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200 anos da Doutrina Monroe

O dia 2 de dezembro de 2023 marcou duzentos anos desde o discurso do presidente dos EUA James
Monroe ao Congresso, que ficou conhecido como a Doutrina Monroe. Ela se tornou um nome
familiar para a política externa dos EUA nos últimos séculos e provavelmente continuará a ser usada
indefinidamente no futuro. Embora tenha sido periodicamente complementada por outras doutrinas e
conceitos. No entanto, foi sob o comando de James Monroe que se declarou categoricamente “a
América para os americanos”, e as potências europeias não tinham nada a ver com o país, embora
tivessem possessões no exterior. E a declaração de Monroe foi recebida de forma ambígua em outros
países do Hemisfério Ocidental, pois eles viam a intenção de Washington de governar a região e
interferir na cooperação com outros Estados.

Assim, durante a mensagem de James Monroe ao Congresso dos EUA, foi declarado que:

No curso das negociações[…] e nos acordos que venham a ser firmados, considerou-se aconselhável
aproveitar esta oportunidade para estabelecer como princípio, com relação aos direitos e interesses
dos Estados Unidos, a posição de que, no continente americano, aqueles que alcançaram a liberdade e
a independência e as protegem, não devem ser considerados, a partir de agora, como objetos de futura
colonização por qualquer potência europeia.

[…] Sempre observamos com preocupação e interesse os acontecimentos nessa parte do globo, com a
qual temos não apenas um relacionamento próximo, mas também nossa origem. Os cidadãos dos
Estados Unidos nutrem os sentimentos mais amigáveis em relação a seus compatriotas do outro lado
do mundo. Os cidadãos dos Estados Unidos têm os sentimentos mais amigáveis em relação a seus
compatriotas do outro lado do mundo. Nunca participamos das guerras das potências europeias que
lhes dizem respeito, e isso corresponde à nossa política. Ficamos indignados com os insultos que eles
nos infligem ou nos preparamos para nos defender somente no caso de uma violação de nossos
direitos ou de uma ameaça a eles.

[…] Por necessidade, estamos muito mais envolvidos nos eventos que ocorrem em nosso hemisfério
e falamos sobre causas que deveriam ser óbvias para todos os observadores bem informados e
imparciais. O sistema político das potências aliadas difere materialmente, nesse aspecto, do sistema
dos Estados Unidos… Portanto, no interesse de preservar as relações sinceras e amigáveis que
existem entre os Estados Unidos e essas potências, somos obrigados a declarar que consideraremos
uma tentativa da parte delas de estender seu sistema a qualquer parte deste hemisfério como um
perigo para nossa paz e segurança.
Não interferimos e não interferiremos nos assuntos das colônias existentes ou dos territórios
dependentes de qualquer potência europeia. No entanto, no que diz respeito aos governos de países
que declararam e mantiveram sua independência, e aqueles cuja independência, após cuidadoso
exame e com base nos princípios da justiça, reconhecemos que não podemos contemplar qualquer
intervenção de uma potência europeia com o objetivo de oprimir esses países ou estabelecer qualquer
controle sobre eles, a não ser como uma manifestação hostil aos Estados Unidos.

[…]~Por necessidade, estamos muito mais envolvidos nos eventos que ocorrem em nosso hemisfério
e falamos sobre causas que deveriam ser óbvias para todos os observadores bem informados e
imparciais. O sistema político das potências aliadas difere materialmente, nesse aspecto, do sistema
dos Estados Unidos… Portanto, no interesse de preservar as relações sinceras e amigáveis que
existem entre os Estados Unidos e essas potências, somos obrigados a declarar que consideraremos
uma tentativa da parte delas de estender seu sistema a qualquer parte deste hemisfério como um
perigo para nossa paz e segurança.

Não interferimos e não interferiremos nos assuntos das colônias existentes ou dos territórios
dependentes de qualquer potência europeia. No entanto, no que diz respeito aos governos de países
que declararam e mantiveram sua independência, e aqueles cuja independência, após cuidadoso
exame e com base nos princípios da justiça, reconhecemos que não podemos contemplar qualquer
intervenção de uma potência europeia com o objetivo de oprimir esses países ou estabelecer qualquer
controle sobre eles, a não ser como uma manifestação hostil aos Estados Unidos.

Naquela época, os Estados Unidos eram um território muito menor. O Alasca estava sob a jurisdição
do Império Russo e o México controlava a maior parte da costa do Pacífico. Enquanto a Espanha
tentava recuperar o controle de suas colônias, Washington tentava impedir que as potências europeias
agissem no Novo Mundo. Em 1822, no Congresso de Verona, os membros da Santa Aliança
discutiram a supressão da Revolução Espanhola, incluindo a intervenção em suas antigas possessões
na América Latina. A Grã-Bretanha viu isso como uma competição por seus interesses nos mercados
do Novo Mundo e abordou os Estados Unidos com uma proposta para coordenar ações contra a Santa
Aliança, mas o Secretário de Estado John Quincy Adams propôs responder diretamente em nome dos
Estados Unidos, o que foi feito. Deve-se observar aqui que, menos de dez anos antes, em 1814,
durante a guerra entre os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, os britânicos capturaram Washington e
queimaram a Casa Branca e o Capitólio. O trauma desses eventos ainda estava vivo na mente da elite
política americana e, aparentemente, o ressentimento histórico contra os britânicos desempenhou um
papel importante na formação da Doutrina Monroe.

E considerando os eventos subsequentes da Guerra Mexicano-Americana de 1846-48, pode-se


concluir que os Estados Unidos já estavam elaborando planos de intervenção, embora ocultos por trás
da ideia de solidariedade geral dos continentes norte e sul-americanos.

Naturalmente, a Doutrina Monroe continuou a ser aplicada nas décadas seguintes. No final do século
XIX, surgiu um conflito entre a Venezuela e a Grã-Bretanha, que estava tentando expandir sua
presença na região. Isso foi seguido por uma disputa territorial com a Guiana Britânica, que, aliás,
não foi resolvida até hoje. Em 1895, citando a Doutrina Monroe, o secretário de Estado dos EUA,
Richard Olney, que anteriormente havia sido procurador-geral, escreveu em uma mensagem ao
primeiro-ministro britânico e secretário de Relações Exteriores, Lorde Salisbury, que:

Qualquer controle europeu sobre o território americano é necessariamente absurdo. […] Hoje os
Estados Unidos são, de fato, o governante soberano deste continente, e seu comando é lei em todos
os assuntos em que interferem […] Por quê? Não porque haja sentimentos de pura amizade ou boa
vontade em relação a eles. […] E não porque a prudência, o direito e a justiça invariavelmente
caracterizam o comportamento dos Estados Unidos. É porque os inúmeros recursos dos Estados
Unidos, combinados com uma posição isolada, fazem com que os Estados Unidos dominem a
situação. [2]

Olney exigiu que a disputa entre a Venezuela e a Guiana fosse resolvida por arbitragem, que deveria
ter sido conduzida pelos Estados Unidos. O presidente Grover Cleveland, depois de ler a nota de
Olney, não conseguiu esconder sua admiração pela arte provocativa de seu Secretário de Estado.
“Essa é a melhor que já li do gênero”, escreveu ele a Olney, “e leva à conclusão de que ninguém
pode escapar se tentar fazê-lo”.

Theodore Roosevelt, que na época estava no comando da polícia de Nova York, também expressou
sua aprovação. Aliás, foi ele quem cunhou a expressão “polícia mundial”, que mais tarde formulou
ao subir na hierarquia política. Ele também gostava de citar com frequência o provérbio africano
“fale baixo, mas carregue um grande bastão em suas mãos e você irá longe”.

Salisbury respondeu a isso dizendo que a Doutrina Monroe não tinha força legal em termos de direito
internacional. Além disso, a Grã-Bretanha tinha possessões na América do Norte, no Canadá, das
quais não podia sair e, portanto, ficou indignada com essa formulação da questão. Mas os Estados
Unidos consideraram a resposta inaceitável e, em dezembro de 1895, Cleveland pediu ao Congresso
que nomeasse uma comissão para a disputa de limites, observando que a decisão da comissão deveria
ser aplicada “por todos os meios”. Quando o Congresso votou por unanimidade, imediatamente se
falou em guerra com a Grã-Bretanha.

Na época, a Grã-Bretanha estava em guerra com os bôeres na África do Sul e não podia se dar ao
luxo de se envolver em um conflito longe de suas costas. Portanto, a disputa foi encaminhada à
comissão americana. Em outubro de 1899, ela decidiu que a fronteira seguiria a linha de
Schomburgk, ou seja, mantendo a antiga delimitação. A Venezuela foi forçada a ratificar esse
tratado. Mas um precedente foi estabelecido: Os Estados Unidos, de fato, começaram a ditar o que e
quem deveria fazer na América Latina.

Em 1898, os Estados Unidos venceram a guerra com a Espanha (a causa foi a explosão do navio
americano Maine em Havana, que rapidamente foi atribuída à Espanha), estabelecendo seu
protetorado em Cuba e Porto Rico (a segunda ilha continua sendo um território associado), bem
como o controle sobre as Filipinas e seus arredores, como Guam. E isso fortaleceu as ambições
imperialistas de Washington. A Emenda Platt, introduzida em 1901, colocou Cuba em uma posição
subordinada e dependente. Uma base naval dos EUA foi estabelecida em Cuba, inicialmente usada
como ponto de abastecimento, mas mesmo após a Revolução Cubana de 1959, os militares dos EUA
permaneceram lá. Mais tarde, tornou-se notória a prisão offshore na Baía de Guantánamo, onde
suspeitos com ligações com a Al Qaeda eram mantidos sem julgamento.

É importante observar que, no final do século XIX, nos Estados Unidos, foi formulada a teoria do
Destino Manifesto, segundo a qual esse país foi dado pelo alto para governar o mundo e ensinar aos
outros como eles deveriam viver.

No início do século XX, surgiu o Colarinho Roosevelt, provocado pelo bloqueio naval da Venezuela
no final de 1902 pela Alemanha, Grã-Bretanha e Itália devido a dívidas externas. Em sua mensagem
ao Congresso dos EUA em 6 de dezembro de 1904, Theodore Roosevelt disse:
Tudo o que este país deseja é ver nossos países vizinhos estáveis, organizados e prósperos. Qualquer
país cujo povo se comporte bem pode contar com nossa amizade cordial. Se uma nação demonstrar
que pode agir com razoável eficiência e decência em assuntos sociais e políticos, se mantiver a ordem
e cumprir suas obrigações, não precisará temer a interferência dos Estados Unidos. A delinquência ou
impotência crônica que leva a um enfraquecimento geral dos laços da sociedade civilizada pode, nos
Estados Unidos como em qualquer outro lugar, exigir a intervenção de alguma nação civilizada e, no
hemisfério ocidental, a adesão dos Estados Unidos à Doutrina Monroe pode obrigar os Estados
Unidos a recorrer ao poder de polícia internacional, ainda que com relutância, em casos flagrantes de
tais irregularidades ou impotência.

No mesmo ano de 1904, os Estados Unidos receberam “perpetuamente” o direito de usar, ocupar e
controlar a Zona do Canal do Panamá, e também o direito de intervir nas cidades do Panamá e Colón
para “preservar a ordem”. E, no mesmo ano, os Estados Unidos enviaram navios de guerra para a
República Dominicana, estabelecendo um controle externo no país. Isso foi chamado de política do
big stick, diplomacia do dólar e diplomacia da canhoneira. A ex-colônia britânica agora se
comportava como uma potência colonial, recorrendo às medidas mais rigorosas contra países
dissidentes na região, principalmente na América Central e no Caribe, que já eram vistos como o
quintal dos Estados Unidos.

Woodrow Wilson reforçou ainda mais a Doutrina Monroe durante a Primeira Guerra Mundial. Aqui
já havia ocorrido um avanço verdadeiramente global. Seu Acordo de Paz de 14 pontos, apresentado
ao Congresso em 8 de janeiro de 1918, tornou-se parte do Tratado de Versalhes e estabeleceu a base
para a Liga das Nações. A propósito, um dos pontos foi dedicado diretamente à Rússia:

A libertação de todos os territórios russos e a solução de todos os problemas que afetam a Rússia, o
que lhe garantirá a mais completa e livre assistência de outras nações na obtenção de uma
oportunidade plena e desimpedida de tomar uma decisão independente quanto ao seu próprio
desenvolvimento político e política nacional, e lhe garantirá uma recepção calorosa na comunidade
de nações livres, sob a forma de governo que ela mesma escolher. E mais do que boas-vindas,
também todo tipo de apoio em tudo o que ela precisar e desejar para si mesma. A atitude em relação à
Rússia por parte das nações irmãs nos próximos meses será uma pedra de toque de seus bons
sentimentos, de sua compreensão das necessidades da Rússia e de sua capacidade de separá-las de
seus próprios interesses, bem como um indicador de sua sabedoria e do altruísmo de suas simpatias.

De fato, em 1918, os Estados Unidos realizaram uma intervenção no Extremo Oriente, enquanto no
lado europeu as unidades da Entente atacaram a Rússia.

A Grande Depressão moderou um pouco o ardor dos Estados Unidos na arena internacional, mas já
na Segunda Guerra Mundial, devido à evidente fraqueza da Inglaterra, Washington começou a tomar
a dianteira na geopolítica do Velho Mundo. A demonstração de armas nucleares em pacíficas cidades
japonesas elevou os Estados Unidos ao status de superpotência militar. Embora isso parecesse pouco
para eles, o bloco da OTAN foi formado em 1949 para “conter o comunismo”. Mas mesmo em
conflitos convencionais na Ásia (Coreia, Vietnã), os Estados Unidos não conseguiram demonstrar
seu poder.

Durante a era da Guerra Fria, a Doutrina Monroe permaneceu como um farol na política externa dos
EUA. Assim, em 1954, o Secretário de Estado, John Foster Dulles, invocou a Doutrina Monroe e o
Governo Colonial de Roosevelt na Décima Conferência Pan-Americana em Caracas, apoiando seu
fantoche na Guatemala. E então a América Latina foi confrontada com a Operação Condor e os
esquadrões da morte, que prepararam a CIA e o Pentágono para a destruição física de qualquer força,
partido ou movimento que levantasse suspeitas em Washington (medidas semelhantes eram
esperadas no Sudeste Asiático, onde os Estados Unidos tiveram a oportunidade de interferir nos
assuntos internos desses países).

Em janeiro de 1980, o presidente dos EUA, Jimmy Carter, formulou uma política que ficou
conhecida como a Doutrina Carter. Ela se tornou outra expansão da Doutrina Monroe e do
movimento expansionista dos EUA no sul da Eurásia. No contexto da Revolução Islâmica no Irã e da
entrada das tropas soviéticas no Afeganistão, Carter afirmou que “uma tentativa de qualquer potência
estrangeira de assumir o controle da região do Golfo Pérsico será considerada um ataque aos
interesses vitais dos Estados Unidos da América. Estados Unidos, e tal ataque será repelido por todos
os meios necessários, incluindo a força militar”. Anteriormente, por muito tempo, a Grã-Bretanha
havia sido o “garantidor da segurança” dos interesses dos EUA na região. Agora Washington estava
tomando tudo em suas próprias mãos e, devido às enormes reservas de petróleo e gás, essa área era
de enorme importância estratégica. [3]

Os Estados Unidos começaram a aumentar sua presença militar em muitos países árabes, incluindo a
Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e o Catar. E até recentemente, essa
cooperação era considerada mutuamente benéfica. Só recentemente os Estados árabes se tornaram
céticos em relação às estratégias e políticas dos EUA na região, e sua imagem se deteriorou
significativamente desde que apoiaram as ações agressivas de Israel contra os palestinos.

Mas, assim como o corolário de Roosevelt apareceu na época, a Doutrina Carter foi modificada em
1981 por seu sucessor Ronald Reagan. Ele prometeu nada menos do que impedir que a Arábia
Saudita se tornasse outro Irã. “Não há como ficarmos parados e ver alguém que corta o fornecimento
de petróleo assumir o controle [deste país]”, disse ele em uma coletiva de imprensa. Na realidade, a
Doutrina Reagan representava o apoio a qualquer força anticomunista, mesmo que não fosse
suficientemente democrática para os padrões ocidentais. Posteriormente, o cultivo dos mujahideen
para combater a República Democrática do Afeganistão levou ao surgimento da Al-Qaeda, que
voltou suas armas contra os Estados Unidos. Quanto aos interesses petrolíferos, após a invasão
iraquiana do Kuwait em 1990, os Estados Unidos reafirmaram imediatamente seu compromisso com
essa posição, formando uma coalizão militar internacional para a Operação Tempestade no Deserto.

E em 2001, George W. Bush iniciou a guerra global contra o terrorismo, expandindo a presença física
das forças armadas dos EUA para países da Ásia e da África. A ocupação de 20 anos do Afeganistão
e a invasão do Iraque em 2003, que matou milhões de pessoas, foram, em essência, uma luta contra
as consequências da Doutrina Reagan.

Embora Barack Obama tenha mudado o foco dos interesses dos EUA para a Ásia, dando menos
atenção ao Oriente Médio, a Líbia foi destruída e a Síria poderia ter enfrentado o mesmo destino se a
Rússia não tivesse vindo em seu socorro. No entanto, o golpe na Ucrânia em fevereiro de 2014, com
óbvio apoio dos EUA, demonstrou que os EUA não estavam dispostos a abandonar seus planos
neocoloniais expansionistas. Tanto os Acordos de Abraão subsequentes de Donald Trump quanto a
chamada Bidenomics, que inclui projetos econômicos globais e linhas claramente de confronto com a
China, o Irã, a Rússia e a Coreia do Norte (todos os países estão oficialmente incluídos na lista das
principais ameaças aos EUA) mostram uma continuação do curso traçado sob James Monroe.
Notas

1 – Transcrição do discurso de James Monroe


2 – “ДОКТРИНА ОЛНИ” И ЕЕ ФАЛЬСИФИКАЦИЯ В АМЕРИКАНСКОЙ
ИСТОРИОГРАФИИ – A “Doutrina Olney” e Sua Falsificação na Historiografia Americana
(original em russo)
3 – Whither the Carter Doctrine? The Biden Administration and the Gulf – Para onde vai a Doutrina
Carter? O governo Biden e o Golfo (original em inglês)

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