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Temas em Psicologia

ISSN: 1413-389X
comissaoeditorial@sbponline.org.br
Sociedade Brasileira de Psicologia
Brasil

Arja Castañon, Gustavo


Psicologia como Ciência Moderna: vetos históricos e status atual
Temas em Psicologia, vol. 17, núm. 1, junio, 2009, pp. 21-36
Sociedade Brasileira de Psicologia
Ribeirão Preto, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513751433004

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ISSN 1413-389X Temas em Psicologia - 2009, Vol. 17, no 1, 21 – 36

Psicologia como Ciência Moderna: vetos históricos e


status atual

Gustavo Arja Castañon


Universidade Federal de Juiz de Fora – MG – Brasil

Resumo
A história da psicologia moderna tem sido a história de uma longa e persistente crise de cientificidade.
Três grupos distintos de argumentos têm sido usados ao longo desta como obstáculos à possibilidade
de constituição da psicologia como ciência. O primeiro grupo é composto pelos argumentos
filosóficos contra a própria ciência moderna. Questionando a psicologia especificamente, temos
outros dois grupos, o dos argumentos ontológicos e o dos metodológicos. Entre os ontológicos, temos
os da natureza inquantificável do objeto da psicologia; da simultaneidade da condição de sujeito e
objeto; da indivisibilidade do fenômeno psíquico; da inexistência de objeto próprio da psicologia; da
alteração do ser humano pela interação; do significado como verdadeiro objeto psicológico; do livre-
arbítrio e da necessidade de adoção de um método distinto do das ciências naturais. Entre os
metodológicos, temos as alegações de impossibilidade de observação direta do objeto; da dificuldade
metodológica de quantificação; das limitações éticas para a pesquisa e da enorme quantidade de
variáveis envolvidas na explicação psicológica. Muitos destes problemas foram superados ao longo da
história da disciplina, mas alguns deles ainda hoje esperam solução filosófica, o que faz da psicologia
moderna um projeto de ciência inacabado.
Palavras-chave: Ciência moderna, Epistemologia, Epistemologia da psicologia, Psicologia
moderna, Filosofia da psicologia.

Psychology as Modern Science: Historical vetoes and


current status
Abstract
The history of modern psychology has been the history of a long and persistent scientificity crisis.
Three different groups of arguments have being used along that history as obstacles to the possibility
of the constitution of psychology as modern science. The first group is composed by the philosophical
arguments against the modern science. Questioning the psychology specifically, we have other two
groups, the ontological arguments and the methodological ones. In the ontological, we have the
problems of the no quantitative nature of psychology object; simultaneity of subject and object
condition; indivisibility of the psychic phenomenon; inexistence of proper object; alteration of the
human being by interaction; meaning as true psychological object; free will and the need of adoption
of a different method from the one of the natural science. In the methodological group of arguments,
we have the allegations of the impossibility of direct observation; methodological difficulty of
quantification; ethical limitations for the research and the enormous amount of variables involved in
the psychological explanation. Many of these problems were overcome along this discipline history,
but some of them are still waiting today for philosophical solution, what makes modern psychology
an unfinished project of science.
Keywords: Modern science, Epistemology, Epistemology of psychology, Modern psychology,
Philosophy of psychology.

______________________________________
Endereço para correspondência: Gustavo Arja Castañon. Universidade Federal de Juiz de Fora, Instituto de
Ciências Humanas e Letras, Departamento de Filosofia. Rua José Lourenço Kelmer, s/n. Campus Universitário,
São Pedro, Juiz de Fora, MG, Brasil. CEP: 36036-330. E-mail: gustavocastanon@hotmail.com.
Apresentado na XXXVIII Reunião Anual da Sociedade Brasileira de Psicologia, como parte do simpósio
“Crises na História da Psicologia”, com o título “Psicologia moderna e crise endêmica”.
22 Castañon. G. A.

Parcialmente derivado de tese de alegações de impossibilidade de observação


doutorado (Castañon, 2006), este estudo direta do fenômeno psicológico, da dificuldade
histórico-teórico apresenta um inventário metodológica de sua quantificação, das
sintético dos problemas filosóficos que, antes e limitações éticas para a pesquisa em psicologia
durante o desenvolvimento da psicologia, e da enorme quantidade de variáveis envolvidas
colocaram-se como obstáculos à plena na explicação psicológica.
integração desta ao projeto da ciência moderna,
fazendo de sua história a história de uma longa
e persistente crise de cientificidade. A partir Como definir Ciência Moderna?
disso, oferece uma breve avaliação do estado Para efeito dos objetivos propostos aqui,
atual de cada um destes obstáculos e desta crise que não incluem uma apreciação da ciência
endêmica como um todo. moderna em si, será assumida como adequada a
Uma vez que a ciência moderna se definição efetuada por Ernest Nagel em The
apresenta como atividade que estabelece Structure of Science, de 1961, onde a ciência é
hipóteses sobre leis naturais através de definida como uma atividade com seis
experimentação e formalização (se possível características básicas: forma sistêmica da
matematização), e que estas hipóteses testadas organização do conjunto de leis, definição de
também devem apresentar capacidade métodos de investigação, redução de
preditiva, sempre foi questionada interna e fenômenos a um nível ontologicamente mais
externamente a possibilidade de investigação básico, objetividade (no sentido de ser
científica da psique, consciência, ou de controlável, reproduzível e intersubjetivamente
quaisquer das definições originais de objeto observável), claridade das leis e teorias
desta disciplina. Neste artigo, são apresentados estabelecidas em linguagem formalmente
os questionamentos que se colocaram impecável e semanticamente unívoca e, por
historicamente contra a possibilidade de fim, incompletude e falibilidade do
existência de uma psicologia científica conhecimento produzido. A forma de
divididos em três grandes grupos de problemas. conhecimento que Nagel e a modernidade
O primeiro é o dos vetos à própria possibilidade denominam ciência (não me refiro aqui às
da ciência como concebida pela modernidade. ciências formais, e sim às empíricas) é aquela
Há uma boa variedade destes tipos de que permite ao menos uma aproximação do
argumentos, que não são o objeto direto deste conhecimento universalmente válido e
artigo, pois atingem a ciência moderna como empiricamente testável. Ciência é aquele modo
um todo. De qualquer forma, não parece de obtenção de conhecimento que aspira a
produtivo avaliar se uma das atividades mais formular, mediante linguagem rigorosa (e
bem sucedidas da história da humanidade é sempre que possível matemática), teorias gerais
possível. e leis universais que expliquem e prevejam, de
Dedicarei-me aqui a avaliar o segundo forma cada vez mais acurada, ainda que
grupo de problemas, o dos questionamentos probabilisticamente, fenômenos da realidade
ontológicos diretos à possibilidade de uma objetiva.
psicologia científica, que são os problemas da Aceitar que tal atividade é possível
natureza inquantificável de seu objeto, da significa aceitar implicitamente uma série de
simultaneidade da condição de sujeito e objeto, crenças mais básicas, de pressupostos
da indivisibilidade do fenômeno psíquico, da filosóficos, sem os quais tal tipo de atividade e
inexistência de objeto próprio na disciplina, da tal tipo de produto (leis naturais explicativas,
alteração do ser humano pela interação, do descritivas e preditivas) não seriam possíveis.
significado como verdadeiro objeto Eles são no mínimo cinco. O primeiro é a
psicológico, da relativa autonomia do ser crença de que o objeto de investigação e
humano em relação aos condicionantes algumas de suas características existem
ambientais e genéticos e o da necessidade de independentemente da mente do observador, a
adoção de um método distinto do das ciências isto se denominará realismo ontológico. O
naturais. segundo é a crença na estabilidade, pelo menos
Por fim, temos ainda um terceiro grupo de em alguns de seus aspectos, do objeto que se
problemas a serem superados por um projeto de estuda, a isto se denominará princípio da
ciência consistente, os metodológicos, que regularidade do objeto; o terceiro é a crença de
serão expostos sumariamente. Estes incluem as que através do método adequado, podemos vir
Psicologia como Ciência Moderna 23

a conhecer algo sobre o objeto, a isto se referirá do objeto de estudo da disciplina. Boa parte das
como otimismo epistemológico; o quarto é a formulações destes problemas são derivadas, de
assunção das leis básicas da lógica clássica na uma forma ou de outra, daquelas realizadas por
formulação de argumentos válidos, os Imannuel Kant na Crítica da Razão Pura
pressupostos lógicos, e, por último e não menos (1781/2001) ou no prefácio dos Princípios
importante, a crença de que podemos Metafísicos da Ciência da Natureza
representar adequada e estavelmente o mundo (1786/1989).
através da linguagem, a isto se denominará 1) Da natureza inquantificável do objeto
aqui, representacionismo. da psicologia – Um dos vetos kantianos diretos
Assim, a pergunta aqui é: se, diante de tal à psicologia se dirige à possibilidade de
definição e de tais pressupostos, podemos quantificação dos fenômenos psicológicos. A
conceber uma psicologia plenamente psicologia como ciência empírica, nem
compatível com a ciência moderna. Ou seja, a procederia a priori, nem poderia quantificar
psicologia é capaz de produzir leis como as seus dados e empregar o cálculo matemático na
definidas acima, e possui um objeto de descrição precisa da realidade e das leis que a
investigação que se enquadra nestas crenças regem. Esse veto seria definitivo: os fenômenos
ontológicas? É claro que estas próprias crenças psíquicos produzem-se só no tempo, e não no
se encontram sobre permanente ataque na espaço, portanto, não seriam passíveis de
história da ciência, revezando-se como alvo quantificação. Devemos distinguir este veto do
prioritário da vez. Atualmente, o realismo problema metodológico representado pela
ontológico está sob ataque do construtivismo dificuldade de mensuração de dados, que
radical (Glasersfeld, 1984) e do construtivismo veremos adiante, ao qual no entanto está
social ontológico (Latour & Woolgar, 1986), o intimamente ligado. Diz Kant (1786/1989)
princípio da regularidade do objeto sob ataque sobre esta questão que “a matemática não é
dos intérpretes leigos da física quântica, e o aplicável aos fenômenos do sentido interno e
representacionismo sob ataque cerrado há mais suas leis, pois teria que se levar em conta em tal
de 50 anos das teorias anti-representacionistas caso unicamente a lei de continuidade no fluxo
derivadas de setores da filosofia da linguagem das mudanças em tal sentido interno” (p.32).
(Wittgenstein, 1953/1975), do pragmatismo O behaviorismo foi o primeiro a oferecer
(Rorty, 1989) e do desconstrucionismo uma solução consistente para este problema,
(Derrida, 1973). No entanto, seria sem tornando o comportamento, que se produzia no
propósito falar em crise de cientificidade na espaço, o objeto de estudo da psicologia. O
ciência moderna, principalmente diante do problema com essa solução é tão conhecido
incrível sucesso pragmático deste como ela própria: este objeto, a despeito de ser
empreendimento humano. É mais fácil falar em a única fonte de dados objetivos de que
crise de legitimidade na própria filosofia da dispomos, não é o objeto primário de interesse
ciência, por parecer estar algumas vezes da maioria dos psicólogos. Já o cognitivismo
alienada em relação a este enorme sucesso e ofereceu soluções para este problema que
reputação. Já o caso da psicologia é diferente. permitiram ao método científico a investigação
Não encontramos um corpo de conhecimento de fenômenos plenamente psicológicos. A
unitário e um conjunto tão impressionante de primeira, que muitas vezes não é explícita ou
sucessos pragmáticos como na física, química consciente na estratégia de investigação do
ou mesmo biologia. Não faltaram explicações campo, é a substituição da descrição
sobre o porquê destas diferenças de resultados, matemática das leis na explicação psicológica
e as principais vamos expor a partir de agora. pelas descrições meramente lógicas daquela. O
problema do rigor descritivo científico é assim
encarado com uma linguagem que é tão precisa
Os problemas ontológicos da quanto à matemática, porém não quantificada.
psicologia Baars (1986) chama esta linguagem
Os mais graves problemas a serem “matemática não-quantitativa”, que incluiria a
superados por qualquer programa de pesquisa lógica simbólica, a álgebra booleana, a
que se proponha a levar à frente o projeto de topologia e a teoria da função recursiva. A
constituição de uma psicologia como ciência simulação computadorizada mostrou-se nesta
moderna são os de natureza ontológica, ou seja, questão particularmente útil, pois forneceu uma
aqueles que dizem respeito à própria natureza linguagem adequada e suficientemente explícita
24 Castañon. G. A.

para a construção de modelos e hipóteses psicologia como ciência, não relacionando a


cognitivas precisas o suficiente para serem psicologia na sua classificação das ciências
falsificáveis. empíricas: à biologia segue-se imediatamente a
A segunda foi de natureza metodológica. sociologia. Segundo ele, todo ser ativo pode ser
Ao passar a utilizar dados cronométricos para estudado estaticamente, em suas condições de
testar hipóteses sobre processos cognitivos, o possibilidade para a açãoe, dinamicamente, em
cognitivismo inverteu condição de fragilidade ação. Na primeira forma, a estática,
apontada por Kant com a singela constatação estudaríamos as condições orgânicas das quais
de que se funções cognitivas ocorrem no dependem os fenômenos psíquicos: a fisiologia.
tempo, este tempo pode então ser mensurado Na segunda forma, a dinâmica, estudaríamos “a
através da duração da execução de tarefas. marcha efetiva do espírito humano em
2) Da impossibilidade de o sujeito ser ao exercício” (Comte, 1973, p.19): para ele, a
mesmo tempo objeto – Este veto kantiano sociologia.
também é apresentado em suas bases nos Penna (1991) acredita que o veto comtiano
paralogismos da Crítica (1781/2001), sendo à psicologia é fruto de uma confusão, pois, na
dirigido diretamente contra a psicologia época de Comte, definida como ciência da
empírica no prefácio dos Princípios alma, ela baseava-se no método da
(1786/1989). Diz Kant (1989) que a observação introspecção. Isso, de fato, era inadmissível
interna “em si mesma altera e distorce o estado para o positivismo. No entanto, o próprio
do objeto observado” (p.33), o que condena a Comte estaria persuadido que algo como uma
psicologia a ser uma “descrição natural da “psicologia positiva” acabara de ser fundada
alma”, mas nunca uma disciplina experimental. em sua época, cujos métodos ele aprovava.
Esse veto foi retomado por Comte. O sujeito Como observa Japiassú (1975), a
que pensa não pode ser ao mesmo tempo o proscrição comtiana da introspecção é um dos
objeto do experimento ou mesmo da mera legados positivistas ao behaviorismo que
observação que realiza, pois estaria consciente asseguram a cientificidade da psicologia
das condições experimentais e de controle, assimilando o veto à introspecção. Todas as
além de a observação interna interferir no soluções a este problema são, de uma forma ou
resultado do andamento do próprio processo de outra, derivadas da solução behaviorista de
psíquico. Diz Comte (1973): tornar o comportamento objeto da disciplina.
Ao fazê-lo, obviamente o behaviorismo coloca
Porquanto todo estado de paixão muito o objeto a ser investigado pela psicologia fora
pronunciado, a saber, precisamente do sujeito que a investiga. O cognitivismo deve
aquele que será mais essencial examinar, sua abordagem a este problema a um dos
necessariamente é incompatível com o dissidentes do behaviorismo, Edward Tolman.
estado de observação. No entanto, Ao postular o conceito de variável
quanto a observar da mesma maneira os interveniente, Tolman torna possível a
fenômenos intelectuais duarante seu inferência de processos cognitivos como
exercício, há uma impossibilidade funções que transformam a informação
manifesta. O indivíduo pensante não ambiental que entra no organismo na
poderia dividir-se em dois, um informação comportamental que sai dele. Outro
raciocinando enquanto o outro o visse fato digno de nota é a nova abordagem da
raciocinar. O órgão observado e o órgão introspecção no cognitivismo, onde perde a
observador sendo neste caso, idênticos, condição de teste de hipóteses e passa a ter
como poderia ter lugar a observação? função meramente descritiva e exploratória na
(p.20). forma de protocolos verbais.
3) Da indivisibilidade do fenômeno
Apesar de não necessariamente mais psíquico – Segundo Kant (1787/2001), este
fortes, os desenvolvimentos positivistas dos veto se refere à impossibilidade de proceder por
argumentos kantianos (anteriores aos trabalhos análise e síntese na investigação do fenômeno
de Fechner e Weber) contra a possibilidade de psíquico, pois não se podem considerar os
uma psicologia científica (ou positiva) foram os eventos psíquicos em separado, como
que mais pesaram historicamente contra as elementos, uma vez que a vida psíquica na
pretensões dessa disciplina. E Comte é o realidade forma uma totalidade cujas partes não
responsável direto pelo veto positivista à podem ser separadas nem combinadas. Este
Psicologia como Ciência Moderna 25

veto foi desenvolvido por vários filósofos, entre 4) A psicologia não pode ter o mesmo
os quais se destacam Franz Brentano e Edmund método das ciências naturais – Se o objeto da
Husserl, e ajudou a gerar a abordagem psicologia (a consciência) é de natureza diversa
gestaltista. do objeto das ciências naturais (objetos físicos
Brentano (1838-1917) explora as no espaço), então requer um método próprio de
conseqüências ontológicas deste veto de Kant. investigação. Esta é a tese de Husserl
Rompendo com as tentativas de decomposição (1911/1952), que propõe a fenomenologia
da vida mental em elementos básicos como método próprio de investigação
constituintes (feitas pelo estruturalismo e pela psicológica. É também a tese de Dilthey
psicologia fisiológica), ele declara a unicidade (1924/1945), que propõe a classificação da
como característica distintiva da vida mental, psicologia como ciência do espírito e o método
conferida pela consciência e advoga pela de sua investigação como interpretativo e
necessidade de uma psicologia voltada ao compreensivo, e não explicativo.
estudo do ato mental e intencionalidade da Husserl (1936/2002) é claro quando afirma
consciência. Husserl (1911/1952) defende que não negar alguma validade às conclusões da
uma psicologia como ciência rigorosa só pode psicologia de sua época. O que ele negava era o
ser uma filosofia, especificamente, uma alcance destas conclusões: para Husserl, a
fenomenologia. A psicologia deveria ser uma originalidade da consciência fica fora do
ciência de essências dos atos mentais alcance do método das ciências naturais
intencionais. A psicologia experimental é justamente porque ela é intencional. A
impossível para Husserl, pois não investiga a objetificação da consciência na verdade cria
psique, constrói um objeto que nada tem a ver outro objeto, que nada tem a ver com a
com a consciência e apresenta resultados que consciência real. A característica da
não dizem nada de importante para nossa vida. intencionalidade distingue essencialmente a
Este obstáculo permanece não superado consciência dos fenômenos de ordem física. A
(Dreyfus, 1993) e, por seu caráter ontológico, consciência não existe a não ser como
não é passível de eliminação. Sua importância, consciência de algo, e nunca como objeto; ela
no entanto, é superestimada por filósofos e por natureza transcende a si própria
psicólogos ligados à tradição fenomenológica. envolvendo-se com o mundo. A atitude
Na verdade, a artificialidade da análise dos experimental define uma relação objetificante
fenômenos que se aplica à psicologia se aplica em relação ao psíquico. É preciso portanto,
igualmente, em escala progressivamente menor, investigar o psíquico com outro método,
à biologia e à física. O organismo também deve próprio e originário.
ser visto como um todo holístico, indivisível, Esta é a crítica central husserliana contra a
assim como o universo, e a consideração de psicologia positiva: sua conhecida denúncia da
problemas orgânicos e astrofísicos em partes, “insuportável confusão” que afeta as relações
embora artificial, é condição de possibilidade de método e de conteúdo entre as ciências da
de estudo dos fenômenos. A vida psicológica é natureza e as ciências do espírito. Essa
unitária, mas podemos distinguir funções e confusão não se dissipará, acredita, enquanto
representações que podem, com um grau de não houver a compreensão do absurdo da
artificialidade que em maior ou menor medida concepção dualista de mundo, segundo a qual
é comum a todas as ciências, ser investigadas natureza e espírito devem ser considerados
isoladamente. Se, de fato, o método científico como realidades homogêneas, mas edificadas
não se aplica ao conteúdo intencional da uma sobre a outra de maneira causal. Para ele,
consciência, no entanto se aplica a seu aspecto ao contrário do psicologismo, só o espírito é
funcional. É isto o que a psicologia cognitiva autônomo e pode ser tratado nesta autonomia, e
faz, descreve aproximadamente as funções só nesta, em forma verdadeiramente racional.
cognitivas, os processos de transformação da Ou seja, só pode haver uma ciência
informação e os planos de ação. Tendo independente do espírito, pois a natureza tem
assumido a visão popperiana de conhecimento só uma autonomia aparente, só aparentemente
científico como conhecimento aproximativo, o oferece um conhecimento objetivo de si: a
cognitivismo abandona desde o início a ilusão verdadeira ciência da natureza é obra do
de conhecimento absoluto, o que faz com que espírito que a explora e, portanto, se
este veto se transforme em somente uma fundamenta na ciência do espírito, e não o
limitação. inverso. A conclusão de Husserl é que o erro
26 Castañon. G. A.

das ciências do espírito é o de lutarem contra as caracteriza pela distinção de Dilthey entre
ciências da natureza por uma igualdade de ciências naturais e humanas, pela classificação
direitos. Quando as primeiras reconhecem às de Windelband de ciências nomotéticas e
últimas uma objetividade que se basta a si idiográficas, no contraste entre causas e razões,
mesma, elas sucumbem ao objetivismo. Assim, entre causas eficientes e causas finais
perdem o domínio de sua genuína racionalidade (teleológicas), entre comportamento e ação no
e levam o homem à crise espiritual em que se sentido que tem essas palavras para o senso
encontra. As ciências do espírito já teriam um comum. É, como conclui Smith (1978), o
método próprio, que transcende a ingenuidade contraste entre uma explicação causal, que
de um mundo objetivo e de uma razão ilusória tradicionalmente nasce de um ponto de vista
e estéril, esse método seria o método exterior à pessoa que é o sujeito do
fenomenológico. comportamento, e a compreensão
Já para Dilthey, admitindo a possibilidade interpretativa, tradicionalmente oriunda de um
de fenômenos únicos, irrepetíveis no universo, ponto de vista interno à perspectiva da pessoa,
e querendo, ao invés de descobrir as leis que os plena de sentimentos, significados e valores.
regem, compreendê-los em sua individualidade, O reconhecimento do caráter intencional e
nada podemos fazer com os instrumentos da de “primeira-pessoa” (Searle, 1992) da
ciência moderna. Uma coisa são as ocorrências consciência não impede que a psicologia
de casos particulares de uma lei geral, da qual cognitiva a investigue como fenômeno de
são expressão; outra são singularidades, casos “terceira-pessoa” que também é (para outrem),
únicos irrepetíveis e não submetidos a leis não diretamente, mas a partir de seus efeitos no
físicas. Esta distinção levou Dilthey a propor a comportamento e no processamento da
divisão entre uma abordagem sistemática informação. O método hipotético-dedutivo é
(explicativa) e uma abordagem compreensiva aplicável a qualquer fenômeno que tenha
nas ciências humanas. efeitos sobre o mundo físico, inclusive os
A pesquisa psicológica sistemática (ou psicológicos. De fato, propor a renúncia ao
nomotética, na distinção de Wilhelm método da ciência moderna na psicologia não
Windelband) visa à obtenção de teorias e soluciona o problema, simplesmente o
hipóteses de aplicação geral. Esta pretensão se abandona. Porque o problema se trata de como
sustenta na crença da regularidade do objeto, ou aplicar o método mais bem sucedido na história
seja, de relações funcionais estáveis entre da humanidade em obter conhecimento sobre o
variáveis antecedentes e variáveis mundo natural ao fenômeno psicológico, uma
conseqüentes. Já a pesquisa compreensiva ou vez que seres humanos fazem parte do mundo
idiográfica parte da posição ontológica que natural.
assume a relativa autonomia do ser humano Apesar disso, críticas como as de Husserl
frente aos condicionamentos que lhe são e Dilthey não têm solução definitiva dentro da
impostos. Essa orientação de pesquisa pretende ciência. Como também defende Searle (1992),
que o objetivo da investigação psicológica seja a abordagem da consciência e do inconsciente
a compreensão do significado da experiência como fenômenos de terceira-pessoa não esgota
humana, e não a busca de teorias de aplicação a dimensão psicológica, portanto, não podemos
generalizada. Em suma, a perspectiva restringir seu estudo ao método científico.
nomotética busca explicar as causas do Julgo que o campo de aplicação da ciência
comportamento, enquanto a perspectiva moderna à psicologia é definido pelos
idiográfica busca compreender os motivos de fenômenos psíquicos que obedecem a padrões.
sua expressão. Dilthey (1924/1945) considera Os fenômenos da criatividade, pró-atividade,
que é um erro fundamental adotar a abordagem sentido e significado (Fodor, 1991) são
explicativa primariamente (e que dirá inabordáveis pelo método científico e portanto
exclusivamente) na psicologia, uma vez que as só se submetem a investigações de natureza
experiências vividas são dadas em sua unidade filosófica.
significativa. Assim, os métodos através dos 5) O objeto da psicologia deve ser o
quais estudamos a vida psicológica, a história e sentido da experiência consciente – É a tese da
a sociedade devem ser diferentes daqueles que psicologia humanista, que tem a especificidade
usamos para estudar a natureza. de pretender continuar a utilizar o método
Em suma, a polaridade existente entre as experimental para a investigação desse novo
perspectivas explicativa e compreensiva se objeto, em conjunto com outros, idiográficos.
Psicologia como Ciência Moderna 27

Amatuzzi (1989) é um humanista que defende 6) O ser humano é dotado de autonomia –


esta posição. Para ele, a leitura do ser humano Problema central da psicologia que coloca
em termos de causa e efeito, antecedente e diretamente em cheque sua condição de ciência
conseqüente, parte e todo, é deturpada e moderna. Para grande parte do pensamento
incompleta, pois faltaria nela a questão do ocidental e contemporâneo, o ser humano é
sentido que se precisa dar à própria vida. Sob o dotado de algum nível de auto-determinação,
enfoque humanista, o ser humano aparece não seria fonte de atividade do universo e não um
como uma resultante de uma série de coisas, objeto meramente reagente deste. Este é, na
mas como, fundamentalmente, o iniciante de verdade, um dos mais antigos e importantes
uma série de coisas. Assim, o verdadeiro objeto problemas filosóficos. Uma de suas
da psicologia, o ser humano, só surge quando formulações mais influentes na história da
consideramos a questão do sentido, não a psicologia moderna foi a controvérsia Locke-
questão da causa explicativa. O enfoque Leibniz. Após a publicação por Locke
explicativo se refere ao ser humano como (1689/1978) dos Ensaios sobre o entendimento
resultado, como passado. Não se refere ao ser humano, Leibniz (1704/1974) escreve seus
humano presente, desafiado por questões de Novos ensaios sobre o entendimento humano,
sentido. dando forma ao debate moderno sobre a origem
do conhecimento e a liberdade humana. Para
Em vista de tudo isto, a psicologia Locke e o empirismo, o ser humano é passivo,
humanista propõe que, em última análise, o uma folha de papel em branco a ser escrita pela
sentido da experiência humana deva ser o experiência, um receptáculo de impressões
verdadeiro objeto de estudo da psicologia. O sensoriais que formarão seu intelecto e
objetivo final ideal da psicologia deveria ser governarão suas ações. Já Leibniz qualifica o
uma completa descrição do que significa estar ser humano como influenciado por inúmeras
vivo como ser humano e da variedade de causas eficientes através de seu corpo, mas
experiências que lhe são possíveis (De livre, ativo e orientado propositivamente em
Carvalho, 1990). Ela exige que os temas de função de causas finais. O ser humano seria um
pesquisa da psicologia não sejam escolhidos foco de atividade do universo, não um objeto
por sua adequação ao método experimental, passivo conduzido por forças físicas. Assim,
mas por sua relevância para o ser humano e o temos dois modelos de ser humano opostos que
conhecimento psicológico. Não é demais geraram duas tradições na disciplina. Allport
lembrar que esta demanda leva ao problema do (1955/1975) descreveu este como um conflito
caráter meramente qualitativo deste tipo de entre as tradições lockeana e leibniziana da
objeto, e aumenta a dificuldade de mensuração psicologia, Rychlak (1975) caracteriza estas
dos dados característica da psicologia. tradições como lockeana e kantiana.
Este é sem dúvida um problema sem
superação completa no estado atual da A psicologia humanista, assim como
disciplina. Na verdade, é limitante afirmar que vários dos principais representantes do
o objeto da psicologia deva ser o sentido da cognitivismo, cerra fileiras com a tradição
experiência, quando funções de processamento kantiana e considera o ser humano como
de informação são fenômenos plenamente autoconsciente, auto-orientado e criativo, em
psicológicos e fundamentais na vida psíquica. suma, possuidor de autonomia. Na filosofia da
Também parece limitante simplesmente afirmar mente contemporânea, apesar de minoritária, a
que questões de sentido e significado não defesa de um gap explicativo entre o conjunto
devam ser estudadas pela psicologia. Mas é de crenças e desejos e a decisão consciente é
certo que eles não podem ser estudadas pela defendida por importantes filósofos como
ciência, como postulou Fodor (1991) com seu Searle (2001), que considera a liberdade de
princípio do solipsismo metodológico para as volição condição necessária da racionalidade. O
ciências cognitivas. Este último defende que a problema é que se tal concepção da mente for
investigação científica se restringe às verdadeira, agrava-se evidentemente o
representações e suas funções de problema da cientificidade da psicologia. O
transformação, e que podemos prever o princípio da regularidade do objeto está em
resultado comportamental de um input jogo aqui: como um ser humano livre e criativo
informacional sem recorrer ao significado da permitiria o estabelecimento de relações
informação. estáveis de causa e efeito sobre ele?
28 Castañon. G. A.

É fato que basta que tomemos como biológicos; e (b) todas as leis da psicologia
pressuposto um determinismo forte (Robinson, fossem deriváveis das leis da biologia.
1985), ou seja, a crença de que não há no O argumento contra a possibilidade da
comportamento humano nada além do que psicologia moderna que examinamos aqui
resultados de relações de causalidade eficiente considera que seu destino é ser reduzida à outra
de natureza física, para que este problema seja, ciência. O reducionismo em psicologia
em tese, dissolvido. É isso que faz o geralmente sustenta que todos os fenômenos
behaviorismo, o cognitivismo de matriz psicológicos são fundamentalmente de natureza
computacionalista e a psicologia biológica. O biológica. Assim, os termos e leis específicos
problema é que o senso comum e grande parte da psicologia poderiam e deveriam ser
da comunidade psicológica não aceita tal reduzidos aos da biologia, os da biologia aos da
pressuposto (como a psicologia química, e os da química aos da física. A
fenomenológica, setores do cognitivismo, o redução ontológica assume na psicologia três
construtivismo piagetiano e a psicologia formas básicas: a behaviorista, a fisiológica e a
humanista). O resultado é o que, em meu pós-moderna, que é o reducionismo linguístico
julgamento, consiste na maior causa da ou sociológico.
fragmentação das teorias psicológicas, O behaviorismo procura reduzir qualquer
problema que é o maior obstáculo para a discurso sobre fenômenos psicológicos a um
unificação desta ciência e, até o momento, sem discurso sobre fenômenos de comportamento.
solução filosófica que ao menos permita, não Na medida em que estímulos e respostas podem
sua solução, mas um compromisso ser descritos em termos físico-químicos, suas
metodológico mínimo. definições operacionais forneceriam
7) A psicologia não tem objeto próprio – especificações do significado das expressões
Alegação final da tradição fisicalista, que ainda psicológicas em termos biológicos, químicos e
encontramos atualmente no materialismo físicos. É natural que, por ser um tipo de
eliminativo (Churchland, 1991) e no reducionismo fisicalista, o behaviorismo esteja
construcionismo social (Gergen, 1973, 1994). hoje perdendo espaço para o reducionismo
Todo programa de pesquisa que se apresentar fisiológico, que retomou apelo com os recentes
como candidato à psicologia moderna deve progressos da neurociência. Evidentemente, se
justificar a existência de um objeto exclusivo podemos reduzir a psicologia à descrição de
desta ciência, respondendo a um reducionismo comportamentos, o passo natural seguinte é
ontológico que, em última análise, acaba com a reduzi-la ao comportamento cerebral. Este
psicologia. último passo tem hoje sua expressão filosófica
A redução ontológica em psicologia pode típica no programa conhecido como
ser definida como a tendência a reduzir todos materialismo eliminativo, proposto
os fenômenos psicológicos a um único principalmente por Churchland (1991). Para
princípio causal não-psicológico, que Churchland (1991), nossas intenções, desejos,
permaneceria inalterável no decorrer de todas crenças e pensamentos (a folk psychology, o
as transformações que os fenômenos conjunto de conceitos adotados pela psicologia
experimentam. A redução em ciência consiste do senso comum) não são entidades
em considerar que certas ordens de fenômenos ontologicamente reais, em cuja existência
estão sujeitas a leis mais bem estabelecidas e possamos acreditar, mas somente ilusões da
precisas de uma outra ordem de fenômenos linguagem que seriam progressivamente
ontologicamente mais fundamental, como por substituídas por conceitos fisiológicos
exemplo, que fenômenos orgânicos são estabelecidos pelo avanço da neurociências. A
totalmente deriváveis de leis físicas (o psicologia, como ciência, seria um estágio tão
mecanicismo em biologia, que se opõe ao provisório quanto primitivo de abordar o
vitalismo). Hempel (1970) afirma que problema humano, e os psicólogos devem se
podemos dizer que uma disciplina científica é conformar com este estado provisório da
redutível à outra quando (a) se pode definir os disciplina e esperar pela substituição
conceitos da primeira com conceitos da progressiva de todo vocabulário psicológico
segunda e (b) derivar as leis da primeira das pela terminologia neurocientífica.
leis da segunda. Assim, a psicologia seria Por fim, temos o reducionismo sociológico
redutível à biologia caso (a) todos os conceitos ou linguístico, característico do
psicológicos fossem definíveis em termos construcionismo social e das abordagens pós-
Psicologia como Ciência Moderna 29

modernas. Trata-se de um tipo estranho de psicologia teria um objeto irredutível a objetos


reducionismo, que é uma espécie de idealismo de outras disciplinas.
sem sujeito e relativismo radical. Mais do que 8) Da alteração do objeto da psicologia
isso, trata-se de um reducionismo, se é que isso pela interação e pelo conhecimento – Questão
é possível, “para cima”, uma vez que o levantada por fontes tão diferentes quanto Kant,
fenômeno sociológico é de uma ordem de o cognitivismo, o construcionismo social e a
complexidade superior ao fenômeno psicologia humanista. O ser humano seria
psicológico. passível de modificação estrutural quando em
Esta posição surge quando se interpretam processo de interação social ou condições de
as reações individuais unicamente em função pesquisa, o que poria em cheque o pressuposto
das interações entre estruturas culturais de da regularidade do objeto.
grupos sociais. Dessa forma, reduzimos o Gergen (1973), em artigo que marca o
processo psíquico às influências sócio- surgimento do construcionismo social, chama a
culturais. Quando se defende que os seres atenção para o fato de que o conhecimento tem
humanos, suas alegações de conhecimento e conseqüências sociais. Gergen aponta que a
jogos de linguagem são fruto única e disseminação das teorias psicológicas modifica
exclusivamente do ambiente sócio-cultural os padrões de comportamento sobre os quais as
onde estão imersos, reduz-se o fenômeno teorias foram construídas, por motivos os mais
psicológico a um fenômeno sociológico, que diversos. Um deles seria a elevada
em última análise é, ele mesmo, nada mais que credibilidade que a ciência goza em nossa
um fenômeno linguístico. sociedade, fazendo muitas pessoas orientarem
sua conduta de acordo com as teorias
Assim, com os três tipos de reducionismo psicológicas das quais tomassem
citados acima, temos o que seria o fim da conhecimento. No sentido oposto, também
psicologia como ciência da psique. No primeiro algumas pessoas que vissem suas crenças e
caso, substituída por uma ciência do valores atacados por determinadas teorias,
comportamento. No segundo, pela fisiologia. podem exercer a vontade de afirmar os valores
No terceiro, pela sociologia. humanos da liberdade e individualidade
O reducionismo fisicalista em psicologia desafiando as predições da ciência. Por fim, a
tem sido severamente criticado desde Husserl divulgação de teorias científicas modifica
(1901/1975), e suas limitações filosóficas são padrões de comportamento por promover a
bem conhecidas (sobre as formas emancipação dos sujeitos de fatores que
contemporâneas desta tese como o determinavam seu comportamento e lhes eram
materialismo eliminativo, ver Araujo, 2003; desconhecidos.
sobre o construcionismo social, ver Castañon, Outro que chama a atenção para as
2004a, 2004b). Mas foi só com o advento da modificações que além da investigação o
metáfora computacional (Neisser, 1967), próprio conhecimento provoca no
originada das teses funcionalistas de Putnam comportamento humano é o cognitivista
(1961), que a psicologia ofereceu uma resposta Neisser (1975). Em Cognition and Reality,
a este problema que eliminou o fantasma da Neisser observa que, além de ser impossível
falta de objeto próprio que a ameaçava desde hoje para a Psicologia apresentar uma
seu surgimento. Para o funcionalismo, o explicação dedutivo-nomológica de qualquer
reducionismo é muitas vezes inaplicável a uma comportamento particular, ainda temos que
ciência porque seu objeto é fruto de considerar o aparente paradoxo de que o
propriedades emergentes de organizações aumento do conhecimento provoca o aumento
complexas de elementos constituintes mais da impreditibilidade do comportamento
básicos. Assim, funções psicológicas são humano: quanto mais soubermos sobre o
propriedades emergentes de um cérebro, assim ambiente e nossos processos cognitivos, menos
como softwares são propriedades emergentes nosso comportamento será preditível.
de organizações específicas de um hardware. O Não podemos prever o comportamento de
entendimento de um determinado padrão de uma pessoa em um ambiente natural, a menos
processamento de informação não requer o que saibamos tanto sobre ele quanto ele
entendimento da forma pela qual ele está sendo próprio. Esta idéia de Neisser indica que um
fisicamente processado. Dessa forma, ao menos psicólogo não é a pessoa mais indicada para
no que diz respeito às funções cognitivas, a prever o comportamento de um mestre do
30 Castañon. G. A.

xadrez numa partida, pois ele não sabe tanto rigoroso dos experimentos, e os instrumentos
quanto o mestre sabe. Neste caso, outro mestre para esse, são fundamentais para a atividade
é mais indicado para realizar previsões científica. Mas não se pode impor estes ao ser
acertadas. Isto porque, se o comportamento é humano, muitas vezes. Nosso sistema de
uma função da informação presente no valores, evidentemente, limita muito a
ambiente, quanto mais você entender seu manipulação e o controle das variáveis que
ambiente, mais informações irá recolher dele, e envolvem seu objeto. Assim, para estudar o
portanto, mais difícil será prever seu efeito de certos eventos (de forma geral
comportamento. De forma geral, diz Neisser prejudiciais) sobre o ser humano, é preciso que
(1975), quanto mais a pessoa sabe, menos fica os esperemos ocorrer ao acaso ou que
passível de controle: “Truth does make us free” reunamos evidências de casos isolados que nos
(p.185). ofereçam algo do que pretendemos estudar. Isto
Apesar de ser um grande complicador na obviamente é um entrave muito forte ao avanço
já complexa empreitada científica psicológica, da psicologia (assim como da medicina).
a interpretação de que este aspecto do objeto de Existe ainda uma outra dificuldade no
estudo da psicologia é um impedimento de controle do objeto da psicologia. Este é o fato
caráter ontológico à investigação científica é de que os efeitos do experimentador sobre o
falsa, temos aqui somente um complicador objeto de seu experimento são muito grandes.
metodológico. Se a alteração que acompanha o O ser humano sabe quando está sendo
objeto de estudo durante a interação for submetido à pesquisa, e isso altera suas reações
também ela própria regida por um padrão, não de forma dificilmente ponderável. Da mesma
temos uma evidência indeterminista, ao forma, essa influência pode ser fruto de uma
contrário, temos a evidência da atuação de tentativa consciente ou inconsciente do
alguma lei sobre a interação do objeto em experimentador de levar o resultado do
questão com outros. Foi também a revolução experimento em direção à confirmação de suas
cognitiva que legou à psicologia um modelo crenças ou teorias pessoais.
matemático para lidar com estes processos Por esses dois motivos, muitos psicólogos
retroalimentativos, o modelo de feedback. se voltaram para o estudo de animais, uma vez
Além disso, existem procedimentos que há uma facilidade muito maior em sua
metodológicos para dirimir este problema – que manipulação para pesquisa, e uma influência
afeta igualmente a medicina – escondendo tanto muito menor da distorção que uma situação de
de sujeitos quanto de parte dos pesquisadores pesquisa leva ao comportamento. No entanto, a
informações sobre os grupos e as hipóteses em validade das generalizações dessas pesquisas
teste, como o procedimento duplo cego, o para o ser humano envolve a crença de que
grupo placebo e ainda o engodo em pesquisa. certos animais são separados evolutivamente do
Hoje, as alegações em torno deste suposto ser humano apenas quantitativamente, e não
obstáculo foram em grande parte abandonadas. qualitativamente. É sabido que o humanismo
rejeita esta tese, assim como o cognitivismo.
Tal tipo de solução só encontra acolhida
Os problemas metodológicos da irrestrita no behaviorismo.
Psicologia Moderna Apesar de limitar a velocidade do
Por último, serão resumidos aqui os desenvolvimento da ciência psicológica, os
problemas estritamente metodológicos da cuidados éticos na pesquisa em psicologia com
psicologia, a maioria deles derivados de seres humanos não são mais nem menos
problemas ontológicos aventados acima. São limitantes que aqueles de que depende a
eles: pesquisa médica e farmacêutica. Obviamente,
9) Das limitações éticas da pesquisa não temos aqui um possível impedimento à
psicológica – É bastante difícil superar as psicologia moderna, mas um obstáculo
limitações impostas pelos imperativos éticos à concreto à livre concepção de desenhos e
utilização de seres humanos como objetos de situações experimentais que demanda mais
pesquisa. Só através de formas de medição e criatividade e paciência a cientistas.
controle adequadas é que podemos estar certos 10) O objeto da psicologia não é
de que as relações que formulamos como diretamente observável – A mais evidente e
existentes entre duas variáveis são válidas, explorada das limitações do objeto da
portanto, a possibilidade de um controle psicologia em relação à ciência moderna é o
Psicologia como Ciência Moderna 31

fato deste não ser observável através dos natureza pesando sob a psicologia. Seu objeto
sentidos. Para o empirismo ingênuo que de estudo é tão inobservável quanto o da física
dominou grande parte da filosofia da ciência quântica, e o que ela faz é hipotetizar processos
moderna, o objeto imprime, numa mente e estruturas cognitivas, predizer o
passiva, impressões sobre sua estrutura. Se comportamento que irá derivar deles dado
então os sentidos são a fonte de todo algum input informacional, e testar sua
conhecimento sobre o mundo, estamos diante predição através de experimentos controlados.
da conclusão insofismável de que processos 11) Da dificuldade de mensuração dos
mentais não podem ser objetos de investigação dados na psicologia – É preciso, para qualquer
científica nos moldes da ciência moderna. Mas, filosofia da psicologia, definir uma abordagem
mesmo que não consideremos os sentidos como satisfatória para o problema da mensuração dos
a fonte única do conhecimento, ainda resta seu dados de pesquisas psicológicas. É sabido que a
papel como fonte das proposições ciência depende em larga medida da
observacionais que julgarão nossas hipóteses quantificação dos fenômenos que estuda, e que
sobre o mundo empírico. Como julgar a o objeto da psicologia (o comportamento e
validade destas hipóteses se não temos principalmente os processos mentais humanos),
observações públicas de processos mentais? é largamente refratário à quantificação. Para
Um segundo problema que seria ligado à muitos, como para a psicologia humanista, a
questão da subjetividade é o da aparente maior psicologia não tem sido bem sucedida em suas
dificuldade apontada por alguns psicólogos de tentativas de aplicar um tratamento matemático
se adotar atitudes científicas isentas de à suas pesquisas e problemas, e seu objeto não
preconceitos em relação ao um objeto de estudo seria passível de matematização. Para outros,
que, em última análise, somos nós mesmos. O nem existe problema a resolver, e há ainda
objeto de estudo da psicologia estaria mais aqueles que acreditam não ser possível
sujeito que o de outras ciências à projeção de responder a tal questão no estágio atual de
nossas próprias idéias. Popper (1999) nossa ciência.
argumenta que esta é uma preocupação A tradição humanista em psicologia
característica apenas da tradição empirista, já questiona inclusive a conveniência da tentativa
que os preconceitos são partes constituintes e de quantificação na psicologia, por ela
indissociáveis da atividade científica. Além supostamente vir a restringir arbitrariamente e
disso, o objeto das ciências naturais não seria distorcer os verdadeiros eventos psicológicos,
mais privado de nossas projeções que o da que têm sua compreensão possível somente
psicologia. De qualquer forma, prevalece o fato através de seu sentido. Para a psicologia
de que, por estar tratando de nossa visão acerca humanista, a quantificação do fenômeno
de nós mesmos, ela tem se revelado a disciplina psicológico só tem êxito quando um problema é
com reações mais extremadas e irracionais em tratado de tal forma limitada que já perdeu todo
relação a evidências experimentais, fonte farta seu significado. Assim, conclui-se que a
de exemplos daquilo que Bachelard (1974) mensuração de dados só é possível a partir de
denominou “obstáculo epistemológico”. comportamentos que são tão distantes do
O racionalismo crítico (Popper, evento real e qualitativo que tornam esses
1934/1975b) foi o responsável pelo dados irrelevantes psicologicamente.
reconhecimento generalizado de que o método Apesar de estes argumentos parecerem
científico era hipotético-dedutivo e não adequados em vista de algumas das abordagens
indutivo, assim como pelo abandono do de fenômenos psicológicos que conhecemos,
positivismo lógico. Esta abordagem da filosofia temos ao menos que colocar em dúvida o
da ciência derrubou o mito filosófico da radicalismo da posição que, ao dispensar a
necessidade de observação direta do fenômeno mensuração dos dados, parece esquecer que ela
objeto de investigação científica, assim como é a base da objetividade e da precisão do
também os mitos da indução e da observação método que deu às outras ciências seu incrível
neutra. Hoje, é evidente para a comunidade progresso nos últimos dois séculos. A
científica que o que um físico faz de fato é criar mensuração não é o objetivo do psicólogo
uma teoria, deduzir uma conseqüência experimental, ela é uma ferramenta de
observável dela e realizar um experimento ou investigação da realidade, não um fim em si
observação controlada para testar sua predição. mesmo. Não há dúvida de que a mensuração de
Portanto, não há mais qualquer limitação desta fenômenos psicológicos é mais artificial na
32 Castañon. G. A.

psicologia que em qualquer outra ciência além da complexidade descrita acima, ainda
biológica. Mas, ainda assim, ela é uma adotamos uma abordagem cognitivista, onde
ferramenta indispensável à ciência moderna e entram em questão aspectos cognitivos da
tem sido desenvolvida de forma criativa e determinação do comportamento (as regras de
original por psicólogos desde o surgimento da processamento da informação), ou ainda
disciplina. humanista, para o qual o ser humano é livre e
De qualquer forma, desde que a proativo, estamos diante de uma escala de
desidentificação entre conhecimento e certeza e complexidade possivelmente imensurável e
o método hipotético-dedutivo se generalizaram imprevisível.
na atividade científica, este problema ficou Isso me leva ao julgamento de que a
atenuado. O fim do mito de que a observação pretensão da psicologia de apresentar
mensurada direta do objeto de estudo é a explicações nomológico-dedutivas de
origem das teorias científicas (Popper, 1975b), fenômenos psicológicos é hoje, e talvez será
permitiu o entendimento de que sempre sempre, nada mais do que uma quimera. Uma
partimos de determinada teoria para explicação dedutivo-nomológica tem um
observações, e assim psicólogos puderam formato determinista forte (Robinson, 1985),
passar a criar instrumentos de medidas para determinando de maneira necessária e
efeitos da cognição que suas teorias e hipóteses suficiente que, tendo em vista as leis A, B e C e
em teste julgassem válidos. Hoje, mede-se uma os fatos a, b e c, a sentença explanandum d
imensa variedade destes efeitos, alguns deles decorre dedutivamente dos enunciados
aparentemente bem diretamente ligados aos explanatórios (explanans). Porém, a
processos psicológicos que representam, como multiplicidade interrelacionada de níveis
o tempo de duração de execução de tarefas, explicativos torna impossível, como mostrou
vários tipos de reações fisiológicas, o próprio Davidson (1980), haver leis psicológicas ou
comportamento cerebral através de seu fluxo psicofísicas estritas, pois não haveria meios de
sanguíneo além dos tradicionais dados de precisar as condições para que uma proposição
acuidade de resposta frutos de auto-relatos. universal se cumpra sem exceções. Talvez o
12) Do número de variáveis envolvidas no único meio de resolução deste sério obstáculo
fenômeno psicológico – Como enfrentar o passe pela mudança de forma de explicação
problema da complexidade do objeto da científica na psicologia (Castañon, 2008), mas
psicologia, da imensa quantidade de variáveis tal solução não se encontra desenvolvida hoje
que interferem na determinação ou na filosofia da psicologia.
condicionamento do fenômeno psicológico? De
qualquer ângulo que se encare, este objeto é o
mais complexo da ciência. Mesmo que O estado atual do problema da
analisemos a questão de um ponto de vista cientificidade da psicologia
materialista e reducionista, chegamos à Essas são, em suma, as principais questões
conclusão de que é preciso saber muito de ontológicas e metodológicas que se colocam
química para entender a ação dos como obstáculos ao pleno estabelecimento de
neurotransmissores, cuja compreensão, por sua uma psicologia científica nos moldes da ciência
vez, é necessária para o entendimento do moderna. Estamos diante de um problema de
funcionamento neural, o que, por sua vez, é grande complexidade, de fato, o mais complexo
necessário para a explicação do altamente problema de epistemologia regional. Para
complexo funcionamento cerebral, que, por estabelecermos solidamente os fundamentos da
último, seria a causa do comportamento psicologia como ciência moderna, temos que
humano. Ainda, se consideramos o ser humano encontrar soluções para as dificuldades
do ponto de vista de suas relações sociais, ontológicas e metodológicas que seu objeto de
estamos diante um organismo que receberia a estudo apresenta, ou ao menos, formas de
influência de inumeráveis variáveis culturais, contorná-las.
cuja influência sobre sua “organização De forma geral, aqueles argumentos que se
cerebral” seria altamente complexa. voltam contra a possibilidade da ciência
Avaliamos a complexidade de uma ciência moderna como um todo não parecem ter muita
pelo número de variáveis intervenientes que relevância filosófica e menos ainda prática. Em
atuam na determinação de alguma parte, isso se dá porque é insustentável
conseqüência sobre seu objeto de estudo. Se, logicamente criticar as possibilidades de um
Psicologia como Ciência Moderna 33

método em obter conhecimento válido usando método experimental, mas isso não parece
resultados obtidos por este mesmo método, motivo suficiente para abandonarmos aquele
como fazem os pós-modernos com seu uso que tem sido o mais eficaz meio de obtenção de
inadequado dos resultados da física quântica conhecimento sobre a natureza. Não podemos,
(para análise dos equívocos pós-modernos é certo, investigar a psique como fenômeno de
remeto à obra Imposturas Intelectuais, de Sokal primeira pessoa, o que só uma abordagem
& Bricmont, 2001). Também é igualmente fenomenológica poderia, mas podemos
insustentável logicamente a tese anti- considerá-la como fenômeno de terceira pessoa
representacionista, que usa a linguagem para (que também é) e tentar estudá-la através do
comunicar que a linguagem não pode método hipotético-dedutivo experimental.
comunicar conceitos de forma minimamente Outros antigos argumentos filosóficos
estável. Na prática, a ciência moderna parece também não parecem mais influenciar os
não dar qualquer importância às alegações debates na disciplina. Por exemplo, parece
filosóficas de sua impossibilidade. De fato, em equivocado afirmar que o objeto da psicologia
nenhum momento da história a ciência moderna científica deva ser o sentido da experiência
conheceu maior ritmo de desenvolvimento, consciente. Na verdade, a posição de Dilthey
prestígio e aumento de poder sobre a natureza. parece ser reflexo do equívoco básico das assim
No entanto, na psicologia, o cenário é chamadas ciências humanas contemporâneas. O
diferente. Temos que reconhecer que há equívoco é que o domínio da ciência é o campo
motivos mais do que suficientes para das causas formais e eficientes. O campo das
considerarmos a possibilidade de existência de causas finais, da teleologia, é domínio da
uma psicologia plenamente científica sub filosofia. A distinção de Dilthey entre ciências
judice. Apesar disso, a maioria dos vetos e naturais e humanas separa não o campo entre
obstáculos que, ao longo de sua breve história, dois tipos de ciência, mas sim o campo onde a
mergulharam esta disciplina num permanente ciência pode atuar do campo que é domínio
estado de ciência revolucionária (Kuhn, 1991) exclusivo da filosofia. Uma investigação
foram sendo superados ao longo de seu idiográfica não se constitui num outro tipo de
desenvolvimento. ciência, mas sim, num tipo de investigação
Entre aqueles problemas que foram filosófica. No entanto, parece que uma
resolvidos ou dissolvidos, encontra-se o “veto” psicologia científica madura deveria ser
kantiano da impossibilidade de quantificação plenamente consciente de seus limites de
de fenômenos psíquicos. Não podemos investigação, reconhecendo campos de
quantificar diretamente o objeto da psicologia, problemas que seriam domínio de uma
mas podemos quantificar alguns de seus psicologia filosófica.
efeitos, além de expressarmos as leis Já a tese de que a psicologia não tem
psicológicas em forma lógica e não objeto próprio é decididamente equivocada e
matemática. Da mesma forma, o outro obsoleta, uma vez que não compreende a ordem
argumento kantiano de que o sujeito que ontológica distinta entre o físico (o cérebro) e
investiga não pode ser ao mesmo tempo objeto as funções que ele executa (os processos
encontra-se superado. Há muito já cognitivos). Tal confusão equivale a afirmar
abandonamos a introspecção, voltando nossa que não podemos estudar softwares sem estudar
fonte de coleta de dados para os a estrutura do hardware, ou que não podemos
comportamentos manifestos do organismo. O entender o fluxo monetário (Neisser, 1967) se
fenômeno psíquico é indivisível, mas qualquer não soubermos que meios foram usados para a
fenômeno existente também é. Hoje sabemos troca (notas, cheques, moedas, cartão de
que o universo deve ser considerado um todo crédito, etc.). Ainda em outro nível, qualquer
indivisível, e que separação dos fenômenos é afirmação de que a psicologia não tem um
nada mais que um recurso metodológico, domínio próprio de problemas esconde a crença
necessário para que possamos considerar na inexistência da consciência como domínio
fenômenos ilimitados com nossa razão ontológico real, o que só é possível com a
limitada. Como não estamos mais atrás do assunção de uma posição metafísica
conhecimento perfeito, mas sim aproximativo, materialista radical (quer no fisiologismo, quer
as pequenas distorções decorrentes destas no sociologismo). Negar a ordem ontológica
análises podem ser toleradas. A psicologia pode distinta da consciência em relação ao corpo é
ter um objeto refratário à investigação do uma posição metafísica, no mínimo, altamente
34 Castañon. G. A.

problemática (ver Searle, 1992; Dreyfus, 1993; humano tem um montante de autonomia, a
Nagel, 1980; Jackson, 1990). explicação nomológica-dedutiva em psicologia
O fato de o objeto da psicologia ser (aquela que determina o conjunto exato de
alterado pela interação constitui realmente um causas que levou um fenômeno a se manifestar
problema, porém, não um problema maior que daquela forma) é impossível. Poderíamos, no
o enfrentado atualmente pela física quântica ou máximo, postular explicações condicionais
mesmo pela biologia. O que importa aqui, (aquelas que somente determinam o conjunto
portanto, é estabelecer se estas alterações de condições que permitem a ocorrência de
também obedecem elas mesmas a padrões, o determinado fenômeno).
que traria a questão de volta para o campo da Isso nos leva ao problema da quantidade
investigação científica. Já existe um modelo de variáveis que estão supostamente envolvidas
matemático para tratar de sistemas na determinação (ou somente condicionamento)
retroalimentativos (feedback), e podemos do comportamento. Se podemos em tese
estabelecer em tese o resultado desta interação considerar a possibilidade de obter uma
também de forma previsível, o que no entanto explicação condicional preditiva
adiciona um nível a mais de complexidade ao já cientificamente válida até para um ser humano
incrivelmente complexo problema do dotado de relativa autonomia, na prática isto se
comportamento e processos cognitivos torna muito difícil. Mais ainda defendendo-se o
humanos. tipo de explicação psicológica que o
Já os problemas metodológicos especiais positivismo lógico defendeu até aqui: a
da psicologia moderna são, na verdade, em sua nomológico-dedutiva. Não podemos
maioria, menos graves, uma vez que, em última estabelecer, no mar de variáveis que interferem
análise, não passam de questões operacionais na suposta determinação do comportamento,
que dificultam a execução de pesquisas ou a quais o determinaram efetivamente e em que
precisão de seus resultados. As limitações medida. Sem solução adequada a esta questão,
éticas da pesquisa psicológica são limitações a psicologia moderna continuará sendo
auto-impostas por nós, não intrínsecas ao considerada por muitos uma ficção
objeto. Elas limitam o tipo de experimentos que probabilística, sem muito contato com
podemos conduzir, mas não totalmente. explicações concretas no mundo real.
Podemos também driblar o problema das Já vimos que Davidson (1980) nega a
alterações que situações de pesquisa provocam possibilidade da existência de leis psicológicas
no comportamento humano não permitindo que ou psicofísicas estritas. Gadenne (2006) é
sujeitos experimentais saibam os verdadeiros outro filósofo da psicologia que recentemente
objetivos da pesquisa ou mesmo que estão voltou a negar a viabilidade de explicações
sendo investigados. Da mesma forma, desde a psicológicas nomológico-dedutivas, propondo
falência filosófica do positivismo lógico, não se que leis psicológicas só são possíveis na forma
defende a necessidade de que o objeto de ceterus paribus. Apesar disso, ele próprio
investigação da ciência em questão seja reconhece que leis com este formato são
diretamente observável, somente que ele tenha infalsificáveis, o que, em minha avaliação, as
efeitos que sejam objetivamente mensuráveis. exclui da ciência.
Na verdade, nem na física, astrofísica ou Esta é a magnitude dos desafios que se
biologia temos hoje somente objetos de colocaram historicamente e ainda se colocam à
investigação diretamente observáveis (por possibilidade de constituição da psicologia
exemplo leptons, buracos negros e DNA). como ciência moderna. Apesar de o
Mas, nem todos os problemas e behaviorismo ter apresentado as primeiras
argumentos que fizeram da história da soluções para alguns destes problemas e de o
psicologia a história de uma longa e complexa cognitivismo ter superado a maioria deles
crise se encontram hoje superados ou com completa ou parcialmente (Castañon, 2006), as
modelos de enfrentamento adequadamente questões de um possível nível de autonomia
desenvolvidos. Talvez a maior destas seja a humana e da complexidade da explicação
questão do livre-arbítrio ou da autonomia, que psicológica permanecem sem solução ou
levam a explicação psicológica a um nível de abordagem filosófica adequada, mantendo o
complexidade virtualmente infinito. Na projeto de fundamentação da psicologia
verdade, é necessário assumir que, se o ser moderna uma tarefa ainda insatisfatoriamente
Psicologia como Ciência Moderna 35

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