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Há certas expressões de uso popular que estão directamente relacionados com o sentimento
supersticioso do nosso povo. Uma das expressões mais curiosas da tradição etnográfica
algarvia, embora já caída em desuso, é a de «pôr o pé no meio alqueire». Não conhecia a sua
justificação, mas sei que na serra algarvia era de uso comum. Recentemente, na freguesia de
Alte, tive a oportunidade de falar com uma idosa aldeã que me explicou a sua origem e
fundamento.
Assim, embora não se saiba ao certo quando essa expressão teve início é possível que remonte
ao tempo manuelino, quando o trigo constituía a base alimentar do povo e a principal riqueza
dos agricultores. O alqueire era a medida mais comum nas transacções do mercado interno, para
abastecimento dos celeiros concelhios. Mas também era a medida usada nas vendas externas,
nomeadamente nas nossas exportações para o Brasil.
Os recém-casados, para terem abundância no lar, deviam na noite de núpcias usar como base
de apoio uma medida de meio alqueire para subir para o leito conjugal. Daí que na linguagem
popular dos serrenhos algarvios, «pôr o pé no meio alqueire» seja uma forma de dizer que um
par de namorados vai finalmente casar.
Entre as superstições algarvias menos conhecidas, merecem ser aqui lembrados dois exemplos,
que julgo relacionados com as tradições criptojudaicas. Assim, dizia-se que quando alguém,
estando doente, se sentisse recuperar as forças da convalescença, não deveria levantar-se do
leito ao domingo, porque se o fizesse teria de certeza uma forte recaída. O
Estandarte do Tribunal
do Santo Ofício
domingo era um dia sagrado para os cristãos, mas sem importância para os judeus, razão pela
qual julgo que se espalhou esta alegada superstição, que mais parece uma advertência aos
judeus para evitarem a atenção dos esbirros da Inquisição.
Outra superstição algarvia, mas que me parece de uso generalizado nas localidades onde
houvesse judiarias, era de não se vestir roupa lavada ao sábado, porque isso era o que faziam
os judeus quando celebravam o “Shabat”. Aliás essa palavra hebraica, Shabat, da qual deriva o
nosso sábado, quer dizer dia de descanso ou da inactividade. Precisamente o que para nós
cristãos significa o Domingo. Por isso, vestir roupa lavada era quase uma obrigação para os
cristãos ao domingo, por ser o dia destinado à santa missa e ao descanso dos crentes. Mas, se
alguém vestisse roupa lavada ao sábado estava a auto-declarar-se como amante da fé hebraica.
Aforismos Algarvios
A flor da Esteva
Designa-se por Lábdano ou Ládano a planta silvestre, muito vulgar por entre os matos do sul
peninsular, conhecida por Esteva. A sua designação científica, cistus ladanifer, deriva
precisamente do lábdano, que é o óleo resinoso que cobre as folhas verde escuras da planta.
Quem já andou pelas matas algarvias por certo já colheu a flor da esteva, seduzido pelo aroma
da sua resina, que supunha ser o perfume da flor. Embora seja uma planta silvestre, a esteva é
de uma beleza ímpar e sedutora. Apresenta-se em forma de arbusto, com mais de um metro de
altura, e tem uma flor grande de uma brancura imaculada. Possui cinco pétalas muito finas, com
uma pinta bordeaux em forma de ponta de lança. Ao centro os estames amarelos cintilantes
parecem uma coroa de fios de de ovos. Há quem lhe atribua propriedade medicinais únicas. Em
chã é muito recomendado o chã das flores para o colesterol e a rama para o combate ao ácido
úrico. Muitas outras propriedades lhe são atribuídas, que não vem agora e aqui ao assunto.
Uma das suas utilidades, depois de seco o arbusto, é como combustível natural. Antigamente,
nos campos algarvios, cozinhava-se com o fogo da esteva, pois que sendo uma planta lenhosa
e resinosa transforma-se facilmente num combustível de fácil incineração. A chama do fogo da
esteva é muito luminosa e incandescente, mas dura pouco, porque a planta-se consome-se
rapidamente. Por isso é muito boa para acender o fogo das actuais lareiras, funcionando como
uma espécie de acendalha natural. Quando no verão as florestas ardem por esse país fora, a
esteva é o maior inimigo dos bombeiros.
Mas o mais importante da esteva é o Lábdano, essa natural exsudação resinosa e aromática
que ressuma das suas folhas, muito empregue na indústria da perfumaria, e actualmente também
na farmacologia. A forma como era capturada antigamente constitui o cerne deste apontamento.
O método era rudimentar, mas creio que ainda hoje não se conhece outro. Fazia-se do seguinte
modo: dois homens seguravam nas pontas de uma corda de crina (feita geralmente com a lã da
ovelha) e passavam-na meticulosamente por cima das estevas para capturar a resina. Havia
também quem improvisasse atando cordéis a um pau curto e com ele se sacode todas as
manhãs as plantas, enquanto estão cheias de orvalho. O método mais rudimentar era o dos
pastores, que levando os seus rebanhos para os matos das estevas, costumavam ao fim do dia
pentear pacientemente a lã do pescoço e do dorso dos animais, para dela extrair a resina.
Apanhada a resina tratava-se depois de a derreter em lume brando até que por fim se deixava
coalhar.
A principal utilização industrial da resina da esteva é na preparação da perfumaria, onde é
empregue como fixador. Por isso, no século passado houve um indivíduo francês que passando
pelo Algarve verificou que a esteva era uma espécie de praga natural que se desenvolvia sem
custos nem trabalhos. Logo fez divulgar pela imprensa regional que iria aqui fundar uma fábrica
de perfumes. O caso subiu às instâncias superiores que acolheram a ideia com júbilo. Só havia
um pequeno pormenor: o indivíduo não tinha capital para fundar a indústria, mas tinha o saber
especializado para extrair a resina e começar a produzir perfumes no Algarve. É claro que se
fosse hoje o homem estava garantido. Mas, naquela altura, o governo mandou-o primeiro arranjar
o capital junto dos investidores do país dele, e só depois é que estaria disposto a recebê-lo para
se pensar nessa tal indústria dos perfumes do Algarve.
Benzeduras e ditos populares na etnografia algarvia
Benzer o pão - Terminada a amassadura do pão, benze-se a massa e talha-se com a mão
fazendo um gesto em cruz; quando a maça começa a levedar esta cresce de volume até atingir
uma proporção que indica poder dar-se o trabalho por concluído, dizendo-se então: “Deus te
acrescente / Deus te ponha a virtude / Que eu já fiz o que pude”. Esta crença e procedimento
que era comum e habitual em todo o Algarve, hoje só se executa nas casas de campo e lavoura
do interior algarvio, sobretudo em São Brás de Alportel, em Castro Marim, Silves, Monchique e
Aljezur. No entanto, este dito era substituído em muitos lares onde se cozia pão, por
uma ladainha popular, por um responso religioso, dirigido a Santo António ou a São Francisco,
e por uma bênção igual à que viam e ouviam fazer na missa. Esta crença da benzedura e
da ladainha religiosa usava-se não só na amassadura do pão, mas também no parto dos animais
de curral. Era muito comum o uso de rezas e benzeduras por certos curandeiros e habilidosos
de mãos, a que chamavam "endireita", uma espécie de fisioterapeuta popular que nas aldeias e
terras do litoral algarvio costumava curar entorces e outras lesões articulares, que no Algarve
costumam designar por "desmantalamentos".
Cangrejo - No linguajar algarvio, significa caranguejo, daí a expressão muito peculiar de
“andar ao cangrejo” que se traduz na apanha do caranguejo. Também é muito corrente dizer-se
“cangrejar” que significa mourejar ou trabalhar muito, mas com pouco proveito.
AFTAS
Todos sabemos que aquelas manchas esbranquiçada, redondas, com uma auréola vermelha,
que nascem na ponta da língua e a que vulgarmente chamamos aftas, causam grande
incómodo, chegando mesmo a tornarem-se num verdadeiro suplício. Na verdade, as aftas não
são mais do que pequenas ulcerações, geralmente dolorosas e insuportavéis, que aparecem
de forma inesperada na mucosa bucal. Ninguém sabe o porquê do seu aparecimento, embora
se avente a hipótese de terem origem nervosa. Em geral têm menos de 12 mm de diâmetro e
costumam aparecer em grupos de duas ou de três, sendo certo que normalmente
desaparecem ao fim de poucos dias, sem deixarem, felizmente, rasto.
Não existe especificamente um tratamento para as aftas. Mas aqui no Algarve o povo, que se
habituou a designá-las por «sapos», arranjou uma forma sui generis de se livrar delas,
bastando para isso dizer , em voz clara e sem se enganar, a seguinte ladaínha: «Tenho um
sapo na língua, um cento à roda d'este, nem este nem outro, nem outro como este».
As gentes da serra simplificaram a coisa, para dizerem três vezes seguidas, simplesmente
assim: «Em cima deste sapo, outro, nem este nem outro».
Diziam também alguns idosos da serra de Alte que mais eficaz do que as ladaínhas era passar
a língua pelas paredes caiadas. Por isso, quando viam alguém encostado às paredes sombrias
da Igreja, a lamber a frescura da sua alvura, diziam logo: "pobre coitado deve estar cozido de
sapos".