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Do barroco ao classicismo

A música barroca e clássica, ainda hoje, é vista normalmente pela ótica do fim do século XIX, e é assim
executada. É verdade que se fez – e ainda se faz – várias tentativas no sentido de modernizar as
interpretações, sobretudo desfazendo-se de todas as tradições de execução e baseando-se
exclusivamente no texto musical – toca-se exatamente e unicamente aquilo que, nele, se acha:
conheceu-se igualmente outras “tentativas de reforma”; mas no essencial continuou-se a tocar toda a
“história da música”, por conseguinte, desde o início do barroco até o pós-romantismo num único estilo
de interpretação: exatamente naquele concebido e perfeitamente apropriado à música de Tchaikovsky
ou Richard Strauss ou Stravinsky. Para a música barroca, já se tentou no mundo inteiro achar uma
nova linguagem, ou melhor, redescobrir a antiga, ou melhor ainda, a linguagem que acreditamos ser a
antiga, pois ninguém pode saber mesmo, pelo menos até que alguém da época retorne para confirmar
ou condenar nossas concepções. Por que este passo foi dado precisamente na música barroca? É que
justamente nela a diferença na dicção, nas estruturas musicais primárias, é tão evidente, que um
músico ou outro teria forçosamente de tomar consciência do abismo insuportável que separa a música
em si de seu estilo interpretativo; a diferença entre as obras – digamos do fim do século XIX e da época
de Bach – é tão grande, que só um mode de interpretação igualmente diverso pode dar conta. As
pesquisas constantes realizadas neste campo levaram um bom número de músicos a encontrar uma
nova linguagem musical para a época de Bach; deste modo, foi descoberto um vocabulário musical que
se revelou bastante convincente. Naturalmente, cada uma das “descobertas” se fez acompanhar de
controvérsias e discussões que tão cedo não terminarão; mas pelo menos no campo da execução da
música barroca as coisas finalmente começaram a se movimentar. Não se aceita mais qualquer coisa
sem discussão; a presunção e a segurança dos intérpretes, fundadas unicamente em uma tradição
mal compreendida, cedem lentamente a uma atitude de pesquisa interessada.
É curioso que estes novos princípios de interpretação que foram – e continuam sendo –
descobertos, na música clássica vienense. É claro que há aqui um corte estilístico que não se pode
deixar de perceber e que é evidente para qualquer músico e ouvinte. Quase ninguém hesita quando se
trata de classificar o estilo de uma determinada obra; todo mundo que frequenta concertos percebe
imediatamente se uma obra pertence á esfera estilística de Bach ou de Haydn. A pessoa sente a
diferença, mesmo quando as obras datam de uma única época, pois ao mesmo tempo de Bach já
existia em Viena e em Mannheim compositores que escreviam no novo estilo galante, o estilo da
Empfindsamkeit, e que se supõe, quando não se tem conhecimentos precisos de história da música,
fossem contemporâneos da primeira fase de Haydn. No momento dessa transição, quando o barroco e
classicismo se interpenetram – estou aqui aplicando estes dois termos unicamente à música – estava
se processando uma revolução social e cultural a que se seguiu, como já anteriormente mencionei,
uma modificação da função da música. A finalidade a todo mundo, inclusive às massas. Quando se
considera as diferenças entre uma obra do fim do barroco e uma da época clássica, se observa que o
classicismo coloca o elemento melódico em primeiro plano. As melodias devem ser fáceis e
convincentes, com o acompanhamento o mais simples possível; o ouvinte deve ser atingido no seu
sentimento; os conhecimentos técnicos não são aqui necessários como na música barroca (do ponto
de vista estritamente da substância musical, isso significa uma decadência que só será superada com
as obras-primas de Haydn e de Mozart). A música, agora, pela primeira vez, se dirige a um ouvinte que
não tem absolutamente necessidade de “compreender”. Foi nesta época e a partir desta mentalidade
que brotou a idéia muito comum hoje de que a música não tem de ser compreendida; se ela me faz
sentir qualquer coisa, então é porque é boa. Assim, na fronteira do barroco com o clássico encontra-se
também a fronteira que separa a música fácil e difícil de compreender. Esta maneira de encarar a
música clássica, achando que nada há para ser sabido ou conhecido, é que nos impediu de ir em
busca de seu vocabulário específico.
Devemos partir do princípio de que a música clássica era tocada por músicos e escrita para
ouvintes que não conheciam a música de Schubert e Brahms, mas que eram pessoas recém-saídas da
linguagem barroca. Isso, evidentemente, significa que existe uma grande parte de vocabulário barroco
na música clássica, e tudo aquilo que na música clássica difere da música anterior é – do ponto de
vista dos contemporâneos – novo e especial, aquilo, enfim, que ela tem de estimulante. Já no nosso
caso, a coisa é totalmente diversa: tendo nos ouvidos Schubert, Brahms e tudo o que veio depois,
escutamos a música do classicismo de um modo completamente diferente do homem daquela época.
Aquilo que era então novo e apaixonante nos parece antiquado, já mil vezes repetido e, além de tudo,
“ultrapassado” pelas inovações harmônicas e dinâmicas criadas em épocas posteriores. Conhecendo
os estímulos que estava ainda por vir, perdemos a inocência das reações espontâneas aos estímulos
originais do classicismo. Na interpretação, o caminho que passa pelo romantismo não tem sentido, pois
ele priva a música clássica de sua verdadeira linguagem e efeitos.
Esta necessidade de compreender a música é para nós, tributários eternos da concepção
romântica, algo muito difícil de admitir. Toda música que não nos parece evidente na primeira
abordagem, simplesmente a tachamos de ruim ou pouco interessante. Mas como seria se
aprendêssemos o vocabulário necessário à compreensão da música clássica? Pode ser que ele não
seja tão difícil assim, talvez bastasse aprender umas tantas coisas e já desse para ouvir a música com
um novo tipo de percepção. O efeito do desgaste que parece inevitável no caminho (errado) do
romantismo seria evitado; poderíamos hoje, a partir da compreensão que a época precedente tinha da
música, compreender novamente a música do classicismo. Este caminho me parece muito mais natural
e produtivo, e hoje em dia novamente praticável.
Até agora, não havíamos incluído o domínio clássico no conjunto de problemas referentes à
prática de execução, porque pensávamos que, aqui, o mundo da interpretação ainda estivesse sadio,
que tudo ainda estivesse em ordem, que fosse perfeitamente dispensável rever as idéias e que tudo
pudesse continuar como está. Infelizmente – ou quem sabe felizmente – a experiência nos ensinou, no
curso dos últimos anos, que não era nada disso. Pois se a interpretação atual da música clássica
estiver realmente se afastando cada vez mais do que pensaram os “clássicos”, isso certamente irá
causar em nós uma profunda incerteza, um mal-estar, um sentimento nascente de que estamos no
caminho errado e de que a velha idéia – a de interpretar esta música unicamente segundo a
sensibilidade ou unicamente a partir do texto musical – não é válida para todas as épocas. Desta
forma, cedo iremos concluir que é necessário encontrar novos caminhos – ou os antigos – para a
interpretação e a compreensão da música.
De resto, o ouvinte tinha antigamente uma concepção muito diferente sobre a experiência
musical. Ele só queria ouvir o novo exclusivamente músicas que jamais houvessem sido antes ouvidas.
Os compositores estavam perfeitamente conscientes de que uma obra não podia ser tocada várias
vezes para um mesmo público. Estava-se então, muito mais interessado na obra em si mesma do que
na sua execução; os críticos se ocupavam praticamente só da obra e davam à execução uma
importância apenas relativa, justo o contrário do que acontece hoje, quando só se comenta e compara
quase que exclusivamente os detalhes da execução. A mensagem da obra, conhecida nota por nota,
não é mais objeto de discussão em nossos dias.
Antigamente, havia interesse por uma peça na medida em que esta fosse nova; depois, ela era
abandonada e passava a servir no curso dos séculos seguintes como matéria de estudos para os
compositores vindouros – ninguém, nem mesmo o autor da peça, seria capaz de imaginar que em
épocas ulteriores ela fosse novamente executada. Beethoven, Mozart e mesmo Bach sem dúvida
alguma se ocuparam com as obras de seus predecessores, mas se limitavam a estudar-lhes as
técnicas de composição nas bibliotecas e jamais passaria por suas cabeças executar uma peça do
passado de acordo com aquilo que teria sido imaginado pelo autor. Caso alguma execução fosse
desejada por um motivo qualquer, modernizava-se radicalmente a obra. É o que faz, por exemplo,
Mozart com as obras de Haendel, quando lhes deu uma roupagem nova mito ao seu estilo, para
atender o fanatismo histórico de Van Swieten. Agora, suponhamos que disséssemos: seria interessante
saber como Brahms poderia soar nos tempos atuais. Stockhausen deveia fazer um arranjo tocável de
uma das suas obras, qualquer coisa na linha do público de hoje, pois afinal Brahms escreveu sua
música um século atrás e ela evidentemente não dá mais para ser ouvida. Essa seria mais ou menos a
atitude pública de outrora com relação àquilol que era então música antiga. Tomemos os programas de
concertos do final dos séculos XVIII e XIX. Toda estréia, toda primeira audição – até a época de
Tchaikovsky, Bruckner, Strauss – era atual; ali naquele momento, é que se faziam os acontecimentos
que interessavam o mundo musical e não a reexecução de obras antigas. Naturalmente, às vezes,
introduzia-se também música antiga nos programas (só que por volta de 1700 uma música com cinco
anos já era considerada antiga), mas o núcleo da vida musical até o final do século XIX era a música
contemporânea.
A concepção que se tinha da música histórica no século XIX pode ser ilustrada pelo seguinte
acontecimento: Joachim, o famoso violinista, amigo de Schumann e Brahms, achou em uma biblioteca
a Sonfonia Concertante para violino e viola de Mozart. Ele escreveu sobre isto a Clara Schumann,
relatando que havia encontrado uma jóia de música, embora naturalmente não se pudesse mais
executar em público algo daquele gênero, mas, para os conhecedores, ela se constituía numa
maravilhosa leitura e, quem sabe, algum dia os dois poderiam tocar juntos. Durante o século XIX aos
poucos foram aumentando as execuções de obras de Beethoven e Mozart e vez por outra também de
algumas despropositadas transcrições e arranjos de Bach e Haendel – o que, porém, só representava
uma ínfima parte da vida musical. Todo o resto era atual, era música nova!
Foi com a execução pública da Paixão segundo São Mateus de Bach em 1829 que
Mendelssohn retirou a música antiga do domínio dos antiquários. Em seu amor verdadeiramente
romântico pelo antigo, ele encontrou aqui, num passado dos mais sombrios, contra todas as
expectativas, uma música apaixonada. A idéia de sua utilização não só como objeto de pesquisa, mas
também para novas execuções, só foi possível concretizar-se no romantismo; a execução da Paixão
segundo São Mateus por Mendelssohn, é bom lembrar aqui, foi considerada pelos contemporâneos
como um grande acontecimento, como uma coisa única que não poderia repetir-se. Por outro lado,
nenhum dos ouvintes jamais havia escutado a obra e as críticas a respeito a descrevem como uma
música apaixonante e nova.
Expliquei acima que se deveria abordar a música clássica a partir da época precedente,
fundamentando-se no antigo vocabulário barroco. Dentre os importantíssimos recursos artísticos que o
classicismo adquiriu do barroco, encontra-se todo o tipo de apogiaturas: longa ou curta, acentuada ou
não acentuada. A apogiatura longa atua modificando a harmonia, enquanto que a curta não acentuada
possui uma função ritmica. Todas as apogiaturas são escritas na forma de pequenas notas que são
colocadas antes das “notas principais”; o músico deve encontrar por si mesmo, a partir do contexto, o
tipo de apogiatura a ser empregado neste ou naquele lugar. Normalmente, a apogiatura deve ser longa
se estiver sobre uma consonância, pois irá provocar uma dissonância, desencadeando uma sensação
incômoda que será resolvida na nota principal, na consonância, no bem estar. Já o antigo vocabulário
da música barroca indicava também, com muita riqueza, a interpretação, pois era coisa bem sabida
para o músico daquela época que a dissonância devia ser tocada forte e sua resolução piano. (É
suficiente ouvir uma ou duas vezes uma execução deste tipo para perceber que isto é evidente.) Este
princípio da apogiatura foi retomado pela geração que se seguiu a Bach. Leopold Mozart escreveu, já
em sua Escola do violino publicada em 1756 – mas que trata de muitos assuntos referentes ao novo
estilo – que a apogiatura deve ser empregada para tornar interessante um canto, uma melodia, e
também para temperá-la com dissonâncias. Nenhum camponês, disse ele, cantaria uma melodia, com
as apogiaturas que “qualquer camponês cantaria”. Eu submeti esta melodia a alguns músicos – que
não eram camponeses, mas músicos diplomados e profissionais – e nenhum deles acrescentou-lhe as
apogiaturas. Concluiu-se, portanto, que o camponês da época de Mozart era muito mais músico do que
o músico de nosso tempo, ou então que aquilo que era evidente outrora pode ser totalmente estranho à
nossa época.
As apogiaturas1 foram, portanto, admitidas no novo estilo, mas com múltiplos e variados
significados e notações. Uma das primeiras razões para a notação da apogiaturas em pequenas notas
suplementares estava no fato de que o compositor queria escrever “corretamente” dissonâncias que,
em certas passagens, “escritas com todas as notas”, teriam ficado incorretas. Desse modo, a
apogiatura indica a dissonância a ser tocada. As regras da ortografia musical foram ficando pouco a
pouco mais flexíveis, e cada vez mais se foi escrevendo a apogiatura como ela deveria soar em notas
normais. Como tais, elas não são mais para se ver e sim ouvir.

1
Apogiatura em alemão chama-se Vorschlag, que ao mesmo tempo significa proposta.

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