrido ao sociólogo francês Émile Durkheim para a reformulação da
Psicologia Social pode parecer estranho a quem esteja acostumado a ver neste autor um ferrenho defensor da
Sociologia positiva. No entanto, como bem destacou Robert Farr, “embora Durkheim tenha sido o mais hostil de
todos os sociólogos importantes à psicologia, aquela contra a qual ele fazia forte oposição era a psicologia do
indivíduo. Ele não se opunha absolutamente ao desenvolvimento da psicologia social, nem era, em princípio, um
defensor intransigente dos direitos da sociologia” (2004, p. 152).
12
Mas o que é a Psicologia Social contemporânea? Eis aí uma pergunta que nos tem ocupado
todo o percurso acadêmico. Afinal, qualquer estudante que já se tenha colocado essa pergunta
nestes mesmos termos e que tenha mantido o cuidado de considerar não apenas uma, mas
muitas das respostas que já lhe foram consagradas, deverá ter percebido que ela não é uma
resposta simples de se dar. Ou, ao menos, se ele tiver o trabalho de conferir aquilo que os
psicólogos sociais dizem, constatará que eles próprios divergem profundamente em suas
A despeito de suas diferenças, porém, hoje como ontem, a grande maioria dos psicólogos
sociais tende a considerar a Psicologia Social uma ciência. No entanto, embora eles possam
estar seguros de que fazem ciência, conquanto possam estar de acordo com o fato de que a
Psicologia Social é uma ciência, nem sempre parecem concordar quanto ao que devemos
entender por esse conceito – o que nos põe, de imediato, diante de um problema, pois como
disse certa vez o historiador Paul Veyne, ainda que “ciência” não seja uma palavra sagrada, é
bastante comum que a indiferença pela discussão sobre o seu conceito seja acompanhada por
Os limites do problema
Antes, porém, é preciso que façamos a ressalva de que nossa dissertação não é dedicada,
como se poderia apressadamente pensar, a toda Psicologia Social. O exame exaustivo de sua
contudo, não impediu que a indagássemos como um todo. O que queremos aqui, portanto, é
13
definição e ao seu conceito – ou, se assim se preferir, à discussão em torno de sua bem
também, poder-se-ia dizer, ao exame de seu designado – ou seja, ao exame daquilo que é
visado por seu nome ou em seu nome. Pois, afinal de contas, conquanto se possa dizer que o
visado por esse nome seja múltiplo e bastante diverso (e os psicólogos sociais de fato o
dizem), certo é que ele não visa ou pelo menos não pretende visar qualquer espécie de coisa –
o que é atestado, aliás, pela relutância de alguns deles em admitir certas proposições e certas
Mais exatamente, ela é destinada a uma espécie de reflexão crítica sobre a unidade
contemporâneas, responsável – ora mais, ora menos diretamente – por parcela não desprezível
de todo discurso moderno7 referente aos fenômenos humanos decorrentes da “ação recíproca
de muitos” (WUNDT apud FARR, 2004, p. 61). Ainda porque, uma vez considerados como
parte significante de sua história, por exemplo, os trabalhos de Wilhelm Wundt (1832-1920),
Freud (1856-1939), na Áustria (MELLO NETO, 2000), o que se constata é que a Psicologia
Social é hoje uma ciência com mais de cem anos de idade e que, no entanto, ela permanece
uma ciência relativamente indeterminada, indefinida, sob a tutela, mais ou menos limitadora,
7
Discurso moderno, sem dúvida alguma, uma vez que essa ciência, contrariamente ao que julgava Gordon
Allport (1897-1967), não possui um passado tão longo, tendo encontrado suas condições de possibilidade (ou
“raízes”, conforme metáfora corrente), muito pelo contrário, só muito recentemente, nas transformações,
sobretudo políticas, que atravessaram de ponta a ponta os séculos XVIII e XIX, razão pela qual excluiremos, de
antemão, toda e qualquer referência a uma possível reflexão psicossociológica da qual seríamos herdeiros desde
tempos imemoriais – como parece ser o caso nas historiografias amparadas em uma epistemologia de orientação
positivista (FARR, 2004, p. 193-206).
14
Houve, com efeito, um período na história da Psicologia Social em que a pergunta pela sua
unidade confundia-se com a busca de sua identidade epistemológica – ou seja, com a busca,
fornecer enunciados legítimos sobre o homem, em geral, e sobre o homem enquanto este se
encontra em relação com outros homens. Esperava-se que a Psicologia Social pudesse, por
mera especulação. Conforme consta em sua literatura, passados os anos de “euforia” (LANE,
1984, p. 10), findo o período de “relativa tranquilidade” (RODRIGUES, 1979, p. 19), situado
aproximadamente entre os anos de 1945 e 1965, a Psicologia Social sofreu um duro golpe.
Interrogada ao nível de sua validade e questionada sobre sua eficácia (LANE, 1984, p. 10), a
Psicologia Social viu desmoronar grande parte de suas certezas e, junto com elas, a confiança
qual, ainda hoje, sentimos as consequências (FONSECA apud STREY et al., 2003, p. 42).
grave apreensão acerca do status desta ciência” (RODRIGUES, 1979, p. 18). Ao que parecia,
no êxito futuro de suas possíveis aplicações, a ordem não vinha e, o progresso, menos. De
acordo com as palavras da psicóloga social brasileira Silvia Lane, representante, no Brasil, do
Acontece que nós não precisamos mais confundir, como se fez no passado, unidade e
homogeneização de um determinado domínio do saber. Ainda porque nós hoje sabemos que a
unidade de um determinado campo científico não é dada por uma perfeita comunidade de
método e objeto e que, muito pelo contrário, o campo científico é mais “o espaço de jogo de
Portanto, à diferença do que se fez no passado, nosso propósito não será o de julgar se a
Psicologia Social é ou não uma ciência, que ciência ela é, ou se ela tem ou não tem um
método e um objeto que lhe assegure autonomia em relação às demais ciências, mas apenas
epistemológicas (e, particularmente, saber se ela pode ou não pode, como é de praxe, ser
descrita como uma disciplina). Não se trata, assim, contrariamente ao que se poderia pensar,
de tentar “recuperar” uma unidade que essa ciência haveria perdido e, ainda menos, de tentar
de um método finalmente adequado. Mesmo porque, fosse esse o nosso intento, nós não
saberíamos muito bem avaliar o seu ganho, já que todo discurso parece facilmente sobreviver
embaraço em que nós mesmos nos encontramos quando confrontados, durante nosso percurso
acadêmico, com a pergunta “o que é a Psicologia Social?”. Entretanto, essa pergunta, posta
assim dessa maneira, pode comportar uma possível suposição da qual precisamos afastar-nos
de imediato. Afinal, conforme Silva (2005), a pergunta pela essência da Psicologia Social
parece sugerir, pela sua própria forma, que a Psicologia Social diga respeito a uma classe
definições (a partir de seus manuais, livros-textos, assim como a partir de sua historiografia)
basta para que nos apercebamos do contrário. Esse exame revela-nos, afinal, que a Psicologia
domínio recortado por diferentes maneiras de se conceber a atividade científica, cada qual lhe
17
determinadas.
Mas, além da Psicologia Social constituir um espaço mal definido do saber e da prática
pacificamente, um espaço comum. Elas, muito pelo contrário, opõem-se umas às outras, numa
luta incessante pela hegemonia do discurso psicossociológico8. Por essa razão, e tomando
deliberadamente a Psicologia Social como objeto de análise, essa nossa dissertação não
desejará ser mais nem menos do que o exame e a descrição sumária das diferentes orientações
exame e a descrição das diferentes maneiras pelas quais os seus representantes concebem a
atividade científica e os fenômenos que lhe concernem. O que não é, em todo caso, pouco,
visto que essas epistemologias não são sem relação com a imagem que os psicólogos sociais
fazem de seu objeto e de seu papel perante ele. São elas que determinam, enfim, o estatuto a
ser conferido aos dados (ou aos fenômenos) e o que decide, por sua vez, se eles deverão ser
tratados, por exemplo, como informações a serem computadas ou como signos a serem
interpretados9.
8
A acusação segundo a qual os psicólogos sociais de orientação experimental representariam a faceta ideológica
do modo de produção capitalista, tendo como papel a reprodução das condições de dominação e a manutenção
da classe operária sob o jugo da classe burguesa, oferece-nos um exemplo bastante claro de o quanto calorosas e
intensas podem ser essas disputas (LANE, 1981).
9
Assim lemos em Nikolas Rose: “as ciências sociais, incluindo a psicologia e a psicologia social, na verdade
criam fenômenos. Elas trazem novos domínios a serem conhecidos, registrados e administrados. E elas mudam
as maneiras como os indivíduos se relacionam consigo mesmos” (2008, p. 160).
18
Há quem diga, porém, que a ausência de uma definição que estabeleça os limites, os
prova de sua riqueza e prosperidade, chegando mesmo a encarar a exigência de uma definição
– por mínima que seja – como o resquício de um passado em que a Filosofia a tudo impunha a
Com efeito, alguns psicólogos sociais parecem enxergar na indeterminação de sua ciência um
motivo de orgulho e um sólido indicador de sua riqueza intelectual, mais ou menos como o
etnógrafo que se alegra, na diversidade das culturas que descreve, com a aparente evidência
organização animal. De acordo com as palavras do psicólogo social Tomáz Ibáñez, a crítica à
atenuando a pressão exercida pelos fundamentalismos científicos” (2004, p. 37, itálico nosso).
Nós, porém, em nossa posição, não discordamos de todo dessa interpretação, ela mesma
constituem o seu mais precioso tesouro e, paralelamente, a marca maior de sua singularidade.
Apenas gostaríamos de acrescentar, pelo simples fato de não ser coisa que se tenha o hábito
de dizer, que essa indefinição e essa indisciplinaridade são também a causa de toda uma sorte
de reveses dos quais todos tentamos, nós, psicólogos sociais, desvencilharmo-nos ainda hoje,
10
Segundo o psicólogo social Serge Moscovici, “existem muitos que pensam que um acordo geral sobre tal
definição não é mais problema na psicologia social” (2004, p. 146).
19
recente publicação, “a diversidade nas concepções da própria disciplina tanto quanto de suas
PÉTARD, 2006, p. 25). E já houve quem dissesse, aqui mesmo, entre nós brasileiros, que “a
indefinição da psicologia social e dos professores de psicologia social suscitam nos alunos da
disciplina uma sensação bastante frustradora” (RODRIGUES, 1979, p. 36). Em certa medida,
A segunda classe de reveses, por sua vez, é de ordem econômica e inclui, de certo modo, a
classe anterior. Diz respeito a todos aqueles obstáculos relativos à produção, à distribuição e
ao consumo de seus produtos, sejam eles conceitos, objetos, instrumentos, técnicas, projetos
de intervenção comunitária etc.. Afinal, desde o declínio de sua difusão institucional, por
volta dos anos sessenta, a Psicologia Social tem padecido de uma relativa falta de
credibilidade científica – o que responde, em certa medida, pelo relativo decréscimo dos
investimentos destinados às suas pesquisas, quando comparados à sua “época de ouro”, e pela
relativa suspeita com que é recebida socialmente, e que julgamos poder contribuir para a
20
Eis aí, portanto, ainda que sumariamente, alguns dos motivos pelos quais ainda hoje nos
parece possível que recoloquemos, todos nós, com maior ou menor ingenuidade, a seguinte
11
A partir de recente pesquisa estatística, constatou-se que a produção científica brasileira nos programas de pós-
graduação em Psicologia Social tem crescido vertiginosamente, a ponto de sua produção já representar mais da
metade da produção em Psicologia (YAMAMOTO, 2007). Todavia, isso não significa dizer que houve ganho no
que tange à sua credibilidade. Nossa hipótese é que esse “crescimento” deve-se justa e exclusivamente à
indefinição em torno do que ela representa. Esse, assim nos parece, é o motivo para tamanho acréscimo no
número de suas publicações, haja vista que é suficiente uma pesquisa em Psicologia não ser experimental para
capitular-se designá-la “social”. Como veremos adiante, no entanto, sob o nome vago de Psicologia Social
congregam-se as teorias as mais divergentes e as práticas as mais diversas.
21
A julgar pelas palavras de alguns outrora proeminentes psicólogos sociais, a Psicologia Social
é o que é, e ponto final. É o que dão a entender, por exemplo, as palavras de Jonathan
Freedman, Merrill Carlsmith e David Sears, ao constatarem que, “de certa forma, [a
Psicologia Social] é definida por aquilo em que trabalham as pessoas que se consideram
psicólogos sociais e pelo que aparece publicado nas revistas de Psicologia Social” (1976, p.
9); é o que também concluem, por exemplo, os psicólogos sociais Chester Insko e John
Schopler, para quem, se é verdade que a Psicologia Social não sabe bem o que ela é, ela deve
ao menos saber que não pode deixar de ser a disciplina cujo estudo interessa àqueles que se
É forçoso reconhecer, no entanto, que essas afirmações, ainda que não as possamos
12
No original, lemos: “with tongue in cheek we can define social psychology as that discipline which people
who call themselves social psychologists are interested in study” (INSKO & SCHOPLER, 1972, p. xiii-xiv).
Poder-se-ia, certamente, contestar a autoridade dos autores supracitados. Pertencendo à variante experimental da
Psicologia Social, seus julgamentos poderiam apenas refletir a ignorância e a incompreensão daqueles que,
voluntaria ou involuntariamente, enganam-se ao tomar a parte pelo todo. Logo veremos, porém, que a
dificuldade quanto à definição e delimitação teórico-metodológica da Psicologia Social não se confina à opinião
de uns poucos pesquisadores supostamente enviesados. Dela, como veremos mais adiante, dão também
testemunho outros ilustres psicólogos sociais, dentre os quais podemos destacar os nomes de Gustav Jahoda
(2007), Robert Farr (2004) e Serge Moscovici (2006).
22
de contas, nada parecem acrescentar a quem porventura venha a indagar-se sobre o que
devemos (ou não devemos) pôr daqui em diante sob a rubrica de uma ciência que, quer
queira, quer não queira, compreende uma extensão relativamente grande da totalidade do
território psicológico.
A Psicologia Social, apesar de sua indiscutível contribuição para os rumos tomados pela
fez, não faz e talvez nunca venha a fazer um, a constituir um domínio perfeitamente
compartilhados pela totalidade absoluta de seus fiéis representantes. Ou antes, é provável que
a sua unidade jamais venha a ser aquela outorgada por uma definição, a unidade de um
conceito expressa por um juízo. Afinal, quando têm de se ocupar em definir o âmbito de suas
investigações e quando se lhes pede que precisem a maneira pela qual procedem; quando
interrogados sobre o objeto e o método de seu saber e de sua prática, os psicólogos sociais
que pouco ou quase nada parece escapar de sua alçada. E assim também as “abordagens”, a
ponto de parecer possível tudo poder ser dito ou feito, não importando muito a maneira.
Como disseram certa vez três de seus representantes franceses, “a desgraça é que os
‘psicólogos sociais’ acabam por se ocupar de quase tudo e não há disciplina que diga respeito
Esse estado de coisas poder-se-ia, a princípio, atribuí-lo à divergência que divide em dois
Essa constatação, no entanto, embora relativa e historicamente justa, não parece contribuir
Seja como for, e de acordo com as palavras de James M. M. Good, em artigo bastante
disciplinas humanas, a Psicologia Social tem sido um domínio com conceitos discutíveis”
bibliográfica, viveriam constantemente sob o efeito de uma “desunião endêmica” (p. 398),
institucional.
Entretanto, esse estado de indefinição ou de desunião não se deve, como se poderia supor, à
excessiva cautela ou ao relativo pudor de seus representantes – com efeito, sempre possíveis.
Afinal, muito preocupados em não limitar desde cedo o desenvolvimento e o êxito de uma
ciência tão promissora, seria mesmo razoável que os psicólogos sociais abstivessem-se de
dizer o que ela é ou prescrever o que ela devesse ser. Muito contrariamente, porém, é da vasta
variedade de suas definições que a Psicologia Social recolhe a sua flagrante indeterminação, e
uma rápida apreciação de suas últimas publicações bastaria para que nos apercebêssemos
24
todos de que é quase lei que os psicólogos sociais comecem um livro ou um artigo por um
novo e entusiasmado ensaio de definição. Daí uma variedade de orientações quase equivalente
semelhante àqueles estágios pré-paradigmáticos de que nos fala Thomas Kuhn em sua
Conforme o psicólogo social Ricardo Burmester, “como objeto de estudo a psicologia social é
evidentemente difícil de captar” (1988, p. 4). Como veremos adiante, muitos psicólogos
sociais admitem que a Psicologia Social designa um conjunto bastante heterogêneo de saberes
que se aplicam; b) quanto aos métodos de que se valem seus representantes ou quanto aos
Assim, a Psicologia Social experimental tenderia a ser, de acordo com as palavras de Rom
‘por detrás’ destas correlações” (1999, p. 43). Ainda segundo Harré, os psicólogos sociais
A psicologia “discursiva”, por sua vez, que Harré faz constar no rol das “psicologias
alternativas” (p. 44), tende a ser “concreta e analítica” (p. 44). Com isso desejariam seus
representantes dizer que ela se recusa a admitir o corte operado pelo objetivismo entre o
13
Segundo Thomas Kuhn, “quando um cientista pode considerar um paradigma como certo, não tem mais
necessidade, nos seus trabalhos mais importantes, de tentar construir seu campo de estudos começando pelos
primeiros princípios e justificando o uso de cada conceito introduzido” (1989, p. 40).
25
operadas segundo suas coordenadas. De acordo com Harré, o que se busca nesta forma de
imanentes ao que as pessoas estão fazendo, e retirar do fluxo turbulento da vida cotidiana tais
manifesta-se, no entanto, segundo níveis ou critérios variados. O psicólogo social Robert Farr,
por exemplo, em sua obra intitulada As raízes da Psicologia Social moderna (2004), teria se
verificada entre as suas partes que deveria ser atribuída à diferença entre as suas
Há pouco, listamos três pontos segundo os quais os psicólogos sociais divergem quando se
põem a definir sua ciência: objetos, métodos e propósitos. Esses três pontos de diferenciação
não são, porém, sem relação uns com os outros. Dependem, em última instância, da
se conhecê-lo. Suas opções epistemológicas determinam, cada qual a sua maneira, o estatuto a
ser conferido aos seus objetos e os procedimentos necessários para o seu conhecimento.
Esse assunto, no entanto, nós o reservaremos à outra ocasião. Por ora, gostaríamos apenas de
salientar que essa heterogeneidade não é uma característica que os psicólogos sociais
26
desconheçam. Ainda porque, conforme esperamos poder mostrar logo adiante, os psicólogos
sociais sempre estiveram às voltas com a indefinição de sua ciência. Hoje, mais do que nunca,
eles parecem saber que a Psicologia Social não tem um objeto e um método que lhe sejam
próprios, ou que não há acordo entre todos os seus representantes em torno do que deve ser
estudado pela Psicologia Social e de como eles devem encaminhar esses seus estudos.
Entretanto, ainda que, sem dúvida alguma, os próprios psicólogos sociais tenham insistido
sobre o caráter indefinido e impreciso de sua ciência, não é sempre claro para todos que essa
Uma primeira prova de que esse estado de indefinição não lhes é desconhecido pode ser dada
pelas palavras do psicólogo social Serge Moscovici. Há décadas atrás, motivado pelo desejo
de estabelecer uma nova base epistemológica para a Psicologia Social, Moscovici afirmara
que “devemos admitir que a psicologia social não é realmente uma ciência” (2004, p. 128).
Além disso, a indeterminação da Psicologia Social, não bastasse estender-se pelo curso de
mais de um século, também não reconhece fronteiras espaciais, limites geográficos. Como
assinalou o psicólogo social Serge Guimond, “há muitas variações segundo os países” 14 .
Poder-se-ia, com efeito, dizer que um continente é suficientemente extenso para abrigar
14
Cf. GUIMOND, S. (2002). Serge Guimond. Entrevista concedida a Michaël Dambrun em agosto de 2002.
Disponível em: www.psychologie-sociale.org/pdfEntretiens/Guimond_2002.pdf.
27
posições antagônicas, perspectivas concorrentes, mas mesmo um país parece ser capaz de
Aliás, em 1928, na primeira edição de sua Introdução à Psicologia Coletiva (1960), Charles
não parece que tenha sido estabelecido neste terreno um acordo satisfatório,
entre os pesquisadores, sobre a natureza e o caráter de seus estudos. Daí uma
impressão penosa de confusão e desordem quando se passa, nessas matérias,
dos autores alemães aos italianos, ingleses, americanos ou franceses, ou
mesmo, em cada língua, de um autor a outro (1960, p. 8).
Estaríamos, no entanto, sendo justos? Afinal, a Psicologia Social sempre foi uma daquelas
protociências que se arrogam desde seu nascimento o direito de não saber o que são por não
terem ainda alcançado sua tão sonhada maioridade. Sendo assim, a constatação de Blondel,
datando do início do século XX, não seria de espantar. Confusão e desordem devendo-se
Isso não foi, porém, o que efetivamente aconteceu. Recentemente, o psicólogo social Michel-
15
Cf. ROUQUETTE, M.-L. (2001). Michel-Louis Rouquette. Entrevista concedida a Sylvain Delouvée em
dezembro de 2001. Disponível em: www.psychologie-sociale.org/pdfEntretiens/Rouquette_2001.pdf.
28
Assim, que a sua indefinição seja grande e que essa indefinição não se tenha ainda dissipado
são coisas sobre a qual não pode haver dúvida. Afinal, arrolássemos todas as definições que
dela já se deu e somássemos a estas outras que hoje vigoram, submeteríamos o leitor a uma
experiência desconcertante, tamanho o disparate que há nelas entre si, tamanho o desacordo
que há entre o que nelas se expressa e o que ela, a Psicologia Social, efetivamente é.
Em 1966, o psicólogo social norte-americano Leon Festinger, “um dos líderes, se não o líder
dos psicólogos sociais experimentais” (MOSCOVICI & MARKOVÁ, 2006, p. 16, itálico do
autor), via no “desenvolvimento sem paralelo” que a disciplina sofrera a razão para tão baixo
Alguns anos mais tarde, porém, em 1979, o psicólogo social francês Jacques-Phillipe Leyens
confessava-nos que “é mais fácil nomear os psicólogos sociais do que definir a unidade dos
Além dele, o psicólogo social Aroldo Rodrigues dizia-nos, à mesma época, que
autor,
29
A confiarmos no que vêm relatando seus representantes, não deve restar dúvida quanto ao
precisa, a unidade de sua ciência. Assim é que a Psicologia Social, quando não figura como
parte da Psicologia Geral, vem definida negativamente como uma ciência não-experimental
ou “social”, sem que possamos estar certos do que esse termo significa.
(FONSECA in STREY et al., 2003, p. 42), seja dado o nome que se der, vários autores já a
relataram. As linhas anteriores desejaram mostrar, porém, que esse estado de coisas não
pertence, de modo algum, ao passado da Psicologia Social. Aliás, segundo a psicóloga social
Tânia Maria Galli da Fonseca, no estado atual da Psicologia Social podemos constatar, muito
pelo contrário, “pluralizações diversas que apontam para um quadro de fragmentação antes do
que para a unidade” (in STREY et al., 2003, p. 42). Ainda segundo a autora,
os bastidores do longo processo que fez da Psicologia Social uma ciência internacional.
que “a dificuldade (...) referente à identidade da psicologia social não foi resolvida e (...)
psicólogo social Gustav Jahoda afirmou algo semelhante. Segundo Jahoda, “mesmo hoje há
uma falta de consenso sobre aquilo que a psicologia é ou deva ser” (2007, p. 2).
Contudo, não apenas as definições são muitas. Igualmente variados são os motivos ou as
causas a que os psicólogos sociais recorrem para justificar esse estado de indefinição.
Psicologia e à Sociologia;
apoiando-se, portanto, numa determinada filosofia da história das ciências (Thomas Kuhn em
mente);
31
d) à variação das estruturas sociais nas quais o saber psicossociológico se elabora e ao qual
bastante difundida).
A seguir, enumeraremos cada um desses motivos, avaliando, sempre que possível, sua
plausibilidade e coerência.
Uma das maneiras mais pobres pelas quais alguns psicólogos sociais procuram compreender
Social é uma ciência ainda muito jovem. Desse “argumento”, dão-nos testemunho as palavras
de Rodrigues, para quem é forçoso reconhecer que a Psicologia é “uma ciência muito nova”
(1979, p. 85). De acordo com o autor, “na melhor das hipóteses, diremos que ela tem cerca de
120 anos. Ora, uma ciência de 120 anos é uma ciência incipiente” (1979, p. 85).
explicada chamando-a uma ‘ciência jovem’; seu estado não é comparável com aquele da
física no seu começo, por exemplo. Na psicologia, o que há são métodos experimentais e
Além disso, o infortúnio desse argumento é que ele exige dos psicólogos sociais qualquer
coisa da ordem de uma esperança cega num futuro a todo instante renovado. O que não é,
afinal, sem relação com uma determinada opção epistemológica. Pois este argumento parece
conferir a uma ciência, seja ela qual for, a unidade que lhe falta.
32
Psicologia Social contemporânea encontraria suas raízes no fato histórico de que essa ciência
lado, da Sociologia, do outro). Isso, assim argumentam, teria feito com que ela herdasse
(FARR, 2004; MOSCOVICI, 1992). A Psicologia Social seria, portanto, uma ciência
psicossocial” (in FESTINGER & KATZ, 1974, p.2) dever-se-ia à ocasião de a Psicologia
Social ser uma “ciência de fronteira” (p. 9). Conforme Newcomb, “além dos riscos que
cercam todos os tipos de pesquisa social, a psicologia social está sujeita a algumas
Esse argumento é, de certa forma, aquele que fora empregado por Robert Farr, em seu Raízes
da Psicologia Social Moderna (2004). De acordo com Farr, haveria duas formas de
Psicologia Social. Ao lado de uma Psicologia Social psicológica, concebida como parte da
Psicologia Geral, haveria uma Psicologia Social sociológica, mais próxima à Sociologia e às
É curioso notar, porém, que, embora a Psicologia Social possa mesmo ter sido concebida
relativamente ignorada, seja em sua formação histórica, seja em sua configuração epistêmica
atual, e isso tanto por parte de muitos psicólogos quanto por parcela significativa dos
cientistas sociais, que no preconceito que insistem em nutrir a seu respeito parecem apenas
querer velar as incongruências e os impasses de que sofrem suas próprias ciências. Aliás,
quanto a esse ponto, são reveladoras as palavras de Burmester. Segundo este autor,
Não é raro vermos psicólogos sociais tentando justificar a indefinição de sua ciência apoiados
no conceito de “paradigma”, tal como fora definido em 1962 por Thomas Kuhn em sua
filosofia da história das revoluções científicas 16 . Para eles, após um período “normal”,
caracterizado pelo consenso de seus representantes em torno dos conceitos, dos métodos e dos
Social teria entrado num período de “crise paradigmática” 17 . Essa crise, a que se
16
Não obstante o próprio autor ter sugerido que o conceito talvez não pudesse aplicar-se ao exame da história
das ciências sociais. Conforme lemos em Thomas Kuhn, “permanece em aberto a questão a respeito de que áreas
da ciência social já adquiriram tais paradigmas” (1989, p. 35). Aliás, como bem disse Rodrigues, “quase
podemos dizer que esta ciência – perdoem-me a irreverência – muda de paradigma como se muda de roupa, ou
talvez que nenhum paradigma foi ainda aceito em psicologia” (1979, p. 18).
17
Conforme as palavras de Rodrigues, “houve épocas de maior consenso no que diz respeito aos métodos, às
finalidades e ao enfoque geral dado aos problemas com que a disciplina se confronta” (1979, p. 17).
34
Essa interpretação, porém, que faz a indefinição da Psicologia Social parecer um mero
acidente, não nos parece inteiramente justa. Mesmo porque, embora o conceito de paradigma
pareça ajustar-se em alguns aspectos àquilo que se passou à Psicologia Social (em especial, ao
momento de sua experimentalização (FARR, 2004)), ele deixa de adequar-se em vários outros
aspectos.
desenvolvimento científico (p. 31). Ele diz respeito a “um corpo qualquer de crenças comuns”
cientistas em sua prática e que são “revelados nos seus manuais, conferências e exercícios de
laboratório” (p. 67). Para ele, as crises paradigmáticas seriam causadas, principalmente, pela
dificuldade dos cientistas em apreender um novo fenômeno a partir dos recursos disponíveis,
pelos recursos fornecidos pelo paradigma vigente. Elas seriam, assim, motivadas pelas
pesquisa e por uma progressiva participação nos currículos universitários (FARR, 2004). E,
têm geralmente estado associadas com o momento em que um grupo aceita pela primeira vez
Mas é forçoso reconhecer que as semelhanças entre a história da Psicologia Social e a história
das revoluções científicas tais como Kuhn a descreve acabam por aí. Afinal, um paradigma
diz respeito, para Thomas Kuhn, a algo mais do que a mera difusão institucional de uma
Enfim, quando nos pomos a conhecer aquilo que os psicólogos sociais efetivamente dizem ou
fazem, tudo indica que eles não estão seguros de seus primeiros princípios. Ou melhor, tudo
nos leva a crer que eles não compartilham os mesmos princípios. E esse é, entretanto, uma das
principais funções de um novo paradigma. Segundo Kuhn, “um paradigma permite explicar
os eventos retrospectivos” (p. 44), ele “dispensa o cientista da necessidade de começar dos
primeiros princípios” (p. 39). No entanto, segundo dois psicólogos sociais brasileiros, “na
Psicologia Social, esse não é o caso. Ao contrário, há intensas disputas, pouca tolerância sobre
18
É bem verdade, no entanto, que o conceito de paradigma, mesmo em Thomas Kuhn, não é um conceito bem
definido. Coisa que, aliás, o próprio autor reconhece. Pois, segundo ele, um paradigma pode ser concebido de
duas maneiras: ou como um conjunto de crenças (1989, p. 23) ou de regras que orientam a prática científica (p.
26), ou, ainda, como um conjunto de exemplos compartilhados pelos cientistas em um determinado momento da
história de sua ciência (p. 232). Tanto em um quanto noutro caso, porém, um paradigma teria como função
definir os problemas possíveis e as soluções igualmente possíveis (p. 25), assim como a totalidade dos objetos
cognoscíveis (p. 26). Aliás, segundo Kuhn, é a sua própria capacidade de “restrição fenomênica” o que permite
uma compreensão mais aguda dos fenômenos (p. 45).
36
pode ser encontrado na pesquisa genealógica empreendida há alguns anos pela psicóloga
social Rosane Neves da Silva, publicada recentemente sob o título A invenção da Psicologia
Social (2005). Neste livro, Silva teria decidido, segundo suas próprias palavras, “encarar de
frente” a questão de saber o que é, afinal de contas, a Psicologia Social (p. 9). Seu argumento,
constatada no interior da Psicologia Social como um problema a ser solucionado, mas como
um indício pelo qual podemos averiguar o caráter próprio dessa ciência. Consiste ele,
sumariamente, em apresentar a diversidade que acomete essa ciência como sendo derivada da
segundo Silva, “em torno da interação social dos indivíduos” (p. 15).
Lançando mão das “ferramentas da genealogia foucaultiana” (p. 10), Silva sugere que
admitamos, em primeiro lugar, que a Psicologia Social não tem, como se poderia supor, um
objeto real. Que ela não tem um objeto que permanece sempre o mesmo, pairando sobre a
ganga dos acontecimentos, esperando apenas a feliz ocasião de ser enunciado pelo psicólogo
vinculadas aos modos particulares pelos quais se configurou o seu objeto. Isso porque,
segundo Silva, uma ilusão comum entre os psicólogos sociais consistiria na identificação
entre as relações sociais e a noção de sociabilidade. Essa operação teria como efeito a
supressão da historicidade do modo pelo qual os homens têm se relacionado aqui e ali, nessa
Conforme a autora, “precisamos admitir que não vamos encontrar apenas uma configuração
do social, mas várias: cada formação histórica cria um campo de possibilidades de onde
E assim, amparando-se numa discussão sobre “as condições de possibilidade para a criação de
social’” (p. 16), Silva descreve-nos duas configurações sociais ou dois modelos de
conceitualização do social. Isso porque, segundo a autora, esses modelos respondem, cada
qual a sua maneira, por dispositivos particulares de ordenação das relações entre os homens.
Segundo Silva, eles “traduzem um certo arranjo entre as estratégias de poder e as técnicas de
(p. 18).
Assim sendo, num primeiro momento, as relações sociais teriam sido reguladas sem que
suas “‘disfunções’ são reabsorvidas no próprio tecido das relações sociais informais” (p. 18).
A partir do século XIII, porém, essas redes informais teriam dado lugar àquilo que Castell
chamara de “gestão racional da indigência” (apud SILVA, 2005, p. 19). Daí em diante,
p. 19).
Silva descreve-nos, em seguida, um modelo resultante de uma “fratura entre uma ordem
jurídico-política fundada sobre a igual soberania de todos, e uma ordem econômica que
acarreta um aumento da miséria” (p. 23). Segundo a autora, “o importante é que agora, nesta
objeto teria surgido a partir do arranjo de acontecimentos bastante precisos, decorrentes das
Mais precisamente, sua indeterminação dever-se-ia ao fato de seu objeto ter-se apresentado de
Segundo Silva, a Psicologia Social deve ser entendida, antes de tudo, como um dispositivo
Revoluções Francesa e Industrial. Segundo ela, “o que nos interessa para o desenvolvimento
de nossa análise é poder compreender os dispositivos criados por uma determinada formação
social no sentido de resolver os problemas aos quais ela se vê confrontada” (p. 17).
nos últimos vinte anos, em razão da contribuição de linhas de pesquisa bastante diversas,
originárias de áreas as mais distintas, tais como os estudos sociais da ciência, a epistemologia
Conforme as palavras de Thomas F. Gieryn, este estudo teria como objetivo “a atribuição de
social” (apud GOOD, 2000, p. 386). Este “trabalho de delimitação” (boundary work) deveria,
assim, ser compreendido como o meio a partir do qual a “autoridade cognitiva” de disciplinas
é restringido, protegido, expandido ou, ainda, reforçado (p. 387). Segundo Good, a
Entretanto, apesar desse esforço recente de distinção, a maioria dos psicólogos sociais, até
onde pudemos ver, não parecem fazer diferença entre o conceito de ciência e o conceito de
designassem o mesmo objeto, como se fosse evidente a identidade entre esses termos, ou
Acontece que uma coisa é o saber, a ciência, enquanto conjunto coerente de princípios,
destinado à sua propagação e à sua reprodução. De modo que, ainda que nós pudéssemos
consentir que à Psicologia Social fosse reservado o conceito de ciência, nós não estaríamos
40
seguros de que a Psicologia Social possa ser definida como uma disciplina. E, menos ainda,
de que ela deva ser definida como uma “disciplina específica”19. Ou melhor: à diferença do
que ocorre a alguns psicólogos sociais, nós não concordamos que a Psicologia Social seja
uma disciplina. Pois, afinal, a não ser que se queira fazer um uso indiscriminado do conceito,
(FOUCAULT, 2002, p. 30). Ela faz parte, ao lado do comentário e do autor, daqueles
Uma disciplina é, no entanto, definida também como um sistema. Um sistema, seja dito, a
enunciados a partir da transmissão de algumas regras particulares, ela forma “uma espécie de
sistema anônimo à disposição de quem quer ou pode servir-se dele, sem que seu sentido ou
sua validade estejam ligados a quem sucedeu ser seu inventor” (FOUCAULT, 2002, p. 30,
itálico nosso).
Esse aspecto sistêmico de toda disciplina parece, no entanto, ter escapado à grande maioria
dos psicólogos sociais. Pois é preciso lembrar que um sistema é sempre definido como uma
totalidade em que as suas partes são solidárias, cada qual contribuindo para a definição de
Antes, suas partes, atentando permanentemente umas contra as outras, fazem dessa ciência um
território indefinido, marcado, como já se disse, por “intensas disputas, pouca tolerância sobre
19
Segundo Robert Farr, “se a psicologia social é uma disciplina específica, e eu creio que ela o é, deve, então,
interessar-se de modo particular com a relação entre o indivíduo e a sociedade” (2004, p. 192, itálico nosso).
41
trata de definir sua ciência. Fizemos isso, tanto quanto possível, através de seu próprio
testemunho, e vimos, assim, que, a despeito de sua indiscutível boa vontade, os psicólogos
sociais costumam dar à Psicologia Social o perfil que lhes convém, atribuindo-lhe objetos,
trabalhos que se tem posto sob o seu nome, o que constatamos não é diferente: ora
1969), ora como uma ciência histórica (GERGEN, 1973), ora como uma ciência hermenêutica
(MOSCOVICI, 2004; IÑIGUEZ, 2004), ora uma ciência da ideologia (MOSCOVICI, 2004;
LANE, 1984). Ora, ainda, mais recentemente, ela é apresentada como um setor da ciência
Mas vimos também que, apesar dos psicólogos sociais já terem definido a Psicologia Social
de inúmeras maneiras, não é verdade que eles ignorem completamente a diferença entre as
suas definições. Pelo contrário, conhecem a imensa disputa que caracteriza a história de seu
domínio. Conforme mostramos, eles próprios lançaram mão de inúmeros argumentos para
justificar o estado indefinido de sua ciência – muitas vezes com a intenção de fazer parecer
20
Conforme assinalam os neurocientistas sociais Jean Keenan e Julian Decety, editores do periódico Social
Neuroscience, “muitos dos comportamentos sociais em que estamos interessados, tais como a linguagem e os
comportamentos sexuais, diferem tão significativamente entre as espécies que estes estudos limitam nosso
entendimento” (2006, p. 3).
43
Mas, mesmo que os psicólogos sociais tenham desde sempre se empenhado em definir a sua
ciência e que eles não desconheçam completamente a sua heterogeneidade, eles parecem não
atentar para o fato de que é justamente no instante em que a definem que, tomando a parte
pelo todo e definindo a Psicologia Social a partir da Psicologia Social que fazem, excluem
Poder-se-ia, no entanto, objetar que muitas ciências são igualmente compostas por partes e
que isso, afinal de contas, não parece constituir um problema. Poderia, aliás, ser apenas o caso
de a diferença verificada entre as suas partes não ser mais do que o efeito de um processo de
especialização. Pois, com efeito, algumas ciência, muito frequentemente, julgam mesmo
necessário que suas partes ou seus representantes conquistem uma relativa autonomia, para o
bem e o desenvolvimento do próprio todo do qual são partes. A especialização das partes
Acontece que, no que tange à Psicologia Social, a diferença observada entre as suas partes
parece ser de outra natureza. Pois as suas partes, longe de serem solidárias umas às outras,
disputa caracteriza-se pelo fato de que, nela, cada parte reivindica para si o direito de falar em
Entretanto, essa disputa, embora reconhecida, costuma ser sempre apresentada sob a forma
simplificada de uma divergência ou de uma disputa entre duas partes apenas. Assim é que,
21
Veremos, no capítulo seguinte, que essa disputa manifesta-se claramente na estratégia adotada, nos Estados
Unidos, pelos irmãos Allport, no momento em que afirmaram que a Psicologia Social verdadeiramente científica
deveria ser concebida, dali em diante, como uma ciência positiva e experimental do indivíduo.
44
etc.. Caberia, no entanto, perguntarmos: trata-se mesmo de uma divergência? Seria mesmo o
caso de estarmos diante de uma luta em que se opõem apenas duas alternativas?
Uma observação de dois psicólogos sociais brasileiros parece fornecer uma resposta negativa
a essa pergunta. Segundo eles, “a bibliografia sobre pesquisa em Psicologia Social é extensa e
diferenciados sobre a atividade de pesquisar” (TITTONI & JACQUES in STREY et al., 2003,
p. 83). Além disso, conforme veremos logo adiante, tem sido cada vez mais frequente o
psicólogos sociais entrem em consenso sobre seus métodos, seus objetos e sobre a finalidade
de sua ciência.
ou que ela hoje se dá; a despeito da flagrante diferença de suas inúmeras manifestações
segundo as diferenças de seus países de origem, dos acontecimentos que lhe suscitaram ou
dos caprichos de seus inumeráveis representantes, ela, a Psicologia Social, é sempre definida
ou apresentada como uma ciência. Essa, a bem da verdade, parece ser a única coisa da qual
os psicólogos sociais estão seguros e, ao que tudo indica, é tudo quanto podem dizer sem que
Esse predicado, porém, longe de apaziguar-nos em nossa inquietação, é, ele também, a causa
de outras tantas indagações. Pois ele não nos diz, afinal, muita coisa, uma vez que, como se
Acontece que muitos psicólogos sociais costumam ignorar que há ainda outra orientação
compondo o rol das epistemologias da Psicologia Social. Que a sua heterogeneidade não se
Segundo Robert Farr, a Psicologia Social teria emergido nos Estados Unidos a partir,
fundamentação” (in STREY et al., 2003, p. 79). Ou seja: mesmo reconhecendo o caráter
linguístico ou simbólico dos fenômenos de que trata, mesmo admitindo que os seus
fenômenos são históricos, ainda assim os psicólogos sociais divergem, lançando mão de
Segundo Ibáñez, “é à filosofia analítica, em suas várias orientações e devido tanto a seus
fracassos como a seus êxitos que devemos atribuir a expansão do interesse pela linguagem nas
Se a oposição entre positivismo e fenomenologia não é suficiente para dar conta da totalidade
das variações da Psicologia Social, da diversidade de seus temas, seus conceitos, seus
Arendt, “os modelos subjacentes de ciência das práticas psicológicas” (2004, p. 20).
exame crítico da Psicologia Social segundo o ponto de vista de sua totalidade e de sua
particular da atividade científica, e que nos detenhamos unicamente em descrevê-las nos seus
traços fundamentais.
Dentre o grande número de propostas filosóficas a que se dá o nome positivismo, uma das
século XIX a partir das reflexões do francês Augusto Comte (1798-1857). Essa doutrina,
inspirada pelo progressivo avanço das ciências empíricas da natureza (Newton, na Física;
anomia social vivida pela França nos anos seguintes à Revolução. De acordo com Wolf
Lepenies,
Mas o positivismo importa-nos aqui apenas na medida em que contribuiu para a manifestação
de uma Psicologia Social bastante particular. Afinal, essa doutrina determinou, em grande
medida, a maneira como as ciências humanas compreenderam o seu valor e orientaram a sua
47
afirmação de Theodore Newcomb, para quem, “no credo do cientista, o primeiro artigo de fé é
sua convicção de que, sabendo arguir sobre a realidade empírica, poderá enunciar leis
segundo as quais ela se manifesta” (in FESTINGER & KATZ, 1972, p. 1).
Segundo Farr, “muitos dos erros e vieses nas histórias da psicologia e da psicologia social são
uma consequência direta de se aceitar uma filosofia positivista de ciência” (2004, p. 193).
O positivismo, tal como ele foi defendido por Comte, comporta uma teoria do conhecimento,
fundamentais:
1) ele postula a superioridade da ciência quantos aos demais saberes ou quanto às demais
fenômenos.
reguladora de nossos conhecimentos, sendo que a ela apenas caberia a função de permitir o
enunciado das leis imanentes aos fenômenos. Segundo Comte, o método científico resume-se
48
de uma teoria geral da evolução do conhecimento, na qual Comte lança mão de sua conhecida
lei dos três estágios. Segundo esta teoria, a humanidade, ao longo de sua longa história e ao
curso de seus esforços de compreensão do mundo, teriam passaram por três estágios
1º) um estágio teológico, em que os homens buscam explicar os fenômenos por causas
substituindo as causas primeiras por causas mais gerais, mas ainda sobrenaturais;
3º) o estágio positivo, no qual os homens explicam os fenômenos a partir de causas segundas,
Não é difícil notar que, por essas características, o Positivismo vincula-se àquela tradição
Pois, afinal, o empirismo, levado às suas últimas consequências, não admite a necessidade
dos juízos de experiência, e não atribui validade senão restrita às leis que explicam, em termos
positivismo, pelo contrário, dá um passo além e culmina numa verdadeira ontologia. E essa
ontologia caracteriza-se pela indistinção, no plano dos fenômenos, entre aqueles que dizem
respeito ao homem e aqueles que concernem aos demais objetos. É por essa razão que os seus
49
insistência em afirmar que toda ciência humana não pode prescindir da referência à
intencionalidade imanente aos seus fenômenos. Ou, mais exatamente, ao significado que lhes
é subjacente. Segundo essa variante da Psicologia Social, a omissão dessa “dimensão”, assim
alegam seus representantes, faria com qu perdêssemos a sua especificidade mesma, o seu
físicos.
Esse movimento não é, certamente, uma especificidade da Psicologia Social. Pelo contrário,
nas demais ciências sociais é igualmente corrente a admissão do pressuposto segundo o qual
das práticas culturais que lhes são correlativos, pressuposto que decorre, mais ou menos
psiquismo individual só pode ser compreendido se for interpretado à luz dos contextos
sociais, culturais e históricos que lhe dão sentido. Com essa postura, essa variante da
Psicologia Social vincula-se, com maior ou menor consciência, a uma filosofia bastante
deu o nome alhures de tournant interprétatif das ciências sociais (GRONDIN, 2003, p. 7)
Como, no entanto, essa variante parece compor uma grande parte da Psicologia Social
contemporânea, e como ela parece dizer respeito à grande parte daqueles que se opõem a
Psicologia Social de inspiração positivista, achamos que talvez fosse conveniente dedicar um
Husserl, passando por Hegel, Dilthey, Brentano22 e Schütz, muitos foram os que contribuíram
para o desenvolvimento dessa nova filosofia, considerada por alguns como uma das mais
Tem-se, no entanto, relativa clareza de que essa filosofia tomou em Edmund Husserl (1859-
22
Conforme Dartigues, “a grande contribuição de Brentano consiste de início em distinguir fundamentalmente
os fenômenos psíquicos, que comportam uma intencionalidade, a visada de um objeto, dos fenômenos físicos;
em seguida, em afirmar que esses fenômenos podem ser percebidos e que o modo de percepção original que
deles temos constitui o seu conhecimento fundamental” (2005, p. 15).
51
Como veremos no capítulo seguinte, no final do século XIX, as ciências empíricas do homem
Tornava-se, aos seus porta-vozes, cada vez mais urgente a tarefa de enumerar os seus
princípios, esclarecer os seus fundamentos, tanto quanto maior a necessidade de marcar a sua
deu-se muito recentemente. Data, conforme veremos, do período subsequente à sua difusão
forma de uma simpatia difusa. Pois ela visava, em primeiro lugar, munir a Psicologia Social
de bons argumentos contra o positivismo (há algumas décadas, seu modelo hegemônico de
conhecimento). Pois, assim como para uma parte considerável daqueles psicólogos sociais,
para a fenomenologia a questão também sempre foi a de saber o que dizer do “sujeito
simpatia de grande parte de seus representantes por um dos princípios mais fundamentais
52
Dartigues,
Quando os psicólogos sociais sugerem que atentemos para essa correlação entre sujeito e
objeto, visam, fundamentalmente, que ambas essas noções, que, frequentemente, são
desessencializadas.
Além disso, conforme Dartigues, para a Fenomenologia, “o erro de Descartes é ter concebido
o eu do cogito como uma alma-substância, por conseguinte, como uma coisa (res)
independente, da qual restava saber como poderia entrar em relação às outras coisas,
colocadas por definição como exteriores” (2005, p. 25). Ainda segundo esse autor, para a
Fenomenologia, “consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na
natureza que se trataria, em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem
respectivamente a partir dessa correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original” (2005,
p. 23)
Mas é preciso que nós façamos aqui uma pequena observação. Pois convém salientar que essa
inspiração fenomenológica não faz com que uma parte da Psicologia Social seja,
original entre sujeito e objeto (ou, ainda, entre o psiquismo e o mundo, seja ele natural ou
53
social). Ela não volta os seus esforços, como é o caso para a Fenomenologia, na direção de
elucidar essa correlação. E, como assinala Dartigues, “assim se encontra delimitado o campo
de análise da fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual não
somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende o mundo inteiro” (Ibidem, p. 23).
Assim, o mais correto seria afirmarmos que a Psicologia Social de inspiração fenomenológica
correlativos.
Mas essa recusa de parte da Psicologia Social ao “paradigma cartesiano” pode ser também
interpretada como uma crítica ao conhecimento como representação. E esse tema, também
ele, é mais um dos temas caros à Fenomenologia. Em Moura, lemos que “o objeto intencional
da representação é o mesmo que seu objeto exterior” (MOURA, 1989, p. 95), e que, mesmo
em Husserl, “não existe diferença entre o objeto imanente e o objeto efetivo” (p. 95). Ainda
conforme Moura,
Além disso, outro tema recorrente na Fenomenologia e que repercute em parte da Psicologia
Social diz respeito ao caráter constituinte do homem, à sua capacidade de pôr o mundo em
“análise do dinamismo do espírito que dá aos objetos do mundo seu sentido” (2005, p. 22).
54
fenomenológica desejaria “romper com a familiaridade cotidiana” (SÁ, 2005, p. 328), visando
Mas, ainda que admitam esse caráter constituinte, os psicólogos sociais tendem a recusar o
aparição desse mundo e doadora de seu sentido. Esse conceito, porém, os psicólogos sociais
julgam-no demasiado metafísico, preferindo substituí-lo por algumas outras noções, como as
de “processo”, “interação” etc.. Afirmam, assim, que é no processo de interação social que os
Em todo caso, os psicólogos sociais parecem ignorar que o verdadeiro resíduo da redução
fenomenológica não é o sujeito puro, destituído de todo vivido, mas unicamente aquela
correlação que faz com que apreendamos todo objeto como um objeto para nós
que a realidade comporta significação, que o mundo é, em todo caso, “estrutura de sentido,
contexto de significação” (SÁ, 2005, p. 326), e que, além disso, enquanto ser de linguagem, o
homem vive imerso nela e apreende essas significações imediatamente, de onde proviria a
necessidade de sua interpretação? Ou seja: que sentido poderia haver numa pesquisa do
linguagem (langagière) do sentido, e que se abre, daí então, à história (ao invés de se desviar
dela)” (2003, p. 5). Ela não seria nada mais do que a radicalização do princípio descoberto
Para Gergen, a linguagem é uma condição prévia do que chamamos pensamento, seja ele
individual ou social” (apud IÑIGUEZ, 2004, p. 22). O que parece concordar com o projeto
que as coisas não são tão simples: desde que há sentido ou intenção, há já orientação em
direção à palavra, em direção a uma presença significativa que se situa sempre no elemento da
linguagem” (2003, p. 8). Ela partiria, assim, da “descoberta da linguagem como a condição
Assim, o psicólogo social de inspiração fenomenológica, quando ele rejeita como único
recurso a experimentação, ele deseja unicamente atentar para o fato de que, com isso, perde-se
comportam significado.
Como dissemos anteriormente, tem sido frequente entre os psicólogos sociais a referência à
Fenomenologia. Vimos que essa aproximação deveu-se à recusa, explícita naquela filosofia,
experimentais da natureza.
56
Psicologia Social não passou indiferente a esse movimento. Ainda assim, a sua importância
permanece largamente ignorada por grande parte dos psicólogos sociais. Como desejaremos
demonstrar nas linhas seguintes, essa aproximação é consequencia não apenas da crítica aos
(concepção esta que se encontrava presente tanto no Positivismo quanto numa determinada
23
Mais precisamente, à segunda fase de sua filosofia, quando, a partir das críticas de Ramsey e da admissão de
alguns aspectos teóricos do pragmatismo americano, o filósofo austríaco iniciou uma completa reordenação de
sua posição teórica (MELO, 1991, p. 65).
24
Segundo a pesquisadora Inês Lacerda Araújo, “esse modo de ver o conhecimento, a verdade, a essência, como
produto do comportamento linguístico, caracteriza uma filosofia pós-metafísica, antifundacionista, cujo pano de
fundo é a ação [...], para o qual não tem sentido o dualismo empírico/transcendental” (2008, p. 106). Quanto ao
caráter antifundacionista do pragmatismo wittgensteiniano, são esclarecedoras as palavras de Adélio Melo.
Segundo este autor, para Wittgenstein “a Filosofia não pode fundamentar os jogos de linguagem, e muito menos
insurgir-se contra o ‘uso real da linguagem’ que neles é feito. Só pode consistir ainda numa atividade, mas não
numa atividade propriamente crítica. Antes, numa atividade de função exclusivamente terapêutica. Visará evitar
confusões e perplexidades com origem no interior dos jogos de linguagem – ou entre eles -, introduzindo clareza
lá onde existe obscuridade, ou iluminando o ponto em que as regras que deveriam servir a um suposto objetivo,
realmente não servem. Visará, mais genericamente, remediar as várias patologias que se manifestam no domínio
heterogêneo das linguagens” (1991, p. 80).
57
O papel da linguagem
psicólogos sociais interessados em tomar a linguagem (ou, ainda, o discurso) como objeto de
suas considerações (IBÁÑEZ, 2004, p. 19-49). Sob este aspecto, porém, esses psicólogos
sociais em nada difeririam dos psicólogos sociais de inspiração fenomenológica – o que, aliás,
tem contribuído para diminuir ou ocultar sua importância e especificidade. Afinal, como
sobre o caráter simbólico (ou intencional) dos fenômenos humanos e afirmando, assim como
Acontece que há uma diferença fundamental entre essas duas filosofias. Uma diferença que se
inscreve, enfim, na maneira mesma pelas quais ambas compreenderão a própria linguagem.
a) a linguagem passa a ser não mais concebida como mero instrumento de representação,
a não mais ser restringido o seu uso àquele da descrição. Conforme as palavras de
Ibáñez, “a linguagem não só nos diz como é o mundo, ela também o institui; e não se
limita a refletir as coisas do mundo, também atua sobre elas, participando de sua
constituição” (2004, p. 39). Não se ignorará o seu uso descritivo. Entretanto, embora
afirmar que ela pode ser empregada com inúmeras outras finalidades. Insistir-se-á,
b) a linguagem passa a ser concebida como “um conjunto heterogêneo, sem fronteiras
c) criticar-se-á e recusar-se-á não apenas a idéia de que existe apenas uma forma lógica,
passando a admitir-se que, na maioria dos casos, o sentido de uma palavra é o seu uso
25
“Com efeito, certos enunciados constituem literalmente ‘atos de linguagem’ à medida que sua enunciação é
inseparável da modificação ou da criação de um estado de coisas que não poderia surgir independentemente
dessa enunciação” (IBÁÑEZ, 2004, 33-34).
59
Uma noção fundamental dentro dessa filosofia é aquela dos jogos de linguagem. Da teoria da
linguagem:
a) “os jogos de linguagem são maneiras de usar os signos” (KENNY, 1984, p. 140).
b) “um jogo de linguagem é uma unidade estrutural constituída por signos linguísticos,
d) a cada jogo de linguagem está de fato associada uma particular atividade ou forma de
Isso significa dizer que, para o Pragmatismo linguístico, é um equívoco supor que
organização ou, mais exatamente, o manejo dos signos dá-se em abstrato, no vazio. Para ele,
muito pelo contrário, é preciso nunca deixar de considerar os contextos particulares e os fins
institucional de objetivos a realizar” (p. 65). Isso, aliás, explicaria em larga medida a
que a promovera possa melhor ser atribuída ao seu caráter combativo do que propriamente à
Linguagem e transcendentalismo
Segundo Iñiguez, “as pessoas e o mundo social somos o resultado, o produto, de processos
sociais específicos. Em Iñiguez, lemos ainda que “não existem objetos naturais, os objetos são
o que são porque os fazemos, e nós somos tão dependentes deles, como eles de nós” (2004, p.
18), e que “a realidade constrói-se socialmente e os instrumentos com os quais se constrói são
discursivos” (2004, p. 21). Essa posição parece assentar-se perfeitamente na ideia de que “um
jogo de linguagem é uma espécie de paradigma transcendental” (MELO, 1991, p. 76), “uma
forma singularíssima de modelo a priori” (p. 75). Mesmo porque, segundo o pragmatismo, “o
vitais” (p. 73). “Implica-se agora que não existe nem a essência da linguagem nem algo que
possamos chamar a essência do mundo. O que há são jogos de linguagem irredutíveis uns aos
outros, bem como, a eles correlacionados, irredutíveis mundos fenomênicos” (p. 69). Ainda
Podemos dizer, além disso, que essa “virada pragmática’ é o que responde pela progressiva
importância concedida à Psicologia Social do americano George Herbert Mead. Isso porque,
que a linguagem obtinha lugar de destaque. Segundo Adélio Melo, “G. Herbert Mead e John
Dewey [...] tinham vincado a inserção comunitária da linguagem, e a sua íntima associação a
Que a Psicologia Social congregue conceitos, métodos e práticas bastante diversas, isso não
nos impede de tentar compreendê-la em sua inteireza. A sua diversidade não impede, em todo
caso, que nos esforcemos por fazer algumas distinções, e que dentre as suas (quase) infinitas
variações possamos enumerar algumas formas bem definidas. Mesmo porque, como veremos
logo abaixo, foi justamente isso o que fez Robert Farr, ao dividir a Psicologia Social em suas
Acontece, no entanto, que essa divisão não é evidentemente a única possível. Pois, que ela
meu interesse liga-se à história das instituições, e não à história das idéias
(2004, p. 36, itálico nosso).
Como dissemos, a pergunta pela unidade de um determinado âmbito do saber não resulta
social inglês Robert Farr (2004) e veremos que, muito pelo contrário, a história da disciplina
pode muito bem se revelar a luta de contrários, a Psicologia Social oscilando entre uma
assumir (e, de fato, teria assumido) uma forma psicológica ou uma forma sociológica.
Conforme Farr, essas formas da Psicologia Social teriam sido profundamente influenciadas
autor pouco nos fala. O que não deve, porém, ser entendido como um erro, já que, por essa
via, o autor permanece nos limites de sua proposta, nos limites, enfim, do exame histórico do
Esse exame histórico, entretanto, pouco nos informa sobre aquilo que nos convém examinar, e
referente à maneira como cada uma delas compreende e realiza a atividade científica. Para
63
isso, portanto, é preciso que, ao lado da distinção proposta por Robert Farr, ponhamos uma
outra, em certa medida complementar àquela. Uma distinção que diga respeito, não à sua
divergência institucional e histórica, mas uma distinção que traga alguma luz sobre a
A Psicologia Social pode ser dividida em duas outras formas que, embora não sejam
hegemonia do discurso psicossociológico. Pois ela pode assumir, como veremos, uma forma
apresentada por Gustav Jahoda em sua recente história da psicologia social (2007), onde
conclusão de seu livro, Jahoda afirma que a Psicologia Social contemporânea encontrar-se-ia
dividida em:
26
Gergen argumenta que a Psicologia Social experimental é mais um exame das regras históricas de
comportamento do que propriamente a ciência de suas leis imutáveis. O autor, no entanto, não a condena de
todo. Pois, ao fim de seu artigo, afirma que ela pode ser útil, por exemplo, ao fornecer informações à sociedade
sobre hábitos por ela desconhecidos, “desenvolvendo indicadores de disposições psicossociais” e auxiliando na
promoção de uma sociedade menos manipulada e manipulável (2008, p. 482).
64
pelo teste de hipóteses sobre o modo como as mudanças enfrentadas pelos primeiros
seres humanos resultaram em uma arquitetura neural que ainda influencia nosso
comportamento social atual (p. 220). Essa variante, por sua vez, teria se desenvolvido
A Psicologia Social experimental é, hoje, alvo de uma série de críticas. Segundo Eugène
Enriquez,
27
Jahoda refere-se, particularmente, ao desenvolvimento da tecnologia de ressonância magnética. Conforme sua
palavras, “um avanço crucial foi tornado possível pelo advento do Imageamento por Ressonância Magnética
(MRI), fornecendo insights sobre o cérebro vivo” (Op. cit., p. 221).
65
Segundo a célebre definição de Gordon Allport, a Psicologia Social é uma tentativa para
indivíduos são influenciados pela presença real, imaginada ou implícita dos outros (1954).
Algo muito próximo ao que ela veio a se tornar futuramente, quando enfim se converteu
expansão institucional após a Segunda Guerra Mundial, a partir da migração para os Estados
Com efeito, antes da Segunda Guerra Mundial a Psicologia Social européia não conhecia
Guerra Mundial, a Psicologia Social assistiu a um processo de expansão que veio a torná-la
Esse desenvolvimento, porém, não se deu de maneira gratuita. Pois a Psicologia Social, nos
Estados Unidos da América, para conquistar o espaço institucional que alcançara e para obter
o prestígio que chegara a obter, teve de ceder quanto aos valores vigentes, tanto quanto à
americanas.
28
Essa contingência histórica permitiu que Cartwright viesse a afirmar, curiosamente, ter sido Hitler a mais
importante personagem da história da Psicologia Social (FARR, 2004, p. 183).
66
Entretanto, é preciso lembrar que, “nos anos de 1920, os psicólogos não estavam em pleno
Conforme Clare MacMartin e Andrew Winston, muitos psicólogos sociais usavam o termo
apenas com o intuito de marcar uma diferença entre pesquisas empíricas e não-empíricas (p.
349). Segundo eles, “a maioria dos primeiros textos psicossociológicos [...] não contém uma
outro método em psicologia social” (p. 350). Assim, “a dominação de uma definição restrita
apreender-lhes sua lei imanente. É, dessa forma, um conhecimento das leis segundo as quais
aquela que se tem desenvolvido sob o nome de Neurociência Social. Essa variante da
67
embora nem sempre harmônica” (2000, p. 3). Ainda segundo esses autores, a Neurociência
de Floyd Allport, que foi, a princípio, quem fortemente contribuiu para que a sociedade
Social caracterizou-se pelo rechaço a toda espécie de reflexão que parecesse mantê-la sob a
égide da filosofia européia. Conceitos como os de mente grupal (group mind), do inglês
47).
de abandonar seus países de origem, refugiando-se da ameaça imposta pelo nazismo (FARR,
29
Essa é, aliás, a grande diferença, ignorada por muitos psicólogos sociais contrários ao experimentalismo, entre
essa forma de Psicologia Social e aquela desenvolvida décadas atrás.
68
2004, p. 183). Nessa época, os Estados Unidos da América e União Soviética, as duas grandes
assinala o psicólogo social cubano Fernando González Rey, formado na tradição soviética,
“se analisarmos a produção da psicologia soviética nas décadas de 1950 e 1960, vamos
27)
A Psicologia Social não-experimental, por sua vez, é mais antiga, tendo se originado
Conforme dissemos logo de início, em 1973, o psicólogo social Kenneth J. Gergen publicou
um artigo intitulado A Psicologia Social como história. Neste artigo, Gergen dizia-nos que
“uma análise da teoria e da pesquisa em psicologia social revela que, enquanto os métodos de
30
Há, sem dúvida alguma, muitas outras variantes dessa forma de Psicologia Social. Ainda porque, de certo
modo, a Psicologia Social não-experimental é um domínio quase ilimitado, variando conforme os compromissos
políticos firmados por seus representantes. Como exemplo, poderíamos citar a Psicossociologia Clínica.
Notamos, porém, que essa variante repete, ela também, os mesmos argumentos e ampara-se nos mesmos
princípios que as variantes de que nos ocuparemos, definindo-se, de modo geral, negativamente, por oposição ao
experimentalismo. Segundo Eugène Enriquez, “a psicossociologia clínica, como se sabe, tenta o contrário, ver o
indivíduo em sua totalidade, com seu psiquismo, suas interações com os outros, em um conjunto em que há
normas sociais e maneiras de reagir a essas normas, de ver como elas são interiorizadas, como podem ser
transgredidas, reorganizadas, com a idéia fundamental de fazer, ao contrário, com que os indivíduos,
compreendendo bem a situação em que se encontram, possam efetivamente se tornar mais autônomos, em
relação às determinações sociais nas quais se encontram” (2006, p. 264-265).
69
O Construcionismo Social, no entanto, não nasceu na Psicologia Social. Pois esta doutrina, a
sociólogos Peter Berger e Thomas Luckmann (A Construção Social da realidade, 1966). Sua
Conforme nos conta Lupicínio Iñíguez, “nos anos oitenta, este tipo de perspectiva penetra no
redemoinho num contexto disciplinar marcado por uma ortodoxia herdeira do positivismo”
com efeito, sobre o que não cabe a menor dúvida é que em apenas duas
décadas este movimento deixou de ser um marginal nas ciências sociais e na
Psicologia Social, para passar a ser uma perspectiva reconhecível e
reconhecida, com seus próprios meios de comunicação e difusão, recursos
públicos para investigação etc. (p. 29).
encontram-se presentes em grande parte de seus trabalhos, número que, ao que tudo indica,
tende a aumentar. Segundo Iñiguez, “se há 20 anos defender uma tese de doutoramento neste
tipo de perspectiva era um ato heróico, hoje é, em alguns âmbitos, uma marca de distinção e
amparada pela Teoria das Representações Sociais. Essa teoria, desenvolvida, originalmente,
psicólogo social Celso Sá, “o termo representações sociais entrou, decisivamente, no decorrer
da década de 80, para o vocabulário dos estudiosos das ciências sociais. Não se pode,
entretanto, estar certo de que, ao usarem essa expressão, estarão todos falando da mesma
coisa” (1992, p. 45). Ainda segundo o autor, “os métodos empregados variam muito - da
Em sua obra seminal, Serge Moscovici desejava mostrar que a ciência pode ser apreendida
como um “fato social” (1978, p. 20). Inspirava-se, assim, na Sociologia de Émile Durkheim,
Gordon Allport, a Psicologia Social deveria ter como única preocupação tentar compreender e
influenciados pela presença imaginária, implícita ou explícita dos outros. Para Moscovici, no
entanto, não parecia suficiente que a Psicologia Social tivesse de se ocupar exclusivamente
das cognições tomadas individualmente. E foi assim que, concebendo a Psicologia Social
como “a ciência do conflito entre o indivíduo e a sociedade” (1984, p. 6-7), propôs que ela
Afinal, conforme assinalara, as ciências “inventam a maior parte dos objetos, conceitos e
formas lógicas” (1978, p. 20), de modo que “o surgimento de uma ciência ‘perturba’ a relação
com o real, a hierarquia dos valores, o peso relativo dos comportamentos” (1978, p. 22).
Assim, segundo Moscovici, caberia ao psicólogo social examinar e descrever esse “fenômeno
socializadas (1978, p. 24). Pois, em primeiro lugar, a formação de representações sociais não
é, segundo Moscovici, uma vulgarização, uma simplificação ou uma distorção do saber. Tal
Concedendo grande importância ao caráter simbólico dos fenômenos humanos, essa variante
imaginário, por sua vez, como o lugar, o espaço virtual em que se compreendem as
comunicação social, eles designam trocas de mensagens linguísticas (imagens, gestos etc.)
entre indivíduos e grupos. Trata-se dos meios utilizados para transmitir uma certa informação
realizou alguns importantes experimentos sobre o papel das minorias ativas, em que
72
contrariava a opinião comum (“confirmada”, aliás, por muitos outros experimentos) de que os
indivíduos tendem sempre a modificar sua opinião em direção a conciliação com a opinião da
Em verdade, Psicologia Crítica não é um nome que diga respeito a um domínio bem
delimitado na Psicologia Social. Aliás, segundo as palavras de Peter Spink e Mary Jane
Spink,
‘Psicologia crítica’ é um termo de uso corrente que pode ser encontrado com
múltiplos usos: para falar de posturas construcionistas ou pós-
construcionistas; para afirmar o caráter histórico dos fenômenos sociais; para
sinalizar um compromisso com a transformação social e uma sociedade mais
equânime; para assumir posturas holistas e transdisciplinares; para argüir
contra o paradigma positivista; para apontar o caráter político das práticas e
para focalizar os aspectos éticos das práticas profissionais. [Assim,] A
‘psicologia crítica’ é muito mais uma frente de luta ampla do que um
movimento articulado; uma aliança de argumentos e práticas em vez de uma
escola. O termo é utilizado por porta-vozes diversos provenientes de
matrizes teóricas distintas e atuantes em contextos sociais distintos. Na
Europa, tem claras afinidades com a Psicologia Política e com a Psicologia
Discursiva; nos Estados Unidos, com a psicologia feminista e com a
psicologia social da saúde (in JACÓ-VILELA; FERREIRA; PORTUGAL,
2005, p. 575-576).
Na América Latina, porém, a Psicologia Social Crítica tomou feições bastante particulares. De
(LANE apud STREY et al., p. 7). Essa aproximação tornou-se possível em razão não apenas
dos impasses epistemológicos apresentados pela Psicologia Social experimental, mas muito
31
Moscovici propõe, diferentemente, que há uma influência recíproca entre os grupos minoritários e majoritários
(Cf. MOSCOVICI, S. Psychologie des minorités actives. Paris: Quadrige/P.U.F., 1976).
73
marxismo.
Psicologia Social afirmava ter como principal preocupação “redefinir o campo da Psicologia
referencial teórico inserido em princípios epistemológicos diferentes dos até então vigentes”
(STREY et al., p. 14), visando instalar “um questionamento sobre o conhecimento e a prática
Em livro intitulado Psicologia Social contemporânea: livro texto (2003), editado pela
lhes é socialmente outorgado (LANE apud STREY et al., 2003, p. 7), concentrando-se
em tentar solucionar, segundo Ana Bock e Odair Furtado, “os problemas sociais e
políticos enfrentados pelos diversos segmentos das camadas populares” (in JACÓ-
questão central da proposta estava na definição de uma nova dimensão para apreender
510).
32
A Psicologia Social Crítica, tal como ela é defendida pela “Escola de São Paulo”, também responde pelos
nomes de Psicologia sócio-crítica ou Psicologia histórico-crítica (SAWAIA, 1995).
74
b) como método, ela recusa o experimentalismo e lança mão de todos aqueles “recursos
Assim, primando pela “pluralidade teórico-metodológica” (p. 15) como forma de subtrair-se
aos impasses provenientes de uma filosofia positivista da ciência, essa variante da Psicologia
Social revela a sua ligação com a crítica, realizada pela Fenomenologia, ao esforço das
ela deseja, entre outras coisas, “superar a contradição enfrentada pela psicologia tradicional
entre subjetividade e objetividade”33. Por essa via, portanto, ela notadamente reatualiza o tema
em Jahoda,
33
De acordo com Lane, “hoje temos clareza de que o objeto de nossa ciência é a relação dialética unívoca entre
objetividade e subjetividade na constituição do psiquismo humano” (apud STREY et al., 2003, p. 7).
75
ASCH, 1971, p. 4.
em especial, à historiografia da Psicologia Social. Tentaremos, aqui, tanto quanto nos for
possível, esboçar algumas das principais etapas pelas quais passou essa ciência a partir de um
critério de periodização diferente dos critérios adotados até então, seja pela sua historiografia
positivista, seja pela sua historiografia institucional (ou alternativa). Veremos, assim, que a
história da Psicologia Social não é indiferente à história das demais ciências morais – o que
responde, em certa medida, pela constante rivalidade entre seus representantes, pela notável
semelhança entre seus temas de pesquisa e pela quase identidade dos problemas que
enfrentam.
No que tange à sua historiografia, nossa intenção será a de mostrar que os seus representantes
lançaram mão desse recurso, muitas vezes, com a única intenção de conferir identidade
com a intenção, enfim, de responder à pergunta que nos colocamos de início pela supressão de
dos problemas e das demandas a que vieram responder. Aliás, segundo as palavras dos
na Psicologia Social, é cada vez mais clara para os historiadores da área essa
correspondência entre determinadas visões de mundo, as questões colocadas
para a pesquisa e as respostas elaboradas pela prática científica. Ao longo do
século XX, três momentos contribuíram para definir sua presente
configuração: o modelo da psicologia das multidões, nascido na Europa do
início do século como uma resposta específica às questões colocadas pelo
advento dos movimentos sociais urbanos nas sociedades capitalistas
modernas; o modelo da psicologia da opinião pública, derivado das
democracias modernas baseadas na síntese de milhares de pontos de vista
individuais; e, finalmente, o modelo da psicologia social comunitária,
baseado no pluralismo cultural e na ética igualitarista que se impõem neste
fim de século (2000, p. 8).
Portanto, à diferença do que já se pôde pensar, a Psicologia Social não paira incólume e
(RODRIGUES, 1979; ZAJONC, 1969). Pelo contrário, é cada vez mais unânime a opinião de
que a Psicologia Social deve ser concebida, antes de mais nada, como um acontecimento. O
que quer dizer que, independentemente de quaisquer considerações sobre sua consistência
despeito, enfim, do direito que a Psicologia Social possui de dizer o que diz ou de fazer o que
34
Quanto a esse ponto, nós pouco divergimos das considerações já consagradas na medida em que
consideramos, assim como elas, “que a recente literatura psicossocial e as preocupações dos psicólogos sociais
78
Aliás, tem sido cada vez mais frequente o reconhecimento de que a Psicologia Social é uma
invenção moderna (SILVA, 2005). Afinal, a não ser que se deseje adotar o agora corrente
ponto de vista da historiografia institucional, que situa o início de seu período moderno só a
partir do começo de sua difusão institucional e que faz dela “um fenômeno
porque, quando se lhe investiga a genealogia, verifica-se que ela é filha das Revoluções
Industrial e Francesa, da nova ordem social e, mais exatamente, da desordem urbana que estes
concorrente à paternidade dessa nova ordem social e econômica), ela buscará, em primeiro
lugar, explicar esse novo fenômeno das “multidões” que, embora não seja uma novidade do
século XIX, só agora lhe aparecerá como um possível objeto de conhecimento (SILVA, 2005,
p. 26)36.
Social era outro. De certo modo, até pouco tempo a asserção de Franz Samelson permanecia
verdadeira. Dizia ele que “os psicólogos sociais não têm se interessado particularmente pela
que lhe deram origem constituem um fato cultural; e [que] é esse fato cultural que define objetivamente a
Psicologia Social” (STOETZEL, 1972, p. xviii). Ainda segundo o psicólogo social Jean Stoetzel, “toda ciência
considerada em seu estado presente mergulha suas raízes na totalidade da tradição” (1972, p. 3). Além dele,
Moscovici e Marková afirmaram, recentemente, que “[quando] uma ciência é trazida à existência por novos
problemas, é também construída sobre tradições existentes” (2006, p. 28). E o mesmo parece valer para Robert
Farr, para quem a Psicologia Social finca suas raízes no conjunto da “tradição intelectual ocidental” (2000, p.
12).
35
Ainda que, dessa nova ordem, ela queira ser como que o pai, a um só tempo austero e benevolente, a
prescrever as regras e a orientar segundo o que julga ser o melhor (BARROS; JOSEPHSON, 2005, p. 443-445).
36
Conforme Silva, “o fenômeno das multidões não foi uma novidade do século XIX. No entanto, é nesse
momento que tal fenômeno se torna o objeto de um estudo específico em função da ameaça crescente de ruptura
dos equilíbrios sociais, desencadeada pelas contradições inerentes às novas normas da sociedade industrial”
(2005, p. 26)
79
história de seu campo – nem mesmo pensado que sua presente busca de identidade possa se
(1974, p. 217).
Cada vez mais, os psicólogos sociais apercebem-se de que ela, a historiografia, constitui um
Social. De modo que esse esforço historiográfico testemunha o desejo de seus representantes
em encontrar, se não uma origem, ao menos começos que lhe confiram, a ela e ao múltiplo
Mas a historiografia da Psicologia Social parece ser sempre escrita com a finalidade de
favorecer determinada imagem da Psicologia Social. E esta imagem, por sua vez, parece
atividade científica. Essa finalidade, no entanto, não necessita ser consciente. Pelo contrário,
antropológicas e sociológicas. Essas convicções, no entanto, não devem ser tratadas como
enganos, dos quais os psicólogos sociais deveriam livrar-se. Isso porque elas encontram sua
necessidade, por assim dizer, nas práticas que autorizam ou que tornam legítimas.
Assim é que, de início, nos veremos a historiografia da Psicologia Social optar por uma
filosofia positivista da ciência, concebendo o homem como um ser entre outros, submetido às
mesmas leis (ou a leis da mesma ordem) que aquelas verificadas na física ou na química. Num
tempo em que o reordenamento social impunha-se aos governantes de todos os países, dada a
historiografia de orientação positivista. Mas, aí também, o que vemos é uma defesa de uma
80
ser considerado não mais um ente “natural”, regido pelas mesmas leis que regem os
fenômenos físicos (LANE, 1984). Em outros casos, sequer é concebido como um ser regido
por leis (SILVA, 2005). Afirma-se, a todo custo, a sua liberdade, a sua capacidade de inventar
o próprio mundo que habita e que, antes, era tomado como o determinante máximo de sua
exame histórico. Isso talvez se deva ao fato de que esses historiadores frequentemente são,
Qualquer psicólogo social que já tenha recorrido aos livros dedicados à história de sua ciência
deverá ter notado que seu passado, tanto quanto seu presente, é recheado de projetos mal
além disso, que essas definições sempre estiveram mais ou menos vinculadas aos projetos
de último recurso do homem de Estado contra o ímpeto destrutivo das multidões irracionais, a
Psicologia Social desejou-se o braço direito da Terceira República francesa, celebrando a mão
forte das ditaduras européias37. Definida, numa Alemanha recém-unificada, como ciência dos
37
Na opinião de Gustave Le Bon (1841-1931), considerado por muitos historiadores um dos primeiros
psicólogos sociais, “as multidões são talvez tão perigosas por sua influência conservadora quanto por sua ação
revolucionária. [...] Se todos aqueles rebeldes triunfassem, a França cairia rapidamente num estado de baixa
anarquia, ou haveria sucumbido a Itália, quando a mão enérgica de um ditador veio salvá-la de uma catástrofe
final ” (LE BON, 1931). Em outro texto, afirma ainda que “o conhecimento da psicologia da multidões é hoje o
último recurso do homem de Estado que quer, não as governar – a coisa tornou-se muito difícil – mas ao menos
não ser muito governado por elas ” (LE BON, 1895).
81
povos e de suas formas simbólicas, quis contribuir para a solução dos inúmeros “problemas
experimental (WUNDT apud FARR, 2004, p. 47). Na extinta União Soviética, em vista das
(PARIGUIN, Ibidem, p. 8). Décadas mais tarde, nos Estados Unidos, ao fazer do indivíduo
sua verdadeira unidade de análise e da observação experimental o seu único método, opôs-se
Mas se toda Psicologia Social é, como dissemos, um subproduto das transformações sociais
político e o recrudescimento do capitalismo); se, enfim, como afirma Silva, ela nasceu para
atender aos problemas específicos de uma nova configuração social que é, como bem definiu,
o resultado de “uma fratura entre uma ordem jurídico-política fundada sobre a igual soberania
de todos, e uma ordem econômica que acarreta um aumento da miséria (SILVA, 2005, p. 23),
Para um exame mais detalhado desse aspecto da obra de Le Bon, cf. CONSOLIM, M. C. (2004) Gustave Le Bon
e a reação conservadora às multidões. In: XVII Encontro Regional de História (ANPUH), Campinas - SP. XVII
Encontro Regional de História (ANPUH). Campinas - SP: Anais do XVII Encontro Regional de História,
2004. v. 1. p. 161-169.
38
“Em primeiro lugar, como a noção de consciência, aquela de sociedade era um entrave para uma psicologia
objetiva behaviorista – pois a sociedade e as relações complexas que os indivíduos entretém com ela dificilmente
se deixam reduzir apenas ao nível de comportamentos individuais, concebidos em termo de estímulos-respostas ”
(PAICHELER, 1992, p. 617).
39
A partir desse momento, a Psicologia social passará a ser definida, de modo geral, como uma ciência
experimental e comportamental da “interação” (GERGEN, K. J. & GERGEN, M., 1984, p. 4). Esse consenso, no
entanto, não durará muito. Como veremos adiante, a partir da década de 60 ela começará cada vez mais a
dedicar-se a outros fenômenos e a ensaiar novas orientações metodológicas.
82
não faz sentido afirmarmos, como é de praxe nos manuais, que “questões sócio-psicológicas”
existem, entre nós, desde a Antiguidade (FESTINGER & KATZ, 1974; STOETZEL, 1972;
ZAJONC, 1969)40.
Pois afirmar que a Psicologia Social é, ela toda, uma invenção moderna não é, certamente,
jogo a questão referente ao critério de periodização que deverá ser adotado para organizar a
sua história.
E, de fato, quando afirmarmos que a Psicologia Social como um todo é uma ciência moderna,
nós queremos com isso rejeitar deliberadamente a distinção corrente que separa uma
Psicologia Social antiga de uma Psicologia Social moderna, separação esta que costuma ser
feita
40
Seguramente, essa historiografia, que insiste em ver por toda parte fenômenos psicossociais antes mesmo do
surgimento da Psicologia e da Sociologia, que chega mesmo ao absurdo de afirmar que entre os egípcios antigos
já poderíamos perceber a existência problemas psicossociológicos, ela se ampara, como bem notou Silva (2005),
numa concepção restrita da realidade social, identificando-a à noção de sociabilidade.
41
Esse critério de periodização nós o encontramos em Robert Farr. Farr divide a totalidade da Psicologia Social
entre as formas psicológicas e formas sociológicas. Esclarece, a partir dessa distinção, que a diferença entre as
muitas orientações se deve a diferença relativa à sua proveniência institucional, à maior ou menor proximidade à
Psicologia ou à Sociologia.
83
Embora os historiadores da Psicologia Social (na sua grande maioria, psicólogos sociais)
julguem possível conferir à sua ciência uma unidade a partir do exame de sua história, esse
empreendimento não parece sempre obter o êxito esperado. Isso porque a unidade pela
história parece sempre esbarrar na divergência entre as próprias historiografias – e essas, por
sua vez, na diferença entre as filosofias a que os seus representantes encontram-se vinculados.
Com efeito, a história da Psicologia Social tem sido sempre orientada, mais ou menos
uma história “positivista”, dedicada a descrever o momento exato em que ela teria
abandonado seu passado especulativo; ora ela é uma história de caráter biográfico ou uma
história das grandes personalidades, ora uma história das ideias científicas ou uma história das
escolas psicossociológicas, ora, ainda, uma história das instituições. Abaixo, descreveremos
A historiografia positivista
A historiografia positivista da Psicologia Social tem Gordon Allport como seu primeiro e
Auguste Comte o papel de ancestral da Psicologia Social. Sua intenção era clara: tratava-se de
retraçar o longo caminho percorrido por essa ciência, desde sua origem na Europa até seu
Segundo Allport, isso teria sido devido também à falta de recursos metodológicos de seus
metodológico conferido pelo controle experimental e pela observação sistemática que este
possibilitaria.
A historiografia institucional
Há, no entanto, outra maneira de escrever a história da Psicologia Social. Essa maneira, que se
geral, ela almeja situar a Psicologia Social, revelando os laços que as une à vida social e às
história dos cientistas (scholars), que estão frequentemente desconectados de seus lugares de
trabalho, de seus colegas, das condições sócio-políticas nas quais trabalham, publicam e
85
que se interessa, assim como esta, em descrever o tecido de relações sociais que determinam,
Certa vez, o filósofo e historiador Ernest Cassirer disse que “a simpatia do verdadeiro
historiador é de um tipo específico. Não implica amizade ou parcialidade, mas abarca amigos
de alguns outros, na intenção de dar a Psicologia Social o perfil que lhes convém. Pois, como
vimos há pouco, foi exatamente isso o que se deu no primeiro esforço historiográfico de que
se tem registro em Psicologia Social. Como dissemos, Gordon Allport foi o primeiro a
escrever uma história da Psicologia Social. Sua historiografia, porém, foi inteiramente
orientada (ou melhor, enviesada) por uma filosofia bastante difundida no pensamento norte-
42
Sobre a Sociologia do conhecimento, conferir o capítulo seguinte.
86
Assim é que, em razão dessa opção filosófica, Allport atribuíra à adoção do experimento
como método de conhecimento o fato de a Psicologia Social ter tornado-se uma ciência
Contudo, não será o caso aqui de criticarmos ainda mais essa historiografia. Ainda porque
isso já foi feito por Robert Farr, que soube, como ninguém, indicar a filiação dessa forma de
Gostaríamos, diferentemente, de sugerir outra organização, ainda bastante imprecisa, mas que
Social.
Nesta nossa organização historiográfica, a história da Psicologia Social pode ser dividida em
quatro períodos, distintos segundo o estado de sua reflexão epistemológica. Assim, a partir
das ciências morais, tendo início no segundo terço do século XIX e estendendo-se até meados
Constam, nesse período, a Psicologia dos Povos de Wundt, a Psicologia das Massas de Freud,
a Psicologia das Multidões de Le Bon e Tarde, assim como a Psicologia da Mente Grupal de
43
Além disso, nesse período, como a diferença entre os literatos e os cientistas sociais não era ainda muito clara;
como essa separação não havia ainda sido bem estabelecida no interior dos espaços acadêmicos (LEPENIES,
1996), os seus trabalhos assumem, muito frequentemente, a forma de ensaios.
87
análise, e o experimento passará a ser tomado como método privilegiado para a formação de
das promessas e expectativas geradas em torno dessa ciência e de suas possíveis aplicações44.
específica de Psicologia Social: a saber, da Psicologia Social experimental, tal como se viu
Data desse período o “giro linguístico”, assim denominado o movimento a partir do qual as
ciências humanas passam a considerar a dimensão simbólica como a sua realidade por
acarretará, sem dúvida alguma, numa reformulação da tarefa do cientista social. A partir daí,
44
Referimo-nos à querela sobre a possibilidade da criação de uma “tecnologia social”, capaz, entre outras coisas,
de preparar líderes democráticos. Gordon Allport escreveu, numa introdução à obra de Kurt Lewin, que “o
processo democrático é complexo e é preciso preparar tanto os líderes quanto os membros do grupo para nele
desempenhar os respectivos papéis”. Ainda segundo ele, a psicologia de Lewin estaria toda apoiada na convicção
de que “a democracia não consegue se estabelecer sem o conhecimento das leis da natureza humana em
contextos sociais e sem a obediência a essas leis” (in LEWIN, 1970, p. 7-14).
88
ele não mais buscará interpretar os fenômenos sociais, visando compreender os significados
que lhe são imanentes, mas apenas descrever os diversos usos dos signos ou os diferentes
jogos de linguagem, bem como averiguar as suas possíveis e reais consequências e a sua
Nesta seção, dedicaremos algum espaço ao esboço de um projeto historiográfico que nos tem
parecido necessário para melhor situarmos a invenção da Psicologia Social e para melhor
compreendermos as relações que essa ciência entreteve com as demais ciências morais.
Segundo nos parece, o acontecimento que deve marcar o início do primeiro período da
história da Psicologia Social é o advento das ciências morais. Gestadas, durante todo o século
àqueles enfrentados por Kant em face do advento da nova física experimental (a física de
Kepler e Galileu, matemática e positiva). Parecia urgente, à época, como assinalou Aron,
89
ser o de estabelecer um acordo mínimo entre seus representantes no que diz respeito ao tema
de suas considerações, ao método que lhes convinha e à validade de suas conclusões45. Seja
pelo argumento da especificidade de seu objeto, seja pela defesa da particularidade de seu
método (seja, ainda, por uma combinação de um e outro46), todas essas ciências tiveram que
justificar, num passado não muito distante, sua autonomia e sua legitimidade ao lado daquela
45
Com exceção, talvez, da História, mas por razões que certamente nos levariam muito longe do cerne de nosso
trabalho. Pois, segundo Michel Foucault, a História, “embora ela seja a primeira e como que a mãe de todas as
ciências do homem, embora ela seja talvez tão velha como a memória humana, [...] Talvez, com efeito, não tenha
ela lugar entre as ciências humanas nem ao lado delas: é provável que mantenha com todas elas uma relação
estranha, indefinida, indelével e mais fundamental do que o seria uma relação de vizinhança num espaço
comum” (1966.). Para um exame mais aprofundado desse projeto de fundamentação das ciências morais, cf.
ARON, R. La philosophie critique de l’histoire. Essai sur une theorie allemande de l’histoire. Paris: Vrin,
1969.
46
De acordo com as palavras de Georges Canguilhem, “procurou-se, durante muito tempo, a unidade
característica do conceito de uma ciência na direção de seu objeto. O objeto ditaria o método utilizado para o
estudo de suas propriedades” (Cf. CANGUILHEM, 1992).
90
Em todo caso, o início do século XX sacramenta o advento das ciências humanas. Porque, a
instituições que toda reflexão ulterior sobre sua legitimidade e consistência epistemológica
parecia não ser mais do que a resistência da Filosofia em aceitar perder parte de seu extenso
ciências sociais desenvolvem-se (ARON, 1969, p. 11), “desde o primeiro terço do séc. XIX,
as ciências sociais estão se formando e se empenham em conquistar seu lugar nas academias e
Mas, quando se lhes segue o rastro, verifica-se que tanto a Psicologia Social quanto as demais
irrefreável escalada do cientificismo, guardando, por isso mesmo, suas diretrizes principais,
Mais do que isso, o exame de sua genealogia mostra-nos que a Psicologia Social, assim como
a Sociologia, nasceu das revoluções, tendo feito das inúmeras transformações sociais por que
91
passou a Europa seu objeto privilegiado – seja na França, em primeiro lugar, seja na Rússia e
não resta dúvida que a emergência histórica de cada uma das ciências
humanas se deu por ocasião de um problema, de uma exigência, de um
obstáculo de ordem teórica e prática; certamente foram necessárias as novas
normas que a sociedade industrial impôs aos indivíduos para que,
lentamente, durante o século XIX, a psicologia se constituísse como ciência;
não há dúvida também que foram necessárias as ameaças que desde a
Revolução pesaram sobre os equilíbrios sociais, e sobre aquele
particularmente que havia instaurado a burguesia, para que aparecesse uma
reflexão de tipo sociológica (1966, p. 356).
Entretanto, o projeto de uma ciência do homem só pôde ser concebido quando o próprio
homem passou a ser pensado efetivamente como um objeto para o saber. Quanto a esse ponto,
Conforme Dreyfus e Rabinow, nessa nova ordem do saber, o homem passará a ser concebido
como um ente paradoxal, ao mesmo tempo empírico e transcendental. Ou seja, o homem será
tomado, daí em diante, como um fenômeno entre outros (ainda que regulado por leis próprias)
47
Conforme disse Silva, “foi pelo viés do fenômeno das multidões que a psicologia moderna efetuou uma de
suas primeiras aproximações na direção do social” (2005, p. 26).
48
Isso significa dizer que essas transformações não se deram, enfim, apenas no modo como os homens passam a
relacionar-se consigo mesmos e com seus semelhantes, mas que elas estão vinculadas a uma verdadeira
modificação operada na ordem do saber e nas condições de possibilidade dos objetos a conhecer.
92
(1) como um fato entre outros fatos, para ser estudado empiricamente e,
além disso, como a condição transcendental de possibilidade de todo
conhecimento, (2) como cercado por aquilo que não pode se esclarecer (o
impensado) e, além disso, como um cogito potencialmente lúcido, fonte de
toda inteligibilidade; e (3) como o produto de uma longa história cujo início
nunca poderá alcançar e, além disso, paradoxalmente, como a fonte desta
mesma história49 (1995, p. 35)
o grupo passarem a ser tomados como objetos de um conhecimento possível (SILVA, 2005,
p. 10).
Quando tomamos como referência a obra do filósofo alemão Wilhelm Dilthey (1833-1911),
não é difícil encontrarmos nela os principais temas com que hoje se preocupam uma parcela
verdade e, finalmente, do início ao fim, filosofia do homem enquanto ser histórico (ARON,
1969, p. 25): eis aí, afinal, temas comuns a todo âmbito do saber que não deseje deixar-se
natureza50.
Além disso, como assinalou Aron, o projeto de Dilthey era reintroduzir o homem concreto e
total como sujeito e objeto da meditação filosófica (1969, p. 12). Ele teria, assim, sido o
49
Aliás, quanto a este último ponto, o historiador François Châtelet afirmara que, a partir do século XIX, “o
homem compreende-se doravante como ser histórico. Ele sabe – ao menos praticamente – que seus gestos, suas
decisões, suas palavras são os elementos de uma totalidade dinâmica irreversível e significativa; que cada
momento de sua existência resulta de seu passado e desenha seu futuro; que o ‘curso do tempo’ não é o simples
quadro vazio de sua presença, mas o lugar imposto onde se desenrola dramaticamente seu ser” (1974, p. 7). Essa
descrição parece consoante às palavras de Raymond Aron, quando este afirma que “desde o começo do século
XIX, as ciências morais alemãs estavam penetradas de sentido histórico” (1969, p. 9).
50
E esse é, sem sombra de dúvida, o desejo de grande parte da psicologia social contemporânea (STREY et al.,
2003).
93
maneira mais explícita, quem se dedicou a refletir sobre o conjunto das ciências morais, além
Em artigo publicado em 1937, Steuart Henderson Britt dedicou-se a observar que a Psicologia
Social sociológica, aquela que teria nascido no interior dos departamentos de Sociologia,
Entretanto, a Psicologia Social psicológica, essa variante da Psicologia Social que “floresceu”
nos Estados Unidos, segundo a metáfora utilizada por Gordon W. Allport (apud FARR,
2004, p. 19) não viu problema algum em alinhar-se diretamente ao modelo epistemológico
Essa filosofia, ao fazer da Psicologia Social uma parte da Psicologia Geral (FARR, 2004, p.
138; JAHODA, 2007, p. 175), transformou essa ciência numa espécie de física ou química
94
social, dais quais os indivíduos, tais como forças ou átomos, seriam para ela como que
Hoje, porém, sabemos melhor das exceções a esse movimento geral. Cada vez mais tem
Ainda segundo esse autor, “a dimensão simbólica e cultural era totalmente ignorada por uma
psicologia que se concentrava nos indivíduos como seres naturais e que via a realidade como
Reorientação epistemológica
Carlos Cançado, Paulo Soares e Sérgio Cirino, “nos Estados Unidos do final do século XIX,
p. 179). Com efeito, essa reorientação deveu-se em larga medida à grande importância
desse momento, a Psicologia Social tornava-se quase que completamente uma ciência
experimental52.
Social, segundo a qual “não há psicologia dos grupos que não seja essencialmente e
Allport foi categórico ao afirmar que a “a psicologia social não deve ser colocada como se
comportamento ela estuda, em relação àquele setor de seu ambiente composto por seus
Seus esforços, assim, dirigiam-se todos para a tarefa de dar à Psicologia Social um critério
adequado e um amparo na realidade física, uma vez que Floyd Allport julgava-os ausentes na
Psicologia Social dos “instintos” do seu contemporâneo, o inglês William McDougall (1871-
1938).
Mas, ainda que se possa atribuir a Floyd Allport a redefinição da Psicologia Social em solo
americano, foi o seu irmão, Gordon Allport, quem cumpriu o papel mais importante nessa
tarefa, ao escrever a sua historiografia. Nela, Allport elegeu ninguém menos que Auguste
51
Lembremos que, em 1915, Watson era presidente da American Psychological Association.
52
Notável, além disso, é a importância dos livros-texto na hegemonização da Psicologia Social experimental.
Conforme Ian Lubek, “[os] livros-texto servem a um grupo profissional como um compêndio legitimador ou
referência ou uma ferramenta de aconselhamento e são por essa razão inevitavelmente presentistas e
frequentemente comemorativos (2000, p. 321).
96
Mas, além disso, conforme assinalou Robert Farr em As raízes da Psicologia Social Moderna
(2004), é imprescindível notar que o desenvolvimento da Psicologia Social como uma ciência
desenvolvimento que tiveram em função das demandas provenientes dos problemas militares
inerentes à Primeira Guerra Mundial (STREY et al., 2003, p. 25). Segundo recente
Como prova dessa ligação entre a Psicologia Social e as novas demandas provocadas pela
da série de quatro volumes intitulado The American Soldier (FARR, 2004; FONSECA in
STREY et al., 2003). Esse manual, afinal de contas, publicado logo após a Segunda Guerra
Mundial sob a editoração geral do sociólogo Samuel Stouffer (1900-1960), versava sobre
Isso tudo contribui para que não imaginemos que a reorientação epistemológica pode ser
restringiu aos Estados Unidos da América. Afinal, segundo González Rey, “se analisarmos a
produção da psicologia soviética nas décadas de 1950 e 1960, vamos observar um predomínio
Mas certo é que, a despeito das motivações históricas que responderam pela migração dessa
ciência para os Estados Unidos da América, sempre questionáveis, foi ali que a Psicologia
fenômenos que deveria dedicar-se ao exame. E mesmo que a sua institucionalização tenha
Essa institucionalização da Psicologia Social, aliás, foi cuidadosamente examinada por Robert
Farr (2004). Em sua historiografia, mostrou-nos como essa ciência, a princípio européia,
social do pós-guerra.
confiança no modelo epistemológico vigente começara a ruir. Esse nome, porém, não é
indiferente ou sem relação com uma determinada filosofia da história da ciência, com uma
seus métodos53.
Há cerca de três décadas, Aroldo Rodrigues dizia-nos, em face da crise que se abateu sobre o
53
Essa interpretação, como vimos anteriormente, é aquela de Thomas Kuhn.
54
A posição de Rodrigues a respeito desse tema é, no entanto, conhecida. Apesar de sua inegável preocupação
com respeito ao futuro da Psicologia Social, a sua opção filosófica e, sobretudo, epistemológica, levava-o a
considerar que a Psicologia Social só poderia recuperar o seu prestígio e trilhar o caminho seguro de uma ciência
quando seus representantes abandonassem toda pretensão política e dirigissem toda sua atenção e seus esforços
na direção do conhecimento “desinteressado” e “objetivo” do comportamento humano, pelo controle e precisão
proporcionados pelo método experimental.
99
Isso porque, a partir das décadas de 60 e 70, após um breve período de intensa expansão
participação cada vez maior nos currículos das instituições de ensino), a Psicologia Social
O declínio do experimentalismo
Seja pela falta de êxito em solucionar os problemas a que até então tivera se dedicado, seja em
função da própria filosofia da ciência em que se achava apoiada; seja, ainda, por consequência
“experimentalistas” a toda uma classe de psicólogos sociais insatisfeitos com o rumo adotado
pela sua ciência. Segundo Silvia Lane, a crise de identidade “é a crítica ao positivismo, que
No entanto, apesar dos problemas levantados à época e sem negar a incontestável boa
intenção dos psicólogos sociais, muito preocupados em sanar os evidentes conflitos sociais
capítulo, e um mau capítulo, da gloriosa história do triunfo de uma ciência sobre os seus
se desenvolver. Aos primeiros coubera atribuir a sua diversidade ao movimento natural que
pensamento científico. Aos seus opositores, por sua vez, coubera a tarefa de mostrar-lhes (ou,
mais ainda, de vigorosamente denunciar-lhes) as condições históricas precisas sob a qual sua
reformulação das bases teóricas da Psicologia Social. Segundo a psicóloga social Mary Jane
Spink,
onde, após uma longa jornada de crítica dirigidas exclusivamente ao positivismo – ou, mais
As reflexões compreendidas nesse período teriam contribuído para fazer com que a Psicologia
positivismo ou ao experimentalismo.
Seria essa, portanto, a razão para que a Psicologia Social não-experimental venha sentindo,
fundamentos do conhecimento histórico, que ela tanto reclamara para si no período anterior.
Pois esse modo de conhecimento, não se tratará mais de defendê-lo, como antes, de justificá-
Essa reflexão sobre o conhecimento histórico não poderá deixar de ser uma reflexão sobre o
essa a posição de Gergen, principal expoente do movimento em Psicologia Social, para quem
uma justa compreensão da natureza e das funções da linguagem poderia contribuir para a
sumária, estabelecemos uma distinção entre duas formas de Psicologia Social. Distinguimos,
onde a linguagem não desempenha qualquer papel relevante, de uma Psicologia Social não-
experimental, na qual, por sua vez, dissemos imiscuírem-se duas inspirações epistemológicas
certa medida, pela multiplicação dessas orientações epistemológicas. Mostramos também que
movimento incessante de crítica epistemológica, mas também como consequência dos novos
Agora, porém, na parte final de nossa dissertação, nós nos dedicaremos exclusivamente ao
exame daquilo que consideramos ser o estado atual da Psicologia Social. Isso porque, nas
seus objetivos. Por outro lado, o advento da Neurociência, advinda, por sua vez, da conjunção
francesa do início do século XX contribuiu para pôr abaixo, ao menos nos países de língua
justa compreensão de seu objeto a remissão aos determinantes culturais de suas pesquisas, ou,
dito de outro modo, às condições existenciais ou concretas que, antes, julgavam controladas
apenas da filosofia, como também das ciências, das artes e até mesmo da vida cotidiana. A
seguia, assim, um movimento comum às demais ciências humanas, das quais o pós-
5.1.1. O pós-construcionismo
Social, sobre esse período a que alguns autores dão, hoje, o nome de pós-construcionismo,
convém que façamos uma breve exposição dos princípios gerais dessa doutrina.
A Sociologia do Conhecimento
Embora o Construcionismo Social tenha nascido, de fato, apenas na década de 1960, a partir
Realidade, 1967), ele remonta, por sua inspiração, aos trabalhos do alemão Max Scheler
do saber científico em relação à estrutura social na qual este se dá. Insiste, assim, em apontar
cientistas: a rede de relações em que se encontram, os papéis que desempenham frente aos
que freiam o desenvolvimento de suas pesquisas etc.. Dedica-se, dessa maneira, a pensar os
No entanto, apesar desse âmbito de investigação ter sido concebido já no início do século XX,
será apenas na década de 1970 que essa teoria desempenhará um papel relevante na renovação
psicólogos sociais passassem a considerar a Psicologia Social não mais como uma ciência
experimental do comportamento social, mas como uma ciência histórica (2008, p. 475, 483).
Neste artigo, intitulado “A Psicologia Social como história” (Social Psychology as history,
1973), Gergen sugeria aos psicólogos sociais que eles abandonassem toda pretensão de
reduzir sua ciência ao modelo epistemológico das ciências da natureza (segundo ele,
Daí que, para Gergen, a tarefa do psicólogo social, assim como de todo cientista social,
deveria ser mais modesta. O psicólogo social deveria contentar-se em enunciar (ou denunciar)
Renovação epistemológica
para refletir ou mapear a realidade” (1985, p. 266, itálico nosso). Isso teria permitido que a
Psicologia Social movimentasse-se “de uma epistemologia empirista para uma epistemologia
De acordo com essa visão tradicional, o conhecimento deve ser concebido como um
exogênica” (1985, p. 269) a essa suposição de que o conhecimento é derivado de uma indução
(Ibidem, p. 269) a essa outra maneira de conceber o conhecimento, na qual se atribui um papel
homem.
Mas, para Gergen, a tarefa do Construcionismo Social estaria em tentar superar essa antiga
dicotomia – que remontaria, segundo ele, à antiga disputa da filosofia européia entre os
tentar “transcender o dualismo tradicional entre sujeito e objeto” (p. 270), em superar a
linguagem. Isto é, sugere que deixemos de supor que o homem e a sociedade dizem respeito a
duas classes de “coisas”, a duas classes separadas de realidades, existentes em-si mesmas (ou,
segundo seus termos, “naturais”). Segundo as palavras de Kenneth Gergen, “os termos nos
natural no homem moderno, que faz com que tanto o homem (e seu “psiquismo”) quanto os
objetos com que trava conhecimento (seja teórico ou prático) deixem de ser considerados
necessidade de ratificarmos essa convicção comum que faz com que os objetos de nossas
produzimos sobre ela ou com independência de qualquer descrição que façamos dela” (2004,
p. 19).
3) crítica permanente das verdades geralmente aceitas: essa característica responde pelo
inclusive, que responde pela simpatia de grande parte de seus representantes aos trabalhos de
Michel Foucault.
social à realidade física. Para os seus representantes, mesmo à realidade física devemos
(IÑÍGUEZ, 2004, p. 34-36). Segundo Iñíguez, “afirmar que “o social” é histórico significa
que as práticas sociais produzem conhecimento e constroem a realidade social” (p. 20).
mundo. Assim, para o Construcionismo Social, o conhecimento deve ser tratado como o
capaz não apenas de informar-nos sobre determinados estados de coisa, mas também de
supostamente nos seriam fornecidos a imagem dos seres que compõem o mundo ao nosso
De acordo com Iñíguez, “um dos perigos da perspectiva construcionista é converter a noção
produzindo o mesmo tipo de efeito que produzem as coisas” (2004, p. 23). Com efeito, o
utilização do método experimental. Entretanto, talvez por sua própria natureza, a recorrente
crítica de seus próprios fundamentos tem levado alguns de seus principais porta-vozes a dizer
que ele vive hoje um momento delicado, onde cada vez mais parece evidente a necessidade de
sua superação, dado o risco dele vir a transformar-se numa nova ortodoxia.
construcionismo ainda mantém a mesma carga de rebeldia? Ou, ao contrário, estamos diante
110
Hacking desejou convencer-nos de que, talvez pelo seu emprego excessivo e variado, o
conceito de construção social tenha perdido seu valor, tornando-se confuso e, acima de tudo,
progressivamente inútil.
De acordo com Hacking, o valor de um discurso construcionista deve ser medido pelo seu
maior ou menor efeito “libertador”, pela sua capacidade de questionar e de pôr abaixo
algo não é inevitável, segundo Hacking, “mostrando como se originou (o processo histórico) e
Além disso, argumenta que seria sem efeitos e mesmo “redundante” afirmarmos, ao menos no
que diz respeito às ideias e aos objetos da esfera humana, que algo é construído socialmente,
clareza quanto ao algo de que se fala e das ambiguidades relativas ao conceito de construção.
Daí a sua necessidade de indicar o caráter complexo daquilo de que falam os construcionistas,
55
HACKING, I. (2001) ¿La construcción social de qué? Barcelona: Paidós.
111
5.1.2. O neo-experimentalismo
Social contemporânea. Afinal, a confiar nas palavras de Berntson e Cacioppo (2000), “uma
fênix está erguendo-se [...] das cinzas da histórica biologia comportamental.” Pois o
sua difusão e a sua presença cada vez maior nos meios de comunicação de massa, tudo isso
dá-nos testemunho de que a inspiração positivista vigora ainda em parte não desprezível da
Psicologia Social. Esse movimento, além disso, mostra-nos que essa orientação
epistemológica não pertence, de maneira nenhuma, ao passado dessa ciência – como, afinal,
neurociências são a chave dos processos de aprendizagem, dos comportamentos sociais, das
A Neurociência Social
Segundo Jean Decety e Julian Keenan, dois dos mais respeitados neurocientistas, “a
neurociência social pode ser vagamente definida como a exploração dos processos
(2006, p. 1).
Segundo eles,
No que diz respeito ao seu objeto, a Neurociência Social pretende ocupar-se de todos aqueles
É importante notarmos, porém, que há uma diferença, ainda que mínima, entre a Psicologia
experimental do passado era, na sua quase totalidade, como vimos, uma psicologia
56
Apesar das inúmeras críticas levantadas à concepção estreita de comportamento sustentada pelos
behavioristas, os psicólogos da Gestalt ampararam-se também no conceito de comportamento, repudiando, tanto
quanto os behavioristas, a introspecção ou todo recurso metodológico que visasse fenômenos que não fossem
diretamente observáveis. Além disso, nada se encontra mais distante do Cognitivismo, tal como ele se
desenvolveu nos Estados Unidos a partir na década de 1940, do que o denominado “cognitivismo” dos
Gestaltistas. De fato, eles se autodenominaram cognitivistas, e isso cumpria um papel de afirmar a diferença em
relação aos comportamentalistas. Mas, se nos detivermos à ideia de cada doutrina (Cognitivismo e Gestaltismo),
é evidente a diferença que os separa. Pois, para o Cognitivismo, o mundo que nos é dado psiquicamente é o
resultado do processamento ou da organização das informações que nos são dadas pelos sentidos. Já para o
Gestaltismo, ao contrário, aquilo que nos é dado à sensibilidade (ou melhor, à percepção) encontra-se já
organizado. Não se deve esquecer que a tese do isomorfismo estende as leis da boa forma aos fenômenos físicos,
aí incluídos os fenômenos biológicos (DARTIGUES, 2005, p. 44-46).
113
cognitivista, uma vez que suas pesquisas sustentam-se sobre as seguintes convicções ou sobre
comportamento, ainda que ela permaneça importante para determinar ou indicar a relação
entre tais ou quais fenômenos, deverá dar lugar a desenhos experimentais mais sofisticados,
em que deverão comparecer outras variáveis que não comportamentais – fisiológicas e, mais
2ª) É necessário admitir a existência de uma base física ou, mais exatamente, neurofisiológica
para o processamento dessas informações. Segundo seus representantes, “a última década têm
assistido a uma aproximação entre os níveis biológicos e sociais de análise, em parte porque
regiões localizadas do cérebro têm sido associadas com construtos e processos psicossociais”
(CACIOPPO et al., 2004, p. 384). Assim, seus esforços vão todos na direção de reduzir os
“fenômenos sociais”, por assim dizer, aos seus mecanismos neurológicos subjacentes.
Segundo dois de seus fiéis representantes, “na última década, um novo e excitante domínio
admite três princípios básicos. Estes princípios, sem sombra de dúvidas, ainda a mantém sob
abordagens metodológicas utilizadas historicamente pelos psicólogos sociais (…) têm sido
bastante limitadas”. Daí, para eles, a necessidade de apoiarem-se numa concepção não-linear
e não-simplista da causalidade física, o que faria com que estivessem, hoje, em melhores
antecedentes em ou entre outros níveis de organização” (2004, p. 385). Isso significa que
115
fenômenos de diversos outros sistemas (biológicos, em sua maioria) devem ser levados
2) determinismo não-aditivo: segundo esse princípio, o todo é mais do que a soma das
3) determinismo recíproco: esse princípio determina que pode haver influências mútuas entre
observação foi possibilitada pelas novas tecnologias a que há pouco nos referimos
fenômenos sociais há pouco listados, e que, segundo eles, reduzir-se-iam, em última instância,
Por último, gostaríamos de ressaltar que a Neurociência Social conta já com periódicos
específicos e centros de pesquisa (bastante bem financiados) em diversos países. E que, além
disso, seus representantes têm dedicado algum esforço para, pouco a pouco, ainda que
timidamente, reescrever por sua própria conta a história da Psicologia Social. O que nos dá
novamente prova de que, hoje como ontem, a Psicologia Social vive a luta de uma de suas
57
Curiosamente, muitos psicólogos sociais não-experimentais costumam fazer uso desse mesmo princípio. E
mais: acusam a Psicologia Social experimental de desrespeitá-lo em sua postura individualista (e não-holista).
Vemos, porém, que não se trata de respeitar ou não respeitar esse princípio, mas da interpretação que se lhe dá.
116
partes pelo domínio de seu todo. Prova, enfim, de que a luta pela hegemonia do discurso
A Escola de Chicago
A história não deixou de reservar à Psicologia Social algumas curiosidades. Uma dessas
curiosidades diz respeito ao destino da famosa Escola de Chicago, instituição que, como se
sabe, foi uma das poucas responsáveis pelo aparecimento, no início do século XX, de formas
Curiosamente, porém, a Universidade de Chicago abriga hoje nada mais nada menos do que o
contemporânea.
Uma segunda curiosidade diz respeito ao destino de algumas das pesquisas contemporâneas
Psicologia Social. Como consequencia desse esforço, o nome do pensador francês Gabriel
Tarde tem figurado dentre essas memórias. Com efeito, segundo a psicóloga social Anne-
Marie Rocheblave-Spenlé,
Mas o recente valor de Tarde (ou melhor, aquilo que justifica o retorno à sua obra
philosophie pénale, e em 1892, seus Études pénales et sociales. E isso no momento mesmo
em que escrevia suas principais obras de Psicologia Social (Les lois de l'imitation, de 1890 e
L'opinion et la foule, em 1901). O que não é, certamente, uma surpresa. Afinal, conforme as
58
Essa pesquisa diz respeito ao projeto de pesquisa de um grupo de cientistas brasileiros da PUC-RS (Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul) e da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul),
interessados em testar a hipótese de que fenômenos neurofisiológicos e a anatomia cerebral respondem pelo
comportamento agressivo. Para tanto, sugeriram examinar, através de um aparelho de ressonância magnética, o
cérebro de 50 adolescentes homicidas.
118
palavras de Rosane Silva, essa preocupação era, de fato, uma preocupação comum à época
6. CONCLUSÃO
Falar da Psicologia Social contemporânea é, sem dúvida, engajar-se num espaço polêmico e
conflituoso, haja vista o fato de que, hoje, sob este título, apresentam-se trabalhos que,
frequentemente, nada têm em comum. Afinal, da Psicologia Social sabemos muito pouco. Seu
estatuto está longe de poder ser bem definido e os limites de seu domínio, tanto quanto
pudemos averiguar, são muito flutuantes, variando de autor a autor e de país a país segundo
Como mostramos nas páginas anteriores, não existe sequer um acordo entre os psicólogos
sociais quanto à natureza dos problemas a tratar. Filha de revoluções sociais que modificaram
de uma vez por todas a imagem do homem e do mundo e tributária dos modelos
a Psicologia Social oscila desde então entre uma exigência de inteligibilidade e urgências de
ordenação social.
Esse estado de coisas não nos impediu, entretanto, de tentar traçar algumas linhas gerais.
Tomando como meta a enumeração de suas partes componentes e respeitando, tanto quanto
possível, suas devidas particularidades, nosso exame pouco divergiu das muitas considerações
já consagradas ao tema (FARR, 2004; IBÁÑEZ, 2004; IÑÍGUEZ, 2004), seguindo a mesma
quanto possível, ressaltar a não homogeneidade da Psicologia Social pela ênfase concedida
aos seus conflitos e às dissidências que, aqui e acolá, marcaram o seu desenvolvimento
institucional e a sua difusão social (APFELBAUM, 1992; FARR, 2004; GOOD, 1992, 2000;
PÉTARD, 2006; MacMARTIN & WINSTON, 2000; PAICHELER, 1992; BRITT, 1937;
SILVA, 2005).
120
Dada a extensão da Psicologia Social contemporânea, esse exame certamente teve de deixar
de lado algumas das diversas variantes que compõem a Psicologia Social contemporânea.
Isso, porém, não nos pareceu suficiente para abandonarmos a pretensão inicial de falarmos da
Psicologia Social como um todo. Pois, embora seja evidente que a Psicologia Social seja um
domínio marcado por uma pluralidade de orientações, é também verdade que muitas delas
não visava, como se poderia apressadamente supor, recuperar uma unidade da qual ela haveria
critério de identidade.
do testemunho dos próprios psicólogos sociais, a fim de melhor estabelecermos o fato de sua
No terceiro capítulo, voltamos a afirmar que a Psicologia Social não é homogênea, sugerindo,
além disso, ser essa uma das principais razões para a dificuldade enfrentada por alguns
discordantes, quando não contraditórios. Que eles se amparam, enfim, em filosofias bastante
diferentes umas das outras, o que contribui para que suas práticas ora visem, por exemplo, o
controle social (pela redução de conflitos interpessoais e grupais (LEWIN, 1970)), ora, ao
121
responsável pela considerável diferença verificada entre os seus objetos. Que toda Psicologia
Social comporta, com maior ou menor clareza, uma determinada imagem do homem – e de
quanto o sistema das relações que estabelecem entre si. Mostramos, com isso, que a
tanto no que se refere ao âmbito de sua teoria quanto ao que diz respeito às práticas realizadas
em seu nome. Que ela não é (e mais, que ela nunca chegou a ser) delimitada por conceitos,
métodos, técnicas e instrumentos próprios. E que ela, assim, não se distingue (hoje mais do
que nunca) de qualquer outra ciência social, receosa, tanto quanto estas, de que suas
Mas, além de afirmar essa obviedade, que em si mesma não acrescenta nada ao exame de sua
Psicologia Social é composta por diferentes partes, separadas umas das outras, entre outros
gerais.
vinculação dos psicólogos sociais a cada uma dessas filosofias determina, entre eles, uma
No quarto capítulo, descreveremos, ainda que de maneira bastante breve, a relação que a
Psicologia Social estabelece com o surgimento de uma nova ordem social, decorrente das
Por fim, dedicamos um pequeno espaço à apresentação e ao exame dos princípios de dois
importantes movimentos que, nas últimas décadas, tem ocupado grande parte dos esforços da
uma teórica, outra prática. Essas duas partes, porém, não se encontram desvinculadas.
duas ou três décadas guarda íntima relação com o projeto de fazer valer a dimensão
luta pela hegemonia do discurso psicossociológico. Essa luta expressa-se hoje, ainda
Acreditamos que nossa pesquisa tenha permitido simplificar este quadro. No quadro abaixo
(Quadro 2), sugerimos como devemos representar aquilo que hoje constitui o campo
Por último, gostaríamos de dizer que o quanto é grande a nossa convicção de que qualquer
conclusão que se possa tomar a respeito do que dissemos necessitará, antes, da contrapartida
dos próprios psicólogos sociais, sem a qual as linhas seguintes não teriam sentido. Afinal, se é
verdade que a Psicologia Social não sabe bem o que ela é, ela deve ao menos saber que não
pode deixar de ser a disciplina cujo estudo interessa àqueles que se denominam psicólogos
sociais (de acordo com uma jocosa definição que lhe deram outrora dois de seus
representantes, sem talvez mesmo suspeitar o quanto de verdade ela podia comportar)59.
59
“With tongue in cheek we can define social psychology as that discipline which people who call themselves
social psychologists are interested in study” (INSKO & SCHOPLER, 1972, p. xiii-xiv).
125
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