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Cadernos de Letras da UFF – PIBIC – GLC, nos 30-31, 2004-2005 35

Com olhos de ver: poesia e fotografia


em Manoel de Barros

Antonio Francisco de Andrade Jr.


Orientadora: Eurídice Figueiredo

RESUMO
Nesta leitura da obra de Manoel de Barros, tentaremos identifi-
car diferentes modos de relação entre visualidade e discursividade
lírica, enfatizando, sobretudo, o diálogo dos seus textos com a foto-
grafia, arte técnica que segundo Benjamin deflagra todo um proces-
so de mudança contextuais e de novas reflexões em torno das artes
visuais na modernidade. Desse modo, queremos evidenciar a par-
tir de sua própria produção o questionamento de determinadas
estereotipias críticas que o vinculam aos rótulos de “poeta
pantaneiro” ou poeta “neo-romântico”. É um trabalho, portanto,
que pretende lançar um outro modo de perspectivação dos textos de
um dos poetas brasileiros mais lidos da contemporaneidade.

Palavras-chave: poesia; subjetividade; visualidade.

[...] a essência da imagem é estar toda fora, sem inti-


midade, e, no entanto, mais inacessível e misteriosa
do que o pensamento do foro íntimo; sem significa-
ção, mas invocando a profundidade de todo sentido
possível; irrevelada e todavia manifesta, tendo essa
presença-ausência que faz a atração e o fascínio das
Sereias (BLANCHOT, 1998).

anoel de Barros foi cultuado como uma das vozes mais originais da

M nossa poesia nos anos 80. Alguns fatores corroboraram para que essa
poesia ganhasse destaque nessa época. Dentre eles podemos citar a
nostalgia dos anos 70 – década da poesia marginal – e a grande variedade de
dicções poéticas sem uma diretriz programática nítida. Uma e outra possibilita-
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ram que a poesia de Barros – uma poesia que prega certo aspecto intuitivo do
verso, marcado pela coloquialidade da frase, em oposição à escola do rigor cons-
trutivo – ganhasse notoriedade apenas na década de 80, apesar de ser publicada,
quase que anonimamente, desde 1937. Hoje em dia, entretanto, “o poeta
pantaneiro”, como Barros é conhecido, vem sendo bastante criticado devido à
repetição temática e formal dos seus livros que, para muitos, não vão além de
um regionalismo neo-romântico impregnado pela herança da prosa neológica
de Guimarães Rosa. Este regionalismo representaria o Pantanal sul-mato-
grossense como um cenário exótico, resgatando os topoi do selvagem e do primi-
tivo instaurados pelo romantismo – topoi esses que parte de nosso modernismo
já havia tentado erradicar, em busca de um descentramento da tradição naciona-
lista da nossa literatura.
Essas são as leituras recorrentes da poesia de Barros, que, por tais motivos,
já chegou a ser chamada de ecológica, artificial, epigônica e fraudatária. Nós,
porém, em lugar de endossar essa recusa radical ou aquele elogioso culto ao
universo pantaneiro, propomos uma leitura da obra manoelina sob uma nova
perspectiva. Essa nova perspectiva pode ser depreendida através da análise do
caráter visual das imagens na poesia de Manoel de Barros, que chega inclusive a
se refletir nas ilustrações e nas referências a grandes pintores que marcam sua
obra, desmitificando o lugar-comum da poesia romântica, que quase sempre
relaciona a emoção subjetiva à paisagem, como se o mundo exterior e o interior,
ambos igualmente naturais, fossem um a extensão do outro. O poema “O pulo”,
do livro Arranjos para assobio (1980), de Barros, é um exemplo de como essa poe-
sia, inversamente, sempre se preocupou em apresentar a natureza como efeito
de uma construção da imagem visual: “Estrela foi se arrastando no chão deu no
sapo/ sapo ficou teso de flor!/ e pulou o silêncio” (Apud BARROS, 1992, p.
223). Este poema não apresenta a primeira pessoa, construindo-se como um
movimento independente do sujeito de transfiguração dos elementos da nature-
za numa linguagem simples e precisa. Desdobram-se nele imagens que passam
por diferentes ordens do natural, culminando com a idéia de silêncio, que repre-
senta a subjetividade lírica como uma impossibilidade de plena comunhão com-
preensiva com a natureza.
No seu livro Ensaios fotográficos (2000), podemos perceber, desde o título,
como se radicaliza essa relação de sua poesia com a visualidade e como nessa
relação se vai problematizar tanto o visual como o subjetivo. Nesse livro, atra-
vés da idéia de fotografia, o poeta, ao mesmo tempo em que demonstra exata-
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mente o contrário do estereótipo romântico do subjetivismo, apresenta uma


nova maneira de trabalhar as imagens ligadas à natureza. A fotografia aí é uma
forma de explicitar o caráter complexo e fascinante da imagem visual, ao mes-
mo tempo presença e ausência, segundo a citação de Maurice Blanchot escolhida
por nós como epígrafe para evidenciar o movimento de externalização da poe-
sia manoelina. No poema “O poeta”, por exemplo, o sujeito lírico explica como
se deu, aos treze anos, a sua entrada no universo da poesia, que aí ganha a con-
cepção de reino das imagens, a ser atingido através de todos os poemas desse
livro:
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.

A poesia aí nasce da observação de uma paisagem comum, a da Cordilheira


dos Andes, distante e perdida no horizonte, capaz no entanto de provocar a
inspiração poética, que não advém como uma iluminação e sim como uma iluminura
(como um pequeno ornato), que nos sugere a importância do detalhe na obra de
Barros. Seu olhar procura sempre o pequeno, o sem importância, e dessa forma
transgride o lugar-comum da poesia grandiloqüente. O verso que nasce da
iluminura parece representar o olhar de um fotógrafo que enquadra a paisagem
e vê a realidade como um desenho composto por linhas. Por isso, a imagem
poética é a transgressão da imagem perfeita: “Aquele morro bem que entorta a
bunda da paisagem”. Da mesma forma, a arte fotográfica também é menos uma
forma de reprodução mimética do visível do que uma forma de transgredir as
fronteiras do visual, e de encontrar na realidade o que os nossos olhos não per-
cebem. Fazendo uma leitura intertextual, comparando esse poema a um do li-
vro posterior a Ensaios fotográficos, denominado Tratado geral das grandezas do ínfimo
(2001), percebemos de novo o movimento de fixação no detalhe em detrimento
do grandioso. Com o título de “Sobre importâncias”, nesse poema o poeta
identifica no fotógrafo a mesma preocupação com relação ao detalhe, dizendo
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que “[...] talvez para um/ fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais/ im-
portante do que o esplendor do sol nos oceanos”. E retomando, ainda nesse
poema, a mesma paisagem andina:
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Mesmo utilizando um lugar-comum do nosso romantismo nacionalista (a
imagem do “sabiá”), Manoel de Barros consegue fazer uma comparação inusita-
da. Num movimento próprio da sua poética, que alguns estudiosos conseguem
ver como fruto de uma insuspeitada influência da linguagem oswaldiana, ele
transforma o lugar-comum em poesia, através do olhar de criança, irresponsável
e transgressor, que distorce e entorta a realidade. O final do poema “O poeta”
mostra o confronto do infantil com o convencional: “Mostrei a obra pra minha
mãe./ A mãe falou:/ Agora você vai ter que assumir as suas/ irresponsabilidades./
Eu assumi: entrei no mundo das imagens”. Já Oswald de Andrade, em seu poe-
ma “3 de maio”, mostra a relação entre a poesia e o olhar infantil, que é o olhar
da novidade. Aí o poeta diz: “Aprendi com meu filho de dez anos/ Que a poesia
é a descoberta/ Das coisas que eu nunca vi” (Apud CAMARGO, 1996, p. 37).
Daí, depreende-se o diálogo com a obra manoelina, pois ambos compreendem a
poesia como uma forma de instaurar uma nova realidade através da linguagem
do olhar. Outros aspectos desse diálogo são apontados por Goiandira Camargo:
A inserção do coloquial no espaço poético, a tematização do
universo cotidiano e do imaginário infantil, a linguagem
desprendida da lógica para concentrar e elaborar as imagens da
inocência, articulam o diálogo com Oswald, numa vertente que
tece o autobiográfico, exposto na mitologia da infância, com o viés
social, numa linguagem lúdica, às vezes prosaica, que se ilumina
aqui e ali com as imagens da “inocência criativa” e da “surpresa”.
(Ibidem, p. 31)

Essa, contudo, não é a primeira vez que a imagem da criança aparece vin-
culada ao conceito de arte moderna. Ao contrário do que se pode pensar, essa
relação não se dá através da recuperação de uma linguagem totalmente
espontaneísta e desprovida de qualquer esforço construtivo, mas como fruto de
uma técnica consciente de feitura do verso. Num texto do século XIX, Charles
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Baudelaire já havia afirmado que tanto o homem de gênio como a criança estão
respectivamente infensos às restrições da razão e da sensibilidade puras. O gran-
de artista, contudo, é aquele que usa a razão para buscar o novo, e que mantém
vivo o olhar curioso da criança. Em “O pintor da vida moderna”, Baudelaire
demonstra como essa junção entre a capacidade de ver o novo e de analisá-lo são
fundamentais para a formação do verdadeiro gênio moderno:
Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância
agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico
que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente
acumulada. É a curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir
o olhar fixo e animalmente estático das crianças diante do novo...
(BAUDELAIRE, 1996, p. 169)

No que toca a esse aspecto lúdico da linguagem manoelina, a epígrafe da


primeira parte de Ensaios fotográficos reproduz também uma frase de Jorge Luís
Borges: “Imagens não passam de incontinências do visual”. Relacionando-a à
questão do olhar infantil, podemos dizer que nesse livro a forte presença da
relação entre poesia e visualidade tem a ver com a multiplicidade do visível, das
inúmeras maneiras de ver o mesmo objeto e de imaginá-lo. A imagem poética
não é a experiência comum do ver, o que interessa em poesia são as incontinências.
O desregramento, o desrespeito à ordem comum das coisas é representado pela
visão infantil que não conhece, ou finge não conhecer o habitual, criando situa-
ções surpreendentes, ora sem querer, ora por molecagem... A linguagem da po-
esia, que atualiza essas relações com o visível, também se constitui como um
“descomportamento lingüístico” neológico – marca da poesia manoelina. No
poema “Comportamento”, Barros alia esta idéia ao distanciamento com relação
à experiência de ancião, e lembremos que, em 2000, quando publicou Ensaios
fotográficos, o poeta tinha 84 anos:

Mudo apenas os verbos e às vezes nem mudo.


Mudo os substantivos e às vezes nem mudo.
Se digo ainda que é mais feliz quem descobre o que não
presta do que quem descobre ouro –
Penso que ainda assim não serei atingido pela bobagem.
Apenas eu não tenho polimentos de ancião.

A idéia de incontinência/multiplicidade como signo de um olhar transfor-


mador se desdobra também na de “entortamento”, que tem tradição na literatu-
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ra brasileira através da contribuição drummondiana, o gauchismo, maldição de


um “anjo torto”, que nos espia com o seu “olho torto”. Em Barros, o torto,
além de ser o que nos chama a atenção e o que paralisa os nossos olhos, é tam-
bém, conforme afirmou Marilena Chauí no texto “Janela da alma, espelho do
mundo”, a representação de um efeito do caráter dialético e criativo do olhar,
que transtorna a fronteira entre o mundo exterior e o mundo interior (Cf.
CHAUÍ, 1988, p. 31-63). Ou seja, o eu lírico ao mesmo tempo entorta e é entor-
tado pela paisagem, como se esse entortar contaminasse reciprocamente o sujei-
to e o espaço em que ele está inserido. Já num pequeno poema em prosa de Livro
sobre nada (1996), um pouco anterior a Ensaios fotográficos, Barros explicita essa
relação:

Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais
curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a
ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.

Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o
menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.

No poema “O fingidor”, de Ensaios fotográficos, a mesma imagem se repete


relacionada à idéia de olhar. “O ermo que tinha dentro do olho do menino era
um/ defeito de nascença, como ter uma perna mais curta”. Esse olhar vazio,
comparado ao andar torto, é a expressão da sensação de destaque do sujeito com
relação ao mundo. Essa idéia alia-se ao sentimento de exílio, que, nesse mesmo
livro, aparece explicitado num outro poema – “A doença” – que pode ser com-
preendido como uma forma de problematizar o estereótipo de cenário paradisíaco
que o Pantanal representaria em sua poesia:

Era um lugar sem nome nem vizinhos.


Diziam que ali era a unha do dedão do pé do fim
do mundo.
A gente crescia sem ter outra casa ao lado.
No lugar só constavam pássaros, árvores, o rio e
os seus peixes.
Havia cavalos sem freio dentro do mato cheios
de borboletas nas costas.
O resto era só distância.
A distância seria uma coisa vazia que a gente
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portava no olho
E que meu pai chamava exílio.

A idéia de exílio já carrega em si a tensão entre o cá e o lá, assim como


entre o dentro e o fora. Mas, neste poema, há uma inversão da concepção român-
tica do exílio em terra estrangeira, na qual o poeta vive melancolicamente a
sonhar com a natureza da terra natal. Aqui o sentimento de exilado se dá em sua
própria terra, o que caracteriza toda a lírica moderna. Os poemas de Álvaro de
Campos seriam um dos exemplos mais significativos em língua portuguesa des-
se sentimento – aproximação esta incomum à obra de Barros, que geralmente só
é associada à poesia do heterônimo pessoano Alberto Caeiro, por ser uma poe-
sia que reduz, segundo Óscar Lopes, “[...] toda a racionalidade do aquém visível a
uma tautologia conformista (‘tudo é como é, e assim é que é’)” (LOPES, 1996, p.
998).
O eu lírico manoelino se sente um exilado que vê parado, ao contrário do
sujeito moderno que vê andando. A relação entre ver e andar, na modernidade,
representa, para Jacques Rancière, “uma nova experiência política do sensível”,
segundo a qual o sujeito moderno se constituiria de acordo com o seu movimen-
to no espaço do visível, modificando e sendo modificado por esse espaço (Cf.
RANCIÈRE, 1995, p. 108). Mas, em Barros, a torpeza da perna e dos olhos
configuram a impossibilidade de uma realização não imaginária. Sendo assim,
ver e andar, na poesia manoelina, invertem a concepção moderna apontada por
Rancière, já que nessa poesia o que interessa são as coisas paradas, que por sua
vez possuem uma intensa dinâmica interna – como, por exemplo, o “punhal em
brasa” do poema “O punhal”, de Ensaios fotográficos – e que geram o movimento
imaginativo. E isso é a representação da angústia de um sujeito cuja expressividade
lírica se dá num jogo contínuo entre imaginação e frustração. Em outro frag-
mento do poema “O fingidor”, o ermo que o menino tinha nos olhos era ao
mesmo tempo responsável pelas viagens da imaginação e pelo desfazer das suas
ilusões:

Quando chegou a quadra de fugir de casa, o menino


montava num lagarto e ia pro mato.
Mas logo o lagarto virava pedra.
Acho que o ermo que o menino herdara atrapalhava
as suas viagens.
O menino só atingia o que seu pai chamava de ilusão.
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A consciência desse sujeito lírico, analisando no presente poético,


distanciadamente, a memória de sua infância, se respalda na lúcida lição do ve-
lho pai, compondo o poema como um diálogo oblíquo entre imaginação e luci-
dez. Embora recuse sua experiência de ancião, cujo olhar seria desiludido, ex-
pressão do dejà vu, do qual a poesia manoelina se quer afastar, a visão dialética do
mundo une, no mesmo olhar, a capacidade imaginativa e o reconhecimento da
ilusão, por parte de um sujeito solitário em meio à natureza. Desta forma, o
Pantanal para Barros não é um cenário de pacífica completude espiritual, e sim,
um espaço de tensão entre a realidade e a perspectiva sonhadora, também focada
na visão da infância.
Desse modo, a relação entre poesia e imaginação funcionaria de duas for-
mas em Barros. Primeiro, coloca-se em dúvida a sinceridade romântica atribuí-
da ao sujeito lírico, e que, em vez de ratificada, é abalada pela aproximação ao
olhar imaginativo da criança. Segundo, inaugura-se um novo entendimento do
ver. Esse valor atribuído ao olhar imaginativo já fora expresso anteriormente,
num poema também de Livro sobre nada dedicado ao pintor boliviano Rômulo
Quiroga, em que podemos perceber a relação entre o ver e o imaginar. Nele, o
poeta diz: “O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê./ É preciso
transver o mundo.” Assim, o ver na poesia manoelina se afasta da visão empirista
da realidade, que se vincula à crença perceptiva do olhar. Em poesia é preciso
ver com a imaginação, o que para o poeta é uma forma de trans-ver.
Num outro fragmento desse mesmo poema, trabalhando na fronteira en-
tre a poesia e as artes plásticas, vemos que a imaginação representa aí uma técni-
ca de ruptura com a concepção tradicional de arte figurativa:

Deus deu a forma. Os artistas desformam.


É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer camponesa voar – como em Chagall.

Essa operação de “des-formação” (sic) da realidade através de um ver


renovado(r), e conseqüentemente de ruptura com as formas tradicionais do ver-
so se ligam ao olhar infantil de Manoel de Barros. Logo, essa idéia de rejuvenes-
cimento do olhar poético, que Barros chama de “ascensão para a infância”, é
menos uma forma de compreensão pueril e ingênua do mundo do que uma
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maneira de, através da arte, buscar a experiência do novo, afastando-se dos im-
perativos da técnica, e/ou do legado erudito da tradição literária.
No entanto, esse distanciamento tanto com relação à técnica como à tradi-
ção só podem se dar a partir de ambas. No poema citado, Barros recorre a uma
imagem de Chagall e a referências às obras de Baudelaire, Rimbaud, Rabelais,
Shakespeare, Pe. Antônio Vieira... (autores tradicionais), procurando neles ima-
gens e/ou características que façam uma intertextualidade com seu projeto esté-
tico, são uma constante na sua poesia. Já com respeito aos procedimentos técni-
cos, em Ensaios fotográficos, observamos que a relação entre poesia e fotografia é
uma maneira de demonstrar, tal como afirmava Walter Benjamin, que mesmo
“a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico” (BENJAMIN,
1994, p. 94). Desse modo, a fotografia, um dos marcos revolucionários do con-
ceito de arte na modernidade, também representa uma nova forma de ver o
mundo, diferente da visão normal, a partir da técnica. Falando sobre essas ques-
tões na obra benjaminiana, Celia Pedrosa diz que “[...] procedimentos como a
ampliação e o distanciamento do foco vão revelar virtualidades até então desco-
nhecidas, que [Benjamin] atribui a um ‘inconsciente ótico’, semelhante ao in-
consciente pulsional freudiano” (PEDROSA, 2002, p. 7). Na esteira desta colo-
cação, pode-se desenvolver a questão do ilogismo do verso manoelino, que, para
o poeta, é o que lhe dá sustentação. Sua poesia, eminentemente narrativa, joga
todo o tempo com o recorte e o comentário em torno de pequenas estórias
inverossímeis. Um exemplo seria o poema “Infantil”, de Tratado geral das grandezas
do ínfimo:

O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
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Em sua recente dissertação de mestrado, José López Landeira apresenta


uma interessante idéia sobre a presença e a defesa do ilogismo na poesia manoelina.
Valendo-se da etimologia, ele afirma que a “[...] partícula i- poderia valer não só
para indicar a ausência mas também (...) interioridade, ‘dentro de’, como, por
exemplo, em ‘imigrar’. Assim, ilogismo, num olhar que alarga o seu sentido, o
que é muito comum ao estilo de Manoel de Barros, supõe aquilo que se procura
dentro da lógica” (LANDEIRA, 2000, p. 41). Nesse sentido, no poema “Rabelais”,
de Ensaios fotográficos, Barros atribui valor à experiência poética, marcada pelo
distanciamento da lógica burguesa, como demonstra Hugo Friedrich no seu
Estrutura da lírica moderna (Cf. FRIEDRICH, 1991, p. 190-193), e que, num proces-
so intrínseco de afastamento com relação ao público, acabou sendo relegada ao
rol das coisas supérfluas, inúteis para vida prática: “Por volta de 1532 andava
pelas ruas de Paris o doido/ de Rabelais./ O doido apregoava pregos enferruja-
dos./ Ele sabia o valor do que não presta”.
Perguntado, certa vez, sobre o que pensava a respeito da opinião de alguns
leitores que o consideravam louco devido à poesia que faz, Manoel de Barros
explicou que ambos, poetas e loucos, são seres “escalenos” – “desconstruídos
por suas palavras” (Apud BARROS, 1992, p. 314). Assim, ele evidenciava a
consciência da cisão do sujeito lírico, construído através de uma linguagem po-
ética fragmentária, que, na modernidade, é o reflexo do processo de crise da
própria linguagem. Nos seus poemas, Barros explicita a idéia de que o “poeta” é
um “ente de sílabas”, construído, ou melhor, “desconstruído” através da lingua-
gem. Essa consciência de que a subjetividade lírica não passa de uma construção,
ou, de outra forma, de uma desconstrução do ideal unívoco de sujeito, é absolu-
tamente anti-romântica, e reflete o conceito psicanalítico lacaniano de aphanisis –
noção de “apagamento”, ou desaparecimento do sujeito, constituído, segundo
Lacan, na e pela linguagem (Apud BAUDRILLARD, 2001, p. 65-89). A consci-
ência moderna de fragmentação subjetiva é oposta às idéias de poeta demiurgo,
do romantismo, e de poesia “flagra no ego”, da geração mimeógrafo. Já em li-
vros anteriores, o poeta se autodefinia como um “vazadouro para contradições”;
no movimento contínuo de “desejar ser”, constituindo-se ele a partir do próprio
estilhaçamento: “Com pedaços de mim eu monto um ser atônito” (In: Livro sobre
nada, 1996, p. 37).
Em Ensaios fotográficos, três categorias dividem lugar, de maneira
questionadora, com a noção de a priori da expressão lírica em primeira pessoa.
São elas: a identificação, desde o primeiro poema do livro, da atividade lírica do
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sujeito com as atividades de um fotógrafo; o uso do pronome indefinido “nin-


guém”, como no poema de mesmo nome, em que substitui a 1a pessoa (“eu”); e
o diálogo subentendido entre o sujeito e outras figuras ficcionalizadas. Todas
elas representam a relação dialética de distanciamento e aproximação que a idéia
de fotografia é capaz de imprimir às imagens do eu. Concentrar-nos-emos, po-
rém, na análise da primeira categoria, e tomaremos como exemplo o poema “O
fotógrafo”, em que o poeta apresenta, à maneira de um relato, o modus operandi do
sujeito lírico:

Difícil fotografar o silêncio.


Entretanto tentei. Eu conto:
Madrugada a minha aldeia estava morta.

Não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas.


Eu estava saindo de uma festa.
Eram quase quatro da manhã.
Ia o silêncio pela rua carregando um bêbado.
Preparei minha máquina.
O silêncio era um carregador?
Estava carregando o bêbado.
Fotografei esse carregador.

Numa entrecortada junção de frases, Barros vai alinhavando pouco a pou-


co a descrição da cena. Nela, misturam-se as noções de sujeito e objeto, ou,
podemos dizer que o sujeito é ao mesmo tempo quem fotografa e quem é foto-
grafado – no poema, o bêbado é a representação do próprio eu lírico na terceira
pessoa. Porém, esse “objeto” da fotografia, no poema, é um “quase-objeto”. Qua-
se porque, em Barros, a imagem poética opta sempre pelo figural, o não-visível,
em lugar do figurativo. O sujeito realiza a cena com o lento enquadramento de
um fotógrafo, e é ele mesmo o referente da imagem. Porém, esse quase-objeto
não logra ser retido pela imagem fotográfica, o que é um processo questionador
do fenômeno da espetacularização das imagens na atualidade, visto que a foto-
grafia, técnica capaz de transformar sujeitos em objetos, é um dos procedimen-
tos mais representativos desse fenômeno na nossa sociedade – “sociedade para a
qual o ser baseava-se em ter”, segundo Roland Barthes (BARTHES, 1984, p. 26).
No seu estudo sobre a fotografia, em lugar da objetivação da imagem foto-
gráfica, reprodução do real, Barthes destaca o elemento subjetivo da foto, o
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punctum – detalhe que punge o sujeito, capaz de atrair o olhar do espectador


numa armadilha que o leva a um instante de inquietação. Na foto, o punctum
muitas vezes é um detalhe intraduzível: um grito silencioso (Cf. BARTHES,
op.cit., p. 80-85). Sendo ele a ferida que não pode ser nomeada, essa dimensão
traumática ganha correspondente, no poema, através do “silêncio”, que envolve
cada gesto do fotógrafo – ao mesmo tempo, sujeito actante e observador. Por
isso, a opção por fotografá-lo; em lugar do bêbado/sujeito/fotógrafo que sai de
uma festa às quatro da manhã, fotografa-se o silêncio que o carrega e que engasga
a voz lírica. Da mesma maneira, as imagens não visuais são sempre as escolhas
da lente poética, que procura a ferida pungente, que busca no mundo exterior
um detalhe que descobre os abismos da subjetividade, reaproveitando de manei-
ra original conceitos abstratos como “existência” e “perdão”: “Vi uma lesma
pregada na existência mais do que na/ pedra./ Fotografei a existência dela./ Vi
um azul-perdão no olho de um mendigo./ Fotografei o perdão”.
Para concluir, a busca de uma aproximação entre poesia e fotografia é com-
preensível, por serem ambas instrumentos de imobilização do presente. A utili-
dade da fotografia, como fixação do instante, pode ser traduzida pela afirmativa
benjaminiana, com respeito à História, de que “[...] pensar não inclui apenas o
movimento das idéias, mas também sua imobilização” (BENJAMIN, op.cit.,
p. 231). O poema “Bola Sete”, de Ensaios fotográficos, seria um exemplo de que
através da fixação de um instante é possível perceber a complexa tensão tempo-
ral que envolve o presente: “Bola Sete não botava movimento./ Era incansável
em não sair do lugar./ Igual o caranguejo de Buson que foi encontrado/ de
manhã debaixo do mesmo céu de ontem”. Essa imobilização da História, da
fotografia e do poema não devem ser entendidas, portanto, como a descoberta
de uma forma definitiva e perfeita. Em Ensaios fotográficos, a busca pela imagem
“apta a foto”, como no poema “O vento”, é incessante: “Queria transformar o
vento./ Dar ao vento uma forma concreta e apta a foto./ Eu precisava pelo
menos de enxergar uma parte física/ do vento: uma costela, o olho.../ Mas a
forma do vento me fugia que nem as formas/ de uma voz”. Esse movimento,
empreendido pelo sujeito desejante, é o próprio movimento da poesia.
* Este trabalho, que contou com o apoio do CNPq, faz parte do projeto Poesia e visualidade, que vem
sendo desenvolvido na Universidade Federal Fluminense sob a orientação da Profa. Dra. Célia
Pedrosa.
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REFERÊNCIAS
BARROS, Manoel de. Gramática expositiva do chão: poesia quase toda. 2 ed. Rio de
Janeiro: Civilização brasileira, 1992.
______. Livro sobre nada. 7 ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
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