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Artigo 4
Artigo 4
RESUMO
Nesta leitura da obra de Manoel de Barros, tentaremos identifi-
car diferentes modos de relação entre visualidade e discursividade
lírica, enfatizando, sobretudo, o diálogo dos seus textos com a foto-
grafia, arte técnica que segundo Benjamin deflagra todo um proces-
so de mudança contextuais e de novas reflexões em torno das artes
visuais na modernidade. Desse modo, queremos evidenciar a par-
tir de sua própria produção o questionamento de determinadas
estereotipias críticas que o vinculam aos rótulos de “poeta
pantaneiro” ou poeta “neo-romântico”. É um trabalho, portanto,
que pretende lançar um outro modo de perspectivação dos textos de
um dos poetas brasileiros mais lidos da contemporaneidade.
anoel de Barros foi cultuado como uma das vozes mais originais da
M nossa poesia nos anos 80. Alguns fatores corroboraram para que essa
poesia ganhasse destaque nessa época. Dentre eles podemos citar a
nostalgia dos anos 70 – década da poesia marginal – e a grande variedade de
dicções poéticas sem uma diretriz programática nítida. Uma e outra possibilita-
36 Jr Andrade, Antonio Francisco de. Com olhos de ver: poesia e fotografia em Manoel Barros
ram que a poesia de Barros – uma poesia que prega certo aspecto intuitivo do
verso, marcado pela coloquialidade da frase, em oposição à escola do rigor cons-
trutivo – ganhasse notoriedade apenas na década de 80, apesar de ser publicada,
quase que anonimamente, desde 1937. Hoje em dia, entretanto, “o poeta
pantaneiro”, como Barros é conhecido, vem sendo bastante criticado devido à
repetição temática e formal dos seus livros que, para muitos, não vão além de
um regionalismo neo-romântico impregnado pela herança da prosa neológica
de Guimarães Rosa. Este regionalismo representaria o Pantanal sul-mato-
grossense como um cenário exótico, resgatando os topoi do selvagem e do primi-
tivo instaurados pelo romantismo – topoi esses que parte de nosso modernismo
já havia tentado erradicar, em busca de um descentramento da tradição naciona-
lista da nossa literatura.
Essas são as leituras recorrentes da poesia de Barros, que, por tais motivos,
já chegou a ser chamada de ecológica, artificial, epigônica e fraudatária. Nós,
porém, em lugar de endossar essa recusa radical ou aquele elogioso culto ao
universo pantaneiro, propomos uma leitura da obra manoelina sob uma nova
perspectiva. Essa nova perspectiva pode ser depreendida através da análise do
caráter visual das imagens na poesia de Manoel de Barros, que chega inclusive a
se refletir nas ilustrações e nas referências a grandes pintores que marcam sua
obra, desmitificando o lugar-comum da poesia romântica, que quase sempre
relaciona a emoção subjetiva à paisagem, como se o mundo exterior e o interior,
ambos igualmente naturais, fossem um a extensão do outro. O poema “O pulo”,
do livro Arranjos para assobio (1980), de Barros, é um exemplo de como essa poe-
sia, inversamente, sempre se preocupou em apresentar a natureza como efeito
de uma construção da imagem visual: “Estrela foi se arrastando no chão deu no
sapo/ sapo ficou teso de flor!/ e pulou o silêncio” (Apud BARROS, 1992, p.
223). Este poema não apresenta a primeira pessoa, construindo-se como um
movimento independente do sujeito de transfiguração dos elementos da nature-
za numa linguagem simples e precisa. Desdobram-se nele imagens que passam
por diferentes ordens do natural, culminando com a idéia de silêncio, que repre-
senta a subjetividade lírica como uma impossibilidade de plena comunhão com-
preensiva com a natureza.
No seu livro Ensaios fotográficos (2000), podemos perceber, desde o título,
como se radicaliza essa relação de sua poesia com a visualidade e como nessa
relação se vai problematizar tanto o visual como o subjetivo. Nesse livro, atra-
vés da idéia de fotografia, o poeta, ao mesmo tempo em que demonstra exata-
Cadernos de Letras da UFF – PIBIC – GLC, nos 30-31, 2004-2005 37
que “[...] talvez para um/ fotógrafo, aquele pingo de sol na lata seja mais/ im-
portante do que o esplendor do sol nos oceanos”. E retomando, ainda nesse
poema, a mesma paisagem andina:
Agora, hoje, eu vi um sabiá pousado na Cordilheira
dos Andes.
Achei o sabiá mais importante do que a Cordilheira
dos Andes.
O pessoal falou: seu olhar é distorcido.
Mesmo utilizando um lugar-comum do nosso romantismo nacionalista (a
imagem do “sabiá”), Manoel de Barros consegue fazer uma comparação inusita-
da. Num movimento próprio da sua poética, que alguns estudiosos conseguem
ver como fruto de uma insuspeitada influência da linguagem oswaldiana, ele
transforma o lugar-comum em poesia, através do olhar de criança, irresponsável
e transgressor, que distorce e entorta a realidade. O final do poema “O poeta”
mostra o confronto do infantil com o convencional: “Mostrei a obra pra minha
mãe./ A mãe falou:/ Agora você vai ter que assumir as suas/ irresponsabilidades./
Eu assumi: entrei no mundo das imagens”. Já Oswald de Andrade, em seu poe-
ma “3 de maio”, mostra a relação entre a poesia e o olhar infantil, que é o olhar
da novidade. Aí o poeta diz: “Aprendi com meu filho de dez anos/ Que a poesia
é a descoberta/ Das coisas que eu nunca vi” (Apud CAMARGO, 1996, p. 37).
Daí, depreende-se o diálogo com a obra manoelina, pois ambos compreendem a
poesia como uma forma de instaurar uma nova realidade através da linguagem
do olhar. Outros aspectos desse diálogo são apontados por Goiandira Camargo:
A inserção do coloquial no espaço poético, a tematização do
universo cotidiano e do imaginário infantil, a linguagem
desprendida da lógica para concentrar e elaborar as imagens da
inocência, articulam o diálogo com Oswald, numa vertente que
tece o autobiográfico, exposto na mitologia da infância, com o viés
social, numa linguagem lúdica, às vezes prosaica, que se ilumina
aqui e ali com as imagens da “inocência criativa” e da “surpresa”.
(Ibidem, p. 31)
Essa, contudo, não é a primeira vez que a imagem da criança aparece vin-
culada ao conceito de arte moderna. Ao contrário do que se pode pensar, essa
relação não se dá através da recuperação de uma linguagem totalmente
espontaneísta e desprovida de qualquer esforço construtivo, mas como fruto de
uma técnica consciente de feitura do verso. Num texto do século XIX, Charles
Cadernos de Letras da UFF – PIBIC – GLC, nos 30-31, 2004-2005 39
Baudelaire já havia afirmado que tanto o homem de gênio como a criança estão
respectivamente infensos às restrições da razão e da sensibilidade puras. O gran-
de artista, contudo, é aquele que usa a razão para buscar o novo, e que mantém
vivo o olhar curioso da criança. Em “O pintor da vida moderna”, Baudelaire
demonstra como essa junção entre a capacidade de ver o novo e de analisá-lo são
fundamentais para a formação do verdadeiro gênio moderno:
Mas o gênio é somente a infância redescoberta sem limites; a infância
agora dotada, para expressar-se, de órgãos viris e do espírito analítico
que lhe permitem ordenar a soma de materiais involuntariamente
acumulada. É a curiosidade profunda e alegre que se deve atribuir
o olhar fixo e animalmente estático das crianças diante do novo...
(BAUDELAIRE, 1996, p. 169)
Prefiro as linhas tortas, como Deus. Em menino eu sonhava de ter uma perna mais
curta (Só pra poder andar torto). Eu via o velho farmacêutico de tarde, a subir a
ladeira do beco, torto e deserto... toc ploc toc ploc. Ele era um destaque.
Se eu tivesse uma perna mais curta, todo mundo haveria de olhar para mim: lá vai o
menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
portava no olho
E que meu pai chamava exílio.
maneira de, através da arte, buscar a experiência do novo, afastando-se dos im-
perativos da técnica, e/ou do legado erudito da tradição literária.
No entanto, esse distanciamento tanto com relação à técnica como à tradi-
ção só podem se dar a partir de ambas. No poema citado, Barros recorre a uma
imagem de Chagall e a referências às obras de Baudelaire, Rimbaud, Rabelais,
Shakespeare, Pe. Antônio Vieira... (autores tradicionais), procurando neles ima-
gens e/ou características que façam uma intertextualidade com seu projeto esté-
tico, são uma constante na sua poesia. Já com respeito aos procedimentos técni-
cos, em Ensaios fotográficos, observamos que a relação entre poesia e fotografia é
uma maneira de demonstrar, tal como afirmava Walter Benjamin, que mesmo
“a técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico” (BENJAMIN,
1994, p. 94). Desse modo, a fotografia, um dos marcos revolucionários do con-
ceito de arte na modernidade, também representa uma nova forma de ver o
mundo, diferente da visão normal, a partir da técnica. Falando sobre essas ques-
tões na obra benjaminiana, Celia Pedrosa diz que “[...] procedimentos como a
ampliação e o distanciamento do foco vão revelar virtualidades até então desco-
nhecidas, que [Benjamin] atribui a um ‘inconsciente ótico’, semelhante ao in-
consciente pulsional freudiano” (PEDROSA, 2002, p. 7). Na esteira desta colo-
cação, pode-se desenvolver a questão do ilogismo do verso manoelino, que, para
o poeta, é o que lhe dá sustentação. Sua poesia, eminentemente narrativa, joga
todo o tempo com o recorte e o comentário em torno de pequenas estórias
inverossímeis. Um exemplo seria o poema “Infantil”, de Tratado geral das grandezas
do ínfimo:
O menino ia no mato
E a onça comeu ele.
Depois o caminhão passou por dentro do corpo do
menino
E ele foi contar para a mãe.
A mãe disse: Mas se a onça comeu você, como é que
o caminhão passou por dentro do seu corpo?
É que o caminhão só passou renteando meu corpo
E eu desviei depressa.
Olha, mãe, eu só queria inventar uma poesia.
Eu não preciso de fazer razão.
44 Jr Andrade, Antonio Francisco de. Com olhos de ver: poesia e fotografia em Manoel Barros
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